Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS DAIANI CEZIMBRA SEVERO ROSSINI BRUM A ATUAÇÃO DE PALHAÇAS E PALHAÇOS: o hospital como palco de encontros NATAL/RN 2017 DAIANI CEZIMBRA SEVERO ROSSINI BRUM A ATUAÇÃO DE PALHAÇAS E PALHAÇOS: o hospital como palco de encontros Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para obtenção do grau de Mestre em Artes Cênicas. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira Porpino. NATAL/RN 2017 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART Brum, Daiani Cezimbra Severo Rossini. A atuação de palhaças e palhaços: o hospital como palco de encontros / Daiani Cezimbra Severo Rossini Brum. - Natal, 2017. 137f.: il. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira Porpino. 1. Atuação Cênica - Hospitais. 2. Teatro. 3. Risoterapia. I. Porpino, Karenine de Oliveira. II. Título. RN/UF/BS-DEART CDU 792.02 AGRADECIMENTOS A soma de experiências, saberes, dizeres, ações e corações de muitas pessoas foi fundamental na composição deste trabalho. Gostaria de destacar minha gratidão a Luiz Inácio Lula da Silva e a Dilma Vana Rousseff. A partir das iniciativas tomadas por ambos e através de muita luta, tive condições de subverter as limitações impostas pela minha condição social e aqui apresentar essa pesquisa. Sou grata à minha mãe, Janete Cezimbra Severo, e ao meu irmão, Matheus Cezimbra Severo, queridos parceiros de jornada; assim como à companheira amada, Flávia Maiara Lima Fagundes. Agradeço ao meu pai, Paulo Rossini Brum e família, pelo apoio. Simone Cezimbra Severo, Martina Cezimbra Pereira e Schu Pereira: agradeço-lhes pelas acolhidas e visitas. Tenho profundo agradecimento pelo meu encontro com a Tainar Gavião Leal e com o Peterson Gavião Leal, com a Édna Gavião, com o Paulo Leal, com a Raíne Gavião Pereira e com a Luna Leal Barbosa, família amorosa, amiga e de costumeiros braços abertos. Obrigada aos irmãos do Teatro Porque Não? pelas experiências compartilhadas na amizade e na entrega para o Teatro. Sou grata também à ONG Esparatrapo, em especial à Kelly Lima, à Camila Tiago e ao Xavier Ruiz, com os quais pude atuar nos palcos hospitalares, assim como à Inaiá Correa, que neles nos recebeu; à Renata Marques, pela importante recepção em Natal; à ONG Doutores da Alegria, sobretudo ao Wellington Nogueira, por receber esta pesquisa; aos professores, funcionários e colegas envolvidos no PFPJ5, pelas vivências intensas; aos entrevistados e entrevistadas pela disponibilidade em colaborar com a pesquisa. Obrigada também à turma de mestrado pela parceria constante nos “aperreios” e nos festejos. Agradeço à Gabriela Amado e à Mariane Magno pelo profissionalismo na orientação de pesquisas anteriores; à orientadora deste trabalho, Karenine Porpino, pela sensibilidade, paciência e liberdade com que me recebeu; ao professor Robson Haderchpek pela abertura e empenho; à professora Márcia Strazzacappa pela disponibilidade e pelas suas contribuições. Agradeço ao Fundo de Apoio à Pesquisa do Rio Grande do Norte (FAPERN) pela importante bolsa de mestrado e à Marina Zampirolo por tecer os detalhes finais deste trabalho. Por fim, aos encontros, pois “Cada ser é só, e ninguém pode dispensar os outros, não apenas por sua utilidade - que não está em questão aqui -, mas para a sua felicidade.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 50). Existe uma vitalidade, uma força vital, uma energia, uma vivacidade que é traduzida em ação por seu intermédio, e como em todos os tempos só existiu uma pessoa como você, esta expressão é única. Se você a bloquear, ela jamais voltará a se manifestar por intermédio de qualquer outra pessoa, e se perderá. (Martha Graham) RESUMO O presente trabalho trata-se de uma investigação em Artes Cênicas que teve como mote algumas inquietações pessoais da autora ao atuar como palhaça em hospitais de São Paulo e de Natal. A partir dessa experiência profissional, identificou-se que há peculiaridades no trabalho de atriz e de palhaça próprias aos diferentes espaços da sociedade. No contexto aqui pesquisado, destaca-se a necessidade que as figuras palhacescas têm de engendrar uma abertura em que possam se relacionar com os seres e com os acontecimentos do espaço e do tempo hospitalares. Por isso, pergunta-se: com base na experiência de profissionais palhaças e palhaços que atuam em contextos hospitalares, quais são os principais aspectos a serem considerados na atuação nesses espaços? No intuito de responder a essa questão, objetiva-se investigar a atuação de palhaças e palhaços em palcos hospitalares, contextualizando, para isso, tal atuação no âmbito das práticas cênicas. Além disso, a partir da descrição de experiências nos campos hospitalares, pretende-se identificar os principais aspectos que configuram essas vivências artísticas em contato com o cotidiano do hospital. Com base numa metodologia fenomenológica fundamentada em Merleau-Ponty (2006; 2007; 2011), buscou-se dialogar com experiências palhacescas hospitalares através de entrevistas realizadas com sete membros da Organização Não Governamental (ONG) Doutores da Alegria, bem como com o palhaço Ésio Magalhães, que fez parte do elenco da ONG até o ano de 2003. Como resultados desta pesquisa propõe-se a discussão sobre o jogo cênico a partir da mescla das técnicas de treinamento pessoal e das sensibilidades de cada artista, como também a atuação palhacesca no hospital como geradora de experiências de encontros teatrais. Para tanto o referencial teórico abrange a Fenomenologia de Merleau-Ponty (2006; 2007; 2011), o conceito de Jogo colocado por Huizinga (2014) e os estudos brasileiros sobre o riso, o cômico e a palhacaria, tais como os de Burnier (2001), Viveiros de Castro (2005), Bolognesi (2006), Kásper (2004), Wuo (1999; 2011) e Sacchet (2009). Palavras-Chave: Atuação Cênica. Teatro. Palhaçaria Hospitalar. Encontro. Fenomenologia. ABSTRACT This work is an investigation in Scenic Arts that had as motto some personal concerns of the author when acting as a clown in hospitals of São Paulo and Natal. From this professional experience, it has been identified that there are peculiarities in the work of actress and clown in different spaces of the society. In the context researched here, it is emphasized the need for the clowns to have to engender an opening in which they can relate to beings and to the events of space and hospital time. Therefore, it is asked: based on the experience of professional clowns who work in hospital settings, what are the main aspects to be considered in acting in these spaces? In order to answer these questions, the objective is to investigate the performance of clowns in hospitals, contextualizing, for this, such action within the framework of scenic practices. In addition, from the description of experiences in the hospital fields, we intend to identify the main aspects that configure these artistic experiences in contact with the daily life of the hospital. Based on a phenomenological methodology based on Merleau-Ponty (2006, 2007,2011), we sought to dialogue with hospital clownings experiences through interviews with seven members of the Non-Governmental Organization (NGOs) Doutores da Alegria, as well as the clown Ésio Magalhães, who was part of the NGO's cast until the year 2003. As a result of this research, we propose to discuss the scenic play based on the mixture of personal training techniques and the sensibilities of each artist, as well as the performance of clown in the hospital as experiences of theatrical meetings. In order to do so, the theoretical reference covers the Merleau-Ponty Phenomenology (2006, 2007, 2011), the play concept posed by Huizinga (2014) and the Brazilian studies on laughter, comics and palhacaria, such as Burnier 2001), Viveiros de Castro (2005), Bolognesi (2006), Kásper (2004), Wuo (1999; 2011) and Sacchet (2009). Key-words: Acting Scenic. Theater. Hospital Clowning. Meeting. Phenomenology. LISTA DE IMAGENS Figura 1 - Palhaça Brum (Daiani Brum) desenhada. ............................................................... 13 Figura 2 - Corrida de cadeiras com Doutor Lui (Luciano Pontes). ......................................... 29 Figura 3 - Espetáculo O Não Lugar de Ágada Tchainik, ........................................................ 34 Figura 4 - Palhaço circense Chicharrão, José Carlos Queirollo .............................................. 34 Figura 5 - Joseph Grimaldi ...................................................................................................... 41 Figura 6 - Espetáculo Zabobrim, o rei palhaço, do Barracão Teatro. ..................................... 45 Figura 7 - Bess, o deus da alegria. ........................................................................................... 54 Figura 8 - Doutoras Juca Pinduca (Juliana Gontijo) e Greta Garboreta (Sueli Andrade). ...... 66 Figura 9 - PFPJ 5. .................................................................................................................... 72 Figura 10 - Doutora Xaveco Fritza (Val de Carvalho) pegando na mão de um bebê. ............ 76 Figura 11 - Doutora Lola (Luciana Viacava) no corredor hospitalar. ..................................... 90 Figura 12 - Doutores Dud Grud (Eduardo Filho) e Eu_Zébio (Fábio Caio). .......................... 99 Figura 13 - Aroldo, o porta-soro, e os Doutores Dus Cuais Carigudum (Henrique Rímoli) e Sandoval (Sandro Fontes). ..................................................................................... 113 Figura 14 - Doutora Brum (2013). ........................................................................................ 121 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10 2 PALHAÇAS E PALHAÇOS: RISOS COLETIVOS.......................................... 23 3 PALCOS HOSPITALARES............................................................................... 51 4 CAMPO DE EXPERIÊNCIAS............................................................................. 4.1 JOGO DE TÉCNICAS E SENSIBILIDADES..................................................... 4.2 ENCONTROS TEATRAIS................................................................................... 77 85 103 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 118 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 123 APÊNDICES.............................................................................................................. APÊNDICE A - LISTA DE FILMES........................................................................ ANEXOS..................................................................................................................... ANEXO 1 - CARTA PARA OS DOUTORES DA ALEGRIA................................ ANEXO 2 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO.......... ANEXO 3 – EDITAL PFPJ....................................................................................... 130 130 132 132 133 135 11 1 INTRODUÇÃO Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão. Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio (GALEANO, 2015, p. 123). Contraditória como o ser humano, que transita entre o profano e o sagrado, a fé na mutabilidade da existência descrita por Galeano, pode ser digna de confiança. Aqui contextualizada, essa fé acolheu incalculável soma de horas em desassossegos, rascunhos, sonhos acordados, desacertos, recomeços. Em meio a contradições inconstantes e descobertas, imergi no processo desta pesquisa. Com imensa alegria, apresento aqui o fruto de uma jornada intensiva, tecido por constantes atos de reinvenção e produto de investigações, práticas, reflexões e diálogos sobre a atuação cênica de palhaças e palhaços 1 em palcos hospitalares. Contemporâneos espaços de atuação, esses palcos fornecem material para uma discussão sobre novos pressupostos do ponto de vista da performance palhacesca, desta feita voltada para o jogo com os novos tempo e espaço em que se estabelecem e para com os seres que nesses ambientes habitam. Nos palcos hospitalares, os espectadores não são o público decidido a ir ao teatro ou ao circo para assistir aos gracejos das figuras palhacescas, como ocorre corriqueiramente. A plateia desses espaços é composta, na maioria dos casos observados nesta pesquisa, por crianças hospitalizadas, seus acompanhantes, equipe médica e funcionários do hospital, que muitas vezes vivenciam situações delicadas e extremas, que podem envolver a vida e a morte. A permeabilidade para com o encontro, assim, faz-se fundamental, pois o foco desse público tão específico está normalmente voltado à interação com a doença e com o cuidado. Parto, nesse sentido, da seguinte afirmação do encenador polonês Jerzy Grotowski: “A essência do teatro é o encontro.” (GROTOWSKI, 2011, p. 44). Na especificidade teatral manifesta no contexto hospitalar, os encontros significam uma 1 No primeiro capítulo deste trabalho a discussão tem início no entorno das palavras palhaça e palhaço, sendo que por ora compreende-se que tais seres são aqueles que exercem o oficio cômico regularmente a partir de pesquisas e práticas que desenvolvam uma atitude de jogo cênico; de autonomia do ponto de vista criativo e de treinamento pessoal e de abertura para a alteridade. Independentemente das técnicas empregadas, opções estéticas ou espaços de atuação, entende-se o trabalho palhacesco como aquele que soma saberes e vivências que compõem, ao longo dos anos, as características pessoais de cada palhaça ou palhaço. 12 possibilidade de deixar-se afetar pelo outro, pelos seus dramas e suas proposições cotidianas: constitui-se uma zona de convergência entre a arte e a natureza da vida. Nos espaços hospitalares, fui acolhida como artista e pesquisadora através do contato com a ONG Esparatrapo 2 , no ano de 2013. O encontro com a ONG, além de trazer experiências de atuação contínua como palhaça no contexto hospitalar, levou-me a viajar pelo nordeste brasileiro em 2014, onde pude, após percorrer dez cidades atuando como palhaça em hospitais e escolas, fundar e manter atividades contínuas por todo um ano, em 2015, na unidade da Esparatrapo em Natal (RN). Anteriormente ao processo vivido com a ONG Esparatrapo, obtive formação na arte da palhaçaria junto à Organização Não Governamental Doutores da Alegria, importantegrupo de palhaças e palhaços que atuam em contextos hospitalares, e que ao longo de vinte e cinco anos destaca-se por realizar ações artísticas, de pesquisa e de formação no campo das Artes Cênicas, dentro e fora dos contextos hospitalares. A jornada de estudos da qual participei como aluna trata-se do Programa de Formação de Palhaços para Jovens (PFPJ) 3 dos Doutores da Alegria. A investigação proposta nesta pesquisa, assim, não se aparta de minhas anteriores travessias investigativas, mas decorre de seus fluxos. Experiências vividas como estudante, atriz, palhaça, e especialmente como palhaça contextualizada no hospital apresentam-se aqui como perspectivas sobre o fenômeno investigado. Nestas páginas, compartilho alguns resquícios de vivências palhacescas referentes aos encontros ocorridos em contextos hospitalares. Esses vestígios, ora mais, ora menos palpáveis, são meus e de outras palhaças e palhaços que nos palcos hospitalares se estabeleceram compondo múltiplas sensibilidades e experiências. Em meio a esses fragmentos figuram fotografias, descrições de experiências e outras recordações, como por exemplo, o retrato da Doutora Brum 4 , que foi desenhado a partir 2 A ONG Esparatapo atuou entre 2006 e 2015 no estado de São Paulo (SP) e no ano de 2015 em Natal (RN), ano em que se encerraram suas atividades nacionalmente. Composta por palhaças e palhaços profissionais, a organização surgiu, assim como diversas outras iniciativas no Brasil, através do campo aberto pelos Doutores da Alegria. 3 O PFPJ foi criado em 2004 e mantém as suas atividades até os dias de hoje, formando a cada dois anos 25 palhaços que ingressam com idade entre 17 e 23 anos no grupo. Esses jovens vivenciam quatro horas diárias de aulas ao longo de dois anos, sob a condução de artistas dos Doutores da Alegria e de profissionais convidados, totalizando mais de 1650 horas de aula. O curso não tem por objetivo formar artistas que atuem apenas no âmbito hospitalar, mas sim em diversos espaços da sociedade. 4 O retrato foi desenhado em 2015 por um menino de cerca de nove anos, hospitalizado no Hospital Infantil Varela Santiago de Natal (RN). 13 de seu característico procedimento do chá flutuante, forte aliado no tratamento de “hipnose boboterápica”: Figura 1 - Palhaça Brum (Daiani Brum) desenhada. Fonte: acervo da pesquisadora. O procedimento de “hipnose boboterápica”, frequentemente aplicado ao autor do desenho acima, diz respeito à realização de um momento de concentração em que a palhaça realiza um procedimento de ilusionismo que tem por objetivo fixar a atenção dos espectadores. Curiosos com o funcionamento do “chá mágico”, os espectadores 14 ficam como que hipnotizados. Ao final do procedimento, na maioria dos casos observados, as crianças agitam-se, tentando desvendar o mistério, mas basta voltar o ilusionismo para que elas retornem instantaneamente ao estado de concentração. Por ter ficado marcado na memória do espectador, o tratamento de “hipnose boboterápica” foi retratado. Outros encontros igualmente carregados de sensibilidade e prolongados pela convivência se entrepuseram nesses caminhos, sendo que os resquícios da maioria deles se encontram perpetuados na memória daqueles que os vivenciaram. Ao atravessar intenso processo de formação na área de palhaçaria e atuar profissionalmente como palhaça em hospitais do Brasil, sobretudo em São Paulo e Natal, vivenciei experiências que me permitiram identificar peculiaridades desse espaço de atuação palhacesca em relação a outros. Dentre elas, está o encontro entre artistas e público, que se faz de maneira singular, agregando novas significações às figuras palhacescas e aos contextos hospitalares. Desse modo, este trabalho tem por objetivo investigar a atuação de palhaças e palhaços em palcos hospitalares. Para tanto, buscamos contextualizar a atuação palhacesca no âmbito das práticas cênicas, bem como descrever experiências de atuação nos campos hospitalares e identificar os principais aspectos que configuram essas vivências artísticas em contato com o cotidiano do hospital. Tendo isso em vista, pergunta-se: comparado aos demais âmbitos de atuação palhacesca, quais são as principais peculiaridades do hospital? Com base na experiência de profissionais palhaças e palhaços que atuam em contextos hospitalares, quais são os principais aspectos da atuação nesse espaço e nesse tempo de atuação? No intuito de responder a essas questões, valho-me de referencial teórico composto pela Fenomenologia de Merleau-Ponty (2006; 2007; 2011), pelo conceito de jogo proposto por Huizinga (2014) e pelos estudos brasileiros sobre o riso, o cômico e a palhaçaria elaborados por Burnier (2001), Viveiros de Castro (2005), Bolognesi (2006), Kásper (2004), Wuo (1999; 2011) e Sacchet (2009). Ao mergulhar nos processos de pesquisa prática e teórica na área da palhaçaria contextualizada ao hospital, deparei-me com um alto contingente de memórias, experiências, encontros e sensibilidades, porém com baixos registros de estudos acadêmicos que discutam esse fenômeno pelo viés das Artes Cênicas. Nesse âmbito, pude identificar a pesquisa de doutorado da professora Ana Achcar (2007), que propõe uma metodologia de formação para palhaços atuantes de contextos hospitalares. 15 Esse fenômeno tem maior representatividade investigativo-acadêmica na área da Saúde. No campo da Psicologia, por exemplo, há as pesquisas de Morgana Masetti (1998; 2001; 2003; 2013; 2014), voltadas para a humanização das relações no hospital, bem como para a busca por uma ética do encontro no contexto hospitalar, pensada por meio da atuação de palhaças e palhaços nesses espaços. Na área da Enfermagem, tem destaque a pesquisa de Antônio Sena (2011), que discute a arte da palhaçaria no contexto hospitalar a partir da percepção das e dos cuidadores. Na área de Medicina, existe a pesquisa de Arlene de Sousa Barcelos Oliveira (2014), que diz respeito à investigação da arte palhacesca como ferramenta de ensino-aprendizagem na graduação em Medicina. Na Educação Física, é possível encontrar as pesquisas de Ana Elvira Wuo (1999; 2011), que desenvolvem o conceito de clown visitador de crianças hospitalizadas como instrumento de lazer. No âmbito da pesquisa sobre a atuação artística, há considerável número de materiais produzidos pela ONG Doutores da Alegria, como a série de revistas Boca Larga, lançada com periodicidade anual entre 2005 e 2008. Tais revistas contam com entrevistas, depoimentos, relatos sobre o trabalho dos Doutores, textos e contribuições de autores diversos direcionados às Artes Cênicas. Embora esta pesquisa não seja de caráter documental, considerei relevante descrever o contexto dos Doutores da Alegria pelos motivos já descritos. Considero que o momento é propício para a realização de uma pesquisa acadêmica sobre o fenômeno da atuação palhacesca hospitalar pelo viés das Artes Cênicas, uma vez que são crescentes as iniciativas artísticas de cunho semelhante no Brasil. Nas referências aqui investigadas, habitam experiências vividas por artistas cênicos profissionais que podem contribuir para o aprofundamento dos estudos sobre essa prática, assim como para o fomento de mais iniciativas semelhantes. Valorizando as experiências vividas por mim e pelos entrevistados, tomo-as como ponto de partida para a investigação aqui proposta. Busco, desse modo, propor uma atitude metodológica que dialogue com as sensibilidades implícitas na atuação palhacesca hospitalar, perpetuadas no corpo e no coração daqueles que a constituem tendo como meio de expressão as Artes Cênicas. Assim, dialogo com a Fenomenologia, discutida, sobretudo através dos estudos do filósofo Merleau-Ponty, segundo o qual o corpo pode ser concebido em movimento, envolvendosuas sensibilidades, como meio de entrelaçamento com o mundo e enquanto 16 expressão criadora (MERLEAU-PONTY, 2006; 2007; 2011). A Fenomenologia propõe sua investigação partindo da experiência. Em consonância com essa perspectiva, foram realizadas entrevistas com oito profissionais que atuam ou atuaram em palcos hospitalares: sete são pertencentes ao elenco da ONG Doutores da Alegria e um atuou na organização entre 1998 e 2003, destacando-se atualmente em outros espaços da sociedade. Os entrevistados foram: Wellington Nogueira, Marcelo Marcon, Roberta Calza, Heraldo Firmino, Luciana Viacava, Raul Figueiredo, Du Circo (Eduardo Pinheiro) e Ésio Magalhães. Todos os sujeitos do grupo de entrevistados trabalham com a atuação palhacesca e com a formação na arte da palhaçaria. Essa foi ponte central de conexão entre mim e os entrevistados, uma vez que fui aluna de todas e de todos. A ONG Doutores da Alegria permitiu que as atuadoras e os atuadores de seu elenco concedessem as entrevistas, e estes forneceram os direitos de utilização de seus conteúdos nesta pesquisa. Tais acordos foram firmados por meio da assinatura dos termos encontrados nos anexos 1 e 2 deste trabalho. Os termos foram assinados pela direção da ONG e por cada entrevistada ou entrevistado. Com base nessas experiências e vivências, busquei produzir um diálogo sobre a atuação palhacesca hospitalar e sobre a recente constituição desse campo artístico e acadêmico, procurando estabelecer, assim, uma zona de convergência com a Fenomenologia. A partir dessa perspectiva, houve a possibilidade de proceder a uma investigação e descrição do fenômeno estudado do ponto de vista da experiência do ser humano no mundo (MERLEAU-PONTY, 2006; 2007; 2011). Essa atitude demanda uma suspensão (epoché) dos possíveis julgamentos e pressupostos sobre a natureza investigada e propõe um retorno às “coisas mesmas”, tais como elas se apresentam (MARTINS, 1992). Frequentemente sujeito a intervenções críticas e a julgamentos, o olhar, a partir do retorno às “coisas mesmas”, ou seja, à percepção de como o fenômeno se dá no mundo vivido, busca desobstruir-se, na tentativa de visualizar o fenômeno tal como ele se apresenta, valorizando a experiência (MARTINS, 1992). Buscando tomar o fenômeno de atuação palhacesca hospitalar tal como ele se deu para as atuadoras e atuadores nele envolvidos, suas vivências foram consideradas como parte fundamental na discussão sobre os novos desafios da palhaçaria contextualizada aos palcos hospitalares. 17 A atitude fenomenológica valoriza o Lebenswelt, palavra alemã que designa o mundo vivido (HUSSERL, 2006). O retorno ao Lebenswelt refere-se à busca por um ato transgressivo perante o cientificismo, dialogando com o universo das experiências, que, segundo o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, antecede o universo das reflexões. Nas palavras do autor: Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação cientifica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem – primeiramente nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um riacho. Este movimento é absolutamente distinto do retorno idealista à consciência, e a exigência de uma descrição pura exclui tanto o procedimento da análise reflexiva quanto o da explicação cientifica. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 4). Merleau-Ponty propõe uma retomada do engendro cognitivo corpóreo, ampliando as possibilidades de intersecção do corpo com o mundo. Essa intersecção ou fricção é capaz de produzir saberes sensíveis para além do campo do pensamento e das reproduções conceituais. O autor não exclui a intersubjetividade, e coloca-a como implícita nos processos de desenvolvimento humano e social, enfatizando as sensações do corpo como fundamentais ao processo cognitivo. A valorização do mundo vivido do ponto de vista fenomenológico possibilita a compreensão de múltiplas experiências perceptivas, pois, como afirma o filósofo, “Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 3). Aliada, portanto, à Fenomenologia, esta pesquisa atrela-se às vivências de palhaças e palhaços que compõem sua gama de saberes e sensibilidades a partir de suas experiências de atuação nos palcos hospitalares. Para Merleau-Ponty, o saber se inscreve no corpo ao longo de nossa relação com as experiências no mundo vivido. O corpo não é buscado fora do indivíduo ou submetido a alguma relação com a dualidade entre corpo e mente; o indivíduo é um corpo e uma mente, não os possui (MERLEAU-PONTY, 2001; 2006; 2007). O ser humano entrelaçado ao mundo é capaz de abrir-se para a realidade sensível, que se dá através do fluxo da vida, e do encontro com outros seres humanos. Para o filósofo, “[...] é por meio de meu corpo que compreendo o outro, assim como é por meio de meu corpo que percebo as ‘coisas’.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.253). 18 Merleau-Ponty postula que o mundo fenomenológico considera “[...] não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem umas das outras [...].” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 18). Desse modo, uma atitude que se pretende fenomenológica não se pode apartar da subjetividade, nem tampouco da intersubjetividade, inerentes à presença do ser humano no mundo. Estas, para o autor, formam a unidade do mundo fenomenológico, que se dá através da “[...] retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, e da experiência do outro na minha.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 18). Nessa perspectiva, destacam-se as relações entre indivíduos no mundo, como traz o pesquisador brasileiro Joel Martins: [...] somos uns para os outros, e ‘uns-com-os-outros’, precisamos, necessariamente, ter uma aparência mútua. Não se trata de uma aparência externa, mas de uma aparência ou perspectiva um do outro. Minha visão dos outros e a (visão) que eles têm de mim é que permitem nossa posição no mundo (MARTINS, 1999, p. 54). O encontro entre os indivíduos é fator imprescindível na investigação fenomenológica, assim como o encontro dos seres com o mundo e o seu caminhar em direção a ele. Imprescindível também é esse encontro no contexto da investigação palhacesca hospitalar aqui proposta, pois é em seus entornos que se encontram as intersecções cênicas que são objeto desta pesquisa. A descrição fenomenológica, aqui proposta, é constituída por três elementos: a percepção, entendida com primazia no processo reflexivo; a consciência direcionada ao corpo vida (ao corpo vivido) ou a “descoberta da subjetividade e da intersubjetividade” (MARTINS, 1999, p. 58) e o “[...] sujeito, pessoa ou indivíduo que se vê capaz de experienciar o corpo vivido por meio da consciência que é a conexão entre o indivíduo, os outros e o mundo.” (MERLEAU-PONTY, 1945 apud MARTINS, 1999, p. 58). Aqui, não se propõe uma explicação do fenômeno, mas sua descrição, tal como ele se apresenta. A descrição fenomenológica, segundo a pesquisadora brasileira Maria Aparecida Bicudo, “Se limita a descrever o visto, o sentido, a experiência como vivida pelo sujeito. Não admite julgamentos e avaliações. Apenas descreve.” (BICUDO, 2000, p. 77). Aliada à descrição, a redução fenomenológica tem por objetivo, enquanto momento de uma trajetória de pesquisa, investigar e sistematizar os componentes da 19 descrição que fazem parte da essência do fenômeno estudado (MARTINS, 1999). É dividida em três momentos: no primeiro, tem por objetivo colocar o fenômeno em suspensão (epoché), buscando compreender a experiência vivida sem imprimir as interpretaçõespessoais da pesquisadora. O segundo momento é destinado à interpretação dos pontos focais, ou seja, as descrições são separadas e organizadas em grupos temáticos chamados unidades de significado. Esses grupos temáticos, no caso desta pesquisa, foram organizados em relação às questões abordadas nas entrevistas e divididos inicialmente em oito unidades de significados, destacadas a partir do conteúdo encontrado nas falas dos entrevistados. São elas: (1) as experiências anteriores ao hospital; (2) como os entrevistados veem o trabalho do palhaço; (3) os desafios e os objetivos da atuação; (4) a importância da relação com o outro; (5) as diferenças e as semelhanças com outros contextos de atuação; (6) as técnicas cênicas no preparo artístico; (7) as experiências no âmbito hospitalar; (8) o impacto do trabalho sobre si. Pretendendo compor uma compreensão fenomenológica acerca das referidas unidades, primei por uma reflexão que decorresse do processo interpretativo do fenômeno. A identificação de significações essenciais na descrição e na redução fenomenológicas, como aponta Martins, são “[...] uma forma de investigação da experiência.” (MARTINS, 1999, p. 60). Dessas oito unidades de significados, foi realizada uma nova redução, em que elas foram sintetizadas em apenas três, que trago para a discussão especialmente no capítulo quatro deste trabalho. São elas: (1) o jogo; (2) as técnicas e sensibilidades e (3) o encontro. A Fenomenologia é compreendida neste trabalho, ainda, enquanto atitude metodológica capaz de valorizar a sensibilidade implícita nas experiências do mundo vivido. Tais experiências, do ponto de vista investigativo em Merleau-Ponty, são discutidas em conexão com as manifestações expressivas do corpo. Segundo a pesquisadora brasileira Petrúcia da Nóbrega, A dimensão expressiva do corpo é enfatizada por Merleau-Ponty como comunicação da realidade sensível, dimensão poética da corporeidade comunicada por meio do gesto. Por meio do logos sensível, estético, coloca-se a experiência perceptiva como campo de possibilidades para o conhecimento, investido de plasticidade e beleza de formas, texturas, sabores, odores, cores e sons. O corpo e o conhecimento sensível são compreendidos como obra de arte, aberta e inacabada (NÓBREGA, 2008, p. 147). 20 Esse sentido estético encontrado na corporeidade habita a experiência vivida do indivíduo, possibilitando um conhecimento sensível sobre o mundo. Segundo Nóbrega, encontra-se em Merleau-Ponty uma atitude de “[...] convivência poética com o corpo, por meio do logos estético; convida a uma abertura ao mundo e às configurações desenhadas pelas experiências dos sujeitos.” (NÓBREGA, 2008. p. 147). A pesquisadora Petrúcia da Nóbrega enfatiza o caráter corpóreo abordado por Merleau- Ponty e aproxima a Fenomenologia de um mundo voltado aos sentidos, situando a Filosofia não como detentora da verdade, mas como geradora de possibilidades oriundas da existência humana. Concordo, dessa forma, com a percepção de Nóbrega, segundo a qual a Fenomenologia habita o sensível e “[...] pensa o mundo a partir do contato com o espaço, o tempo, a presença e a animação do corpo através do movimento que transforma o mundo em obra de pensamento, obra de linguagem, obra de arte.” (NÓBREGA, 2015, p.98). Voltam-se as atenções para um aspecto humano em contato com o mundo, que necessita dialogar com o decorrer constante de situações e acontecimentos tão imprevisíveis quanto implícitos no fluxo da vida, negando um conhecimento que se dê de modo puramente racional. Para a pesquisadora brasileira Karenine Porpino, esse conhecimento se dá igualmente a partir da sensibilidade, da arte: “Participar da criação de um objeto estético é também criar a si mesmo, é poder tornar sempre a um começo repleto de horizontes ilimitados e poder apreender a simbiose entre vários fenômenos de existência.” (PORPINO, 2001, p. 113). Conhecer, então, é aderir ao eterno movimento de criação de si, de novas formas de conceber os arredores, de outrem, do mundo. Nesse movimento, antes de engessar ou sentenciar um potencial cognitivo, busca-se ampliar a compreensão do fenômeno investigado, considerando as possibilidades transformadoras da arte, tão dinâmicas quanto variáveis, humanas e passíveis de encontros. Coaduno, assim, com o pensamento de Porpino: A arte modifica nossa existência com seu encanto ou sua brutalidade, nos faz leves ou estupefatos. De uma forma ou de outra, modifica nosso olhar, ao mesmo tempo em que a modificamos com o sentido que criamos para ela e compartilhamos com outros apreciadores. Assim a arte enlaça o criador e o apreciador no mesmo espaço poético, que é sempre interminável (PORPINO, 2012, p. 5). 21 A arte, para a autora, é capaz de ligar os seres humanos através das diversas maneiras possíveis de ser. Nóbrega, também de acordo, afirma que: “A experiência estética amplia a operação expressiva do corpo e a percepção, afinando os sentidos, aguçando a sensibilidade, elaborando a linguagem, a expressão e a comunicação.” (NÓBREGA, 2010, p 93). É necessário, portanto, que os aspectos artísticos estejam presentes no cotidiano, ampliando as possibilidades perceptivas dos seres humanos e potencializando suas referências estéticas e culturais. É pertinente, também, a percepção da pesquisadora Márcia Strazzacappa, quando postula que: [...] se a arte só se produz nas práticas sociais, também só pode ser aprendida pela mediação de outras pessoas. Não é o simples contato esporádico com algumas obras e muito menos a mera estimulação sensorial que fará com que alguém desperte uma sensibilidade para linguagens artísticas. Assim, mais que entrar em contato com, há a necessidade de se apropriar de, presente no fazer, experimentar, arriscar, testar, todas atividades inerentes à criação. (STRAZZACAPPA; SCHROEDER; SCHROEDER, 2005, p.77). A atuação palhacesca no hospital se aproxima dessa lógica, tendo em vista sua frequência de acontecimento, bem como as possibilidades de fazer com que os espectadores se apropriem das ações cênicas, experimentem-nas e as componham. No âmbito das vivências de cada indivíduo em contato com os outros e com o mundo, mesclam-se singularidades na composição da pluralidade artística. Tal pensamento vai ao encontro da seguinte concepção de Grotowski: “A arte não é a fonte da ciência. É a experiência a que nos entregamos quando nos abrimos para os outros, quando nos confrontamos com eles para nos entender [...] no sentido elementar e humano.” (GROTOWSKI, 2011, p. 46). No contexto do hospital, o contato entre individualidades resulta em criações de cunho coletivo, compostas por seres que vivenciam uma situação de encontro no momento em que elas ocorrem. Dada a recente constituição da atuação palhacesca hospitalar, foi necessário contextualizar o universo em que ela acontece. Assim, no primeiro capítulo deste trabalho, trago elementos que compõem um diálogo sobre a atuação das figuras palhacescas na história da humanidade, bem como sobre características recorrentes dessas figuras ao longo dos milênios. 22 No segundo capítulo, traço os possíveis percursos que conduziram, com base em estudos bibliográficos, as figuras palhacescas até os palcos hospitalares, onde contemporaneamente muitas se estabelecem. Nessa parte do trabalho, situo a ONG Doutores da Alegria, contexto em que parte da pesquisa foi realizada. No capítulo terceiro, debruço-me sobre as experiências de palhaças e palhaços em contextos hospitalares; trazendo para a discussão as três unidades de significados encontradas a partir da redução fenomenológica do conteúdo das entrevistas cedidas para esta pesquisa, que são o jogo cênico, o treinamento pessoal mesclado com as sensibilidades de cada artista e a abertura para o encontro. Por fim, trago as consideraçõesfinais acerca desta investigação nos âmbitos artístico e acadêmico. Aproximando-se de um processo artístico criativo, a composição desta pesquisa revelou uma constante necessidade de nutrir-me de conteúdos. Entre eles compartilho, ao fim deste trabalho, no Apêndice A, uma lista de filmes que têm, direta ou indiretamente, ligação com a atuação palhacesca hospitalar, já que abordam o universo da criança, da ludicidade, da fantasia, da palhaçaria, da comicidade, dentre outros. Do mesmo modo, trago, ao longo da escrita, imagens que auxiliam a caracterização do fenômeno investigado e as experiências por ele geradas. 23 2 PALHAÇAS E PALHAÇOS: RISOS COLETIVOS José Luis Castro, o carpinteiro do bairro, tem a mão muito boa. A madeira, que sabe que ele a ama, deixa-se fazer. O pai de José Luis tinha vindo lá de uma aldeia de Pontevedra para o Rio da Prata. O filho recorda o pai, o rosto aceso debaixo do chapéu-panamá, a gravata de seda no colarinho do pijama azul celeste, e sempre, sempre contando histórias desopilantes. Onde ele estava, lembra o filho, o riso acontecia. De todas as partes vinha gente para rir, quando ele contava, e a multidão se amontoava. Nos velórios era preciso levantar o ataúde, para que todos coubessem – e assim o morto ficava em pé para escutar com o devido respeito àquelas coisas todas, ditas com tanta graça. E de tudo o que José Luis aprendeu de seu pai, isso foi o principal: - O importante é rir – ensinou-lhe o velho. - E rir juntos (GALEANO, 2015, p. 215). Frequentemente, ao vivenciar a atuação de palhaças e palhaços, seja como palhaça, seja como espectadora, chama-me a atenção o fato de que as pessoas costumam unir-se em momentos de riso ou de estranhamento, e, mesmo entre os desconhecidos que compõem uma plateia, acabam trocando olhares para concordar, duvidar ou simplesmente partilhar o riso existente. No fragmento narrado pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano, até mesmo um defunto se junta aos vivos para celebrar a lição do velho homem: a importância de que o riso seja coletivo. Nos picadeiros circenses, nos palcos teatrais, nas praças ou nos corredores hospitalares, outros seres se assemelham ao pai de José Luis. Tais seres promovem o riso onde quer que estejam desencadeando a constituição de um elo entre eles e o público, expresso pelo olhar, pela maneira de colocar-se no tempo e no espaço, pela abertura com que se dão aos outros. Ao encontrarem-se com as possibilidades abertas pelas figuras palhacescas e com seu fulgor, os espectadores vivenciam momentos em que estão juntos, compreendendo- se como seres indivisíveis em momentos de riso. A interação com as figuras palhacescas pode compor uma maneira de existir que é compartilhada através de símbolos comuns, a ponto de os espectadores conectarem suas vidas com a coletividade da existência. Igualmente, por parte dos seres que desencadeiam o riso, faz-se necessária uma abertura para a coletividade da existência, para a percepção de suas ações. Assim, o velho homem, ao contar suas histórias, devia perceber a presença dos ouvintes, conectando-se com eles. A composição artística das palhaças e dos palhaços não ocorre 24 de modo individual, pelo contrário, desenvolve-se a partir do contato com outras existências artísticas, humanas e sociais. No momento do encontro com espectadores; com profissionais e mestres da palhaçaria e com base em uma memória milenar constituída por figuras cômicas que perpassam a história da humanidade, constitui-se a atuação palhacesca, propondo coletividades permeadas pelo riso. É válido, nesse sentido, considerarmos o relato de Ésio Magalhães, criador do Palhaço Zabobrim, quando diz que: “[...] palhaço não se faz sozinho, é o resultado de muitos elementos. Tantos dos mestres que vieram antes como das suas referências estéticas e de todo o trabalho dos palhaços que nos antecederam. É resultado do imaginário do público e do seu senso de humor.” (Ésio Magalhães) 5 . Seja em palcos convencionais, tais como os de rua, teatros e picadeiros circenses, seja em espaços alternativos, como o hospital, destaca-se a coletividade atrelada à composição palhacesca, bem como ao riso que ela gera, igualmente propenso às coletividades. Assim, trago no presente capítulo um diálogo com a coletividade do riso palhacesco, seguido de uma discussão sobre a etimologia das palavras palhaça, palhaço e clown, utilizados nesta pesquisa nos sentidos que lhes são os mais atribuídos contemporaneamente. Após esse levantamento, perpasso por traços históricos deixados pelas figuras palhacescas ao longo de milênios, bem como por aspectos de sua existência presentes na atualidade. Por fim, focalizo aquele que aqui é tido como um dos principais aspectos das figuras palhacescas: a abertura que elas necessitam cultivar para a alteridade, uma vez que que sua atuação busca desencadear risos coletivos. Para a pesquisadora Karenine Porpino, a partir da arte, [...] estamos atados ao outro mesmo quando sequer o conhecemos. O artista sabe ou intui essa aproximação quando cria as suas obras a exemplo e semelhança de si mesmo, a exemplo de seus modos de habitar o tempo e o espaço. Todos vivemos essas possibilidades diversas, e é o compartilhar desses modos diferentes de ser que nos liga pela arte. (PORPINO, 2012, p.7). As palhaças e os palhaços, considerados como existências coletivas, evidenciam essas ligações humanas, uma vez que são as experiências advindas dessas relações que compõem seu trabalho em qualquer âmbito de atuação. 5 A entrevista concedida por Ésio Magalhães será publicada na íntegra pela revista Urdimento, n.º 28 do Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, com lançamento previsto para julho de 2017. 25 Nessa mesma direção, Grotowski salienta que “[...] o teatro é um ato engendrado por reações e impulsos humanos, por contato entre as pessoas.” (GROTOWSKI, 2011, p. 45). Sem o contato entre seres humanos, afirma o autor, torna-se impossível a concretização do ato teatral, já que a arte é “[...] a experiência que adquirimos quando nos abrimos para os outros, quando nos confrontamos com eles, a fim de nos compreendermos melhor [...] num sentido elementar e humano.” (GROTOWSKI, 1971, p. 43). O Teatro pode acontecer sem a utilização de figurinos, cenários, iluminação, maquiagem, porém um acontecimento teatral exige minimamente o encontro entre um ator e um espectador (BROOK, 1999). Tal conjunção, em seus aspectos elementares, já pressupõe uma coletividade, ao menos estabelecida entre dois seres que se encontram. Ampliando as proporções cênicas do encontro, esse fator coletivo muitas vezes estende- se ao posicionamento cotidiano dos espectadores, que se põem a olhar para os lados em busca de compartilhar suas experiências momentâneas. Os espectadores tornam-se cúmplices de um acontecimento que oferece certa dose de transgressão ao cenário cotidiano. Essa transgressão, explica Bolognesi, dialoga com os números cômicos, que “[...] ao explorar os estereótipos e situações extremas, evidenciam os limites psicológicos e sociais do existir.” (BOLOGNESI, 2006, p.14). Ao vivenciar a experiência da atuação palhacesca, os espectadores tornam-se aliados na subversão da existência, pois compõem junto das palhaças e dos palhaços o risco de extravasar a mecanicidade impregnada no cotidiano, criando novas possibilidades de existir coletivamente. As figuras palhacescas, uma vez que desconstroem as limitações impostas pela repetição de ações cotidianas, encontram maneiras de reinventar as relações humanas, e mesmo no ato de repetir realizam maneiras inovadoras de se relacionar. Nesse sentido, o tom que o filósofo francês Gilles Deleuze dá para a repetição aproxima-se daquele empregado pelas figuraspalhacescas, que se afastam da rigidez mecânica, da linearidade. O autor propõe que “[...] o evento repetido seja recriado em um sentido radical: ele (re)surge a cada momento como Novo.” (DELEUZE, 1988, p. 11). Para as figuras palhacescas, assim como para Deleuze, repetir não se trata de fazer igual. O conceito de repetição em Deleuze diz respeito a uma repetição que se encontra oculta, em que um diferencial sempre se desloca e disfarça. Implícito em toda a repetição, esse diferencial é o seu correlato. O filósofo aponta que “[...] é a diferença 26 que dá a ver e que multiplica os corpos; mas é a repetição que dá a falar e que autentifica o múltiplo, que dele faz acontecimento espiritual.” (DELEUZE, 2003, p. 298). Repetir, desse modo, no contexto das figuras palhacescas, pode ser também uma forma de portar memórias milenares, conectar-se com a ancestralidade dessas manifestações. A multiplicidade dos elementos cômicos, que brotam da historicidade dos seres, caminha ao encontro do novo no mundo, multiplicando-se através da diferença. Deleuze, ao conceituar a diferença, ensina que ela não se dirige para a oposição ou para a contradição, uma vez que não é compreendida como subordinada ao idêntico (DELEUZE, 1988). Assim, mesmo na repetição há alguma diferença, haja vista o fluxo constante de transformações a que estamos sujeitos no cotidiano. Esse fluxo, a todo o momento, nos faz ultrapassar as fronteiras daquilo que passou, ampliando-se, por conseguinte, as possibilidades de perceber para além do que está dado, abrindo-se novos horizontes. Já não é o mesmo corpo que repete, tampouco a mesma atmosfera que se instaura, o mesmo clima, a mesma luminosidade. Uma brisa que ora adentra o espaço, antes poderia não existir. Estamos constantemente sujeitos a novas configurações de existência, a novos horizontes, a novos encontros. Ao trilharem seus horizontes, as figuras palhacescas têm um diferencial em relação aos demais seres que habitam espaços hospitalares, e uma semelhança primordial com o universo da criança: a liberdade do compromisso com o real. Esse diferencial acaba por despertar a curiosidade daqueles que entram em contato com as palhaças e os palhaços, aproximando-os destes e afastando-os do universo cotidiano. Se, como afirma Merleau-Ponty, “[...] os fantasmas são fragmentos do mundo claro, e tomam-lhe todo o prestígio que possam ter.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.387), a vida cotidiana fornece resquícios daquilo que no corpo das palhaças e palhaços transforma-se em arte, em teatralidade, em novas possibilidades de vida, em um movimento que permite a coexistência entre repetição e diferença. Incitando relações de cumplicidade, as figuras palhacescas utilizam-se de ferramentas do riso, que ampliam a disponibilidade do espectador para a interação entre si e os artistas. O riso, assim, pode significar uma das principais ferramentas das palhaças e dos palhaços, e quiçá um de seus principais objetivos de existência, pois tem o poder de conectá-lo com outrem. Para Bergson, o riso é tido como um fenômeno 27 social, mas também psíquico: perante os olhos do espectador, a comicidade surge através da observação das falhas humanas, em certo tom de correção (BERGSON, 2004). Evidenciando essas falhas, as figuras palhacescas colocam-se na posição de espelho, onde os espectadores veem refletidas vivências humanas distorcidas pelo filtro do erro, do não convencional. Bergson privilegia as vivências pessoais no riso, situando-o exclusivamente no âmbito humano, uma vez que, para ele, “[...] não há comicidade fora do que é propriamente humano.” (BERGSON, 2004, p. 3). Sendo assim, mesmo em se referindo a objetos inanimados ou a animais que façam rir, vale salientar que um animal só será cômico quando encontramos nele uma atitude ou uma expressão humana (BERGSON, 2004). O autor lembra ainda que o riso é um ato coletivo, dado a partir de determinado grupo de pessoas (BERGSON, 2004). Para Vladmir Propp, teórico russo, “[...] em poucas palavras, o riso nasce da observação de alguns defeitos no mundo em que o homem vive e atua.” (PROPP, 1992, p. 173, 174). O autor afirma que o riso é relativo ao ser humano, evidenciando que este é passível a defeitos ou a distorções na ordem do mundo. Nas perspectivas de Bergson e Propp, encontramos alguns dos que seriam os pressupostos criativos fundamentais da comicidade, tais como a investigação e a observação do ser humano e de suas relações com o erro, as falhas, o não habitual, com aquilo que pode surpreender. Para Bergson, o riso pode acontecer de maneira precisa, como uma lei da natureza: ou seja, sempre será desencadeado quando houver uma causa. Propp contesta essa tese, afirmando que “[...] pode-se dar a causa do riso, porém é possível existirem pessoas que não riem e que não é possível fazer rir. A dificuldade está no fato de que o nexo entre o objeto cômico e a pessoa que ri não é obrigatório nem natural. Lá, onde um ri, o outro não ri.” (PROPP, 1992, p. 31). Cada ser humano, imbuído das experiências de seu mundo vivido, fará diferentes associações relativas ao que é risível para si. Essa compreensão denota a subjetividade e a peculiaridade do riso, embora não exclua o fato de que o riso também ocorre de modo coletivo. Bergson, ao afirmar algumas leis que seriam matematicamente geradoras da comicidade, fornece estofo para reflexões sobre a composição técnica da comicidade, como, por exemplo, a inversão de séries, a repetição e a rigidez mecânica (BERGSON, 2004). Propp salienta o fato de que o caráter singular de cada indivíduo deve ser levado 28 em consideração, porém ampara a discussão a partir da presença de mecanismos que levam ao riso, tais como o da paródia, da comicidade da semelhança/diferença, do homem-coisa, entre outros. O autor se atém ao campo popular e folclórico, organizando ampla gama de objetos risíveis, bem como os tipos de riso desencadeados por eles. Propp, entre os diversos tipos de riso, focaliza o riso de zombaria (PROPP, 1992). No mesmo âmbito, o pesquisador russo Mikhail Bakhtin identificou na comicidade uma forma de inverter coletivamente os padrões estéticos e oficiais, observando principalmente os aspectos grotescos da existência humana como transformadores da realidade. Na obra “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais”, Bakhtin apresenta sua teoria sobre a cultura cômica popular na Idade Média e no Renascimento. A concepção apresentada por Bakhtin coloca o carnaval como espaço de inversão hierárquica, onde se instaura o privilégio dos excluídos, marginalizados, periféricos, grotescos (BAKHTIN, 1999). Nesse contexto, o autor afirma que a partir do riso carnavalesco: “[...] revoga-se antes de tudo o sistema hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc., ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade entre os homens.” (BAKHTIN, 1981, p. 105). O riso libertador surge como forma de oposição ao tom sério e repressor da sociedade, como um intento de libertação. Esse mesmo riso é capaz ainda de libertar o indivíduo para além dos parâmetros exteriores, sociais, mas também, segundo o autor, “[...] do censor interior, do medo do sagrado, da interdição autoritária, do passado, do poder, medo ancorado no espírito humano há milhares de anos.” (BAKHTIN, 1999, p. 81). Para o pesquisador Larrosa, O riso destrói as certezas. E especialmente aquela certeza que constitui a consciência enclausurada: a certeza de si. Mas só na perda da certeza, no permanente questionamento da certeza, na distância irônica da certeza, está a possibilidade do devir. O riso permite que o espírito alce voo sobre si mesmo. O chapéu de guizos tem asas. E não venham vocês me dizer que o riso é perigoso.O riso é, certamente, ambíguo e perigoso. Como os livros, como as viagens, como os jogos, como o vinho, como o amor (LARROSA, 2010, p. 181). Atribuído historicamente ao aspecto coletivo, libertador, transgressivo, inovador, a 29 aquilo que é fora do comum na vida das pessoas, o riso pode manifestar-se intermediado por personagens ou figuras cômicas que permeiam a história da humanidade. A partir de uma interação diferenciada com o mundo, tais figuras abrem espaços ficcionais onde os espectadores tornam-se criadores de uma cena viva fundada no encontro. Portadores de coletividades, os seres palhacescos promovem transgressões ao cenário cotidiano e fornecem a quem com eles interage o poder da união entre seres humanos em atos que extravasam a normalidade do dia a dia. Haveria, por exemplo, possibilidades para uma corrida sobre rodas em um corredor hospitalar? Segundo a lógica palhacesca, seria fácil. Basta haver os competidores, a pista, a linha de chegada, os veículos e a criatividade dos artistas e espectadores. No espaço permeado pela lógica palhacesca, rompem-se os impedimentos, fortemente atrelados às convenções sociais. Dessa forma, poucas são as situações impossíveis de se concretizar, como podemos ver na imagem a seguir: Figura 2 - Corrida de cadeiras com Doutor Lui (Luciano Pontes). Fonte: <http://www.kickante.com.br/campanhas/doutores-da-alegria-apoie-nosso-projeto>. Acesso em 25/07/2016. Diversas são as terminologias empregadas para denominar essas figuras que têm por objetivo trabalhar profissionalmente com os aspectos risíveis e aglutinadores da humanidade. Tendo por meio de expressão a menor máscara do mundo (LECOQ, 30 1997), palhaças, palhaços, clowns, bobos, excêntricos, augustos, jograis, cômicos, entre outros (VIVEIROS DE CASTRO, 2005) estão fortemente atrelados à subversão na humanidade. Essas figuras transitam pelo mundo e parecem renovar-se ao longo dos tempos, adaptando-se ao olhar da sociedade e assumindo novos espaços de atuação. Buscando dialogar com o percurso que conduziu as figuras palhacescas até a atuação em espaços hospitalares, foi realizada para esta pesquisa uma investigação bibliográfica cujos principais marcos estão expostos a seguir. Inicialmente saliento que, dentre as diversas denominações dadas ao longo da história para estas figuras cômicas, mantenho o emprego dos termos mais utilizados contemporaneamente: palhaças, palhaços e clowns. A opção aqui tomada, de usar tais termos como equivalentes, coaduna com a proposição do pesquisador Roberto Tessari, ao afirmar que: “[...] tanto na língua comum quanto na linguagem especializada do teatro, hoje, não existe nenhuma diferença entre a palavra palhaço e a palavra clown, pois as duas palavras se confundem em essências cômicas.” (TESSARI apud DORNELES, 2003, p. 26). Vale considerar, ainda, que contemporaneamente o trabalho das mulheres na palhaçaria ganhou bastante destaque, sendo que hoje não é mais possível abordar esse universo apenas a partir de um termo no gênero masculino. Compreendo que historicamente o universo palhacesco esteve bastante atrelado ao masculino, mas atualmente essa arte é igualmente desenvolvida por homens e mulheres, portanto, ao referir-me à palhaçaria, refiro-me tanto às palhaças quanto aos palhaços. O termo “clown”, que não apresenta marca de gênero, vem, segundo o pesquisador Roberto Ruiz do inglês “clod”, termo diretamente relacionado à ideia de rústico, de campo. A expressão de origem inglesa, ao que tudo indica, data do século XVI (RUIZ, 1987). O pesquisador Mário Fernando Bolognesi, em seu livro Palhaços, aponta essa palavra como referente a uma figura grosseira e desajustada (BOLOGNESI, 2006). O historiador John Towsen, por sua vez, afirma que o termo remete a “colonus”, espécie de pessoa rústica, do campo (TOWSEN, 1976). O termo palhaço adaptou-se do italiano “paglia”, traduzido ao português como “palha”. Segundo Roberto Ruiz, tal associação deu-se pelo fato de que inicialmente a roupa do “paglia” era feita do mesmo material utilizado na fabricação de colchões, que também era utilizado para proteger os artistas das quedas empregadas como recurso cômico (RUIZ, 1987). 31 O termo “palhaça”, nesse sentido, significa o feminino de palhaço. Talvez essa colocação seja bastante óbvia, porém percebe-se que embora atualmente o trabalho das mulheres no universo palhacesco esteja bastante popularizado, a maior parte das referências a essas figuras se dá no gênero masculino: “o palhaço”. Essa percepção inquieta e mobiliza minha busca por uma atitude distinta, ao referenciar a palhaçaria como uma arte também construída por nós, mulheres: as palhaças. Historicamente a atuação de mulheres em palcos teatrais, de modo geral, foi proibida. Dos saltimbancos greco-romanos aos atores de Shakespeare, todos os papeis, inclusive os femininos, eram interpretados pelos homens. Os primeiros indícios da inserção feminina nos palcos teatrais do Ocidente são encontrados na commedia dell’arte. Contemporaneamente, as mulheres palhaças vivem um movimento crescente, segundo Michelle Silveira, idealizadora e editora da revista Palhaçaria Feminina 6 . Para ela, esse novo espaço organizativo das mulheres palhaças é “[...] forte e vem se consolidando a cada ano, com iniciativas que se unem no movimento de valorização, qualificação e profissionalização das mulheres palhaças.” (SILVEIRA, 2014, p. 01). Cada vez mais inseridas nos espaços de atuação palhacesca, as mulheres trazem novas contribuições para a arte da palhaçaria, através da pesquisa pela perspectiva feminina. Segundo Nara Menezes, palhaça pela Companhia Animèe, de Recife (PE), “[...] existem precursoras como Gardi Huter, Nola Era e Hilary Chaplain. Na América Latina Lila Monti, Mariana Barbera, abriram caminho, e no Brasil as Marias da Graça começaram a atuar como o primeiro grupo de palhaças [...].” (MENEZES, 2014, apud. SILVEIRA, 2014, p. 22). Esse movimento mundial de busca por uma identidade das mulheres palhaças desembocou na realização de importantes encontros e festivais nacionais e internacionais de palhaçaria feminina, tais como o Encontro Internacional de Mulheres Palhaças (SP), o Esse monte de mulher palhaça (RJ), o Encontro Internacional de mulheres palhaças (DF) e o Clownin (Viena, Áustria). A presença das mulheres nos contextos artísticos é tão inegável quanto constante, sendo possível identificar uma forte onda de expansão da atuação feminina na arte da palhaçaria. Se antes a presença das mulheres na construção da cena teatral era proibida, atualmente é fundamental e contundente. Compreendendo assim as vastas contribuições 6 A Revista Palhaçaria Feminina foi criada em 2012 e é composta por artigos, textos, entrevistas e relatos de mulheres palhaças do Brasil e do mundo. Atualmente, na sua terceira edição, a revista aborda os espaços de atuação de mulheres no Brasil (SILVEIRA, 2014). 32 das mulheres palhaças para a pesquisa palhacesca contemporânea, atribuímos também a elas a construção desse ofício. Reiterando a equivalência dos termos palhaça, palhaço e clown, o pesquisador Luís Otávio Burner, fundador do grupo Lume de teatro, explica que “[...] clown e palhaço são termos distintos para se designar a mesma coisa.” (BURNIER, 2001, p. 205). Apesar da afirmação, o autor reconhece diferenças em relação à linha de trabalho dessas figuras cômicas, sendo que em seu trabalho específico atém-se ao termo clown: Como, por exemplo, os palhaços (ou clowns) americanos, que dão mais valor à gag, ao número, à ideia; para eles, o que o clown vai fazer tem um maior peso. Por outro lado, existem aqueles que se preocupam principalmente com o como o palhaço vai realizar seu número, não importando tanto o que ele vai fazer; assim, são maisvalorizadas a lógica individual do clown e sua personalidade; esse modo de trabalhar é uma tendência a um trabalho mais pessoal. Podemos dizer que os clowns europeus seguem mais essa linha. Também existem as diferenças que aparecem em decorrência do tipo de espaço em que o palhaço trabalha: o circo, o teatro, a rua, o cinema, etc. (BURNIER, 2001, p. 205). Tendo estudado na França com os pesquisadores Etiene Decroux e Jacques Lecoq 7 , Burnier desenvolveu seu trabalho voltado para o clown próximo de uma concepção europeia. O grupo Lume de teatro, fundado por Burnier há trinta e um anos, exerceu grande influência sobre as Artes Cênicas no Brasil, e consequentemente a vertente do clown trazida por Burnier difundiu-se em nosso contexto. O artista Ricardo Pucceti, ator do grupo, aprofundou sua pesquisa sobre o clown e atualmente é considerado referência no país. Como observou a pesquisadora Patrícia Sacchet, essas diferenças nas linhas de trabalho também são vistas por Bolognesi. O autor as considera, sobretudo, no que tange aos modos de interpretação. Bolognesi (2006 apud SACCHET, 2009)acredita na diferença existente entre o palhaço circense e o palhaço teatral, afirmando que essa distinção significaria uma nova etapa na história dos palhaços. O pesquisador afirma ainda que existem diferenças significativas no âmbito de atuação e encenação: “[...] no ambiente épico do circo e no dramático do teatro, talvez a diferenciação seja proveitosa, pois demarca possivelmente uma nova história na vida dos clowns, desta feita voltada 7 Jacques Lecoq fundou em 1956, na França, sua escola. No ano de 1962 inseriu o estudo do clown. Esta pedagogia difundiu-se, e atualmente, apesar de existirem muitas maneiras de trabalho com o clown, a maioria está direta ou indiretamente relacionada com a pedagogia de Lecoq (SACCHET, 2009). 33 para o palco teatral, seja ele em espaços fechados, em ruas ou praças.” (BOLOGNESI, 2006, p. 15 apud SACCHET, 2009, p. 22). A partir dessa diferenciação, pode-se pensar que, no contexto brasileiro, as palhaças e os palhaços estariam mais voltados para a atuação dentro dos parâmetros circenses, e os clowns, aos teatrais. Essas duas linhas de trabalho têm especificidades técnicas e estéticas. Buscando salientar tais diferenças, a pesquisadora Daniele Pimenta postula que em relação aos palhaços circenses, a criação da figura palhacesca se dá através de recursos exteriores, tais como o treinamento técnico de quedas, batidas, acrobacias, sequências cômicas. Nesse âmbito, “[...] a escolha das roupas e da maquiagem tem muitas referências de outros palhaços, e leva sempre em consideração o efeito visual na relação picadeiro e plateia (com capacidade para cerca de 2000 pessoas ou mais).” (PIMENTA, 2006, p. 23). Em relação ao clown teatral, para Pimenta, o processo de composição se dá “[...] de modo mais lento, interiorizado e, consequentemente, muito particular. Explora-se uma gama de possibilidades expressivas que busca também um intimismo que não caberia no picadeiro, o lirismo, e, portanto, uma emotividade mais delicada.” (PIMENTA, 2006, p. 23). Os apontamentos levantados por Pimenta em relação às especificidades na atuação de palhaças e palhaços circenses ou de clowns teatrais, como vimos, dialogam com a realidade espacial como componente das técnicas de atuação, bem como com os aspectos estéticos da cena. Nos hospitais são outras as especificidades que movem a atuação palhacesca, uma vez que se exige dos artistas uma postura de abertura para a proximidade com os espectadores. Nestes ambientes as linhas adotadas por palhaças e palhaços podem mesclar elementos dos palcos e dos picadeiros durante as atuações, porém lidam com a necessidade de desenvolver técnicas e sensibilidades específicas no contexto hospitalar. No espaço dos picadeiros circenses ou dos palcos teatrais exige-se uma postura corpórea das figuras palhacescas que ora tendem a evidenciar aspectos mais visuais e amplos, ora mais contidos e sutis. Esses espaços delimitam também a permeabilidade das relações entre artistas e plateia. Nas imagens colocadas a seguir, trazemos de um lado a clown construída pela atriz Naomi Silman e o palhaço circense Chicarrão, vivido pelo artista José Carlos Queirolo. Nelas podemos perceber que são bastante distintas as composições estéticas de um e de outro: na primeira percebemos mais sutileza, e na outra o emprego de mais recursos visuais. 34 Figura 3 - Espetáculo O Não Lugar de Ágada Tchainik, com a clown Naomi Silman (Lume Teatro). Fonte: <http://www.sescsp.org.br/programacao/26863_o+naolugar+de+agada+tchainik>. Acesso em 05/08/2016. Figura 4 - Palhaço circense Chicharrão, José Carlos Queirollo Fonte: <http://blogln.ning.com/profiles/blogs/em-2011-espaco-para-o-circo>. Acesso em 05/08/2016. 35 O palhaço Chicarrão, acima retratado, nascido em família circense no ano de 1889 em Bagé, no Rio Grande do Sul, formou seu aprendizado a partir das apresentações circenses e dos saberes transmitidos pela família e por artistas mais antigos nos Circos do Brasil, Argentina e Uruguai, onde atuou com frequência. Naomi Silman, por outro lado, atriz do grupo Lume Teatro, graduou-se em Artes Cênicas pelo Goldsmith’s College, da Universidade de Londres, e aprofundou seus conhecimentos na arte de atriz na École Philippe Gaulier e na École International du Théâtre, de Jacques Lecoq, ambas em Paris. A partir da formação desses dois artistas, podemos pensar as bases da atuação palhacesca contemporânea no Brasil, composta a partir dos saberes circenses portados através de gerações, bem como das influências do clown da Europa. Atualmente as distinções entre palhaças, palhaços e clowns, como percebemos a partir dos comentários dos autores destacados, não estão restritas apenas à nomenclatura, mas também à multiplicidade de referências, bem como à potencialização do acesso às diversas maneiras possíveis de se trabalhar. Nota-se, ainda, constantes espaços de fricção entre os ditos palhaços circenses e aqueles teatrais ou clownescos. As diferenças estão, sobretudo, vinculadas às experiências de cada artista, que, em meio a tantas e tão difusas técnicas, busca seus meios de atuação. Heraldo Firmino, com sabedoria e simplicidade, conta que, no Brasil, “Você chega na frente de uma criança, ela não vai olhar para você e falar: -Oi, clown! Ela vai falar: -Oi, palhaço! Então palhaço é palhaço.” (Heraldo Firmino). Opto, assim, por utilizar nesta pesquisa o termo “palhaço”, em português, acompanhado também do seu emprego no gênero feminino, “palhaça”. No intuito de reconhecer que seres de ambos os gêneros são de extrema importância para a constituição da palhaçaria, empregamos também a expressão figuras palhacescas, capaz de contemplar as construtoras e os construtores desse ofício. Percebe-se, nos dias atuais, uma permeabilidade técnica capaz de reinventar a composição artística e de alimentá-la de fontes diversas. Há, ainda, um livre acesso a múltiplas vertentes palhacescas, assim como uma permissividade por parte dos artistas, que podem utilizar-se de técnicas circenses, de técnicas teatrais e da cultura popular em geral. No âmbito palhacesco, vale a singularidade criativa de cada artista posta em jogo com as circunstâncias do presente. Composta de uma memória ancestral e proposta em 36 momentos de encontro com o público, essa singularidade de ação ao longo dos tempos parece repetir-se tanto quanto renovar-se. Não restritos aos palcos, picadeiros, praças e espaços convencionais da cena, as palhaças e os palhaços fazem emergir suas contradições, mistérios e enigmas em diversos âmbitos sociais. Aqui, a investigação tem foco no hospital, mas para isso foi necessário desvelar as outras rotas perpassadas por essasfiguras ao longo da história até que nele pudessem se estabelecer. Para Burnier, os tipos cômicos trazem consigo elementos de uma genealogia e portam traços recorrentes na história da humanidade. Conforme a sua lógica, bufões e bobos da Idade Média; personagens imortais da commedia dell'arte; o palhaço do circo e o clown “[...] possuem uma mesma essência: colocar em exposição a estupidez do ser humano, relativizando normas e verdades sociais.” (BURNIER, 2001, p.34). Durante as celebrações e ritos religiosos, bem como nas representações cênicas populares da Antiguidade, por exemplo, sempre esteve presente uma oscilação entre o sagrado e o profano, fator que autoriza a convivência com a comicidade. Segundo Burnier, essa alternância é um fato que se repete em povos distintos, “[...] dos gregos até os aborígines da Nova Guiné, passando pelos europeus da Idade Média ou pelos lamaístas do Tibete.” (BURNIER, 2001, p. 34). A pesquisadora Alice Viveiros de Castro nos diz que o palhaço está presente em todas as culturas e que “[...] a mais antiga expressão do personagem é a que se faz presente nos rituais sagrados. Desde o início dos tempos, o riso foi e ainda é utilizado como elemento ritual para espantar o medo, especialmente o medo da morte.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p.18). A existência das figuras cômicas é milenar. Sua presença vibra em rituais tribais e celebrações antigas, festividades religiosas, feiras populares, picadeiros circenses, palcos teatrais, principalmente os enraizados na vida popular. De origem controversa, as palhaças e os palhaços possuem facetas misteriosas. Segundo o pesquisador John Towsen: Sem dúvida os clowns foram aparecendo e desaparecendo desde o início dos tempos, e sua tradição foi tirada do “ói nós aqui outra vez!” evoca a chegada de todo um universo de clowns. Este mundo é tão diversificado quanto a própria vida, já que o herói de nossa história pode ser encontrado em um número surpreendente de disfarces, das aulas de clown aos bobos da corte; do encantador povoado indiano de 37 cheyenne “contrary”; no teatro, no rodeio e no circo. São todos clowns, e, no entanto, as diferenças entre eles são tão completamente fascinantes quanto suas similaridades (TOWSEN, 1976, p. 04 apud. SACCHET, 2009). Componentes do imaginário popular, essas figuras cômicas são calcadas na humanidade, em suas fraquezas, quedas e erros, revelando-os através do filtro da comicidade. Assim como salientou Towsen, o universo palhacesco é tão amplo como a própria vida, e é impossível definir o surgimento das palhaças, palhaços e clowns. As figuras cômicas certamente não são invenção ou descoberta de uma única pessoa, que imortalizou sua forma, mas componentes de um conjunto social, pois na sociedade sempre houve espaço para os fatores risíveis da existência. Essas figuras passaram e passam por um perpétuo movimento de redescoberta, e, para Towsen, “[...] como bobo, Jester ou Trickster – elas encontram razões suficientes nas necessidades humanas.” (TOWSEN, 1976, p. 04 apud. SACCHET, 2009). Conservando traços recorrentes na história da humanidade, palhaças e palhaços estabelecem-se nas sociedades gerando risos coletivos e modificando, com elas, suas possibilidades de existência. As figuras cômicas fazem parte de frondosa tradição, sendo que uma das suas mais antigas manifestações no contexto ocidental pode estar situada na chamada farsa atellana. Surgida na cidade de Atella, tal manifestação teatral é remetida ao século IV a.C.. Nas farsas, histórias de fácil assimilação por parte do público que dialogavam com sátiras sociais da atualidade, eram utilizadas máscaras que concerniam aos tipos físicos nelas representados (DE FREITAS, 2008). Para a pesquisadora Nanci de Freitas, a farsa atellana teria sido composta pelos seguintes tipos/personagens fixos: Pappus, um velho libidinoso, bonachão e ridículo, constantemente enamorado de mocinhas e vítima de pilhérias; Dossenus, um corcunda astucioso, com pretensões de filósofo e linguajar empolado, contrastando com a fala dos camponeses; Baccus e Maccus, uma dupla de glutões, sendo Baccus um camponês grosseiro, idiota, guloso, bêbado e infeliz nas aventuras amorosas, enquanto Maccus era um tipo fanfarrão, esperto e avarento, sempre se vangloriando de suas torpezas (DE FREITAS, 2008, p. 67). O comediógrafo Plauto (255 a.C. – 185 a.C.), para a autora, “[...] tornou-se célebre por conseguir dar forma literária a estas manifestações antigas do teatro popular, dando-lhes feições de personagens.” (DE FREITAS, 2008, p. 67). Essas manifestações teatrais populares apresentaram características que mais tarde foram reencontradas nos 38 personagens da commedia dell’arte, tais como a conotação popular das ações cênicas, a representação teatral, a sátira social e a sátira humana. Surgida por volta do século XVI na Itália, a commedia dell’arte, assim como a farsa atellana, utilizava-se de máscaras e tipos fixos em sua construção cênica. Originalmente, a commedia dell’arte não se utilizava de textos dramáticos, mas sim de roteiros de intrigas que serviam como suporte para as improvisações denominados canovacchios ou sogettos (BERTHOLD, 2014). Ao longo de repetidas representações, as atrizes e os atores dell’arte acumulavam um repertório pessoal de situações, recursos cômicos e técnicas corporais, tornando-se mestres de seu ofício, como explica o pesquisador Dário Fo: Os cômicos possuíam uma bagagem incalculável de situações, diálogos, gags, lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memória, as quais utilizavam no momento certo, com grande sentido de timing, dando a impressão de estar improvisando a cada instante. Era uma bagagem construída e assimilada com a prática de infinitas réplicas, de diferentes espetáculos, situações acontecidas também no contato direto com o público, mas a grande maioria era, certamente, fruto de exercício e estudo (FO, 1999, p. 17). Esses cômicos, muitas vezes, desempenhavam ao longo de décadas o mesmo papel nas representações, desenvolvendo profunda conexão com o personagem interpretado. Podemos pensar a organização dos personagens ou tipos fixos da commedia dell’arte hierarquicamente, e, ainda, dividi-los em três grupos centrais: os servos, os nobres e os enamorados. No primeiro grupo encontram-se Arlecchino, Briguella, Colombina, Punchinello, Zanni, entre vasta gama de personagens populares de gênero feminino ou masculino, representantes das classes baixas da população. No segundo, encontram-se Pantalone, Dottore e Capittano, representantes dos (pretensos) ricos, letrados, cultos. Estes, normalmente vinculados ao “mundo das aparências”, são constantemente ridicularizados em razão de seus defeitos, tais como a avareza, a gula, a fome sexual, a covardia. No último grupo estão os enamorados, que figuram como jovens pueris, movidos pela inocência e pelo intento de permanecer ao lado de sua amada ou seu amado. Normalmente são filhas e filhos dos nobres Dottore e/ou Pantalone e possuem índole bondosa, posta muitas vezes em oposição à índole dos nobres e dos servos. 39 A exacerbação dos defeitos e a busca pela comicidade sempre foram motrizes da commedia dell’arte, fatores que “transpiram nos poros” de seus personagens tipificados. Ridicularizando a própria estrutura social em que foram estigmatizados, repetem de forma única os acontecimentos da vida humana, exagerando-os com o objetivo de trazê- los para o presente. Os vícios, os defeitos, as escatologias, as quedas, os tropeços, e também as virtudes, os malabarismos, as acrobacias, eram representados em praça pública por meio de figuras cômicas fortemente atreladas à vida popular. Esse gênero de teatro, que se difundiu pela Europa entre os séculos XVI e XVIII, influenciou e ainda influencia diversas criações teatrais. O dramaturgo, comediógrafo,
Compartilhar