Buscar

AtuacaoPalhacasPalhacos-Brum-2017

Prévia do material em texto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS 
 
 
 
 
 
 
 
 
DAIANI CEZIMBRA SEVERO 
ROSSINI BRUM 
 
A ATUAÇÃO DE PALHAÇAS E 
PALHAÇOS: o hospital como palco de 
encontros 
 
 
 
 
 
 
 
NATAL/RN 
2017 
 
 
 
 
DAIANI CEZIMBRA SEVERO ROSSINI BRUM 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A ATUAÇÃO DE PALHAÇAS E PALHAÇOS: o hospital como palco de 
encontros 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de 
Pós-Graduação em Artes Cênicas da 
Universidade Federal do Rio Grande do 
Norte como requisito para obtenção do grau 
de Mestre em Artes Cênicas. 
 
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karenine de 
Oliveira Porpino. 
 
 
 
 
 
 
NATAL/RN 
2017 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN 
Sistema de Bibliotecas - SISBI 
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART 
 
 Brum, Daiani Cezimbra Severo Rossini. 
 A atuação de palhaças e palhaços: o hospital como palco de 
encontros / Daiani Cezimbra Severo Rossini Brum. - Natal, 2017. 
 137f.: il. 
 
 Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de 
Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em 
Artes Cênicas. 
 Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira Porpino. 
 
 
 1. Atuação Cênica - Hospitais. 2. Teatro. 3. Risoterapia. I. 
Porpino, Karenine de Oliveira. II. Título. 
 
RN/UF/BS-DEART CDU 792.02 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 A soma de experiências, saberes, dizeres, ações e corações de muitas pessoas foi 
fundamental na composição deste trabalho. Gostaria de destacar minha gratidão a Luiz 
Inácio Lula da Silva e a Dilma Vana Rousseff. A partir das iniciativas tomadas por 
ambos e através de muita luta, tive condições de subverter as limitações impostas pela 
minha condição social e aqui apresentar essa pesquisa. 
 Sou grata à minha mãe, Janete Cezimbra Severo, e ao meu irmão, Matheus 
Cezimbra Severo, queridos parceiros de jornada; assim como à companheira amada, 
Flávia Maiara Lima Fagundes. Agradeço ao meu pai, Paulo Rossini Brum e família, 
pelo apoio. Simone Cezimbra Severo, Martina Cezimbra Pereira e Schu Pereira: 
agradeço-lhes pelas acolhidas e visitas. Tenho profundo agradecimento pelo meu 
encontro com a Tainar Gavião Leal e com o Peterson Gavião Leal, com a Édna Gavião, 
com o Paulo Leal, com a Raíne Gavião Pereira e com a Luna Leal Barbosa, família 
amorosa, amiga e de costumeiros braços abertos. Obrigada aos irmãos do Teatro Porque 
Não? pelas experiências compartilhadas na amizade e na entrega para o Teatro. 
 Sou grata também à ONG Esparatrapo, em especial à Kelly Lima, à Camila 
Tiago e ao Xavier Ruiz, com os quais pude atuar nos palcos hospitalares, assim como à 
Inaiá Correa, que neles nos recebeu; à Renata Marques, pela importante recepção em 
Natal; à ONG Doutores da Alegria, sobretudo ao Wellington Nogueira, por receber esta 
pesquisa; aos professores, funcionários e colegas envolvidos no PFPJ5, pelas vivências 
intensas; aos entrevistados e entrevistadas pela disponibilidade em colaborar com a 
pesquisa. Obrigada também à turma de mestrado pela parceria constante nos “aperreios” 
e nos festejos. 
Agradeço à Gabriela Amado e à Mariane Magno pelo profissionalismo na 
orientação de pesquisas anteriores; à orientadora deste trabalho, Karenine Porpino, pela 
sensibilidade, paciência e liberdade com que me recebeu; ao professor Robson 
Haderchpek pela abertura e empenho; à professora Márcia Strazzacappa pela 
disponibilidade e pelas suas contribuições. Agradeço ao Fundo de Apoio à Pesquisa do 
Rio Grande do Norte (FAPERN) pela importante bolsa de mestrado e à Marina 
Zampirolo por tecer os detalhes finais deste trabalho. Por fim, aos encontros, pois “Cada 
ser é só, e ninguém pode dispensar os outros, não apenas por sua utilidade - que não está 
em questão aqui -, mas para a sua felicidade.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 50). 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Existe uma vitalidade, uma força vital, 
uma energia, uma vivacidade que é 
traduzida em ação por seu intermédio, e 
como em todos os tempos só existiu uma 
pessoa como você, esta expressão é 
única. Se você a bloquear, ela jamais 
voltará a se manifestar por intermédio 
de qualquer outra pessoa, e se perderá. 
 
(Martha Graham) 
 
 
 
 
 RESUMO 
 
O presente trabalho trata-se de uma investigação em Artes Cênicas que teve 
como mote algumas inquietações pessoais da autora ao atuar como palhaça em hospitais 
de São Paulo e de Natal. A partir dessa experiência profissional, identificou-se que há 
peculiaridades no trabalho de atriz e de palhaça próprias aos diferentes espaços da 
sociedade. No contexto aqui pesquisado, destaca-se a necessidade que as figuras 
palhacescas têm de engendrar uma abertura em que possam se relacionar com os seres e 
com os acontecimentos do espaço e do tempo hospitalares. Por isso, pergunta-se: com 
base na experiência de profissionais palhaças e palhaços que atuam em contextos 
hospitalares, quais são os principais aspectos a serem considerados na atuação nesses 
espaços? No intuito de responder a essa questão, objetiva-se investigar a atuação de 
palhaças e palhaços em palcos hospitalares, contextualizando, para isso, tal atuação no 
âmbito das práticas cênicas. Além disso, a partir da descrição de experiências nos 
campos hospitalares, pretende-se identificar os principais aspectos que configuram essas 
vivências artísticas em contato com o cotidiano do hospital. Com base numa 
metodologia fenomenológica fundamentada em Merleau-Ponty (2006; 2007; 2011), 
buscou-se dialogar com experiências palhacescas hospitalares através de entrevistas 
realizadas com sete membros da Organização Não Governamental (ONG) Doutores da 
Alegria, bem como com o palhaço Ésio Magalhães, que fez parte do elenco da ONG até 
o ano de 2003. Como resultados desta pesquisa propõe-se a discussão sobre o jogo 
cênico a partir da mescla das técnicas de treinamento pessoal e das sensibilidades de 
cada artista, como também a atuação palhacesca no hospital como geradora de 
experiências de encontros teatrais. Para tanto o referencial teórico abrange a 
Fenomenologia de Merleau-Ponty (2006; 2007; 2011), o conceito de Jogo colocado por 
Huizinga (2014) e os estudos brasileiros sobre o riso, o cômico e a palhacaria, tais como 
os de Burnier (2001), Viveiros de Castro (2005), Bolognesi (2006), Kásper (2004), Wuo 
(1999; 2011) e Sacchet (2009). 
 
Palavras-Chave: Atuação Cênica. Teatro. Palhaçaria Hospitalar. Encontro. 
Fenomenologia. 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
 This work is an investigation in Scenic Arts that had as motto some personal 
concerns of the author when acting as a clown in hospitals of São Paulo and Natal. 
From this professional experience, it has been identified that there are peculiarities in 
the work of actress and clown in different spaces of the society. In the context 
researched here, it is emphasized the need for the clowns to have to engender an 
opening in which they can relate to beings and to the events of space and hospital time. 
Therefore, it is asked: based on the experience of professional clowns who work in 
hospital settings, what are the main aspects to be considered in acting in these spaces? 
In order to answer these questions, the objective is to investigate the performance of 
clowns in hospitals, contextualizing, for this, such action within the framework of 
scenic practices. In addition, from the description of experiences in the hospital fields, 
we intend to identify the main aspects that configure these artistic experiences in contact 
with the daily life of the hospital. Based on a phenomenological methodology based on 
Merleau-Ponty (2006, 2007,2011), we sought to dialogue with hospital clownings 
experiences through interviews with seven members of the Non-Governmental 
Organization (NGOs) Doutores da Alegria, as well as the clown Ésio Magalhães, who 
was part of the NGO's cast until the year 2003. As a result of this research, we propose 
to discuss the scenic play based on the mixture of personal training techniques and the 
sensibilities of each artist, as well as the performance of clown in the hospital as 
experiences of theatrical meetings. In order to do so, the theoretical reference covers the 
Merleau-Ponty Phenomenology (2006, 2007, 2011), the play concept posed by 
Huizinga (2014) and the Brazilian studies on laughter, comics and palhacaria, such as 
Burnier 2001), Viveiros de Castro (2005), Bolognesi (2006), Kásper (2004), Wuo 
(1999; 2011) and Sacchet (2009). 
 
Key-words: Acting Scenic. Theater. Hospital Clowning. Meeting. Phenomenology. 
 
 
 
 
LISTA DE IMAGENS 
 
Figura 1 - Palhaça Brum (Daiani Brum) desenhada. ............................................................... 13 
Figura 2 - Corrida de cadeiras com Doutor Lui (Luciano Pontes). ......................................... 29 
Figura 3 - Espetáculo O Não Lugar de Ágada Tchainik, ........................................................ 34 
Figura 4 - Palhaço circense Chicharrão, José Carlos Queirollo .............................................. 34 
Figura 5 - Joseph Grimaldi ...................................................................................................... 41 
Figura 6 - Espetáculo Zabobrim, o rei palhaço, do Barracão Teatro. ..................................... 45 
Figura 7 - Bess, o deus da alegria. ........................................................................................... 54 
Figura 8 - Doutoras Juca Pinduca (Juliana Gontijo) e Greta Garboreta (Sueli Andrade). ...... 66 
Figura 9 - PFPJ 5. .................................................................................................................... 72 
Figura 10 - Doutora Xaveco Fritza (Val de Carvalho) pegando na mão de um bebê. ............ 76 
Figura 11 - Doutora Lola (Luciana Viacava) no corredor hospitalar. ..................................... 90 
Figura 12 - Doutores Dud Grud (Eduardo Filho) e Eu_Zébio (Fábio Caio). .......................... 99 
Figura 13 - Aroldo, o porta-soro, e os Doutores Dus Cuais Carigudum (Henrique 
Rímoli) e Sandoval (Sandro Fontes). ..................................................................................... 113 
Figura 14 - Doutora Brum (2013). ........................................................................................ 121 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10 
 
2 PALHAÇAS E PALHAÇOS: RISOS COLETIVOS.......................................... 23 
 
3 PALCOS HOSPITALARES............................................................................... 51 
 
4 CAMPO DE EXPERIÊNCIAS............................................................................. 
4.1 JOGO DE TÉCNICAS E SENSIBILIDADES..................................................... 
4.2 ENCONTROS TEATRAIS................................................................................... 
77 
85 
103 
 
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 118 
 
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 123 
 
APÊNDICES.............................................................................................................. 
APÊNDICE A - LISTA DE FILMES........................................................................ 
 
ANEXOS..................................................................................................................... 
ANEXO 1 - CARTA PARA OS DOUTORES DA ALEGRIA................................ 
ANEXO 2 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO.......... 
ANEXO 3 – EDITAL PFPJ....................................................................................... 
 
130 
130 
 
132 
132 
133 
135 
 
 
 
 
 
11 
 
 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos 
anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão. Somos, 
enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não 
é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa 
síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu 
creio (GALEANO, 2015, p. 123). 
 
Contraditória como o ser humano, que transita entre o profano e o sagrado, a fé na 
mutabilidade da existência descrita por Galeano, pode ser digna de confiança. Aqui 
contextualizada, essa fé acolheu incalculável soma de horas em desassossegos, 
rascunhos, sonhos acordados, desacertos, recomeços. Em meio a contradições 
inconstantes e descobertas, imergi no processo desta pesquisa. Com imensa alegria, 
apresento aqui o fruto de uma jornada intensiva, tecido por constantes atos de 
reinvenção e produto de investigações, práticas, reflexões e diálogos sobre a atuação 
cênica de palhaças e palhaços
1
 em palcos hospitalares. 
Contemporâneos espaços de atuação, esses palcos fornecem material para uma 
discussão sobre novos pressupostos do ponto de vista da performance palhacesca, desta 
feita voltada para o jogo com os novos tempo e espaço em que se estabelecem e para 
com os seres que nesses ambientes habitam. Nos palcos hospitalares, os espectadores 
não são o público decidido a ir ao teatro ou ao circo para assistir aos gracejos das 
figuras palhacescas, como ocorre corriqueiramente. A plateia desses espaços é 
composta, na maioria dos casos observados nesta pesquisa, por crianças hospitalizadas, 
seus acompanhantes, equipe médica e funcionários do hospital, que muitas vezes 
vivenciam situações delicadas e extremas, que podem envolver a vida e a morte. 
A permeabilidade para com o encontro, assim, faz-se fundamental, pois o foco 
desse público tão específico está normalmente voltado à interação com a doença e com 
o cuidado. Parto, nesse sentido, da seguinte afirmação do encenador polonês Jerzy 
Grotowski: “A essência do teatro é o encontro.” (GROTOWSKI, 2011, p. 44). Na 
especificidade teatral manifesta no contexto hospitalar, os encontros significam uma 
 
1
 No primeiro capítulo deste trabalho a discussão tem início no entorno das palavras palhaça e palhaço, 
sendo que por ora compreende-se que tais seres são aqueles que exercem o oficio cômico regularmente a 
partir de pesquisas e práticas que desenvolvam uma atitude de jogo cênico; de autonomia do ponto de 
vista criativo e de treinamento pessoal e de abertura para a alteridade. Independentemente das técnicas 
empregadas, opções estéticas ou espaços de atuação, entende-se o trabalho palhacesco como aquele que 
soma saberes e vivências que compõem, ao longo dos anos, as características pessoais de cada palhaça ou 
palhaço. 
12 
 
 
 
possibilidade de deixar-se afetar pelo outro, pelos seus dramas e suas proposições 
cotidianas: constitui-se uma zona de convergência entre a arte e a natureza da vida. 
Nos espaços hospitalares, fui acolhida como artista e pesquisadora através do 
contato com a ONG Esparatrapo
2
, no ano de 2013. O encontro com a ONG, além de 
trazer experiências de atuação contínua como palhaça no contexto hospitalar, levou-me 
a viajar pelo nordeste brasileiro em 2014, onde pude, após percorrer dez cidades 
atuando como palhaça em hospitais e escolas, fundar e manter atividades contínuas por 
todo um ano, em 2015, na unidade da Esparatrapo em Natal (RN). 
 Anteriormente ao processo vivido com a ONG Esparatrapo, obtive formação na 
arte da palhaçaria junto à Organização Não Governamental Doutores da Alegria, 
importantegrupo de palhaças e palhaços que atuam em contextos hospitalares, e que ao 
longo de vinte e cinco anos destaca-se por realizar ações artísticas, de pesquisa e de 
formação no campo das Artes Cênicas, dentro e fora dos contextos hospitalares. A 
jornada de estudos da qual participei como aluna trata-se do Programa de Formação de 
Palhaços para Jovens (PFPJ)
3
 dos Doutores da Alegria. 
 A investigação proposta nesta pesquisa, assim, não se aparta de minhas 
anteriores travessias investigativas, mas decorre de seus fluxos. Experiências vividas 
como estudante, atriz, palhaça, e especialmente como palhaça contextualizada no 
hospital apresentam-se aqui como perspectivas sobre o fenômeno investigado. 
 Nestas páginas, compartilho alguns resquícios de vivências palhacescas 
referentes aos encontros ocorridos em contextos hospitalares. Esses vestígios, ora mais, 
ora menos palpáveis, são meus e de outras palhaças e palhaços que nos palcos 
hospitalares se estabeleceram compondo múltiplas sensibilidades e experiências. Em 
meio a esses fragmentos figuram fotografias, descrições de experiências e outras 
recordações, como por exemplo, o retrato da Doutora Brum
4
, que foi desenhado a partir 
 
2
 A ONG Esparatapo atuou entre 2006 e 2015 no estado de São Paulo (SP) e no ano de 2015 em Natal 
(RN), ano em que se encerraram suas atividades nacionalmente. Composta por palhaças e palhaços 
profissionais, a organização surgiu, assim como diversas outras iniciativas no Brasil, através do campo 
aberto pelos Doutores da Alegria. 
3
 O PFPJ foi criado em 2004 e mantém as suas atividades até os dias de hoje, formando a cada dois anos 
25 palhaços que ingressam com idade entre 17 e 23 anos no grupo. Esses jovens vivenciam quatro horas 
diárias de aulas ao longo de dois anos, sob a condução de artistas dos Doutores da Alegria e de 
profissionais convidados, totalizando mais de 1650 horas de aula. O curso não tem por objetivo formar 
artistas que atuem apenas no âmbito hospitalar, mas sim em diversos espaços da sociedade. 
4
 O retrato foi desenhado em 2015 por um menino de cerca de nove anos, hospitalizado no Hospital 
Infantil Varela Santiago de Natal (RN). 
13 
 
 
 
de seu característico procedimento do chá flutuante, forte aliado no tratamento de 
“hipnose boboterápica”: 
 
 Figura 1 - Palhaça Brum (Daiani Brum) desenhada. 
 
 Fonte: acervo da pesquisadora. 
 
O procedimento de “hipnose boboterápica”, frequentemente aplicado ao autor do 
desenho acima, diz respeito à realização de um momento de concentração em que a 
palhaça realiza um procedimento de ilusionismo que tem por objetivo fixar a atenção 
dos espectadores. Curiosos com o funcionamento do “chá mágico”, os espectadores 
14 
 
 
 
ficam como que hipnotizados. Ao final do procedimento, na maioria dos casos 
observados, as crianças agitam-se, tentando desvendar o mistério, mas basta voltar o 
ilusionismo para que elas retornem instantaneamente ao estado de concentração. Por ter 
ficado marcado na memória do espectador, o tratamento de “hipnose boboterápica” foi 
retratado. Outros encontros igualmente carregados de sensibilidade e prolongados pela 
convivência se entrepuseram nesses caminhos, sendo que os resquícios da maioria deles 
se encontram perpetuados na memória daqueles que os vivenciaram. 
Ao atravessar intenso processo de formação na área de palhaçaria e atuar 
profissionalmente como palhaça em hospitais do Brasil, sobretudo em São Paulo e 
Natal, vivenciei experiências que me permitiram identificar peculiaridades desse espaço 
de atuação palhacesca em relação a outros. Dentre elas, está o encontro entre artistas e 
público, que se faz de maneira singular, agregando novas significações às figuras 
palhacescas e aos contextos hospitalares. 
Desse modo, este trabalho tem por objetivo investigar a atuação de palhaças e 
palhaços em palcos hospitalares. Para tanto, buscamos contextualizar a atuação 
palhacesca no âmbito das práticas cênicas, bem como descrever experiências de atuação 
nos campos hospitalares e identificar os principais aspectos que configuram essas 
vivências artísticas em contato com o cotidiano do hospital. 
Tendo isso em vista, pergunta-se: comparado aos demais âmbitos de atuação 
palhacesca, quais são as principais peculiaridades do hospital? Com base na experiência 
de profissionais palhaças e palhaços que atuam em contextos hospitalares, quais são os 
principais aspectos da atuação nesse espaço e nesse tempo de atuação? 
No intuito de responder a essas questões, valho-me de referencial teórico 
composto pela Fenomenologia de Merleau-Ponty (2006; 2007; 2011), pelo conceito de 
jogo proposto por Huizinga (2014) e pelos estudos brasileiros sobre o riso, o cômico e a 
palhaçaria elaborados por Burnier (2001), Viveiros de Castro (2005), Bolognesi (2006), 
Kásper (2004), Wuo (1999; 2011) e Sacchet (2009). 
Ao mergulhar nos processos de pesquisa prática e teórica na área da palhaçaria 
contextualizada ao hospital, deparei-me com um alto contingente de memórias, 
experiências, encontros e sensibilidades, porém com baixos registros de estudos 
acadêmicos que discutam esse fenômeno pelo viés das Artes Cênicas. Nesse âmbito, 
pude identificar a pesquisa de doutorado da professora Ana Achcar (2007), que propõe 
uma metodologia de formação para palhaços atuantes de contextos hospitalares. 
15 
 
 
 
Esse fenômeno tem maior representatividade investigativo-acadêmica na área da 
Saúde. No campo da Psicologia, por exemplo, há as pesquisas de Morgana Masetti 
(1998; 2001; 2003; 2013; 2014), voltadas para a humanização das relações no hospital, 
bem como para a busca por uma ética do encontro no contexto hospitalar, pensada por 
meio da atuação de palhaças e palhaços nesses espaços. Na área da Enfermagem, tem 
destaque a pesquisa de Antônio Sena (2011), que discute a arte da palhaçaria no 
contexto hospitalar a partir da percepção das e dos cuidadores. Na área de Medicina, 
existe a pesquisa de Arlene de Sousa Barcelos Oliveira (2014), que diz respeito à 
investigação da arte palhacesca como ferramenta de ensino-aprendizagem na graduação 
em Medicina. Na Educação Física, é possível encontrar as pesquisas de Ana Elvira Wuo 
(1999; 2011), que desenvolvem o conceito de clown visitador de crianças hospitalizadas 
como instrumento de lazer. 
No âmbito da pesquisa sobre a atuação artística, há considerável número de 
materiais produzidos pela ONG Doutores da Alegria, como a série de revistas Boca 
Larga, lançada com periodicidade anual entre 2005 e 2008. Tais revistas contam com 
entrevistas, depoimentos, relatos sobre o trabalho dos Doutores, textos e contribuições 
de autores diversos direcionados às Artes Cênicas. Embora esta pesquisa não seja de 
caráter documental, considerei relevante descrever o contexto dos Doutores da Alegria 
pelos motivos já descritos. 
Considero que o momento é propício para a realização de uma pesquisa 
acadêmica sobre o fenômeno da atuação palhacesca hospitalar pelo viés das Artes 
Cênicas, uma vez que são crescentes as iniciativas artísticas de cunho semelhante no 
Brasil. Nas referências aqui investigadas, habitam experiências vividas por artistas 
cênicos profissionais que podem contribuir para o aprofundamento dos estudos sobre 
essa prática, assim como para o fomento de mais iniciativas semelhantes. 
 Valorizando as experiências vividas por mim e pelos entrevistados, tomo-as 
como ponto de partida para a investigação aqui proposta. Busco, desse modo, propor 
uma atitude metodológica que dialogue com as sensibilidades implícitas na atuação 
palhacesca hospitalar, perpetuadas no corpo e no coração daqueles que a constituem 
tendo como meio de expressão as Artes Cênicas. 
Assim, dialogo com a Fenomenologia, discutida, sobretudo através dos estudos do 
filósofo Merleau-Ponty, segundo o qual o corpo pode ser concebido em movimento, 
envolvendosuas sensibilidades, como meio de entrelaçamento com o mundo e enquanto 
16 
 
 
 
expressão criadora (MERLEAU-PONTY, 2006; 2007; 2011). 
A Fenomenologia propõe sua investigação partindo da experiência. Em 
consonância com essa perspectiva, foram realizadas entrevistas com oito profissionais 
que atuam ou atuaram em palcos hospitalares: sete são pertencentes ao elenco da ONG 
Doutores da Alegria e um atuou na organização entre 1998 e 2003, destacando-se 
atualmente em outros espaços da sociedade. Os entrevistados foram: Wellington 
Nogueira, Marcelo Marcon, Roberta Calza, Heraldo Firmino, Luciana Viacava, Raul 
Figueiredo, Du Circo (Eduardo Pinheiro) e Ésio Magalhães. 
Todos os sujeitos do grupo de entrevistados trabalham com a atuação palhacesca e 
com a formação na arte da palhaçaria. Essa foi ponte central de conexão entre mim e os 
entrevistados, uma vez que fui aluna de todas e de todos. A ONG Doutores da Alegria 
permitiu que as atuadoras e os atuadores de seu elenco concedessem as entrevistas, e 
estes forneceram os direitos de utilização de seus conteúdos nesta pesquisa. Tais acordos 
foram firmados por meio da assinatura dos termos encontrados nos anexos 1 e 2 deste 
trabalho. Os termos foram assinados pela direção da ONG e por cada entrevistada ou 
entrevistado. 
Com base nessas experiências e vivências, busquei produzir um diálogo sobre a 
atuação palhacesca hospitalar e sobre a recente constituição desse campo artístico e 
acadêmico, procurando estabelecer, assim, uma zona de convergência com a 
Fenomenologia. A partir dessa perspectiva, houve a possibilidade de proceder a uma 
investigação e descrição do fenômeno estudado do ponto de vista da experiência do ser 
humano no mundo (MERLEAU-PONTY, 2006; 2007; 2011). Essa atitude demanda 
uma suspensão (epoché) dos possíveis julgamentos e pressupostos sobre a natureza 
investigada e propõe um retorno às “coisas mesmas”, tais como elas se apresentam 
(MARTINS, 1992). 
Frequentemente sujeito a intervenções críticas e a julgamentos, o olhar, a partir do 
retorno às “coisas mesmas”, ou seja, à percepção de como o fenômeno se dá no mundo 
vivido, busca desobstruir-se, na tentativa de visualizar o fenômeno tal como ele se 
apresenta, valorizando a experiência (MARTINS, 1992). Buscando tomar o fenômeno 
de atuação palhacesca hospitalar tal como ele se deu para as atuadoras e atuadores nele 
envolvidos, suas vivências foram consideradas como parte fundamental na discussão 
sobre os novos desafios da palhaçaria contextualizada aos palcos hospitalares. 
17 
 
 
 
A atitude fenomenológica valoriza o Lebenswelt, palavra alemã que designa o 
mundo vivido (HUSSERL, 2006). O retorno ao Lebenswelt refere-se à busca por um ato 
transgressivo perante o cientificismo, dialogando com o universo das experiências, que, 
segundo o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, antecede o universo das reflexões. 
Nas palavras do autor: 
 
Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao 
conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao 
qual toda determinação cientifica é abstrata, significativa e 
dependente, como a geografia em relação à paisagem – primeiramente 
nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho. Este 
movimento é absolutamente distinto do retorno idealista à 
consciência, e a exigência de uma descrição pura exclui tanto o 
procedimento da análise reflexiva quanto o da explicação cientifica. 
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 4). 
 
Merleau-Ponty propõe uma retomada do engendro cognitivo corpóreo, ampliando 
as possibilidades de intersecção do corpo com o mundo. Essa intersecção ou fricção é 
capaz de produzir saberes sensíveis para além do campo do pensamento e das 
reproduções conceituais. O autor não exclui a intersubjetividade, e coloca-a como 
implícita nos processos de desenvolvimento humano e social, enfatizando as sensações 
do corpo como fundamentais ao processo cognitivo. 
A valorização do mundo vivido do ponto de vista fenomenológico possibilita a 
compreensão de múltiplas experiências perceptivas, pois, como afirma o filósofo, “Tudo 
aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de 
uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer 
nada.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 3). Aliada, portanto, à Fenomenologia, esta 
pesquisa atrela-se às vivências de palhaças e palhaços que compõem sua gama de 
saberes e sensibilidades a partir de suas experiências de atuação nos palcos hospitalares. 
Para Merleau-Ponty, o saber se inscreve no corpo ao longo de nossa relação com 
as experiências no mundo vivido. O corpo não é buscado fora do indivíduo ou 
submetido a alguma relação com a dualidade entre corpo e mente; o indivíduo é um 
corpo e uma mente, não os possui (MERLEAU-PONTY, 2001; 2006; 2007). O ser 
humano entrelaçado ao mundo é capaz de abrir-se para a realidade sensível, que se dá 
através do fluxo da vida, e do encontro com outros seres humanos. Para o filósofo, “[...] 
é por meio de meu corpo que compreendo o outro, assim como é por meio de meu 
corpo que percebo as ‘coisas’.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.253). 
18 
 
 
 
Merleau-Ponty postula que o mundo fenomenológico considera “[...] não o ser 
puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na 
intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem umas das 
outras [...].” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 18). Desse modo, uma atitude que se 
pretende fenomenológica não se pode apartar da subjetividade, nem tampouco da 
intersubjetividade, inerentes à presença do ser humano no mundo. Estas, para o autor, 
formam a unidade do mundo fenomenológico, que se dá através da “[...] retomada de 
minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, e da experiência do 
outro na minha.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 18). Nessa perspectiva, destacam-se as 
relações entre indivíduos no mundo, como traz o pesquisador brasileiro Joel Martins: 
 
[...] somos uns para os outros, e ‘uns-com-os-outros’, precisamos, 
necessariamente, ter uma aparência mútua. Não se trata de uma 
aparência externa, mas de uma aparência ou perspectiva um do outro. 
Minha visão dos outros e a (visão) que eles têm de mim é que 
permitem nossa posição no mundo (MARTINS, 1999, p. 54). 
 
O encontro entre os indivíduos é fator imprescindível na investigação 
fenomenológica, assim como o encontro dos seres com o mundo e o seu caminhar em 
direção a ele. Imprescindível também é esse encontro no contexto da investigação 
palhacesca hospitalar aqui proposta, pois é em seus entornos que se encontram as 
intersecções cênicas que são objeto desta pesquisa. 
 A descrição fenomenológica, aqui proposta, é constituída por três elementos: a 
percepção, entendida com primazia no processo reflexivo; a consciência direcionada ao 
corpo vida (ao corpo vivido) ou a “descoberta da subjetividade e da intersubjetividade” 
(MARTINS, 1999, p. 58) e o “[...] sujeito, pessoa ou indivíduo que se vê capaz de 
experienciar o corpo vivido por meio da consciência que é a conexão entre o indivíduo, 
os outros e o mundo.” (MERLEAU-PONTY, 1945 apud MARTINS, 1999, p. 58). Aqui, 
não se propõe uma explicação do fenômeno, mas sua descrição, tal como ele se 
apresenta. A descrição fenomenológica, segundo a pesquisadora brasileira Maria 
Aparecida Bicudo, “Se limita a descrever o visto, o sentido, a experiência como vivida 
pelo sujeito. Não admite julgamentos e avaliações. Apenas descreve.” (BICUDO, 2000, 
p. 77). 
Aliada à descrição, a redução fenomenológica tem por objetivo, enquanto 
momento de uma trajetória de pesquisa, investigar e sistematizar os componentes da 
19 
 
 
 
descrição que fazem parte da essência do fenômeno estudado (MARTINS, 1999). É 
dividida em três momentos: no primeiro, tem por objetivo colocar o fenômeno em 
suspensão (epoché), buscando compreender a experiência vivida sem imprimir as 
interpretaçõespessoais da pesquisadora. 
O segundo momento é destinado à interpretação dos pontos focais, ou seja, as 
descrições são separadas e organizadas em grupos temáticos chamados unidades de 
significado. Esses grupos temáticos, no caso desta pesquisa, foram organizados em 
relação às questões abordadas nas entrevistas e divididos inicialmente em oito unidades 
de significados, destacadas a partir do conteúdo encontrado nas falas dos entrevistados. 
São elas: (1) as experiências anteriores ao hospital; (2) como os entrevistados veem o 
trabalho do palhaço; (3) os desafios e os objetivos da atuação; (4) a importância da 
relação com o outro; (5) as diferenças e as semelhanças com outros contextos de 
atuação; (6) as técnicas cênicas no preparo artístico; (7) as experiências no âmbito 
hospitalar; (8) o impacto do trabalho sobre si. 
Pretendendo compor uma compreensão fenomenológica acerca das referidas 
unidades, primei por uma reflexão que decorresse do processo interpretativo do 
fenômeno. A identificação de significações essenciais na descrição e na redução 
fenomenológicas, como aponta Martins, são “[...] uma forma de investigação da 
experiência.” (MARTINS, 1999, p. 60). Dessas oito unidades de significados, foi 
realizada uma nova redução, em que elas foram sintetizadas em apenas três, que trago 
para a discussão especialmente no capítulo quatro deste trabalho. São elas: (1) o jogo; 
(2) as técnicas e sensibilidades e (3) o encontro. 
A Fenomenologia é compreendida neste trabalho, ainda, enquanto atitude 
metodológica capaz de valorizar a sensibilidade implícita nas experiências do mundo 
vivido. Tais experiências, do ponto de vista investigativo em Merleau-Ponty, são 
discutidas em conexão com as manifestações expressivas do corpo. Segundo a 
pesquisadora brasileira Petrúcia da Nóbrega, 
 
A dimensão expressiva do corpo é enfatizada por Merleau-Ponty 
como comunicação da realidade sensível, dimensão poética da 
corporeidade comunicada por meio do gesto. Por meio do logos 
sensível, estético, coloca-se a experiência perceptiva como campo de 
possibilidades para o conhecimento, investido de plasticidade e beleza 
de formas, texturas, sabores, odores, cores e sons. O corpo e o 
conhecimento sensível são compreendidos como obra de arte, aberta e 
inacabada (NÓBREGA, 2008, p. 147). 
20 
 
 
 
Esse sentido estético encontrado na corporeidade habita a experiência vivida do 
indivíduo, possibilitando um conhecimento sensível sobre o mundo. Segundo Nóbrega, 
encontra-se em Merleau-Ponty uma atitude de “[...] convivência poética com o corpo, 
por meio do logos estético; convida a uma abertura ao mundo e às configurações 
desenhadas pelas experiências dos sujeitos.” (NÓBREGA, 2008. p. 147). A 
pesquisadora Petrúcia da Nóbrega enfatiza o caráter corpóreo abordado por Merleau-
Ponty e aproxima a Fenomenologia de um mundo voltado aos sentidos, situando a 
Filosofia não como detentora da verdade, mas como geradora de possibilidades 
oriundas da existência humana. 
Concordo, dessa forma, com a percepção de Nóbrega, segundo a qual a 
Fenomenologia habita o sensível e “[...] pensa o mundo a partir do contato com o 
espaço, o tempo, a presença e a animação do corpo através do movimento que 
transforma o mundo em obra de pensamento, obra de linguagem, obra de arte.” 
(NÓBREGA, 2015, p.98). Voltam-se as atenções para um aspecto humano em contato 
com o mundo, que necessita dialogar com o decorrer constante de situações e 
acontecimentos tão imprevisíveis quanto implícitos no fluxo da vida, negando um 
conhecimento que se dê de modo puramente racional. 
Para a pesquisadora brasileira Karenine Porpino, esse conhecimento se dá 
igualmente a partir da sensibilidade, da arte: “Participar da criação de um objeto estético 
é também criar a si mesmo, é poder tornar sempre a um começo repleto de horizontes 
ilimitados e poder apreender a simbiose entre vários fenômenos de existência.” 
(PORPINO, 2001, p. 113). 
Conhecer, então, é aderir ao eterno movimento de criação de si, de novas formas 
de conceber os arredores, de outrem, do mundo. Nesse movimento, antes de engessar ou 
sentenciar um potencial cognitivo, busca-se ampliar a compreensão do fenômeno 
investigado, considerando as possibilidades transformadoras da arte, tão dinâmicas 
quanto variáveis, humanas e passíveis de encontros. Coaduno, assim, com o pensamento 
de Porpino: 
 
A arte modifica nossa existência com seu encanto ou sua brutalidade, 
nos faz leves ou estupefatos. De uma forma ou de outra, modifica 
nosso olhar, ao mesmo tempo em que a modificamos com o sentido 
que criamos para ela e compartilhamos com outros apreciadores. 
Assim a arte enlaça o criador e o apreciador no mesmo espaço 
poético, que é sempre interminável (PORPINO, 2012, p. 5). 
21 
 
 
 
 
A arte, para a autora, é capaz de ligar os seres humanos através das diversas 
maneiras possíveis de ser. Nóbrega, também de acordo, afirma que: “A experiência 
estética amplia a operação expressiva do corpo e a percepção, afinando os sentidos, 
aguçando a sensibilidade, elaborando a linguagem, a expressão e a comunicação.” 
(NÓBREGA, 2010, p 93). É necessário, portanto, que os aspectos artísticos estejam 
presentes no cotidiano, ampliando as possibilidades perceptivas dos seres humanos e 
potencializando suas referências estéticas e culturais. 
É pertinente, também, a percepção da pesquisadora Márcia Strazzacappa, quando 
postula que: 
 
[...] se a arte só se produz nas práticas sociais, também só pode ser 
aprendida pela mediação de outras pessoas. Não é o simples contato 
esporádico com algumas obras e muito menos a mera estimulação 
sensorial que fará com que alguém desperte uma sensibilidade para 
linguagens artísticas. Assim, mais que entrar em contato com, há a 
necessidade de se apropriar de, presente no fazer, experimentar, 
arriscar, testar, todas atividades inerentes à criação. 
(STRAZZACAPPA; SCHROEDER; SCHROEDER, 2005, p.77). 
 
A atuação palhacesca no hospital se aproxima dessa lógica, tendo em vista sua 
frequência de acontecimento, bem como as possibilidades de fazer com que os 
espectadores se apropriem das ações cênicas, experimentem-nas e as componham. No 
âmbito das vivências de cada indivíduo em contato com os outros e com o mundo, 
mesclam-se singularidades na composição da pluralidade artística. Tal pensamento vai 
ao encontro da seguinte concepção de Grotowski: “A arte não é a fonte da ciência. É a 
experiência a que nos entregamos quando nos abrimos para os outros, quando nos 
confrontamos com eles para nos entender [...] no sentido elementar e humano.” 
(GROTOWSKI, 2011, p. 46). No contexto do hospital, o contato entre individualidades 
resulta em criações de cunho coletivo, compostas por seres que vivenciam uma situação 
de encontro no momento em que elas ocorrem. 
Dada a recente constituição da atuação palhacesca hospitalar, foi necessário 
contextualizar o universo em que ela acontece. Assim, no primeiro capítulo deste 
trabalho, trago elementos que compõem um diálogo sobre a atuação das figuras 
palhacescas na história da humanidade, bem como sobre características recorrentes 
dessas figuras ao longo dos milênios. 
22 
 
 
 
No segundo capítulo, traço os possíveis percursos que conduziram, com base em 
estudos bibliográficos, as figuras palhacescas até os palcos hospitalares, onde 
contemporaneamente muitas se estabelecem. Nessa parte do trabalho, situo a ONG 
Doutores da Alegria, contexto em que parte da pesquisa foi realizada. No capítulo 
terceiro, debruço-me sobre as experiências de palhaças e palhaços em contextos 
hospitalares; trazendo para a discussão as três unidades de significados encontradas a 
partir da redução fenomenológica do conteúdo das entrevistas cedidas para esta 
pesquisa, que são o jogo cênico, o treinamento pessoal mesclado com as sensibilidades 
de cada artista e a abertura para o encontro. Por fim, trago as consideraçõesfinais acerca 
desta investigação nos âmbitos artístico e acadêmico. 
Aproximando-se de um processo artístico criativo, a composição desta pesquisa 
revelou uma constante necessidade de nutrir-me de conteúdos. Entre eles compartilho, 
ao fim deste trabalho, no Apêndice A, uma lista de filmes que têm, direta ou 
indiretamente, ligação com a atuação palhacesca hospitalar, já que abordam o universo 
da criança, da ludicidade, da fantasia, da palhaçaria, da comicidade, dentre outros. Do 
mesmo modo, trago, ao longo da escrita, imagens que auxiliam a caracterização do 
fenômeno investigado e as experiências por ele geradas.
23 
 
 
 
2 PALHAÇAS E PALHAÇOS: RISOS COLETIVOS 
 
José Luis Castro, o carpinteiro do bairro, tem a mão muito boa. A 
madeira, que sabe que ele a ama, deixa-se fazer. O pai de José Luis 
tinha vindo lá de uma aldeia de Pontevedra para o Rio da Prata. O 
filho recorda o pai, o rosto aceso debaixo do chapéu-panamá, a 
gravata de seda no colarinho do pijama azul celeste, e sempre, sempre 
contando histórias desopilantes. Onde ele estava, lembra o filho, o riso 
acontecia. De todas as partes vinha gente para rir, quando ele contava, 
e a multidão se amontoava. Nos velórios era preciso levantar o ataúde, 
para que todos coubessem – e assim o morto ficava em pé para escutar 
com o devido respeito àquelas coisas todas, ditas com tanta graça. E 
de tudo o que José Luis aprendeu de seu pai, isso foi o principal: 
- O importante é rir – ensinou-lhe o velho. 
- E rir juntos (GALEANO, 2015, p. 215). 
 
Frequentemente, ao vivenciar a atuação de palhaças e palhaços, seja como 
palhaça, seja como espectadora, chama-me a atenção o fato de que as pessoas costumam 
unir-se em momentos de riso ou de estranhamento, e, mesmo entre os desconhecidos 
que compõem uma plateia, acabam trocando olhares para concordar, duvidar ou 
simplesmente partilhar o riso existente. No fragmento narrado pelo escritor uruguaio 
Eduardo Galeano, até mesmo um defunto se junta aos vivos para celebrar a lição do 
velho homem: a importância de que o riso seja coletivo. 
Nos picadeiros circenses, nos palcos teatrais, nas praças ou nos corredores 
hospitalares, outros seres se assemelham ao pai de José Luis. Tais seres promovem o 
riso onde quer que estejam desencadeando a constituição de um elo entre eles e o 
público, expresso pelo olhar, pela maneira de colocar-se no tempo e no espaço, pela 
abertura com que se dão aos outros. 
Ao encontrarem-se com as possibilidades abertas pelas figuras palhacescas e com 
seu fulgor, os espectadores vivenciam momentos em que estão juntos, compreendendo-
se como seres indivisíveis em momentos de riso. A interação com as figuras 
palhacescas pode compor uma maneira de existir que é compartilhada através de 
símbolos comuns, a ponto de os espectadores conectarem suas vidas com a coletividade 
da existência. 
Igualmente, por parte dos seres que desencadeiam o riso, faz-se necessária uma 
abertura para a coletividade da existência, para a percepção de suas ações. Assim, o 
velho homem, ao contar suas histórias, devia perceber a presença dos ouvintes, 
conectando-se com eles. A composição artística das palhaças e dos palhaços não ocorre 
24 
 
 
 
de modo individual, pelo contrário, desenvolve-se a partir do contato com outras 
existências artísticas, humanas e sociais. No momento do encontro com espectadores; 
com profissionais e mestres da palhaçaria e com base em uma memória milenar 
constituída por figuras cômicas que perpassam a história da humanidade, constitui-se a 
atuação palhacesca, propondo coletividades permeadas pelo riso. 
 É válido, nesse sentido, considerarmos o relato de Ésio Magalhães, criador do 
Palhaço Zabobrim, quando diz que: “[...] palhaço não se faz sozinho, é o resultado de 
muitos elementos. Tantos dos mestres que vieram antes como das suas referências 
estéticas e de todo o trabalho dos palhaços que nos antecederam. É resultado do 
imaginário do público e do seu senso de humor.” (Ésio Magalhães)
 5
. Seja em palcos 
convencionais, tais como os de rua, teatros e picadeiros circenses, seja em espaços 
alternativos, como o hospital, destaca-se a coletividade atrelada à composição 
palhacesca, bem como ao riso que ela gera, igualmente propenso às coletividades. 
 Assim, trago no presente capítulo um diálogo com a coletividade do riso 
palhacesco, seguido de uma discussão sobre a etimologia das palavras palhaça, palhaço 
e clown, utilizados nesta pesquisa nos sentidos que lhes são os mais atribuídos 
contemporaneamente. Após esse levantamento, perpasso por traços históricos deixados 
pelas figuras palhacescas ao longo de milênios, bem como por aspectos de sua 
existência presentes na atualidade. Por fim, focalizo aquele que aqui é tido como um dos 
principais aspectos das figuras palhacescas: a abertura que elas necessitam cultivar para 
a alteridade, uma vez que que sua atuação busca desencadear risos coletivos. 
 Para a pesquisadora Karenine Porpino, a partir da arte, 
 
[...] estamos atados ao outro mesmo quando sequer o conhecemos. O 
artista sabe ou intui essa aproximação quando cria as suas obras a 
exemplo e semelhança de si mesmo, a exemplo de seus modos de 
habitar o tempo e o espaço. Todos vivemos essas possibilidades 
diversas, e é o compartilhar desses modos diferentes de ser que nos 
liga pela arte. (PORPINO, 2012, p.7). 
 
 As palhaças e os palhaços, considerados como existências coletivas, evidenciam 
essas ligações humanas, uma vez que são as experiências advindas dessas relações que 
compõem seu trabalho em qualquer âmbito de atuação. 
 
5
 A entrevista concedida por Ésio Magalhães será publicada na íntegra pela revista Urdimento, n.º 28 do 
Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, com lançamento 
previsto para julho de 2017. 
25 
 
 
 
 Nessa mesma direção, Grotowski salienta que “[...] o teatro é um ato engendrado 
por reações e impulsos humanos, por contato entre as pessoas.” (GROTOWSKI, 2011, 
p. 45). Sem o contato entre seres humanos, afirma o autor, torna-se impossível a 
concretização do ato teatral, já que a arte é “[...] a experiência que adquirimos quando 
nos abrimos para os outros, quando nos confrontamos com eles, a fim de nos 
compreendermos melhor [...] num sentido elementar e humano.” (GROTOWSKI, 1971, 
p. 43). 
 O Teatro pode acontecer sem a utilização de figurinos, cenários, iluminação, 
maquiagem, porém um acontecimento teatral exige minimamente o encontro entre um 
ator e um espectador (BROOK, 1999). Tal conjunção, em seus aspectos elementares, já 
pressupõe uma coletividade, ao menos estabelecida entre dois seres que se encontram. 
Ampliando as proporções cênicas do encontro, esse fator coletivo muitas vezes estende-
se ao posicionamento cotidiano dos espectadores, que se põem a olhar para os lados em 
busca de compartilhar suas experiências momentâneas. 
Os espectadores tornam-se cúmplices de um acontecimento que oferece certa dose 
de transgressão ao cenário cotidiano. Essa transgressão, explica Bolognesi, dialoga com 
os números cômicos, que “[...] ao explorar os estereótipos e situações extremas, 
evidenciam os limites psicológicos e sociais do existir.” (BOLOGNESI, 2006, p.14). Ao 
vivenciar a experiência da atuação palhacesca, os espectadores tornam-se aliados na 
subversão da existência, pois compõem junto das palhaças e dos palhaços o risco de 
extravasar a mecanicidade impregnada no cotidiano, criando novas possibilidades de 
existir coletivamente. 
As figuras palhacescas, uma vez que desconstroem as limitações impostas pela 
repetição de ações cotidianas, encontram maneiras de reinventar as relações humanas, e 
mesmo no ato de repetir realizam maneiras inovadoras de se relacionar. Nesse sentido, o 
tom que o filósofo francês Gilles Deleuze dá para a repetição aproxima-se daquele 
empregado pelas figuraspalhacescas, que se afastam da rigidez mecânica, da 
linearidade. O autor propõe que “[...] o evento repetido seja recriado em um sentido 
radical: ele (re)surge a cada momento como Novo.” (DELEUZE, 1988, p. 11). Para as 
figuras palhacescas, assim como para Deleuze, repetir não se trata de fazer igual. 
O conceito de repetição em Deleuze diz respeito a uma repetição que se encontra 
oculta, em que um diferencial sempre se desloca e disfarça. Implícito em toda a 
repetição, esse diferencial é o seu correlato. O filósofo aponta que “[...] é a diferença 
26 
 
 
 
que dá a ver e que multiplica os corpos; mas é a repetição que dá a falar e que 
autentifica o múltiplo, que dele faz acontecimento espiritual.” (DELEUZE, 2003, p. 
298). 
Repetir, desse modo, no contexto das figuras palhacescas, pode ser também uma 
forma de portar memórias milenares, conectar-se com a ancestralidade dessas 
manifestações. A multiplicidade dos elementos cômicos, que brotam da historicidade 
dos seres, caminha ao encontro do novo no mundo, multiplicando-se através da 
diferença. 
Deleuze, ao conceituar a diferença, ensina que ela não se dirige para a oposição ou 
para a contradição, uma vez que não é compreendida como subordinada ao idêntico 
(DELEUZE, 1988). Assim, mesmo na repetição há alguma diferença, haja vista o fluxo 
constante de transformações a que estamos sujeitos no cotidiano. 
Esse fluxo, a todo o momento, nos faz ultrapassar as fronteiras daquilo que 
passou, ampliando-se, por conseguinte, as possibilidades de perceber para além do que 
está dado, abrindo-se novos horizontes. Já não é o mesmo corpo que repete, tampouco a 
mesma atmosfera que se instaura, o mesmo clima, a mesma luminosidade. Uma brisa 
que ora adentra o espaço, antes poderia não existir. Estamos constantemente sujeitos a 
novas configurações de existência, a novos horizontes, a novos encontros. 
Ao trilharem seus horizontes, as figuras palhacescas têm um diferencial em 
relação aos demais seres que habitam espaços hospitalares, e uma semelhança 
primordial com o universo da criança: a liberdade do compromisso com o real. Esse 
diferencial acaba por despertar a curiosidade daqueles que entram em contato com as 
palhaças e os palhaços, aproximando-os destes e afastando-os do universo cotidiano. Se, 
como afirma Merleau-Ponty, “[...] os fantasmas são fragmentos do mundo claro, e 
tomam-lhe todo o prestígio que possam ter.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.387), a vida 
cotidiana fornece resquícios daquilo que no corpo das palhaças e palhaços transforma-se 
em arte, em teatralidade, em novas possibilidades de vida, em um movimento que 
permite a coexistência entre repetição e diferença. 
Incitando relações de cumplicidade, as figuras palhacescas utilizam-se de 
ferramentas do riso, que ampliam a disponibilidade do espectador para a interação entre 
si e os artistas. O riso, assim, pode significar uma das principais ferramentas das 
palhaças e dos palhaços, e quiçá um de seus principais objetivos de existência, pois tem 
o poder de conectá-lo com outrem. Para Bergson, o riso é tido como um fenômeno 
27 
 
 
 
social, mas também psíquico: perante os olhos do espectador, a comicidade surge 
através da observação das falhas humanas, em certo tom de correção (BERGSON, 
2004). 
Evidenciando essas falhas, as figuras palhacescas colocam-se na posição de 
espelho, onde os espectadores veem refletidas vivências humanas distorcidas pelo filtro 
do erro, do não convencional. Bergson privilegia as vivências pessoais no riso, 
situando-o exclusivamente no âmbito humano, uma vez que, para ele, “[...] não há 
comicidade fora do que é propriamente humano.” (BERGSON, 2004, p. 3). Sendo 
assim, mesmo em se referindo a objetos inanimados ou a animais que façam rir, vale 
salientar que um animal só será cômico quando encontramos nele uma atitude ou uma 
expressão humana (BERGSON, 2004). O autor lembra ainda que o riso é um ato 
coletivo, dado a partir de determinado grupo de pessoas (BERGSON, 2004). 
Para Vladmir Propp, teórico russo, “[...] em poucas palavras, o riso nasce da 
observação de alguns defeitos no mundo em que o homem vive e atua.” (PROPP, 1992, 
p. 173, 174). O autor afirma que o riso é relativo ao ser humano, evidenciando que este 
é passível a defeitos ou a distorções na ordem do mundo. Nas perspectivas de Bergson e 
Propp, encontramos alguns dos que seriam os pressupostos criativos fundamentais da 
comicidade, tais como a investigação e a observação do ser humano e de suas relações 
com o erro, as falhas, o não habitual, com aquilo que pode surpreender. 
Para Bergson, o riso pode acontecer de maneira precisa, como uma lei da 
natureza: ou seja, sempre será desencadeado quando houver uma causa. Propp contesta 
essa tese, afirmando que “[...] pode-se dar a causa do riso, porém é possível existirem 
pessoas que não riem e que não é possível fazer rir. A dificuldade está no fato de que o 
nexo entre o objeto cômico e a pessoa que ri não é obrigatório nem natural. Lá, onde um 
ri, o outro não ri.” (PROPP, 1992, p. 31). Cada ser humano, imbuído das experiências de 
seu mundo vivido, fará diferentes associações relativas ao que é risível para si. Essa 
compreensão denota a subjetividade e a peculiaridade do riso, embora não exclua o fato 
de que o riso também ocorre de modo coletivo. 
Bergson, ao afirmar algumas leis que seriam matematicamente geradoras da 
comicidade, fornece estofo para reflexões sobre a composição técnica da comicidade, 
como, por exemplo, a inversão de séries, a repetição e a rigidez mecânica (BERGSON, 
2004). 
 Propp salienta o fato de que o caráter singular de cada indivíduo deve ser levado 
28 
 
 
 
em consideração, porém ampara a discussão a partir da presença de mecanismos que 
levam ao riso, tais como o da paródia, da comicidade da semelhança/diferença, do 
homem-coisa, entre outros. O autor se atém ao campo popular e folclórico, organizando 
ampla gama de objetos risíveis, bem como os tipos de riso desencadeados por eles. 
Propp, entre os diversos tipos de riso, focaliza o riso de zombaria (PROPP, 1992). 
No mesmo âmbito, o pesquisador russo Mikhail Bakhtin identificou na 
comicidade uma forma de inverter coletivamente os padrões estéticos e oficiais, 
observando principalmente os aspectos grotescos da existência humana como 
transformadores da realidade. 
Na obra “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de 
François Rabelais”, Bakhtin apresenta sua teoria sobre a cultura cômica popular na 
Idade Média e no Renascimento. A concepção apresentada por Bakhtin coloca o 
carnaval como espaço de inversão hierárquica, onde se instaura o privilégio dos 
excluídos, marginalizados, periféricos, grotescos (BAKHTIN, 1999). Nesse contexto, o 
autor afirma que a partir do riso carnavalesco: “[...] revoga-se antes de tudo o sistema 
hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc., ou 
seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra 
espécie de desigualdade entre os homens.” (BAKHTIN, 1981, p. 105). 
O riso libertador surge como forma de oposição ao tom sério e repressor da 
sociedade, como um intento de libertação. Esse mesmo riso é capaz ainda de libertar o 
indivíduo para além dos parâmetros exteriores, sociais, mas também, segundo o autor, 
“[...] do censor interior, do medo do sagrado, da interdição autoritária, do passado, do 
poder, medo ancorado no espírito humano há milhares de anos.” (BAKHTIN, 1999, p. 
81). 
Para o pesquisador Larrosa, 
 
O riso destrói as certezas. E especialmente aquela certeza que 
constitui a consciência enclausurada: a certeza de si. Mas só na perda 
da certeza, no permanente questionamento da certeza, na distância 
irônica da certeza, está a possibilidade do devir. O riso permite que o 
espírito alce voo sobre si mesmo. O chapéu de guizos tem asas. E não 
venham vocês me dizer que o riso é perigoso.O riso é, certamente, 
ambíguo e perigoso. Como os livros, como as viagens, como os jogos, 
como o vinho, como o amor (LARROSA, 2010, p. 181). 
 
Atribuído historicamente ao aspecto coletivo, libertador, transgressivo, inovador, a 
29 
 
 
 
aquilo que é fora do comum na vida das pessoas, o riso pode manifestar-se intermediado 
por personagens ou figuras cômicas que permeiam a história da humanidade. A partir de 
uma interação diferenciada com o mundo, tais figuras abrem espaços ficcionais onde os 
espectadores tornam-se criadores de uma cena viva fundada no encontro. 
Portadores de coletividades, os seres palhacescos promovem transgressões ao 
cenário cotidiano e fornecem a quem com eles interage o poder da união entre seres 
humanos em atos que extravasam a normalidade do dia a dia. 
Haveria, por exemplo, possibilidades para uma corrida sobre rodas em um 
corredor hospitalar? Segundo a lógica palhacesca, seria fácil. Basta haver os 
competidores, a pista, a linha de chegada, os veículos e a criatividade dos artistas e 
espectadores. No espaço permeado pela lógica palhacesca, rompem-se os 
impedimentos, fortemente atrelados às convenções sociais. Dessa forma, poucas 
são as situações impossíveis de se concretizar, como podemos ver na imagem a seguir: 
 
Figura 2 - Corrida de cadeiras com Doutor Lui (Luciano Pontes). 
 
Fonte: <http://www.kickante.com.br/campanhas/doutores-da-alegria-apoie-nosso-projeto>. 
Acesso em 25/07/2016. 
 
Diversas são as terminologias empregadas para denominar essas figuras que têm 
por objetivo trabalhar profissionalmente com os aspectos risíveis e aglutinadores da 
humanidade. Tendo por meio de expressão a menor máscara do mundo (LECOQ, 
30 
 
 
 
1997), palhaças, palhaços, clowns, bobos, excêntricos, augustos, jograis, cômicos, entre 
outros (VIVEIROS DE CASTRO, 2005) estão fortemente atrelados à subversão na 
humanidade. Essas figuras transitam pelo mundo e parecem renovar-se ao longo dos 
tempos, adaptando-se ao olhar da sociedade e assumindo novos espaços de atuação. 
Buscando dialogar com o percurso que conduziu as figuras palhacescas até a 
atuação em espaços hospitalares, foi realizada para esta pesquisa uma investigação 
bibliográfica cujos principais marcos estão expostos a seguir. Inicialmente saliento que, 
dentre as diversas denominações dadas ao longo da história para estas figuras cômicas, 
mantenho o emprego dos termos mais utilizados contemporaneamente: palhaças, 
palhaços e clowns. 
A opção aqui tomada, de usar tais termos como equivalentes, coaduna com a 
proposição do pesquisador Roberto Tessari, ao afirmar que: “[...] tanto na língua 
comum quanto na linguagem especializada do teatro, hoje, não existe nenhuma 
diferença entre a palavra palhaço e a palavra clown, pois as duas palavras se confundem 
em essências cômicas.” (TESSARI apud DORNELES, 2003, p. 26). 
Vale considerar, ainda, que contemporaneamente o trabalho das mulheres na 
palhaçaria ganhou bastante destaque, sendo que hoje não é mais possível abordar esse 
universo apenas a partir de um termo no gênero masculino. Compreendo que 
historicamente o universo palhacesco esteve bastante atrelado ao masculino, mas 
atualmente essa arte é igualmente desenvolvida por homens e mulheres, portanto, ao 
referir-me à palhaçaria, refiro-me tanto às palhaças quanto aos palhaços. 
O termo “clown”, que não apresenta marca de gênero, vem, segundo o 
pesquisador Roberto Ruiz do inglês “clod”, termo diretamente relacionado à ideia de 
rústico, de campo. A expressão de origem inglesa, ao que tudo indica, data do século 
XVI (RUIZ, 1987). O pesquisador Mário Fernando Bolognesi, em seu livro Palhaços, 
aponta essa palavra como referente a uma figura grosseira e desajustada (BOLOGNESI, 
2006). O historiador John Towsen, por sua vez, afirma que o termo remete a “colonus”, 
espécie de pessoa rústica, do campo (TOWSEN, 1976). 
O termo palhaço adaptou-se do italiano “paglia”, traduzido ao português como 
“palha”. Segundo Roberto Ruiz, tal associação deu-se pelo fato de que inicialmente a 
roupa do “paglia” era feita do mesmo material utilizado na fabricação de colchões, que 
também era utilizado para proteger os artistas das quedas empregadas como recurso 
cômico (RUIZ, 1987). 
31 
 
 
 
O termo “palhaça”, nesse sentido, significa o feminino de palhaço. Talvez essa 
colocação seja bastante óbvia, porém percebe-se que embora atualmente o trabalho das 
mulheres no universo palhacesco esteja bastante popularizado, a maior parte das 
referências a essas figuras se dá no gênero masculino: “o palhaço”. Essa percepção 
inquieta e mobiliza minha busca por uma atitude distinta, ao referenciar a palhaçaria 
como uma arte também construída por nós, mulheres: as palhaças. 
Historicamente a atuação de mulheres em palcos teatrais, de modo geral, foi 
proibida. Dos saltimbancos greco-romanos aos atores de Shakespeare, todos os papeis, 
inclusive os femininos, eram interpretados pelos homens. Os primeiros indícios da 
inserção feminina nos palcos teatrais do Ocidente são encontrados na commedia 
dell’arte. Contemporaneamente, as mulheres palhaças vivem um movimento crescente, 
segundo Michelle Silveira, idealizadora e editora da revista Palhaçaria Feminina
6
. Para 
ela, esse novo espaço organizativo das mulheres palhaças é “[...] forte e vem se 
consolidando a cada ano, com iniciativas que se unem no movimento de valorização, 
qualificação e profissionalização das mulheres palhaças.” (SILVEIRA, 2014, p. 01). 
Cada vez mais inseridas nos espaços de atuação palhacesca, as mulheres trazem novas 
contribuições para a arte da palhaçaria, através da pesquisa pela perspectiva feminina. 
Segundo Nara Menezes, palhaça pela Companhia Animèe, de Recife (PE), “[...] 
existem precursoras como Gardi Huter, Nola Era e Hilary Chaplain. Na América Latina 
Lila Monti, Mariana Barbera, abriram caminho, e no Brasil as Marias da Graça 
começaram a atuar como o primeiro grupo de palhaças [...].” (MENEZES, 2014, apud. 
SILVEIRA, 2014, p. 22). Esse movimento mundial de busca por uma identidade das 
mulheres palhaças desembocou na realização de importantes encontros e festivais 
nacionais e internacionais de palhaçaria feminina, tais como o Encontro Internacional de 
Mulheres Palhaças (SP), o Esse monte de mulher palhaça (RJ), o Encontro Internacional 
de mulheres palhaças (DF) e o Clownin (Viena, Áustria). 
A presença das mulheres nos contextos artísticos é tão inegável quanto constante, 
sendo possível identificar uma forte onda de expansão da atuação feminina na arte da 
palhaçaria. Se antes a presença das mulheres na construção da cena teatral era proibida, 
atualmente é fundamental e contundente. Compreendendo assim as vastas contribuições 
 
6
 A Revista Palhaçaria Feminina foi criada em 2012 e é composta por artigos, textos, entrevistas e relatos 
de mulheres palhaças do Brasil e do mundo. Atualmente, na sua terceira edição, a revista aborda os 
espaços de atuação de mulheres no Brasil (SILVEIRA, 2014). 
32 
 
 
 
das mulheres palhaças para a pesquisa palhacesca contemporânea, atribuímos também a 
elas a construção desse ofício. 
Reiterando a equivalência dos termos palhaça, palhaço e clown, o pesquisador 
Luís Otávio Burner, fundador do grupo Lume de teatro, explica que “[...] clown e 
palhaço são termos distintos para se designar a mesma coisa.” (BURNIER, 2001, p. 
205). Apesar da afirmação, o autor reconhece diferenças em relação à linha de trabalho 
dessas figuras cômicas, sendo que em seu trabalho específico atém-se ao termo clown: 
 
Como, por exemplo, os palhaços (ou clowns) americanos, que dão 
mais valor à gag, ao número, à ideia; para eles, o que o clown vai 
fazer tem um maior peso. Por outro lado, existem aqueles que se 
preocupam principalmente com o como o palhaço vai realizar seu 
número, não importando tanto o que ele vai fazer; assim, são maisvalorizadas a lógica individual do clown e sua personalidade; esse 
modo de trabalhar é uma tendência a um trabalho mais pessoal. 
Podemos dizer que os clowns europeus seguem mais essa linha. 
Também existem as diferenças que aparecem em decorrência do tipo 
de espaço em que o palhaço trabalha: o circo, o teatro, a rua, o cinema, 
etc. (BURNIER, 2001, p. 205). 
 
Tendo estudado na França com os pesquisadores Etiene Decroux e Jacques 
Lecoq
7
, Burnier desenvolveu seu trabalho voltado para o clown próximo de uma 
concepção europeia. O grupo Lume de teatro, fundado por Burnier há trinta e um anos, 
exerceu grande influência sobre as Artes Cênicas no Brasil, e consequentemente a 
vertente do clown trazida por Burnier difundiu-se em nosso contexto. O artista Ricardo 
Pucceti, ator do grupo, aprofundou sua pesquisa sobre o clown e atualmente é 
considerado referência no país. 
Como observou a pesquisadora Patrícia Sacchet, essas diferenças nas linhas de 
trabalho também são vistas por Bolognesi. O autor as considera, sobretudo, no que 
tange aos modos de interpretação. Bolognesi (2006 apud SACCHET, 2009)acredita na 
diferença existente entre o palhaço circense e o palhaço teatral, afirmando que essa 
distinção significaria uma nova etapa na história dos palhaços. O pesquisador afirma 
ainda que existem diferenças significativas no âmbito de atuação e encenação: “[...] no 
ambiente épico do circo e no dramático do teatro, talvez a diferenciação seja proveitosa, 
pois demarca possivelmente uma nova história na vida dos clowns, desta feita voltada 
 
7
 Jacques Lecoq fundou em 1956, na França, sua escola. No ano de 1962 inseriu o estudo do clown. Esta 
pedagogia difundiu-se, e atualmente, apesar de existirem muitas maneiras de trabalho com o clown, a 
maioria está direta ou indiretamente relacionada com a pedagogia de Lecoq (SACCHET, 2009). 
33 
 
 
 
para o palco teatral, seja ele em espaços fechados, em ruas ou praças.” (BOLOGNESI, 
2006, p. 15 apud SACCHET, 2009, p. 22). 
A partir dessa diferenciação, pode-se pensar que, no contexto brasileiro, as 
palhaças e os palhaços estariam mais voltados para a atuação dentro dos parâmetros 
circenses, e os clowns, aos teatrais. Essas duas linhas de trabalho têm especificidades 
técnicas e estéticas. Buscando salientar tais diferenças, a pesquisadora Daniele Pimenta 
postula que em relação aos palhaços circenses, a criação da figura palhacesca se dá 
através de recursos exteriores, tais como o treinamento técnico de quedas, batidas, 
acrobacias, sequências cômicas. Nesse âmbito, “[...] a escolha das roupas e da 
maquiagem tem muitas referências de outros palhaços, e leva sempre em consideração o 
efeito visual na relação picadeiro e plateia (com capacidade para cerca de 2000 pessoas 
ou mais).” (PIMENTA, 2006, p. 23). 
Em relação ao clown teatral, para Pimenta, o processo de composição se dá “[...] 
de modo mais lento, interiorizado e, consequentemente, muito particular. Explora-se 
uma gama de possibilidades expressivas que busca também um intimismo que não 
caberia no picadeiro, o lirismo, e, portanto, uma emotividade mais delicada.” 
(PIMENTA, 2006, p. 23). Os apontamentos levantados por Pimenta em relação às 
especificidades na atuação de palhaças e palhaços circenses ou de clowns teatrais, como 
vimos, dialogam com a realidade espacial como componente das técnicas de atuação, 
bem como com os aspectos estéticos da cena. 
Nos hospitais são outras as especificidades que movem a atuação palhacesca, uma 
vez que se exige dos artistas uma postura de abertura para a proximidade com os 
espectadores. Nestes ambientes as linhas adotadas por palhaças e palhaços podem 
mesclar elementos dos palcos e dos picadeiros durante as atuações, porém lidam com a 
necessidade de desenvolver técnicas e sensibilidades específicas no contexto hospitalar. 
No espaço dos picadeiros circenses ou dos palcos teatrais exige-se uma postura 
corpórea das figuras palhacescas que ora tendem a evidenciar aspectos mais visuais e 
amplos, ora mais contidos e sutis. Esses espaços delimitam também a permeabilidade 
das relações entre artistas e plateia. Nas imagens colocadas a seguir, trazemos de um 
lado a clown construída pela atriz Naomi Silman e o palhaço circense Chicarrão, vivido 
pelo artista José Carlos Queirolo. Nelas podemos perceber que são bastante distintas as 
composições estéticas de um e de outro: na primeira percebemos mais sutileza, e na 
outra o emprego de mais recursos visuais. 
34 
 
 
 
Figura 3 - Espetáculo O Não Lugar de Ágada Tchainik, 
com a clown Naomi Silman (Lume Teatro). 
 
Fonte: <http://www.sescsp.org.br/programacao/26863_o+naolugar+de+agada+tchainik>. 
Acesso em 05/08/2016. 
 
 
Figura 4 - Palhaço circense Chicharrão, José Carlos Queirollo 
 
Fonte: <http://blogln.ning.com/profiles/blogs/em-2011-espaco-para-o-circo>. Acesso em 
05/08/2016. 
35 
 
 
 
O palhaço Chicarrão, acima retratado, nascido em família circense no ano de 1889 
em Bagé, no Rio Grande do Sul, formou seu aprendizado a partir das apresentações 
circenses e dos saberes transmitidos pela família e por artistas mais antigos nos Circos 
do Brasil, Argentina e Uruguai, onde atuou com frequência. Naomi Silman, por outro 
lado, atriz do grupo Lume Teatro, graduou-se em Artes Cênicas pelo Goldsmith’s 
College, da Universidade de Londres, e aprofundou seus conhecimentos na arte de atriz 
na École Philippe Gaulier e na École International du Théâtre, de Jacques Lecoq, ambas 
em Paris. A partir da formação desses dois artistas, podemos pensar as bases da atuação 
palhacesca contemporânea no Brasil, composta a partir dos saberes circenses portados 
através de gerações, bem como das influências do clown da Europa. 
Atualmente as distinções entre palhaças, palhaços e clowns, como percebemos a 
partir dos comentários dos autores destacados, não estão restritas apenas à 
nomenclatura, mas também à multiplicidade de referências, bem como à potencialização 
do acesso às diversas maneiras possíveis de se trabalhar. Nota-se, ainda, constantes 
espaços de fricção entre os ditos palhaços circenses e aqueles teatrais ou clownescos. As 
diferenças estão, sobretudo, vinculadas às experiências de cada artista, que, em meio a 
tantas e tão difusas técnicas, busca seus meios de atuação. 
Heraldo Firmino, com sabedoria e simplicidade, conta que, no Brasil, “Você 
chega na frente de uma criança, ela não vai olhar para você e falar: -Oi, clown! Ela vai 
falar: -Oi, palhaço! Então palhaço é palhaço.” (Heraldo Firmino). Opto, assim, por 
utilizar nesta pesquisa o termo “palhaço”, em português, acompanhado também do seu 
emprego no gênero feminino, “palhaça”. No intuito de reconhecer que seres de ambos 
os gêneros são de extrema importância para a constituição da palhaçaria, empregamos 
também a expressão figuras palhacescas, capaz de contemplar as construtoras e os 
construtores desse ofício. 
Percebe-se, nos dias atuais, uma permeabilidade técnica capaz de reinventar a 
composição artística e de alimentá-la de fontes diversas. Há, ainda, um livre acesso a 
múltiplas vertentes palhacescas, assim como uma permissividade por parte dos artistas, 
que podem utilizar-se de técnicas circenses, de técnicas teatrais e da cultura popular em 
geral. 
No âmbito palhacesco, vale a singularidade criativa de cada artista posta em jogo 
com as circunstâncias do presente. Composta de uma memória ancestral e proposta em 
36 
 
 
 
momentos de encontro com o público, essa singularidade de ação ao longo dos tempos 
parece repetir-se tanto quanto renovar-se. 
Não restritos aos palcos, picadeiros, praças e espaços convencionais da cena, as 
palhaças e os palhaços fazem emergir suas contradições, mistérios e enigmas em 
diversos âmbitos sociais. Aqui, a investigação tem foco no hospital, mas para isso foi 
necessário desvelar as outras rotas perpassadas por essasfiguras ao longo da história até 
que nele pudessem se estabelecer. 
Para Burnier, os tipos cômicos trazem consigo elementos de uma genealogia e 
portam traços recorrentes na história da humanidade. Conforme a sua lógica, bufões e 
bobos da Idade Média; personagens imortais da commedia dell'arte; o palhaço do circo 
e o clown “[...] possuem uma mesma essência: colocar em exposição a estupidez do ser 
humano, relativizando normas e verdades sociais.” (BURNIER, 2001, p.34). 
Durante as celebrações e ritos religiosos, bem como nas representações cênicas 
populares da Antiguidade, por exemplo, sempre esteve presente uma oscilação entre o 
sagrado e o profano, fator que autoriza a convivência com a comicidade. Segundo 
Burnier, essa alternância é um fato que se repete em povos distintos, “[...] dos gregos até 
os aborígines da Nova Guiné, passando pelos europeus da Idade Média ou pelos 
lamaístas do Tibete.” (BURNIER, 2001, p. 34). 
A pesquisadora Alice Viveiros de Castro nos diz que o palhaço está presente em 
todas as culturas e que “[...] a mais antiga expressão do personagem é a que se faz 
presente nos rituais sagrados. Desde o início dos tempos, o riso foi e ainda é utilizado 
como elemento ritual para espantar o medo, especialmente o medo da morte.” 
(VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p.18). 
A existência das figuras cômicas é milenar. Sua presença vibra em rituais tribais e 
celebrações antigas, festividades religiosas, feiras populares, picadeiros circenses, 
palcos teatrais, principalmente os enraizados na vida popular. De origem controversa, as 
palhaças e os palhaços possuem facetas misteriosas. Segundo o pesquisador John 
Towsen: 
 
Sem dúvida os clowns foram aparecendo e desaparecendo desde o 
início dos tempos, e sua tradição foi tirada do “ói nós aqui outra vez!” 
evoca a chegada de todo um universo de clowns. Este mundo é tão 
diversificado quanto a própria vida, já que o herói de nossa história 
pode ser encontrado em um número surpreendente de disfarces, das 
aulas de clown aos bobos da corte; do encantador povoado indiano de 
37 
 
 
 
cheyenne “contrary”; no teatro, no rodeio e no circo. São todos 
clowns, e, no entanto, as diferenças entre eles são tão completamente 
fascinantes quanto suas similaridades (TOWSEN, 1976, p. 04 apud. 
SACCHET, 2009). 
 
Componentes do imaginário popular, essas figuras cômicas são calcadas na 
humanidade, em suas fraquezas, quedas e erros, revelando-os através do filtro da 
comicidade. Assim como salientou Towsen, o universo palhacesco é tão amplo como a 
própria vida, e é impossível definir o surgimento das palhaças, palhaços e clowns. As 
figuras cômicas certamente não são invenção ou descoberta de uma única pessoa, que 
imortalizou sua forma, mas componentes de um conjunto social, pois na sociedade 
sempre houve espaço para os fatores risíveis da existência. Essas figuras passaram e 
passam por um perpétuo movimento de redescoberta, e, para Towsen, “[...] como bobo, 
Jester ou Trickster – elas encontram razões suficientes nas necessidades humanas.” 
(TOWSEN, 1976, p. 04 apud. SACCHET, 2009). Conservando traços recorrentes na 
história da humanidade, palhaças e palhaços estabelecem-se nas sociedades gerando 
risos coletivos e modificando, com elas, suas possibilidades de existência. 
As figuras cômicas fazem parte de frondosa tradição, sendo que uma das suas 
mais antigas manifestações no contexto ocidental pode estar situada na chamada farsa 
atellana. Surgida na cidade de Atella, tal manifestação teatral é remetida ao século IV 
a.C.. Nas farsas, histórias de fácil assimilação por parte do público que dialogavam com 
sátiras sociais da atualidade, eram utilizadas máscaras que concerniam aos tipos físicos 
nelas representados (DE FREITAS, 2008). Para a pesquisadora Nanci de Freitas, a farsa 
atellana teria sido composta pelos seguintes tipos/personagens fixos: 
 
Pappus, um velho libidinoso, bonachão e ridículo, constantemente 
enamorado de mocinhas e vítima de pilhérias; Dossenus, um corcunda 
astucioso, com pretensões de filósofo e linguajar empolado, 
contrastando com a fala dos camponeses; Baccus e Maccus, uma 
dupla de glutões, sendo Baccus um camponês grosseiro, idiota, 
guloso, bêbado e infeliz nas aventuras amorosas, enquanto Maccus era 
um tipo fanfarrão, esperto e avarento, sempre se vangloriando de suas 
torpezas (DE FREITAS, 2008, p. 67). 
 
O comediógrafo Plauto (255 a.C. – 185 a.C.), para a autora, “[...] tornou-se 
célebre por conseguir dar forma literária a estas manifestações antigas do teatro popular, 
dando-lhes feições de personagens.” (DE FREITAS, 2008, p. 67). Essas manifestações 
teatrais populares apresentaram características que mais tarde foram reencontradas nos 
38 
 
 
 
personagens da commedia dell’arte, tais como a conotação popular das ações cênicas, a 
representação teatral, a sátira social e a sátira humana. 
Surgida por volta do século XVI na Itália, a commedia dell’arte, assim como a 
farsa atellana, utilizava-se de máscaras e tipos fixos em sua construção cênica. 
Originalmente, a commedia dell’arte não se utilizava de textos dramáticos, mas sim de 
roteiros de intrigas que serviam como suporte para as improvisações denominados 
canovacchios ou sogettos (BERTHOLD, 2014). Ao longo de repetidas representações, 
as atrizes e os atores dell’arte acumulavam um repertório pessoal de situações, recursos 
cômicos e técnicas corporais, tornando-se mestres de seu ofício, como explica o 
pesquisador Dário Fo: 
 
Os cômicos possuíam uma bagagem incalculável de situações, 
diálogos, gags, lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memória, 
as quais utilizavam no momento certo, com grande sentido de timing, 
dando a impressão de estar improvisando a cada instante. Era uma 
bagagem construída e assimilada com a prática de infinitas réplicas, 
de diferentes espetáculos, situações acontecidas também no contato 
direto com o público, mas a grande maioria era, certamente, fruto de 
exercício e estudo (FO, 1999, p. 17). 
 
Esses cômicos, muitas vezes, desempenhavam ao longo de décadas o mesmo 
papel nas representações, desenvolvendo profunda conexão com o personagem 
interpretado. Podemos pensar a organização dos personagens ou tipos fixos da 
commedia dell’arte hierarquicamente, e, ainda, dividi-los em três grupos centrais: os 
servos, os nobres e os enamorados. No primeiro grupo encontram-se Arlecchino, 
Briguella, Colombina, Punchinello, Zanni, entre vasta gama de personagens populares 
de gênero feminino ou masculino, representantes das classes baixas da população. No 
segundo, encontram-se Pantalone, Dottore e Capittano, representantes dos (pretensos) 
ricos, letrados, cultos. Estes, normalmente vinculados ao “mundo das aparências”, são 
constantemente ridicularizados em razão de seus defeitos, tais como a avareza, a gula, a 
fome sexual, a covardia. No último grupo estão os enamorados, que figuram como 
jovens pueris, movidos pela inocência e pelo intento de permanecer ao lado de sua 
amada ou seu amado. Normalmente são filhas e filhos dos nobres Dottore e/ou 
Pantalone e possuem índole bondosa, posta muitas vezes em oposição à índole dos 
nobres e dos servos. 
39 
 
 
 
A exacerbação dos defeitos e a busca pela comicidade sempre foram motrizes da 
commedia dell’arte, fatores que “transpiram nos poros” de seus personagens tipificados. 
Ridicularizando a própria estrutura social em que foram estigmatizados, repetem de 
forma única os acontecimentos da vida humana, exagerando-os com o objetivo de trazê-
los para o presente. Os vícios, os defeitos, as escatologias, as quedas, os tropeços, e 
também as virtudes, os malabarismos, as acrobacias, eram representados em praça 
pública por meio de figuras cômicas fortemente atreladas à vida popular. 
Esse gênero de teatro, que se difundiu pela Europa entre os séculos XVI e XVIII, 
influenciou e ainda influencia diversas criações teatrais. O dramaturgo, comediógrafo,

Continue navegando