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BanalidademalHannah-Leite-2022

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA 
 
 
 
 
 
 
FLADMYLLA OHANA DE SOUZA LEITE 
 
 
 
 
 
 
 
A BANALIDADE DO MAL EM HANNAH ARENDT 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NATAL/RN 
 2022 
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FLADMYLLA OHANA DE SOUZA LEITE 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A BANALIDADE DO MAL EM HANNAH ARENDT 
 
 
 
 
 
Dissertação de Mestrado apresentada ao curso 
de Pós-graduação em Filosofia, da Universidade 
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito 
parcial à obtenção do título de Mestre em 
Filosofia. 
 
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Alves Neto. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NATAL/RN 
2022 
 
 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN 
Sistema de Bibliotecas - SISBI 
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA 
 
 Leite, Fladmylla Ohana de Souza. 
 A banalidade do mal em Hannah Arendt / Fladmylla Ohana de 
Souza Leite. - Natal, 2022. 
 70 f.: il. 
 
 Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e 
Artes, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade 
Federal do Rio Grande do Norte, 2022. 
 Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Alves Neto. 
 
 
 1. Banalidade do Mal. 2. Hannah Arendt. 3. Totalitarismo. 4. 
Ideologia. 5. Juízo. I. Neto, Rodrigo Ribeiro Alves. II. Título. 
 
RN/UF/BS-CCHLA CDU 321.64 
 
 
 
 
 
Elaborado por Raphael Lorenzo Lopes Ramos Fagundes - CRB-15 912 
 
 
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FLADMYLLA OHANA DE SOUZA LEITE 
 
 
A BANALIDADE DO MAL EM HANNAH ARENDT 
 
 
Dissertação de Mestrado apresentada ao 
curso de Pós-graduação em Filosofia, da 
Universidade Federal do Rio Grande do 
Norte, como requisito parcial à obtenção 
do título de Mestre em Filosofia. 
 
 
 
Aprovada em: 
 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
 ______________________________________ 
Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Alves Neto – Orientador 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
 
 
______________________________________ 
Prof. Dr. Odílio Alves Aguiar – Membro Externo 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ 
 
 
______________________________________ 
Prof. Dr. Fábio Abreu dos Passos – Membro Externo 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ 
 
 
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A todas as mulheres. 
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AGRADECIMENTOS 
 
Demorei muito para chegar nessa parte dos agradecimentos e faço isso 
quando estou refletindo sobre toda a estrada até aqui. Existe tanto a agradecer! Foi 
um longo caminho percorrido para alcançar uma das conquistas mais desejadas, e 
esse longo percurso vem muito antes da minha existência. Sou uma mulher que teve 
parte do trajeto aberto por outras mulheres incríveis que deram tudo de si pela sua 
descendência, mesmo sem fazer ideia da grandiosidade de seus atos em prol de um 
futuro menos sofrido para si e para os seus. Mulheres que tiveram de sofrer quase 
todas as consequências possíveis que o patriarcado nos causa todos os dias. 
Mulheres pretas e pobres que sentiram na pele e no coração o que é serem 
negligenciadas apenas por serem quem são. E, mesmo assim, saíram de seu lugar 
de origem e seguiram em busca de melhoria de vida, seja trabalhando como 
doméstica, seja como professora ou como secretária. Mulheres que (quando foi 
possível) tomaram as rédeas das suas vidas e ensinaram que eu precisaria fazer 
muito mais para seguir e ir além: ir aonde elas não conseguiram chegar. Não por falta 
de vontade ou de esforço, mas por falta de oportunidade. Essas mulheres fizeram 
história e fazem parte da minha história. Por isso, é necessário que o nome delas 
estejam aqui também. 
Maria das Dores dos Santos: a melhor avó que o universo poderia me dar. 
Mulher doce, carinhosa e simples no ato de amar. Não pôde ser mãe de suas filhas, 
pois precisava trabalhar sendo mãe de outros dentro da função de empregada 
doméstica. Irene Araújo de Souza Correia: a grande matriarca, mulher que dedicou 
sua vida à docência e me ensinou através do exercício de sua profissão o quão 
importante é o ato de lecionar. Ela é o alicerce que mantém firme toda a família. Maria 
de Fátima Souza: mulher que lutou a vida inteira para ser livre, mas quase sempre 
renunciou a si para cuidar dos outros. Fez de tudo para me ter e me oferecer o melhor 
que podia. Nunca desistiu de mim, mesmo quando nossas ideias de mundo 
divergiram. Te amo demais, minha mãe! 
Essas mulheres são o caminho antes de mim, e eu pretendo seguir abrindo 
caminhos para que outros possam ter o direito de viver uma vida melhor e para que 
tenham o direito de pensar e de expressar seus pensamentos através do diálogo e da 
escrita. 
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Durante muito tempo me senti sozinha em meus pensamentos e me 
perguntava em que momento eu me livraria da bolha infernal do Ensino Médio e me 
encontraria num ambiente de iguais. No ano de 2013, consegui ingressar na 
Graduação em Filosofia na UFRN e ali achei o meu lugar. De lá para cá, muita gente 
massa passou pelo meu caminho, e eu sou grata demais por tudo que esse curso e 
essa Universidade me proporcionou. Agradeço aos amigos de Graduação: Aline 
Mabel, Priscila Novais, Alice Barros e Lucas Alves. Nossas resenhas fizeram dessa 
Graduação o melhor Ensino Médio que eu poderia ter! Agradeço também aos 
professores Jaime Biella (PIBID), Sérgio Eduardo, Gisele Amaral (PET) e Bruno Vaz 
(PET). 
Superada a fase da Graduação com gostinho de Ensino Médio, veio o 
Mestrado. Essa segunda fase, que durou uma segunda graduação, me fez passar por 
tanta coisa que nem sei como descrever. Só sei que eu quero comigo sempre as 
pessoas que conheci nessa Pós-graduação. Da “Treta-feira” para a vida: Landa 
Ciccone, que, além de amiga e família, virou vizinha de condomínio; Jonhkat, a amiga 
dispersa que tem a melhor gargalhada; Vanuza Nunes, que entrou para o clube das 
filósofas da Vila de Ponta Negra e que eu adoro ter por perto para ficar calma só de 
olhar para ela; Mari Pereira, que de uma forma muito leve e sem pretensão me trouxe 
a Landa, a Jô e um bom chimarrão semanal – e eu sou muito grata por isso. Agradeço 
também a Thiare Pacheco por me salvar sempre em todas as burocracias acadêmicas 
e por acabar se tornando uma amiga em meio a tudo isso. Os professores da 
Graduação e da Pós-graduação normalmente são os mesmos, mas a forma como nos 
conectamos a eles em cada etapa é muito diferente. Por isso, dentro da fase do 
Mestrado, quero deixar aqui meus agradecimentos às professoras Cinara Nahra e 
Maria Cristina, que me proporcionaram ótimos momentos de vivência filosófica em 
suas disciplinas. 
Agradeço também ao meu orientador Rodrigo Ribeiro por fazer parte disso, 
tanto na primeira tentativa quando nessa. Muito obrigada por aceitar estar comigo 
nesse processo sem nem saber quem eu era quando mandei o primeiro e-mail. Seu 
acolhimento me fez acreditar que era possível tentar. 
Reservo agora este espaço para agradecer a minha amiga/namorada/esposa 
Aline Souto, que está ao meu lado me apoiando há mais de 3136 dias, me mostrando 
que a vida precisa ser vivida também com riscos, que o medo faz parte do processo, 
que só dá para ir para a frente, que se lamentar não nos faz sair do lugar. Muito 
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obrigada por me amar e por fazer eu me enxergar no mundo como alguém que pode 
sim fazer muito mais com tudo aquilo que as mulheres da minha vida passaram. 
Obrigada por me ensinar o poder da mitologia e da Mulher-Pesadelo (SILVA, 2021) 
na sociedade. Quero passar o resto da minha vida junto com você sonhando, vivendo 
e conquistando o bem que merecemos, para sermos cada dia mais Mulheres-
Pesadelo para todo tipo de opressão, preconceito e racismo. Eu te amo. Agradeço 
pelo seu amor e pela amiga sagitariana (Cecília Souto) que você gerou e trouxe junto 
contigopara a minha vida. 
E, por fim, agradeço à CAPES, pois o presente trabalho foi realizado com o 
imprescindível apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível 
Superior. 
 
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Não existe testemunha tão terrível, nem acusador tão implacável 
quanto a consciência que mora no coração de cada homem. 
Políbio 
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RESUMO 
 
A presente pesquisa analisa a reflexão de Hannah Arendt sobre o fenômeno da 
“banalidade do mal”, a relação entre responsabilidade pessoal e coletiva e o vínculo 
entre pensamento e moralidade que se expressa no exercício do raciocínio crítico. 
Elucidamos o modo como os crimes totalitários desafiaram a compreensão e os 
padrões tradicionais de julgamento moral, reivindicando uma problematização da 
tradicional concepção do mal como derivado de uma vontade má, evidenciando o 
caráter superficial do mal quando praticado pela incapacidade de pensar e julgar, pela 
falência do senso comum e pela obediência irrefletida. O mal se torna banal quando 
realizado por homens que nem sequer decidiram realizá-lo e apenas obedecem a 
regras previamente estabelecidas no regime. Investigamos o esforço teórico da autora 
por tornar o pensamento relevante para a constituição e a preservação do mundo 
comum, demonstrando o quanto o exercício do pensamento e a capacidade de julgar 
são importantes fatores na esfera dos assuntos humanos. 
 
Palavras-chave: Banalidade do mal; Hannah Arendt; Juízo; Totalitarismo; 
Pensamento. 
 
 
 
 
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ABSTRACT 
 
This research analyzes Hannah Arendt's reflection on the phenomenon of "banality of 
evil", the relationship between personal and collective responsibility and the bond 
between thought and morality that is expressed in the exercise of critical reasoning. 
We elucidate how totalitarian crimes challenged the understanding and traditional 
patterns of moral judgment, claiming a problematization of the traditional conception of 
evil as derived from an evil will, evidencing the superficial character of evil when 
practiced by the inability to think and to judge, by the failure of common sense and by 
unthinking obedience. Evil becomes banal when performed by men who have not even 
decided to carry them out and only obey the rules previously established in the regime. 
We investigate the author's theoretical effort to make thought relevant to the 
constitution and preservation of the common world, demonstrating how important the 
exercise of thought and the ability to judge are in the sphere of human affairs. 
 
Keywords: Banality of evil; Hannah Arendt; Judgment; Totalitarianism; Thought. 
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SUMÁRIO 
 
 
 
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13 
 
2 COMO TORNAR HOMENS SUPÉRFLUOS: A FORMAÇÃO DA “MENTALIDADE 
TOTALITÁRIA” E DA “MASSA BUROCRÁTICA” NO TOTALITARISMO .............. 17 
2.1 A MASSA E A MENTALIDADE DE GRUPO ........................................................ 17 
2.2 A PROPAGANDA ............................................................................................... 25 
2.3 A BUROCRACIA ................................................................................................. 29 
2.4 A IDEOLOGIA E O TERROR .............................................................................. 33 
 
3 COMO TORNAR HOMENS SUPERFICIAIS: UMA NOVA MANIFESTAÇÃO DO 
MAL EXPRESSA NA BANALIDADE E NA AUSÊNCIA DE RAÍZES ...................... 37 
 
4 O QUE TORNA O PENSAMENTO CAPAZ DE ELABORAR A PROFUNDIDADE? 
................................................................................................................................... 51 
 
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 62 
 
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 66 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
13 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
 
O pensamento é igualmente perigoso para 
todos os credos e, por si mesmo, não dá 
origem a nenhum novo credo. 
Hannah Arendt 
 
De acordo com Aristóteles, o homem é um animal que requer uma gama de 
coisas, dentre as quais insere-se, de maneira consubstancial, o convívio e a relação 
com outros humanos. E, sob o signo desse convívio, o homem busca um senso de 
comunidade, o que acaba por construir uma sociedade. Na sociedade, todos temos 
papéis e hoje temos não só deveres como direitos – ou pretendemos ter. O fato é que, 
aquele que faz parte de uma vida comum é um cidadão e, por conseguinte, o cidadão 
pode variar de acordo com a civilização da qual faz parte. 
Averiguando os escritos de Hannah Arendt, o cidadão basilar da sociedade 
totalitária (desde a ralé até a elite) seria o homem de massa cuja forma de atuação 
política revelou o quanto a ausência do exercício do pensar é um importante fator nos 
negócios públicos. Assim sendo, para esmiuçar a premissa de tal proposição, 
buscaremos com este estudo desvendar, à luz de Arendt, o que torna o ser humano 
incapaz de exercer sua autonomia como ser pensante e o modo como a irreflexão no 
totalitarismo tornou os homens capazes dos mais terríveis “massacres 
administrativos” da história política ocidental-europeia, o qual fez emergir uma nova 
manifestação do mal expressa na banalização da violência e na mentalidade 
burocrática de homens superficiais e sem raízes em um mundo comum e humano. 
Em 1951, Hannah Arendt (1906-1975) publicou a obra Origens do totalitarismo 
(2012). Nela, propôs-se a explanar o desenvolvimento do antissemitismo, avaliando o 
período Imperialista na Europa e depois analisando os sistemas totalitários hitlerista e 
stalinista. Nas partes que antecedem o capítulo “Totalitarismo”, a autora investiga 
acontecimentos que se cristalizaram e culminaram na ruptura histórica, promovendo 
esse evento sem precedentes. Hannah Arendt examina também a sociedade de 
massa e o poder da propaganda para disseminar mentiras e implantar a ideologia e o 
terror. Arendt percebeu, a partir de suas análises sobre os regimes totalitários, que 
eles trouxeram para a realidade do século XX uma versão inédita de mal no espaço 
político: um mal “extremo”, “absoluto" ou “radical”. 
14 
 
Pouco mais de 10 anos depois, em 1963, Arendt publicou a obra Eichmann em 
Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1999), redigida a partir do julgamento 
do oficial nazista Adolf Eichmann, principal responsável pela realização burocrática da 
solução final. Funcionário exemplar que se orgulhava em cumprir seu papel e atender 
às ordens que lhe eram passadas, após ser capturado na Argentina, em 1961, 
Eichmann foi levado para Jerusalém, sendo julgado e condenado por seus crimes. Ao 
saber do ocorrido, Hannah Arendt entra em contato com a revista New Yorker para 
fazer a cobertura do evento. Ao se deparar com a figura de Eichmann, com a forma 
como ele apresentou sua defesa, e ao analisar os documentos aos quais teve acesso 
que Arendt despertou para essa questão do mal banal e da superficialidade. A autora 
percebeu ali que o réu era julgado pelo cometimento de atos monstruosos, contudo, 
era um homem comum, sem convicções firmes e motivações más ou demoníacas. 
Esses dois escritos são exemplos de parte das grandes investigações 
realizadas por Hannah Arendt para entender o problema do mal; entender quais são 
os fatos que geram esse mal e de que forma o ser humano desenvolve uma 
mentalidade totalitária. É com base nesses e em outros textos da autora que se torna 
possível questionar sobre o mal, suas causas e consequências, sobre as 
circunstâncias históricas e de que forma isso afeta a vida política. Sendo assim, o que 
promove o mal banal? Qual é o impacto do mal banal na esfera política? 
É através desses questionamentos que, na primeira parte desta pesquisa,falaremos sobre a formação da massa, de modo a concentrar o estudo na “psicologia 
do homem de massa”. Abordaremos também sobre a propaganda e sua relevância 
para conquistar e moldar a mente do homem de massa. Em seguida, trataremos da 
burocracia gerada pelo regime totalitário e sua capacidade de alimentar a ideologia e 
o terror, de modo a manter todos dentro do padrão de obediência. Explicaremos a 
degradação do senso comum, do sentimento de desenraizamento, de não 
pertencimento e de dispensabilidade que compõem a psicologia do homem de massa, 
mostrando que o totalitarismo montou uma estrutura social na qual a direção das 
atividades coletivas ficou a cargo de um aparelho impessoal hierarquicamente 
organizado que age segundo critérios impessoais e métodos racionais. 
Já dentro dessa realidade totalitária, esclareceremos em seguida como essa 
doutrinação ideológica e esse aparelho impessoal e burocrático tornam os homens 
superficiais, fazendo emergir uma nova manifestação do mal expressa na banalidade 
e na superfluidade. Explicaremos o porquê do “mal banal” e do cidadão exemplar 
15 
 
resultarem da “ausência de pensamento crítico” ou da “irreflexão” e da incapacidade 
de julgar. Hannah Arendt coloca em questão quais seriam as razões pelas quais o mal 
se manifestou não como “radical” ou uma força demoníaca, mas a partir da 
“banalidade” no sentido de superficialidade, sem radicalidade, sem raízes, ou seja, 
sem motivos maléficos ou impulsos diabólicos que o enraizaria na “natureza humana”. 
De que forma e por quais razões o totalitarismo revelou uma nova forma de mal? De 
que modo a prática desse mal, extremo embora não radical, manifesta-se na 
superficialidade dos homens, como na adesão imediata a uma tarefa corrente e trivial, 
na cega fidelidade a um dever ordinário ou a uma obrigação burocrática e comum que 
dispensa o recuo crítico do pensamento, a profundidade da reflexão, a moralidade da 
consciência e a criticidade do exame a respeito de tudo que homem faz e sofre no 
mundo comum? Explicitaremos como a massa se tornou peça fundamental para que 
o regime obtivesse sucesso e garantisse poder; como essas pessoas atomizadas se 
renderam à burocracia totalitária praticando o mal apenas seguindo as leis do regime 
vigente sem produzir pensamento crítico sobre as ordens que lhes são dadas. 
Analisaremos como, por consequência da massificação da sociedade, surgiram 
milhares de pessoas incapazes de julgar suas próprias ações: são pessoas que 
cumprem ordens sem sequer questionar. Arendt percebeu que as massas eram 
formadas por pessoas indiferentes e neutras politicamente, pessoas que não 
costumavam tomar partido em questões sociais relevantes nem possuíam convicções 
firmes. Com isso, podemos falar sobre o burocrata que se tornou a maior referência 
de funcionário exemplar do regime e que, através do olhar atento de Hannah Arendt, 
pode ser analisado e desmitificado como o ser maligno que foi pintado por muitos. 
Veremos, na última parte do presente trabalho, o que torna o pensamento 
capaz de elaborar a profundidade. Pretendemos construir um desfecho para nosso 
estudo respondendo à questão trazida no título do próprio capítulo. Apresentaremos 
por fim o que Hannah Arendt entendeu por “mal banal”: conforme a autora alemã, o 
“mal banal” e o cidadão ideal para a sua prática (sujeito desprovido de vontade 
demoníaca) na dominação totalitária provêm da “ausência de pensamento crítico” ou 
da “irreflexão” (thoughtlessness) e da inaptidão de julgar. Dessa forma, as questões 
que nos nortearão serão: a habilidade de discernir o certo do errado tem alguma 
relação com a faculdade de pensar? Qual é a relação entre a moralidade e a faculdade 
de pensar? Qual é a relação entre a capacidade de pensar e julgar por si próprio e a 
capacidade de assumir responsabilidade ética, pessoal e política? À vista disso, nossa 
16 
 
hipótese principal é a de suscitar a importância ética e política da atividade de pensar, 
tendo em vista elucidar de que modo a presença e a ausência de pensamento 
(thoughtlessness) podem se tornar “um poderoso fator nos assuntos humanos” 
(ARENDT, 2002, p. 56) e assim, uma espécie de antídoto para o mal banal. 
 
17 
 
2 COMO TORNAR HOMENS SUPÉRFLUOS: A FORMAÇÃO DA “MENTALIDADE 
TOTALITÁRIA” E DA “MASSA BUROCRÁTICA” NO TOTALITARISMO 
 
 
2.1 A MASSA E A MENTALIDADE DE GRUPO 
 
 
Quanto mais a sociedade se distancia da 
verdade, mais ela odeia aqueles que a 
revelam. 
George Orwell 
 
O totalitarismo emergiu em um mundo não totalitário. E para entender como 
ocorreu esse fenômeno, Hannah Arendt escreve o livro Origens do totalitarismo, 
publicado em 1951. A obra foi escrita com o intuito de tentar destrinchar como 
determinados acontecimentos políticos se estabeleceram e emergiram nos sistemas 
opressores que ocorreram na Alemanha Nazista (1933-1945) e na Rússia Stalinista1 
(1927-1953). É importante ressaltar que, segundo Arendt, os tais eventos ou 
elementos históricos cristalizados não foram, de modo algum, alicerces ou 
componentes de gênese para o totalitarismo, mas esses elementos, que são 
identificados no sistema, podem ser observados anteriormente sem necessariamente 
ter causado a culminação dos regimes. Por conseguinte, a obra não trata das origens 
do totalitarismo de fato, mas de uma relação de convergências que acabaram por 
“cristalizar-se” na dominância totalitária (SOUKI, 2006). Dessa forma, Arendt percebe 
que o ocorrido naquele período trata de um episódio jamais vivenciado antes na 
história humana. 
Nádia Souki esclarece que: “na verdade o próprio título é enganoso, pois, de 
fato, o totalitarismo é um fenômeno sem precedentes, e nenhuma evolução histórica, 
perfeitamente articulada, pode dar conta plenamente de suas origens” (SOUKI, 2006, 
p. 47). Todavia, no intento de elucidar a natureza inovadora do fenômeno totalitário, 
Souki apreende que Arendt identifica um fio que interliga o totalitarismo a dois outros 
fenômenos: o antissemitismo moderno e o imperialismo recente. 
 
1 Apesar de mencionar em seu livro sobre o regime ocorrido na Rússia, Arendt não se aprofundou nele 
tanto quanto se aprofundou sobre o Regime Nazista. E não é nosso objetivo aqui fazê-lo. Por isso, ao 
citar exemplos, buscaremos frequentemente o modelo totalitário nazista. 
18 
 
O tema central que une os fios esparsos da obra é, sem dúvida, a 
história da dissolução das sociedades nacionais em agregados de 
homens supérfluos: “É necessário recolocar o anti-semitismo moderno 
no quadro mais geral do desenvolvimento de Estado-nação”2, onde a 
desintegração coincide com a investida imperialista e se encontra 
selada com o surgimento dos regimes totalitários (SOUKI, 2006, p. 
49). 
 
Dentro do processo de investigação, a filósofa-política busca compreender 
quem são os responsáveis por tornar real os ideais dos líderes totalitários. Por isso, 
nesse primeiro momento, faremos um apanhado da análise arendtiana da construção 
das massas de modo a entender como se deu a formação da mentalidade de grupo, 
bem como o processo que resultou na superfluidade do cidadão comum. E, através 
dessa compreensão, explanaremos sobre o papel da propaganda, da burocracia, da 
ideologia e do terror. Cada um desses pontos cumpriu seu papel não só na edificação 
da mentalidade do homem de massa, mas também na manutenção da doutrina de 
massificação do sujeito, garantindo assim que esse grupo não se desviasse e 
continuasse fiel aos preceitos impostos apresentados na fase inicial para a 
implementação do sistema totalitário. 
Para entender como se deu a formação da mentalidade totalitária e a conquista 
da população, precisamos, antes de tudo, conhecer o grupo de pessoas neutras 
politicamente que se tornou a mão de obra e uma das principais ferramentas para o 
sucesso dos líderes totalitaristas em seus planos de tomada de poder em suas 
respectivas nações. 
Hannah Arendt, ao esmiuçar a estruturado fenômeno totalitário, observa antes 
de tudo quem, dentro das classes sociais, deu espaço e apoio para que os propósitos 
dos grandes líderes funcionassem. A autora traça uma argumentação evidenciando 
como a formação da sociedade de massa tem sua concepção a partir da ruína do 
Estado-nação. De maneira breve, podemos definir tal conceito como uma unidade 
político-territorial que tem sua soberania embasada em três pilares: a nação, o Estado 
e o território. O Estado-nação almeja que toda a sociedade inserida em seus limites 
territoriais se integre num esforço comum para o desenvolvimento econômico, social 
e cultural pátrio. Entretanto, Arendt aponta que tais valores declinaram e foram 
subvertidos pelo ímpeto imperialista que não pretende integrar economicamente, nem 
socialmente, tão pouco culturalmente suas colônias, e sim concentra-se em dominar, 
 
2 Fala de Arendt em Souki. Cf. Arendt: Origens do totalitarismo (1990, p. 29). 
19 
 
extorquir e explorar todo o povo que se encontra abaixo do líder supremo. E, apesar 
de o Estado-nação ter em seu cerne conceitual a premissa do desenvolvimento 
coletivo, muitas vezes o cidadão comum se achava esquecido, negligenciado e até 
mesmo enganado. Porém, com os ideais de expansão imperialista, cada sujeito pôde 
nutrir a ilusão da promoção individual. Seguindo o modelo da burguesia – que possuía 
meios de conquista –, o homem carente achou que poderia buscar por si a melhoria 
que necessitava em sua vida: 
 
A vida pública assume um aspecto enganador quando aparenta 
construir a totalidade dos interesses privados, como se esses 
interesses pudessem criar uma qualidade nova pelo simples fato de 
serem somados (ARENDT, 2012, p. 216). 
 
Foi através do esfacelamento do Estado-nação que se iniciou um procedimento 
de atomização e individualização social. E, somada à ideologia imperialista no período 
após a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha, por exemplo, sofria com uma inflação 
exorbitante, o desemprego maciço e o sentimento de humilhação por terem perdido a 
guerra, além de toda exploração por parte dos vencedores. O povo estava sofrendo, 
mas o governo não lhes socorria. Isso gerou na população a apatia e o mutismo. A 
população que era esmagada pela miséria, doenças e abandono passou a desprezar 
o Estado e quem se beneficiava dele. Assim, o povo passou a odiar a máquina pública, 
os padrões morais que o Estado conservava e seus favoritos. O homem de massa é 
resultado da crise social. É o ser humano produto da inanição estatal, enraizado na 
decadência e na negligência do Estado. É o ser à margem da vida. 
Segundo Arendt, o conjunto da sociedade que é classificada como massa é 
formado por pessoas consideradas politicamente apáticas, pessoas que não 
enxergam importância em fazer uso do seu voto nas eleições, que não possuem 
vínculo partidário nem vínculos com sindicato, ou seja, pessoas neutras (ARENDT, 
2012, p. 439). A massa – antes ignorada pelo Estado – agora se vê representada no 
discurso do movimento totalitário, que reiterava o tema da população comum não ser 
devidamente e dignamente representada por aqueles que detinham o poder. No 
entanto, agora, através do grande líder, que se auto outorgava o título de “homem do 
povo”, cada indivíduo seria, enfim, adequadamente contemplado pela nova política e 
poderia retribuir à nação, contribuindo com o seu trabalho para o engrandecimento e 
a supremacia da pátria. 
20 
 
Nesse processo, para se atingir a homogeneização de toda a população, os 
regimes erradicaram as classes sociais, os grupos com interesses em comum e 
qualquer forma de associação humana e instauraram a ideia de “igualdade”, de forma 
que: se todos são iguais, a estratificação de classes não se fazia mais necessária. 
Não é à toa que o primeiro subtópico do capítulo “Totalitarismo” na já mencionada 
obra de Arendt é chamado de “Uma sociedade sem classes”. A divisão que outrora 
marcava e delimitava a posição social de um indivíduo passou a não existir mais. 
Antes, cada classe social possuía conjuntos de interesses em comum e elas 
trabalhavam juntas para tal, mas, com essa desarticulação, a situação muda e passa 
a ser cada um por si. “A apatia e a hostilidade pelos assuntos de cunho coletivo 
estavam inauguradas” (PASSOS, 2017, p. 88). A massificação, ao contrário das 
instituições de classes, significa o isolamento do indivíduo numa multidão. Um ser tão 
sozinho quanto o outro que lhe divide o espaço ombro a ombro. Não há – e é 
imperativo que não haja – interações ou conexões. A massa é um exército de “eus-
sozinhos”. Para ilustrar de forma simples e didática, Passos nos alumbra com o 
seguinte exemplo: 
 
Na feitura de uma “massa”, quando esta já está pronta, não se 
distingue mais os ingredientes que a possibilitaram vir-a-ser: ovos, 
leite, farinha, fermento transubstanciam-se e perdem sua identidade, 
sua individualidade, passando agora a chamar-se “massa” (PASSOS, 
2017, p. 86-87). 
 
Assim, podemos compreender que o indivíduo massificado, apesar de compor 
um único corpo, não buscava essa corporização pelo bem coletivo, pelo bem de seu 
povo. O homem de massa estava ilhado em um oceano de homens iguais a ele. Esse 
fenômeno é chamado de “Solidão Totalitária3”, em que a massa composta de homens 
solitários e individualistas trabalhavam para si e para o grande líder, sem mais, uma 
vez que tais massas são constituídas por pessoas que, comumente, se achavam 
insatisfeitas, revoltadas ou negligenciadas. A voz taciturna dessas pessoas foi 
considerada solo fértil para a disseminação dos ideais de massificação que visavam, 
 
3 “O que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo não totalitário é o fato de que a solidão, 
que já foi uma experiência fronteiriça, sofrida geralmente em certas condições sociais marginais como 
a velhice, passou a ser, em nosso século, a experiência diária de massas cada vez maiores. O 
impiedoso processo no qual o totalitarismo engolfa e organiza as massas parece uma fuga suicida 
dessa realidade. O ‘raciocínio frio como o gelo’ e o ‘poderoso tentáculo’ da dialética que nos ‘segura 
como um torno’ parecem ser o último apoio num mundo onde ninguém merece confiança e onde não 
se pode contar com coisa alguma” (ARENDT, 2012, p. 638, grifos da autora). 
21 
 
paradoxalmente, o crescimento da nação por meio da ascensão individual e não 
social: 
 
As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e 
falta-lhes aquela específica articulação de classes que se expressa em 
objetivos determinados, limitados e atingíveis. O termo massa só se 
aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu 
número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se 
podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja 
partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores 
(ARENDT, 2012, p. 438-439). 
 
Hannah Arendt afirma que todo o sistema totalitário jamais alcançaria tanto 
sucesso e eficácia se não fosse pela contribuição das massas (ARENDT, 2012). Foi 
o apoio das massas que estruturou e conferiu poder tanto a Hitler como a Stalin, para 
que eles pudessem agir de forma livre e legal em seus respectivos países. Não seria 
possível terem superado tantas adversidades, crises, conflitos internos e externos. O 
grande líder, em sua incrível megalomania, se auto diviniza e as massas têm como 
seguras suas palavras. As massas seguem o grande líder como um sonâmbulo 
guiado, que se move por simples instinto. Logo, se pudermos compreender a 
participação das massas no regime, o que foi fundamental, segundo Arendt, 
lograremos contemplar a face daquilo que a filósofa alemã chamou de “mentalidade 
totalitária”. Dessa forma, a seguir explanaremos a composição dos elementos que 
construíram tal mentalidade, a partir dos conceitos arendtianos. 
Uma das características da mentalidade do homem de massa é a falta de 
interesse tanto pelo outro comopor si próprio. Percebamos que não existe o menor 
resquício de articulação ou organização conjunta: a massa se mostra incapaz de 
compor um vínculo interpessoal afim de atingir qualquer objetivo. Assim sendo, os 
assuntos de cunho público não atraem sua atenção, já que tais assuntos necessitam 
de um compromisso consigo e com o próximo. A psique do ser massificado repudia o 
aprofundamento do debate para o sucesso da coisa pública, por isso, não se 
responsabiliza e facilmente dá de ombros em relação à condução que o governo adota 
em sua pátria, bem como é antipático, sendo muitas vezes hostil à representatividade 
política, aos partidos e ao parlamento. A apatia do homem de massa é tamanha que 
gradativamente sua identidade pessoal é diluída, tanto que ele mesmo se percebe 
dispensável, substituível e desimportante. Então, canaliza toda a sua vida às 
atividades impostas pelo movimento, pois elas, sim, possuem um propósito indelével. 
22 
 
Mecanizados, atomizados, individualizados e superfluidos, os homens de massa 
perdem radicalmente o apresso por si mesmos. Estão imersos na quimera de trabalhar 
“numa grande tarefa que só aparece uma vez a cada 2 mil anos” (ARENDT, 1999, p. 
121). Suas mentes foram tão alienadas que esvaziaram a necessidade de 
autopreservação – instinto natural da espécie humana –, ao ponto de se tornarem 
cínicos à própria condição, não sendo jamais tocados pela realidade, não podendo 
ser convencidos por suas próprias experiências. Sequer o medo da morte lhes tiraria 
“a inclinação apaixonada para as noções mais abstratas como guias de vida e o 
desprezo geral pelas óbvias regras do senso-comum” (ARENDT, 2004a, p. 366). 
A mentalidade totalitária absorta em uma existência desprovida de identidade 
não produzia criticidade, opiniões, perspectivas, reflexões, interesses, reivindicações 
e nenhuma espécie de revolta. E, por conseguinte, segue somente a procissão de 
padrões e as convicções gerais guiadas pelos bordões do movimento e 
compartilhadas pelos iguais. 
Hannah Arendt aponta que a mentalidade totalitária não se comove 
principalmente pelo desejo de brutalidade, violência ou rudeza, mas se caracteriza 
fundamentalmente pela solidão, pela falta de relações sociais comuns ou 
convencionais. O totalitarismo surge para essas pessoas como uma rota de fuga – 
fuga esta que lhes pode ser fatal e/ou suicida – da realidade aterradora. À vista disso, 
a massa, quase que instantaneamente, abandona a apatia e se torna fervorosamente 
apaixonada pelo movimento totalitário, perseguindo suas utopias em troca da 
oportunidade de expressar o seu ressentimento por não ter um lugar no mundo. 
 O movimento totalitário arrouba as massas por meio do apelo da 
pseudossuperioridade da ideologia totalitária, que lhes oferece o benefício da isenção 
da responsabilidade de reflexão, juízo e pensamento crítico, assim como oferta a 
violência, o ódio e o fanatismo como ferramenta de persuasão. A massa, que cultivava 
a indiferença e o desprezo pelo diálogo político, agora se entrega obcecadamente ao 
movimento enquanto este for vigente. 
Contudo, frente ao declínio do regime, o fanático totalitário não se comporta 
como os fanáticos religiosos, que levam suas paixões até às últimas consequências, 
tornando-se mártires – mesmo que durante a vigência do regime aceitassem ser 
ceifados pelo sucesso do ideal totalitário. Quando o movimento totalitário que rege a 
vida do homem de massa se extingue, a superfluidade desse homem massificado faz 
com que ele deslize mansamente em direção à próxima brilhante fantasia, afastando-
23 
 
se do movimento como apenas uma ficção frustrada. Ou, ainda, salvaguarda a 
fidelidade à utopia totalitária em segredo, esperando que ela ressurja triunfante 
novamente. 
 Gostaríamos de destacar que um dos componentes principais da mentalidade 
de massa, o qual garante a total aquiescência do regime totalitário, é a cega e 
completa crença de que o movimento tem uma verdade acima de todas, uma verdade 
genuína, divina, perfeita e inquestionável. Uma vez convencido que o projeto do 
movimento é o único caminho a ser seguido por si e pela nação, não haverá limites 
para o que o homem de massa possa fazer, incluindo tudo o que for de mais hediondo, 
para perseguir o mundo idealizado pelo movimento em nome do sucesso dele. 
 A mentalidade totalitária acredita que está completamente consciente da 
realidade e sobre a verdade que a circunda. Então, o fanatismo se concretiza num 
ideal de que o movimento é perfeito, logo, não se pode questionar, relativizar, buscar 
alternativas, melhorias ou novos desejos. Todo o ser da pessoa de massa está 
inundado pela ilusão totalitária, em razão de só o movimento pode tornar real o paraíso 
na Terra e qualquer um que se desvie desse objetivo, nem que seja um instante só, 
precisa ser eliminado. Dessa forma, se inaugura a premissa da vigilância de todos 
para com todos. Como diz Arendt: “nada foi mais fácil de destruir como a privacidade 
e a moralidade pessoal de homens que só pensavam em salvaguardar as suas vidas 
privadas” (ARENDT, 1999, p. 388). No entanto, o homem de massa não tem posse 
sequer de sua vida privada, porque, mesmo dentro de sua casa, está sendo 
observado. Até o suor de sua testa ao cumprir uma tarefa desagradável está sendo 
notado. Não há espaço para vacilação. 
 
Essa mentalidade propiciou a possibilidade de organização das 
massas através da adesão à propaganda que redimiria as massas do 
seu abandono e as prepararia para o mundo ficcional construído pela 
ideologia. A “mentira organizada” ofereceu às massas um escape do 
mundo tomado pela atomização, pela perda de status social e pelo 
desenraizamento que destruíram as relações comunitárias 
sustentadas pelo senso comum (common sense) (ALVES NETO, 
2021, p. 44). 
 
 Elucidemos que, para nós, a mentalidade do homem de massa não se enraíza 
nos ideais totalitários com base em dados racionais, evidências ou argumentação 
lógica, plausível, mas, sim, no desejo de alcançar a inerte “paz” que o movimento pode 
consubstanciar – nem que seja pela guerra e violência. A concepção de um mundo 
24 
 
ideal que surge na mente do ser massificado o permite ser um peão, que pode ser 
manejado pelo movimento apenas para que a ficção perdure. E, ainda que seja 
tamanha a adesão do ser de massa aos movimentos, quando o regime cai, como já 
comentamos, a massa deixa que sua paixão pelo movimento caia com ele, flua como 
uma manada para outra paragem, ou resguarda sua devoção sigilosamente. 
Sobre isso, Arendt (2012) destaca que, após a queda do regime nazista, a 
Alemanha aparentava não ter um nazista convicto sequer. Mas esse deslocar não 
pode ser considerado como fraqueza ou oportunismo: o totalitarismo nazista, por 
exemplo, como ideologia, foi consumado, praticado em sua completude e, como um 
animal raro que entra em extinção, é abandonado. Nem mesmo o fanatismo mais 
esdrúxulo dos adeptos pôde ser contemplado frente à destruição e derrota. Dessa 
maneira, podemos perceber que todas as atitudes de desprezo à máquina política e 
à superfluidade do homem de massa são evidentemente apolíticas, visto que 
impossibilitaram radicalmente o diálogo, a ação e as associações políticas. E, 
somadas as especificidades, bem como seu exorbitante número, as massas não 
apenas são necessárias para os movimentos totalitários, como são facilmente 
cooptadas por eles. 
 
Nunca se mentiu tanto quanto em nossos dias. Nem nunca se mentiu 
de uma maneira tão descarada, sistemática e constante. Pode-se 
objetar, talvez, que a mentira é tão velha quanto o próprio mundo, ou 
pelo menos que o homem mendax ab initio; que a mentira política 
nasceu com a própria cidade, tal como a história nos ensina 
abundantemente; enfim, sem que seja necessário remontar ao curso 
das eras, a lavagem cerebral da Primeira Guerra Mundial e a mentira 
eleitoral da época que se lhe seguiu atingiram níveis e estabeleceramrecordes muito difíceis de ultrapassar (KOYRÉ, 2019, p. 120). 
 
O principal objetivo da mentira organizada é substituir a realidade comum 
gerando a confiança ideológica no poder total do regine e na convicção de que tudo é 
possível dentro dessa nova realidade. Arendt explica: “a propaganda totalitária 
prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção, da coincidência para a 
coerência” (ARENDT, 2012, p. 486), afinal, esse grupo massificado deixa de crer na 
realidade desconfiando até do que seus olhos podem ver, devotando toda a sua fé na 
imaginação e em tudo que é gerado por ela através da propaganda, deixando ser 
seduzido por qualquer coisa de forma generalizada que soe coerente. “Os líderes 
totalitários mobilizaram as massas mediante a crença de que a realidade fatual não 
25 
 
pudesse opor nenhuma resistência e limites à coerência e à coerção da ideologia” 
(ALVES NETO, 2021, p. 44). É justamente a crença da massa na onipotência do 
regime que abre caminho para a criação de mentiras premeditadas disseminadas com 
o uso da propaganda, trazendo a capacidade de modificar o passado para que se 
perdesse a linha narrativa da história, de modo que não fosse possível mais distinguir 
verdade e mentira. “Quando a diferença entre ficção e realidade é destruída, nenhuma 
verdade factual se torna absolutamente efetiva contra a mentira organizada” (ALVES 
NETO, 2021, p. 51). 
Por esse motivo, semear a mentira organizada tem como objetivo apagar os 
fatos, fazendo com que relatos e registros sejam destruídos e/ou deslegitimados 
perante a sociedade de massa. Tendo em vista toda essa articulação através da 
propaganda para a deliberação de mentiras, explanaremos na seção a seguir como o 
homem de massa foi fisgado pelos movimentos totalitários através da propaganda, 
uma das ferramentas de persuasão mais impressionantes e eficazes até os dias de 
hoje. 
 
 
2.2 A PROPAGANDA 
 
 
A massa mantém a marca, a marca 
mantém a mídia e a mídia controla a 
massa. 
George Orwell 
 
Para Hannah Arendt, o ponto de partida do processo de dominação totalitária 
são os meios de comunicação e o uso desses meios para atingir a população, de 
forma a obter a massa de manobra que executará as ações previamente planejadas 
pelo líder. “Somente a ralé4 [mob] e a elite podem ser atraídas pelo ímpeto do 
totalitarismo; as massas têm de ser conquistadas por meio da propaganda” (ARENDT, 
2012, p. 474). 
 
4 “A ralé [mob] é fundamentalmente um grupo no qual são representados resíduos de todas as classes. 
É isso que torna tão fácil confundir a ralé [mob] com o povo, o qual também compreende todas as 
camadas sociais. Enquanto o povo, em todas as grandes revoluções, luta por um sistema realmente 
representativo, a ralé [mob] brada sempre pelo ‘homem forte’, pelo ‘grande líder’. Porque a ralé [mob] 
odeia a sociedade da qual é excluída, e odeia o Parlamento onde não é representada” (ARENDT, 2012, 
p. 159-160, grifos da autora). 
26 
 
O termo “ímpeto do totalitarismo” utilizado por Arendt apresenta o totalitarismo 
como “movimento” gerado a partir de seu impulso inicial ocorrido pouco antes da 
tomada de poder. Nesse momento inicial, as massas ainda vivem em um mundo não 
totalitário, logo, os movimentos totalitários precisam buscar meios para apresentar 
suas ideias e conquistar adeptos. É através da propaganda política e da disseminação 
de notícias conspiratórias que o totalitarismo garante a adesão das massas ao regime. 
 
Nos países totalitários, a propaganda e o terror parecem ser duas 
faces da mesma moeda. Isso, porém, só é verdadeiro em parte. 
Quando o totalitarismo detém o controle, substitui a propaganda pela 
doutrinação e emprega a violência não mais para assustar o povo (o 
que só é feito nos estágios iniciais, quando ainda existe a oposição 
política), mas para dar a realidade às suas doutrinas ideológicas e às 
suas mentiras totalitárias (ARENDT, 2012, p. 747). 
 
A propaganda totalitária é considerada por Nádia Souki como o outro lado da 
mesma moeda do terror (SOUKI, 2006), mas a autora afirma – assim como disse 
Hannah Arendt em Origens do totalitarismo (ARENDT, 2012, p. 474) – que isso 
acontece apenas a princípio, pois, assim que o apoio das massas está garantido e 
que já não existe mais uma oposição política para gerar um contraponto de ideias, a 
propaganda muda de função, deixando de ser um mecanismo para “ganhar adesão 
das massas”. Ela atinge o seu verdadeiro potencial ideológico e passa a doutrinar 
internamente no empenho por ajustar a realidade às suas próprias premissas. Sendo 
assim, a doutrinação e o terror são os reais lados da mesma moeda, em que o terror 
faz parte do processo de doutrinação. Quando o terror atinge o seu ápice, a 
propaganda deixa de ser útil e passa a não ser mais utilizada. A propaganda é uma 
ferramenta totalitária das mais importantes para o processo de dominação, possuindo 
como princípio chave a organização. Essa organização é definida por Hannah Arendt 
como “acúmulo da força sem a posse dos meios de violência” (ARENDT, 2012, p. 
496). 
 
Quanto menor o movimento, mais energia despenderá em sua 
propaganda. Quanto maior for a pressão exercida pelo mundo exterior 
sobre os regimes totalitários – pressão que não é possível ignorar 
totalmente mesmo atrás da “cortina de ferro” – mais ativa será a 
propaganda totalitária. O fato essencial é que as necessidades da 
propaganda são sempre ditadas pelo mundo exterior; por si mesmos, 
os movimentos não propagam, e sim doutrinam (ARENDT, 2012, p. 
476). 
27 
 
 
Um dos objetivos iniciais da propaganda totalitária era o processo de 
atomização da população. A propaganda servia tanto para adquirir novos adeptos ao 
regime como também para gerar um sistema de isolamento das pessoas, o que 
Hannah Arendt chama de “atomização”5. Através dessa atomização dos indivíduos, o 
regime busca isolar os homens e torná-los impotentes, sendo assim um agregado 
numeroso de pessoas isoladas com relações sociais dissolvidas; são seres alheios a 
qualquer interesse, seja comum ou próprio. É justamente aí que se encontra o solo 
fértil onde a propaganda totalitária age de maneira frutífera, reunindo de forma tão 
eficaz seus adeptos. 
A autora mostra que, em governos tirânicos, a comunicação política entre os 
homens é impedida, mas nem tudo é retirado por completo, já que a esfera privada 
permanece como um direito e local de liberdade de ação dos cidadãos. Porém, no 
terror totalitário, a esfera privada é eliminada, tornando as pessoas solitárias. “No 
sistema totalitário, o indivíduo é transformado em um ‘algo’ que compõe a sociedade. 
Ele passa a ser uma ‘peça’ da grande engrenagem montada pelo Estado e chamada 
de nação, ou povo” (SCHIO, 2012, p. 44). Essa mentalidade totalitária, que é 
característica do sistema de massa, gera o isolamento também nas relações sociais, 
de forma que ela não é aplicada apenas para a parte da população com pouco acesso 
a conhecimento e cultura: a elite intelectual também é atingida por esse isolamento. 
 
Um dos problemas da sociedade de massas hoje é que as pessoas 
perdem tanto a privacidade quanto o gosto pela vida pública. Elas 
trabalham pelo salário até o ponto da exaustão, e então consomem ou 
dormem em seu tempo livre. Não há nem introspecção, nem 
comprometimento ativo/engajamento (DISCH, 2006, p. 21). 
 
Assim como assevera Disch (2006), sob a luz dos escritos de Hannah Arendt, 
é através dessa transformação da massa em uma sociedade destituída de interação 
e de pertencimento, tanto na esfera pública quanto na privada, que ocorre a aplicação 
da burocracia nas camadas de trabalho, para que a administração, tanto do Estado 
quanto das pessoas, se mantenha controlada ao máximo. Esse fenômeno “baseia-se 
na solidão, na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais 
 
5 O termo de origem química seria para definir a fragmentação de um corpo em unidades mínimas. 
Numsentido figurativo, seria o de fragmentar a população para tornar cada cidadão isolado e sem força 
de ação conjunta. 
28 
 
e desesperadas experiências que o homem pode ter [...]” (SOUKI, 1998, p. 64). A 
característica principal do homem de massa é o desenraizamento do mundo comum, 
e a propaganda totalitária faz uso dessa particularidade oferecendo o ensejo para a 
fuga da realidade, mobilizando as massas desprovidas de um lugar ao sol ou de 
interesse comum na direção de um movimento no qual elas se sintam pertencendo a 
algo maior. 
Junto a esse método de imersão do indivíduo na bolha de uma vida atomizada, 
os nazistas passaram a apontar os judeus como um grande problema dentro da 
Alemanha. A propaganda antissemita foi a porta de entrada para a implantação do 
ódio a todos aqueles que não fossem alemães “puro sangue”. Sabendo do poder 
existente na propaganda, Hitler fez uso desse artifício para dar força aos seus planos 
de dominação. Segundo Arendt, era fato que os nazistas pautavam suas ações com 
base na afirmação de que o mundo estava sob o domínio dos judeus e fazia-se 
necessária uma maquinação para se defender da “conspiração mundial judaica” 
(ARENDT, 2012, p. 497). O que Hitler fez através da propaganda foi um marco para 
os estudos dessa área: 
 
Hoje, o mundo sabe a que ponto chegaram os resultados dessa 
mecânica gigantesca. O grande número de técnicas e processos 
introduzidos pelo nazismo em matéria de propaganda, todavia, 
subsiste mesmo fora do clima de ódio e delírio em que desabrocharam 
e nada pode impedir que, doravante, façam parte do arsenal da 
propaganda política (DOMENCAH, 2001, p. 46). 
 
Hannah Arendt mostra que a propaganda nazista foi concentrada em colocar 
em prática o que Hitler chamou de Volksgemeinschaft. Esse conceito alemão de 
“comunidade do povo” (MEDEIROS, 2019) foi amplamente difundido para conquistar 
o apoio popular de forma a modificar a organização social. O que o nacional socialismo 
desejava era que a pureza racial fosse o novo parâmetro para classificar as pessoas 
e não mais a classe social. É através de toda essa força existente na propaganda 
totalitária – e que Hitler soube utilizar de forma muito favorável à sua causa – que a 
massa consegue ser isolada do mundo real e passa a servir de força de trabalho para 
dar seguimento aos planos do Führer. “O que convence as massas não são os fatos, 
mesmo que sejam fatos inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual 
esses fatos fazem parte” (ARENDT, 2012, p. 485). As massas fogem da realidade e 
aceitam imergir na mentira totalitária porque enxergam nisso uma saída da vida que 
29 
 
eles possuem, uma vida sem privilégios e sem lugar de existência participativa na vida 
política da sociedade. Por fim, após todo o processo de convencimento da massa e 
de eliminação de pessoas que se opõem ao regime, a propaganda totalitária deixa de 
ser necessária. 
Com isso, consideramos que a propaganda traz uma promessa de redenção e 
mais: uma promessa de aliança, de comunidade. A propaganda vende o sonho da 
terra prometida naquele mesmo solo que pisam – contudo, “sob nova direção”. E essa 
oferta de escape para um mundo ficcional construído pela ideologia faz a massa 
acreditar que a nova realidade está à sua frente. Agora, o homem de massa tem um 
posto na sociedade, um lugar no mundo, um sentido na vida: a pátria. 
Mas, como já ponderamos, a programa tem lugar e utilidade no regime 
totalitário somente até determinado ponto: até as massas serem arrebatadas. Depois 
disso, a propaganda se torna dispensável e então o governo se equipara a outros 
mecanismos, como, por exemplo, a burocracia. Na seção subsequente, buscaremos 
entender como a burocracia dá continuidade à marcha de dominação iniciada pela 
propaganda. 
 
 
2.3 A BUROCRACIA 
 
 
O poder, como concebido pelo 
totalitarismo, reside exclusivamente na 
força produzida pela organização. 
Hannah Arendt 
 
Na seção anterior pudemos compreender que o homem de massa se 
caracteriza pela perda da identidade e pela diminuição da capacidade de agir e da 
capacidade de se perceber como um sujeito singular. Dessa forma, ele vaga entre os 
sentimentos de impotência, conformismo, desimportância, isolamento e irrelevância. 
Esses sentimentos tornam o homem de massa superfluido, o que o conduz à 
uniformidade, à homogeneização, à padronização. Esse homem é conquistado pela 
propaganda, que o convence através de discursos ora voltados às promessas de 
aliança e redenção, ora de ódio a um inimigo eleito. A propaganda tem o propósito de 
mobilizar, organizar, dominar e aterrorizar as massas. Mas, depois de conquistadas, 
30 
 
as massas precisam ser incorporadas ao sistema de forma disciplinar, metódica, 
repetitiva, técnica e mecânica, sem qualquer espaço para reflexão, questionamento 
ou discordância. À vista disso, o totalitarismo construiu uma estrutura social em seu 
regime em que os afazeres do coletivo ficaram “[...] a cargo de um aparelho impessoal 
hierarquicamente organizado, que deve agir segundo critérios impessoais e métodos 
racionais” (MOTTA, 2000, p. 7). 
De acordo com Motta, nas instituições que ele nomeia como totais (prisões e 
hospitais), que consistem em espaços de trabalho e moradia, as pessoas vivem em 
uma conjuntura que correlacionamos à vida totalitária: “totalmente isolada do resto da 
sociedade” (MOTTA, 2000, p. 56). Segundo o autor, as instituições totais se 
concentram em vigiar, punir, segregar, e talvez reeducar a classe dominada em nome 
da classe dominante. E, assim como no totalitarismo, os burocratas totais se despojam 
de identidade para ser uma ferramenta completamente acrítica e eficaz aos interesses 
dos superiores: 
 
No interior da instituição total o indivíduo passa por um processo de 
mortificação do eu. Esse processo consiste em um “destreinamento”, 
em uma “desculturação”. Ao entrar em uma instituição total os 
indivíduos devem esquecer os papéis que desempenhavam fora, e as 
vezes mesmo o seu nome e suas propriedades. Com frequência, essa 
perda de identidade se traduz na substituição das roupas pessoais por 
uniformes, na substituição dos nomes por números (MOTTA, 2000, p. 
57-58). 
 
Com isso, o homem torna-se uma ferramenta e a sociedade uma macro 
organização estruturada em um sistema de pirâmides. Segundo Arendt, o trabalho 
que se realizava pelo regime era todo particionado como um processo de montagem 
industrial. Cada um fazia um determinado trabalho mecanicamente, sem ter noção da 
fase anterior ou posterior de sua própria etapa. Se uma pessoa, por exemplo, 
carimbava papéis todos os dias, ela não sabia porque fazia isso, não sabia para que 
serviam aqueles papéis ou para onde iriam. Sabia quem os levava, mas se este fosse 
substituído por algum motivo, não interessava. O importante seria executar a tarefa 
independente de qualquer coisa. Assim, o homem estaria integrado e controlado por 
um labor automático e sem significação. 
 
A burocracia é constituída mediante a uniformidade e homogeneidade 
das disposições pessoais. O funcionário burocrático é um cumpridor 
de ordens e seguidor de métodos, aderindo irrefletidamente aos 
31 
 
procedimentos, fins e objetivos predeterminados, não cabe a ele 
questionar sobre quais seriam os fins da atividade burocrática 
(FREITAS, 2019, p. 89-90). 
 
A falta de questionamento na estrutura burocrática totalitária é uma das 
principais características, até porque os funcionários são militares e um soldado 
cumpre ordem sem jamais altercar. Além do mais, se esse homem que um dia estava 
a esmo na vida, agora tinha uma posição, uma farda, um emprego, logo, tudo valia 
pela segurança. Conformar-se não seria apenas atrativo, mas imperativo. Entretanto, 
caso ocorresse uma situação desagradável ou até mesmo conflitante – o que, de 
certo, poderia suceder inúmeras vezes, já que os nazistas, por exemplo, criaram as 
máquinas da morte sem dizer nadada conjuntura própria de guerra –, as 
necessidades e emoções do sujeito seriam manipuladas e/ou compensadas com uma 
promoção ou transferência de setor/ função. Eichmann, que foi considerado por 
Arendt como um perfeito exemplar de um burocrata nazista, em determinada situação, 
foi remanejado de função por encontrar azedume em uma tarefa e ficar abalado. 
Todavia, seguiu fiel e eficaz no seu trabalho, superado o mal-estar. 
 
Ela [Arendt] entendeu que ele, na qualidade de um burocrata, de um 
técnico mecanicista, separou-se de sua humanidade, de suas 
emoções, da ética social e até mesmo de suas convicções pessoais. 
Ou seja, Eichmann sofreu a substituição da dignidade humana e do 
espírito e vontade autônoma, pelo projeto visionário e pelo 
funcionamento burocrático da máquina de guerra nazista. Na visão de 
Arendt, Eichmann assumiu a identidade de um burocrata, especialista 
em sua área [...] (MACHADO, S. H.; JÚNIOR, 2015, p. 324). 
 
As pessoas que perderam o senso de comunidade, que não possuem mais 
associações ou relações interpessoais e agora estão organizadas como aparatos 
mecânicos, perdem o sentido da participação nas coisas comuns à vida, como a 
política, posto que o seu sentimento de desimportância o leva a crer que não têm 
qualquer expressividade em tomadas de decisões. Por isso, despoja-se de todo 
sentimento de responsabilidade social e pessoal. 
 
Arendt entendeu que no decurso político do Terceiro Reich, Eichmann 
(e, por indução, conclui-se que também vários outros soldados nazis) 
tivera sua consciência ética extirpada pela autoridade racional-legal da 
burocracia nazi. Ou seja, ele perdeu aos poucos a capacidade de 
inferir o certo e o errado, o justo e o injusto, segundo os parâmetros 
do pensar crítico-reflexivo. E isso o colocou na condição de sujeito 
32 
 
idiotizado, amputado da consciência de responsabilidade ética 
(MACHADO, S. H.; JÚNIOR, 2015, p. 324). 
 
Por conseguinte, vislumbramos que grande parte do sucesso da burocracia 
totalitária não se dá pela insurgência de “gênios do mal”, “demônios”, ou “monstros”, 
mas pelo individuo normal, sem grandes apetições, supérfluo, obediente e, muitas 
vezes até, dedicado. E outra expressiva parcela do sucesso pode ser atribuída, 
evidentemente, ao caráter impessoal da administração burocrática totalitária: esta, por 
não possuir rostos, se isenta de responsabilidade por suas realizações. A burocracia 
só deixa espaço para o ato, jamais para a ética. O funcionário totalitário é adestrado 
à praticidade do fazer, sendo comparado a um pequeno dente de uma engrenagem, 
tendo que minimizar e/ou esquecer sua moralidade. Em conformidade com esse 
pensamento, Costa, à luz da teoria de Arendt, atesta que “a burocracia é o domínio 
de ninguém, ou o domínio de um intrincado sistema de departamentos no qual 
nenhum homem, nem o único, nem o melhor, nem poucos, nem muitos, pode ser 
considerado responsável” (COSTA, 1991, p. 46-47). A burocracia não só vela a 
responsabilidade do pequeno burocrata, mas, principalmente, do governo diligente. O 
regime totalitário se edifica fortemente na ausência de uma constituição, de uma 
legislação de direitos comuns e inalienáveis. Com isso, a normatização da pátria se 
compõe e se realiza através de editos, decretos sem uma face: 
 
Legalmente, governar por meio de burocracia é governar por decreto, 
o que significa que a força, que no governo constitucional apenas faz 
cumprir a lei, se torna a fonte direta de toda legislação. Além disso, os 
decretos têm um aspecto de anonimato (enquanto as leis podem ser 
atribuídas a determinados homens ou assembleias) e, portanto, 
parecem emanar de algum supremo poder dominante que não precisa 
justificar-se (ARENDT, 2012, p. 340-341). 
 
Esse mesmo aspecto de impessoalidade, de algo divinal, seria muitas vezes o 
que impulsionaria o homem de massa, ao mesmo tempo apático e fanático, a aderir 
ao movimento e ao trabalho sem questionar, mesmo que frente ao horror, à guerra e 
ao extermínio de um semelhante. Só um homem completamente destituído de 
responsabilidade pessoal, criticidade e moralidade seria capaz de conduzir homens, 
mulheres e crianças para as fábricas da morte sem colapsar psicologicamente. 
Dessa forma, depreendemos que a promoção e o estabelecimento dos grupos 
de homens massificados e supérfluos criaram a auspiciosa situação para a 
33 
 
instauração da administração burocrática no regime totalitário, e isso permitiu ao 
regime se alastrar e controlar toda uma sociedade. O maquinário público burocrático 
requereu a participação de homens perfeitamente normais, sem identidade, sem 
moralidade e sem necessidade de associações interpessoais, que realizariam um 
trabalho mecanizado e particionado, isolando, organizando e atomizando o indivíduo. 
À vista disso, surge um mal extremo manejado pela burocracia, do qual ninguém é 
responsável: o mal banal, que mais à frente discutiremos. Mas, se frente ao mal o 
homem desejar escapar do sistema, então ele seria mais uma vez convencido, seja 
pela ideologia seja pelo terror, ponto esse que abordaremos a seguir. 
 
 
2.4 A IDEOLOGIA E O TERROR 
 
 
Se você quer uma imagem do futuro, 
pense em uma bota prensando um rosto 
humano: para sempre. 
George Orwell 
 
Com base em tudo o que já apresentamos até aqui, podemos dizer que uma 
das características mais latentes do totalitarismo é que sua estrutura social é 
composta, em sua maioria, de integrantes igualmente supérfluos. O ser massificado 
que foi arrebanhado pela propaganda e incorporado ao sistema pela burocracia, agora 
vivencia um estado de realidade suspensa. O homem de massa, impulsionado por 
seu próprio fanatismo, se encontra cego para os fatos de sua existência, alheio à 
autenticidade factual da vida. Não podendo mais ser atingido pela experiência ou pelo 
argumento, nem pelo medo da morte, pela tortura ou pela dor. A capacidade inerente 
ao ser humano de apetecer aos apelos dos sentidos é destruída pelo conformismo e 
pela identificação com o movimento. 
A massa, que outrora sofreu com a negligência do Estado e com a esmagadora 
realidade que a circundava, anseia por um meio social simples, sem problemas, sem 
conflitos, sem dilemas. Logo, a fantasia proposta pelo movimento satisfaz tal anseio. 
Essa fantasia que, na mente do homem de massa, é uma crença, lhe dá uma rota de 
fuga para escapar da decadência social gerada pelo status quo. Seguir esse 
34 
 
movimento e essa crença pode ser encarado como algo que lhe permite manter o 
mínimo de respeito próprio quanto a ideia de estar fazendo o melhor para si. 
Então, o movimento faz uso da ideologia para consolidar o poder nas mentes 
alienadas dos homens-massa. A lógica da ideologia desvincula o homem do senso 
comum não porque o senso comum seja questionável, mas porque a ideologia destrói 
a realidade compartilhada e toda a solidez e a confiabilidade da experiência. A 
logística da ideologia não deixa espaço para a subjetividade, sendo assim, a 
experiência é completamente deslegitimada. 
 
O que as ideologias totalitárias visam não é a transformação do mundo 
exterior ou a transmutação revolucionária da sociedade, mas a 
transformação da própria natureza humana. Para Arendt, o 
totalitarismo é, no fundo, o mundo invertido enquanto proclama a 
destruição de toda ação, enquanto é inauguração. Monopolização do 
poder, isolamento de um indivíduo totalmente abarcado e faculdade 
de julgamento, delírio lógico, vontade de transformar a natureza 
humana: eis as características da inversão de valores efetuadas pelo 
universo totalitário onde tudo é possível e nada é verdadeiro (SOUKI, 
2006, p. 65-66). 
 
Em momento de dúvida, a ideologia solidifica os refrãos disseminados pela 
propaganda – “não pense em crise, trabalhe”. O chavão substitui a autonomia do 
pensar. Se o conhecimento tampouco é necessário para além do procedimento 
técnico dentro da burocracia, fora dela, o refrão “responde”a todas as questões, 
convence; ele estabiliza, realinha, controla, apazigua o homem. A premissa é tudo; 
explica tudo (de forma universalizadora) a despeito das experiências e dos eventos – 
 a que se aplica “deus acima de tudo”. Retirando da mente qualquer realidade 
mundana, o uso da razão dentro da ideologia deve ser deduzido dessa lógica 
generalizadora, de forma que não é necessário sabedoria, conhecimento, ciência ou 
repertório de vida. Basta a “lógica do terror” para responder a todas as coisas, de 
maneira rasa, única e eficaz. 
A ideologia, em sua lógica tirânica, trabalha em conformidade com a 
propaganda e a burocracia para eliminar qualquer traço de individualidade do sujeito, 
esteja este nascendo ou morrendo. A ideologia totalitária precisa da massa, do sujeito 
massificado, exatamente idêntico a todo o restante. 
 
A propaganda é, de fato, parte importante da “guerra psicológica”; mas 
o terror o é mais. Mesmo depois de atingido o seu objetivo psicológico, 
35 
 
o regime totalitário continua a empregar o terror; o verdadeiro drama 
é que ele é aplicado contra uma população já completamente 
subjugada. [...] Em outras palavras, a propaganda é um instrumento 
do totalitarismo, possivelmente o mais importante, para enfrentar o 
mundo não totalitário; o terror, ao contrário, é a própria essência da 
sua forma de governo. Sua existência não depende do número de 
pessoas que a infligem (ARENDT, 2012, p. 476). 
 
Os indivíduos atomizados agora ocupam cargos administrativos em níveis 
diferentes de cada camada do sistema. Sendo pessoas isoladas socialmente, cada 
uma cumpre seu papel acreditando que estão garantindo benefícios e posição social. 
Os indivíduos que não conseguiram se encaixar dentro do sistema administrativo e 
que não eram considerados mão de obra produtivas para o regime, bem como as 
minorias consideradas impróprias para fazer parte da massa, eram encaminhadas 
para os campos de concentração. 
 
Os campos de concentração não são apenas destinados ao 
extermínio de pessoas e à degradação de seres humanos: servem 
também à horrível experiência que consiste em eliminar, em condições 
cientificamente controladas, a própria espontaneidade enquanto 
expressão do comportamento humano, e em transformar a 
personalidade humana em simples coisa, em alguma coisa que nem 
mesmo os animais possuem (ARENDT, 1989, p. 506). 
 
Segundo Nádia Souki, as fábricas da morte são essencialmente os laboratórios 
do totalitarismo, onde é ensaiado o plano da instauração perfeita da dominação. Os 
campos de concentração são os locais ideais em que tudo é tanto permitido quanto 
possível aos detentores do poder, aniquilando todo e qualquer direito ou liberdade – 
seja individual, seja coletiva do dominado. Este último é relegado a coisa. Uma coisa-
nada (SOUKI, 2006). Os campos de concentração são máquinas de moer gente, onde 
quem entra, seja qual for sua posição ou seu uniforme, terá sua humanidade 
esmigalhada. Portanto, o homem que pode ser enquadrado na figura do carrasco não 
se distingue maciçamente daquele que é a dita vítima, pois, obrigado pela SS a 
trabalhar nas fábricas da morte e a agir como assassino, o então algoz percebe que 
desfruta do mínimo poder de escolha: ou fecha a porta da câmara de gás ou entra 
nela. “Morta a pessoa moral, esses homens foram transformados em mortos vivos. 
Aqui nos encontramos diante de uma analogia paradoxal entre vítima e opressor. O 
Nazismo degrada suas vítimas, torna-as semelhantes a ele mesmo” (SOUKI, 2006, p. 
36 
 
56). O totalitarismo prende e conserva todos numa realidade tão aterradora, lúgubre 
e funesta, da qual é custoso acreditar em sua veracidade: 
 
Todos os relatos vindos dos campos de concentração são 
caracterizados como uma peculiar irrealidade e incredibilidade, tanto 
da parte de quem ouve como da parte do autor, que permanece 
sempre como uma vítima de dúvidas quanto à sua própria veracidade, 
como se pudesse ter confundido um pesadelo com a realidade. Essa 
atmosfera de loucura e irrealidade, criada pela aparente ausência de 
propósitos, é a verdadeira cortina de ferro que esconde dos olhos do 
mundo todas as formas de campo de concentração (SOUKI, 2006, p. 
56-57). 
 
E foi exatamente essa cortina de ferro revestida de loucura que preservou o 
mundo de se sentir compelido a investigar os horrores produzidos pelo totalitarismo. 
De uma forma diferente do mito da caverna, quem conseguiu vislumbrar a face fosca 
e horrenda do terror totalitário, mas conseguiu escapar, é desacreditado, porque, 
acima de tudo, existia a questão da inovação dos traços de crueldade. Quem poderia 
imaginar uma sociedade que investisse para a degradação do próprio povo? Pois 
bem, daí a novidade totalitária que colabora para retirar qualquer espírito de 
responsabilidade e reafirmar a dominação do líder (SOUKI, 2006). 
Com isso, concluímos que toda a barbárie ocorrida de forma tão devastadora e 
eficaz – em seu objetivo de extermínio de um povo – adquiriu sucesso graças ao 
caminho traçado pelo regime totalitário: a partir da propaganda totalitária, organizado 
através da burocracia e firmado nas mentes da massa através da ideologia e do terror, 
controlando o homem, utilizando-se de uma grande máquina impessoal composta por 
homens perfeitamente normais e supérfluos em sua ação. Hannah Arendt, em seus 
escritos sobre o totalitarismo, descreve a origem de um mal no espaço político 
executado por sujeitos totalmente comuns, carentes de lucidez e da capacidade de 
pensar, a qual discutiremos mais detidamente no próximo capítulo. 
 
 
 
37 
 
3 COMO TORNAR HOMENS SUPERFICIAIS: UMA NOVA MANIFESTAÇÃO DO 
MAL EXPRESSA NA BANALIDADE E NA AUSÊNCIA DE RAIZES 
 
 
Você está absolutamente certo: eu mudei 
de ideia e não falo mais em “mal radical” 
[...] É de fato minha opinião que o mal 
nunca é radical, que é apenas extremo, e 
que não possui nem profundidade nem 
dimensão demoníaca. 
Hannah Arendt 
 
Ao escrever Origens do totalitarismo, Hannah Arendt acreditava que existiria 
no mundo um tipo de mal que brotava do âmago da humanidade: um mal radical que 
por ser responsável por tantas obras lúgubres e nefandas, só poderia ter se originado 
em um seio diabólico, um mal dotado de uma consciente perversão. Por 
consequência, quando foi incumbida de realizar a cobertura do julgamento do 
funcionário da Alemanha Nazista, o SS-Obersturmbannführer (tenente-coronel) Adolf 
Eichmann, Arendt, assim como grande parte da população mundial da época, agitada 
pela imprensa, pensava que se depararia com uma figura demoníaca, cruel, 
impiedosa e feroz. Contudo, o choque foi maior do que se suas expectativas fossem 
atendidas: o homem que se sentava no banco dos réus para ser julgado por crimes 
que estarreceram o mundo era de uma normalidade decepcionante. Um homem tão 
comum e insosso que o termo que poderia descrevê-lo com maior exatidão seria: 
banal. Ali, portanto, estava o homem que abriria os olhos de Hannah Arendt para um 
mal inédito: o mal banal. 
De acordo com Aline Matos da Rocha (2020), Arendt, em seu relato sobre o 
julgamento de Eichmann, descreve-o como um homem pacato, obediente, comum e 
cumpridor de ordens. E, desse modo, um sujeito com um distinto dos demais que 
havia analisado anteriormente em Origens do totalitarismo, sob a luz dos 
acontecimentos do Terceiro Reich. Arendt constata que, diferente de outros nazistas 
como Himmler, Goebbels, Streicher e Göring, Eichmann era um ser despido de 
convicções ideológicas arraigadas. 
 
Não entrou para o Partido por convicção nem jamais se deixou 
convencer por ele – sempre que lhe pediam para dar suas razões, 
repetia os mesmos clichês envergonhados sobre o Tratado de 
38 
 
Versalhes e o desemprego; antes, conforme declarou no tribunal, “foi 
como ser engolido pelo Partido contra todas as expectativas e sem 
decisão prévia. Aconteceu muito depressa e repentinamente”. Ele não 
tinha tempo, e muito menosvontade de se informar adequadamente, 
jamais conheceu o programa do Partido, nunca leu Mein Kampf. 
Kaltembrunner disse para ele: por que não se filia à SS? E ele 
respondeu: por que não? Foi assim que aconteceu, e isso parecia ser 
tudo (ARENDT, 1999, p. 44-45). 
 
Visto que o acusado estava longe de representar a malignidade em pessoa e 
não ser movido pelo ódio fanático, Arendt teve que redirecionar suas reflexões para 
investigar a natureza daquele homem que não aparentava ser nem mal, nem esperto. 
Então, de fronte a superficialidade de Eichmann, indaga-se: de que forma e por quais 
razões o mal se apresentou não como “radical”, movido por motivos maléficos, 
impulsos diabólicos enraizados na “natureza humana”, mas sim, sem raízes, 
superficial, vulgar, a partir da “banalidade”? De que forma e por quais razões o 
totalitarismo revelou uma nova forma de “mal”? Como os homens normais se tornam 
tão “superficiais” a ponto de serem indiferentes às mortes que provocam? E mais, 
como pode ser o mal superficial? Qual a relação entre a superficialidade e o mal sem 
raízes? De que modo a prática desse mal, extremo embora não radical, manifesta-se 
na superfície das coisas? 
Compreendemos que tais questões foram respondidas, de certa forma, pelo 
próprio Eichmann. Franzino, comum e até mesmo simpático, Eichmann não 
combinava com a carapuça de um assassino genocida. Então, como seria possível 
que ele tivesse participado da morte de montanhas de gente? Ele estaria fingindo ser 
um homem normal? Seria dissimulado ou, quem sabe, louco? Segundo Arendt, ele 
não poderia ser considerado louco de forma alguma. Eichmann recebeu avaliação de 
vários psiquiatras que atestaram sua sanidade. Ele não tinha nenhum distúrbio ou 
dificuldade cognitiva, entendia que estava sendo acusado de 15 crimes, dos quais 
destacamos: crime contra a humanidade, crime contra os judeus e crime de participar 
de uma organização criminosa. Mas Eichmann discordava das acusações e alegava 
deliberadamente ser inocente das acusações. 
 
“Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um 
judeu, nem um não-judeu – nunca matei nenhum ser humano. Nunca 
dei uma ordem para matar fosse um judeu fosse um não-judeu: 
simplesmente não fiz isso”, ou, conforme confirmaria depois: 
“Acontece [...] que nenhuma vez eu fiz isso” – pois não deixou 
39 
 
nenhuma dúvida de que teria matado o próprio pai se houvesse 
recebido ordem nesse sentido (ARENDT, 1999, p. 33). 
 
Enquanto a acusação contra Eichmann apoiou-se na ideia de que ele teria 
conhecimento da natureza criminosa de seus atos, “a defesa aparentemente teria 
preferido que ele se declarasse inocente com base no fato de que, para o sistema 
legal nazista então existente, não fizera nada de errado [...], mas ‘atos de Estado’” 
(ARENDT, 1999, p. 32-33). Estaria Eichmann apenas encenando sua mediocridade 
para se salvar da condenação à morte? Quase ninguém presente ao julgamento 
acreditou na versão do acusado. Arendt se perguntou justamente pela razão dessa 
descrença, concluindo, com relação aos julgadores, que 
 
eram bons e cônscios dos próprios fundamentos da sua profissão, 
para admitir que uma pessoa mediana, “normal”, nem fraca de espírito, 
nem fanatizada, nem cínica, pudesse ser perfeitamente incapaz de 
distinguir o certo do errado. Eles preferiram concluir de maneiras 
ocasionais que ele era um mentiroso – e perderam de vista o maior 
desafio moral e até legal do caso (ARENDT, 1999, p. 42). 
 
A fina análise do caso elaborada por Arendt permitiu que a autora concluísse 
que o pressuposto dos julgadores era de que uma pessoa normal é capaz de ter 
consciência da natureza criminosa de seus atos e Eichmann foi considerado uma 
“pessoa normal”, visto que não era uma “exceção” no interior do regime nazista. 
Entretanto, o ponto crucial da questão é que, sob a dominação totalitária, apenas as 
“exceções” poderiam agir “normalmente”. Mas, a pressuposição dos julgadores 
expressava todo o dilema que eles não podiam eludir e nem resolver. 
O desafio é muito mais complexo do que simplesmente supor que uma pessoa 
“normal” só pode estar mentindo quando afirma não ter responsabilidade por crimes 
de que ela teria perfeita consciência. Em primeiro lugar, não estamos tratando aqui de 
uma situação “normal”, de tal modo que as pessoas de fato normais reagiriam 
excepcionalmente a tal situação – não a aceitando. Mas o totalitarismo instaurou uma 
“normalidade” inteiramente inédita, na qual a exceção moral se fazia regra, 
incorporando e cooptando indivíduos, “cidadãos cumpridores da lei”, para tarefas 
maiores, técnicas e amorais, com base em um automatismo burocrático. A verdade 
era: se manifestava em Eichmann o fato de que, sob condições totalitárias, o “mal” 
estava penetrado no cotidiano da sociedade, inteiramente generalizado e banalizado. 
Por isso, Arendt considera que a banalização do mal significa que o “mal” não se 
40 
 
coloca fora do sistema, nem este fora do “mal”, ainda que a violência do sistema não 
exima de responsabilidade os seus executores. 
Dessa maneira, Arendt evidenciou que o sistema legal estabelecido e os 
conceitos jurídicos usuais se revelaram inadequados e insuficientes para avaliar 
“massacres administrativos”, diante de um réu que se declarou inocente de todas as 
acusações e não se sentia responsável pelo fato de ter cumprido ordens de seu 
governo. Arendt buscou esclarecer que o regime totalitário nazista descobriu, sem o 
saber, que existem crimes que os homens não podiam punir nem perdoar. Eichmann 
obedecia às ordens de seus superiores sem jamais questioná-las ou refletir sobre o 
que fazia. Essa ausência de pensamento e o cumprimento de ordens foram vitais para 
o sucesso do regime, uma vez que Eichmann não condenou judeus ao extermínio 
pelo que fizeram enquanto indivíduos, mas sim por integrarem o grupo em que 
nasceram e foram reunidos pela legislação nazista que, por sua vez, determinara 
quem deveria e quem não deveria habitar o mundo. Eis a razão pela qual Arendt 
considerava essencial que Eichmann fosse levado a sério. Não apenas para 
compreender o que torna os homens superficiais e a periculosidade da irreflexão para 
o âmbito político, mas, sobretudo, tendo em vista o devido cuidado de que não haja 
um Eichmann dentro de cada um de nós. Segundo Lafer, 
 
o exercício da gratuidade do mal ativo, que leva a atos monstruosos 
cometidos por pessoas ordinárias, é, avalia Hannah Arendt, fruto de 
thoughlessness, uma incapacidade de pensar dos que os perpetram. 
Esta incapacidade corre o risco de generalizar-se e é extrema (por isso 
é perigosa), mas não profunda (por isso é banal). Tem, no entanto, o 
potencial de irradiar-se como um fungo rasteiro e nefasto, que pode 
espalhar-se pelo mundo, destruindo-o [...] (2013, p. 33). 
 
É nesse sentido que a banalidade do mal pensada por Arendt não proclama 
sobre uma suposta essência do mal, não a trata como uma questão ontológica, mas 
sim uma questão ética e política de extrema relevância e atualidade. Percebe-se que, 
para a autora, esse era um novo tipo de fenômeno em seu tempo e tinha que ser 
compreendido, pois se tratava de um criminoso acusado de conduzir milhões de 
judeus à morte, sem que suas práticas fossem movidas por crueldade ou motivos 
especiais. Eram práticas cruéis que se tornaram banais e podem ser praticadas por 
qualquer pessoa caso uma ordem seja dada – o que é muito grave, porque pode se 
41 
 
proliferar rapidamente contra qualquer grupo, inclusive na atualidade. Como assevera 
Souki: 
 
Eichmann representava o melhor exemplo de um assassino de massa 
que era, ao mesmo tempo, um perfeito homem de família. Chamar 
alguém de monstro não o torna mais culpado, da mesma forma que 
chamá-lo de besta ou demônio. [...] Afigurava-se como algo totalmente 
negativo: não se tratava de estupidez, mas de uma curiosa e bastante 
autêntica incapacidade de pensar (2006, p. 88). 
 
Certamente,

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