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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia ANÁLISE DE ABORDAGENS INTERVENTIVAS EM PSICOLOGIA PARA CRIANÇAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA Jandira dos Anjos Alencar Duarte de Lima Natal 2021 ii Jandira dos Anjos Alencar Duarte de Lima ANÁLISE DE ABORDAGENS INTERVENTIVAS EM PSICOLOGIA PARA CRIANÇAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA Dissertação elaborada sob orientação da Prof.ª Dr.ª Cíntia Alves Salgado Azoni e apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia. Natal 2021 iii iv Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia A dissertação “Análise de Abordagens Interventivas em Psicologia para Crianças com Transtorno do Espectro Autista”, elaborada por “Jandira dos Anjos Alencar Duarte de Lima”, foi considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA. Natal , RN, 18 de fevereiro de 2021 BANCA EXAMINADORA Nome Completo do/a Professor/a Dra. Cíntia Alves Salgado Azoni Nome Completo do/a Professor/a Dra. Ediana Rosselly de Oliveira Gomes Nome Completo do/a Professor/a Dra. Sylvia Maria Ciasca v Acredite, é hora de vencer Essa força vem De dentro de você Você pode Até tocar o céu se crer Acredite que nenhum de nós Já nasceu com jeito Pra super-herói Nossos sonhos A gente é quem constrói É vencendo os limites Escalando as fortalezas Conquistando o impossível Pela fé Campeão, vencedor Deus dá asas, faz teu voo Campeão, vencedor Essa fé que te torna imbatível Te mostra o teu valor Tantos recordes Você pode quebrar As barreiras Você pode ultrapassar E vencer (Campeão e Vencedor. Aline Barros) vi Agradecimentos Primeiramente sou imensamente grata a Deus por estar sempre ao meu lado em minhas conquistas e desafios, Ele é minha força diante das adversidades e não me deixa desistir. Agradeço a minha pessoa por acreditar que é possível superar obstáculos, descobrir minha força e ser minha própria companhia de forma amorosa, cuidadosa e gentil em todo o percurso. Agradeço a toda minha família, em especial ao meu esposo João Carlos que sempre me apoia e incentiva em novos desafios, a minha mãe Aida, meu pai Edivaldo, minha irmã Monaliza e sobrinho Davi e ao meu irmão Wladimir, cunhada Flávia e sobrinhos Pedro, Lívia e a querida Maria Júlia por sempre acreditarem no meu potencial e me incentivarem a crescer para que dessa forma eu possa ofertar o que tenho de melhor àqueles que atendo. Agradeço também a meus tios Maria das Graças (Caca) e Nilson (Didiu) representando os demais e que estão em todas as minhas conquistas. Agradeço a amada Edna Maria Aguiar por mais uma vez esta comigo nessa jornada de aprendizado, a querida amiga de turma Maria Laís que esteve ao meu lado em momentos desafiadores sendo tantas vezes meu apoio e agradeço a amiga Alyana Macêdo que me acrescentou tanto suporte com sua habilidade tecnológica. Cresci em uma família de professores e pessoas que amam estudar e a isso sou imensamente grata. Esse legado de estudo, leitura e aprendizado sempre me fará recordar do meu avô Juvino dos Anjos (in memoria). Agradeço a professora Izabel Hazin juntamente com minha orientadora Cíntia Alves Salgado Azoni por acreditar no meu potencial e naquilo que podemos construir juntas. Agradeço pela paciência, pela parceria, pelo apoio e compreensão. Foram anos desafiadores pra pesquisa, pro estudo e pra todo o cenário brasileiro. Agradeço as instituições que fizeram parte de minha pesquisa: Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anitta Garibaldi, Associação de Pais e Amigos dos Autistas do RN (Apaarn) e Instituito Bem-Te-Vi que abriram suas portas e me permitiram realizar a pesquisa. E as psicólogas destas instituições que se apresentaram tão solicitas desde o inicio e durante todo o percurso diante das adaptações necessárias: Samantha Maranhão, Claúdia Cavalcante, Andreia Britto, Mariza Porto, Cecília Britto, Emmanuela Galvão e Luiza Marilac Motta, E de forma mais que especial agradeço a minha turma “Marielle Franco” que foi rede de apoio e amparo em todo o percurso, como dizíamos “ninguém solta a mão de ninguém” e assim seguimos dois anos de mestrado sendo suporte a cada um. Fomos saúde mental, fomos escuta, fomos colo, fomos orientação e direcionamento. vii Tenho certeza que Deus me reservou a essa turma tão especial. Hoje sou imensidão de gratidão pelo percurso que trilhei, pelos desafios que superei e pela fortaleza que me tornei. Esta dissertação não é somente fruto de muito estudo, mas, é também, fruto de muito auto crescimento, autocompaixão, amadurecimento, e, sem dúvida, de muita resistência e resiliência. Ela é mais uma conquista, mais uma vitória, que nunca será somente minha, pois todos aqueles que me acompanharam nesse percurso, deixaram um pouco de si. viii Sumário Lista de Siglas............................................................................................................................ix Resumo.......................................................................................................................................x Abstract......................................................................................................................................xi Introdução.................................................................................................................................12 1Fundamentação teórica..........................................................................................................14 1.1 Transtorno do Espectro Autista: panorama histórico..............................................14 1.2. Caracterização do TEA..........................................................................................19 1.2.1 Conceitualização do TEA.....................................................................................19 1.2.2 Fatores de risco de acordo com o DSM 5............................................................24 1.2.3 Diagnóstico Precoce.............................................................................................25 2 Avaliação diagnóstica............................................................................................................31 3 Proposta terapêutica...............................................................................................................38 3.1 Abordagens mais comuns de intervenção na área da Psicologia no Brasil.............40 3.1.1 TEA na abordagem Psicanalítica.........................................................................41 3.1.1.2 A Criança autista e sua relação com o objeto para a psicanálise......................48 3.1.2 TEA na Abordagem da Neuropsicologia Histórico Cultural...............................52 3.1.3 TEA na Abordagem Cognitivo Comportamental.................................................58 4 Objetivos................................................................................................................................64 4.1 Objetivo Geral.........................................................................................................64ix 4.2 Objetivos Específicos..............................................................................................64 5 Método...................................................................................................................................65 5.1 Tipo de estudo.........................................................................................................65 5.2 Participantes............................................................................................................66 5.3 Local da pesquisa....................................................................................................67 5.4 Procedimentos.........................................................................................................68 6 Resultados..............................................................................................................................70 6.1 Categorias................................................................................................................70 6.1.1 Base Teórica da Intervenção para o TEA.............................................................70 6.1.2 Descrição da Intervenção segundo referencial teórico.........................................88 6.1.3 Benefícios da Intervenção a criança com TEA segundo referencial teórico......103 7 Considerações Finais............................................................................................................112 Referências..............................................................................................................................117 Apêndice x Lista de Siglas ABA - Análise do Comportamento Aplicada AC - Análise de Conteúdo AEE - Atendimento Educacional Especializado APA - American Psychological Association CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior PECS - Sistema de Comunicação por Troca de Figuras QI - Quociente de Inteligência SNC - Sistema Nervoso Central TEA - Transtorno do Espectro Autista TEACCH - Tratamento e Educação para Autistas e Crianças com limitações relacionadas à Comunicação TGD - Transtornos Globais do Desenvolvimento TID - Transtornos Invasivos do Desenvolvimento xi Resumo O Transtorno do Espectro Autista (TEA) vem sendo vastamente pesquisado devido ao reconhecido aumento do número de casos, provavelmente associado à sua identificação precoce, e ainda, pelo uso de estratégias mais amplas de diagnóstico. Por possuir etiologia múltipla, há modelos ou abordagens clínica, metodológica ou terapêutica distintas diante de suas bases teóricas, situadas no cruzamento de numerosas estratégias clínicas. O objetivo do estudo consiste em analisar as abordagens interventivas na área de Psicologia utilizadas em crianças com TEA em instituições da cidade de Natal/RN/Brasil. Trata-se de estudo qualitativo, exploratório, transversal, com amostra composta por conveniência. Participaram sete profissionais de psicologia de três instituições referências em TEA da cidade de Natal/RN. O instrumento utilizado foi um questionário elaborado pela pesquisadora e as respostas baseadas na análise de conteúdo de Bardin (1977). Foram elencadas três categorias: a) base teórica, b) intervenção e c) benefícios de cada proposta interventiva. Os resultados mostraram o delineamento prático a partir do referencial teórico escolhido que moldam as propostas de intervenção e o olhar para a criança com TEA. O estudo evidenciou a necessidade de promover espaços de discussão científica, possibilitando diálogos e construção de uma diversidade de modos de conceber o transtorno, assim como o reconhecimento da pluralidade que se apresenta em cada sujeito com o diagnóstico de TEA. Diante disso, é posto a importância da diversidade nos modos de compreender as intervenções, permitindo contextos, também múltiplos, de acolhimento. Palavras-chaves: Autismo; Psicologia; Intervenção psicológica. xii Abstract The Autistic Spectrum Disorder (ASD) has been extensively researched due to the recognized increase in the number of cases, probably associated with its early identification, and also, due to the use of broader diagnostic strategies. Because of its multiple etiology, there are models or approaches clinical, methodological, or therapeutic distinct from their theoretical bases, located at the intersection of numerous clinical strategies. The ASD can be found between numerous clinical strategies. The goal of the study is to analyze the interventional approaches in Psychology used in children with ASD in institutions in the city of Natal-RN/Brazil. This is a qualitative, exploratory, cross-sectional study, with the sample consisting of convenience. Seven psychology professionals were selected from three ASD reference institutions in the city of Natal-RN/. The instrument used was a questionnaire prepared by the researcher and the answers based in Bardin‟s analysis. Three categories of analysis were selected: 1) theoretical basis, 2) intervention and 3) benefits of each intervention proposal. The results showed the practical outline from the chosen theoretical framework that shapes the intervention proposals and the look at the child with ASD. From them, the study aimed to highlight the need to promote spaces for scientific discussion, enabling dialogues and building a diversity of ways of conceiving the disorder, as well as the recognition of the plurality that appears in each subject with the diagnosis of ASD. Therefore, the importance of understanding the diversity in the ways of conceiving interventions is highlighted, allowing contexts, also multiple, of welcoming individuals. Keywords: Autism; Psychology; Psychological intervention. 13 Introdução De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais- DSM-5 da American Psychiatric Association – APA (2014), o Transtorno do Espectro Autista – TEA engloba o transtorno autista (autismo), o transtorno de Asperger, o transtorno desintegrativo da infância, o transtorno de Rett e o transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação do DSM-IV e é “caracterizado por déficits em dois domínios centrais: 1) déficit na comunicação social e interação social e 2) padrões repetitivos e restritos de comportamento, interesses e atividades” (p. 853). Segundo Leboyer (1995), o autismo é um distúrbio de desenvolvimento complexo e sua compreensão perpassa diversos aspectos podendo ser clínico, metodológico ou terapêutico e nenhum abrange sua totalidade; pois sua compreensão está no cruzamento de diversas abordagens neurobiológicas, neurofisiológicas, psicológicas, genéticas e epidemiológicas. Cada uma com sua contribuição, com seu olhar sobre quadro e posicionamento para o campo da pesquisa. O TEA vem sendo vastamente pesquisado devido ao reconhecido aumento do número de novos diagnósticos, provavelmente associado à sua identificação precoce (Souza et al., 2019), bem como pelo uso de estratégias mais amplas de diagnóstico, conforme preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A partir de ideias de Brasil (2015), é necessário compreender a importância da família, escola e comunidade na socialização e integração da criança com TEA para que dessa forma seja possível criar estratégias de orientação e capacitação a essa tríade como forma de ensino para integrar e conduzir essa criança no convívio social. O olhar amplo para identificar os diversos espaços que a criança circula e ações voltadas ao ensino das habilidades e 14 comportamentos a serem promovidos, auxiliam o processo de inclusão e autonomia de pessoas com TEA. No cenário nacional de Politicas Públicas destaca-se a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo, Lei nº 12.764, de27 de dezembro de 2012, em que estas pessoas são consideradas como aquelas com deficiência para efeitos legais e têm garantia de atendimento especializado. O Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi) é o serviço de saúde definido pelo governo brasileiro para o atendimento dessa população, entretanto, diante do cenário de precarização da assistência à saúde no país, é insuficiente o número dessas unidades que atendam de forma adequada os indivíduos com TEA (Souza et al., 2019). Nesta perspectiva, o presente estudo se justifica pela necessidade de compreensão das abordagens interventivas em Psicologia utilizadas para crianças com Transtorno do Espectro Autista, como forma de análise dos ganhos e avanços com cada abordagem utilizada. Sendo assim, pretende-se identificar a prática de profissionais da Psicologia em centros de referência que proporcionará melhor compreensão acerca dos caminhos trilhados quanto ao TEA. Estabeleceu-se então, como pergunta de pesquisa: Quais as abordagens interventivas de profissionais da Psicologia no trabalho com crianças com TEA? Dada a importância de intervenções para indivíduos com TEA, estudos para essa população são imprescindíveis e necessários para o conhecimento do que vem sendo ensinado e divulgado no contexto científico brasileiro, para que práticas profissionais sejam realizadas visando possibilitar procedimentos que incidam na mudança em diferentes aspectos psicológico em crianças com TEA. 15 1. Fundamentação teórica 1.1. Transtorno do Espectro Autista: panorama histórico De acordo com Sella e Ribeiro (2018), em 1911 a terminologia Autismo foi utilizada pela primeira vez por Eugene Bleuler com característica de indivíduos com perda de contato com a realidade e, consequentemente dificuldade ou impossibilidade em se comunicar. Kanner e Hans Asperger em 1940 se tornaram referências quando postularam suas descobertas. Foram os médicos que trouxeram as primeiras descrições do que viria a ser denominado autismo infantil. O primeiro autor, através de seu artigo intitulado “Os distúrbios do contato afetivo” apresentava os achados do comportamento de crianças com dificuldades de relacionamento, o que ele caracterizou por isolamento extremo, pois estas apresentavam inabilidade em estabelecer relações com outras pessoas, incapacidade ou atraso em adquirir a linguagem, com comprometimento na sua comunicação (Leboyer, 1995). O segundo autor, Kanner, em seu doutorado reafirmava as palavras do colega com relação aos comportamentos das crianças. Ambos apontavam a presença dos déficits coexistindo junto a habilidades visuais e cognitivas extraordinárias e diferenciava-os de quadros sensoriais e ligados a retardo mental. (Stella e Ribeiro, 2018) Kanner (1943) inferia que “um profundo isolamento domina todo o comportamento” dessas crianças. Defendia uma “incapacidade inata de estabelecer o contato afetivo habitual e biologicamente previsto com as pessoas”. As teses biológicas se fortaleceram na década de 60 e Kanner reforça “É reconhecido que o autismo não é uma doença primariamente adquirida ou feita pelo homem. [...] fazer os pais se sentirem culpados ou responsáveis pelo autismo de 16 seu filho não é apenas errado, mas adiciona de modo cruel um insulto a um dano” (Kanner, 1968, apud Brasil, 2015, p. 25). Características como: negligenciar, ignorar ou recusar contato com o ambiente podem estar presentes desde os primeiros meses de vida (Brasil, 2015). Na relação com seus genitores observa-se por relatos ausência de atitude corporal antecipatória, ou seja, não há expressão de “interesse” em contato com os pais e, quando esse contato existe não é movido por interação. E na ausência desses pais o seu retorno não é precedido de mudanças comportamentais e expressão facial com demonstração de emoção da parte da criança. Todos estes sinais podem ser percebidos desde muito cedo, entretanto os problemas na aquisição da fala costumam ser os primeiros no reconhecimento de que algo está fora do desenvolvimento esperado.(Brasil, 2015). Ainda nessa década pessoas com autismo passaram a dar depoimentos. Insatisfeitas com a relação postada entre autismo e psiquiatria, elas lutavam por uma percepção orgânica e comportamental. E como terceiro posicionamento dessa década que travou contribuições e lutas pelo desmembramento da associação de autismo e psiquiatria, foi a contribuição do cognitivismo ao diagnóstico. Aqui se pretendia relacionar autismo a um distúrbio do desenvolvimento que décadas seguintes estaria relacionado a déficits na Teoria da Mente. Porém as alterações do conceito de autismo só surgiram a partir de Ritvo e Ornitz (1976) que passaram a considerar o autismo uma síndrome relacionada a um déficit cognitivo e não uma psicose. (Brasil. 2015) Para a Teoria da Mente, por exemplo, as pessoas com autismo teriam dificuldades importantes nas capacidades de metarepresentação e metacognição, ou seja, de imaginar e interpretar os estados mentais de terceiros e também os próprios. Dessa maneira se colocar no lugar do outro praticando a empatia e interagir socialmente por meio de trocas entre o ambiente e as pessoas torna-se algo bem desafiador para ao autistas. (Lima, 2007) 17 Todas estas reflexões trouxeram contribuições para se pensar nas denominações de autismo infantil, levando-as a passarem por mudanças, estando cada nomenclatura associada ao momento vivido e a relação estabelecida com o diagnóstico. Com relação ao reconhecimento de indivíduos com funcionamento psicológico perturbado em áreas comportamentais Pereira, (2005 apud Gonçalves, 2011) traz a referência de Perturbação de Espectro de Autista (PEA), com o passar do tempo, surgiu a denominação de Perturbações Globais do Desenvolvimento (PGD) que incluía além do Autismo e da Síndrome de Rett, a Perturbações Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificação (SOE) segundo Siegel, (2008 apud Gonçalves, 2011). Entretanto, o que se reconhece é que os sintomas fazem parte de subtipos de alterações, como em um espectro, o que mais a frente fará parte da nomenclatura do diagnóstico. Essas mudanças foram executadas na terceira edição revisada do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM III-R (APA, 1987) que estabelecia critérios mais concretos e observáveis. Neste manual, para diagnosticar autismo, era necessário observar 16 itens descritos em 3 grupos de sintomas, ocorrendo pelos menos dois itens no grupo A (incapacidade qualitativa na interação social recíproca), um item no grupo B (Incapacidade qualitativa na comunicação verbal e não verbal e na atividade imaginativa) e um do grupo do C (repertório de atividades e interesses acentuadamente restritos). O início do quadro ocorria na primeira infância (após os 36 meses de vida). Porém, a não especificidade dos critérios diagnósticos tornou o DSM – III vulnerável a críticas, pois não permitia o diagnóstico diferencial. O DSM IV trouxe em sua descrição, além do autismo, a síndrome de Rett, o transtorno desintegrativo, a síndrome de Asperger e quadros sem outra especificação. Na quinta versão do DSM, lançada em 2013, a denominação utilizada passou a ser “transtornos do espectro do 18 autismo”, localizado no grupo dos “transtornos do neurodesenvolvimento”. Na década de 1990 o autismo ganhou reconhecimento de continum ou espectro. Percebe-se que a tríade sintomática: ausência ou limitação na interação social, ausência ou limitação no uso da linguagem verbal e não verbal e ausência ou limitação no uso da imaginação de modo a funcionarem com rigidez e constantes repetições provocou esse fortalecimento de continuum, o qual se apresentava de diferentes maneiras e intensidades, porém com os mesmos sintomas. (Lorna Wing (1981 apud Klin, 2006). Entretanto, na década de 90, a relação autismo e psiquiatria retomou trazendoa relação autismo – deficiência mental e provocando conflitos entre a classificação francesa, a americana (APA) e a mundial (OMS). Observa-se que a classificação francesa remetia o autismo a uma “desorganização da personalidade” estando muito mais próxima ao conceito de psicose para descrever o transtorno, enquanto que a APA e a OMS caracterizava dentro dos Transtornos do Desenvolvimento e relacionado autismo com cognição. (Sella e Ribeiro, 2018) Neste sentido, Gillberg (1990) direciona o olhar para as variáveis orgânicas, no qual. aponta que o autismo não está relacionado a um problema dos pais, e sim, a uma disfunção orgânica (Sella e Ribeiro, 2018). Acrescenta ainda características de síndrome comportamental, de causas biológicas múltiplas e alterações no desenvolvimento atrelado a tríade sintomatológica já referenciada: déficit nas interações, na linguagem e no comportamento. Suas discussões e contribuições causaram mudanças na maneira de diagnosticar, possibilitando um olhar ampliado que promove direcionamento ao neurodesenvolvimento. Possibilitou o reconhecimento do autismo por uma conceitualização heterogênea de manifestações clínicas variadas e múltiplos modos de funcionamento (Sella e Ribeiro, 2018) 19 A partir desse panorama histórico, observa-se que duas concepções básicas podem ser identificadas nos debates sobre as origens e a “natureza” desse quadro (Lima, 2007, 2010). A primeira voltada à tradição psicanalítica e a segunda à cognitivista. Esta última, por estar associada à pesquisa genética, pode ser considerada hegemônica no que tange à produção de conhecimento sobre o TEA em boa parte dos países do ocidente na atualidade. Apesar da diversidade de concepções encontradas na descrição do autismo é possível reconhecer que todas elas consideram o aspecto cognitivo anormal presente no diagnóstico aceitando o que as observações clínicas e dados de análise do cognitivo e emocional pontuam quando se referem a essa anormalidade cognitiva. (Assumpção e Pimentel, 2000) Neste direcionamento compreender o impacto que a intervenção precoce promove quando se relaciona a ganhos significativos no funcionamento cognitivo e adaptativo da criança, é reconhecer sua atuação em um momento do desenvolvimento onde o cérebro é plástico e permite que manifestações do quadro sejam impedidas de se desenvolverem. (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019, p. 2) Assim, compreende-se que cada sujeito tem sua história, suas potencialidades e dificuldades. A experiência de cada uma diante das situações é vivenciada de maneira singular. As crianças com TEA precisam ser vistas com este olhar singular. Uma criança sempre apresenta de forma diferenciada seu quadro de sintomas, afinal, estamos falando de diferentes graus de gravidade e de uma heterogeneidade de capacidades. É muito importante empreender esforços que rompam com um imaginário social que estigmatiza e colocam as crianças com TEA em posições inferiores. É preciso investir em um olhar voltado as capacidades e possibilidades e pensar em promoção de espaços inclusivos. (Brasil, 2015). 20 1.2 Caracterização do TEA 1.2.1 Conceitualização do TEA É notório como o diagnóstico de TEA tem crescido nos últimos anos. Em grande parte, podemos reconhecer o avanço dos critérios diagnósticos, assim como o desenvolvimento de instrumentos de rastreio que auxiliem os profissionais. A Sociedade Brasileira de Pediatria em seu Manual de Orientação intitulado “Transtorno do espectro Autista” traz referências da estimativa de casos: “Nos Estados Unidos de 1 para cada 150 crianças de 8 anos em 2000 e 2002, a prevalência do TEA aumentou para 1 para cada 68 crianças em 2010 e 2012, chegando a prevalência de 1 para cada 58 em 2014”. (p. 2). Desta maneira, torna-se fundamental trazer informação e conceitualização, pois apesar do diagnóstico poder ser detectado a partir dos 2 anos, no qual já se é possível reconhecer sintomas expressos, ainda se observa um atraso no reconhecimento dos sintomas, ocorrendo por volta dos 6 anos em nosso país, e isso provoca maior impacto pois perde-se um grande período de plasticidade neuronal dos primeiros anos de vida que é possível ter ganhos significativos no que se refere ao impedimento de manifestações sintomatológicas do quadro. (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019) Na publicação “Linha de cuidado para a atenção integral às pessoas com transtorno do espectro do autismo e suas famílias no Sistema Único de Saúde”, Brasil (2015) destaca que atualmente, as classificações se organizam em torno de categorias dicotômicas. Estas se referem a avaliação quando uma pessoa “tem” ou “não tem” um transtorno transparecendo sua organização excludente. Um outro modelo de classificação refere-se a dimensional, o qual a avaliação é realizada direcionada ao grau sendo de maior ou menor intensidade, 21 transparecendo seu modelo de continuum. É possível reconhecer que a avaliação dimensional se apresenta mais funcional e mais adequada a avaliações de risco como no caso do TEA. Entretanto, “vale ressaltar que as abordagens categoriais e dimensionais não são incompatíveis. É possível, mediante o estabelecimento de “pontos de corte”, definidos por critérios científicos, transformar um continuum em uma categoria”. (Brasil, 2015, p. 38). No que tange ao TEA como transtorno do desenvolvimento é importante relacionar este com início precoce e evolução crônica. Desta maneira, uma criança pequena diagnosticada com TEA costuma apresentar os sintomas do quadro ao longo da vida, podendo variar a intensidade no que se refere a uma melhora clínica e funcional, porém jamais deixa de ter o transtorno. (Brasil, 2015) Os transtornos do desenvolvimento são basicamente de dois tipos: específico ou global. Os transtornos específicos do desenvolvimento como o próprio nome diz, causam impactos específicos no funcionamento psíquico ou cognitivo, estando os transtornos da aprendizagem nessa categoria. Enquanto que os transtornos globais do desenvolvimento correspondem a formas abrangentes de interferência nas funções psíquicas, como por exemplo o TEA. (Brasil, 2015) Para o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais- DSM-5 da American Psychiatric Association – APA (2014), o TEA caracteriza-se por: prejuízo na socialização afetando a comunicação, interação e reciprocidade sendo estas realizadas através de múltiplas fontes de informação, incluindo observações do clínico e história do cuidador. A idade cronológica e o nível intelectual interferem na intensidade da expressão comunicativa. O impacto na comunicação pode variar de acordo com a idade cronológica, nível intelectual e histórico de tratamento. Informações da Sociedade Brasileira de Pediatria apontam estudos que indicam que os domínios de comunicação e linguagem estão sendo 22 propostos como marcadores de identificação precoce para o autismo em crianças entre 12 e 24 meses. (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019) Na interação fica evidente o uso reduzido, ausente ou atípico de contato visual, gestos e expressões faciais, como por exemplo, a falta do gesto de apontar, mostrar ou trazer objetos para compartilhar o interesse com outros. É possível aprender alguns poucos gestos funcionais, mas seu repertório é menor do que o de outros e costumam fracassar no uso de gestos expressivos com espontaneidade na comunicação. (APA, 2014). Torna-se fundamental promover modelos de aprendizagem para o desenvolvimento de habilidades sociais e cognitivas permitindo assim acelerar o desenvolvimento infantil por meio da neuroplasticidade. (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019) Já o déficit na reciprocidade emocional, segundo o DSM- 5, fica evidente em crianças menores, as quais trazem muita dificuldade em iniciar trocas, compartilhar emoções, comportamento de imitação reduzido ehavendo linguagem é usada para solicitar do que para comentar. Alterações no padrão de comportamento apresenta-se por rigidez e repetições causando extremo sofrimento em relação a mudanças, como por exemplo, expressa necessidade de fazer sempre o mesmo caminho e ingerir os mesmos alimentos; presença de comportamentos estereotipados ou repetitivos com estereotipias motoras simples diante dessas mudanças e de desconfortos também costumam fazer parte dos sintomas (p. ex., abanar as mãos, estalar os dedos), uso repetitivo de objetos (p. ex., girar moedas, enfileirar objetos) e fala repetitiva (p. ex., ecolalia, repetição atrasada ou imediata de palavras ouvidas). (APA, 2014) O interesse fixo causa impacto na ampliação de repertorio diminuindo as possibilidades de adaptação a novos ambientes; costumam ser anormais em intensidade ou 23 foco. A adesão excessiva a rotinas e padrões restritos de comportamento podem ser manifestados por resistência a mudanças (p. ex., sofrimento relativo a mudanças aparentemente pequenas, como embalagem de um alimento favorito) ou por padrões ritualizados de comportamento verbal ou não verbal (p. ex., perguntas repetitivas, percorrer um perímetro) (APA, 2014). Há também a presença de hipo ou hiper-reatividade a estímulos sensoriais podendo provocar indiferença a dor, sensibilidade a luz e barulho causando desconforto, podendo promover contextos de risco e debilitando sua qualidade de vida. (APA, 2014). Muitos indivíduos com transtorno do espectro autista também apresentam comprometimento intelectual e/ou da linguagem (p. ex., atraso na fala e compreensão da linguagem). Mesmo aqueles com inteligência média ou acima da média apresentam um perfil irregular de capacidades. Déficits motores também estão presentes, incluindo marcha atípica, falta de coordenação e outros sinais motores anormais (p. ex., caminhar na ponta dos pés, balançar as mãos, bater palmas ou movimentos oscilatórios, se balançar com o corpo para frente e para trás) e podem ocorrer autolesões (p. ex., bater a cabeça, morder o punho). (APA, 2014) Pode haver interesse social ausente, reduzido ou atípico, manifestado por rejeição de outros, passividade ou abordagens inadequadas que pareçam agressivas ou disruptivas. Em crianças menores é observada a falta de imaginação como por exemplo o brincar de fingir ou de outro lado um brincar seguindo regras muito fixas. (APA, 2014) Todos estes sintomas devem estar presentes desde o início da infância e limitar e prejudicar o funcionamento diário. As formas como se apresentaram podem variar dependendo da gravidade, do nível de desenvolvimento da criança e de sua idade cronológica, 24 sendo os sintomas avaliados por uma perspectiva de comprometimento qualitativo do desenvolvimento. (APA, 2014) O transtorno do espectro autista (TEA) engloba transtornos antes chamados de autismo infantil precoce, autismo infantil, autismo de Kanner, autismo de alto funcionamento, autismo atípico, transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação, transtorno desintegrativo da infância e transtorno de Asperger (DSM-IV). O TEA caracteriza-se como um transtorno complexo e que exige uma equipe multidisciplinar capaz de estabelecer quadro clínicos bem definidos e passíveis de prognósticos precisos a partir de abordagens eficazes como também um olhar ampliado capaz de promover uma educação do transtorno, e dos passos necessários para conduzi-lo dentro dos espaços educacionais, social e saúde. (Assumpção e Pimentel, 2000) 1.2.2 Fatores de risco de acordo com o DSM-5 A APA (2014) sistematiza os fatores de riscos em ambientais, genéticos e fisiológicos e de gênero. São fatores ambientais: “idade parental avançada, baixo peso ao nascer ou exposição fetal a ácido valproico, pode contribuir para o risco de transtorno do espectro autista”. Quanto aos fatores genéticos, é possível encontrar outros casos na família após um primeiro diagnóstico de autismo corroborando com o fator genético. Roubertoux (1983) em revisão da literatura constatou que: “o aumento do risco só pode ser interpretado como a prova da etiologia familiar do autismo já que os irmãos estão sendo criados no mesmo meio e os fatores genéticos e ambientais estão entrelaçados”. Já sobre o gênero, enfatiza-se que o transtorno do espectro autista é diagnosticado quatro vezes mais frequentemente no sexo masculino do que no feminino. 25 1.2.3 Diagnóstico precoce É necessário valorizar o momento de início das manifestações clínicas apresentadas pela criança pois quanto mais precoce for o diagnóstico, melhores condições de desenvolvimento de habilidades necessárias para a vida diária a criança tem a desenvolver. “a intervenção precoce está associada a ganhos significativos no funcionamento cognitivo e adaptativo da criança. Alguns estudiosos têm até mesmo sugerido que a intervenção precoce e intensiva tem o potencial de impedir a manifestação completa do TEA, por coincidir com um período do desenvolvimento em que o cérebro é altamente plástico e maleável” (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019, p.1) É sempre muito difícil situar com precisão a idade exata de surgimento do TEA. Frequentemente, os pais percebem os sinais no momento em que começam a perceber diferenças entre o comportamento do seu filho com uma criança de mesma idade. Reconhecem comportamentos diferentes ou a ausência de comportamentos esperados. Nesta perspectiva, há dois direcionamentos: 1) os sinais que surgem desde o nascimento: os pais notam que a criança tem um “comportamento estranho”, raramente chora, não tem necessidade de estimulação, nem de companhia. Pode se apresentar como uma criança “fácil” ou apresentar comportamento extremamente irritável reagindo de forma extrema a estimulações; 2) os pais descrevem um desenvolvimento normal até os 18 ou 24 meses, 26 momento em que notam os primeiros sintomas. É possível que os sinais clínicos sejam moderados e não sejam reconhecidos pelos pais. (Leboyer, 1995). A Sociedade Brasileira de Pediatria apontou estudos brasileiros onde as mães indicavam que suas primeiras preocupações foram em torno dos 23 meses e se relacionavam ao atraso na linguagem, a falha em responder seu nome e o baixo contato visual junto à agitação. Entretanto o diagnóstico formal somente se concretizou próximo aos 6 anos. O que é preciso destacar será a importância e valorização da intervenção precoce, mediante qualquer atraso a estimulação é regra, pois permite um melhor prognóstico, e desenvolvimento adaptativo a longo prazo. Seguindo o direcionamento do Manual Estatístico de Transtornos Mentais DSM- 5, “os sintomas costumam ser reconhecidos durante o segundo ano de vida (12 a 24 meses), embora possam ser vistos antes dos 12 meses de idade, se os atrasos do desenvolvimento forem graves, ou percebidos após os 24 meses, se os sintomas forem mais sutis” (p. 55). Zanon, Backes e Bosa (2014) reforçam os dados, através de estudos com base em dados empíricos que demonstram que “a maioria das crianças apresenta problemas no desenvolvimento entre os 12 e 24 meses, sendo que alguns desvios qualitativos no desenvolvimento aparecem antes mesmo dos 12 meses” (p. 26). A percepção desse inicio precoce envolve a percepção do desenvolvimento saudável e o olhar cuidadoso para os atrasos, sejam eles nas habilidades sociais como linguísticas. Ainda de acordo com o DSM-5 é perceptível a partir da primeira infância as mudanças nas características comportamentais quando estas se apresentam. A interação social é apontada como a característica mais evidente onde a criança pode conseguir manter contato físico com o outro, porém sem interesse comunicativo. 27 Leboyer (1995) acrescenta os “padrões estranhos de brincadeiras (p. ex., carregar brinquedos, mas nunca brincar comeles) constituindo assim o que chamamos de brincar sem funcionalidade”. O brincar, segundo Rutter (1978 apud Leboyer, 1995) “tem uma tendência a ser mecânico, repetitivo e desprovido de imaginação ou criatividade”. Comportamentos específicos desse brincar são passíveis de serem claramente identificados, sendo eles: alinhar objetos, repetir movimentos, apego a determinados brinquedos, cheirar ou levar a boca objetos e fascínio por coisas em movimento. No cenário do comportamento social, mais especificamente no isolamento autístico, Leboyer (1995) reforça a “incapacidade de desenvolver relações interpessoais nos primeiros cinco anos relacionado a uma falta de reação aos outros e de interesse por eles”. Nessa faixa etária as crianças com TEA apresentam ausência de contato visual, de sorriso e mímica, ignora e não reage ao contato físico, comporta-se como se estivesse só, não buscando nem esperando dos pais um suporte e proteção diante da dor e do medo. Apresentam um comportamento de não distinguir os pais de outros adultos. A linguagem também se caracteriza por um dos déficits primeiros a serem constatados em atraso ou por ela se estabelecer de uma forma incomum, a exemplo de uma criança que conhece o alfabeto mais não sabe dizer seu nome. É observado também características na expressão da fala com alterações de volume, altura do som, qualidade da voz, ritmo, e entonação e sua reprodução não tem valor comunicativo apresentando-se por repetição de frases. (Hirs,1967 apud Leboyer, 1995). A capacidade de simbolizar é ausente ou limitada, geralmente quando querem algo pegam na mão do adulto levando-o até o local, mas apresentam enorme dificuldade em apontar e direcionar o que desejam. 28 Relacionado às emoções, o humor é caracterizado por instabilidade emocional apresentando oscilações que pode passar do riso para o choro sem que haja uma explicação explícita. A capacidade de se expressar é quase nula, e a percepção da emoção do outro praticamente inexistente. Pode haver uma ausência total de consciência do perigo contrastando com o medo sem fundamento aparente frente a tal ou qual objeto numa circunstância particular. Na audição, pode existir uma ausência de resposta a estímulos sonoros levando muitas vezes a suspeitas de surdez ou uma sensibilidade exagerada aos ruídos levando a criança até a se proteger do barulho colocando as mãos nos ouvidos, ou em outros casos levando a criança a buscar por estimulações auditivas como, por exemplo, esfregando uma superfície e colocando o ouvido próximo, ou batendo as orelhas. Nas percepções visuais a criança pode não ter reação aos estímulos e a objetos podendo até andar sobre os mesmos como se não os visse, pode parecer não reconhecer os rostos ou objetos familiares, ou inversamente, ser fascinada pela luz. E outras percepções sensoriais como o tocar, o olfato ou o paladar, são também perturbadas. Referencias de Schopler (1965 apud Leboyer 1995) apontam que “criança com TEA tem uma preferência maior pelo tocar, o olfato e o paladar, que são percepções proximais, que pelas percepções distais como a audição ou a visão”. Zanon, Backes e Bosa (2014) com base em Siklos e Kerns (2007) nos aponta para as diversas maneiras que o sintoma se expressa nas crianças inferindo que não existe um padrão de apresentação e desse modo provoca um atraso dos pais identificarem os sintomas pois muitos deles adotam o discurso de esperar o tempo da criança ou que tal comportamento faz parte da personalidade do filho ou ainda que estaria relacionada aos modelos de educação com muito “mimo”; é possível também observar limitações da avaliação no que se refere a recursos apropriados para cada faixa etária. Considerando que a criança está em fase de 29 desenvolvimento é necessário instrumentos que possam acompanhar as habilidades desenvolvidas em cada fase e tenha o comparativo do que se espera e do que não se desenvolveu. É necessário profissionais treinados e habilitados e serviços especializados para dar suporte ao diagnóstico precoce. Considerar a intervenção precoce importante perpassa por compreender sua dimensão no que se refere a proporcionar na criança um aumento no potencial de desenvolvimento social e na comunicação, reduzir danos no funcionamento intelectual, melhorar a qualidade de vida e estimular a autonomia, e atuar conjuntamente a família que opera no cenário de angustias e incertezas. “Descobertas da Neurociência e as terapias de intervenção precoce podem apresentar resultados de ganhos significativos no desenvolvimento neuropsicomotor das crianças. Quanto mais precoce a detecção das alterações, maior a capacidade de organização neural através da neuroplasticidade e potencial de mielinização cerebral, uma vez que nos primeiros anos de vida que a formação sináptica apresenta maior velocidade e resultados satisfatórios. A estimulação precoce aproveita o período sensitivo determinado pelas janelas de oportunidades no cérebro da criança.” (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019, p. 19) O processo diagnóstico exige olhar para além dos sintomas, exige olhar pro sujeito por trás de todas aquelas queixas. É necessário acessar o sofrimento mental do sujeito e em conjunto de sua família que participa desse processo e dos diversos desafios impostos. É 30 fundamental promover um espaço de acolhimento para minimizar os impactos e proporcionar uma visão evolutiva da sintomatologia e possibilidades de intervenção. O que se encontra de real são pessoas com dificuldades, limitações e sofrimentos e isto que é real. As categorias diagnósticas são norteadoras para o conhecimento das dificuldades, para o desenvolvimento de estratégias que auxiliem estas pessoas a lidarem com suas limitações e construírem adaptações para superar essas dificuldades. 31 2. Avaliação diagnóstica O processo diagnóstico tem por objetivo compreender de forma abrangente e detalhada as dificuldades do sujeito, de forma singular no sentido de como ele se relaciona com essas dificuldades. O resultado é uma narrativa onde relaciona a história de vida, os problemas atuais e possíveis causas – biológicas, psicológicas, sociais - chegando a um agrupamento de sintomas que ajudam a definir uma categoria nosológica. (Brasil, 2015) O processo de avaliação a criança com necessidades especiais vem ganhando mudanças desde os anos 80. Práticas de intervenção precoce tais como abordagem centrada na família, valorização dos contextos de vida da criança e da família e abordagem transdisciplinar ganhou espaço e reconhecimento. (Division for Early Childhood - DEC, 2014). É imprescindível avaliar e conduzir não somente a criança avaliada mais também a família que acompanha esta criança pois ela será a ponte que nos une a criança, ela será o elo que irá conduzir as práticas nos contextos sociais, ela será o apoio a esta criança em seu desenvolvimento. A família é considerada um elemento chave em todo esse processo. Para cada condição e nível do desenvolvimento da criança, a escolha de materiais e estratégias deve ser considerada em função das caraterísticas sensoriais, físicas, comunicativas, culturais, linguísticas, sociais e emocionais da criança. (Reis, Pereira e Almeida, 2016, p.271). Contudo, é preciso ter muita responsabilidade diante de uma avaliação, pois o que se observa através da influência midiática é a transmissão da ilusão de uma simplicidade e objetividade provocando o uso de classificações psiquiátricas como se estas fossem listas de sintomas a serem marcadas para se chegar a um diagnóstico. Um uso distorcido e inadequado de avaliação que provoca consequências de inúmeros diagnósticos errôneos e gerando 32 “epidemias” diagnósticas. É preciso ter muito cuidado ao se avaliar uma queixa, destacandocaracterísticas como frequência, intensidade e duração, assim como observar essa queixa em diferentes contextos e dentro de uma história de desenvolvimento da criança para que se possa ter um olhar completo do impacto e limitações apresentadas. (Brasil, 2015) Entretanto, é importante destacar que as categorias diagnósticas são também utilizadas por planejadores e gestores no campo das políticas públicas e por legisladores. Temos um efeito positivo das categorias diagnósticas, ou seja, do planejamento e organização de serviços voltados ao público específico buscando ofertar possibilidades de ações especificas que abrange as necessidades. Assim, ressalta-se a importância de conscientização do público quanto ao uso das categorias diagnósticas como instrumentos de ação dos profissionais e não para o julgamento das pessoas pela sociedade. O Ministério da Saúde, Brasil (2015), recomenda que “o processo de avaliação diagnóstica deve ser conduzido por uma equipe multidisciplinar que possa estar com a pessoa ou a criança em situações distintas: atendimentos individuais, atendimentos à família, atividades livres e espaços grupais”. (Brasil, 2015, p. 44) A pluralidade de apresentação dos sintomas, a variedade de formas clínicas e/ou comorbidades que podem acometer a pessoa com TEA exigem o encontro de uma diversidade de modelos de avaliação que possam abranger cada momento de exposição da criança nos espaços que ela percorre e diante das pessoas que ela tem contato. Não somente a observação do comportamento isolado se faz necessário. Atividade em grupo possibilita observações de como a criança lida com mudanças, como se relaciona com regras, como se estabelece a socialização. Observando assim os componentes envolvidos ou a 33 ausência deles na interação com pares. (Brasil, 2015). Sabe-se que para o diagnóstico definitivo é necessário que ocorra após os três anos de idade e após um período relativamente longo de avaliação, observação das queixas e confirmação de permanência dos sintomas, entretanto a identificação de risco pode ser feita precocemente. Essa postura e olhar cuidadoso reconhece os sinais de forma precoce auxilia que intervenções que possam estimular áreas já comprometidas já comecem a serem desenvolvidas contribuindo assim para uma melhor desenvolvimentos das habilidades afetadas. (Brasil, 2015). A família precisa ser ativa no processo de avaliação, sua colaboração, o olhar minucioso, as queixas e as dificuldades fazem parte de todo o cenário construindo para lidar com a demanda avaliada. “O envolvimento dos pais na avaliação de desenvolvimento dos seus filhos ajuda a desenvolver as relações com os profissionais promovendo a precisão e a validade preditiva dos resultados”. (Serrano e Pereira, 2011, p. 173). Esse processo de diagnóstico é o momento inicial da construção de um projeto terapêutico, que será alinhavado a partir das características específicas da família e não apenas das dificuldades ou dos sinais psicopatológicos da pessoa em questão. Apresentar algumas características clínicas podem auxiliar as famílias no processo de identificação dos comportamentos e sintomas do TEA. 34 Quadro 1 Características clínicas de crianças com risco para TEA de acordo com Brasil (2015, p. 48) De 6 a 8 meses De 12 a 14 meses Por volta de 18 meses Não apresentam iniciativa em começar, provocar e sustentar interações com os adultos próximos (por exemplo: ausência da relação olho a olho). Não respondem claramente quando são chamadas pelo nome. Não se interessam por jogos de faz-de-conta. Não se interessam pelo prazer que podem provocar no outro. Não demonstram atenção compartilhada. Ausência da fala ou fala sem intenção comunicativa. Silenciamento de suas manifestações vocais, ausência do balbucio, principalmente em resposta ao outro. Ausência do apontar, na intenção de mostrar algo a alguém. Desinteresse por outras crianças: preferem ficar sozinhas e, se ficam sozinhas, não incomodam ninguém. Ausência de movimentos antecipatórios em relação ao outro. Não há ainda as primeiras palavras ou os primeiros esboços são de palavras estranhas. Caso tenham tido o desenvolvimento da fala e interação, podem começar a perder essas aquisições. Não se viram na direção da fala humana a partir dos quatro primeiros meses de vida. Não estranham quem não é da família mais próxima, como se não notassem a diferença. Não imitam pequenos gestos ou brincadeiras. Não se interessam em chamar a atenção das pessoas conhecidas e nem em lhes provocar gracinhas. Já podem ser observados comportamentos repetitivos e interesses restritos e estranhos (por exemplo: por ventiladores, rodas de carrinhos, portas de elevadores). Pode aumentar seu isolamento. A evolução da sintomatologia do TEA durante o desenvolvimento da criança pode auxiliar pais e profissionais a estarem atentos às características que se aproximam de um diagnóstico. Levar conhecimento e informação que auxiliem os pais a estarem atentos a desvios do comportamento que podem sinalizar algum diagnóstico ajuda não somente aos profissionais com informações mais especificas como também a criança, tendo possibilidade de auxílio o mais breve possível. 35 Quadro 2 Evolução da sintomatologia durante o desenvolvimento da criança segundo Ornitz (1983, citado por Leboyer 1995) Recém nascido Parece diferente dos outros bebês Parece não precisar de sua mãe Raramente chora (“um bebê muito comportado”) Torna-se rígido quando é pego no colo Às vezes muito reativo aos elementos e irritável Os seis primeiros meses Não pede nada Sorriso, resmungos, resposta antecipada são ausentes ou retardados Falta de interesse por jogos, muito reativo aos sons De seis a doze meses Não afetuoso Não interessado por jogos sociais Quando é pego no colo, é indiferente ou rígido Ausência de comunicação verbal ou não verbal Hipo ou hiper reativo a estímulos Aversão pela alimentação sólida Etapas do desenvolvimento motor irregulares ou retardadas O segundo e o terceiro ano Indiferente aos contatos sociais Comunica mexendo a mão do adulto O único interesse pelos brinquedos consiste em alinhá-los Intolerância a novidade nos jogos Procura estimulações sensoriais como ranger os dentes, esfregar e arranhar superfícies, fitar fixamente detalhes visuais, olhar mãos em movimento ou objetos com movimento circular Bater palmas, andar na ponta dos pés, balançar a cabeça, girar em torno de si mesmo. O quarto e o quinto ano Ausência de contato visual Jogos: ausência de fantasia, de imaginação, de jogos de representação Linguagem limitada ou ausente – ecolalia- inversão pronominal Anomalias do ritmo do discurso, do tom e das inflexões Resistência às mudanças no ambiente e nas rotinas 36 3 Proposta Terapêutica “Na história da assistência, as crianças com TEA passaram a maior parte do século XX fora do campo da saúde sendo cuidadas pela rede filantrópica” (p. 29). O serviço social era a rede referenciada de cuidado a esse público juntamente com os grupos de famílias de que juntavam pra dar apoio. “Os serviços de saúde eram voltados a psiquiatria e sem articulação em rede como preconizado pela Política Nacional de Saúde Mental”. (Brasil, 2015, p. 29). “Só recentemente que o autismo passou a aparecer oficialmente na agenda política da saúde, a partir de experiências pioneiras como o Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica (NAICAP), surgido em 1991, no Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro; o Centro de Referência à Saúde Mental Infantojuvenil (CERSAMI), inaugurado em 1994, em Betim (MG); e os Centros de Atenção PsicossocialInfantojuvenil (CAPSI) Pequeno Hans e Eliza Santa Roza, surgidos no Rio de Janeiro, respectivamente, em 1998 e 2001”. (Brasil, 2015, p. 29) No âmbito do SUS, a portaria n°336/2002 institui o CAPSi como equipamento direcionado a atenção psicossocial à criança com autismo, não de modo exclusivo mais já conseguimos reconhecer como um passo para o reconhecimento de espaços destinados a ofertar intervenções especializadas e uma porta de acesso a importância da inclusão no âmbito da saúde. (Brasil, 2015) 37 O tratamento da pessoa com TEA deve oferecer recursos que considerem a dimensão social reconhecendo como sujeitos que percorrem espaços e a importância de laços sociais e possibilidades de modos de estar, assim como considerar a dimensão de saúde ampliada reconhecendo os diversos modelos de intervenção direcionado a proporcionar uma melhor qualidade de vida e saúde, promovendo estímulo, tratamento e intervenções direcionadas as variabilidades de sintomas apresentados. Intervenções como terapia ocupacional, fonoaudiologia, equoterapia, musicoterapia, esportes, artes e outros podem contribuir auxiliando em habilidades de comunicação, interação social, expressividade e proporcionar conquistas e avanços em diversas áreas da vida. É possível promover através desses diversos métodos, possibilidades da criança com autismo se desenvolver e sentir-se segura e estimulada. (Mello 2005) A proposta terapêutica deve partir do contexto real do sujeito, das rotinas que ele estabelece, de seu cotidiano, do que ele elege, do que evita, da escuta da família e para que seja possível uma aproximação com a real necessidade da criança, com a real condição da família. Este é um ponto muito importante para que não seja construído projetos terapêuticos com uma distância gigantesca entre o que se é orientado e o que se é possível ser realizado. Compreender a história daquela família pra poder realizar os direcionamentos do tratamento se torna fundamental. Como profissionais, os psicólogos devem ter a sensibilidade de identificar as necessidades da criança como da família. Utilizar suas percepções como parceiros no estabelecimento de laços e vínculos entre paciente e família. Ampliar o olhar pras possibilidades e buscar caminhos de alcançar as metas e progressos. 3.1. Abordagens mais comuns de intervenção na área da Psicologia no Brasil 38 Entre as intervenções mais difundidas dentro da abordagem Comportamental encontramos o ABA, TEACCH, PECS e SON RISE. Elas compõem modelos de atuação voltados a mudança do comportamento. O modelo ABA (Análise do Comportamento Aplicada) é um programa intensivo, aplicado para a mudança de comportamento. “O tratamento envolve o ensino intensivo e individualizado das habilidades necessárias para que a criança possa adquirir independência e a melhor qualidade possível”. Inicialmente as competências e déficits, posteriormente os objetivos propostos a serem alcançados sendo estes definidos junto aos pais com base na habilidade inicial da criança, e em seguida inicia-se a prática sendo algo realizado de forma muito especifica de 1 profissional para 1 criança. (Gonçalves, 2011). O modelo TEACCH (Tratamento e Educação para Autista e Crianças com Déficits relacionados com a Comunicação) é uma proposta educacional com finalidade de construção de um programa de intervenção adaptado as características de aprendizagem específica de cada criança e no meio em que ocorre a aprendizagem. O modelo PECS (Sistema de Comunicação por Troca de Figuras), é uma “técnica baseada em um sistema de comunicação de intercâmbio de imagens, ou seja, é uma” “forma de comunicação aumentativa e alternativa, que utiliza imagens ao invés de palavras para ajudar a criança com autismo a comunicar-se e melhorar a sua interação social”. (Bondy e Frost, 1994). O modelo Son-Rise é baseado em um trio que se direciona a compreensão, comunicação e interação sendo esse o pilar o tratamento. O objetivo é voltado para diminuir a distancia entre o mundo real e o mundo do autista buscando promover espaços de segurança e desenvolvimento. O direcionamento do programa é voltado ao lúdico e a diversão. A 39 condução da intervenção quem irá direcionar será a criança segundo seus interesses e os pais estará ofertando atividades que estimulem suas habilidades. (Gonçalves, 2011). Na abordagem Psicanalítica encontramos o modelo de atuação Floortime que consiste em uma intervenção “destinada ao interesse da criança, através de auxílio ao que ela quer fazer e da colocação de obstáculos que auxiliarão no desenvolvimento”. (Gonçalves, 2011). O referido autor pontua que as crianças com autismo falham nos níveis básicos de desenvolvimento e assim os profissionais e pais iram ajuda-la e encoraja-la a se comunicar por meio da brincadeira e assim ajuda-la a ter acesso a questões básicas para depois ter acesso a outras mais elaboradas. O objetivo é promover habilidades socioemocionais e intelectuais como base para um modo de funcionar saudável. 3.1.1 TEA na abordagem Psicanalítica Segundo Freire e Oliveira (2010) “aprender a partir da psicanálise implica uma relação com o saber, uma relação que assume a falha no saber” (p. 258). Assim, segundo Freud e Lacan referenciado pelas autoras inferem que “no lugar do não saber questiona-se: o que a clínica do autismo pode nos ensinar e como, por meio dela, se pode questionar a teoria”? (p. 258). É preciso se colocar no lugar do não saber para estar aberto aos saberes que podemos aprender e apreender. “Esses pacientes ensinam que qualquer saber universitário que se quer totalizante, global e à priori é, no mínimo, vão” (Freire e Oliveira, 2010, p. 258), ou seja, um saber que o enquadre em algo é em vão, pois não cria possibilidades. A pesquisa em psicanálise propõe “aprender com os impasses, alargar sem perder a precisão e o rigor, para que um saber-fazer possa ser construído a partir das intervenções. O autismo faz questionar os conceitos que se 40 acreditavam estar sedimentados e adquiridos” (p. 258). As autores trazem falas de Lacan quando colocam que “os autistas „articulam‟ muitas coisas, porém, cabe-se verificar o que eles articulam” (p. 259). Acompanhando-os em suas construções, muitas vezes aparentemente sem sentido, a proposta é de que os envolvidos devam estar presentes e abertos para assim, possibilitar o direcionamento do tratamento através da escuta das criações e invenções apontadas e afloradas no contexto. Merlleti (2018) aponta para uma realidade contemporânea de discurso técnico- científico onde a criança é colocada como “objeto descritível, previsível, adaptável e controlável” (p. 146), ou seja, objetalizando a criança. Profissionais da infância que aderem a esse mandato social acabam por classificá-las e normatizá-las, colocando-as em uma posição de puro objeto, dificultando a relação, ocasionando que a posição de sujeito e do laço com o outro encontrem dificuldades para operar. Segundo a autora, “o profissional que se dedica a atender essa demanda não pode estar alienado dessa discursividade social que aprisiona a criança em determinados lugares” (p. 146). É preciso abster-se de verdades absolutas e fechadas em si sobre o que vem a ser a infância e se colocar no caminho de construção, abertura e acolhimento para o que aquela criança vem a ser, para o que aquela criança representa para cada pai e para cada mãe e a partir dai criar possibilidades, ensinamentos, orientações, cuidados e formas de se relacionar. O que se propõe segundo Merlleti (2018) é sair da visão de autismo de acordo com o grau de intensidade e reconhecer o sujeito em sofrimento, sua história e forma de estar presente no mundo e através desse olhar singular possibilitar o encontro com o outro. Contribuições de Kupfer (2002) trazidas por Marlleti (2018) aponta que “acriança autista tem um querer, mas trata-se de um querer que não se exerce no campo do Outro, marcado pelo desejo do Outro: sua lógica liga-se a uma certa conservação do eu” (p. 147). 41 Desse modo pode-se compreender que o estado autístico implica em um comportamento não direcionado ao outro, é comparado a um enigma o que para muitos pais torna-se indecifrável e inacessível e por muitas vezes paralisante. É preciso e necessário reendereçar estes pais ao lugar de um saber sobre a criança, lugar que sustente uma falta de saber mais que não aprisione as duvidas e inquietações que possam ter sobre sua criança. Um lugar que permita que suas angustias possam fluir e que possa haver uma construção de conhecimento sobre o outro, uma descoberta, um decifrar desse enigma e assim criar um espaço relacional. A pretensão é direcionar estes pais pelos caminhos dos instintos e vínculos permitindo que aflorem as dúvidas e inquietações e que estas os conduzam aos desejos de serem pais e que na busca por satisfazê-los seja possível encontrar os caminhos de vinculação com sua criança e o que se observa com tudo isso é uma “nova” psicanálise que coloca esses pais no processo de cuidar. Cabe aqui inferir que a função educativa segundo Freud (1937/1976 apud Merlleti, 2018) opera como transmissora de marcas simbólicas de humanização, sustentadas por um desejo, pela filiação e pertencimento, ou seja, através do desejo de vinculação, estes vão se descobrindo enquanto pais e se construindo na relação com sua criança autista e estabelecendo modos de compreender seu mundo e de se relacionar. A relação entre pais e filhos passa-se a ser pensada com muito mais complexidade e interdependência e se observa o rompimento das ideias iniciais da psiquiatria de Kanner onde as mães eram responsabilizadas como parte do quadro de seus filhos. Elas agora passam a ser parte fundamental e estrutural da constituição do sujeito. (Merlleti, 2018) É necessário que os pais façam parte do tratamento, é necessário reconhecer o discurso que eles desenvolvem sobre seus filhos. Discurso esse que chega carregado de extrema angústia e desamparo. É preciso acolher o mal estar, buscando apoiá-los em seus papéis, pois o diagnóstico compromete justamente o diálogo, a relação e o vínculo que esta pra se 42 estabelecer. Refere-se a acolher criança e família não pela legitimidade imposta pelo diagnóstico mais por uma posição profissional ética que busca integrar a família com co- responsabilização social no processo de cuidado e integração da criança no social. (Merlleti. 2018) Compreendendo o autismo na perspectiva do fechamento, caracterizado por seus movimentos estereotipados e a ausência de comunicação, é necessário pensar em estratégias que viabilizem a aquisição de novas capacidades psíquicas e assim, proporcionar o seguimento de uma abertura em direção ao laço social e o abandono parcial desse fechamento e de relação exclusiva com objetos para assim se direcionar a relação com o outro. (Bialer,2014) Souza, Tavares, Vasques et all (2019) trazem contribuições significativas de Kupfer e Petri ao expor suas ideias sobre a importância do laço social como estruturante na constituição do sujeito. Se a criança autista não consegue alcançar a relação com o outro então buscar recursos e possibilidades para que o simbólico possa se expressar é redirecionar a criança a sua constituição como sujeito através desse laço social. (Kupfer e Petri, 2000,) Maleval (2009) traz contribuições reforçando a “importância do ensino de estratégias para flexibilizar os estados de fechamento ou encapsulamento nos quais o acesso ao funcionamento psíquico é tão difícil”. Gomes (2007) reforça trazendo a relevância do ensino de estratégias que auxiliem ao autista na organização de sua intencionalidade e consequentemente operacionalização do seu pensamento/desejo. Pode-se pensar no autista, segundo Bialer (2014) por palavras autobiografadas de Naoki, escritor autista japonês como “alguém que não tem habilidades enunciativas para falar e que tem um corpo desconectado da mente, 43 não conseguindo expressar de maneira apropriada o que sente, e em decorrência destas características, para o autista, sobreviver é uma batalha diária em um mundo vivido como pouco compreensivo para as nuanças do funcionamento autístico”. (Bialer, 2014, p. 647) Expressar sentimentos ou ser obrigado a tomar a palavra para dizer algo demandado por outra pessoa exige um esforço as vezes insuportável. Partindo de ideias de Souza, Tavares e Vasques et al (2019) “o sujeito humano se constitui, essencialmente, no encontro com o outro” (p. 33). A perspectiva da psicanálise lacaniana propõe relacionar a subjetividade construída a partir da linguagem. Compreender essa relação dentro do cenário de autismo é relacionar o sujeito ao ato de se comunicar, de expressar seu desejo e dessa forma expor sua ligação com o meio simbólico. Segundo Bernardino (2011) “a entrada do infans na estrutura simbólica é a condição necessária para que este possa habitar o mundo humano e tornar-se sujeito. A constituição subjetiva na apropriação progressiva disto que vem do Outro”. É possível criar um espaço de interpretação, emprestar a voz e atribuir sentido ao comportamento da criança, promovendo uma intervenção chamada de verbal onde o terapeuta fala sobre as ações da criança como uma forma de expressar um possível desejo e dessa maneira possibilitar um possível desejo de permanecer no ato. Uma outra possibilidade apontada por Mannoni é a terapia negativa que consistem em abster-se de qualquer intervenção programada e se colocar na posição de escuta e observação, ou seja, não forçar a aceitação da própria presença e apenas gradualmente ir se colocando na relação. (Mannoni, 1976, apud Mesquita & Martins, 2018,) 44 As autoras acreditam que não se pode reduzir, banalizar ou diminuir o reconhecimento dado as formas de manifestação da criança. É necessário recursos pra suportar até as expressões mais difíceis. “Tudo é tomado como sintoma no sentido psicanalítico, ou seja, outra maneira de dizer algo que não pode ser dito através de palavras”. Mesquita e Martins (2018) citam contribuições de Maleval que expõe que o autista irá apresentar diversas reações de como lidar com o sentimento de estranheza e invasão que o externo provoca sendo estas reações muitas vezes através da recusa do contato visual e tátil, e como busca de segurança e controle desses estímulos desconfortáveis o autista se fecha em seu isolamento. (Maleval, 2009) É preciso reconhecer toda forma de comunicação e expressão. Segundo Bialer (2014) “os comportamentos obsessivos e as estereotipias são modalidades de relação com o mundo externo” (p. 649) criando barreiras de proteção e distanciamento dos estímulos externos que lhe são desorganizadores. É preciso reconhecer nesses comportamentos estereotipados sua função: proteção da presença do outro, recuperação de uma situação angustiante e um modo de relação com a linguagem. “As intervenções „envolvem‟ e dão-lhe um „banho de linguagem‟. É neste momento que se dá espaço para o nascimento de uma psique, onde palavras são introduzidas para dar sentido a um comportamento”. (Mesquita e Martins, 2018, p. 67). O trabalho em rede como aponta Kupfer e Voltolini (2017) se torna necessário não somente pelas necessidades e comprometimentos da criança autista, mas pelo fato de que estas pessoas em rede e com seus diversos olhares podem constituir um apoio e direcionamento ao processo de simbolização dessa criança, auxiliam na constituição desse sujeito. O que se pretende diante de tudo que já foi exposto é retirar as crianças autistas ou em desarmonia do desenvolvimento do lugar de exclusão a qual fizeram parte até o fim do século 45 XX. É necessário acolher com a mesmasensibilidade e engajamento as crianças com graves atrasos no desenvolvimento psíquico, pensar práticas de ensino voltadas a inclusão onde o apoio escolar varia de acordo com a necessidade de cada uma, promovendo integração, percepção de potencial e reconhecimento dos desejos. É necessário promover espaços no social para que a criança autista não fique aprisionada em sua psique. “É preciso abster-se do diagnóstico e enxergar o individuo com suas potencialidades a fim de colocar em movimento aquilo que as etiquetas psiquiátricas cristalizam no sujeito, provocando sua exclusão e dessubjetivação” (Mesquita e Martins, 2018, p 65) 3.1.1.2 A criança autista e sua relação com o objeto para a psicanálise Segundo Lucero e Vorcaro (2015), os objetos e a relação que se estabelece com eles participam da construção do ser humano, e no caso do autismo esta relação se torna ainda mais importante pois constitui referencial para o diagnostico diferencial da psicopatologia. “Toda criança necessita de “referentes materiais” para criar suas fantasias, de modo que elas atuam em suas brincadeiras” (Maleval, 2009b), e com autistas os elementos concretos tornam- se referencias organizadores para o seu mundo. A noção de objeto autístico apareceu nos anos 70 com Frances Tustin que afirmava que as “crianças autistas só poderiam ter seu universo subjetivo sustentado e estruturado pela presença de objetos reais” (Bonnat, 2008 apud Lucero e Vorcaro, 2015, p. 315), é uma “manobra” de se apoiar nesse objeto para manter o outro à distância. Segundo Laurent (2007) “o autista mantém com esse objeto uma relação de re- localização incessante, uma tentativa de situar-se. É através deste objeto que o autista pode se apegar ao outro da linguagem”, ou seja, seu elo de ligação com esse outro é por meio do 46 objeto, é como se este objeto estivesse sendo “um escudo protetor” contra a “invasão” sentida pelo autista diante da presença do outro. Sendo assim, quando retiramos este objeto do autista ele grita, esperneia e chora, pois foi retirado sua proteção e seu meio de “interação”. Tustin (1975 [1972]) “define os objetos autísticos como partes do corpo da própria criança ou partes do mundo externo experimentados por elas como partes de si mesma. Ele consiste em neutralizar toda e qualquer percepção da existência de um „não-eu‟”. De acordo com Freud (2007 [1925]), “O „eu‟ e o „não eu‟ devem ser entendidos respectivamente como „eu prazer‟ – que obedece ao princípio do prazer e que resulta no gozo- e o „não eu‟ como tudo aquilo que vem de fora, que interrompe a homeostase e que o “eu” tende a expulsar”. (Lucero e Vorcaro, 2015, p. 313) “Cumprindo sua função de diminuir a tensão, o objeto obedece ao princípio do prazer” (Lucero e Vorcaro, 2015). Para Lacan (1979 [1964]) esse principio do prazer se apresenta no autismo no momento em que eles utilizam os objetos como partes do corpo e assim se satisfazem. Existe a presença de pulsão e desejo no corpo do autista, porém há também a dificuldade em direciona-la ao exterior e construir uma relação de troca com o meio para satisfazer as necessidades e dessa forma os objetos ocupam esse lugar e recebem o investimento pulsional de forma autoerótica e assim cumprem a função de intermédio com a realidade. (Lucero e Vorcaro, 2015) Além do princípio do prazer, Lacan destaca o gozo. “O gozo autístico (satisfação do desejo), deve ser tratado para que o que liga o ser a realidade possa operar”. Diante da dificuldade de ligação e conexão com o externo a criança utiliza o objeto autistico como uma forma de “esquecer” a existência desse externo, e eles acabam por compensar os sentimentos de frustação e desconexão utilizando-os como objetos de seus desejos. (Lucero e Vorcaro, 2015, p. 312) 47 O que mais se destaca entre as características do autismo é de fato as relações sociais e a dificuldade de interação, o que leva muitos observadores da infância, como aponta Lucero e Vorcaro (2015) a dizerem que “os autistas se fecham em si mesmos, sem se importarem com a realidade que os cerca. É como se elas tivessem um “si mesmo”, um “eu” constituído dentro do qual se fecham” (p. 310). Esse fechamento é compreendido por Maleval (2009), como fazendo parte do entendimento de que “o corpo do autista é invadido por um pleno gozo e as sinestesias tão comuns aos autistas parecem resultar de um transbordamento dos limites do gozo”, ou seja, não se constitui somente um isolamento do externo mais também uma conexão profunda com o gozo interno e as experiências que ele provoca. Através do objeto é possível ao profissional buscar criar uma conexão. Este pode se colocar na busca por vinculação com o objeto manipulado pelo autista e assim construir um caminho de acesso a criança e ao mesmo tempo não causa incomodo por ser um “estranho” adentrando seu mundo. Lucero e Vorcaro (2015) apontam que “o diálogo inicial pode ocorrer com o objeto e conforme a criança suporta esse diálogo e o investimento pulsional do analista no objeto, pode-se abrir espaço para um jogo” (p. 316). Para tanto é necessário sensibilidade do analista para buscar o melhor caminho a se construir, podendo ser por desenho, contação de história, despertando na criança um interesse e permitindo que ela se desprenda do objeto e possibilite ao analista segurá-lo e, enfim, inseri-lo na troca pulsional. (Lucero e Vorcaro, 2015) A aposta da psicanálise para o tratamento com crianças autistas, consiste em se utilizar dos objetos como forma de estabelecer uma relação. O objetivo principal é romper as defesas que o sujeito estruturou e buscar acesso ao seu universo. (Lucero e Vorcaro, 2015) Um dos princípios teóricos-clínicos nas ações com uma criança autista na psicanálise segundo Tafuri (2000), é “encontrar significados nas ações de uma criança, mesmo quando 48 ela não fala e não brinca e a interpretá-los” (p. 123). Os princípios da interpretação aparecem bem claros nas referências de Melanie Klein (1930) no caso Dick, em Frances Tustin (1972), no caso John e em Laznik Penot (1997) no caso Halil. Essas analistas encontram sentido e interpretam toda a produção e reprodução de gestos e comportamentos de uma criança autista, nada passa despercebido, tudo se torna conteúdo de significado. Estas interpretações cumprem seu papel de criar uma relação transferência com as crianças. “O pequeno Dick de Klein, não brincava nem tinha capacidade para se expressar verbalmente e assim o material para análise deveria ser extraído do simbolismo revelado por detalhes de seu comportamento” Tafuri (2000, p. 124). Klein enfatizava que através da interpretação do simbólico era possível acessar o inconsciente. “Um dos primeiros efeitos da interpretação no tratamento seria o alívio da angústia e o aparecimento das fantasias, que conduzem a novas angústias a serem interpretadas” Tafuri (2000, p. 125). O jogo simbólico nesse contexto surge como possibilidade de relação. O analista faz ofertas buscando propiciar uma relação transferencial com o paciente. Tafuri (2000) O referido autor com contribuições das ideias de Francis Tustin reafirma o principal posicionamento e maior desafio da psicanálise que será retirar a criança do isolamento, nessa busca o caminho será interpretar a relação transferencial criada com os objetos e assim acessar o mundo interno construído pelo autista e buscar interpretar seus desejos intenções. Tafuri (2000) Enquanto para Tustin seu princípio teórico-clínico norteador era a “interpretação das figuras e objetos autistias”, Klein se utilizava da “interpretação do jogo”, porém ambas concordavam na necessidade da criação da relação transferencial pela interpretação, ou seja, conferir sentido aos comportamentos. (Tafuri, 2000) 49 Penot, trouxe a noção de tradução, no lugar da “interpretação do jogo” de Klein e da “interpretação das figuras
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