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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL HELOISA HELENA DA SILVA ESTIGMATIZAÇÃO SOCIAL DA LOUCURA E OS DESAFIOS DA ATUAL CONJUNTURA BRASILEIRA PARA A SAÚDE MENTAL UMA ANÁLISE SOBRE A CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DA LOUCURA E OS IMPASSES DO AVANÇO DO CONSERVADORISMO PARA A REFORMA PSIQUIÁTRICA NATA - RN 2019 HELOISA HELENA DA SILVA ESTIGMATIZAÇÃO SOCIAL DA LOUCURA E OS DESAFIOS DA ATUAL CONJUNTURA BRASILEIRA PARA A SAÚDE MENTAL UMA ANÁLISE SOBRE A CONSTRUÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DA LOUCURA E OS IMPASSES DO AVANÇO DO CONSERVADORISMO PARA A REFORMA PSIQUIÁTRICA Monografia apresentada a Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do Título de Bacharel em Serviço Social. Orientadora: Profª Drª Larisse de Oliveira Rodrigues AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente à espiritualidade sem a qual eu não teria forças para seguir em frente. A todo apoio e conforto que encontrei nos pontos cantados para firmar minha fé e focar nos meus objetivos. Há dias em que só queremos que tudo acabe mas a sabedoria divina nos ilumina e aquece com o vislumbre de que ainda há muito que se fazer tanto pessoal como profissionalmente. À minha família, que mesmo em meio a tantas tribulações e provações, permaneceu ao meu lado sem julgamentos, sem cobranças. Quando o mundo parecia desmoronar lá fora, em casa eu encontrava o descanso muitas vezes não merecido mas sempre garantido. Aqueles que sempre me incentivaram e com a sabedoria própria deles, me aconselharam e orientaram nas diversas fases que passei durante o curso. Aos meus amigos, que à sua maneira, me aqueciam o coração em meio a tanta ansiedade e nervosismo nesta reta final do curso. Que se ofereciam para ajudar a estudar e até discutiam sobre o tema comigo nos dias em que o bloqueio mental não me permitia dar continuidade à pesquisa. À equipe do Hospital Doutor João Machado, em especial, as supervisoras de campo do estágio obrigatório, as assistentes sociais Vilca e Fátima, que em muito contribuíram com seu conhecimento e experiência na área de Saúde Mental para esse processo tão complexo que é a formação profissional. E me inspiraram a seguir na luta em defesa da garantia de direitos, autonomia e liberdade dos usuários (as). Às companheiras do estágio obrigatório: Larissa (minha dupla), Bárbara e Luyza. Esse processo seria muito mais complicado se não houvessem companheiras como vocês, passamos dois períodos (um ano inteiro) compartilhando a experiência de estar em um local que historicamente marginaliza e exclui outras pessoas por suas diferenças, discutindo e refletindo acerca daquela realidade tão dura para os (as) internos (as). À minha orientadora, Profª Drª Larisse de Oliveira Rodrigues, pelo incentivo e pela paciência. Desde a supervisão acadêmica no período do Estágio Obrigatório nos incentivando a exercitar a reflexão crítica da realidade, a questionar e não apenas absorver o que nos é apresentado. À tantas pessoas que direta ou indiretamente contribuíram para que este momento se tornasse real, que sem perceber me deram forças para não desistir e abriram meus olhos para que eu enxergasse coisas que estava deixando para trás, que estava perdendo. À todos (as), muito obrigada! RESUMO O trabalho a seguir trata-se de uma pesquisa em torno da trajetória histórica da estigmatização social da loucura compreendida enquanto construção sociocultural para o debate dos desafios da atual conjuntura política e social brasileira. A proposta é analisar no âmbito sociocultural o papel da loucura e do louco na sociedade brasileira para a apreensão dos desafios atuais para a efetivação da Reforma Psiquiátrica brasileira e da Luta Antimanicomial num contexto de avanço do conservadorismo. A partir do método da revisão bibliográfica considerando as principais questões que permeiam o tema central da pesquisa e autores de referência na área de Saúde Mental, bem como das Entidades relacionadas à Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial. Com este trabalho, o objetivo é contribuir com as pautas da Reforma Psiquiátrica na desmistificação da loucura e na apreensão dos desafios impostos pelo avanço do conservadorismo e de sua agenda de retrocessos na área de saúde mental que reforça o retorno à lógica e prática manicomiais. A partir da pesquisa e da análise do que foi produzido, conclui que é necessário reconhecer a sociedade e o Estado como estigmatizantes para que possamos desconstruir velhos preconceitos e nos fortalecer frente ao avanço conservador. Palavras-chave: Estigmatização social; Loucura; Reforma Psiquiátrica; Luta Antimanicomial. ABSTRACT The following work deals with a research about the historical trajectory of the social stigmatization of madness understood as a socio-cultural construction for the debate of the challenges in the current Brazilian political and social conjuncture. The proposal is to analyze in the socio-cultural scope the role of madness and insanity in Brazilian society in order to apprehend the current challenges for the implementation of the Brazilian Psychiatric Reform and the Antimanicomial Struggle in a context of conservatism. Based on the bibliographic review method considering the main issues that permeate the central theme of the research and reference authors in the area of Mental Health, as well as the Entities related to the Psychiatric Reform and the Antimanicomial Struggle. With this work, the objective is to contribute with the guidelines of the Psychiatric Reform in the demystification of insanity and in the apprehension of the challenges posed by the advance of conservatism and its setbacks in the area of mental health that reinforce the return to the logic and practice of asylums. From the research and analysis of what has been produced, it concludes that it is necessary to recognize society and the State as stigmatizers so that we can deconstruct old prejudices and strengthen ourselves against the conservative advance. Keywords: Social stigmatization; Madness; Psychiatric Reform; Antimanicomial Struggle. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS HJM Hospital Doutor João Machado Colônia Hospital Colônia de Barbacena CAPS Centro de Atenção Psicossocial OMS Organização Mundial da Saúde SUS Sistema Único de Saúde MTSM Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental SRT Serviços Residenciais Terapêuticos NAPS Núcleo de Atenção Psicossocial RAPS Rede de Atenção Psicossocial PLURAL Associação Potiguar Plural ABRASME Associação Brasileira de Saúde Mental ABRASCO Associação Brasileira de Saúde Coletiva ABP Associação Brasileira de Psiquiatria CFM Conselho Federal de Medicina CIT Comissão Intergestores Tripartite CTs Comunidades Terapêuticas CFESS Conselho Federal do Serviço Social CRESS Conselho Regional do Serviço Social COFI Comissão de Orientação e Fiscalização Profissional UA Unidades de Acolhimento ECT Eletroconvulsoterapia Fiocruz Fundação Oswaldo Cruz CFP Conselho Federal de Psicologia CNS Conselho Nacional de Saúde PEC Proposta de Emenda à Constituição SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO...........................................................................................................9 2. PROCESSO DE CONSTRUÇÃOHISTÓRICA E CULTURAL DO ESTIGMA SOCIAL DA LOUCURA..............................................................................................12 2.2 OS HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA .....................................................................................................................................22 2.3 BARBACENA, A CAPITAL BRASILEIRA DA LOUCURA....................................23 3. REFORMA PSIQUIÁTRICA E LUTA ANTIMANICOMIAL NA DEFESA DOS DIREITOS DAS PESSOAS EM SOFRIMENTO PSÍQUICO......................................28 3.2 OS DESAFIOS DA ATUAL CONJUNTURA POLÍTICA BRASILEIRA PARA A DEFESA DOS DIREITOS DOS DITOS LOUCOS......................................................38 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................49 REFERÊNCIAS...........................................................................................................52 9 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho trata-se de uma pesquisa acerca da estigmatização social da loucura a partir de sua trajetória sócio-histórica compreendendo esse estigma social enquanto construção cultural, que permanece até os dias atuais e se apresenta como um dos desafios aos princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira e da Luta Antimanicomial. A Reforma Psiquiátrica Brasileira avançou em muitos aspectos em relação à assistência, atenção e direitos dos sujeitos em sofrimento psíquico, no entanto nota-se ainda na sociedade, no aspecto cultural, a manutenção do preconceito e do estigma característico desses sujeitos enquanto pessoas incapazes e perigosas. É perceptível a fragilidade do debate em torno do assunto (a realidade dos sujeitos em sofrimento psíquico) fora do ambiente acadêmico ou dos serviços na área de saúde mental. Muito do que pensamos conhecer acerca do sofrimento psíquico vem do senso comum, do que temos acesso através de livros, filmes, séries. A mídia tem forte influência no imaginário popular e na manutenção de estereótipos, preconceitos, do estigma social dessa população. A trajetória dessa população na história do Brasil é marcada pelo descaso e pela violência, se outrora foram ignorados e simplesmente deixados à própria sorte, a perspectiva higienista transforma esse cenário e a vida dos ditos loucos livres nas ruas do nosso país. Compreender a construção histórica do estigma social é reconhecer que, culturalmente, desumanizamos a pessoa em sofrimento psíquico e a excluímos da sociedade, de seus direitos e deveres. E por essa razão, o debate cultural consiste em pauta da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. Principalmente no atual contexto sociopolítico brasileiro de avanço do conservadorismo que reflete nos retrocessos nas políticas sociais e, em particular para esse trabalho, no fortalecimento da lógica manicomial, do tratamento excludente e desumano. Neste sentido, a pesquisa realizada para a elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Serviço Social, além de ser requisito para a obtenção do Título de Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em 2019, também tem como objetivo analisar a construção sociocultural do estigma da loucura a partir da sua trajetória histórica para 10 compreender os retrocessos na política de saúde mental. Nesse percurso, apreender o significado da estigmatização social e como se configura como um instrumento de poder e controle, o conceito de loucura para desconstrução de preconceitos e do papel da institucionalização da loucura na desumanização dos ditos loucos para justificar sua exclusão do convívio social. Em virtude da experiência do estágio supervisionado no Hospital Doutor João Machado (HJM) estimulou a afinidade com a área de Saúde Mental enquanto espaço sócio ocupacional e de compromisso do Serviço Social em defesa dos (as) usuários (as) desse serviço enquanto pessoas com direitos. Considerando o hospital espaço de usuários (as) historicamente marginalizados (as) e estigmatizados (as) pela sociedade e pelo próprio serviço que isola e exclui o (a) usuário (a) do convívio social. Diante disso, a pesquisa está também para contribuir com a desconstrução sociocultural do estigma da loucura, pauta da Luta Antimanicomial e princípio presente na Reforma Psiquiátrica visando a ressocialização das pessoas em sofrimento psíquico. Bem como reafirmar o compromisso da categoria com a defesa dos direitos dos usuários (as) da saúde mental e com o princípio de fortalecimento dos movimentos sociais e defesa intransigente dos direitos humanos presente no Código de Ética do (a) Assistente Social. A saúde mental consiste em um campo bastante amplo e rico para o Serviço Social. Para os (as) profissionais que atuam na área ou estão vinculados aos movimentos pela Reforma Psiquiátrica a questão da estigmatização da loucura se apresenta de forma mais direta, pois os sujeitos que se encontram no cerne dessa questão são usuários dos serviços de saúde mental nos quais os (as) assistentes sociais estão inseridos (as). Dessa forma, a pesquisa possui caráter qualitativo e exploratório, considerando a complexidade do tema pesquisado e da realidade dos sujeitos que o compõem. E o Serviço Social possui um lugar reconhecido nesse processo e na equipe multiprofissional inserido no contexto da saúde mental. Os valores do Projeto ético- político da profissão expressos no Código de Ética aprovado pela Resolução do CFESS nº. 273/93, com alterações introduzidas pelas resoluções CFESS nº290/94, 293/94, 333/96 e 594/11, direciona as (os) assistentes sociais para uma atuação profissional na defesa intransigente aos direitos humanos, da cidadania, ampliação 11 da democracia e empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, discriminação, opressão e voltada para a emancipação humana. Dessa forma, o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) reafirma em seus manifestos no Dia Nacional da Luta Antimanicomial (18 de Maio), que essa pauta é parte da agenda política das (os) assistentes sociais no Brasil. Articulando com os princípios ético-políticos do Serviço Social "possibilitando uma direção emancipadora tanto para o campo da saúde mental quanto para o Serviço Social" (CFESS, 2012). Configurando assim, a Reforma Psiquiátrica como um processo que se inscreve também numa dimensão ética, "pois é também uma luta contra o estigma, a exclusão, a violência, a marginalização, e neste sentido propõe a convivência social na diversidade" (CFESS, 2012). O Serviço Social defende o reconhecimento dos (as) pessoas que vivem em sofrimento psíquico como sujeitos de direitos, que podem e devem ser participantes ativos da sociedade (CFESS, 2012). Aos (as) assistentes sociais em seu trabalho profissional inseridos (as) em instituições, movimentos sociais, grupos temáticos, conselhos, compete atuar na perspectiva de legitimá-los e reconhecê-los como sujeitos de direitos para a superação das práticas sociais manicomiais que violam a autonomia e liberdade desses sujeitos (CFESS, 2012). Nesse sentido, um (a) profissional comprometido com os direitos da classe trabalhadora, articulado (a) com movimentos sociais não poderia se abster da luta em defesa dos direitos das pessoas com sofrimento psíquico, da equidade e justiça social, visto que, são grupos socialmente discriminados, bem como de se posicionar em defesa dos preceitos da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, que possuem em sua essência princípios que articulam com as dimensões ética e política da profissão. A metodologia adotada consiste em pesquisa bibliográfica a partir do método marxiano, que melhor se adequa à necessidadede analisar a realidade social do objeto desta pesquisa. A revisão bibliográfica está discriminada a partir dos elementos que contemplam o tema em questão. No primeiro capítulo, para a discussão a respeito da estigmatização social da loucura foi necessário primeiramente analisar o termo “estigmatização” e o que representa na sociedade, segundamente compreender o que é a loucura e, posteriormente, discutir sobre a institucionalização e seu papel na área da saúde mental. No segundo capítulo, são feitos alguns recortes acerca da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial 12 embasando a discussão sobre os desafios da atual conjuntura política brasileira para a defesa dos direitos das pessoas em sofrimento psíquico. Considerando esse roteiro, a revisão bibliográfica para este trabalho conta com leituras de autores como Paulo Amarante, Eduardo Mourão e Lucia Rosa contribuindo para a construção da trajetória histórica da loucura, Erving Goffman e Michel Foucault para o debate acerca da estigmatização social e a relação de poder e controle. Documentos produzidos pelas entidades ligadas à Luta Antimanicomial também fazem parte da revisão bibliográfica, principalmente em relação a análise dos retrocessos na política de saúde mental. O trabalho encontra-se dividido em dois capítulos. O primeiro capítulo traz o processo de construção histórica e cultural do estigma social da loucura antes e depois de sua institucionalização; o segundo capítulo apresenta a Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial para discutir os desafios da atual conjuntura política brasileira para a defesa dos direitos dos ditos loucos. 2. PROCESSO DE CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E CULTURAL DO ESTIGMA SOCIAL DA LOUCURA. É a cultura que faz pessoas demandarem manicômio, exclusão, limitação. Paulo Amarante Uma pequena frase que carrega o peso de um pensamento popular construído ao longo dos anos e que reflete o preconceito, a violação dos direitos humanos e o estigma em torno da loucura e dos ditos loucos perpetuados na sociedade como tabu, “lugar de louco é no hospício”, representa o peso do debate cultural que deve ser promovido para que esses sujeitos sejam vistos além de sua “condição”, para que o atendimento humanizado seja garantido e o medo do desconhecido seja superado, conscientizando-se do sujeito por trás do estigma. Por essa razão, a Reforma Psiquiátrica, em meio as propostas para além da mudança na assistência e tratamento dos sujeitos em sofrimento psíquico, visa também a desmistificação da loucura na sociedade. 13 Neste trabalho, optei pelos termos “louco” e “loucura” por ser uma pauta da Luta Antimanicomial na desconstrução do sentido pejorativo desses termos. Afinal, o que é ser “louco”? O que é “loucura”? No nosso cotidiano não é raro ouvir uma vez ou outra “fulano ficou louco ou doido”, “isso é loucura”, “está pensando que sou doido, é?”. Na ciência, loucura é “doença”, “transtorno”, “sofrimento”. Na arte, loucura é liberdade, confusão, mistério da mente humana. E para a sociedade o louco é esse ser incompreendido, fora dos padrões, irracional, por vezes incapaz, violento, um risco para si e para outros e que desperta medo ou pena por sua condição, como se a loucura não pudesse ser reflexo da própria sociedade. No entanto, familiares, profissionais e os ditos loucos, hoje lutam para que esses mesmos loucos tenham seus direitos garantidos, que sejam reconhecidos como os sujeitos de direitos que são, que recebam tratamento digno e humanizado, nos serviços utilizados e nas ruas. Na experiência do estágio obrigatório no Hospital Doutor João Machado (HJM), um ensinamento muito importante em relação ao assunto nos foi concedido, todos somos passíveis da loucura, impossível alegar com toda certeza que alguém é totalmente “são”, que não possa vir a ser um risco para si ou para outros. Como escutamos muitas vezes nessa experiência, “nenhum ser humano está livre do surto”. No processo de consolidação da Reforma Psiquiátrica Brasileira um dos principais desafios é a formação de recursos humanos, que está intimamente ligada à capacidade de superação do paradigma da tutela do louco e da loucura. Os dados apresentados no relatório do Ministério da Saúde (2005) apontam que esse processo exige cada vez mais da formação técnica e teórica dos trabalhadores. E a realidade desses trabalhadores é que, muitas vezes, encontram-se desmotivados por baixas remunerações, contratos precários, condições de trabalho precárias como falta de recursos ou um local adequado para exercer suas funções ou mesmo garantir um atendimento de qualidade aos usuários. E, para que possamos analisar esse processo de construção histórica é necessário compreender o que é a loucura e estigmatização social. Muito do que conhecemos sobre a loucura vem do senso comum, do que temos acesso através de livros, filmes, séries. A mídia tem forte influência no imaginário popular e na manutenção de preconceitos, do estigma social dessa população. Dessa mesma forma, o modo como o Estado lida com a loucura também influencia em como é compreendida pela sociedade. 14 O trajeto histórico do Renascimento até a atualidade tem o sentido da progressiva separação e exclusão da loucura do seio das experiências sociais. O conceito de loucura vem sendo historicamente construído e ainda guarda remanescentes de antigas concepções como o pareamento entre loucura e periculosidade, por exemplo. A segregação se dá mais do que fisicamente, permeia o corpo social numa espécie de barreira invisível que impede a quebra de velhos paradigmas. (FERNANDES e MOURA, 2009) Com os ditos loucos reconhecidos como uma das populações mais excluídas socialmente, ainda em Fernandes e Moura (2009), em comparação com a população fora desse perfil, essas pessoas apresentam redes sociais menores do que a média. Sendo uma das consequências da estigmatização social construída historicamente às custas da desumanização do louco. Ao longo dos anos, a definição e tratamento para o dito louco e sua loucura foram se modificando, de caso de polícia a co-responsabilidade entre Estado e família, entre doença, transtorno ou sofrimento. O processo de estigmatização da loucura está intimamente relacionado ao processo de construção da loucura enquanto doença mental, justificando sua reclusão e medicalização pelos profissionais da área. A construção da noção científica de doença mental implicaria uma série de apropriações de imagens da loucura veiculadas pelo senso comum. No entanto, as idéias e as vivências leigas da loucura expressariam, ao mesmo tempo, rejeições e assimilações de várias concepções elaboradas e difundidas pelos alienistas e psiquiatras. (ENGEL, 2001, página 12) Dentro desse processo, no qual o saber popular era o reflexo da postura do Estado em relação aos ditos loucos, houve uma fase em que [...] os loucos eram associados aos bêbados e aos animais ferozes, cuja presença nos espaços públicos podia representar ameaça não apenas à ordem e à tranqüilidade públicas, mas também à própria integridade física e moral da população urbana. O estado de embriaguez era, assim, aproximado ao estado de loucura, na medida em que ambos caracterizavam-se pela ausência de consciência nos atos praticados. Nesse sentido, o Código Criminal de 1830 reconhecia o estado de embriaguez como circunstância atenuante na prática dos crimes nele prescritos. No Código das posturas municipais, os loucos e os embriagados eram associados aos animais ferozes, representando, assim, um perigo – diretamente relacionado ao estado de irracionalidade/animalidade– que circulava, sem controle, pelas ruas da cidade. (ENGEL, 2001, página 186) 15 Observando as condutas iniciais e as comparações feitas pelo Estado e cultivadas na cultura popular, o estigma da loucura sempre esteve vinculado à ideia de irracionalidade e periculosidade. Logo, algo que não deveria permanecer nas ruas, sem controle, sem a dita ordem. E que, inicialmente, dependiam apenas de caridade, algo que ainda é bem marcante na realidade dessa população apesar dos avanços alcançados pela Reforma Psiquiátrica e pela Luta Antimanicomial, pois essa questão é de ordem estrutural e política. A construção histórica do estigma da loucura, com sua institucionalização e medicalização, gerou a chamada “indústria da loucura” e para aqueles que dela se beneficiam, a manutenção da estigmatização e dos mitos em relação ao louco e a loucura são indispensáveis. Manter a loucura sob tutela dos grandes hospitais e dos medicamentos é uma estratégia política visto que, com o avanço neoliberal, se fortalece também a lógica manicomial, que será abordada no próximo capítulo em virtude da agenda de retrocessos no campo da saúde mental. Em vista disso, é relevante analisarmos a questão do estigma social, sua concepção e sua utilidade. Goffman (1963) em sua obra Estigma - Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada define "estigma" enquanto "situação do indivíduo que está inabilitado para aceitação social plena" (GOFFMAN, 1963, pág. 5), na sociedade temos dois tipos principais de identidade: aquela criada pela sociedade (o que se espera de determinado grupo) e a identidade real, quem realmente somos, ser diferente do que a sociedade espera que sejamos gera uma marca que irá servir como um visor pelo qual seremos julgados. Assim sendo, o que a sociedade compreende por “loucura” foi se construindo historicamente e associando culturalmente loucura à periculosidade, incapacidade, uma compreensão intimamente ligada a forma de tratamento que essas pessoas receberam ao longo dos anos, desde sua compreensão enquanto fenômeno sobrenatural ao status de doença mental. Mesmo com o avanço da ciência, culturalmente a loucura já havia sido mistificada e marginalizada, despertando medo e fascínio nas pessoas através da mídia e do imaginário popular e, há que se considerar que o avanço da ciência também teve sua parcela de colaboração ao conferir ao sujeito o status de “doente mental”. Apreendendo essa discussão, a “doença mental” é a marca construída pela ciência e reforçada na sociedade para os ditos loucos, as pessoas acometidas pela loucura serão julgadas pela concepção que os “estudiosos” (aqueles que detém o 16 conhecimento médico) explanam para a sociedade e, esse julgamento geralmente sustentado pela concepção de que loucura é o oposto de razão, da doença mental incapacitante e perigosa, justificando para a sociedade sua tutelagem e exclusão social, tornando fértil o terreno para o preconceito e atitudes discriminatórias que se materializam no estigma social da loucura. Considerando que, em Foucault (1975) "a doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal" e que, "[...] cada cultura formará da doença uma imagem cujo perfil é delineado pelo conjunto das virtudes antropológicas que ela negligencia ou reprime". Em outras palavras, o valor da loucura modifica-se com a sociedade, com o avanço histórico-cultural, a exemplo: a sociedade burguesa e seu ideário, todo aquele que não se encaixa nos seus moldes, é passível da loucura. E, nessa relação, “nossa sociedade não quer reconhecer-se no doente que ela persegue ou que encerra; no instante mesmo em que ela diagnostica a doença, exclui o doente” (FOUCAULT, 1975, pág. 51). Esse raciocínio serve como base para a trajetória da loucura na sociedade, vista como algo feio, sujo, ameaçador e improdutivo. E na sociedade capitalista, todo aquele que não se adapta aos seus moldes de produzir e consumir, que não se encaixa aos seus padrões, é uma ameaça ou um peso desnecessário. Nessa perspectiva, considerando o cenário brasileiro no qual a loucura perambulava pelas ruas ou era trancafiada nos porões das Santas Casas de Misericórdia, os médicos brasileiros começariam a reivindicar para si a responsabilidade sobre a loucura, defendendo, mediante relatórios, artigos e discussões na Academia de Medicina do Rio de Janeiro, a necessidade da construção de hospícios onde os alienados mentais pudessem ser recolhidos e tratados convenientemente por especialistas. Os marcos finais da pesquisa apontam para os novos rumos tomados pela psiquiatria brasileira a partir dos anos 20 do século XX, marcados pela difusão da perspectiva preventiva da higiene mental articulada em torno dos princípios e das propostas eugênicas. (ENGEL, 2001, página 15) Nesse sentido, ao reivindicar a loucura para si, a ciência buscou reformular a loucura enquanto doença mental para que fosse possível formular e implementar novos mecanismos de controle social, como é possível compreender com a criação de instituições asilares e a possibilidade de reclusão das pessoas diagnosticadas como doentes mentais. 17 A construção da noção científica de doença mental implicaria uma série de apropriações de imagens da loucura veiculadas pelo senso comum. No entanto, as idéias e as vivências leigas da loucura expressariam, ao mesmo tempo, rejeições e assimilações de várias concepções elaboradas e difundidas pelos alienistas e psiquiatras. (ENGEL, 2001, página 12) Compreendendo que a luta para desmistificação da loucura também se dá quanto à sua conceituação, o que é 'doença mental'? É o oposto de saúde mental? É o desequilíbrio mental? Deparamo-nos agora com um outro sentido da expressão saúde mental, ou seja, com a idéia de que saúde mental seja um estado mental sadio, portanto, poderíamos concluir, um estado normal. Ou, dito de outra forma, de um estado de bem-estar mental, ou de sanidade mental, ou ainda, de não existir nenhuma forma de desordem mental. (AMARANTE, 2007, página 15) Realmente nos deparamos com um impasse. O que é normal? O que é ser normal? De perto, ninguém é normal? Mas, se isto é 'verdade', podemos concluir, como argumenta Ernesto Venturini (2005), que "de perto também ninguém é anormal"! Existia um médico que considerava que normal era alguém que não foi devidamente examinado ... Mais que um jogo de palavras, estamos de frente a um problema científico muito sério e grave. (AMARANTE, 2007) Percebendo o louco como doente mental, justificando como desordem e anormalidade, perpetuamos o estigma da periculosidade e incapacidade de conviver socialmente, justificando métodos de tratamento que ferem seus direitos e marginalizam a loucura e, consequentemente, excluem o louco como parte integrante da sociedade, retirando do sujeito sua autonomia e liberdade. No dicionário, a loucura significa: alienação mental, insensatez, imprudência; extravagância, ato descontrolado ou irrefletido. Todos relacionados a uma ideia de incapacidade, irracionalidade e periculosidade, algo que deve ser reprimido. As atitudes que nós, normais, temos com uma pessoa com um estigma, e os atos que empreendemos em relação a ela são bem conhecidos na - medida em que são as respostas que a ação social benevolente tenta suavizar e melhorar. Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida: Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social.Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original. (GOFFMAN, 1963, página 8) 18 O estigma é, de certa forma, um modo que a sociedade encontrou para lidar com as diferenças que não é capaz de suportar, para justificar a exclusão, a violência. Como podemos perceber observando a história da loucura, os ditos loucos sempre foram marginalizados, não só pelo Estado como também pela sociedade, conivente com os métodos desumanos para enfrentar a loucura. O exemplo maior é o processo de institucionalização através dos hospitais psiquiátricos que, foram bem definidos pelo cineasta Helvécio Ratton (1979), em seu documentário Em nome da razão, como instituições que cumprem um determinado papel em nossa sociedade no qual a cura não é o objetivo e nem a recuperação mas o controle, pois é através do hospício que a sociedade exclui os que não se adaptam aos seus padrões de "normal" e "adequado". Desde tempos antigos o louco e sua loucura são marginalizados e relacionados à algo ruim, mal. O estigma social dessa população gera preconceito que se materializa em vários tipos de discriminações, que são naturalizadas pela cultura da sociedade. Retomando os hospícios como a expressão total de um instrumento de exclusão e controle daqueles que não correspondem aos padrões impostos pela sociedade. Enquanto naturalizamos termos e atitudes que justificam a exclusão social desses indivíduos, o estigma social se fortalece, bem como a manutenção da lógica manicomial. A trajetória da loucura se deu, em sua maior parte, na dualidade entre o natural e o místico. Nas sociedades pré-socráticas e antigas, a loucura era atribuída a algo sobrenatural, a presença e possessão de maus espíritos na qual a cura se dava através de psicocirurgias primitivas ou trepanação. Na Grécia e Roma antigas a explicação se deu pelos filósofos e sua concepção de loucura enquanto doença natural e, já na idade média, o louco tornou-se a personificação do mal, a demonização da loucura e busca da cura por meios religiosos como o exorcismo. No Renascimento (meados do século XVI - final do século XVI), as portas se abrem para a visão médica e com o advento do Iluminismo (século XVII - XVIII) e a exaltação do poder da razão e do avanço da ciência. Com os processos provocados pela Revolução Francesa, "surge uma nova sensibilidade social, marcadamente a partir dos séculos XVII E XVIII" (ROSA, 2003, p. 41). Essa nova sensibilidade social é o Iluminismo, que em sua essência tinha a liberdade do homem. Se libertar da ignorância enaltecendo o saber e o uso da 19 razão, tratava-se aqui de tornar o homem consciente de sua realidade e responsável por suas ações. Lucia Rosa (2003) nos remete ao ideário da burguesia revolucionária expressado pela ilustração e a modernidade. O sujeito agora é o centro da sociedade. O indivíduo enquanto ser moral e racionalmente autônomo. À margem dessa sociedade se encontra o louco e a loucura, pois põem à prova a essência da sociedade burguesa da época, a razão. Rosa (2003) explica que, segundo a leitura jusnaturalista, o motivo por trás da marginalização do louco se dava pelo fato do louco não partilhar da mesma racionalidade burguesa, ele a desafiava e punha à prova seus princípios, negócios e instituições. E nessa racionalidade que serão fundadas as bases ideológicas que legitimam a exclusão e a segregação do louco pelo Estado (ROSA, 2003). Diante disso, a percepção e o tratamento que a sociedade confere ao louco e a loucura ao longo da história nos possibilita analisar o estigma enquanto construção sócio- cultural. É notável a dicotomia na sociedade burguesa, produtividade e improdutividade, riqueza e pobreza, inclusão e exclusão. Não há meios termos e a loucura, numa sociedade de produção, é improdutiva. Justificando sua marginalização e exílio, a burguesia delega à psiquiatria o problema político e econômico que o louco representa, tornando a loucura administrável, como explica Rosa (2003), tornou possível sua medicalização, questão importante a ser abordada em outra oportunidade, o marketing da loucura e indústria dos psicotrópicos. Na idade contemporânea, em particular na França, “loucura” é todo aquele que não se encontra nos padrões da sociedade: inválidos, pobres, mendigos, pessoas com doenças venéreas, libertinos, entre outros considerados escória para os quais a exclusão do convívio social era a resposta, “não podia deixar na rua um mentecapto” (Machado de Assis em O alienista, 1882). No Brasil, a loucura foi ignorada socialmente por quase 300 anos e só passou a ser objeto de intervenção por parte do Estado no início do século XIX com a chegada da família real (FONTES, 2012). O louco era resíduo da sociedade e uma ameaça a ordem pública. Uma trajetória marcada pela discriminação e descaso que até hoje, ao observar a realidade dessa população, pesa em suas vidas e daqueles a ela relacionados, como seus familiares, amigos e profissionais. A manutenção do estigma social da loucura se dá pelos vestígios de pensamentos ultrapassados que 20 ainda persistem na nossa sociedade, o temor do desconhecido, a religiosidade e o próprio descaso do Estado mistificam a loucura sem pesar as consequências na realidade dessas pessoas. Para descortinar a influência do estigma social da loucura na sociedade basta atentarmos para seu reflexo social, cultural e político. O Yahoo produziu uma reportagem com os candidatos à presidência do Brasil em outubro de 2018 e questionou sobre políticas públicas em torno da saúde mental e apenas 6 dos 13 candidatos responderam. E, desses 6 candidatos, apenas dois citaram em seu plano de governo sobre saúde mental. Essa circunstância nos remete a reflexão de Leon Garcia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, “nosso país se encontra em um cenário de ajuste fiscal no qual o governo aumenta o investimento para o tipo de serviço em saúde mental mais contestado pelo ponto de vista técnico e de direitos humanos” (GARCIA, 2018). O modo como o Estado lidava com a loucura refletiu em como a sociedade percebia os ditos loucos e construiu-se ao longo dos anos a cultura da periculosidade, da incapacidade e da falta de humanização nos tratamentos dessa população. Com isso, privados de sua liberdade e do convívio em sociedade nos antigos manicômios, “lugar de louco é no hospício” passou a ser uma expressão comumente usada e mesmo atualmente, percebemos que esse ainda é um pensamento cultural, pois não é um tema discutido em todo lar brasileiro ou constantemente exposto na mídia sem ser mistificado, romantizado. Logo, principalmente para os pobres, o comportamento agressivo e desordeiro levava a reclusão. Eram destinados para os porões das Santas Casas de Misericórdia, onde eram amarrados e viviam em péssimas condições de higiene e cuidado. Os primeiros estabelecimentos para os loucos, termo que, pelo que podemos notar na trajetória da loucura, era destinado a qualquer pessoa que não se enquadrava aos padrões da sociedade ou à expectativa do grupo familiar, afetivo ou social que integrava. A exemplo, na França eram internados (as): inválidos (as), pobres, pessoas em situação de rua, com doenças venéreas, libertinos e etc. No Brasil a realidade para os ditos loucos não era diferente como foi supracitado, reclusão e condições desumanas de internação. Compreendendo que a loucura modificou-se com a sociedade e com as noções de produtividade e improdutividade e do que é socialmente aceito ou não. 21 Em outraspalavras, a loucura foi historicamente construída sob os estigmas justificados pelo Estado e pelos saberes psi (detentores do conhecimento médico) e reforçados na sociedade (os loucos perigosos ou que não contribuíam para a sociedade). Uma trajetória marcada pela desumanização do sujeito, pelo descaso e violência, pelas condições precárias de sobrevivência. A História da Loucura se mistura com a história da nossa sociedade. O hoje chamado louco já foi o sábio, o artista, o escolhido divino, até mesmo o bobo da corte. Mas, com o passar do tempo – a Revolução Industrial e a consolidação do capitalismo – o doente mental passou a ser visto como alguém que não produzia, que não possui ou perdeu sua capacidade laboral. Não rendia lucros e incomodava a sociedade. (RIBEIRO, 2012) Como já supracitado, a loucura foi socialmente ignorada no nosso país por quase 300 anos, sendo objeto de intervenção por parte do Estado no início do século XIX com a chegada da família real, numa perspectiva higienista considerando que o louco era visto como resíduo da sociedade e uma ameaça à ordem pública. Considerando isso, como traz em seu artigo, Poz et al. (2012), na história do Brasil na organização dos cuidados ao doente mental, a criação do Hospício Pedro II no Rio de Janeiro em 1852 caracteriza-se como um marco inaugural, pois até então não existia no país uma instituição especificamente destinada para essa população. No Brasil, como aborda Ribeiro (2012), os manicômios são descendentes dos antigos leprosários, que eram grandes casas afastadas da civilização, criadas para alojar os portadores da lepra e evitar a pandemia. Outro nome para "depósito", pois ofereciam pouco ou nenhum cuidado com aqueles fadados a permanecer no local até a morte. Mesmo com o desaparecimento da Lepra, a partir do século XV, as marcas e a estrutura física dos leprosários ainda permaneciam. Aos poucos, no decorrer dos séculos, o ‘jogo de exclusão’ (como lembra-nos Foucault), será retomado. E, a partir do século seguinte, os leprosos são substituídos por pobres, presidiários, velhos, vagabundos e... os chamados ‘alienados’. Aqueles que não contribuíam e/ou ofereciam perigo à sociedade. Desumanizados, maltratados, viviam em condições muito precárias. (RIBEIRO, 2012) E o estigma antes carregado pelos antigos leprosários será repassado para os hospitais psiquiátricos e para os sujeitos forçados à sobreviver dentro de seus muros. Os hospitais psiquiátricos provocavam e, até os dias hodiernos, provocam 22 medo, aflição e tristeza para todo aquele que entra em contato com suas histórias, com suas fundações e sobreviventes. 2.2 OS HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA “Quando a instituição destrói e mata, não há solução de compromisso possível, pois seria um compromisso com a morte” Franco Basaglia Institucionalizar é adaptar o sujeito às rotinas características da instituição (horários, regras, normas) a ponto de prejudicar sua adaptação a vida fora desse local ou, em casos mais extremos, torná-lo dependente desse local de forma que sua reinserção social seja muito mais complicada, o que ocasiona os casos de reinternação após curtos períodos fora da instituição. Com a trajetória histórica da loucura, apreendemos que a institucionalização da loucura (com os hospitais psiquiátricos) se deu através da necessidade de lidar com aqueles que eram considerados "resíduos da sociedade", que eram uma ameaça à ordem pública e que por essa razão não deveriam estar às vistas dos "cidadãos de bem", dos ditos "sãos". Um processo de construção da necessidade e legitimidade de reclusão desses sujeitos em instituições totais. as primeiras instituições psiquiátricas surgiram em meio a um contexto de ameaça à ordem e à paz social, em resposta aos reclamos gerais contra o livre trânsito de doidos pelas ruas das cidades; acrescentem-se os apelos de caráter humanitário, as denúncias contra os maus tratos que sofriam os insanos. A recém-criada Sociedade de Medicina engrossa os protestos, enfatizando a necessidade dar-lhes tratamento adequado, segundo as teorias e técnicas já em prática na Europa (RESENDE, 2007, p. 38 apud FONTE, 2012). Dessa forma, a característica em comum entre essas instituições, seja Santa Casa ou hospital psiquiátrico, é a sua principal função: excluir socialmente o louco garantindo que não fique livre para ir e vir nas ruas contrariando o que a sociedade e o Estado concebem por "normalidade" e "ordem". A postura que o Estado e a ciência assumiram perante o louco e sua loucura foi um dos principais fatores que contribuíram para a conivência da sociedade diante toda a barbárie que marca a trajetória da institucionalização dessa população. 23 2.3 BARBACENA, A CAPITAL BRASILEIRA DA LOUCURA Como analisar o estigma social da loucura no Brasil e não discutir sobre o ápice da violação de direitos humanos das pessoas ditas loucas e a expressão maior da institucionalização da loucura e da exclusão social como forma de controle daquele que não se adaptava ao sistema: os hospitais colônias. Hospitais psiquiátricos construídos em locais afastados que tinham por objetivo resolver os problemas de superlotação dos hospícios e tinham como proposta a laborterapia, a terapia através do trabalho, principalmente manual. No entanto, como podemos notar na realidade da história da loucura em nosso país, a laborterapia não era aplicada enquanto tratamento terapêutico para o sofrimento psíquico mas como um meio de obter mão-de-obra barata. A criação do hospício reflete como as expressões da questão social eram percebidas no período, sendo: um assunto ilegal, subversivo e, portanto, tratado como crime ou desordem e, por isso, reprimido. Seus agentes eram detidos e reclusos em cadeias públicas, excluídos do cenário social. Embora igualmente excluídos da sociedade e privados da liberdade de ir e vir, os loucos, com a criação do hospício, recebiam tratamento distinto, sendo reclusos nos porões das Santas Casas de Misericórdia, mantidos sob vigilância de guardas e carcereiros, submetidos à camisa de força e maus tratos. A função principal do hospício nessa fase foi a de remover, excluir e sanear a cidade de um segmento que potencialmente era considerado desordeiro/perigoso (RESENDE, 1990, apud ROSA, 2003, p. 86). Ainda, como relatou Daniela Arbex (2013) em seu livro-reportagem Holocausto Brasileiro, um funcionário aposentado do Hospital Colônia admitiu que “o tratamento de choque e o uso de medicações nem sempre tinham finalidades terapêuticas, mas de contenção e intimidação” (Arbex, 2013, página 31). “A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar” (Arbex, 2013, página 21). Percebe-se que a discriminação, o preconceito e o estigma da loucura em nosso país foram respaldados pela forma como os doentes mentais eram tratados pelo sistema, por uma política higienista e institucionalista, que tornava casos de 24 polícia e criminaliza a loucura, em particular os loucos agressivos e/ou agitados, com um quadro clínico mais grave. Eram deixados à mercê ou em instituições que não os tratava como seres humanos, como também havia a possibilidade de serem alocados a entidades caritativas, muitas vezes religiosas, que se propunhavam a cuidar daqueles que sofriam com suas “perturbações mentais”(ROSA, 2003). A criação de novos hospitais não amenizou a situação desordenada dos hospitais públicos, que continuavam com excesso de pacientes internados em situações precárias e degradantes. Os três grandeshospitais do Brasil que mantinham pacientes internados: Hospital de Diamantina em Minas Gerais, no qual atualmente funciona o CAPS Renascer nos fundos do antigo hospital; Hospital Bom Retiro em Curitiba, Paraná e o Hospital Colônia de Barbacena em Minas Gerais (7PSAN, 2017), comparado a um campo de concentração nazista travestido de hospital. Daniela Arbex em seu livro-reportagem, como diz na descrição da obra "resgata do esquecimento um dos capítulos mais macabros da nossa história", essa frase se refere à barbárie e a desumanidade praticadas no maior hospício do Brasil, conhecido por Colônia. Ao fazê-lo, a autora traz à luz um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, funcionários e também da população, pois nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a omissão da sociedade. Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros da Colônia. Em sua maioria, haviam sido internadas à força. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava ou que se tornara incômoda para alguém com mais poder. (Descrição do livro-reportagem, Holocausto Brasileiro, ARBEX, 2013) O Hospital Colônia de Barbacena recebia seus pacientes através do "trem dos loucos", como ficou conhecido o trem que tinha como parada única, destino final, o Colônia. Muitos também eram enviados de ônibus ou em viatura policial (ARBEX, 2013). Desde o início do século XX, a falta de critério médico para as internações era rotina no lugar onde se padronizava tudo, inclusive os diagnósticos. Maria de Jesus, brasileira de apenas vinte e três anos, teve o Colônia como destino, em 1911, porque apresentava tristeza como sintoma. Assim como ela, a estimativa é que 70% dos atendidos não sofressem de doença mental. Apenas eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública. Por isso, o Colônia tornou–se destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive os chamados insanos. A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, 25 fortalecia o hospital e justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar. (ARBEX, 2013, página 21) E por muito tempo, o Colônia serviu ao país como depósito de seres humanos que não eram vistos ou tratados como tal, padecendo de todo tipo de moléstias dada as condições nas quais se encontravam, além de fortalecer estigmas e estereótipos da loucura que marcaram toda uma geração. Não é de modo algum exagero comparar com o Holocausto, o assassinato em massa de cerca de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, como nos apresentam no artigo disponibilizado pelo site do Museu Memorial do Holocausto nos Estados Unidos, os campos de concentração na Alemanha Nazista consistiam em campos de aprisionamento e extermínio. Distinto do que muitas pessoas possam pensar sobre o assunto, a maioria dos prisioneiros nos primeiros campos de concentração eram: alemães de ideologia comunista ou social-democrata, ciganos da etnia Romani, Testemunhas de Jeová, homossexuais, acusados de comportamento "anti-social" ou fora dos padrões sociais e, após o massacre em 1938, que ficou conhecido como "kristallnacht" ("Noite dos Cristais"), os nazistas iniciaram as prisões em massa de judeus. É histórica a semelhança desses locais (campos nazistas) com a trajetória dos hospitais psiquiátricos no Brasil e no mundo. As mortes ocorridas dentro dessas instituições não foram acidentais, fatalidades, pois acidente é algo que não se prevê e fatalidades são, em teoria, situações que não se pode evitar. As vidas perdidas dentro dos muros dessas instituições não foram acidentais, elas possuem um significado histórico e cultural que diz “louco não era considerado gente” e pessoas fora dos padrões sociais, fora do que é socialmente aceito como “normal” não merecia convívio social ou tratamento digno. A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar. Em 1930, com a superlotação da unidade, uma história de extermínio começou a ser desenhada. Trinta anos depois, existiam 5 mil pacientes em lugar projetado inicialmente para 200. A substituição de camas por capim foi, então, oficialmente sugerida, pelo chefe do Departamento de Assistência Neuropsiquiátrica de Minas Gerais, José Consenso Filho, como alternativa para o excesso de gente. A intenção era clara: economizar espaço nos pavilhões para caber mais e mais infelizes. O modelo do leito chão deu tão certo, que foi recomendado pelo Poder Público para outros hospitais mineiros em 1959. (ARBEX, 2013, página 21-22) 26 A banalização da vida ocorre numa via de mão dupla entre a sociedade e o Estado, culturalmente fomos coniventes com o que ocorria dentro dos muros dos hospícios. "Ô seu Manoel, tenha compaixão Tira nóis tudo desta prisão Estamos todos de azulão Lavando o pátio de pé no chão. Lá vem a bóia do pessoal Arroz cru e feijão sem sal E mais atrás vem o macarrão Parece cola de colar balão Depois vem a sobremesa Banana podre em cima da mesa E logo atrás vem as funcionárias Que são as putas mais ordinárias" Autoria: Sueli Aparecida Rezende, ex menina de Oliveira, internada no Hospital Colônia de Barbacena desde os 10 anos de idade, faleceu em 2011 antes de reencontrar a filha Débora, a qual deu à luz no Colônia. A música tornou-se hino do hospital e foi imortalizada na voz de sua autora no documentário de Helvécio Ratton, Em nome da razão. Arbex (2013) relata que até os dias atuais, os sobreviventes do Colônia lembram de sua letra e do significado em suas vidas, em sua história. Em meio a tanta crueldade, aqueles que sobreviveram receberam a chance de conhecerem e experimentarem o real significado de viver e não apenas sobreviver à exclusão e à barbárie e é nessa perspectiva que nos debruçamos para discutir as consequências da institucionalização e da estigmatização social que marcam a trajetória da loucura na sociedade com o advento dos hospitais psiquiátricos; compreendendo que, a mera desospitalização sem assistência não é o suficiente mas a apresentação de um ambiente acolhedor e de condições dignas como é direito de todo ser vivente. Sabemos que as marcas deixadas por uma vida inteira sobrevivendo aos muros e condições degradantes dos manicômios está muito 27 além das marcas físicas, psicológicas, uma marca tão pesada quanto, a marca social que se apresenta quase como uma barreira final para o verdadeiro convívio em sociedade dessas pessoas. Goffman (1961) define uma instituição total como um local no qual um número significativo de indivíduos em situação semelhante residem e trabalham separados da sociedade por considerável período de tempo sendo formalmente administrados. E, enquanto instituição total, é caracterizada principalmente por excluir os internos de uma relação social com o mundo externo através de proibições à saída (que refletem no esquema físico, como paredes e portas altas e fechadas, fossos, água, arame farpado) (GOFFMAN, 1961, página 16). Essas características nos remete a realidade dos hospitais psiquiátricos, construídos em locais afastados do grande centro urbano, com uma estrutura imponente e intimidadora. Ainda dissertando em torno das instituições totais, Goffman traz outras características, "todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sobúnica autoridade" e todas as atividades diárias são monitoradas por um grupo de outras pessoas e rigorosamente estabelecidas em horários e regras formais explícitas que, à princípio, são planejadas para atender aos objetivos oficiais da instituição. Podemos exemplificar aqui as atividades realizadas pela laborterapia nos Hospitais Colônias. Premissa básica em uma instituição total: "controle de muitas necessidades humanas pela organização burocrática de grupos completos de pessoas" (GOFFMAN, 1961). Nesse tipo de instituição é comum o distanciamento social entre as partes envolvidas, os internos que não possuem contato com o mundo externo e a equipe dirigente que transita nos dois mundos e tem a função de administrar a vida desse grande grupo. Considerando a experiência do estágio obrigatório em um hospital psiquiátrico, podemos observar o cotidiano de uma instituição total e dos sujeitos inseridos nela, seja como paciente ou como profissional. Por mais que a instituição não funcione como os antigos manicômios, ainda se caracteriza como uma instituição total de forma a institucionalizar os sujeitos com sua estrutura, regras e profissionais que perpetuam práticas manicomiais, como a “contenção” como forma de controlar as ações dos internos e a perda da individualidade. Mediante o exposto, considerando o atual cenário político de participação e construção no campo da saúde mental e segundo Amarante (2007), a existência do hospital psiquiátrico ainda permanece como "gaiola de ouro", pois não há cidadania, 28 liberdade e autonomia. Por mais "'maquiado" que esteja, com as diversas estratégias, dispositivos e profissionais dispostos a alterar essa realidade, o hospital psiquiátrico ainda é um marco do estigma e da desumanização da loucura. Construída há quase quarenta anos, as políticas públicas de saúde mental sofrem com os retrocessos que se fortalecem com o avanço neoliberal baseados na mercantilização da vida, na indústria da loucura. Em virtude desse debate, retomaremos algumas questões em relação a Reforma Psiquiátrica Brasileira e a Luta Antimanicomial. 3. REFORMA PSIQUIÁTRICA E LUTA ANTIMANICOMIAL NA DEFESA DOS DIREITOS DAS PESSOAS EM SOFRIMENTO PSÍQUICO Prosseguindo com o contexto da estigmatização da loucura e o processo de mudanças em relação ao louco e sua loucura com as propostas da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, são feitos saltos e recortes da história para otimizar a compreensão acerca do assunto a ser abordado. Até o presente momento analisamos a trajetória histórica do estigma da loucura, conceitos e definições para o que é a loucura, o estigma social, instituição total e seu papel de controle e reclusão da loucura. não se deveria reduzir a reforma psiquiátrica a uma reforma de serviços e nem a uma simples humanização do modelo manicomial, ideia que persiste até hoje — “ser mais humano com os coitadinhos”. Defendia que era preciso trabalhar com protagonismo, autonomia; ver esses sujeitos como sujeitos diversos, porém sujeitos. (AMARANTE, 2014) Amarante nos incita a questionar um dos desafios dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e da própria Reforma, que é a questão da tutela. Apesar de ser entregue a tecnologias menos violentas e invasivas, os sujeitos ainda encontram-se tutelados pela instituição, pois há uma dificuldade social e cultural de aceitação das diferenças, as pessoas são e devem ser diferentes. O autor reconhece sua luta na suspensão da medicação, que para essa população só é possível manter-se vivo tomando remédio, o que para Amarante é um mito criado 29 pela indústria farmacêutica, questão igualmente relevante para a luta antimanicomial mas que nesse trabalho não será abordada de forma aprofundada. A exclusividade do saber-poder do médico já havia sido contestada por Michel Foucault em sua obra Microfísica do Poder (2012). Nela o autor critica o enclausuramento da loucura sustentado pelo poder médico, nos chamando a atenção de que o papel do médico passa a ter uma relação de poder muito específica, pois em sua aplicação/atuação encontra-se a verdade sobre a doença. A institucionalização da loucura – composta por um território e por um poder para melhor conhecer/tratar – traz a ideia de que a doença mental era propriedade do manicômio/hospital psiquiátrico, e que seu guardião seria o médico (SANDER, 2010). Michel Foucault, apesar de ter escrito suas obras há mais de 50 anos, trouxe uma problemática que permanece na atualidade; a exclusividade do saber-poder do médico, que em certa medida ainda impregna nossa cultura no tocante ao tratamento daqueles considerados “loucos” por esse saber. Internamento, isolamento, normatização, diagnóstico, e a exclusividade do saber-poder do médico tornavam-se os principais alvos de críticas à psiquiatria moderna. (FIGUEIREDO et al., 2014) E esse saber-poder médico, que ainda exerce muito influencia na nossa cultura em relação à loucura e ao tratamento dos ditos loucos, caracteriza-se como uma base forte para a manutenção da lógica manicomial e, consequentemente, dos hospitais psiquiátricos (expressão maior da hegemonia do saber-poder médico). Os hospitais psiquiátricos, por sua trajetória histórica, reforçam a estigmatização social, pois expressam a cultura de exclusão e marginalização da loucura. E, mesmo com as propostas da Reforma Psiquiátrica em relação às equipes multiprofissionais, da interdisciplinaridade, para o compartilhamento de conhecimento profissional, a hegemonia do médico psiquiatra ainda é muito forte. Recordando o documento elaborado pela Coordenação Geral de Saúde Mental (2005) e apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental, a Reforma Psiquiátrica Brasileira tem suas especificidades embora seja contemporânea à Reforma Sanitária, se deu num contexto internacional de mudanças pela superação da violência asilar denunciada. No Brasil, como já explicitado anteriormente, o processo de reforma psiquiátrica teve início em 1970 em um período de mudanças políticas que sinalizavam para a redemocratização do país (SILVA et al., 2014). O modelo de assistência psiquiátrica anterior à Reforma se baseava no isolamento e exclusão do "louco" pelo Estado e posteriormente, com as internações hospitalares, o "louco" é 30 transformado em "doente mental" e a internação e medicalização são utilizados com o intuito de tratar e curar sua "doença" (ROSA, 2003). O sujeito não era assistido em sua totalidade, considerando a realidade na qual se encontrava, seja ela social, afetiva ou econômica, a proposta era “curar a doença” como um enfermo chega a um hospital. Entretanto, com o avanço da humanização no tratamento dessas pessoas e da própria psiquiatria e de outras profissões na área de saúde mental, compreende-se que a mesma se encontra inserida em um contexto social, econômico, político que devem ser considerados em seu tratamento, além da mera medicalização. Contemporâneo a Reforma Sanitária, o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira se dá através dos profissionais da saúde na luta pela superação da violência asilar, do estigma e discriminação dos pacientes com transtornos psiquiátricos, para um tratamento mais humanizado e em prol da reinserção desses sujeitos na sociedade. Aproveitando-se da crise do modelo de assistência que a época centralizava-se no hospital psiquiátrico, o documento organizado pelo Ministério da Saúde remete aos esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos destaque frente a sanção de novas leis e normas. A Reforma Psiquiátrica é processo político e social complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos governos federal, estadual e municipal,nas universidades, no mercado dos serviços de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoas com transtornos mentais e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário social e da opinião pública. Compreendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, é no cotidiano da vida das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios. (MINISTÉRIO DA SAÚDE; COORDENAÇÃO GERAL DE SAÚDE MENTAL, 2005) Sendo assim, a proposta da política no novo modelo de assistência psiquiátrica é pautada na garantia de direitos à população com transtornos mentais, promoção e acesso a serviços que ofereçam apoio no tratamento e prevenção da crise, que o sujeito possa conviver em sociedade. E, na tentativa de superar o modelo hospitalar, a criação de serviços substitutivos como uma alternativa a esse ambiente (hospitalar) que promove o isolamento, exclusão e alienação do sujeito. Como pudemos apreender, a discussão acerca da necessidade de humanização no tratamento da loucura teve início na década de 1970, momento em 31 que diversos setores da sociedade brasileira se mobilizaram em torno da democratização do país, a exemplo: a constituição do movimento dos trabalhadores em saúde mental, como já supracitado, a partir das denúncias de violência em asilos e as péssimas condições de trabalho em instituições psiquiátricas. Restrita ao modelo hospitalocêntrico e marcada pela ineficácia dos tratamentos e violação dos direitos humanos, a assistência psiquiátrica no Brasil torna-se pauta de muitos debates, discussões dos profissionais de saúde e grupos de familiares de internos. E, seguindo o histórico da Reforma, o primeiro marco é a crítica ao modelo hospitalocêntrico (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005). A experiência italiana de desinstitucionalização em psiquiatria e "sua crítica radical ao manicômio" tiveram grande influência no processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira e na própria construção de um novo modelo de atuação na saúde mental. Simões (2011) recorta o contexto da Itália em 1978, ano em que uma lei proibiu novas internações em manicômios e estabelecia a desocupação progressiva desses locais, firmando a necessidade da criação de estruturas que pudessem abarcar a demanda, possibilitando a desvinculação imediata entre a noção de periculosidade social e a doença mental. O sofrimento psíquico para a sociedade exibe uma ideia de incapacidade e improdutividade, causando vergonha em familiares e pessoas próximas com relação à condição do sujeito que sofre (VECCHIA; MARTINS, 2006). O preconceito a partir desse sofrimento ocorre não só na sociedade de forma geral, mas até dentro das próprias instituições que o recebem – manicômios/hospitais psiquiátricos –, e de hospitais gerais, principalmente. São produzidas representações sociais que “[...] impregnam a maioria de nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as comunicações que estabelecemos” (MOSCOVICI, 1961/1976 apud MOSCOVICI, 2003, p. 10). Estigmatiza-se o paciente, considerando-o um perturbado ou que perdeu o juízo – uma substância simbólica que o adjetiva negativamente. (FIGUEIREDO et al., 2014) Simões (2011) explicita que essa lei representou um marco na história da saúde mental mundialmente, tornando referência para a Organização Mundial de Saúde (OMS). Sendo, também, um dos efeitos das ações de Basaglia e do Movimento da Psiquiatria Democrática Italiana. Nós tememos o que desconhecemos e só nos indignamos com a realidade alheia quando somos afetadas por ela, expor a população dessas instituições e suas precárias condições, reinserindo-as à um 32 tratamento com convívio social sensibilizando a sociedade para que não mais seja conivente na desumanização da loucura. Aos poucos as propostas da Reforma Psiquiátrica Brasileira alcançaram os ambientes governamentais. Foram realizadas duas Conferências Nacionais de Saúde Mental em 1987 e 1992 junto a inscrição da proposta do SUS na Carta Constitucional de 1988, promovendo novas discussões e experiências em torno da loucura (AMARANTE; TORRE, 2001 apud FIGUEIREDO). Uma das pautas também defendidas pela Reforma é o trabalho interdisciplinar, "não apenas a simples presença de psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, mas sim a valorização desses profissionais" (FIGUEIREDO, 2014). Dessa forma, destituindo a exclusividade do saber-poder médico e compartilhando com outras categorias da área a responsabilidade pelo tratamento do louco e da loucura, seja com o sujeito, com a família ou com a comunidade. Nesse contexto, o Movimento da Luta Antimanicomial no Brasil surgiu a partir do I Encontro Nacional de Trabalhadores da Saúde Mental em 18 de Maio de 1987 sob o lema "por uma sociedade sem manicômios", disseminado por todos os estados do Brasil, almejando o fechamento dos manicômios e a promoção de uma cultura de tratamento, convivência e de tolerância na sociedade em relação as pessoas em sofrimento psíquico (SIMÕES, 2011). Sendo assim, O sofrimento psíquico deve ser pensado no campo da saúde coletiva, tendo em consideração os diversos contextos em que o indivíduo está inserido como a família, o trabalho, cultura, contexto histórico, entre outros. O serviço busca um cuidado/atendimento personalizado e um tratamento de intensidade máxima, gerando reflexões dos serviços e sistematização de informações e experiências (AMARANTE; TORRE, 2001 apud FIGUEREDO) O Dia Nacional da Luta Antimanicomial é comemorado em 18 de Maio e já completou 30 anos desde que se iniciou sua comemoração. De acordo com o artigo publicado pelo Ministério da Saúde (2017), a escolha do dia que simboliza a luta tem dois marcos importantes, o Encontro dos trabalhadores da saúde mental, em Bauru/ SP, e a I Conferência Nacional de Saúde Mental, em Brasília, a qual contou com a participação de 176 delegados eleitos nas pré-conferências estaduais e demais segmentos representativos da sociedade (Conferência Nacional de Saúde Mental, 1987) que debateram sobre três principais temas: 1 - Economia, Sociedade e 33 Estado; impactos sobre saúde e doença mental; 2 - Reforma Sanitária e reorganização da assistência à saúde mental; 3 - Cidadania e doença mental: direitos, deveres e legislação do doente mental. Na apresentação do relatório, o presidente da conferência, Evaldo Gomes Leite Vieira, salienta a realização dessa conferência como marco histórico na psiquiatria brasileira pois reflete a compreensão da comunidade científica da área em torno da necessidade de integrar a política nacional de saúde mental à política nacional de desenvolvimento social do Governo Federal. Além disso, permite que se reúnam as diferentes categorias profissionais ligadas à área específica, bem como partidos políticos, entidades religiosas, instituições privadas, associações de usuários, instituições de ensino e demais segmentos da sociedade para que, num esforço coletivo, viabilizem o intercâmbio de informações para a melhoria da qualidade assistencial, num processo participativo e democrático. (I CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, 1987) O lema da luta "por uma sociedade sem manicômios" contempla diferentes categorias profissionais, associações de usuários e familiares, instituições acadêmicas, representações políticas, bem como outras parcelas da sociedade que questionam o modelo hospitalocêntrico de assistência que tem como foco as internações em hospitais psiquiátricos propondo uma reorganização do modelo de atenção em saúde mental no Brasil. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental(MTSM), movimento plural formado por trabalhadores integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas, surge neste ano. É sobretudo este Movimento, através de variados campos de luta, que passa a protagonizar e a construir a partir deste período a denúncia da violência dos manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais. (COORDENAÇÃO GERAL DE SAÚDE MENTAL, 2005, página 7) Em vista disso, a importância de categorias como o Serviço Social, que compreende o louco e sua loucura como expressão da questão social, uma vez que o dito louco também é sujeito que integra a sociedade e por isso não está isento das consequências de suas mudanças, do poder capitalista e dos problemas sociais que se agravaram com esse advento. Compreender o dito louco em sua totalidade e sua estigmatização decorrente da marginalização histórica e cultural agravada pela 34 racionalidade burguesa, na concepção do sujeito racional e da competitividade no modo capitalista de produzir e consumir. Dessa forma, para garantir o suporte adequado à pessoa que apresenta transtorno mental e que se encontra em processo de desinstitucionalização foi criada uma série de serviços substitutivos que devem funcionar de forma articulada e pautada na assistência em território. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura e o Programa “De volta pra casa”, aliados as leis e portarias ministeriais, representam essa nova rede de atenção à saúde mental, que se propõe a transformar parâmetros de uma assistência psiquiátrica anteriormente voltada para a doença mental, para conferir aspecto biopsicossocial à abordagem do sofrimento psíquico. (RAMOS, 2011) Nesse sentido, O NAPS possui algumas estratégias que são fundamentais para a realização de seus objetivos. Há a estratégia de regionalização, visando a ação de transformação cultural – conhecer as necessidades; o percurso da demanda psiquiátrica –; a estratégia da abertura do debate aos cidadãos, dialogando com a comunidade por meio das associações, sindicatos e igrejas – discutindo as diferentes formas de compreender a loucura, e a exclusão. (AMARANTE; TORRE, 2001 apud FIGUEIREDO). E o CAPS, serviço que proporciona um tratamento diferente do hospital psiquiátrico, na medida em que acompanha o paciente diariamente, através de equipe interdisciplinar, buscando evitar a necessidade de que ele deixe de conviver em sociedade. Outras ações são realizadas [...] o fortalecimento de associações em prol de melhoras no atendimento ao portador de transtorno mental. (RIBEIRO, 2012) Apreendendo que, para que os princípios reformistas sejam garantidos e a reinserção dessa população ao convívio social seja efetiva, requer transformação cultural e política de uma trajetória histórica de estigmatização e exclusão baseadas na desumanização do sujeito em sofrimento psíquico, que a desinstitucionalização dessa população não se resuma a desospitalização e desassistência. Desenvolver estratégias, políticas públicas que envolvam a família e a comunidade para que essa população seja respeitada, que exerça sua autonomia e desfrute de sua liberdade, dialogar com a sociedade anos de institucionalização da loucura e a negação de direitos à essas pessoas. 35 Como já supramencionado, o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira se deu num contexto internacional pela superação da violência asilar (COORDENAÇÃO DE SAÚDE MENTAL, 2005), que por meio da proposta de reinserção no meio social e familiar, possibilita a garantia de direitos humanos ao portador de transtorno mental (AMARANTE, 1996 citado por BEZERRA e DIMENSTEIN, 2011). Nessa perspectiva, o modelo de assistência psiquiátrica brasileira sofreu influência dos princípios de desinstitucionalização europeus, que refletiram na Reforma Psiquiátrica no nosso país. Tratou-se de uma oportunidade de possibilitar uma atenção diferenciada na tentativa de romper com os estigmas e estereótipos do transtorno mental (BEZERRA e DIMENSTEIN, 2011). Mas foi somente em 6 de abril de 2001 que a Lei 10.216 instituiu a reforma no modelo assistencial em saúde mental, conhecida como lei da reforma psiquiátrica. Ela alterou as disposições sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionou o modelo de atenção à saúde mental. Se antes havia um modelo chamado hospitalocêntrico, centrado na internação dos doentes em hospitais psiquiátricos, a partir de então institui-se um modelo psicossocial (também conhecido como modelo comunitário) que privilegia o não-internamento e objetiva oferecer atendimento clínico ambulatorial e reinserir os pacientes na sociedade. (SILVA, 2012, p. 13) O projeto de lei do deputado Paulo Delgado, também conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica, além de propor a regulamentação dos direitos dessa população, propunha a extinção progressiva dos manicômios. Esse projeto de lei tramitou no Congresso por 12 anos até ser aprovado, em 2001, após algumas alterações no texto original. Constituindo-se enquanto marco legal, a Lei Paulo Delgado estabelece a responsabilidade do Estado no desenvolvimento da política de saúde mental no Brasil (Ministério da Saúde, 2017), não só através do fechamento progressivo de hospitais psiquiátricos como também com a abertura de novos serviços comunitários incentivando a participação social no acompanhamento de sua implementação. O movimento de Reforma Psiquiátrica permitiu o retorno desses sujeitos ao âmbito familiar e a sua reinserção a comunidade. Dessa forma, modificando a concepção de que o tratamento ideal deveria ser através das internações em hospitais psiquiátricos, que na verdade transforma o serviço hospitalar psiquiátrico em moradia ou asilo (SILVA; ROSA, 2014). Assim, 36 O processo de desinstitucionalização caracteriza-se por implicar novos contextos de vida para as pessoas com transtorno mental, bem como para seus familiares e “pretende mobilizar como atores os sujeitos sociais envolvidos, modificar as relações de poder entre os usuários e as instituições e produzir diversas ações de saúde mental substitutivas à internação no hospital psiquiátrico”. (OLIVEIRA; MARTIGNHAGO; MORAES, 2009, p. 39 apud SILVA; ROSA, 2014, p. 254). A desinstitucionalização da pessoa em sofrimento psíquico é um processo que, observando a realidade das instituições psiquiátricas, não inicia no momento da alta hospitalar mas desde o primeiro dia de sua internação, com as atividades que promovam autonomia e individualidade para que a pessoa não seja reconstruída aos moldes da instituição. Da alta hospitalar à reinserção ao convívio familiar e social são considerados os diversos aspectos da realidade particular do sujeito e de sua família, por essa razão a importância da articulação na rede socioassistencial. A intersetorialidade, que é uma estratégia política de articulação entre os diversos setores para superação da fragmentação das políticas públicas. O acesso as demais políticas públicas sociais representa outro processo da reinserção social, do resgate a cidadania e a garantia de direitos além do campo da saúde e saúde mental. Compreendendo que a pessoa em sofrimento psíquico também é passível das expressões da questão social que permeiam a vida na sociedade capitalista. Outra questão que permeia o assunto do presente trabalho,
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