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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA FLADMYLLA OHANA DE SOUZA LEITE A BANALIDADE DO MAL EM HANNAH ARENDT NATAL/RN 2022 2 FLADMYLLA OHANA DE SOUZA LEITE A BANALIDADE DO MAL EM HANNAH ARENDT Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Pós-graduação em Filosofia, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Alves Neto. NATAL/RN 2022 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Leite, Fladmylla Ohana de Souza. A banalidade do mal em Hannah Arendt / Fladmylla Ohana de Souza Leite. - Natal, 2022. 70 f.: il. Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2022. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Alves Neto. 1. Banalidade do Mal. 2. Hannah Arendt. 3. Totalitarismo. 4. Ideologia. 5. Juízo. I. Neto, Rodrigo Ribeiro Alves. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 321.64 Elaborado por Raphael Lorenzo Lopes Ramos Fagundes - CRB-15 912 4 FLADMYLLA OHANA DE SOUZA LEITE A BANALIDADE DO MAL EM HANNAH ARENDT Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Pós-graduação em Filosofia, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia. Aprovada em: BANCA EXAMINADORA ______________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Alves Neto – Orientador UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ______________________________________ Prof. Dr. Odílio Alves Aguiar – Membro Externo UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ ______________________________________ Prof. Dr. Fábio Abreu dos Passos – Membro Externo UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ 5 A todas as mulheres. 6 AGRADECIMENTOS Demorei muito para chegar nessa parte dos agradecimentos e faço isso quando estou refletindo sobre toda a estrada até aqui. Existe tanto a agradecer! Foi um longo caminho percorrido para alcançar uma das conquistas mais desejadas, e esse longo percurso vem muito antes da minha existência. Sou uma mulher que teve parte do trajeto aberto por outras mulheres incríveis que deram tudo de si pela sua descendência, mesmo sem fazer ideia da grandiosidade de seus atos em prol de um futuro menos sofrido para si e para os seus. Mulheres que tiveram de sofrer quase todas as consequências possíveis que o patriarcado nos causa todos os dias. Mulheres pretas e pobres que sentiram na pele e no coração o que é serem negligenciadas apenas por serem quem são. E, mesmo assim, saíram de seu lugar de origem e seguiram em busca de melhoria de vida, seja trabalhando como doméstica, seja como professora ou como secretária. Mulheres que (quando foi possível) tomaram as rédeas das suas vidas e ensinaram que eu precisaria fazer muito mais para seguir e ir além: ir aonde elas não conseguiram chegar. Não por falta de vontade ou de esforço, mas por falta de oportunidade. Essas mulheres fizeram história e fazem parte da minha história. Por isso, é necessário que o nome delas estejam aqui também. Maria das Dores dos Santos: a melhor avó que o universo poderia me dar. Mulher doce, carinhosa e simples no ato de amar. Não pôde ser mãe de suas filhas, pois precisava trabalhar sendo mãe de outros dentro da função de empregada doméstica. Irene Araújo de Souza Correia: a grande matriarca, mulher que dedicou sua vida à docência e me ensinou através do exercício de sua profissão o quão importante é o ato de lecionar. Ela é o alicerce que mantém firme toda a família. Maria de Fátima Souza: mulher que lutou a vida inteira para ser livre, mas quase sempre renunciou a si para cuidar dos outros. Fez de tudo para me ter e me oferecer o melhor que podia. Nunca desistiu de mim, mesmo quando nossas ideias de mundo divergiram. Te amo demais, minha mãe! Essas mulheres são o caminho antes de mim, e eu pretendo seguir abrindo caminhos para que outros possam ter o direito de viver uma vida melhor e para que tenham o direito de pensar e de expressar seus pensamentos através do diálogo e da escrita. 7 Durante muito tempo me senti sozinha em meus pensamentos e me perguntava em que momento eu me livraria da bolha infernal do Ensino Médio e me encontraria num ambiente de iguais. No ano de 2013, consegui ingressar na Graduação em Filosofia na UFRN e ali achei o meu lugar. De lá para cá, muita gente massa passou pelo meu caminho, e eu sou grata demais por tudo que esse curso e essa Universidade me proporcionou. Agradeço aos amigos de Graduação: Aline Mabel, Priscila Novais, Alice Barros e Lucas Alves. Nossas resenhas fizeram dessa Graduação o melhor Ensino Médio que eu poderia ter! Agradeço também aos professores Jaime Biella (PIBID), Sérgio Eduardo, Gisele Amaral (PET) e Bruno Vaz (PET). Superada a fase da Graduação com gostinho de Ensino Médio, veio o Mestrado. Essa segunda fase, que durou uma segunda graduação, me fez passar por tanta coisa que nem sei como descrever. Só sei que eu quero comigo sempre as pessoas que conheci nessa Pós-graduação. Da “Treta-feira” para a vida: Landa Ciccone, que, além de amiga e família, virou vizinha de condomínio; Jonhkat, a amiga dispersa que tem a melhor gargalhada; Vanuza Nunes, que entrou para o clube das filósofas da Vila de Ponta Negra e que eu adoro ter por perto para ficar calma só de olhar para ela; Mari Pereira, que de uma forma muito leve e sem pretensão me trouxe a Landa, a Jô e um bom chimarrão semanal – e eu sou muito grata por isso. Agradeço também a Thiare Pacheco por me salvar sempre em todas as burocracias acadêmicas e por acabar se tornando uma amiga em meio a tudo isso. Os professores da Graduação e da Pós-graduação normalmente são os mesmos, mas a forma como nos conectamos a eles em cada etapa é muito diferente. Por isso, dentro da fase do Mestrado, quero deixar aqui meus agradecimentos às professoras Cinara Nahra e Maria Cristina, que me proporcionaram ótimos momentos de vivência filosófica em suas disciplinas. Agradeço também ao meu orientador Rodrigo Ribeiro por fazer parte disso, tanto na primeira tentativa quando nessa. Muito obrigada por aceitar estar comigo nesse processo sem nem saber quem eu era quando mandei o primeiro e-mail. Seu acolhimento me fez acreditar que era possível tentar. Reservo agora este espaço para agradecer a minha amiga/namorada/esposa Aline Souto, que está ao meu lado me apoiando há mais de 3136 dias, me mostrando que a vida precisa ser vivida também com riscos, que o medo faz parte do processo, que só dá para ir para a frente, que se lamentar não nos faz sair do lugar. Muito 8 obrigada por me amar e por fazer eu me enxergar no mundo como alguém que pode sim fazer muito mais com tudo aquilo que as mulheres da minha vida passaram. Obrigada por me ensinar o poder da mitologia e da Mulher-Pesadelo (SILVA, 2021) na sociedade. Quero passar o resto da minha vida junto com você sonhando, vivendo e conquistando o bem que merecemos, para sermos cada dia mais Mulheres- Pesadelo para todo tipo de opressão, preconceito e racismo. Eu te amo. Agradeço pelo seu amor e pela amiga sagitariana (Cecília Souto) que você gerou e trouxe junto contigopara a minha vida. E, por fim, agradeço à CAPES, pois o presente trabalho foi realizado com o imprescindível apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. 9 Não existe testemunha tão terrível, nem acusador tão implacável quanto a consciência que mora no coração de cada homem. Políbio 10 RESUMO A presente pesquisa analisa a reflexão de Hannah Arendt sobre o fenômeno da “banalidade do mal”, a relação entre responsabilidade pessoal e coletiva e o vínculo entre pensamento e moralidade que se expressa no exercício do raciocínio crítico. Elucidamos o modo como os crimes totalitários desafiaram a compreensão e os padrões tradicionais de julgamento moral, reivindicando uma problematização da tradicional concepção do mal como derivado de uma vontade má, evidenciando o caráter superficial do mal quando praticado pela incapacidade de pensar e julgar, pela falência do senso comum e pela obediência irrefletida. O mal se torna banal quando realizado por homens que nem sequer decidiram realizá-lo e apenas obedecem a regras previamente estabelecidas no regime. Investigamos o esforço teórico da autora por tornar o pensamento relevante para a constituição e a preservação do mundo comum, demonstrando o quanto o exercício do pensamento e a capacidade de julgar são importantes fatores na esfera dos assuntos humanos. Palavras-chave: Banalidade do mal; Hannah Arendt; Juízo; Totalitarismo; Pensamento. 11 ABSTRACT This research analyzes Hannah Arendt's reflection on the phenomenon of "banality of evil", the relationship between personal and collective responsibility and the bond between thought and morality that is expressed in the exercise of critical reasoning. We elucidate how totalitarian crimes challenged the understanding and traditional patterns of moral judgment, claiming a problematization of the traditional conception of evil as derived from an evil will, evidencing the superficial character of evil when practiced by the inability to think and to judge, by the failure of common sense and by unthinking obedience. Evil becomes banal when performed by men who have not even decided to carry them out and only obey the rules previously established in the regime. We investigate the author's theoretical effort to make thought relevant to the constitution and preservation of the common world, demonstrating how important the exercise of thought and the ability to judge are in the sphere of human affairs. Keywords: Banality of evil; Hannah Arendt; Judgment; Totalitarianism; Thought. 12 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13 2 COMO TORNAR HOMENS SUPÉRFLUOS: A FORMAÇÃO DA “MENTALIDADE TOTALITÁRIA” E DA “MASSA BUROCRÁTICA” NO TOTALITARISMO .............. 17 2.1 A MASSA E A MENTALIDADE DE GRUPO ........................................................ 17 2.2 A PROPAGANDA ............................................................................................... 25 2.3 A BUROCRACIA ................................................................................................. 29 2.4 A IDEOLOGIA E O TERROR .............................................................................. 33 3 COMO TORNAR HOMENS SUPERFICIAIS: UMA NOVA MANIFESTAÇÃO DO MAL EXPRESSA NA BANALIDADE E NA AUSÊNCIA DE RAÍZES ...................... 37 4 O QUE TORNA O PENSAMENTO CAPAZ DE ELABORAR A PROFUNDIDADE? ................................................................................................................................... 51 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 62 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 66 13 1 INTRODUÇÃO O pensamento é igualmente perigoso para todos os credos e, por si mesmo, não dá origem a nenhum novo credo. Hannah Arendt De acordo com Aristóteles, o homem é um animal que requer uma gama de coisas, dentre as quais insere-se, de maneira consubstancial, o convívio e a relação com outros humanos. E, sob o signo desse convívio, o homem busca um senso de comunidade, o que acaba por construir uma sociedade. Na sociedade, todos temos papéis e hoje temos não só deveres como direitos – ou pretendemos ter. O fato é que, aquele que faz parte de uma vida comum é um cidadão e, por conseguinte, o cidadão pode variar de acordo com a civilização da qual faz parte. Averiguando os escritos de Hannah Arendt, o cidadão basilar da sociedade totalitária (desde a ralé até a elite) seria o homem de massa cuja forma de atuação política revelou o quanto a ausência do exercício do pensar é um importante fator nos negócios públicos. Assim sendo, para esmiuçar a premissa de tal proposição, buscaremos com este estudo desvendar, à luz de Arendt, o que torna o ser humano incapaz de exercer sua autonomia como ser pensante e o modo como a irreflexão no totalitarismo tornou os homens capazes dos mais terríveis “massacres administrativos” da história política ocidental-europeia, o qual fez emergir uma nova manifestação do mal expressa na banalização da violência e na mentalidade burocrática de homens superficiais e sem raízes em um mundo comum e humano. Em 1951, Hannah Arendt (1906-1975) publicou a obra Origens do totalitarismo (2012). Nela, propôs-se a explanar o desenvolvimento do antissemitismo, avaliando o período Imperialista na Europa e depois analisando os sistemas totalitários hitlerista e stalinista. Nas partes que antecedem o capítulo “Totalitarismo”, a autora investiga acontecimentos que se cristalizaram e culminaram na ruptura histórica, promovendo esse evento sem precedentes. Hannah Arendt examina também a sociedade de massa e o poder da propaganda para disseminar mentiras e implantar a ideologia e o terror. Arendt percebeu, a partir de suas análises sobre os regimes totalitários, que eles trouxeram para a realidade do século XX uma versão inédita de mal no espaço político: um mal “extremo”, “absoluto" ou “radical”. 14 Pouco mais de 10 anos depois, em 1963, Arendt publicou a obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1999), redigida a partir do julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, principal responsável pela realização burocrática da solução final. Funcionário exemplar que se orgulhava em cumprir seu papel e atender às ordens que lhe eram passadas, após ser capturado na Argentina, em 1961, Eichmann foi levado para Jerusalém, sendo julgado e condenado por seus crimes. Ao saber do ocorrido, Hannah Arendt entra em contato com a revista New Yorker para fazer a cobertura do evento. Ao se deparar com a figura de Eichmann, com a forma como ele apresentou sua defesa, e ao analisar os documentos aos quais teve acesso que Arendt despertou para essa questão do mal banal e da superficialidade. A autora percebeu ali que o réu era julgado pelo cometimento de atos monstruosos, contudo, era um homem comum, sem convicções firmes e motivações más ou demoníacas. Esses dois escritos são exemplos de parte das grandes investigações realizadas por Hannah Arendt para entender o problema do mal; entender quais são os fatos que geram esse mal e de que forma o ser humano desenvolve uma mentalidade totalitária. É com base nesses e em outros textos da autora que se torna possível questionar sobre o mal, suas causas e consequências, sobre as circunstâncias históricas e de que forma isso afeta a vida política. Sendo assim, o que promove o mal banal? Qual é o impacto do mal banal na esfera política? É através desses questionamentos que, na primeira parte desta pesquisa,falaremos sobre a formação da massa, de modo a concentrar o estudo na “psicologia do homem de massa”. Abordaremos também sobre a propaganda e sua relevância para conquistar e moldar a mente do homem de massa. Em seguida, trataremos da burocracia gerada pelo regime totalitário e sua capacidade de alimentar a ideologia e o terror, de modo a manter todos dentro do padrão de obediência. Explicaremos a degradação do senso comum, do sentimento de desenraizamento, de não pertencimento e de dispensabilidade que compõem a psicologia do homem de massa, mostrando que o totalitarismo montou uma estrutura social na qual a direção das atividades coletivas ficou a cargo de um aparelho impessoal hierarquicamente organizado que age segundo critérios impessoais e métodos racionais. Já dentro dessa realidade totalitária, esclareceremos em seguida como essa doutrinação ideológica e esse aparelho impessoal e burocrático tornam os homens superficiais, fazendo emergir uma nova manifestação do mal expressa na banalidade e na superfluidade. Explicaremos o porquê do “mal banal” e do cidadão exemplar 15 resultarem da “ausência de pensamento crítico” ou da “irreflexão” e da incapacidade de julgar. Hannah Arendt coloca em questão quais seriam as razões pelas quais o mal se manifestou não como “radical” ou uma força demoníaca, mas a partir da “banalidade” no sentido de superficialidade, sem radicalidade, sem raízes, ou seja, sem motivos maléficos ou impulsos diabólicos que o enraizaria na “natureza humana”. De que forma e por quais razões o totalitarismo revelou uma nova forma de mal? De que modo a prática desse mal, extremo embora não radical, manifesta-se na superficialidade dos homens, como na adesão imediata a uma tarefa corrente e trivial, na cega fidelidade a um dever ordinário ou a uma obrigação burocrática e comum que dispensa o recuo crítico do pensamento, a profundidade da reflexão, a moralidade da consciência e a criticidade do exame a respeito de tudo que homem faz e sofre no mundo comum? Explicitaremos como a massa se tornou peça fundamental para que o regime obtivesse sucesso e garantisse poder; como essas pessoas atomizadas se renderam à burocracia totalitária praticando o mal apenas seguindo as leis do regime vigente sem produzir pensamento crítico sobre as ordens que lhes são dadas. Analisaremos como, por consequência da massificação da sociedade, surgiram milhares de pessoas incapazes de julgar suas próprias ações: são pessoas que cumprem ordens sem sequer questionar. Arendt percebeu que as massas eram formadas por pessoas indiferentes e neutras politicamente, pessoas que não costumavam tomar partido em questões sociais relevantes nem possuíam convicções firmes. Com isso, podemos falar sobre o burocrata que se tornou a maior referência de funcionário exemplar do regime e que, através do olhar atento de Hannah Arendt, pode ser analisado e desmitificado como o ser maligno que foi pintado por muitos. Veremos, na última parte do presente trabalho, o que torna o pensamento capaz de elaborar a profundidade. Pretendemos construir um desfecho para nosso estudo respondendo à questão trazida no título do próprio capítulo. Apresentaremos por fim o que Hannah Arendt entendeu por “mal banal”: conforme a autora alemã, o “mal banal” e o cidadão ideal para a sua prática (sujeito desprovido de vontade demoníaca) na dominação totalitária provêm da “ausência de pensamento crítico” ou da “irreflexão” (thoughtlessness) e da inaptidão de julgar. Dessa forma, as questões que nos nortearão serão: a habilidade de discernir o certo do errado tem alguma relação com a faculdade de pensar? Qual é a relação entre a moralidade e a faculdade de pensar? Qual é a relação entre a capacidade de pensar e julgar por si próprio e a capacidade de assumir responsabilidade ética, pessoal e política? À vista disso, nossa 16 hipótese principal é a de suscitar a importância ética e política da atividade de pensar, tendo em vista elucidar de que modo a presença e a ausência de pensamento (thoughtlessness) podem se tornar “um poderoso fator nos assuntos humanos” (ARENDT, 2002, p. 56) e assim, uma espécie de antídoto para o mal banal. 17 2 COMO TORNAR HOMENS SUPÉRFLUOS: A FORMAÇÃO DA “MENTALIDADE TOTALITÁRIA” E DA “MASSA BUROCRÁTICA” NO TOTALITARISMO 2.1 A MASSA E A MENTALIDADE DE GRUPO Quanto mais a sociedade se distancia da verdade, mais ela odeia aqueles que a revelam. George Orwell O totalitarismo emergiu em um mundo não totalitário. E para entender como ocorreu esse fenômeno, Hannah Arendt escreve o livro Origens do totalitarismo, publicado em 1951. A obra foi escrita com o intuito de tentar destrinchar como determinados acontecimentos políticos se estabeleceram e emergiram nos sistemas opressores que ocorreram na Alemanha Nazista (1933-1945) e na Rússia Stalinista1 (1927-1953). É importante ressaltar que, segundo Arendt, os tais eventos ou elementos históricos cristalizados não foram, de modo algum, alicerces ou componentes de gênese para o totalitarismo, mas esses elementos, que são identificados no sistema, podem ser observados anteriormente sem necessariamente ter causado a culminação dos regimes. Por conseguinte, a obra não trata das origens do totalitarismo de fato, mas de uma relação de convergências que acabaram por “cristalizar-se” na dominância totalitária (SOUKI, 2006). Dessa forma, Arendt percebe que o ocorrido naquele período trata de um episódio jamais vivenciado antes na história humana. Nádia Souki esclarece que: “na verdade o próprio título é enganoso, pois, de fato, o totalitarismo é um fenômeno sem precedentes, e nenhuma evolução histórica, perfeitamente articulada, pode dar conta plenamente de suas origens” (SOUKI, 2006, p. 47). Todavia, no intento de elucidar a natureza inovadora do fenômeno totalitário, Souki apreende que Arendt identifica um fio que interliga o totalitarismo a dois outros fenômenos: o antissemitismo moderno e o imperialismo recente. 1 Apesar de mencionar em seu livro sobre o regime ocorrido na Rússia, Arendt não se aprofundou nele tanto quanto se aprofundou sobre o Regime Nazista. E não é nosso objetivo aqui fazê-lo. Por isso, ao citar exemplos, buscaremos frequentemente o modelo totalitário nazista. 18 O tema central que une os fios esparsos da obra é, sem dúvida, a história da dissolução das sociedades nacionais em agregados de homens supérfluos: “É necessário recolocar o anti-semitismo moderno no quadro mais geral do desenvolvimento de Estado-nação”2, onde a desintegração coincide com a investida imperialista e se encontra selada com o surgimento dos regimes totalitários (SOUKI, 2006, p. 49). Dentro do processo de investigação, a filósofa-política busca compreender quem são os responsáveis por tornar real os ideais dos líderes totalitários. Por isso, nesse primeiro momento, faremos um apanhado da análise arendtiana da construção das massas de modo a entender como se deu a formação da mentalidade de grupo, bem como o processo que resultou na superfluidade do cidadão comum. E, através dessa compreensão, explanaremos sobre o papel da propaganda, da burocracia, da ideologia e do terror. Cada um desses pontos cumpriu seu papel não só na edificação da mentalidade do homem de massa, mas também na manutenção da doutrina de massificação do sujeito, garantindo assim que esse grupo não se desviasse e continuasse fiel aos preceitos impostos apresentados na fase inicial para a implementação do sistema totalitário. Para entender como se deu a formação da mentalidade totalitária e a conquista da população, precisamos, antes de tudo, conhecer o grupo de pessoas neutras politicamente que se tornou a mão de obra e uma das principais ferramentas para o sucesso dos líderes totalitaristas em seus planos de tomada de poder em suas respectivas nações. Hannah Arendt, ao esmiuçar a estruturado fenômeno totalitário, observa antes de tudo quem, dentro das classes sociais, deu espaço e apoio para que os propósitos dos grandes líderes funcionassem. A autora traça uma argumentação evidenciando como a formação da sociedade de massa tem sua concepção a partir da ruína do Estado-nação. De maneira breve, podemos definir tal conceito como uma unidade político-territorial que tem sua soberania embasada em três pilares: a nação, o Estado e o território. O Estado-nação almeja que toda a sociedade inserida em seus limites territoriais se integre num esforço comum para o desenvolvimento econômico, social e cultural pátrio. Entretanto, Arendt aponta que tais valores declinaram e foram subvertidos pelo ímpeto imperialista que não pretende integrar economicamente, nem socialmente, tão pouco culturalmente suas colônias, e sim concentra-se em dominar, 2 Fala de Arendt em Souki. Cf. Arendt: Origens do totalitarismo (1990, p. 29). 19 extorquir e explorar todo o povo que se encontra abaixo do líder supremo. E, apesar de o Estado-nação ter em seu cerne conceitual a premissa do desenvolvimento coletivo, muitas vezes o cidadão comum se achava esquecido, negligenciado e até mesmo enganado. Porém, com os ideais de expansão imperialista, cada sujeito pôde nutrir a ilusão da promoção individual. Seguindo o modelo da burguesia – que possuía meios de conquista –, o homem carente achou que poderia buscar por si a melhoria que necessitava em sua vida: A vida pública assume um aspecto enganador quando aparenta construir a totalidade dos interesses privados, como se esses interesses pudessem criar uma qualidade nova pelo simples fato de serem somados (ARENDT, 2012, p. 216). Foi através do esfacelamento do Estado-nação que se iniciou um procedimento de atomização e individualização social. E, somada à ideologia imperialista no período após a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha, por exemplo, sofria com uma inflação exorbitante, o desemprego maciço e o sentimento de humilhação por terem perdido a guerra, além de toda exploração por parte dos vencedores. O povo estava sofrendo, mas o governo não lhes socorria. Isso gerou na população a apatia e o mutismo. A população que era esmagada pela miséria, doenças e abandono passou a desprezar o Estado e quem se beneficiava dele. Assim, o povo passou a odiar a máquina pública, os padrões morais que o Estado conservava e seus favoritos. O homem de massa é resultado da crise social. É o ser humano produto da inanição estatal, enraizado na decadência e na negligência do Estado. É o ser à margem da vida. Segundo Arendt, o conjunto da sociedade que é classificada como massa é formado por pessoas consideradas politicamente apáticas, pessoas que não enxergam importância em fazer uso do seu voto nas eleições, que não possuem vínculo partidário nem vínculos com sindicato, ou seja, pessoas neutras (ARENDT, 2012, p. 439). A massa – antes ignorada pelo Estado – agora se vê representada no discurso do movimento totalitário, que reiterava o tema da população comum não ser devidamente e dignamente representada por aqueles que detinham o poder. No entanto, agora, através do grande líder, que se auto outorgava o título de “homem do povo”, cada indivíduo seria, enfim, adequadamente contemplado pela nova política e poderia retribuir à nação, contribuindo com o seu trabalho para o engrandecimento e a supremacia da pátria. 20 Nesse processo, para se atingir a homogeneização de toda a população, os regimes erradicaram as classes sociais, os grupos com interesses em comum e qualquer forma de associação humana e instauraram a ideia de “igualdade”, de forma que: se todos são iguais, a estratificação de classes não se fazia mais necessária. Não é à toa que o primeiro subtópico do capítulo “Totalitarismo” na já mencionada obra de Arendt é chamado de “Uma sociedade sem classes”. A divisão que outrora marcava e delimitava a posição social de um indivíduo passou a não existir mais. Antes, cada classe social possuía conjuntos de interesses em comum e elas trabalhavam juntas para tal, mas, com essa desarticulação, a situação muda e passa a ser cada um por si. “A apatia e a hostilidade pelos assuntos de cunho coletivo estavam inauguradas” (PASSOS, 2017, p. 88). A massificação, ao contrário das instituições de classes, significa o isolamento do indivíduo numa multidão. Um ser tão sozinho quanto o outro que lhe divide o espaço ombro a ombro. Não há – e é imperativo que não haja – interações ou conexões. A massa é um exército de “eus- sozinhos”. Para ilustrar de forma simples e didática, Passos nos alumbra com o seguinte exemplo: Na feitura de uma “massa”, quando esta já está pronta, não se distingue mais os ingredientes que a possibilitaram vir-a-ser: ovos, leite, farinha, fermento transubstanciam-se e perdem sua identidade, sua individualidade, passando agora a chamar-se “massa” (PASSOS, 2017, p. 86-87). Assim, podemos compreender que o indivíduo massificado, apesar de compor um único corpo, não buscava essa corporização pelo bem coletivo, pelo bem de seu povo. O homem de massa estava ilhado em um oceano de homens iguais a ele. Esse fenômeno é chamado de “Solidão Totalitária3”, em que a massa composta de homens solitários e individualistas trabalhavam para si e para o grande líder, sem mais, uma vez que tais massas são constituídas por pessoas que, comumente, se achavam insatisfeitas, revoltadas ou negligenciadas. A voz taciturna dessas pessoas foi considerada solo fértil para a disseminação dos ideais de massificação que visavam, 3 “O que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo não totalitário é o fato de que a solidão, que já foi uma experiência fronteiriça, sofrida geralmente em certas condições sociais marginais como a velhice, passou a ser, em nosso século, a experiência diária de massas cada vez maiores. O impiedoso processo no qual o totalitarismo engolfa e organiza as massas parece uma fuga suicida dessa realidade. O ‘raciocínio frio como o gelo’ e o ‘poderoso tentáculo’ da dialética que nos ‘segura como um torno’ parecem ser o último apoio num mundo onde ninguém merece confiança e onde não se pode contar com coisa alguma” (ARENDT, 2012, p. 638, grifos da autora). 21 paradoxalmente, o crescimento da nação por meio da ascensão individual e não social: As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e falta-lhes aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos determinados, limitados e atingíveis. O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores (ARENDT, 2012, p. 438-439). Hannah Arendt afirma que todo o sistema totalitário jamais alcançaria tanto sucesso e eficácia se não fosse pela contribuição das massas (ARENDT, 2012). Foi o apoio das massas que estruturou e conferiu poder tanto a Hitler como a Stalin, para que eles pudessem agir de forma livre e legal em seus respectivos países. Não seria possível terem superado tantas adversidades, crises, conflitos internos e externos. O grande líder, em sua incrível megalomania, se auto diviniza e as massas têm como seguras suas palavras. As massas seguem o grande líder como um sonâmbulo guiado, que se move por simples instinto. Logo, se pudermos compreender a participação das massas no regime, o que foi fundamental, segundo Arendt, lograremos contemplar a face daquilo que a filósofa alemã chamou de “mentalidade totalitária”. Dessa forma, a seguir explanaremos a composição dos elementos que construíram tal mentalidade, a partir dos conceitos arendtianos. Uma das características da mentalidade do homem de massa é a falta de interesse tanto pelo outro comopor si próprio. Percebamos que não existe o menor resquício de articulação ou organização conjunta: a massa se mostra incapaz de compor um vínculo interpessoal afim de atingir qualquer objetivo. Assim sendo, os assuntos de cunho público não atraem sua atenção, já que tais assuntos necessitam de um compromisso consigo e com o próximo. A psique do ser massificado repudia o aprofundamento do debate para o sucesso da coisa pública, por isso, não se responsabiliza e facilmente dá de ombros em relação à condução que o governo adota em sua pátria, bem como é antipático, sendo muitas vezes hostil à representatividade política, aos partidos e ao parlamento. A apatia do homem de massa é tamanha que gradativamente sua identidade pessoal é diluída, tanto que ele mesmo se percebe dispensável, substituível e desimportante. Então, canaliza toda a sua vida às atividades impostas pelo movimento, pois elas, sim, possuem um propósito indelével. 22 Mecanizados, atomizados, individualizados e superfluidos, os homens de massa perdem radicalmente o apresso por si mesmos. Estão imersos na quimera de trabalhar “numa grande tarefa que só aparece uma vez a cada 2 mil anos” (ARENDT, 1999, p. 121). Suas mentes foram tão alienadas que esvaziaram a necessidade de autopreservação – instinto natural da espécie humana –, ao ponto de se tornarem cínicos à própria condição, não sendo jamais tocados pela realidade, não podendo ser convencidos por suas próprias experiências. Sequer o medo da morte lhes tiraria “a inclinação apaixonada para as noções mais abstratas como guias de vida e o desprezo geral pelas óbvias regras do senso-comum” (ARENDT, 2004a, p. 366). A mentalidade totalitária absorta em uma existência desprovida de identidade não produzia criticidade, opiniões, perspectivas, reflexões, interesses, reivindicações e nenhuma espécie de revolta. E, por conseguinte, segue somente a procissão de padrões e as convicções gerais guiadas pelos bordões do movimento e compartilhadas pelos iguais. Hannah Arendt aponta que a mentalidade totalitária não se comove principalmente pelo desejo de brutalidade, violência ou rudeza, mas se caracteriza fundamentalmente pela solidão, pela falta de relações sociais comuns ou convencionais. O totalitarismo surge para essas pessoas como uma rota de fuga – fuga esta que lhes pode ser fatal e/ou suicida – da realidade aterradora. À vista disso, a massa, quase que instantaneamente, abandona a apatia e se torna fervorosamente apaixonada pelo movimento totalitário, perseguindo suas utopias em troca da oportunidade de expressar o seu ressentimento por não ter um lugar no mundo. O movimento totalitário arrouba as massas por meio do apelo da pseudossuperioridade da ideologia totalitária, que lhes oferece o benefício da isenção da responsabilidade de reflexão, juízo e pensamento crítico, assim como oferta a violência, o ódio e o fanatismo como ferramenta de persuasão. A massa, que cultivava a indiferença e o desprezo pelo diálogo político, agora se entrega obcecadamente ao movimento enquanto este for vigente. Contudo, frente ao declínio do regime, o fanático totalitário não se comporta como os fanáticos religiosos, que levam suas paixões até às últimas consequências, tornando-se mártires – mesmo que durante a vigência do regime aceitassem ser ceifados pelo sucesso do ideal totalitário. Quando o movimento totalitário que rege a vida do homem de massa se extingue, a superfluidade desse homem massificado faz com que ele deslize mansamente em direção à próxima brilhante fantasia, afastando- 23 se do movimento como apenas uma ficção frustrada. Ou, ainda, salvaguarda a fidelidade à utopia totalitária em segredo, esperando que ela ressurja triunfante novamente. Gostaríamos de destacar que um dos componentes principais da mentalidade de massa, o qual garante a total aquiescência do regime totalitário, é a cega e completa crença de que o movimento tem uma verdade acima de todas, uma verdade genuína, divina, perfeita e inquestionável. Uma vez convencido que o projeto do movimento é o único caminho a ser seguido por si e pela nação, não haverá limites para o que o homem de massa possa fazer, incluindo tudo o que for de mais hediondo, para perseguir o mundo idealizado pelo movimento em nome do sucesso dele. A mentalidade totalitária acredita que está completamente consciente da realidade e sobre a verdade que a circunda. Então, o fanatismo se concretiza num ideal de que o movimento é perfeito, logo, não se pode questionar, relativizar, buscar alternativas, melhorias ou novos desejos. Todo o ser da pessoa de massa está inundado pela ilusão totalitária, em razão de só o movimento pode tornar real o paraíso na Terra e qualquer um que se desvie desse objetivo, nem que seja um instante só, precisa ser eliminado. Dessa forma, se inaugura a premissa da vigilância de todos para com todos. Como diz Arendt: “nada foi mais fácil de destruir como a privacidade e a moralidade pessoal de homens que só pensavam em salvaguardar as suas vidas privadas” (ARENDT, 1999, p. 388). No entanto, o homem de massa não tem posse sequer de sua vida privada, porque, mesmo dentro de sua casa, está sendo observado. Até o suor de sua testa ao cumprir uma tarefa desagradável está sendo notado. Não há espaço para vacilação. Essa mentalidade propiciou a possibilidade de organização das massas através da adesão à propaganda que redimiria as massas do seu abandono e as prepararia para o mundo ficcional construído pela ideologia. A “mentira organizada” ofereceu às massas um escape do mundo tomado pela atomização, pela perda de status social e pelo desenraizamento que destruíram as relações comunitárias sustentadas pelo senso comum (common sense) (ALVES NETO, 2021, p. 44). Elucidemos que, para nós, a mentalidade do homem de massa não se enraíza nos ideais totalitários com base em dados racionais, evidências ou argumentação lógica, plausível, mas, sim, no desejo de alcançar a inerte “paz” que o movimento pode consubstanciar – nem que seja pela guerra e violência. A concepção de um mundo 24 ideal que surge na mente do ser massificado o permite ser um peão, que pode ser manejado pelo movimento apenas para que a ficção perdure. E, ainda que seja tamanha a adesão do ser de massa aos movimentos, quando o regime cai, como já comentamos, a massa deixa que sua paixão pelo movimento caia com ele, flua como uma manada para outra paragem, ou resguarda sua devoção sigilosamente. Sobre isso, Arendt (2012) destaca que, após a queda do regime nazista, a Alemanha aparentava não ter um nazista convicto sequer. Mas esse deslocar não pode ser considerado como fraqueza ou oportunismo: o totalitarismo nazista, por exemplo, como ideologia, foi consumado, praticado em sua completude e, como um animal raro que entra em extinção, é abandonado. Nem mesmo o fanatismo mais esdrúxulo dos adeptos pôde ser contemplado frente à destruição e derrota. Dessa maneira, podemos perceber que todas as atitudes de desprezo à máquina política e à superfluidade do homem de massa são evidentemente apolíticas, visto que impossibilitaram radicalmente o diálogo, a ação e as associações políticas. E, somadas as especificidades, bem como seu exorbitante número, as massas não apenas são necessárias para os movimentos totalitários, como são facilmente cooptadas por eles. Nunca se mentiu tanto quanto em nossos dias. Nem nunca se mentiu de uma maneira tão descarada, sistemática e constante. Pode-se objetar, talvez, que a mentira é tão velha quanto o próprio mundo, ou pelo menos que o homem mendax ab initio; que a mentira política nasceu com a própria cidade, tal como a história nos ensina abundantemente; enfim, sem que seja necessário remontar ao curso das eras, a lavagem cerebral da Primeira Guerra Mundial e a mentira eleitoral da época que se lhe seguiu atingiram níveis e estabeleceramrecordes muito difíceis de ultrapassar (KOYRÉ, 2019, p. 120). O principal objetivo da mentira organizada é substituir a realidade comum gerando a confiança ideológica no poder total do regine e na convicção de que tudo é possível dentro dessa nova realidade. Arendt explica: “a propaganda totalitária prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção, da coincidência para a coerência” (ARENDT, 2012, p. 486), afinal, esse grupo massificado deixa de crer na realidade desconfiando até do que seus olhos podem ver, devotando toda a sua fé na imaginação e em tudo que é gerado por ela através da propaganda, deixando ser seduzido por qualquer coisa de forma generalizada que soe coerente. “Os líderes totalitários mobilizaram as massas mediante a crença de que a realidade fatual não 25 pudesse opor nenhuma resistência e limites à coerência e à coerção da ideologia” (ALVES NETO, 2021, p. 44). É justamente a crença da massa na onipotência do regime que abre caminho para a criação de mentiras premeditadas disseminadas com o uso da propaganda, trazendo a capacidade de modificar o passado para que se perdesse a linha narrativa da história, de modo que não fosse possível mais distinguir verdade e mentira. “Quando a diferença entre ficção e realidade é destruída, nenhuma verdade factual se torna absolutamente efetiva contra a mentira organizada” (ALVES NETO, 2021, p. 51). Por esse motivo, semear a mentira organizada tem como objetivo apagar os fatos, fazendo com que relatos e registros sejam destruídos e/ou deslegitimados perante a sociedade de massa. Tendo em vista toda essa articulação através da propaganda para a deliberação de mentiras, explanaremos na seção a seguir como o homem de massa foi fisgado pelos movimentos totalitários através da propaganda, uma das ferramentas de persuasão mais impressionantes e eficazes até os dias de hoje. 2.2 A PROPAGANDA A massa mantém a marca, a marca mantém a mídia e a mídia controla a massa. George Orwell Para Hannah Arendt, o ponto de partida do processo de dominação totalitária são os meios de comunicação e o uso desses meios para atingir a população, de forma a obter a massa de manobra que executará as ações previamente planejadas pelo líder. “Somente a ralé4 [mob] e a elite podem ser atraídas pelo ímpeto do totalitarismo; as massas têm de ser conquistadas por meio da propaganda” (ARENDT, 2012, p. 474). 4 “A ralé [mob] é fundamentalmente um grupo no qual são representados resíduos de todas as classes. É isso que torna tão fácil confundir a ralé [mob] com o povo, o qual também compreende todas as camadas sociais. Enquanto o povo, em todas as grandes revoluções, luta por um sistema realmente representativo, a ralé [mob] brada sempre pelo ‘homem forte’, pelo ‘grande líder’. Porque a ralé [mob] odeia a sociedade da qual é excluída, e odeia o Parlamento onde não é representada” (ARENDT, 2012, p. 159-160, grifos da autora). 26 O termo “ímpeto do totalitarismo” utilizado por Arendt apresenta o totalitarismo como “movimento” gerado a partir de seu impulso inicial ocorrido pouco antes da tomada de poder. Nesse momento inicial, as massas ainda vivem em um mundo não totalitário, logo, os movimentos totalitários precisam buscar meios para apresentar suas ideias e conquistar adeptos. É através da propaganda política e da disseminação de notícias conspiratórias que o totalitarismo garante a adesão das massas ao regime. Nos países totalitários, a propaganda e o terror parecem ser duas faces da mesma moeda. Isso, porém, só é verdadeiro em parte. Quando o totalitarismo detém o controle, substitui a propaganda pela doutrinação e emprega a violência não mais para assustar o povo (o que só é feito nos estágios iniciais, quando ainda existe a oposição política), mas para dar a realidade às suas doutrinas ideológicas e às suas mentiras totalitárias (ARENDT, 2012, p. 747). A propaganda totalitária é considerada por Nádia Souki como o outro lado da mesma moeda do terror (SOUKI, 2006), mas a autora afirma – assim como disse Hannah Arendt em Origens do totalitarismo (ARENDT, 2012, p. 474) – que isso acontece apenas a princípio, pois, assim que o apoio das massas está garantido e que já não existe mais uma oposição política para gerar um contraponto de ideias, a propaganda muda de função, deixando de ser um mecanismo para “ganhar adesão das massas”. Ela atinge o seu verdadeiro potencial ideológico e passa a doutrinar internamente no empenho por ajustar a realidade às suas próprias premissas. Sendo assim, a doutrinação e o terror são os reais lados da mesma moeda, em que o terror faz parte do processo de doutrinação. Quando o terror atinge o seu ápice, a propaganda deixa de ser útil e passa a não ser mais utilizada. A propaganda é uma ferramenta totalitária das mais importantes para o processo de dominação, possuindo como princípio chave a organização. Essa organização é definida por Hannah Arendt como “acúmulo da força sem a posse dos meios de violência” (ARENDT, 2012, p. 496). Quanto menor o movimento, mais energia despenderá em sua propaganda. Quanto maior for a pressão exercida pelo mundo exterior sobre os regimes totalitários – pressão que não é possível ignorar totalmente mesmo atrás da “cortina de ferro” – mais ativa será a propaganda totalitária. O fato essencial é que as necessidades da propaganda são sempre ditadas pelo mundo exterior; por si mesmos, os movimentos não propagam, e sim doutrinam (ARENDT, 2012, p. 476). 27 Um dos objetivos iniciais da propaganda totalitária era o processo de atomização da população. A propaganda servia tanto para adquirir novos adeptos ao regime como também para gerar um sistema de isolamento das pessoas, o que Hannah Arendt chama de “atomização”5. Através dessa atomização dos indivíduos, o regime busca isolar os homens e torná-los impotentes, sendo assim um agregado numeroso de pessoas isoladas com relações sociais dissolvidas; são seres alheios a qualquer interesse, seja comum ou próprio. É justamente aí que se encontra o solo fértil onde a propaganda totalitária age de maneira frutífera, reunindo de forma tão eficaz seus adeptos. A autora mostra que, em governos tirânicos, a comunicação política entre os homens é impedida, mas nem tudo é retirado por completo, já que a esfera privada permanece como um direito e local de liberdade de ação dos cidadãos. Porém, no terror totalitário, a esfera privada é eliminada, tornando as pessoas solitárias. “No sistema totalitário, o indivíduo é transformado em um ‘algo’ que compõe a sociedade. Ele passa a ser uma ‘peça’ da grande engrenagem montada pelo Estado e chamada de nação, ou povo” (SCHIO, 2012, p. 44). Essa mentalidade totalitária, que é característica do sistema de massa, gera o isolamento também nas relações sociais, de forma que ela não é aplicada apenas para a parte da população com pouco acesso a conhecimento e cultura: a elite intelectual também é atingida por esse isolamento. Um dos problemas da sociedade de massas hoje é que as pessoas perdem tanto a privacidade quanto o gosto pela vida pública. Elas trabalham pelo salário até o ponto da exaustão, e então consomem ou dormem em seu tempo livre. Não há nem introspecção, nem comprometimento ativo/engajamento (DISCH, 2006, p. 21). Assim como assevera Disch (2006), sob a luz dos escritos de Hannah Arendt, é através dessa transformação da massa em uma sociedade destituída de interação e de pertencimento, tanto na esfera pública quanto na privada, que ocorre a aplicação da burocracia nas camadas de trabalho, para que a administração, tanto do Estado quanto das pessoas, se mantenha controlada ao máximo. Esse fenômeno “baseia-se na solidão, na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais 5 O termo de origem química seria para definir a fragmentação de um corpo em unidades mínimas. Numsentido figurativo, seria o de fragmentar a população para tornar cada cidadão isolado e sem força de ação conjunta. 28 e desesperadas experiências que o homem pode ter [...]” (SOUKI, 1998, p. 64). A característica principal do homem de massa é o desenraizamento do mundo comum, e a propaganda totalitária faz uso dessa particularidade oferecendo o ensejo para a fuga da realidade, mobilizando as massas desprovidas de um lugar ao sol ou de interesse comum na direção de um movimento no qual elas se sintam pertencendo a algo maior. Junto a esse método de imersão do indivíduo na bolha de uma vida atomizada, os nazistas passaram a apontar os judeus como um grande problema dentro da Alemanha. A propaganda antissemita foi a porta de entrada para a implantação do ódio a todos aqueles que não fossem alemães “puro sangue”. Sabendo do poder existente na propaganda, Hitler fez uso desse artifício para dar força aos seus planos de dominação. Segundo Arendt, era fato que os nazistas pautavam suas ações com base na afirmação de que o mundo estava sob o domínio dos judeus e fazia-se necessária uma maquinação para se defender da “conspiração mundial judaica” (ARENDT, 2012, p. 497). O que Hitler fez através da propaganda foi um marco para os estudos dessa área: Hoje, o mundo sabe a que ponto chegaram os resultados dessa mecânica gigantesca. O grande número de técnicas e processos introduzidos pelo nazismo em matéria de propaganda, todavia, subsiste mesmo fora do clima de ódio e delírio em que desabrocharam e nada pode impedir que, doravante, façam parte do arsenal da propaganda política (DOMENCAH, 2001, p. 46). Hannah Arendt mostra que a propaganda nazista foi concentrada em colocar em prática o que Hitler chamou de Volksgemeinschaft. Esse conceito alemão de “comunidade do povo” (MEDEIROS, 2019) foi amplamente difundido para conquistar o apoio popular de forma a modificar a organização social. O que o nacional socialismo desejava era que a pureza racial fosse o novo parâmetro para classificar as pessoas e não mais a classe social. É através de toda essa força existente na propaganda totalitária – e que Hitler soube utilizar de forma muito favorável à sua causa – que a massa consegue ser isolada do mundo real e passa a servir de força de trabalho para dar seguimento aos planos do Führer. “O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam fatos inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte” (ARENDT, 2012, p. 485). As massas fogem da realidade e aceitam imergir na mentira totalitária porque enxergam nisso uma saída da vida que 29 eles possuem, uma vida sem privilégios e sem lugar de existência participativa na vida política da sociedade. Por fim, após todo o processo de convencimento da massa e de eliminação de pessoas que se opõem ao regime, a propaganda totalitária deixa de ser necessária. Com isso, consideramos que a propaganda traz uma promessa de redenção e mais: uma promessa de aliança, de comunidade. A propaganda vende o sonho da terra prometida naquele mesmo solo que pisam – contudo, “sob nova direção”. E essa oferta de escape para um mundo ficcional construído pela ideologia faz a massa acreditar que a nova realidade está à sua frente. Agora, o homem de massa tem um posto na sociedade, um lugar no mundo, um sentido na vida: a pátria. Mas, como já ponderamos, a programa tem lugar e utilidade no regime totalitário somente até determinado ponto: até as massas serem arrebatadas. Depois disso, a propaganda se torna dispensável e então o governo se equipara a outros mecanismos, como, por exemplo, a burocracia. Na seção subsequente, buscaremos entender como a burocracia dá continuidade à marcha de dominação iniciada pela propaganda. 2.3 A BUROCRACIA O poder, como concebido pelo totalitarismo, reside exclusivamente na força produzida pela organização. Hannah Arendt Na seção anterior pudemos compreender que o homem de massa se caracteriza pela perda da identidade e pela diminuição da capacidade de agir e da capacidade de se perceber como um sujeito singular. Dessa forma, ele vaga entre os sentimentos de impotência, conformismo, desimportância, isolamento e irrelevância. Esses sentimentos tornam o homem de massa superfluido, o que o conduz à uniformidade, à homogeneização, à padronização. Esse homem é conquistado pela propaganda, que o convence através de discursos ora voltados às promessas de aliança e redenção, ora de ódio a um inimigo eleito. A propaganda tem o propósito de mobilizar, organizar, dominar e aterrorizar as massas. Mas, depois de conquistadas, 30 as massas precisam ser incorporadas ao sistema de forma disciplinar, metódica, repetitiva, técnica e mecânica, sem qualquer espaço para reflexão, questionamento ou discordância. À vista disso, o totalitarismo construiu uma estrutura social em seu regime em que os afazeres do coletivo ficaram “[...] a cargo de um aparelho impessoal hierarquicamente organizado, que deve agir segundo critérios impessoais e métodos racionais” (MOTTA, 2000, p. 7). De acordo com Motta, nas instituições que ele nomeia como totais (prisões e hospitais), que consistem em espaços de trabalho e moradia, as pessoas vivem em uma conjuntura que correlacionamos à vida totalitária: “totalmente isolada do resto da sociedade” (MOTTA, 2000, p. 56). Segundo o autor, as instituições totais se concentram em vigiar, punir, segregar, e talvez reeducar a classe dominada em nome da classe dominante. E, assim como no totalitarismo, os burocratas totais se despojam de identidade para ser uma ferramenta completamente acrítica e eficaz aos interesses dos superiores: No interior da instituição total o indivíduo passa por um processo de mortificação do eu. Esse processo consiste em um “destreinamento”, em uma “desculturação”. Ao entrar em uma instituição total os indivíduos devem esquecer os papéis que desempenhavam fora, e as vezes mesmo o seu nome e suas propriedades. Com frequência, essa perda de identidade se traduz na substituição das roupas pessoais por uniformes, na substituição dos nomes por números (MOTTA, 2000, p. 57-58). Com isso, o homem torna-se uma ferramenta e a sociedade uma macro organização estruturada em um sistema de pirâmides. Segundo Arendt, o trabalho que se realizava pelo regime era todo particionado como um processo de montagem industrial. Cada um fazia um determinado trabalho mecanicamente, sem ter noção da fase anterior ou posterior de sua própria etapa. Se uma pessoa, por exemplo, carimbava papéis todos os dias, ela não sabia porque fazia isso, não sabia para que serviam aqueles papéis ou para onde iriam. Sabia quem os levava, mas se este fosse substituído por algum motivo, não interessava. O importante seria executar a tarefa independente de qualquer coisa. Assim, o homem estaria integrado e controlado por um labor automático e sem significação. A burocracia é constituída mediante a uniformidade e homogeneidade das disposições pessoais. O funcionário burocrático é um cumpridor de ordens e seguidor de métodos, aderindo irrefletidamente aos 31 procedimentos, fins e objetivos predeterminados, não cabe a ele questionar sobre quais seriam os fins da atividade burocrática (FREITAS, 2019, p. 89-90). A falta de questionamento na estrutura burocrática totalitária é uma das principais características, até porque os funcionários são militares e um soldado cumpre ordem sem jamais altercar. Além do mais, se esse homem que um dia estava a esmo na vida, agora tinha uma posição, uma farda, um emprego, logo, tudo valia pela segurança. Conformar-se não seria apenas atrativo, mas imperativo. Entretanto, caso ocorresse uma situação desagradável ou até mesmo conflitante – o que, de certo, poderia suceder inúmeras vezes, já que os nazistas, por exemplo, criaram as máquinas da morte sem dizer nadada conjuntura própria de guerra –, as necessidades e emoções do sujeito seriam manipuladas e/ou compensadas com uma promoção ou transferência de setor/ função. Eichmann, que foi considerado por Arendt como um perfeito exemplar de um burocrata nazista, em determinada situação, foi remanejado de função por encontrar azedume em uma tarefa e ficar abalado. Todavia, seguiu fiel e eficaz no seu trabalho, superado o mal-estar. Ela [Arendt] entendeu que ele, na qualidade de um burocrata, de um técnico mecanicista, separou-se de sua humanidade, de suas emoções, da ética social e até mesmo de suas convicções pessoais. Ou seja, Eichmann sofreu a substituição da dignidade humana e do espírito e vontade autônoma, pelo projeto visionário e pelo funcionamento burocrático da máquina de guerra nazista. Na visão de Arendt, Eichmann assumiu a identidade de um burocrata, especialista em sua área [...] (MACHADO, S. H.; JÚNIOR, 2015, p. 324). As pessoas que perderam o senso de comunidade, que não possuem mais associações ou relações interpessoais e agora estão organizadas como aparatos mecânicos, perdem o sentido da participação nas coisas comuns à vida, como a política, posto que o seu sentimento de desimportância o leva a crer que não têm qualquer expressividade em tomadas de decisões. Por isso, despoja-se de todo sentimento de responsabilidade social e pessoal. Arendt entendeu que no decurso político do Terceiro Reich, Eichmann (e, por indução, conclui-se que também vários outros soldados nazis) tivera sua consciência ética extirpada pela autoridade racional-legal da burocracia nazi. Ou seja, ele perdeu aos poucos a capacidade de inferir o certo e o errado, o justo e o injusto, segundo os parâmetros do pensar crítico-reflexivo. E isso o colocou na condição de sujeito 32 idiotizado, amputado da consciência de responsabilidade ética (MACHADO, S. H.; JÚNIOR, 2015, p. 324). Por conseguinte, vislumbramos que grande parte do sucesso da burocracia totalitária não se dá pela insurgência de “gênios do mal”, “demônios”, ou “monstros”, mas pelo individuo normal, sem grandes apetições, supérfluo, obediente e, muitas vezes até, dedicado. E outra expressiva parcela do sucesso pode ser atribuída, evidentemente, ao caráter impessoal da administração burocrática totalitária: esta, por não possuir rostos, se isenta de responsabilidade por suas realizações. A burocracia só deixa espaço para o ato, jamais para a ética. O funcionário totalitário é adestrado à praticidade do fazer, sendo comparado a um pequeno dente de uma engrenagem, tendo que minimizar e/ou esquecer sua moralidade. Em conformidade com esse pensamento, Costa, à luz da teoria de Arendt, atesta que “a burocracia é o domínio de ninguém, ou o domínio de um intrincado sistema de departamentos no qual nenhum homem, nem o único, nem o melhor, nem poucos, nem muitos, pode ser considerado responsável” (COSTA, 1991, p. 46-47). A burocracia não só vela a responsabilidade do pequeno burocrata, mas, principalmente, do governo diligente. O regime totalitário se edifica fortemente na ausência de uma constituição, de uma legislação de direitos comuns e inalienáveis. Com isso, a normatização da pátria se compõe e se realiza através de editos, decretos sem uma face: Legalmente, governar por meio de burocracia é governar por decreto, o que significa que a força, que no governo constitucional apenas faz cumprir a lei, se torna a fonte direta de toda legislação. Além disso, os decretos têm um aspecto de anonimato (enquanto as leis podem ser atribuídas a determinados homens ou assembleias) e, portanto, parecem emanar de algum supremo poder dominante que não precisa justificar-se (ARENDT, 2012, p. 340-341). Esse mesmo aspecto de impessoalidade, de algo divinal, seria muitas vezes o que impulsionaria o homem de massa, ao mesmo tempo apático e fanático, a aderir ao movimento e ao trabalho sem questionar, mesmo que frente ao horror, à guerra e ao extermínio de um semelhante. Só um homem completamente destituído de responsabilidade pessoal, criticidade e moralidade seria capaz de conduzir homens, mulheres e crianças para as fábricas da morte sem colapsar psicologicamente. Dessa forma, depreendemos que a promoção e o estabelecimento dos grupos de homens massificados e supérfluos criaram a auspiciosa situação para a 33 instauração da administração burocrática no regime totalitário, e isso permitiu ao regime se alastrar e controlar toda uma sociedade. O maquinário público burocrático requereu a participação de homens perfeitamente normais, sem identidade, sem moralidade e sem necessidade de associações interpessoais, que realizariam um trabalho mecanizado e particionado, isolando, organizando e atomizando o indivíduo. À vista disso, surge um mal extremo manejado pela burocracia, do qual ninguém é responsável: o mal banal, que mais à frente discutiremos. Mas, se frente ao mal o homem desejar escapar do sistema, então ele seria mais uma vez convencido, seja pela ideologia seja pelo terror, ponto esse que abordaremos a seguir. 2.4 A IDEOLOGIA E O TERROR Se você quer uma imagem do futuro, pense em uma bota prensando um rosto humano: para sempre. George Orwell Com base em tudo o que já apresentamos até aqui, podemos dizer que uma das características mais latentes do totalitarismo é que sua estrutura social é composta, em sua maioria, de integrantes igualmente supérfluos. O ser massificado que foi arrebanhado pela propaganda e incorporado ao sistema pela burocracia, agora vivencia um estado de realidade suspensa. O homem de massa, impulsionado por seu próprio fanatismo, se encontra cego para os fatos de sua existência, alheio à autenticidade factual da vida. Não podendo mais ser atingido pela experiência ou pelo argumento, nem pelo medo da morte, pela tortura ou pela dor. A capacidade inerente ao ser humano de apetecer aos apelos dos sentidos é destruída pelo conformismo e pela identificação com o movimento. A massa, que outrora sofreu com a negligência do Estado e com a esmagadora realidade que a circundava, anseia por um meio social simples, sem problemas, sem conflitos, sem dilemas. Logo, a fantasia proposta pelo movimento satisfaz tal anseio. Essa fantasia que, na mente do homem de massa, é uma crença, lhe dá uma rota de fuga para escapar da decadência social gerada pelo status quo. Seguir esse 34 movimento e essa crença pode ser encarado como algo que lhe permite manter o mínimo de respeito próprio quanto a ideia de estar fazendo o melhor para si. Então, o movimento faz uso da ideologia para consolidar o poder nas mentes alienadas dos homens-massa. A lógica da ideologia desvincula o homem do senso comum não porque o senso comum seja questionável, mas porque a ideologia destrói a realidade compartilhada e toda a solidez e a confiabilidade da experiência. A logística da ideologia não deixa espaço para a subjetividade, sendo assim, a experiência é completamente deslegitimada. O que as ideologias totalitárias visam não é a transformação do mundo exterior ou a transmutação revolucionária da sociedade, mas a transformação da própria natureza humana. Para Arendt, o totalitarismo é, no fundo, o mundo invertido enquanto proclama a destruição de toda ação, enquanto é inauguração. Monopolização do poder, isolamento de um indivíduo totalmente abarcado e faculdade de julgamento, delírio lógico, vontade de transformar a natureza humana: eis as características da inversão de valores efetuadas pelo universo totalitário onde tudo é possível e nada é verdadeiro (SOUKI, 2006, p. 65-66). Em momento de dúvida, a ideologia solidifica os refrãos disseminados pela propaganda – “não pense em crise, trabalhe”. O chavão substitui a autonomia do pensar. Se o conhecimento tampouco é necessário para além do procedimento técnico dentro da burocracia, fora dela, o refrão “responde”a todas as questões, convence; ele estabiliza, realinha, controla, apazigua o homem. A premissa é tudo; explica tudo (de forma universalizadora) a despeito das experiências e dos eventos – a que se aplica “deus acima de tudo”. Retirando da mente qualquer realidade mundana, o uso da razão dentro da ideologia deve ser deduzido dessa lógica generalizadora, de forma que não é necessário sabedoria, conhecimento, ciência ou repertório de vida. Basta a “lógica do terror” para responder a todas as coisas, de maneira rasa, única e eficaz. A ideologia, em sua lógica tirânica, trabalha em conformidade com a propaganda e a burocracia para eliminar qualquer traço de individualidade do sujeito, esteja este nascendo ou morrendo. A ideologia totalitária precisa da massa, do sujeito massificado, exatamente idêntico a todo o restante. A propaganda é, de fato, parte importante da “guerra psicológica”; mas o terror o é mais. Mesmo depois de atingido o seu objetivo psicológico, 35 o regime totalitário continua a empregar o terror; o verdadeiro drama é que ele é aplicado contra uma população já completamente subjugada. [...] Em outras palavras, a propaganda é um instrumento do totalitarismo, possivelmente o mais importante, para enfrentar o mundo não totalitário; o terror, ao contrário, é a própria essência da sua forma de governo. Sua existência não depende do número de pessoas que a infligem (ARENDT, 2012, p. 476). Os indivíduos atomizados agora ocupam cargos administrativos em níveis diferentes de cada camada do sistema. Sendo pessoas isoladas socialmente, cada uma cumpre seu papel acreditando que estão garantindo benefícios e posição social. Os indivíduos que não conseguiram se encaixar dentro do sistema administrativo e que não eram considerados mão de obra produtivas para o regime, bem como as minorias consideradas impróprias para fazer parte da massa, eram encaminhadas para os campos de concentração. Os campos de concentração não são apenas destinados ao extermínio de pessoas e à degradação de seres humanos: servem também à horrível experiência que consiste em eliminar, em condições cientificamente controladas, a própria espontaneidade enquanto expressão do comportamento humano, e em transformar a personalidade humana em simples coisa, em alguma coisa que nem mesmo os animais possuem (ARENDT, 1989, p. 506). Segundo Nádia Souki, as fábricas da morte são essencialmente os laboratórios do totalitarismo, onde é ensaiado o plano da instauração perfeita da dominação. Os campos de concentração são os locais ideais em que tudo é tanto permitido quanto possível aos detentores do poder, aniquilando todo e qualquer direito ou liberdade – seja individual, seja coletiva do dominado. Este último é relegado a coisa. Uma coisa- nada (SOUKI, 2006). Os campos de concentração são máquinas de moer gente, onde quem entra, seja qual for sua posição ou seu uniforme, terá sua humanidade esmigalhada. Portanto, o homem que pode ser enquadrado na figura do carrasco não se distingue maciçamente daquele que é a dita vítima, pois, obrigado pela SS a trabalhar nas fábricas da morte e a agir como assassino, o então algoz percebe que desfruta do mínimo poder de escolha: ou fecha a porta da câmara de gás ou entra nela. “Morta a pessoa moral, esses homens foram transformados em mortos vivos. Aqui nos encontramos diante de uma analogia paradoxal entre vítima e opressor. O Nazismo degrada suas vítimas, torna-as semelhantes a ele mesmo” (SOUKI, 2006, p. 36 56). O totalitarismo prende e conserva todos numa realidade tão aterradora, lúgubre e funesta, da qual é custoso acreditar em sua veracidade: Todos os relatos vindos dos campos de concentração são caracterizados como uma peculiar irrealidade e incredibilidade, tanto da parte de quem ouve como da parte do autor, que permanece sempre como uma vítima de dúvidas quanto à sua própria veracidade, como se pudesse ter confundido um pesadelo com a realidade. Essa atmosfera de loucura e irrealidade, criada pela aparente ausência de propósitos, é a verdadeira cortina de ferro que esconde dos olhos do mundo todas as formas de campo de concentração (SOUKI, 2006, p. 56-57). E foi exatamente essa cortina de ferro revestida de loucura que preservou o mundo de se sentir compelido a investigar os horrores produzidos pelo totalitarismo. De uma forma diferente do mito da caverna, quem conseguiu vislumbrar a face fosca e horrenda do terror totalitário, mas conseguiu escapar, é desacreditado, porque, acima de tudo, existia a questão da inovação dos traços de crueldade. Quem poderia imaginar uma sociedade que investisse para a degradação do próprio povo? Pois bem, daí a novidade totalitária que colabora para retirar qualquer espírito de responsabilidade e reafirmar a dominação do líder (SOUKI, 2006). Com isso, concluímos que toda a barbárie ocorrida de forma tão devastadora e eficaz – em seu objetivo de extermínio de um povo – adquiriu sucesso graças ao caminho traçado pelo regime totalitário: a partir da propaganda totalitária, organizado através da burocracia e firmado nas mentes da massa através da ideologia e do terror, controlando o homem, utilizando-se de uma grande máquina impessoal composta por homens perfeitamente normais e supérfluos em sua ação. Hannah Arendt, em seus escritos sobre o totalitarismo, descreve a origem de um mal no espaço político executado por sujeitos totalmente comuns, carentes de lucidez e da capacidade de pensar, a qual discutiremos mais detidamente no próximo capítulo. 37 3 COMO TORNAR HOMENS SUPERFICIAIS: UMA NOVA MANIFESTAÇÃO DO MAL EXPRESSA NA BANALIDADE E NA AUSÊNCIA DE RAIZES Você está absolutamente certo: eu mudei de ideia e não falo mais em “mal radical” [...] É de fato minha opinião que o mal nunca é radical, que é apenas extremo, e que não possui nem profundidade nem dimensão demoníaca. Hannah Arendt Ao escrever Origens do totalitarismo, Hannah Arendt acreditava que existiria no mundo um tipo de mal que brotava do âmago da humanidade: um mal radical que por ser responsável por tantas obras lúgubres e nefandas, só poderia ter se originado em um seio diabólico, um mal dotado de uma consciente perversão. Por consequência, quando foi incumbida de realizar a cobertura do julgamento do funcionário da Alemanha Nazista, o SS-Obersturmbannführer (tenente-coronel) Adolf Eichmann, Arendt, assim como grande parte da população mundial da época, agitada pela imprensa, pensava que se depararia com uma figura demoníaca, cruel, impiedosa e feroz. Contudo, o choque foi maior do que se suas expectativas fossem atendidas: o homem que se sentava no banco dos réus para ser julgado por crimes que estarreceram o mundo era de uma normalidade decepcionante. Um homem tão comum e insosso que o termo que poderia descrevê-lo com maior exatidão seria: banal. Ali, portanto, estava o homem que abriria os olhos de Hannah Arendt para um mal inédito: o mal banal. De acordo com Aline Matos da Rocha (2020), Arendt, em seu relato sobre o julgamento de Eichmann, descreve-o como um homem pacato, obediente, comum e cumpridor de ordens. E, desse modo, um sujeito com um distinto dos demais que havia analisado anteriormente em Origens do totalitarismo, sob a luz dos acontecimentos do Terceiro Reich. Arendt constata que, diferente de outros nazistas como Himmler, Goebbels, Streicher e Göring, Eichmann era um ser despido de convicções ideológicas arraigadas. Não entrou para o Partido por convicção nem jamais se deixou convencer por ele – sempre que lhe pediam para dar suas razões, repetia os mesmos clichês envergonhados sobre o Tratado de 38 Versalhes e o desemprego; antes, conforme declarou no tribunal, “foi como ser engolido pelo Partido contra todas as expectativas e sem decisão prévia. Aconteceu muito depressa e repentinamente”. Ele não tinha tempo, e muito menosvontade de se informar adequadamente, jamais conheceu o programa do Partido, nunca leu Mein Kampf. Kaltembrunner disse para ele: por que não se filia à SS? E ele respondeu: por que não? Foi assim que aconteceu, e isso parecia ser tudo (ARENDT, 1999, p. 44-45). Visto que o acusado estava longe de representar a malignidade em pessoa e não ser movido pelo ódio fanático, Arendt teve que redirecionar suas reflexões para investigar a natureza daquele homem que não aparentava ser nem mal, nem esperto. Então, de fronte a superficialidade de Eichmann, indaga-se: de que forma e por quais razões o mal se apresentou não como “radical”, movido por motivos maléficos, impulsos diabólicos enraizados na “natureza humana”, mas sim, sem raízes, superficial, vulgar, a partir da “banalidade”? De que forma e por quais razões o totalitarismo revelou uma nova forma de “mal”? Como os homens normais se tornam tão “superficiais” a ponto de serem indiferentes às mortes que provocam? E mais, como pode ser o mal superficial? Qual a relação entre a superficialidade e o mal sem raízes? De que modo a prática desse mal, extremo embora não radical, manifesta-se na superfície das coisas? Compreendemos que tais questões foram respondidas, de certa forma, pelo próprio Eichmann. Franzino, comum e até mesmo simpático, Eichmann não combinava com a carapuça de um assassino genocida. Então, como seria possível que ele tivesse participado da morte de montanhas de gente? Ele estaria fingindo ser um homem normal? Seria dissimulado ou, quem sabe, louco? Segundo Arendt, ele não poderia ser considerado louco de forma alguma. Eichmann recebeu avaliação de vários psiquiatras que atestaram sua sanidade. Ele não tinha nenhum distúrbio ou dificuldade cognitiva, entendia que estava sendo acusado de 15 crimes, dos quais destacamos: crime contra a humanidade, crime contra os judeus e crime de participar de uma organização criminosa. Mas Eichmann discordava das acusações e alegava deliberadamente ser inocente das acusações. “Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu, nem um não-judeu – nunca matei nenhum ser humano. Nunca dei uma ordem para matar fosse um judeu fosse um não-judeu: simplesmente não fiz isso”, ou, conforme confirmaria depois: “Acontece [...] que nenhuma vez eu fiz isso” – pois não deixou 39 nenhuma dúvida de que teria matado o próprio pai se houvesse recebido ordem nesse sentido (ARENDT, 1999, p. 33). Enquanto a acusação contra Eichmann apoiou-se na ideia de que ele teria conhecimento da natureza criminosa de seus atos, “a defesa aparentemente teria preferido que ele se declarasse inocente com base no fato de que, para o sistema legal nazista então existente, não fizera nada de errado [...], mas ‘atos de Estado’” (ARENDT, 1999, p. 32-33). Estaria Eichmann apenas encenando sua mediocridade para se salvar da condenação à morte? Quase ninguém presente ao julgamento acreditou na versão do acusado. Arendt se perguntou justamente pela razão dessa descrença, concluindo, com relação aos julgadores, que eram bons e cônscios dos próprios fundamentos da sua profissão, para admitir que uma pessoa mediana, “normal”, nem fraca de espírito, nem fanatizada, nem cínica, pudesse ser perfeitamente incapaz de distinguir o certo do errado. Eles preferiram concluir de maneiras ocasionais que ele era um mentiroso – e perderam de vista o maior desafio moral e até legal do caso (ARENDT, 1999, p. 42). A fina análise do caso elaborada por Arendt permitiu que a autora concluísse que o pressuposto dos julgadores era de que uma pessoa normal é capaz de ter consciência da natureza criminosa de seus atos e Eichmann foi considerado uma “pessoa normal”, visto que não era uma “exceção” no interior do regime nazista. Entretanto, o ponto crucial da questão é que, sob a dominação totalitária, apenas as “exceções” poderiam agir “normalmente”. Mas, a pressuposição dos julgadores expressava todo o dilema que eles não podiam eludir e nem resolver. O desafio é muito mais complexo do que simplesmente supor que uma pessoa “normal” só pode estar mentindo quando afirma não ter responsabilidade por crimes de que ela teria perfeita consciência. Em primeiro lugar, não estamos tratando aqui de uma situação “normal”, de tal modo que as pessoas de fato normais reagiriam excepcionalmente a tal situação – não a aceitando. Mas o totalitarismo instaurou uma “normalidade” inteiramente inédita, na qual a exceção moral se fazia regra, incorporando e cooptando indivíduos, “cidadãos cumpridores da lei”, para tarefas maiores, técnicas e amorais, com base em um automatismo burocrático. A verdade era: se manifestava em Eichmann o fato de que, sob condições totalitárias, o “mal” estava penetrado no cotidiano da sociedade, inteiramente generalizado e banalizado. Por isso, Arendt considera que a banalização do mal significa que o “mal” não se 40 coloca fora do sistema, nem este fora do “mal”, ainda que a violência do sistema não exima de responsabilidade os seus executores. Dessa maneira, Arendt evidenciou que o sistema legal estabelecido e os conceitos jurídicos usuais se revelaram inadequados e insuficientes para avaliar “massacres administrativos”, diante de um réu que se declarou inocente de todas as acusações e não se sentia responsável pelo fato de ter cumprido ordens de seu governo. Arendt buscou esclarecer que o regime totalitário nazista descobriu, sem o saber, que existem crimes que os homens não podiam punir nem perdoar. Eichmann obedecia às ordens de seus superiores sem jamais questioná-las ou refletir sobre o que fazia. Essa ausência de pensamento e o cumprimento de ordens foram vitais para o sucesso do regime, uma vez que Eichmann não condenou judeus ao extermínio pelo que fizeram enquanto indivíduos, mas sim por integrarem o grupo em que nasceram e foram reunidos pela legislação nazista que, por sua vez, determinara quem deveria e quem não deveria habitar o mundo. Eis a razão pela qual Arendt considerava essencial que Eichmann fosse levado a sério. Não apenas para compreender o que torna os homens superficiais e a periculosidade da irreflexão para o âmbito político, mas, sobretudo, tendo em vista o devido cuidado de que não haja um Eichmann dentro de cada um de nós. Segundo Lafer, o exercício da gratuidade do mal ativo, que leva a atos monstruosos cometidos por pessoas ordinárias, é, avalia Hannah Arendt, fruto de thoughlessness, uma incapacidade de pensar dos que os perpetram. Esta incapacidade corre o risco de generalizar-se e é extrema (por isso é perigosa), mas não profunda (por isso é banal). Tem, no entanto, o potencial de irradiar-se como um fungo rasteiro e nefasto, que pode espalhar-se pelo mundo, destruindo-o [...] (2013, p. 33). É nesse sentido que a banalidade do mal pensada por Arendt não proclama sobre uma suposta essência do mal, não a trata como uma questão ontológica, mas sim uma questão ética e política de extrema relevância e atualidade. Percebe-se que, para a autora, esse era um novo tipo de fenômeno em seu tempo e tinha que ser compreendido, pois se tratava de um criminoso acusado de conduzir milhões de judeus à morte, sem que suas práticas fossem movidas por crueldade ou motivos especiais. Eram práticas cruéis que se tornaram banais e podem ser praticadas por qualquer pessoa caso uma ordem seja dada – o que é muito grave, porque pode se 41 proliferar rapidamente contra qualquer grupo, inclusive na atualidade. Como assevera Souki: Eichmann representava o melhor exemplo de um assassino de massa que era, ao mesmo tempo, um perfeito homem de família. Chamar alguém de monstro não o torna mais culpado, da mesma forma que chamá-lo de besta ou demônio. [...] Afigurava-se como algo totalmente negativo: não se tratava de estupidez, mas de uma curiosa e bastante autêntica incapacidade de pensar (2006, p. 88). Certamente,
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