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1 PORTUGUÊS FORENSE 2 3 SUMÁRIO 1) LÍNGUA, VARIAÇÃO E PRECONCEITO LINGUÍSTICO ................................................. 11 1Linguagem .................................................................................................................................. 12 2Língua ......................................................................................................................................... 12 3Sistema ........................................................................................................................................ 15 4Norma .......................................................................................................................................... 16 5Português brasileiro ................................................................................................................... 18 6Variedades linguísticas .............................................................................................................. 20 6.1Padrão vs. não padrão ........................................................................................................ 20 6.2Variedades sociais ............................................................................................................... 21 6.3Classificação das variedades .............................................................................................. 26 7 Preconceito e intolerância linguística ...................................................................................... 37 Exercícios ...................................................................................................................................... 40 2) COMO A LINGUAGEM FUNCIONA ..................................................................................... 45 1Análise do discurso..................................................................................................................... 46 2O estudo da linguagem .............................................................................................................. 46 3O discurso ................................................................................................................................... 49 4Condições de produção .............................................................................................................. 49 5Paráfrase e polissemia ............................................................................................................... 51 6Formação discursiva .................................................................................................................. 52 7Ideologia do sujeito .................................................................................................................... 55 8Incompletude e ruptura ............................................................................................................. 55 9O dito e o não dito ...................................................................................................................... 57 10Tipos de discurso ...................................................................................................................... 57 Exercícios ...................................................................................................................................... 62 3) ESTUDOS DAS PALAVRAS: O SENTIDO NA LINGUAGEM JURÍDICA ...................... 67 1Polissemia .................................................................................................................................... 68 2Estudo do léxico .......................................................................................................................... 69 2.1Sinonímia.............................................................................................................................. 69 2.2Antonímia ............................................................................................................................. 71 2.3Hiperonímia/hiponímia........................................................................................................ 72 2.4Meronímia ............................................................................................................................ 72 2.5Associação semântica........................................................................................................... 72 3Homonímia ................................................................................................................................. 76 4 3.1Homofonia ............................................................................................................................ 76 3.2Algumas considerações ........................................................................................................ 76 4Denotação e conotação ............................................................................................................... 77 5A função de coesão e coerência textual do vocabulário .......................................................... 78 6Competência lexical ................................................................................................................... 84 7Semântica e pragmática ............................................................................................................. 86 7.1Processos de formação de palavras ..................................................................................... 89 Exercícios ...................................................................................................................................... 98 4) COESÃO TEXTUAL ................................................................................................................ 101 1Introdução................................................................................................................................. 102 2Mecanismos de coesão textual ................................................................................................. 104 2.1Coesão referencial .............................................................................................................. 105 2.2Coesão sequencial e recorrencial ....................................................................................... 109 2.3Sequenciação parafrástica .................................................................................................. 109 2.4Sequenciação frástica ......................................................................................................... 110 Exercícios .................................................................................................................................... 113 5) COERÊNCIA TEXTUAL......................................................................................................... 117 1Necessidade de coerência ......................................................................................................... 118 2Condições para a existência de um texto ............................................................................... 121 3Competência textual ................................................................................................................ 122 4Saber partilhado ....................................................................................................................... 124 5Boa formação e continuidade de sentido................................................................................ 126 Exercícios .................................................................................................................................... 131 1Conceito de texto ......................................................................................................................136 2Percurso gerativo do sentido ................................................................................................... 136 3Nível figurativo ......................................................................................................................... 136 3.1Isotopia................................................................................................................................ 137 3.2Motivo ................................................................................................................................. 137 4Esquema narrativo canônico ................................................................................................... 137 5Actantes (unidade sintáxica de base da gramática narrativa) ............................................. 138 6Categorias ................................................................................................................................. 139 Exercícios .................................................................................................................................... 143 7) ARGUMENTAÇÃO .................................................................................................................. 147 1Introdução................................................................................................................................. 148 2Expedientes da argumentação ................................................................................................ 148 3Implícitos................................................................................................................................... 151 5 3.1Pressupostos........................................................................................................................ 151 3.2Subentendido ....................................................................................................................... 153 4Tipos de argumento ................................................................................................................. 154 5Mecanismos de argumentação ................................................................................................ 156 6Estilo .......................................................................................................................................... 157 7Teorias da linguagem ............................................................................................................... 158 8Pragmática ................................................................................................................................ 159 9Procedimentos de persuasão: a argumentação ..................................................................... 160 10Relações instauradas entre enunciação e enunciado .......................................................... 162 11Temporalização e espacialização .......................................................................................... 164 12Relações entre enunciador e enunciatário ........................................................................... 165 Exercícios .................................................................................................................................... 168 8) ENUNCIAÇÃO, DIALOGISMO, POLOFONIA E INTERTEXTUALIDADE ................. 171 1Enunciação: conceito ............................................................................................................... 172 2Enunciação, enunciado e enunciação enunciada ................................................................... 172 3Enuncividade ............................................................................................................................ 173 4Tempo ........................................................................................................................................ 174 4.1Tempos enunciativos .......................................................................................................... 175 5Espaço ....................................................................................................................................... 176 6Debreagem e embreagem ........................................................................................................ 177 7Os estudos de Bakhtin.............................................................................................................. 177 8Dialogismo................................................................................................................................. 178 9Polifonia .................................................................................................................................... 179 10Polifonia textual e discursiva ................................................................................................ 179 11Intertextualidade .................................................................................................................... 180 11.1Citação .............................................................................................................................. 181 11.2Alusão ............................................................................................................................... 181 11.3Estilização ......................................................................................................................... 181 12Interdiscursividade ................................................................................................................ 181 12.1Citação .............................................................................................................................. 181 12.2Alusão ............................................................................................................................... 182 13Paródia .................................................................................................................................... 182 13.1Diálogo intertextual ......................................................................................................... 182 14Leitura polifônica ................................................................................................................... 185 15Carnavalização ....................................................................................................................... 186 15.1Signo como arena de classes............................................................................................ 186 6 Exercícios .................................................................................................................................... 186 9) IDEOLOGIA .............................................................................................................................. 189 1Sistema × discurso .................................................................................................................... 190 2Discurso: a autonomia e a determinação ............................................................................... 190 3Temas e figuras......................................................................................................................... 192 4Formações discursivas ............................................................................................................. 194 5Texto e discurso ........................................................................................................................ 195 Exercícios .................................................................................................................................... 196 10) O TEXTO E SUAS PROPRIEDADES .................................................................................. 201 1Conceito de texto ......................................................................................................................202 2Unidade ..................................................................................................................................... 203 3Contextualização ...................................................................................................................... 203 4Referência e tematização ......................................................................................................... 204 5Coerência .................................................................................................................................. 205 6Competência textual ................................................................................................................ 205 Exercícios .................................................................................................................................... 206 11) ESTILÍSTICA .......................................................................................................................... 209 1Importância da estilística para o advogado ........................................................................... 210 2Seleção e combinação ............................................................................................................... 210 3Estilo de escrita e pensamento: coordenação e/ou subordinação? ...................................... 211 4Colocação dos termos............................................................................................................... 212 5Tonalidade emotiva das palavras ........................................................................................... 213 5.1Palavras de significado afetivo ........................................................................................... 213 5.2Palavras que exprimem julgamento .................................................................................... 213 5.3Avaliação ............................................................................................................................ 214 6Figuração e tematização .......................................................................................................... 214 6.1Linguagem figurada ............................................................................................................ 214 Exercícios .................................................................................................................................... 220 12) GÊNEROS TEXTUAIS FORENSES E SEQUENCIAS TEXTUAIS ................................ 223 1Conceito de gêneros textuais ................................................................................................... 224 1.1A perspectiva bakhtiniana.................................................................................................. 225 1.2Perspectiva de Bazerman, Corolyn Miller, Marcuschi ..................................................... 229 1.3Leitura e redação de gêneros ............................................................................................. 233 2Tipos textuais ............................................................................................................................ 234 2.1Sequência textual narrativa ............................................................................................... 237 2.2Sequência textual descritiva .............................................................................................. 237 7 2.3Sequência textual argumentativa ...................................................................................... 240 2.4Sequência textual expositiva/explicativa ........................................................................... 242 2.5Sequência textual injuntiva ............................................................................................... 244 2.6Sequência textual dialogal ................................................................................................. 244 3Funções da linguagem .............................................................................................................. 245 4Procuração ................................................................................................................................ 249 4.1Substabelecimento .............................................................................................................. 255 5Requerimento e petição ........................................................................................................... 256 Exercícios .................................................................................................................................... 262 13) LEITURA ................................................................................................................................. 263 1Noção de texto: o primeiro passo para a leitura ................................................................... 264 2As vozes de um texto: o segundo passo para a leitura .......................................................... 266 3Leitura: inúmeras possibilidades ............................................................................................ 266 4Leitura: texto dissertativo ....................................................................................................... 267 5Divisão de um texto .................................................................................................................. 267 5.1Divisão com base na oposição temporal ............................................................................ 267 5.2Divisão com base na oposição espacial ............................................................................. 268 5.3Divisão com base na oposição entre os vários personagens .............................................. 269 5.4Divisão com base em oposições temáticas ......................................................................... 269 5.5Leitura: alguns recadinhos para se tornar possível ........................................................... 269 6Cálculo do sentido .................................................................................................................... 271 Exercícios .................................................................................................................................... 275 7Leitura passionalizada do texto jurídico: o réu como vítima de julgamentos injustos ..... 276 14) TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO (TCC) .......................................................... 299 1Introdução................................................................................................................................. 300 2Iniciação científica.................................................................................................................... 300 3Pesquisa científica .................................................................................................................... 300 4Paradigmas científicos: métodos............................................................................................. 301 5Revisão da literatura ................................................................................................................ 302 6Redação do TCC ...................................................................................................................... 303 7Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ............................................................. 303 8Passos......................................................................................................................................... 304 9Importância da comunicação científica ................................................................................. 304 10Estrutura do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) ...................................................... 305 10.1Introdução .........................................................................................................................306 10.2Desenvolvimento ............................................................................................................... 311 8 10.3Conclusão.......................................................................................................................... 311 10.4Bibliografia (referências) ................................................................................................. 311 10.5Anexos e apêndices ........................................................................................................... 311 11Plano de trabalho escrito ....................................................................................................... 311 12Articuladores textuais ............................................................................................................ 312 12.1Articuladores de conteúdo proposicional ......................................................................... 312 12.2Articuladores enunciativos ou discursivo-argumentativos ............................................... 312 12.3Articuladores metaenunciativos ........................................................................................ 313 Exercícios .................................................................................................................................... 313 15) ASPECTOS FORMAIS DO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO (TCC) ......... 317 1Introdução................................................................................................................................. 318 2Normas da ABNT para a elaboração de trabalhos acadêmicos: a NBR 14724:2011 ........ 318 3Citações diretas e indiretas: a NBR 10520:2002 ................................................................... 323 3.1Regras gerais ...................................................................................................................... 323 4Normas para a elaboração de referências bibliográficas: a NBR 6023:2002 ..................... 333 Exercícios .................................................................................................................................... 343 16) APRESENTAÇÃO GRÁFICA DO TCC .............................................................................. 345 1Parte pré-textual ...................................................................................................................... 346 1.1Capa .................................................................................................................................... 346 1.2Lombada.............................................................................................................................. 347 1.3Folha de rosto ..................................................................................................................... 348 1.4Verso da folha de rosto ....................................................................................................... 349 1.5Errata .................................................................................................................................. 350 1.6Folha de aprovação ............................................................................................................ 350 1.7Dedicatória ......................................................................................................................... 351 1.8Agradecimento .................................................................................................................... 352 1.9Inscrição e epígrafe ............................................................................................................ 353 1.10Resumo .............................................................................................................................. 354 1.11Lista de ilustrações e outras ............................................................................................. 355 1.12Sumário ............................................................................................................................. 356 2Parte textual.............................................................................................................................. 356 2.1Introdução ........................................................................................................................... 356 2.2Desenvolvimento ................................................................................................................. 357 2.3Conclusão do TCC .............................................................................................................. 357 3Parte pós-textual do TCC ........................................................................................................ 357 3.1Referências .......................................................................................................................... 357 9 3.2Apêndice e anexo ................................................................................................................ 357 3.3Índices ................................................................................................................................. 358 4Assuntos complementares ....................................................................................................... 358 4.1Títulos e seções ................................................................................................................... 358 4.2Tipos e corpos: itálico, bold (negrito), sublinha, letras maiúsculas .................................. 361 4.3Numeração das folhas do TCC ........................................................................................... 361 4.4Parágrafo ............................................................................................................................ 361 4.5Considerações finais sobre a apresentação do TCC .......................................................... 362 Exercícios .................................................................................................................................... 362 10 11 1) LÍNGUA, VARIAÇÃO E PRECONCEITO LINGUÍSTICO 12 1Linguagem Entre as expressões linguísticas utilizadas normalmente que merecem cuidado com relação ao conceito, destacam-se: linguagem, sistema, língua, norma, variação, variedades, língua escrita, língua oral. Em primeiro lugar, LINGUAGEM é um sistema de signos utilizados para estabelecer uma comunicação. A linguagem humana seria de todos os sistemas de signos o mais complexo. Seu aparecimento e desenvolvimento devem-se à necessidade de comunicação dos seres humanos. Fruto de aprendizagem social e reflexo da cultura de uma comunidade, o domínio da linguagem é relevante na inserção do indivíduo na sociedade. Para Dubois (1988, p. 387), linguagem é a capacidade específica à espécie humana de comunicar por meio de um sistema de signos vocais, que coloca em jogo uma técnica corporal complexa e supõe a existência de uma função simbólica. A LINGUAGEM VERBAL é uma faculdade que o homem utiliza para exprimir seus estados mentais por meio de um sistema de sons vocais denominado língua. Esse sistema organiza os signos e estabelece regras para seu uso. Assim, pode-se afirmar que qualquer tipo de linguagem desenvolve- se com base no uso de um sistema ou código de comunicação, a língua. A LINGUAGEM é uma característica humana universal, enquanto a LÍNGUA é a linguagem particular de uma comunidade, um grupo, um povo. Embora a linguagem verbal seja a mais importante de que se utiliza o homem, a não verbal é largamente utilizada e não destituída de relevância, como gestos, postura,cores, vestuário. As LINGUAGENS NÃO VERBAIS oferecem maior dificuldade de interpretação, visto que seus significados não são universais. Por exemplo, um gesto como balançar a cabeça pode ter significados diferentes, conforme o lugar em que é feito; a figa, que no Brasil significa desejo de boa sorte, é entendida na Holanda e na Tunísia como um gesto de conotação fálica. 2Língua LÍNGUA: considerando a língua em sua imanência, ela foi estudada particularmente no passado em sua realidade estrutural. Entendia-se, sob a variação constitutiva de uma língua, que havia uma unidade sistêmica. Como a linguística estrutural nasceu em solo europeu, ela reproduziu a concepção de língua que aí existia, em que se identificava a língua com a norma-padrão. Faraco (2008, p. 33) afirma que a língua tornou-se “assunto de Estado nos países europeus, que, como parte do processo de centralização característico daquela conjuntura histórica, desenvolveram políticas linguísticas homogeneizantes em seus territórios”. Daí advém a dificuldade da linguística em admitir em seus modelos teóricos a heterogeneidade que é característica de qualquer língua. Assim, enquanto a linguística segue o pressuposto teórico de língua homogênea, a outras disciplinas cabe o estudo da heterogeneidade, como a dialetologia, a sociolinguística, a linguística histórica. Saussure, com sua divisão entre langue e parole, entendia que língua é um sistema social uniforme que se materializa em usos individuais. Essa concepção sistêmica mostrou-se produtiva nos estudos fonológicos, mas insuficiente para a explicação da variabilidade linguística supraindividual. Caracteriza-se a FALA, na concepção de Saussure, como a atualização da língua pelo indivíduo. O uso individual é resultado da necessidade de comunicação. Em virtude de sua realização oral ocorrer sobretudo em situações informais em que normalmente não se pratica a norma-padrão (a língua modelar, abstrata), a LÍNGUA FALADA é mais dinâmica que a ESCRITA. A ausência de censura favorece o surgimento de uma variedade rica em possibilidades expressivas. 13 A FALA é anterior à escrita, mas, ao longo dos tempos, tem sido relegada a uma condição de inferioridade por causa das circunstâncias modernas em que informações e documentos escritos constituem o mundo das relações humanas e de produção. As alterações que ocorrem na fala podem vir a tornar-se uso, desde que sejam experimentadas por um grupo de indivíduos. Ensina Saussure (1977, p. 196) que “nada entra na língua sem ter sido antes experimentado na fala, e todos os fenômenos evolutivos têm sua raiz na esfera do indivíduo”. Segundo o pensamento saussuriano, as características diferenciadoras entre LÍNGUA e FALA são: a língua é sistemática, tem certa regularidade, é potencial, coletiva; a fala é assistemática, nela se observa certa variedade, é concreta, real, individual. Para Oliveira (2011, p. 32), a forma como se vê a língua determina a maneira de ensinar português. Algumas teorias polarizam as discussões desde a segunda metade do século XX: a concepção estruturalista, representada por Ferdinand de Saussure, Leonard Bloomfield, Charles Fries, Noam Chomsky O estruturalismo entende que “a língua é um sistema formado por estruturas gramaticais inter-relacionadas”. Esse conceito de língua é problemático porque exclui o uso linguístico, o sujeito usuário da língua e as variações linguísticas que sujeitos diferentes produzem. Saussure não tratou da fala em sua pesquisa linguística porque entendia que a parte social e homogênea da língua seria o elemento que daria cientificidade à linguística. Chomsky, por sua vez, ocupou-se de dois conceitos: o de competência (conhecimento que o falante possui de sua língua) e o de desempenho (uso efetivo da língua). Também excluiu de sua pesquisa o desempenho, por entender que o uso da língua, que conta com a influência de fatores psicológicos e físicos, como cansaço, irritação, sono, não reflete sua competência. Fundamentou sua pesquisa em um falante ideal que vive em uma comunidade linguística homogênea. Saussure compreendia a língua como um código e um sistema de signos, o que o levava a interessar-se apenas pelo sistema e pela forma, e não por sua realização na fala nem por seu funcionamento em textos. A visão funcionalista da linguagem tem como representantes: Nikolai Trubetzkoy, Robman Jakobson, John Firth, Halliday, autores que se ocuparam sobretudo com aspectos funcionais, situacionais, contextuais e comunicacionais no uso da língua, e não apenas com o sistema. A concepção de língua sociointeracionista ou interacionista entende a língua como meio de interação sociocultural e compreende elementos como: sujeito que fala ou escreve, sujeito que ouve ou lê, especificidades culturais desses sujeitos, contexto de produção e recepção do texto, elementos que não fazem parte do conceito estruturalista de língua. Segundo a concepção pragmática, não bastam conhecimentos estruturais da língua, regras gramaticais, para o uso competente da língua. Dell Hymes seria o autor do conceito de competência comunicativa, segundo o qual o falante-ouvinte, para ser competente em sua língua, precisa não apenas ter conhecimento das regras gramaticais, mas também a habilidade de usar essas regras, adequando-as às situações sociais em que se encontra no momento em que usa a língua (OLIVEIRA, 2011, p. 35). Para Marcuschi (2011, p. 19 s), o contexto atual dos estudos de linguística enunciativa vê a “língua como um conjunto de práticas enunciativas e não como forma descarnada”. Toda e qualquer enunciação humana é organizada fora do indivíduo, é sempre um ato social. A substância constitutiva da língua não é um sistema abstrato de formas linguísticas, nem uma enunciação individual isolada, mas um fenômeno social de interação verbal realizado por meio de enunciações, em que a realidade da língua se manifesta na interação verbal. Marcuschi chama ainda a atenção para o que afirmam Bakhtin e Voloshinov, em Marxismo e filosofia da linguagem (1997, p. 124): A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes. 14 Bakhtin entende que fala (os enunciados) não é ato individual, mas sempre um ato social. Se fosse individual, a compreensão seria impossível. A noção de dialogismo seria o princípio fundador da linguagem, visto que todo enunciado é um enunciado de alguém para outra pessoa. E conclui Marcuschi à página 21: pensar a língua como interação “retira a reflexão sobre a língua do campo da estrutura para situá-la no campo do discurso em seu contexto sociointerativo”. Essa concepção de linguagem como atividade social e interativa tem consequências relevantes para a visão do texto como unidade de interação, para entender a compreensão como atividade de construção do sentido promovida por um eu situado em relação com um tu igualmente situado, ambos mediados pela noção de gênero textual (ver Capítulo 12), que é uma forma de ação social. Não é, pois, a língua uma entidade linguística apenas formalmente constituída. Essa concepção, no entanto, não nos deve levar a entender a linguagem como resultado de determinismos externos, assim como não é estrutura tão somente: ela é vista pelos interacionistas como forma de ação. Daí Marcuschi (2011, p. 22) afirmar que o uso e o funcionamento da linguagem dão-se “em textos e discursos produzidos e recebidos em situações enunciativas ligadas a domínios discursivos da vida cotidiana e realizados em gêneros que circulam na sociedade”. E, adiante, enfatiza: “não existe um uso significativo da língua fora das inter-relações pessoais e sociais situadas”. Assim, o uso autêntico da língua ocorre em textos realizados por sujeitos históricos e sociais “de carne e osso”, que apresentam alguma relação entre si e tenham algum umobjetivo comum. Outros estudiosos que introduziram o uso em suas pesquisas linguísticas foram: William Labov, que se ocupou da sociolinguística, John Austin e John Searle, que se dedicaram aos atos de fala, Robert-Alain de Beaugrande e Wolfang Dressler, que contribuíram decisivamente para os estudos da produção textual e da leitura como atividades de interação sociocultural. Koch (2002, p. 14) entende que à concepção de língua como estrutura “corresponde a de sujeito determinado, assujeitado pelo sistema, caracterizado por uma espécie de ‘não consciência’”. Em relação ao sujeito, teríamos de considerar as seguintes posições: 1. Predomínio da consciência individual no uso da língua. Nesse caso, o sujeito da enunciação é responsável pela produção dos efeitos de sentido dos enunciados. A língua seria um código à disposição do indivíduo, que o utiliza como se não fosse um ente histórico. É o sujeito dono de suas palavras. A interpretação de seu texto implicaria tão somente descobrir suas intenções. Koch (2002, p. 14) afirma: “Compreender um enunciado constitui, pois, um evento mental que se realiza quando o ouvinte deriva do enunciado o pensamento que o falante pretendia veicular”. Para essa concepção de língua, há predomínio da consciência individual no uso da língua. 2. A segunda posição de sujeito é de assujeitamento e, nesse caso, o indivíduo não é senhor de seu discurso nem de sua vontade. Aquele que fala é um sujeito anônimo, social; o locutor dependeria desse sujeito social, seria um repetidor dele, mas teria a ilusão de que seus enunciados são originais e de que é livre para fazer e dizer o que deseja. Todavia, só diz o que lhe é permitido dizer na posição em que está, pois está inserido em uma instituição e em uma ideologia; ele seria apenas um porta-voz dessa outra voz. Há sempre um discurso anterior que fala por meio do indivíduo. O sentido de um enunciado depende da formação discursiva a que pertence, entendendo-se por formação discursiva o que, em uma formação ideológica dada, determina o que pode e o que deve ser dito. Nesse caso, não se admite que um sujeito psicológico seja responsável pelos enunciados, pois o sujeito do enunciado não controla o sentido do que diz. Possenti, citado por Koch (p. 15), não aceita essa tese in totum, visto que, “para que o sujeito possa ser concebido como algo mais que um lugar por onde o discurso passa, vindo das estruturas, é necessário fazer a hipótese mínima de que ele age [...]. Para a compreensão de textos, são necessários, além do conhecimento linguístico, conhecimentos, experiências etc. que são classicamente analisados relativamente a sujeitos psicológicos, e não a posições e vetores. Penso que a Análise do Discurso ganharia se propusesse uma teoria psicológica, na qual o sujeito fosse ‘clivado pelo inconsciente’, mas não fosse reduzido a uma peça que apenas sofre efeitos”. https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788597017489/epub/OEBPS/Text/chapter12.html 15 3. Uma terceira posição do sujeito advém da concepção de língua como lugar de interação. E esta vê o sujeito como ativo, participante; um sujeito social, histórica e ideologicamente situado, que se constitui na interação com o outro. Essa concepção de língua é fundamental para o conceito de texto e de sentido. Se a língua é vista como representação do pensamento e o sujeito é senhor absoluto de suas ações e de seu dizer, o texto é meramente um produto do pensamento do autor. Ao leitor ou ouvinte não cabe senão captar essa representação mental, bem como as intenções do autor. A ele caberia apenas um papel passivo. Se vejo a língua como instrumento de comunicação, como código, e o sujeito é determinado pelo sistema, o texto falado ou escrito é resultado da codificação que implicará um leitor ou ouvinte que o decodificará. Basta-lhe possuir a chave do código, o conhecimento do código, para ter acesso ao sentido. Portanto, um papel de interlocutor que também se revela passivo. Finalmente, na concepção interacionista da língua, ou dialógica, locutor e interlocutor são vistos como sujeitos, responsáveis pela produção do sentido. Afirma Koch (2002, p. 17): Os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais, o texto passa a ser considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos. Essa concepção de língua, de texto e de sujeito rejeita o entendimento de que a compreensão é simples decodificação de uma mensagem codificada por um emissor. A compreensão é uma atividade interativa complexa, realizada com base em elementos linguísticos da superfície do texto, mas que implica a mobilização de um conjunto amplo de saberes (conhecimento de mundo, conhecimento enciclopédico). 3Sistema SISTEMA é uma organização que rege a estrutura de uma língua. Para Dubois (1988, p. 560), sistema é um conjunto de termos estreitamente correlacionados entre si no interior do sistema geral da língua. Fala-se, assim, do sistema do número no português (singular vs. plural), do sistema fonológico, do sistema vocálico etc. Bechara (2015, p. 44) opõe sistema e norma usual (uso): O sistema contém apenas as oposições funcionais, isto é, contém unicamente os traços distintivos necessários e indispensáveis para que uma unidade da língua (quer no plano da expressão, quer no plano do conteúdo) não se confunda com outra unidade. Assim, no sistema dos relativos em português, que e o qual se opõem ambos a quem e cujo, por exemplo; mas a norma usual da língua prefere unicamente o qual, e não que, depois de preposição com mais de duas sílabas: Os caminhos de que (dos quais) lhe falei... Mas: As razões segundo as quais (e não segundo que). Outros exemplos incluem o sistema verbal português que utiliza o morfema -o para marcar a primeira pessoa do singular do presente do indicativo: canto, vendo, parto, e utiliza também o sufixo - ção para formar substantivos geralmente denotadores de ação, oriundos de verbos: povoar – povoação, alegar – alegação. A norma, no entanto, prefere casamento, tratamento. No domínio da sintaxe, Bechara (2015, p. 45) apresenta exemplo que comprova a diferença entre sistema e norma: 16 Os chamados complementos verbais quando constituídos por substantivos normalmente se dispõem na ordem direto + indireto (Dei um livro ao primo), mas quando aparece, numa dessas funções ou nas duas, pronome pessoal, a norma é vir primeiro o indireto: (Dei-lhe um livro)/Dei-lho (lhe + o). Na fala prestigiada, hoje se diz: dei um livro para ele. E conclui o gramático citado que o domínio da norma é muito complexo “e exige do falante uma aprendizagem por toda a vida”. 4Norma Enquanto a oposição língua/fala é de Saussure (1977), o conceito tripartite de SISTEMA/NORMA/FALA é de Coseriu (1979). Para este último autor, o falante, ao utilizar a língua (sistema) e sua fala, seleciona modelos de enunciação que são retirados da norma. Entende Faraco (2009, p. 34) que, sob o olhar estruturalista sussuriano, a norma pode ser vista como “cada um dos diferentes modos de realizar os grandes esquemas de relações do sistema”. Assim, cada norma se organiza dentro das possibilidades que lhe permite o sistema, e cada uma dessas organizações se apoia no uso corrente de um grupo de falantes socialmente definido. Dessa forma, ainda segundo Coseriu, uma norma não indica o que se pode dizer, que é tarefa do sistema, mas o que tradicionalmente se diz na comunidade. A NORMA varia segundo a influência do tempo, espaço geográfico, classe social ou profissional, nível cultural do falante. A diversidade de normas, visto que há tantas quantos os indivíduos, não afeta a unidade da língua, que contém a soma de todas as normas (isso na concepção tradicional da existência de língua homogênea). Por isso, Camara Jr. (1975, p. 9) afirma que a língua é uma unidade, uma estruturaideal, que apresenta “os traços básicos comuns a todas as suas variedades”. Segundo Bechara (2015, p. 44), a norma contém tudo o que na língua não é funcional, mas que é tradicional, comum e constante, ou, em outras palavras, tudo o que se diz “assim, e não de outra maneira”. É o plano de estruturação do saber idiomático que está mais próximo das realizações concretas. O sistema e a norma de uma língua funcional refletem a sua estrutura. Mattoso Camara Jr., em Dicionário de linguística e gramática (1978a, p. 177), afirma que norma é “conjunto de hábitos linguísticos vigentes no lugar ou na classe social mais prestigiosa do país”. Faraco (2009, p. 35) não vê na norma essa restrição de Mattoso Camara, uma vez que entende norma como determinado conjunto de fenômenos linguísticos (fonológicos, morfológicos, sintáticos e lexicais) que são correntes, costumeiros, habituais numa dada [observe que não diz “na classe social mais prestigiosa do país”] comunidade de fala. Norma nesse sentido se identifica com normalidade, ou seja, com o que é corriqueiro, usual, habitual, recorrente (“normal”) numa certa comunidade de fala [destaque nosso]. Em nota de rodapé da p. 35, Faraco chama a atenção para o fato de que uma norma não comporta tão somente fenômenos fixos, mas também fenômenos em variação. E, adiante, à página 37, complementa seu argumento, afirmando que uma comunidade linguística é formada por um conjunto de normas: “cada comunidade linguística tem várias normas (e não apenas uma)”. E exemplifica: tia, dia conhecem em algumas comunidades brasileiras a pronúncia africada (tchia, djia); em outras, a pronúncia não africada. Uma norma convive ao lado de outra sem nenhum problema, como é o caso do uso do pronome pessoal tu que é normalmente usado no Brasil com o verbo sem s: tu vai, tu pode. Em situações mais monitoradas, no entanto, podemos ouvir: tu vais, tu podes. Da mesma forma, temos comumente a 17 mistura de você com teu, em algumas situações (“você não viu a mancha na tua blusa?”; em situações mais monitoradas podemos encontrar: “você não viu a mancha na sua blusa?”. Outro exemplo comum no Brasil é o uso de ter no sentido existencial: “não tem problema”, “não tem ninguém na sala”; em situações mais monitoradas (muitíssimo raramente), poderíamos ter: “não há problema”, “não há ninguém na sala”. O uso de ter nessas situações é generalizado de Norte a Sul, sem distinção de categoria social, da mesma forma como já faz parte de nosso cotidiano o uso de pega ele, veja ele, sem distinção de classe social. É comum no Jornal Nacional ouvirmos esse tipo de construção. O uso de a gente no lugar de nós também já está generalizado de Norte a Sul: “a gente pode sair da sala?”, mas também se ouve: “nós podemos sair da sala?”. Outra variação comum em nosso meio é a substituição do futuro do presente por dois verbos: “você vai estar presente na reunião amanhã?” (forma mais corriqueira que “você estará presente na reunião amanhã?”). Enfim, paulatinamente a variedade da fala prestigiada vai provocando mudança no uso de uma norma anterior. Faraco (2009, p. 41) chama a atenção para o fato de que, qualquer que seja a norma, ela não se constitui apenas de um conjunto de formas linguísticas; ela é também “um agregado de valores socioculturais articulados com aquelas formas”. Verifique-se, por exemplo, que as normas que organizam as variedades estigmatizadas na sociedade brasileira são vistas como “introdutoras de erros linguísticos” e os falantes dessas variedades são considerados ignorantes. E, como se trata de valores, há formas que são consideradas mais erradas que outras. Quando os mais escolarizados e os que gozam de status social prestigiado usam determinadas formas, elas não são estigmatizadas; quando não usam, as formas usadas pelos menos escolarizados e colocados à margem da sociedade são vistas como erradas. Norma é, pois, um conjunto de regras que regulam as relações linguísticas. A norma sofre afrontas ou é contrariada devido a vários fatores: alterações devidas às classes sociais diferentes, alterações devidas aos vários indivíduos que utilizam a língua. Resumindo, norma designa os fatos de língua usuais, correntes, em uma comunidade de fala. Ela designa os fatos linguísticos que caracterizam a fala de pessoas de uma comunidade, incluindo os fenômenos em variação. A norma pode ser coletiva ou individual. Com base no sistema coletivo, o usuário procura fazer uma adaptação individual. A norma social considera o que é comum a uma comunidade (língua) e o que é comum a uma região (dialeto). Ainda é necessário esclarecer dois conceitos que adiante trataremos mais minuciosamente: NORMA CULTA e NORMA-PADRÃO, que têm sido vistos de forma confusa: “a expressão norma culta/comum/standard designa o conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de fala e escrita” (FARACO, 2009, p. 71). A NORMA CULTA é a linguagem praticada pela classe social de prestígio, que é identificada com a da chamada classe social cujos indivíduos têm escolaridade superior (graduação completa em alguma faculdade) e possuem antecedentes biográficos culturais urbanos, isto é, nasceram, cresceram e sempre viveram em ambiente urbano. Trata-se de uma variedade social que nada tem de melhor em relação às outras. Seu prestígio decorre da importância da classe social a que corresponde. Bagno (2015, p. 157-158), discutindo a confusão entre norma culta e norma-padrão, afirma: O dilema relativo à norma-padrão se prende ao fato de que esse termo (às vezes sob a forma enganosa e imprecisa de “norma culta”) é usado pela tradição gramatical conservadora para designar uma modalidade de língua que [...] não corresponde à língua efetivamente usada pelas pessoas cultas do Brasil nos dias de hoje, mas sim um ideal linguístico inspirado no português literário de Portugal, nas opções dos grandes escritores do passado, nas regras sintáticas que mais se aproximam dos modelos da gramática latina, ou simplesmente no gosto pessoal do gramático – para Napoleão Mendes de Almeida, por exemplo, o “certo” é dizer eu odio e não EU ODEIO. Já a expressão norma-padrão designa não propriamente 18 uma variedade da língua, mas um constructo sócio-histórico que serve de referência para estimular um processo de uniformização. Enquanto a norma culta/comum/standard é a expressão viva de certos segmentos sociais em determinadas situações, a norma-padrão é uma codificação relativamente abstrata (FARACO, 2009, p. 73). A norma-padrão é a norma gramatical. Não há, propriamente, falantes que a utilizam tal como ela se apresenta nos manuais, mesmo porque há divergência entre os gramáticos e, muitas vezes, o que ali se encontra não é seguido sequer pelos literatos. Para Bagno (203, p. 43), há confusão entre a língua que falamos e a língua escrita. A própria gramática se apoia em um tipo específico de atividade linguística, a língua escrita: de um grupo muito especial e seleto de cidadãos, os grandes estilistas da língua, que também costumam ser chamados de “os clássicos”. Inspirados nos usos que aparecem nas grandes obras literárias, sobretudo do passado, os gramáticos tentam preservar esses usos compondo com eles um modelo de língua, um padrão a ser observado por todo e qualquer falante que deseje usar a língua de maneira “correta”, “civilizada”, “elegante” etc. Faraco (In: ZILLES; FARACO, 2015, p. 21-22), depois de afirmar que não se nega “em nenhum momento a necessidade de garantir a todos o acesso à expressão culta”, questiona o que o se deve entender por “expressão culta”: A questão normativa emergiu com força no Brasil na segunda metade do século XIX. Surgiu como uma reação ao ideário de nossos autores românticos. Defendiam eles um projeto que desse forma literária às nossas paisagens e às nossas realidades socioculturais. Emoutros termos, eles batalhavam por uma independência literária e cultural como desdobramento da independência política. [...] No século XIX, eram já bem distintos o português europeu e o português brasileiro, seja na pronúncia, seja na sintaxe, seja ainda no vocabulário. E as nossas características, quando transpostas para a língua escrita, foram, então – ao cabo de um conjunto de pesadas polêmicas –, inadequadamente classificadas como erros. Espalhou-se entre nós, em consequência, o discurso de que nosso português é cheio de erros, de que não sabemos português, de que escrevemos mal a língua. E difundiu-se, nas últimas três décadas do século XIX, um discurso normativo que recusou as características do português culto brasileiro e defendeu a adoção e o ensino das características do português culto europeu como norma de referência. 5Português brasileiro O Português Brasileiro é um sistema linguístico que abrange o conjunto das normas que se concretiza por meio dos atos individuais de fala. Ele é um dos sistemas linguísticos existentes dentro do conceito geral de língua e compreende variações diversas devidas a locais, fatores históricos e socioculturais, estilo, que levam à criação de variados modos de usar a língua. Em 1500, a língua que aqui chegou não foi a língua literária de Gil Vicente, Camões, Fernão Lopes ou do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, mas a língua falada pelos colonizadores que iniciaram o povoamento do Brasil a partir de 1532, com a divisão do Brasil em 15 capitanias hereditárias. De início, pelas diferenças de língua que falavam e de interesses, portugueses e índios tiveram dificuldade de relacionamento. O interesse dos portugueses pelas novas terras, no entanto, só se concretizaria após 1550. A partir de 1590, os colonos começaram a substituir o trabalho escravo do índio pelo africano. Durante o primeiro século após o Descobrimento, nessa sociedade de brancos, 19 índios e negros predominou a língua geral, não obstante os esforços da metrópole pelo uso do português. A LÍNGUA GERAL era um veículo de comunicação entre os nativos e os portugueses. Após a segunda metade do século XVIII, a língua geral foi paulatinamente deixando de ser utilizada, assim como os dialetos falados pelos negros, e a língua portuguesa impôs-se. A língua geral foi proibida e obrigado o uso da língua portuguesa pelo Marquês de Pombal, em 3 de maio de 1757, em Portugal; em 17 de agosto de 1758, no Brasil. Outro fato que contribuiu para a difusão do português no Brasil foi a expulsão dos jesuítas (1759) de nosso solo. Eles eram os principais defensores da língua geral. Além disso, a língua portuguesa manteve seu prestígio mesmo durante o predomínio da língua geral, sobretudo nos contratos, nos atos administrativos, nos casamentos. Ao final do século XVIII, o domínio da cultura dos brancos consolidou-se. Surgiram as Academias, de 1724 a 1758. No início do século XIX, a vinda da Família Real para o Brasil constituiu-se um fato relevante para a vida social e cultural do país. Nesse tempo, o padrão lusitano foi tido como ideal linguístico, tanto na língua oral, como na escrita literária. Todavia, com a Independência do Brasil em 1822, passou-se a valorizar tudo o que nos distanciasse de Portugal. Com o Romantismo, toma vulto a questão da língua brasileira, que reivindicava para o Brasil uma língua própria. A segunda metade do século XIX conheceria ainda a chegada dos imigrantes italianos e alemães. No início do século XX, o Modernismo (1922) novamente proporia a questão da língua brasileira, associado à oralidade da língua, à diferença entre língua escrita e língua falada. Como recebeu muitas contribuições, a língua nacional é o português brasileiro, uma língua que alcançou independência linguística e cultural em relação a Portugal. Assim, pelos fatos apresentados verifica-se que o percurso da língua portuguesa em Portugal e no Brasil é muito diverso. Embora a língua de portugueses e a de brasileiros utilizem o mesmo código linguístico e o mesmo sistema, elas apresentam diferenças na norma usual (uso). Bortoni-Ricardo e Rocha (In: MARTINS; VIEIRA; TAVARES, 2014, p. 37-38) entendem que o português do Brasil é uma língua transplantada e, como tal, tende a ser mais conservadora que a língua no seu nascedouro. Comparada ao português europeu, as variedades brasileiras são faladas com ritmo relativamente mais lento, que alguns estudiosos consideram uma preservação de um traço arcaico do português. O gramático pioneiro Fernão de Oliveira, descrevendo a língua falada em Lisboa no século XVI, disse: “mas nós falamos com grande repouso, como homens assentados”. Silva Neto, Mattoso Camara e Naro referem-se a profundas mudanças fonéticas no português da metrópole, ocorridas no último quartel do século XVII e no primeiro do século XVIII, que teriam conferido à língua um ritmo em allegro. Essas mudanças não chegaram ao Brasil, ou pelo menos não chegaram de forma consistente e generalizada no repertório dos colonizadores ao longo dos primeiros séculos de colonização e não se consolidaram aqui. Ademais, os colonos provinham de diferentes regiões na metrópole, e, portanto, em seu repertório linguístico, as mudanças em curso estavam em estágios distintos. Ao se encontrarem no Brasil, esses repertórios tenderam a um amálgama mais conservador em prejuízo das novas variantes. Para Andrade e Medeiros (1997, p. 43), o português do Brasil atual apresenta traços conservadores e inovadores. Os conservadores são notados, principalmente, nas linguagens regionais, que preservam arcaísmos e formas desusadas até nas linguagens regionais de Portugal. Os estudiosos do assunto afirmam que há, nas linguagens regionais do Brasil, um substrato comum do português do século XVII. As inovações correm por conta das linguagens urbanas, fortemente influenciadas pelos meios de comunicação, por isso mais abertas aos processos de transformação, e da linguagem literária. Quanto às diferenças da norma escrita e falada no Brasil e em Portugal, podem ser 20 apontadas distinções em vários níveis: fonético e fonológico; morfológico e sintático e, sobretudo, no vocabulário. Considerando a diferença entre a língua portuguesa falada em Portugal e a falada no Brasil, destaca-se que a prosódia portuguesa difere bastante da que vigora por aqui. Enquanto os brasileiros falam morrer, correr, bondade, forçoso, corado, os portugueses falam murrer, currer, bundade, furçoso, curado. Portugueses suprimem vogais mediais: c’roa (coroa), impr’ador (imperador); brasileiros usam /e/ e /o/ fechados em Antônio, demônio, gênio; portugueses falam: António, demónio, génio. Em Portugal, morfologicamente falando, é comum madeiro, lenho, horto, fruto, enquanto no Brasil prevalece madeira, lenha, horta, fruta. Há diferenças também num e noutro país em relação ao uso de diminutivos. Em Portugal, fala-se dormindinho, saudezinha, pueirama, oirama. Os brasileiros preferem o gerúndio no lugar de infinitivo regido de preposição, como em estava a redigir, chegou a falar, está a dormir, que são comuns em Portugal, e estava redigindo, chegou falando, está dormindo, que são comuns no Brasil. Na sintaxe, a colocação pronominal tem sido campeã de discussões. Enquanto portugueses preferem a ênclise (diga-me), os brasileiros gostam da próclise (me diga). No vocabulário, difere bastante a língua falada aqui e lá: Brasil Portugal Bala Confeito Banheiro Casa de banhos Calcinha Cueca Carona Boleia Carpete Alcatifa Chiclete Pastilha elástica Crianças Putos Goleiro Guarda-redes Moça Rapariga Ônibus Autocarro Pernilongo Melga Trem Comboio Xícara Chávena 6Variedades linguísticas 6.1Padrão vs. não padrão Segundo Tarallo (1994, p. 8), “em toda comunidade são frequentes as formas linguísticas em variação”. A essas formas em variação dá-se o nome de variedades.1 As variedades de umacomunidade de fala estão sempre em relação de concorrência: Padrão vs. não padrão; conservadoras vs. inovadoras; de prestígio vs. estigmatizadas. Em geral, a variante considerada padrão é, ao mesmo tempo, conservadora e aquela que goza de prestígio sociolinguístico na comunidade. As variantes inovadoras, por outro lado, são quase sempre não padrão e estigmatizadas pelos membros da comunidade. Por exemplo, no caso da marcação de plural no português do Brasil, a variante [s] é padrão, conservadora e de prestígio; a variante [0], por outro lado, é inovadora, estigmatizada e não padrão (TARALLO, 1994, p. 12). https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788597017489/epub/OEBPS/Text/chapter01.html#rfn1 21 Duas são, portanto, as variedades fundamentais: a língua-padrão em oposição à língua não padrão. Em relação à primeira, impera um conservadorismo injustificável do ponto de vista da ciência linguística. Um ideário elitista e excludente sobre língua, norma, gramática, variação e mudança domina o cenário nacional (mídia, sala de professores, sala de aula, reunião de professores, bem como conversa sobre língua em qualquer instância social). Para Zilles (In: FARACO, 2009, p. 10-11): Há, ainda, muito trabalho analítico e político a fazer diante dessa postura muito discutível, que privilegia uma variedade de língua sobre as demais, sem levar em conta se esta variedade representa uma escolha adequada pra a sociedade brasileira como um todo, e não apenas para a classe dominante. O ônus dessa postura está também em estigmatizar os falantes que não dominam essa variedade e impô-la como língua legítima da escola, entre outras violências simbólicas. A introdução desses temas sociolinguísticos tem provocado discussões acaloradas, particularmente na mídia (impressa e eletrônica). Os mais conservadores acusam os professores linguistas de desleixarem no ensino da língua “culta”, mas, em geral, não atentam para duas realidades distintas: as variedades “cultas” (designadas pela expressão genérica norma “culta”) e a norma- padrão. 6.2Variedades sociais No estudo da variação sociolinguística, os linguistas observam a existência de variedades sociais a que atribuem o adjetivo cultas. A variedade “culta” pode ser assim definida: é aquela que ocorre em usos da língua de forma mais monitorada, que são realizados por segmentos urbanos, que estão no meio para cima na hierarquia econômica e com amplo acesso aos bens culturais, particularmente a educação formal, e à cultura escrita. Trata-se de uma variedade que é recorrente na expressão linguística desses segmentos sociais, em situações de maior monitoração. Por isso, recorre-se muitas vezes à expressão norma culta real. Essas variedades sociais, no entanto, não são homogêneas (é de lembrar que não há uma variedade “culta”, mas várias), embora apresentem traços comuns, difundidos quer pela televisão, rádio, jornais impressos, bem como pela escolarização de longo alcance. A variedade “culta” falada difere da variedade “culta” escrita; a escrita é sempre mais conservadora que a fala, ainda que se possa verificar na escrita a presença de estruturas provenientes da fala “culta”. Com base nesses conceitos, salienta-se então que, como as variedades “cultas” são manifestações do uso normal (no sentido de regular, comum, corriqueiro) da língua, a norma-padrão – quando existe em determinada sociedade – é um constructo idealizado (não é um “dialeto” ou um conjunto de “dialetos”, como o é a norma culta, mas uma codificação taxonômica, de formas tomadas como um modelo linguístico ideal) (FARACO, 2009, p. 172). A fixação de um padrão é resultado de um projeto político que objetiva impor uniformidade onde a heterogeneidade é sentida como negativa (como “ameaçadora de uma certa ordem”). Foi esse o caso do Brasil no século XIX em que certa elite letrada, diante das variedades populares (em particular do que se veio a chamar pejorativamente de “pretoguês”) e face a um complexo jogo ideológico (em boa parte assentado em seu projeto de construir um país branco e europeizado) trabalhou pela fixação de uma norma-padrão (p. 172). Foi, para o linguista, o desejo de construir uma sociedade branca e europeizada que levou a elite a renegar as características linguísticas do País. Inicialmente, impedindo, no século XVIII, o uso das 22 línguas indígenas e da língua geral e, posteriormente, na segunda metade do século XX, impondo à sociedade uma norma-padrão artificial que atormenta os brasileiros. Embora mostre uma relativa unidade linguística, o Brasil tem dificuldade de reconhecer sua cara linguística: não admitimos que somos um país multilíngue, pois há centenas de línguas indígenas e dezenas de línguas de imigração, que são minoritárias, mas significativas para nosso patrimônio cultural. Além disso, o que se observa no português falado pela maioria dos brasileiros é que se trata de uma língua não uniforme, mas diversificada tanto no espaço geográfico quanto no espaço social. Essa diversidade não constitui problema, mas uma riqueza cultural de que temos de nos orgulhar, e não de nos envergonhar: “o problema está nas formas como lidamos com essa diversidade [...]. O problema está nas imagens saturadas de valores negativos que temos de nós como falantes” (FARACO, 2009, p. 181). A norma-padrão é uma norma distante das variedades “cultas” praticadas no Brasil. Em seu nome, têm-se praticado uma violência simbólica e uma discriminação sociocultural. Diante desses fatos, os linguistas entendem que não há por que ocupar-se de uma norma que não é utilizada e que é preciso defender o acesso escolar às variedades “cultas”. Defendem que à norma-padrão sejam incorporados, em gramáticas e dicionários, os fenômenos característicos das variedades “cultas”, ou seja, é necessário que a norma-padrão seja um reflexo da norma “culta” praticada no Brasil. Há algum sentido, já entrado o século XXI, em continuarmos nos ocupando da norma-padrão, visto não haver consenso sobre a expressão falada padrão? Temos mesmo necessidade de fixar uma norma-padrão brasileira? A diversidade linguística nacional põe algum risco à unidade das variedades “cultas” faladas? Evidentemente, a essas perguntas retóricas cabe uma resposta: não. Conclui Faraco (2009, p. 174): Diante desses fatos, talvez possamos mesmo abrir mão de projetos padronizadores, direcionando nossas energias para o que efetivamente interessa: de um lado, a descrição e a difusão das variedades cultas faladas e escritas; e, de outro, o combate sistemático aos preceitos da norma curta que, em nome de uma norma-padrão artificialmente fixada, ainda circulam entre nós quer na desqualificação da língua portuguesa do Brasil, quer na desqualificação dos seus falantes. Para Zilles, no prefácio à obra de Faraco (2009, p. 15), sofremos, de fato, uma esquizofrenia linguística, pois amargamos uma dura dissociação entre a ação (o modo como falamos) e o pensamento (o modo como representamos o modo como falamos). Essa dissociação, contudo, não é endógena como a patologia cujo nome tomamos emprestado acima, pois seu arcabouço é sócio-histórico, e, portanto, passível de ser conhecido, explicado e quiçá modificado. Mas é preciso querer fazê-lo. É preciso vontade política. Segundo Zilles, ainda, a norma linguística modelar recebe diversas denominações: norma culta, norma-padrão, norma gramatical, gramática, língua culta, língua-padrão, língua certa, língua cuidada, língua literária, entre tantas outras. Bagno (In: ZILLES; FARACO, 2015, p. 193), examinando a falsa sinonímia norma-padrão = norma culta, fez levantamento dos autores de livros didáticos e encontrou as seguintes expressões: língua culta, língua formal, língua oficial, língua-padrão, linguagem formal, modalidade culta, norma culta, norma-padrão, padrão culto, padrão formal, português-padrão, pronúncia- padrão, uso culto, uso formal, variação-padrão,variante culta, variante-padrão, variedade culta, variedade formal, variedade-padrão, variedades de prestígio. Até mesmo no ENEM, Bagno (p. 197-198) identificou imprecisão terminológica em relação à “norma culta”, que é tratada como modalidade culta, modalidade culta escrita, modalidade-padrão, 23 norma culta escrita, norma-padrão. E, adiante (p. 210), volta a insistir que, quando se usa a terminologia norma culta nas provas do ENEM, o que está em jogo é a variação social da língua, isto é, as diferenças que a língua apresenta de acordo com variáveis sociais como classe socioeconômica, grau de escolarização, idade, sexo, ambiente rural ou urbano etc. Quando se usa, por outro lado, a escala de formalidade (ou de monitoramento) para avaliar determinado uso da língua, o que está em jogo é a variação estilística. Ora, a falta de precisão com relação à nomenclatura revela que o que está no centro das discussões é mal compreendido e mal avaliado pela sociedade brasileira. Faraco (2009, p. 121), com base nas acusações de puristas que viam erros nos clássicos, “sempre que seus usos desmentiam as regras agora inventadas” (p. 120), afirma que é certamente esse vício de origem a causa principal do desenvolvimento da norma curta entre nós – essa coleção de preceitos categóricos que se autojustificam, que recusam a norma real, que desmerecem o trabalho dos escritores, dos bons dicionaristas e gramáticos e que excluem qualquer diversificação de suas fontes. Essas críticas à postura purista e conservadora no uso da língua, no entanto, não devem ser entendidas como uma postura relativista no estudo do português brasileiro. Em relação ao ensino da língua materna, Bagno (In: ZILLES; FARACO, 2015, p. 200) endossa o pensamento de Magda Soares, para quem as camadas populares têm o direito “de apropriar-se do dialeto de prestígio”. O objetivo desse tipo de ensino seria levar os alunos pertencentes a essas camadas a dominá-lo, não para que se adaptem às exigências de uma sociedade que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais. Não se trata, pois, de abandonar o ensino exclusivo de uma norma, mas de “assumir a responsabilidade de letrar os aprendizes, isto é, inserir os cidadãos na cultura eminentemente letrada que domina a sociedade em que vivem, familiarizando-os com os mais diversos tipos e gêneros discursivos, falados e escritos, que circulam na sociedade” (BAGNO In: ZILLES; FARACO, 2015, p. 201). A questão da língua no Brasil, para os linguistas, não é apenas linguística, mas, antes de tudo, política, no sentido de que a variedade prestigiada é que deveria ser ensinada na escola, e não a norma- padrão, variedade abstrata, que não é falada na sociedade brasileira. A relevância do tema pode ser observada sobretudo quando se depara com efeitos deletérios que o preconceito linguístico produz, principalmente a intolerância linguística, notável em expressões que diminuem pessoas que dominam outras variedades linguísticas, as não prestigiadas socialmente: ignorante, estúpido, desqualificado, idiota e outras que aproximam seres humanos do mundo animal. Toda língua é heterogênea, isto é, é constituída por um conjunto de variedades; a realidade das línguas não é a unidade homogênea. Segundo Castilho (2010, p. 197), as línguas, além de heterogêneas, são voltadas para a mudança. Não há, pois, senão variedades linguísticas e não, propriamente, uma língua superior às variedades, visto que são estas que lhe dão sustentação, que a fazem ser uma língua; nem há língua de um lado e variedades de outro; língua é o conjunto das variedades. Faraco define então língua não como entidade linguística, mas como entidade cultural e política, ou seja, critérios puramente linguísticos não são adequados para definir língua, pois ela comporta tanto a dimensão política quanto a cultural. 24 Cada variedade segue uma norma. Ora, como toda norma apresenta uma organização estrutural, não há consistência em afirmar a existência de erro em língua. Isso significa que toda variedade possui uma gramática. Falar em erro seria aplicar a organização estrutural de uma variedade a outra variedade. E é por querer aplicar a estrutura da variedade prestigiada à variedade não prestigiada (estigmatizada) que são comuns, na sociedade brasileira, juízos depreciativos sobre esta última: identifica-se erro quando se trata tão somente de diversidade. E, em geral, apenas são percebidas como erro as formas não usadas pela classe que desfruta de prestígio. Toda realidade linguística organiza formas heterogêneas, híbridas e mutantes. Essa a razão por que Faraco utiliza a expressão norma curta para referir-se aos que se valem de uma norma supostamente “culta” para discriminar outras variedades linguísticas. A norma culta é uma norma estreita, particularmente porque desconsidera o que já está registrado em dicionários e até em determinadas gramáticas. Esse é o caso, por exemplo, da regência do verbo assistir como transitivo direto, que alguns puristas teimam em considerar como errônea (“ele assistiu o programa Roda Viva”), mas que já é usada corriqueiramente por pessoas de educação superior e de status social de prestígio; a despeito do desagrado dos puristas, essa forma já está registrada em dicionário: “na literatura contemporânea, a tendência, ao que parece, é para o complemento direto” (LUFT, 1999, p. 79). Cunha (1985, p. 508) também é assertivo em relação a tal uso: Na linguagem coloquial brasileira, o verbo constrói-se, em tal acepção [“estar presente, presenciar”], de preferência com objeto direto (cf.: assistir o jogo, um filme), e escritores modernos têm dado acolhida à regência gramaticalmente condenada. Norma culta, portanto, porque nela cabem apenas condenações a formas que indistintamente os brasileiros usam no seu dia a dia; norma em que não cabe nada além de preconceitos linguísticos, tachando de ignorantes os que se utilizam de variedades menos prestigiadas. O uso da expressão norma culta, ultrapassando os muros da universidade, tornou-se comum no discurso da mídia, mas perdeu a precisão semântica. E mesmo no discurso universitário a expressão apresentava imprecisão, confundindo-se com norma-padrão, que é outro conceito distinto. Norma culta também é identificada com norma gramatical, uma norma que se distancia e às vezes conflita com o uso culto efetivo que ocorre no Brasil. Nos estudos linguísticos, considera-se culto o uso da língua praticado por pessoas de escolarização superior (os que fizeram universidade), têm acesso a bens culturais, como jornais, livros, teatro, cinema, nasceram, cresceram e sempre viveram em ambiente urbano, como já afirmamos. Tradicionalmente, quando se fala em estudar ou ensinar português, vem à mente o ensino da gramática; daí a sinonímia, em nossa sociedade, entre ensinar gramática e ensinar português. E ensinar gramática também nunca esteve livre de distorções: entendia-se ora que se tratava de ensinar nomenclatura, conceitos, classificações, ora ensinar usos que os gramáticos entendiam ser o “correto”. A escola tradicional negava a variação linguística em seu ensino. Ela entendia que variação é equivalente a erro e lhe caberia corrigir os desvios. Ora, embora o tema da variação tenha sido ultimamente objeto do discurso pedagógico, ainda não conseguimos “construir uma pedagogia adequada a essa área”. Em vez da preocupação com projetos padronizadores do português brasileiro, poderíamos dedicar esforços no sentido da descrição e difusão das “variedades cultas faladas e escritas” e combater sistematicamente os “preceitos da norma curta que, em nome de uma norma-padrão artificialmente fixada, ainda circulam entre nós quer na desqualificação da língua portuguesa do Brasil, quer na desqualificação dos seus falantes” (FARACO, 2009, p. 174). E, citando
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