Buscar

Aula 1 - Loucura, sociedade e reforma psiquiátrica

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 45 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 45 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 45 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

DESCRIÇÃO
A construção histórica da loucura enquanto problema social e suas diferentes representações
ao longo do tempo.
PROPÓSITO
O estudo das diferentes formas de representação da loucura, bem como dos modos de se
relacionar com ela ao longo da história, é de natureza essencial para a formação dos
profissionais da área da saúde, uma vez que, em seu exercício profissional, eles serão os
principais responsáveis por garantir o direito universal à saúde por meio de uma relação de
cuidado não excludente, baseada no respeito à diferença e à dignidade humana.
OBJETIVOS
MÓDULO 1
Reconhecer as diferentes formas de emergência da questão social da loucura na história do
ocidente
MÓDULO 2
Analisar os principais pressupostos de mudança no modelo de atenção psiquiátrica, bem como
o contexto de criação dos atuais dispositivos de atenção à saúde mental no Brasil
INTRODUÇÃO
Embora tenha sido vitoriosa em vários aspectos, com diversos avanços no campo cultural,
jurídico e da assistência, a Reforma Psiquiátrica é um processo inacabado. Isso quer dizer que
há ainda muito a construir, tanto no campo das Políticas Públicas e das estratégias de atenção
quanto no campo da pesquisa e da formação profissional.
Mas a importância do estudo da trajetória do louco, da loucura e de suas instituições ao longo
da história não se justifica apenas pelo aspecto inacabado do processo de Reforma
Psiquiátrica, pois a questão social da loucura não se restringe a aspectos meramente técnicos-
assistenciais.
Por estar diretamente envolvida com questões culturais, econômicas e sociais, a mudança das
formas de lidar com a loucura é algo que se encontra em ameaça constante, uma vez que são
muitas as forças que dela pretendem se apoderar, a fim de explorá-la economicamente e/ou
relegá-la novamente a um sistema de isolamento e exclusão.
É nesse sentido que o estudo da loucura e das formas de lidar com ela é importante, pois
estudar a loucura numa perspectiva histórica é buscar conhecer a transformação desses
olhares ao longo do tempo, para entender como chagamos a ver o que vemos hoje, e para que
não voltemos a reproduzir determinadas práticas do passado.
MÓDULO 1
 Reconhecer as diferentes formas de emergência da questão social da loucura na
história do ocidente
A LOUCURA COMO QUESTÃO SOCIAL
Estudar o tema da loucura a partir de uma perspectiva histórica requer, inicialmente, um
esforço de distinção entre a loucura e aquilo que hoje conhecemos como doença mental. A
associação entre loucura e doença, nesse caso a doença mental, constitui-se em um dado
recente de nossa história.
FOI NUMA ÉPOCA RELATIVAMENTE RECENTE QUE O
OCIDENTE CONCEDEU À LOUCURA UM STATUS DE
DOENÇA MENTAL.
(FOUCAULT, 1968, p. 75)
Mesmo antes de termos acesso aos dados históricos de todo o processo que deu origem à
associação entre loucura e doença, podemos, a partir de um esforço de imaginação, pensar
que diversas sociedades, em diferentes momentos históricos, trataram de formas distintas a
questão da loucura, associando-a a atributos ora positivos, ora negativos, a depender das
questões culturais, econômicas e políticas que estruturavam tais sociedades. Vamos conhecer
um pouco mais.
POSITIVAMENTE
NEGATIVAMENTE
A loucura já foi associada a certos dons sobrenaturais, à liberdade, à criatividade artística, à
genialidade intelectual, à pura diferença, à diferença radical, à verdade, à sabedoria do destino,
à alegria, à adivinhação, ao dom de guiar e/ou liderar determinado grupo, entre outros. A esse
respeito, basta pensarmos na ascensão de um indivíduo à posição de xamã em determinadas
culturas, na qual se requer deste uma série de manifestações alucinatórias, convulsivas e
“delirantes” capazes de explicitar e até mesmo comprovar seus dons de liderança.
Também deve-se considerar grandes pensadores como Antonin Artaud (1896- 1948) e
Friedrich Nietzsche (1844-1900), artistas consagrados como Vincent van Gogh (1853- 1890) e
Jean Michel Basquiat (1960-1988), ou mesmo matemáticos como John Forbes Nash (1928-
2015), cuja história deu origem ao premiado filme Uma mente brilhante(2001), sucesso de
crítica e bilheteria no Brasil e no mundo.
 Vincent Van Gogh, famoso artista que apresentava sintomas que apontam para transtorno
mental.
A loucura pôde ser associada a possessões demoníacas, à bruxaria, ao descontrole, à
irresponsabilidade, à agressividade, à violência, à periculosidade, à criminalidade, à preguiça, à
improdutividade, à incompetência, à desrazão, à alienação mental e, mais
contemporaneamente, à doença e aos transtornos mentais. Se levarmos ainda mais adiante
esse nosso exercício de imaginação, podemos pensar que, para cada tipo de associação ou
consideração social da loucura, haverá também maneiras específicas de se relacionar com ela.
As fogueiras da inquisição, os campos de trabalho forçado, a tortura, a prisão, as sangrias e as
purgações, o manicômio, as mutilações cerebrais, os castigos de toda sorte, bem como as
modernas contenções medicamentosas, são apenas alguns exemplos de práticas sociais
dirigidas à questão da loucura, quando associada aos aspectos negativos descritos acima.
 A contenção medicamentosa é uma prática que muitos pacientes ainda sofrem, sendo
submetidos a fortes medicamentos e altas dosagens que não só controlam seus sintomas
mentais como também inibem sua vontade, afetividade etc.
Existe uma boa quantidade de filmes e documentários que retratam as formas peculiares ou,
melhor dizendo, preconceituosas de conceber a loucura. Relacionados especificamente com o
que descrevemos acima, seria de fundamental importância que você tivesse acesso a duas
obras consideradas obrigatórias a esse respeito. São elas o já clássico filme de Laís Bodanzky,
Bicho de Sete Cabeças (2000), e o documentário de Daniela Arbex e Armando Mendz,
Holocausto Brasileiro (2016).
Bicho de Sete Cabeças possui uma importância especial sobretudo por ter servido como
disparador de diversos debates no contexto da aprovação da Lei nº 10.216 de 2001, conhecida
como a Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira. Seu conteúdo versa sobre a proteção e os
direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em
saúde mental.
Já Holocausto Brasileiro demonstra de maneira contundente até que ponto a racionalidade
cientificista moderna - representada nesse caso pela figura do saber-poder médico-psiquiátrico
- pode chegar, no sentido da exclusão e da destruição do outro.
 Capa do livro que baseia o filme Holocausto Brasileiro.
Em suma, concluímos após nosso exercício de pensamento que a loucura sempre existiu, mas
não podemos dizer o mesmo da doença mental, ou seja, da consideração da experiência da
loucura como algo relativo a uma patologia, a uma anormalidade, ou a uma questão médica.
Assim, a consideração da loucura como experiência patológica, tal como a conhecemos hoje,
diz respeito a um processo econômico, político e cultural relativamente novo, no que concerne
ao que denominamos tempo histórico, distinto do tempo de nossa própria existência enquanto
indivíduo.
O conceito de dispositivos de Foucault
Segundo Foucault (1972), esse processo só foi possível devido a mudanças que ocorreram na
sociedade ocidental e à constituição de uma série de dispositivos de captura e de
apropriação do fenômeno da loucura que datam do final do século XVII e início do XVIII.
Mas o que seria um dispositivo?
Um dispositivo, para Foucault (2014), traduz-se como um conjunto dominante e estratégico
que comporta discursos, instituições, arranjos arquitetônicos, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas
que, em um dado momento histórico, tem por função responder a determinadas questões
sociais de seu tempo. No que se refere ao momento em que a loucura passa a ser vista como
um problema social a ser tratado, um dos principais elementos deste dispositivo será a
constituição e o desenvolvimentoda medicina mental como campo de saber teórico e prático.
Esse campo responsável pela construção de toda uma maneira de ver e falar sobre a loucura
transforma-a, nesse caso, em doença mental, isto é, em uma patologia.
Arranjo arquitetônico seria aquilo que Foucault chamou de instituições disciplinares, neste
caso representado pelo manicômio, baseadas num sistema jurídico calcado na segurança
social e na reclusão. Seriam também inspiradas por enunciados científicos e medidas
administrativas que propõem uma espécie de limpeza e higiene social excludente, com
prerrogativas morais cujo horizonte é a produtividade, e por um sistema filantrópico que
justificaria esse processo como um bem que visa à salvação do outro.
São esses elementos, imbricados uns nos outros, fortalecendo-se mutuamente, que vão
produzir a grande teia que constitui aquilo que Foucault chama de dispositivo de captura da
loucura, transformada em doença mental. E isso de tal modo que, como veremos adiante, nem
mesmo as manifestações dos sintomas poderão ser atribuídas ao que seria a experiência da
loucura propriamente dita, em estado puro, mas, sim, àquilo que dela foi feito por esses
dispositivos, processo esse que, nos anos 1960, ficou conhecido/nomeado como
institucionalização da loucura.
É nesse sentido que Erving Goffman, em sua obra intitulada Manicômios, Prisões e Conventos,
vai afirmar que “o que a psiquiatria denomina ‘curso natural da doença’ é, na realidade, a
‘carreira moral do doente mental’” (AMARANTE, 2007, p. 54).
Da mesma maneira, Foucault (1968, p. 87) afirma que “o que se chama ‘doença mental’ é
apenas loucura alienada”. Ou seja, as ideias, as percepções e os sentimentos que temos
sobre a loucura e sua própria forma de apresentação se constituem já como um efeito de
práticas e discursos que a capturaram historicamente.
Em outros termos, o que conhecemos como loucura hoje diz respeito às forças que se
apoderaram dessa experiência ao longo da história, como é o caso da constituição do
saber-poder médico que, a partir do final do século XVII e início do XVIII, dela se apropria,
transformando-a em doença.
O saber-poder médico-psiquiátrico, como já dissemos, está necessariamente relacionado às
concepções políticas, sociais e econômicas de seu tempo.
Analogia com a captura histórica do conceito Infância
Para que isso possa ficar mais compreensível, podemos tomar como exemplo uma outra
experiência, como é o caso da infância.
Como demonstrou o historiador Philippe Ariès (1981), a noção de infância, bem como a criação
de instituições específicas para o cuidado infantil, é um empreendimento que tem início apenas
no fim do século XVII e início do XVIII. Essa criação é efeito dos grandes investimentos
políticos e econômicos implicados com a máxima eficiência produtiva de seus corpos,
momento em que o corpo da criança se torna espaço de disputa do poder.
O sentimento de infância, como denomina o autor, diz respeito a um processo histórico,
político e econômico que tem como consequência uma grande preocupação relativa à
formação dos pequenos, que doravante saem de seu anonimato para se constituírem como
centro de organização econômica das famílias e da vida social burguesa. Ainda segundo Ariès
(1981), é também nesse período que a criança é destacada do meio adulto e enviada às
instituições destinadas à sua “educação”, onde as relações de aprendizado mútuo entre
jovens, e destes com os adultos, dá lugar ao enclausuramento dos primeiros. É instituída uma
espécie de “quarentena”, engendrando os processos de escolarização e, ao mesmo
tempo, oferecendo visibilidade e sentido ao que denominamos contemporaneamente de
infância.
 Pintura de 1638 de menino com 18 meses.
É assim que, hoje, quando queremos saber como vai a vida de uma criança, logo perguntamos
se ela está indo à escola, se tira boas notas, se tem planos para ser algo quando crescer, que
profissão quer seguir etc. Isso quer dizer que a forma dominante de experimentar a infância
tornou-se o modo de vida aluno, eterno candidato ao sucesso ou ao fracasso no mercado de
trabalho. Assim, quando pensamos em criança, pensamos imediatamente em escolarização,
num modo de ser aluno.
A mesma coisa se passa com a experiência da loucura que, a partir da construção de
processos análogos e contemporâneos um do outro, passa a ser atribuída a aspectos
negativos, como o descontrole, a agressividade, a violência, a periculosidade, a
improdutividade, a patologia, entre outros. Em suma, o fato é que, para Michel Foucault (1926-
1984), uma de nossas principais referências na discussão que fazemos aqui, a loucura deve
ser entendida como uma construção histórica, um objeto de percepção produzido por práticas
sociais. Portanto, para esse filósofo, ela não pode ser procurada em si mesma, pois não existe
fora dos discursos que a descrevem e dominam, bem como dos mecanismos que a capturam,
isolam e excluem.
BREVE HISTÓRICO DA QUESTÃO SOCIAL
DA LOUCURA
A visão de Foucault
O estudo desses modelos de compreensão da loucura é abordado em diversas obras. Dentre
essas, grande destaque é dado à História da Loucura na Idade Clássica (1961), do pensador
francês Michael Foucault (1926-1984), que se constitui no grande marco desses estudos,
influenciando definitivamente a historiografia contemporânea sobre o tema.
Antes de mais nada, é importante perceber que Foucault estuda a história para pensar o
presente. Nesse sentido, ele quer saber quando a loucura passou a ser pensada como doença,
entendendo que isso nem sempre foi assim. Portanto, estudar a loucura numa perspectiva
histórica é buscar conhecer a transformação desses olhares ao longo do tempo, para entender
como chegamos a ver o que vemos hoje.
Ademais, quando nos damos conta de que as coisas não são naturais, mas, sim, produções
históricas, compreendemos também que podem ser modificadas, potencializando assim nossa
capacidade de agir no mundo, no presente.
Segundo Foucault, antes de ter sido “dominada” por volta do final do século XVII, a loucura
estava “ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença” (1972, p. 8).
Naquele momento, a loucura circulava livremente pelos espaços públicos e era tema recorrente
de diversas expressões artísticas, como peças de teatro, romances, entre outros.
Os loucos “conhecidos” eram tolerados, e os loucos “estranhos”, com comportamentos
desviantes e bizarros, incluindo os bêbados e os devassos, eram confinados em navios numa
espécie de exílio ritualístico. Essa representação nômade da loucura na Idade Clássica é
apresentada por Foucault na Nau dos Loucos ou dos Insanos, simbolizando a busca da razão
por meio da purificação pela água, ou também a entrega do louco a seu próprio destino, ou a
sua própria sorte.
A percepção social da loucura era, então, de uma alteridade pura, ou seja, a loucura era vista
como uma diferença radical, genuína, experiência originária. Os loucos poderiam até mesmo
ser pensados como aqueles que diziam a verdade quando todos a escondiam. A loucura era
também trágica, uma vez que se encontrava fora do alcance de interpretações que visavam ao
seu controle e submetimento a uma razão universal e abstrata, ou a um sentido interpretativo
dominante. Em outras palavras, poderia ser pensada como uma simples desrazão, sem
conotação médica.
No que diz respeito aos hospitais, nessa época, não tinham o propósito de cura ou tratamento,
mas exerciam a simples função de hospedaria, depósito de gente para onde se encaminhava
todo tipo de excluídos da ordem social, econômica e política. Instituições de caridade
abrigavam pobres, mendigos, desabrigados e doentes, porém sem nenhuma conotação
terapêutica. Como relata Foucault:
O PESSOAL HOSPITALAR NÃO ERA
FUNDAMENTALMENTE DESTINADO A REALIZAR A
CURA DO DOENTE, MAS A CONSEGUIR SUA PRÓPRIA
SALVAÇÃO. ERA UM PESSOAL CARITATIVO –
RELIGIOSO OU LEIGO – QUE ESTAVA NO HOSPITAL
PARA FAZER UMA OBRA DE CARIDADE QUE LHE
ASSEGURASSE A SALVAÇÃO ETERNA.ASSEGURAVA-SE, PORTANTO, A SALVAÇÃO DA
ALMA DO POBRE NO MOMENTO DA MORTE E A
SALVAÇÃO DO PESSOAL HOSPITALAR QUE CUIDAVA
DOS POBRES.
(FOUCAULT, 1979, p. 102)
Hoje, quando pensamos em hospital, é natural que nos venha à mente a figura do médico com
seu jaleco branco, uma vez que, além de ser o hospital um lugar privilegiado de exercício da
Medicina, a própria formação do médico não pode ser pensada sem que este passe um bom
tempo na instituição hospitalar, daí a conhecida figura moderna do médico residente. No
entanto, antes do fim do século XVII e início do XVIII, a Medicina era uma prática não
hospitalar, e o hospital, por sua vez, ainda não era medicalizado.
Influências da organização social do trabalho
Mudanças de ordem social, como o declínio do feudalismo, o início da industrialização, o
crescimento populacional nas cidades, o aumento da expectativa de vida e, sobretudo, as
mudanças na organização social do trabalho, tornaram menores os limites de tolerância à
loucura. O trabalho agrícola de subsistência e o artesanato para trocas imediatas tinham como
característica a pouca discriminação entre indivíduos considerados aptos ou não aptos para o
exercício dessas atividades. Esses respeitavam, de certa forma, o tempo ou o ritmo de cada
um.
Diferente da massificante atividade industrial, que requer o controle e a igualização do tempo, o
trabalho artesanal não apenas requer a expressão singular de cada um, como muitas vezes é
um fator que valoriza ainda mais o produto final.
O trabalho no campo, por sua vez, respeita o tempo e as leis da natureza, cujas regularidade e
alternância podem se adequar com certa facilidade às diferentes formas de ser e estar no
mundo. Porém, com o declínio do campesinato e o fim dos ofícios artesanais, o modo de
produção deixa de respeitar o tempo de cada um e passa a ser submetido aos batimentos do
relógio e ao compasso das máquinas, tornando-se mais discriminatório em ternos de
diferenças individuais.
São os “tempos modernos”, como satirizado e imortalizado por Charlie Chaplin em seu filme
homônimo, de 1936. É nesse período que o trabalho se torna um valor quase que sagrado.
Na verdade, o que se passa é que esse tipo de produção controlada e disciplinada, tão
estranha ao tempo da natureza e ao próprio homem como parte desta, terá de ser imposta a
duras penas. Não se trata mais do trabalho como realização ou expressão de um indivíduo, ou
de um “trabalhar para viver”, mas, sim, de um “viver para trabalhar”, da busca por uma máxima
exploração das energias dos sujeitos, pensados agora como força de trabalho ou mão de obra,
correias de transmissão de uma grande máquina da qual não possui o menor controle.
Esse tipo de trabalho, conhecido apenas nos presídios e nas casas de correção, era percebido
como algo incompatível pela população, e não é por acaso que, nessa época, ao mesmo
tempo em que a Europa enfrentava grande escassez de mão de obra, desocupados, mendigos
e “vagabundos” passavam a circular em número cada vez maior nas cidades. Ou seja, esse
modo de exploração dos indivíduos (da mão de obra) era visto ainda como uma forma de
escravidão, algo bem diferente dos tempos atuais, quando a exploração do trabalho passou a
ser até mesmo desejada.
Além dos discursos que visavam glorificar o trabalho duro, exploratório, bem como a exortação
moral e religiosa que buscava definir o trabalho como a essência do homem, esse processo
exigirá também o uso da força a fim de reprimir a chamada vagabundagem, a mendicância e a
ociosidade.
Chibatadas no tronco, marcação a ferro em brasa, multas, prisão e até mesmo pena de morte
são algumas das penalidades aplicadas àqueles que se recusavam a se submeter ao novo
mundo do trabalho, à nova ordem social. Como descreve Resende (1990, p. 24):
AS MEDIDAS LEGISLATIVAS DE REPRESSÃO SE
COMPLEMENTARAM PELA CRIAÇÃO DE
INSTITUIÇÕES, AS CASAS DE CORREÇÃO E DE
TRABALHO E OS CHAMADOS HOSPITAIS GERAIS
QUE, APESAR DO NOME, NÃO TINHA QUALQUER
FUNÇÃO CURATIVA. 
 
DESTINAVAM-SE A LIMPAR AS CIDADES DOS
MENDIGOS E ANTISSOCIAIS EM GERAL, A PROVER
TRABALHO PARA OS DESOCUPADOS, PUNIR A
OCIOSIDADE E REEDUCAR PARA A MORALIDADE
MEDIANTE INSTRUÇÃO RELIGIOSA E MORAL.
Os hospitais gerais como estruturas de exclusão
É nesse contexto que os limites de tolerância à loucura se estreitam, fazendo com que essa
emerja na cena social como um problema a ser solucionado.
O louco, que durante longo tempo pôde usufruir de relativa tolerância e liberdade, será incluído
no grupo que, por não conseguir se adaptar à nova ordem social, constitui-se como ameaça a
esta mesma ordem.
Como vimos, entre as instituições encarregadas de recolher esses indivíduos está o Hospital
Geral, que nesse momento passa a assumir um novo papel. No fim do século XVII, o hospital,
outrora predominantemente caritativo, passa a cumprir uma função social e política mais
explícita, inserida naquilo que Foucault chamou de “estrutura da exclusão”.
Para Foucault (1972), a origem da medicina mental ou da Psiquiatria encontra seu ápice nesse
momento, com a criação, em 1656, do Hospital Geral de Paris, por decreto do rei da França. É
também a partir daí que surge um novo lugar social para a loucura, o da segregação e
isolamento, como já indicamos acima.
 Hospital Pitié-Salpêtrière em Paris, França.
Com a desorganização social e econômica da Europa, a loucura passa a ser vista como algo a
ser excluído. Os diferentes em relação à moral, à razão e à ordem social passam a ser
encaminhados para o isolamento. O objetivo era limpar a cidade, ocupar quem não trabalhava,
punir o ócio, reeducar os desviados. Como relata Foucault a respeito dessas instituições:
TRATA-SE DE RECOLHER, ALOJAR, ALIMENTAR
AQUELES QUE SE APRESENTAM DE ESPONTÂNEA
VONTADE, OU AQUELES QUE PARA LÁ SÃO
ENCAMINHADOS PELA AUTORIDADE REAL OU
JUDICIÁRIA. É PRECISO TAMBÉM ZELAR PELA
SUBSISTÊNCIA, PELA BOA CONDUTA E PELA ORDEM
GERAL DAQUELES QUE NÃO PUDERAM ENCONTRAR
SEU LUGAR ALI, MAS QUE PODERIAM OU MERECIAM
ESTAR. 
 
ESSA TAREFA É CONFIADA A DIRETORES
NOMEADOS POR TODA A VIDA, E QUE EXERCEM
SEUS PODERES NÃO APENAS NOS PRÉDIOS DO
HOSPITAL COMO TAMBÉM EM TODA A CIDADE DE
PARIS SOBRE TODOS AQUELES QUE DEPENDEM DE
SUA JURISDIÇÃO.
(FOUCAULT, 1972, p. 56)
O hospital, que antes exercia a função de caridade, vai ganhando cada vez mais a função de
controle social, cujo objetivo é o de dar uma resposta ao problema da escassez de mão de
obra, da “vagabundagem” e da mendicância. Nesse período na Europa, empreendeu-se uma
grande repressão à mendicância, à vagabundagem e à ociosidade. Isso se deve à resistência
das pessoas à mudança dos modos de produção, em que se tratava de inverter a equação
trabalhar para viver para viver para trabalhar, do campesinato e dos ofícios artesanais para o
advento da manufatura.
Os hospitais destinavam-se a limpar as cidades dos mendigos e antissociais em geral, a prover
trabalho para desocupados, punir a ociosidade e reeducar para a moralidade mediante
instrução religiosa e moral (RESENDE, 1990).
É nesse período que a loucura, durante tanto tempo manifesta, será varrida do cenário social e
confinada junto aos demais desordenados para sofrer toda sorte de punições e torturas. Em
suma, a instituição hospitalar vai se configurando em uma espécie de instituição
“semijurídica” que visa ao estabelecimento da lei, da ordem e da moralidade burguesa.
AINDA DURANTE MUITO TEMPO A CASA DE
CORREÇÃO OU OS LOCAIS DO HOSPITAL GERAL
SERVIRÃO PARA A COLOCAÇÃO DOS
DESEMPREGADOS, DOS SEM TRABALHO, E
VAGABUNDOS. TODA VEZ QUE SE PRODUZ UMA
CRISE, E QUE O NÚMERO DE POBRES SOBE
VERTICALMENTE, AS CASAS DE INTERNAMENTO
RETOMAM, PELO MENOS POR ALGUM TEMPO, SUA
ORIGINAL SIGNIFICAÇÃO ECONÔMICA.
(FOUCAULT, 1972, p. 76)
A medicalização dos hospitais
No final do século XVIII, com o fortalecimento dos ideais iluministas e o advento da Revolução
Francesa (1789), que tinha como princípio os ideais de Igualdade, Liberdade e Fraternidade,
esses espaços passam a receber umasérie de denúncias, uma vez que o que acontece em
seu interior em nada se assemelha àqueles ideais.
A afirmação desses ideais tem então como consequência a exigência de democratização de
todos os espaços sociais, dentre eles a instituição hospitalar.
É nesse contexto específico que os médicos adentram o hospital, com o objetivo de adequá-lo
ao novo espírito da época. Tem início aqui o que foi chamado de humanização do hospital, com
a introdução de uma série de tecnologias disciplinares de controle e organização do espaço e
do tempo.
Uma das primeiras medidas de reorganização desses espaços será a libertação daqueles
indivíduos que haviam sido internados em função das medidas autoritárias do Antigo Regime,
caso ainda fossem aptos para o trabalho, devido à escassez de mão de obra. Com a criação
de outras instituições como as casas de correção, os reformatórios, os centros de reabilitação e
os orfanatos, os demais indivíduos, jovens demais para o trabalho ou considerados perigosos
demais para a vida em sociedade, também puderam encontrar seus destinos.
Para os loucos, restou o hospital como herança. Separados de seus companheiros de
isolamento, pela primeira vez esses indivíduos receberam, ou melhor, sofreram, algum
tratamento psiquiátrico. Isso porque tais tratamentos não se diferenciavam muito das torturas
anteriores. Inspirados na medicina galênica, cuja causa da doença era pensada como
desequilíbrio dos quatro humores do corpo, essas práticas tinham como finalidade livrar os
sujeitos de seus maus humores a partir de procedimentos de sangria, purgação, afogamento,
dentre outros.
A despeito desses métodos condenáveis, o fato é que o hospital começa a se medicalizar ao
mesmo tempo em que a Medicina vai se tornando um saber hospitalar, extraindo dessa
prática um conhecimento cada vez maior sobre o hospital, as doenças, suas diferentes
categorizações, sua forma de evolução e sua clínica de maneira geral. O hospital, lugar de
mortificação, torna-se agora lugar de saber e verdade, em estreita consonância com os ideais
iluministas. O poder sobre o hospital, antes nas mãos da filantropia e do clero, passa agora
inteiramente para as mãos do médico. É nesse momento que surge a figura de Fhilippe Pinel,
considerado o fundador da Psiquiatria, que, em 1793, assume a direção do Hospital de Bicêtre,
uma das unidades do Hospital Geral.
Encontramo-nos agora numa nova fase da história da loucura, inaugurada por aquilo que ficou
conhecido como “o gesto de Pinel”, que seria o de ter libertado os loucos das correntes,
humanizando o hospital. Mas Pinel não é famoso apenas por ter liberado a loucura das
correntes, mas também porque ele, em um mesmo gesto, teria aprisionado a loucura a outras
amarras, em uma prisão mais sutil, como se costuma dizer.
 Quadro representando “o gesto de Pinel”.
Inserido em uma certa corrente de pensamento de seu tempo, Pinel e seus contemporâneos
passam a conceber a loucura como “alienação mental”, alienação essa cujas causas
estariam presentes no meio social. Ora, se as causas da loucura, agora compreendida como
“alienação mental”, estavam presentes no meio social, seu tratamento deveria se basear no
afastamento do louco do mundo exterior. Ou seja, o tratamento deveria começar com o
isolamento.
Ao publicar sua obra, denominada Tratamento Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental,
Pinel consolidou o conceito de alienação mental e estabeleceu uma nova profissão, a de
alienista. Em suma, Pinel fundou os primeiros hospitais propriamente psiquiátricos e instaurou
o primeiro modelo de tratamento ao estabelecer o chamado “tratamento moral”, baseado no
isolamento, na ordem e na disciplina dos internos. No filme Ilha do Medo (2010), de Martin
Scorsese, encontramos bons fragmentos desse tipo de tratamento.
Como o conceito de “alienação mental”, segundo Pinel, está relacionado à perda da
racionalidade, ao distúrbio das paixões, à dificuldade em perceber a realidade objetiva e à
incapacidade em discernir entre certo e errado, ela nasce também associada à periculosidade.
As pessoas consideradas alienadas eram então compreendidas como representando um risco
para a sociedade e para si mesmas.
Isolar passa então a ser considerado um método para proteger o louco da alienação externa,
para estabelecer os princípios da ordem e da disciplina, pressupostos do tratamento moral, e
para se conhecer a doença em “estado puro”, como em um laboratório.
É assim que, enquanto instituição disciplinar, o hospital de alienados passa a ser pensado
como instituição terapêutica, destinado a educar a mente, afastar os delírios e chamar a
consciência à realidade. Como advertiu Foucault (1979, p. 107), “é a introdução dos
mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital que vai possibilitar sua
medicalização”.
Os loucos não são mais enclausurados por caridade ou repressão, mas por um imperativo
terapêutico, que nesse contexto significava garantir a segurança do louco e de sua família,
liberá-lo das influências externas, vencer suas resistências pessoais, submetê-lo a um regime
médico, impor-lhe novos hábitos, entre outros (AMARANTE, 2007).
Todo o espírito do “tratamento moral” foi brilhantemente retratado em um dos mais famosos
contos de Machado de Assis, O Alienista, referência básica para se pensar a questão da
loucura em nossa sociedade. O fato é que o alienismo pineliano, que levou a loucura de
acorrentada à institucionalizada, obteve grande fama pelo mundo, e em diversos países
hospitais de alienados foram criados inspirados em sua obra, muitos levando até mesmo o seu
nome.
Agora vamos ver um vídeo em que o especialista aborda as influências de Pinel e o conceito
de alienação mental no imperativo terapêutico de isolamento dos loucos.
REFLEXÕES SOBRE “O GESTO DE PINEL”
E SUAS IMPLICAÇÕES
VEM QUE EU TE EXPLICO!
O conceito de dispositivos de Foucault – Os dispositivos e a loucura como problema social
Analogia com a captura histórica do conceito Infância - A construção histórica da infância como
analogia
Influências da organização social do trabalho – Os modos de produção da modernidade e a
ordem social
VERIFICANDO O APRENDIZADO
MÓDULO 2
 Analisar os principais pressupostos de mudança no modelo de atenção psiquiátrica,
bem como o contexto de criação dos atuais dispositivos de atenção à saúde mental no
Brasil
PRESSUPOSTOS DA CRÍTICA AO MODELO
PSIQUIÁTRICO TRADICIONAL
Vimos anteriormente que, no final do século XVIII, na esteira dos ideais cientificistas da Idade
das Luzes, estabeleceu-se aquilo que viria a ser a ciência psiquiátrica. Isso significa dizer que
esse campo de saber definiu a loucura como seu objeto de práticas e estudos sistemáticos,
buscando descrever suas causas, formas de apresentação, seu desenvolvimento, seu
tratamento e sua cura. A essa forma de apropriação da loucura, ou de captura da loucura,
como alguns chamavam, convencionou-se denominar de institucionalização da loucura.
Será como questionamento dessa forma de aprisionamento daqueles que escapam à ordem
social dominante que irão surgir as chamadas psiquiatrias reformadas, ou aquilo que recebe o
nome de Reforma Psiquiátrica, movimentos que, dentro da própria Psiquiatria ou não, têm
como horizonte a crítica a esse estado de coisas.
A Psiquiatria é um saber que já nasceu criticado, principalmente por suas contradições
relacionadas àqueles ideais da Revolução Francesa, sobretudo os ideais de liberdade e
cidadania, uma vez que a formação do cidadão pressupõe a convivência e o compartilhamento
de uma vida comunitária em liberdade, na pólis, e não no confinamento e na exclusão.
Ora, que tratamento libertador é esse cujo princípio básico permanece sendo o aprisionamento
do louco e seu afastamento da pólis?
Esse questionamento, engrossado progressivamente por diversos outros, como a crítica ao
modelo positivista de ciência que chancelava essas práticas asilares, ou seja, que as
legitimava em seu saber-poder, é o que vai constituir todo o movimentoda Reforma
Psiquiátrica.
Se, por um lado, a Psiquiatria possuía ainda um saber demasiadamente precário sobre a
loucura, por outro, a elevação de sua condição ao status de saber científico a concedia
grandes poderes sobre a população. Um exemplo é o próprio mandato social de privação de
liberdade, porém agora com justificativas médico-científicas, para um suposto bem do louco e
do meio social. “Como tão pouco saber pode gerar tanto poder?”, questionava Foucault (2006,
p. 70) a esse respeito.
No Brasil, O Alienista, de Machado de Assis, é uma das críticas mais contundentes a esse
paradigma, pois coloca em xeque os principais pontos problemáticos desse modelo, que são a
discussão sobre o que é ser normal ou anormal, questionando a pretensa neutralidade dos
saberes científicos, produtores de verdade sobre a loucura. Conta-se que Machado de
Assis teria se inspirado no Hospício de Pedro II. Construído no ano de 1852, na cidade do Rio
de Janeiro, esse hospital foi o primeiro a ser completamente inspirado nos modelos franceses,
os pinelianos.
Publicado em 1882, o livro conta a história do doutor Simão Bacamarte, um alienista que, ao se
aprofundar em seus estudos de psiquiatria, constrói um manicômio chamado Casa Verde para
abrigar os loucos de sua região. A partir de seus próprios critérios de classificação e seleção da
loucura, baseados, todavia, em estudos e hipóteses pretensamente científicas, o doutor Simão
Bacamarte acaba internando quase toda a população da cidade fictícia de Itaguaí, uma vez
que quase ninguém se enquadrava em seus critérios de normalidade, sendo todos anormais,
portanto.
Porém, quando se apercebe que todos são anormais e somente ele mesmo é normal, o Dr.
Bacamarte conclui que talvez o único anormal seja ele mesmo, internando a si próprio, por
consequência, até a morte.
Obviamente, a obra é muito mais rica e interessante do que esse pequeno resumo, e por isso
mesmo deve ser lida em sua integralidade, tanto por gosto literário quanto como objeto de
reflexão social e filosófica. A opção pelo pequeno relato é a de exemplificar o porquê de essa
obra abrir todo um campo de debate em torno do normal e do anormal, bem como da pretensa
neutralidade dos saberes científicos, que de neutros não têm nada. O fato é que, assim como
no conto machadiano, esses asilos, tanto no Brasil quanto no mundo, logo ficaram lotados de
internos.
A ENORME DIFICULDADE EM ESTABELECER OS
LIMITES ENTRE A LOUCURA E A SANIDADE; AS
EVIDENTES FUNÇÕES SOCIAIS (AINDA) CUMPRIDAS
PELOS HOSPÍCIOS NA SEGREGAÇÃO DE
SEGMENTOS MARGINALIZADOS DA POPULAÇÃO; AS
CONSTANTES DENÚNCIAS DE VIOLÊNCIA CONTRA
OS PACIENTES INTERNADOS, FIZERAM COM QUE A
CREDIBILIDADE DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO E, EM
ÚLTIMA INSTÂNCIA, DA PRÓPRIA PSIQUIATRIA, LOGO
CHEGASSE AOS MAIS BAIXOS NÍVEIS.
(AMARANTE, 2007, p. 38)
Devido a esse estado de coisas, variadas foram as propostas e tentativas de superação desse
modelo asilar, que, no entanto, insiste em permanecer até os dias atuais, presentificando-se
em diversas práticas e diferentes instituições de cuidado, mesmo aquelas com um modelo de
tratamento não asilar, em espaço aberto.
Como diz uma expressão que ficou famosa no campo da Reforma Psiquiátrica, não adianta
acabar com os manicômios se esses locais permanecerem dentro de nós. Ou seja,
mesmo que não seja realizada no espaço de um manicômio como descrevemos acima, ainda
assim uma prática pode guardar características manicomiais.
REFORMA PSIQUIÁTRICA AO REDOR DO
MUNDO
Dentre essas tentativas de superação do modelo asilar, existem aquelas consideradas
reformadoras, que buscam recuperar certa essência terapêutica que o hospital possuiria, mas
que teria perdido em algum momento. Há também aquelas que buscam romper com o
paradigma psiquiátrico tradicional de modo geral, visando à superação do manicômio.
As primeiras tentativas de resgatar a pretensa essência terapêutica da instituição psiquiátrica
foram as colônias de alienados, aldeias localizadas no interior das cidades para onde
familiares enviavam seus loucos a fim de serem tratados pelo trabalho no campo e pela própria
formação de comunidade de trabalhadores, onde ocorria uma suposta cura pelo trabalho.
No início do século XX, o Brasil foi um grande signatário dessas colônias, criando dezenas
delas. Os exemplos mais famosos são a Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, e a
Colônia de Juquery, em São Paulo. Essa última chegou a acumular 16 mil internos, e logo se
assemelharam aos mesmos asilos que visavam superar, sobretudo por suas práticas asilares
de recuperação pelo trabalho.
 Colônia de Juquery.
Novas tentativas de Reforma Psiquiátrica nasceram no período pós Segunda Guerra Mundial,
quando essa condição histórica revelou aspectos terríveis da natureza humana, demonstrando
que o tratamento dispensado aos loucos não diferia muito daqueles destinados aos prisioneiros
dos campos de concentração e de trabalho forçado, violando diversas dimensões da dignidade
humana.
 Imagem representativa do uso de camisas de força em manicômios.
As Comunidades Terapêuticas e a Psicoterapia Institucional
A partir desse acontecimento histórico, surgem variadas experiências de reforma da instituição
psiquiátrica, consideradas pós-pinelianas. Algumas dessas reformas foram mais marcantes,
influenciando as práticas no campo da Psiquiatria até os dias de hoje.
É o caso das experiências da “Comunidade Terapêutica” na Inglaterra e da “Psicoterapia
Institucional” na França, que acreditavam que o problema da instituição psiquiátrica estava
em sua forma de organização, na maneira de gerir as instituições. Sendo assim, essas
experiências propunham que, modificando as relações no interior do hospital, seria possível
resgatar seu caráter terapêutico. Vamos conhecer melhor cada uma delas.
COMUNIDADES TERAPÊUTICAS
As experiências das Comunidades Terapêuticas tiveram início na Inglaterra, com Maxwell
Jones, em meados dos anos 1950. Foi um processo de reforma institucional baseado na
utilização do potencial dos próprios pacientes no processo terapêutico, muitos deles ex-
combatentes de guerra. Baseava-se na instauração de grupos operativos, grupos de
discussão, comunicação livre entre equipe e paciente, participação ativa dos pacientes nas
atividades propostas e assembleias diárias. Tudo na instituição poderia ser objeto de debate,
visando destituir a hierarquização e a verticalização dos papéis sociais, com o objetivo de
democratizar as relações e viabilizar a expressão livre dos sentimentos.
PSICOTERAPIA INSTITUCIONAL
Já a Psicoterapia Institucional francesa teve como principal personagem François Tosquelles,
um oficial espanhol refugiado da ditadura do general Franco, na Espanha. Assim como a
Comunidade Terapêutica, tinha como objetivo recuperar o potencial terapêutico do hospital. No
Hospital de Saint-Alban, Tosquelles realizou uma das mais bem-sucedidas experiências de
Reforma Psiquiátrica, propondo um movimento de gestão autônoma entre pacientes e
técnicos com passeios, festas, feiras de produtos dos próprios internos, construção de ateliês
de arte, oficinas de trabalho, entre outras atividades.
Esse movimento de gestão autônoma ficou conhecido como Clube Terapêutico. Tosquelles
propunha ainda que no hospital todos faziam parte de uma mesma comunidade e que, sendo
assim, todos os seus agentes teriam uma função terapêutica. Sua principal diferença com
relação às experiências inglesas era a utilização do conceito de transversalidade, que
propunha o confronto de papéis, ou seja, uma mistura dos papéis profissionais e institucionais
com o objetivo de questionar a produção de hierarquias no interior do hospital.
A Psiquiatria de Setor e a Psiquiatria Preventiva
No fim dos anos 1950 e início dos 1960, surgem outras duas importantes experiências
reformadoras: a Psiquiatria de Setor e a Psiquiatria Preventiva.
A Psiquiatria de Setor tem como personagem principal Lucian Bonnafé, e aponta a
necessidade de se realizar um trabalhoexterno ao manicômio, dando continuidade ao
tratamento fora do hospital, após a alta, evitando novos casos. Para isso, serão criados os
Centros de Saúde Mental (CSM), distribuídos em diferentes regiões administrativas
francesas, de acordo com o índice populacional. Essa experiência teve como característica a
inauguração da discussão sobre aquilo que ficou conhecido como regionalização da
assistência psiquiátrica, em que a própria divisão do espaço interno do hospital deveria
corresponder à região de origem dos pacientes.
 ATENÇÃO
Interessa ressaltar que as equipes também eram divididas, possibilitando o acompanhamento
do paciente tanto no hospital quanto no local de residência. A própria ideia de equipe
terapêutica assume aqui uma importância especial, uma vez que retirava do médico a
exclusividade do cuidado.
O paciente passava a ser cuidado por uma equipe multidisciplinar, o que contribuiu para um
olhar mais integral de sua condição. Em suma, o principal legado dessa iniciativa, ou aquilo
que a singulariza, foram as noções de regionalização e de equipe multiprofissional.
A Psiquiatria Preventiva foi desenvolvida nos EUA por Gerald Caplan, considerado precursor
dessa corrente. Sua principal ideia era tornar o hospital obsoleto a partir de medidas
preventivas, ou seja, prevenir para não ter que remediar, como se costuma dizer. Naquele
período, os hospitais norte-americanos ganharam visibilidade pelas péssimas condições em
que se encontravam os internos, vítimas de violência e maus-tratos das mais diversas matizes.
Por incentivo do próprio presidente dos EUA, a ordem então era a de reduzir as doenças
mentais das e nas comunidades, promovendo a saúde mental. Caplan acreditava que todas as
doenças mentais poderiam ser prevenidas, desde que detectadas precocemente, o que daria
início a uma caça aos suspeitos que possuíssem alguma.
O que aconteceu foi que, novamente, todos aqueles indivíduos que apresentavam algum tipo
de desadaptação social passaram a ser recolhidos pela ordem psiquiátrica, com a justificativa
médica de buscar promover a sua saúde mental, uma vez que apresentavam
comportamentos considerados pré-patológicos. No fim, ocorreu um aumento da demanda
psiquiátrica nos EUA, já que esses serviços de atenção comunitária acabaram servindo como
centros de captação de uma nova clientela, promovendo o que posteriormente foi chamado de
medicalização do campo social.
Todavia, apesar dos pesares, a Psiquiatria Preventiva deixou como legado conceitos
importantes, como a noção de cuidado comunitário e de saúde mental, em detrimento da
associação da Psiquiatria apenas com a noção de doença, e o conceito de
desinstitucionalização. Esta, naquele momento, estava muito ligada à noção de
desospitalização apenas, significando sobretudo a tentativa de reduzir o tempo médio de
internação dos pacientes, antes internados indefinidamente.
A noção de trabalho comunitário das equipes de saúde mental, apesar de não ser uma
novidade desta corrente, também foi bastante desenvolvida aqui.
As experiências da Comunidade Terapêutica e da Psicoterapia Institucional visavam a uma
intervenção no interior do próprio hospital, numa espécie de reorganização ou democratização
de suas relações. Já as experiências da Psiquiatria de Setor e da Psiquiatria Preventiva tinham
como expectativa uma reforma por fora, em meio externo, comunitário (ou “comendo pelas
beiradas”). Porém, existe ainda um outro conjunto de experiências mais radicais que visavam
não apenas à reforma ou à melhoria dos hospitais, mas também ao rompimento com o
paradigma psiquiátrico como um todo: a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática.
A Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática
A Antipsiquiatria foi um movimento que ganhou expressão em meio aos movimentos de
contestação social dos anos 1960.
Encabeçadas por Ronald Laing e David Cooper, essas experiências partiam do pressuposto
de que a mera reforma ou melhoria da instituição psiquiátrica não era suficiente, já que os
loucos eram vítimas de violências não apenas desses locais, mas também de suas famílias e
da sociedade como um todo. Sua crítica ao modelo psiquiátrico não se restringia aos modelos
de tratamento, mas sobretudo aos paradigmas teóricos adotados pela Psiquiatria, que no seu
entender adotava referenciais metodológicos equivocados, herdados das ciências naturais.
Segundo eles, o conhecimento em ciências humanas seria de uma natureza inteiramente
distinta, cujas consequências ético-políticas deveriam ser avaliadas. Como afirmava o próprio
Laing: “o que é cientificamente correto pode ser eticamente errado” (LANG, 1988
apud AMARANTE, 2007, p. 53).
Em suma, com a Antipsiquiatria, veremos surgir a primeira crítica ao saber médico-
psiquiátrico, no sentido de desautorizá-lo a considerar a esquizofrenia como uma doença, ou
como um objeto que poderia ser fixado dentro dos parâmetros científicos então adotados.
A doença mental deveria ser pensada como uma certa experiência do sujeito articulada ao
meio social, e não como uma entidade em estado puro.
Segundo Amarante (2007, p. 54):
NA MEDIDA EM QUE O CONCEITO DE DOENÇA
MENTAL ERA ENTÃO REJEITADO, NÃO EXISTIRIA
EXATAMENTE UMA PROPOSTA DE TRATAMENTO DA
‘DOENÇA MENTAL’, NO SENTIDO CLÁSSICO QUE
DAMOS À IDEIA DE TERAPÊUTICA. 
 
O PRINCÍPIO SERIA O DE PERMITIR QUE A PESSOA
VIVENCIASSE A SUA EXPERIÊNCIA; ESTA SERIA, POR
SI SÓ, TERAPÊUTICA, NA MEDIDA EM QUE O
SINTOMA EXPRESSARIA UMA POSSIBILIDADE DE
REORGANIZAÇÃO INTERIOR. 
 
AO ‘TERAPEUTA’ COMPETIRIA AUXILIAR A PESSOA A
VIVENCIAR E A SUPERAR ESTE PROCESSO,
ACOMPANHANDO-A, PROTEGENDO-A, INCLUSIVE DA
VIOLÊNCIA DA PRÓPRIA PSIQUIATRIA.
Para a Antipsiquiatria, o que o hospital fazia era reproduzir as mesmas estruturas opressoras
da sociedade, produzindo patologias ao invés de tratá-las. Foi nesse sentido que criaram
diversos espaços de contracultura, lugares de vida, espaços “anti”, pois a loucura poderia ser
vista ainda como um movimento de reação a uma cultura alienante, e, nesse sentido, uma
experiência de libertação que guardava dentro de si ainda uma saúde.
A Psiquiatria Democrática tem como principal protagonista o psiquiatra italiano Franco
Basaglia, que nos anos 1960 dirigiu o Hospital Psiquiátrico de Gorizia, numa pequena cidade
italiana. Ao propor a reforma do hospital psiquiátrico da cidade, promoveu uma série de
mudanças práticas e teóricas, relatadas no livro A Instituição Negada, de 1968. Conta-se que,
ao adentrar neste hospital pela primeira vez, Basaglia não pôde deixar de compará-lo aos
campos de concentração.
No início de seu trabalho, Basaglia se inspirou na Comunidade Terapêutica e na Psicoterapia
Institucional, a fim de recuperar o potencial terapêutico do hospital. Porém, com o passar do
tempo, percebeu que esse tipo de mudança não era suficiente, posto que não seria possível
combater processos mortificadores com meras medidas administrativas, ou mesmo
humanizadoras.
 Franco Basaglia
Após entrar em contato com as obras de Michel Foucault e Erving Goffman, Basaglia formulou
a hipótese de que o manicômio não deveria ser combatido apenas em seu sentido físico, mas
que deveria ser pensado como um aparato que inclui saberes, práticas sociais, enunciados
científicos, medidas administrativas, legais, entre outras.
Basaglia observava que era importante questionar não somente “o manicômio e a psiquiatria
como ciência, mas tudo o que, partindo do território, repelia a doença e a confiava à psiquiatria
e ao manicômio” (BASAGLIA, 2005 apud AMARANTE, 2007). Esse conceito de “aparato
manicomial” se assemelha muito ao conceito de “dispositivo” proposto por Foucault, tal como
vimos em nosso primeiro módulo, ao tratar do dispositivo de exclusão da loucura.
Para Basaglia, é esse dispositivo, ou esse “aparato manicomial”, que legitima um lugar de
isolamento, segregação, e patologização das experiências humanas, e apenas com sua
desconstrução seria possível construir um novo lugar social para a loucura.
Além daexperiência de Gorízia, Basaglia também realizou um trabalho no Hospital Psiquiátrico
de Trieste, no Norte da Itália. Foi nesse hospital, na década de 1970, que se deu aquela que é
considerada, até hoje, a mais bem-sucedida experiência de transformação da Psiquiatria,
constituindo-se como principal referência para o processo de Reforma Psiquiátrica
brasileira nas décadas de 1980 e 1990, iniciado na cidade de Santos, no estado de São
Paulo.
A experiência de Trieste demonstrou que era possível substituir o modelo manicomial, e não
apenas reformá-lo. Paralelo ao fechamento do hospital, surgem então os serviços
substitutivos, representados por um conjunto de estratégias alternativas ao hospital, tendo
como finalidade o desmonte daquele enquanto dispositivo de clausura. Diferentemente das
demais experiências, esses serviços, como os clubes ou os Centros de Saúde Mental (CSM),
por exemplo, não visavam dar continuidade ao tratamento manicomial após a alta, ou servir de
estabelecimento intermediário, mas, sim, tomar o lugar da instituição psiquiátrica, substituí-la.
Uma das grandes diferenças com relação às experiências anteriores residia na noção de
desinstitucionalização, que, como vimos anteriormente, se restringia à desospitalização, e não
à desmontagem do aparato asilar como um todo.
Para a Psiquiatria Democrática, é a desmontagem desse aparato, que por sua vez envolve
uma gama muito grande de atores sociais, que pode propiciar uma nova relação com os
sujeitos em sofrimento mental. 
REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA
O processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil tem seu início em meados da década de
1970. Contemporâneo ao processo de redemocratização da sociedade brasileira, constituiu-se
como mais um dos movimentos que expressavam o desejo de cidadania e justiça social
naquele momento. Nesse contexto de abertura política e luta por direitos humanos, o
tratamento dispensado aos psiquiatrizados ganhará visibilidade na forma de uma grande
contradição, posto que representava justamente a imagem do autoritarismo e da negação dos
direitos humanos mais básicos. Mais especificamente, esse movimento se insere no
denominado movimento sanitário, da década de 1970, que defendia a mudança dos
modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, a saúde coletiva, a equidade na
oferta dos serviços, e o protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos
processos de gestão e atenção à saúde. Em suma, todo um combate contra as práticas
verticalizadas, isto é, autoritárias, próprias de um Estado tomado por um golpe militar.
Se dissemos que ela se insere neste movimento, é porque, como vimos anteriormente, a
Reforma Psiquiátrica tem também uma história singular, herdeira daquelas experiências que
visavam a superação do modelo asilar no pós-guerra.
Mesmo hoje, em cada serviço de saúde mental no Brasil, existe um pouquinho de Comunidade
Terapêutica, de Psicoterapia Institucional, de Antipsiquiatria, de Psiquiatria de Setor, de
Psiquiatria Preventiva e, sobretudo, de Psiquiatria Democrática, uma vez que a experiência de
Trieste na Itália demonstrou ser possível o rompimento com os paradigmas tradicionais da
Psiquiatria.
A rigor, podemos dizer que a Reforma Psiquiátrica brasileira é uma grande mistura de tudo
isso, somada à peculiaridade de nosso contexto e à produção de nossos próprios saberes e
experiências.
Efetivamente, o início desse percurso se deu em 1978, com os movimentos sociais pelos
direitos dos pacientes psiquiátricos, como o Movimento dos Trabalhadores em Saúde
Mental (MTSM), formado por trabalhadores do movimento sanitário, associações de familiares,
sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de
internações psiquiátrica. A formação desse movimento teve como estopim uma crise na
Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), órgão do Ministério da Saúde então responsável
pelas políticas de saúde mental (AMARANTE, 1995).
Foi pelo protagonismo desse movimento que se passou a denunciar a violência dos
manicômios e a mercantilização da loucura pelo setor privado, que recebia dinheiro
público para manter pacientes internados sob condições desumanas; e, quanto mais tempo
internados e mais desumanas as condições, maiores eram os lucros.
O MTSM passa a protagonizar e publicar essas denúncias, ressaltando a violência promovida
nos manicômios. Por meio desse movimento, foi possível também construir e fortalecer uma
crítica mais coletiva ao saber psiquiátrico e seu modelo hospitalocêntrico.
Em 1987, no 2° Congresso Nacional do MTSM (Bauru, SP), foi adotado aquele que viria a ser
o principal lema da reforma: “Por uma sociedade sem manicômios”. No mesmo ano, foi
realizada a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental, no Rio de Janeiro. Outros
acontecimentos de fundamental importância foram o surgimento do primeiro Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS) do Brasil, em Santos (SP), em 1987, e a emblemática
intervenção da Secretaria Municipal de Saúde de Santos (SP), em 1989, na Casa de Saúde
Anchieta, um hospital psiquiátrico famoso por maus-tratos e morte de pacientes. Na época,
essa intervenção teve repercussão nacional e provou que era possível construir uma rede de
atenção territorial capaz de substituir o hospital psiquiátrico. Foi o que aconteceu no município
de Santos, com a criação dos primeiros Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), serviços
abertos que funcionavam 24 horas.
Paralelamente, são criados também cooperativas, residências terapêuticas para os egressos
do hospital, clubes, centros de convivência e associações. Essa experiência teve o mérito de
demonstrar para todo o Brasil que a superação do manicômio era possível.
 Imagem CAPS em Jaguaribe/CE.
Em 1989, inicia-se a luta do movimento da Reforma Psiquiátrica no campo legislativo, com a
entrada do Projeto de Lei no Congresso Nacional que propunha a regulamentação dos
direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios
no País, de autoria do deputado Paulo Delgado (PT-MG). Esse projeto só seria aprovado em
2001, recebendo o apelido de Lei da Reforma Psiquiátrica. 
Em 1986, houve a 8ª Conferência Nacional de Saúde, marco na história da saúde pública
brasileira ao propor um novo modelo para a saúde pública com diretrizes que posteriormente
seriam incorporadas ao SUS.
Dentre elas, podemos citar os princípios básicos da universalidade (a saúde deve ser acessível
a todos), da integralidade (todos têm direito à assistência em saúde em todos os níveis da
atenção), da equidade (todos devem ser tratados de maneira igual pelo SUS); e do controle
social (a população acompanha as discussões sobre as políticas de saúde por meio das
Conferências de Saúde e dos Conselhos de Saúde).
Em 1988, temos a Constituição Federal e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que
incorpora diversas demandas do movimento sanitário, sobretudo aquelas diretrizes
estabelecidas pela 8ª Conferência Nacional de Saúde, descritas acima.
De 1992 até o ano 2000, inspirados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado, os movimentos sociais
conseguem aprovar as primeiras leis estaduais e municipais em direção à implementação de
uma rede extra-hospitalar de cuidados, buscando a substituição progressiva de leitos
hospitalares por uma rede integrada de atenção à saúde mental. Essa tendência ganha força
sobretudo a partir do compromisso assumido pelo Brasil na assinatura da Declaração de
Caracas (1990), e pela realização da 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental.
Nesse momento, entra em vigor uma série de normativas federais que regulamentam a criação
de serviços de atenção diária, inspirados nos CAPS, NAPS e Hospital-dia. Porém, essa
implementação é ainda bastante precária e descontínua.
“Ao final deste período, o país tem em funcionamento 208 CAPS, mas cerca de 93% dos
recursos do Ministério da Saúde para a Saúde Mental ainda são destinados aos hospitais
psiquiátricos” (BRASIL, 2005, p. 08).
A partir de 2001, com o sancionamentoda Lei Federal nº 10.216 (Lei Paulo Delgado), que em
seu texto redireciona a assistência em Saúde Mental, privilegiando o oferecimento de
tratamento em serviços de base comunitária, um novo ritmo é dado ao movimento da Reforma
Psiquiátrica brasileira.
Nesse momento, a política de saúde mental do governo federal passa a estar mais alinhada
com as diretrizes propostas pela Reforma Psiquiátrica, dando mais sustentação e visibilidade a
ela. É realizada ainda a 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental, consolidando ainda mais
esses novos rumos.
 Movimentos sociais da luta antimanicomial no Brasil.
Outro fato importante nesse período é o programa De volta pra casa (Lei nº 10.708), destinado
a oferecer ajuda financeira para que egressos de longa data do sistema manicomial possam
viver em comunidade.
A Portaria nº MS 106/00, que cria os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) no âmbito do
SUS, é publicada, impulsionando as ações de desinstitucionalização da loucura. É realizado
ainda, em 2004, o 1° Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, em São Paulo,
reunindo dois mil trabalhadores e usuários de CAPS. A partir daí, a rede de atenção extra-
hospitalar, diária e comunitária, se expande, chegando a regiões onde sequer existiam,
marcando a transição de um modelo assistencial centrado no hospital psiquiátrico para um
modelo de atenção comunitária, cuja referência do cuidado passa a ser os Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), e não mais o manicômio.
Os CAPS, por sua vez, têm como objetivo realizar o acompanhamento clínico e a reinserção
social dos usuários pelo fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Sendo assim,
suas práticas se caracterizam por ocorrerem em ambiente aberto, acolhedor e inserido no
território dos usuários.
O cuidado é realizado prioritariamente em espaços coletivos, como grupos, assembleias,
oficinas e reuniões diárias.
Segundo o Ministério da Saúde (2004), os projetos desses serviços devem ultrapassar sua
própria estrutura física, em busca de uma rede de suporte social que potencialize suas ações,
olhando os sujeitos em sua singularidade, sua história, sua cultura e sua vida cotidiana.
Se, como dizia Basaglia, o modelo psiquiátrico havia colocado a pessoa entre parênteses para
se relacionar com a doença, os dispositivos extra-hospitalares de base comunitária buscam
colocar a doença entre parênteses para lidar com pessoas, sendo que pessoas têm trabalho,
vizinhos, amores, família, desejos, problemas concretos, e não apenas mentais.
Por isso, os serviços de atenção à saúde mental precisam ser um lugar de produção de
sociabilidade e de vida. É o que propõe a Reforma Psiquiátrica, tanto no Brasil quanto em
outros países.
Hoje, quando utilizamos o termo saúde mental, e não mais doença mental, estamos falando de
todo esse processo de transformação da Psiquiatria, que visou livrá-la de uma prática reduzida
meramente ao estudo e tratamento de doenças.
A expressão dessa mudança, que não é só conceitual, se expressa na forma como os serviços
de atenção à saúde mental se organizam nos dias de hoje, em que o hospital não possui, ou
não deve possuir, o lugar de centralidade ou referência na atenção aos sujeitos em sofrimento
psíquico, mas, sim, os serviços de atenção comunitária, como é o caso dos CAPS.
Ademais, contemporaneamente, até mesmo o termo saúde mental recebeu um complemento,
passando a ser referido como saúde mental e atenção psicossocial (AMARANTE, 2007).
Isso porque a atenção à saúde mental é uma tarefa complexa, realizada no território existencial
de sujeitos em liberdade, algo que vai exigir a articulação de diversos dispositivos.
Dentre esses dispositivos, podemos citar Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
Residências Terapêuticas (SRTs), Centros de Convivência e Cultura, Unidades de Acolhimento
(UAs), leitos de atenção integral em Hospitais Gerais, ambulatórios de saúde e de saúde
mental, atenção Hospitalar de Urgência e Emergência.
Também poderíamos incluir diversas outras instituições, como serviços de assistência social,
jurídicos, associação de moradores, clubes, escolas, instituições religiosas etc. Enfim, tudo
aquilo que um sujeito em liberdade pode ter acesso.
Agora vamos ver um vídeo em que o especialista reflete sobre as diversas influências, etapas e
os dispositivos da Reforma Psiquiátrica no Brasil até a atualidade.
O PROCESSO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA
NO BRASIL
VEM QUE EU TE EXPLICO!
Pressupostos da crítica ao modelo psiquiátrico tradicional – O Alienista, de Machado de Assis
As Comunidades Terapêuticas e a Psicoterapia Institucional
A Psiquiatria de Setor e a Psiquiatria Preventiva
A Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática
VERIFICANDO O APRENDIZADO
CONCLUSÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar a saúde mental, e não apenas a doença mental, significa habitar um processo social
complexo cuja utopia remete para a construção de um novo lugar social para os sujeitos em
sofrimento mental. Mais do que uma mudança assistencial ou médico-psicológica, significa
mudar as relações da sociedade com a loucura.
Como afirmamos no início deste percurso, a história da loucura era a história dos momentos
em que a loucura se tornou um problema para os modos de vida de uma sociedade, ou seja,
um problema a ser tratado.
Por outro lado, os movimentos de Reforma Psiquiátrica questionam esse estado de coisas e
colocam as características excludentes de determinada sociedade como problema.
Para você, que chegou até aqui, isso pode parecer óbvio, mas talvez não fosse antes de ter
percorrido todo esse processo, e certamente não é para a maioria da população.
Ou seja, o problema não está na experiência da loucura, que já foi recebida de muitas
maneiras por diferentes sociedades e em diferentes tempos históricos, mas, sim, na maneira
de viver de uma sociedade que se constitui de tal modo que a diferença não tem mais lugar, a
não ser o silenciamento, a exclusão e a morte, seja essa biológica seja existencial.
O problema da Reforma Psiquiátrica não é tanto destituir as formas de tratamento da loucura,
que, no entanto, enquanto reprodutoras de opressão, devem ser denunciadas, e sim intervir
nas causas sociais que condenam o louco ao isolamento, o que já seria uma prática de
produção de saúde e, talvez, uma das mais urgentes.
 PODCAST
Agora, o especialista Luiz Renato Paquiela Givigi irá desenvolver os antecedentes históricos,
panorama geral e perspectivas da Reforma Psiquiátrica no Brasil, apresentando os diversos
impasses e desafios.
AVALIAÇÃO DO TEMA:
REFERÊNCIAS
AMARANTE, P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Coordenado
por Paulo Amarante. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995.
AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.
ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
BRASIL. Ministério da Saúde. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil.
Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental:
15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, novembro de 2005.
BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde Mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial.
Brasília, 2004.
FOUCAULT, M. Eu sou um pirotécnico. In: Pol-Droit, R. (org). Michel Foucault: entrevistas.
São Paulo: Graal, 2006.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.
FOUCAULT, M. O jogo de Michel Foucault (1977). In: Ditos & Escritos IX: genealogia da
ética, subjetividade e sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. 
FOUCAULT, M. A história da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1972.
RESENDE, H. Política de Saúde Mental no Brasil: uma visão histórica. In: TUNDIS, S. A.;
COSTA, N. R. (Orgs.). Cidadania e Loucura: Políticas de Saúde Mental no Brasil. Rio de
Janeiro: Vozes, 1990.
EXPLORE+
Não deixe deassistir ao clássico filme de Laís Bodanzky, Bicho de Sete Cabeças (2000),
que apresenta a história de um jovem que, por apresentar problemas e conflitos com o
pai, acaba sendo internado em um manicômio, sofrendo todos os abusos e maus tratos
típicos desse lugar.
É muito importante assistir no YouTube ao documentário de Daniela Arbex e Armando
Mendz, intitulado Holocausto Brasileiro (2016), que apresenta, com depoimentos e
documentos, a triste história do hospital Colônia, em Barbacena (MG), onde milhares de
pessoas passaram fome, frio e sofreram tortura ao serem internados e excluídos da
sociedade. Há ainda o livro homônimo de Daniela Arbex.
O documentário Estamira é também um excelente exemplo que ilustra a vida de uma
mulher que apresentava sintomas de transtorno mental e trabalhava catando lixo no
aterro sanitário de Jardim Gramacho, na cidade do Rio de Janeiro. Também disponível no
YouTube.
Outra excelente opção é o livro O Alienista, de Machado de Assis, fundamental para todo
futuro profissional em saúde mental. Disponível no site Domínio Público.
CONTEUDISTA
Luiz Renato Paquiela Givigi

Outros materiais