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IgaraMeloDantas-DISSERT

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES 
DEPARTAMENTO DE LETRAS 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM 
 
 
 
Igara Melo Dantas 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A DANÇA DAS CONFISSÕES: INTRODUÇÃO À ORALIDADE, PERFORMANCE 
E INSCRITURA EM NIKETCHE, DE PAULINA CHIZIANE 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Natal 
2017 
 
 
 
 
Igara Melo Dantas 
 
 
 
 
 
A DANÇA DAS CONFISSÕES: INTRODUÇÃO À ORALIDADE, PERFORMANCE 
E INSCRITURA EM NIKETCHE, DE PAULINA CHIZIANE 
 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
graduação em Estudos da Linguagem da 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 
como parte dos requisitos para obtenção do 
título de Mestre com Área de Concentração em 
Literatura Comparada. 
Linha de pesquisa: Poéticas da Modernidade e 
da Pós-Modernidade 
 Orientadora: Profª Drª Tânia Lima 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Natal 
2017 
 
 
 
 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN 
Sistema de Bibliotecas - SISBI 
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA 
 
 Dantas, Igara Melo. 
 A dança das confissões: introdução à oralidade, performance e 
inscritura em Niketche, de Paulina Chiziane / Igara Melo Dantas. 
- 2017. 
 122f.: il. 
 
 Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do 
Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de 
Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, 2017. 
 Orientadora: Prof.ª Dr.ª Tânia Maria de Araújo Lima. 
 
 
 1. Literatura moçambicana. 2. Chiziane, Paulina, 1955. 3. 
Oralidade. I. Lima, Tania Maria de Araújo. II. Título. 
 
RN/UF/BS-CCHLA CDU 821(679)-31 
 
 
 
 
 
 
 
A DANÇA DAS CONFISSÕES: INTRODUÇÃO À ORALIDADE, PERFORMANCE 
E INSCRITURA EM NIKETCHE, DE PAULINA CHIZIANE 
 
 
Igara Melo Dantas 
 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
 
Profª Drª Tânia Maria de Araújo Lima (orientadora) 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte 
 
 
 
 
 
Prof. Dr. Henrique Eduardo de Sousa (examinador interno) 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte 
 
 
 
 
 
Prof. Dr. Sávio Roberto Fonsêca de Freitas (examinador externo) 
Universidade Federal Rural de Pernambuco 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Natal 
2017 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 
 
 
 
 
 Gratidão aos poetas que o destino fez-me encontrar sob a forma de professores, em 
especial, à Tânia Lima e Henrique Eduardo de Sousa. Agradecimento também aos demais 
professores que compõe o Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que, de alguma forma, contribuíram para 
o caminhar desta pesquisa. Meu profundo reconhecimento ao professor Sávio Roberto 
Fonsêca de Freitas por seus escritos sobre a Literatura de Moçambique e por aceitar, 
enquanto especialista, compor a leitura e a revisão deste trabalho. Agradecimento também 
à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa 
concedida durante o período em que esta pesquisa foi elaborada. Por fim, agradeço ao meu 
amor e a todos os amigos e familiares que estiveram junto a mim neste percurso. 
 
Gratidão sempre. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ao meu pai, 
Metade minha 
Por tantas e tantas vezes 
Que tentei recompor sua presença na lembrança 
Em meio às ausências, mas 
Que se foi durante o caminhar desses escritos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Porque cada começo 
é só continuação 
e o livro dos eventos 
está sempre aberto no meio.1 
 
~ Wisława Szymborska 
 
1 Última estrofe do poema, intitulado miłość od pierwszego wejrzenia, traduzido por Regina Prybycien como 
‘Amor à primeira vista’. SZYMBORSKA, Wisława. Fim e Começo, 1993. 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
 
Esta dissertação apresenta um estudo panorâmico acerca da oralidade no romance 
africano, particularmente, na obra Niketche: uma história de poligamia (2004), da 
moçambicana Paulina Chiziane, considerada a primeira escritora de seu país a publicar 
neste gênero. Investigamos a forma sob a qual o corpo da narração articula as três 
categorias que desempenham um importante papel para a sensibilidade e a percepção do 
oral no texto escrito: a voz, a letra e o gesto. Pela natureza do corpus escolhido, tal estudo 
adentrou discussões acerca do papel da mulher enquanto escritora, tecendo 
interpretações concernentes aos discursos ficcional, histórico e cultural sobre a mulher e 
associando o espaço da criação artística a um terreno possível de emergir novas formas 
de representação para o feminino. Os instrumentos que serviram de base para nossas 
reflexões encontram-se ancorados nas postulações da teoria literária em torno da 
oralidade, como os escritos de Paul Zhumthor (2000) e Hampaté-Bâ (1980), além das 
teorias de cunho cultural e pós-colonial de Homi k. Bhabha (2003) e Gayatry Spivak 
(2010). 
 
 
Palavras-chave: Paulina Chiziane. Oralidade. Literatura moçambicana. 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
 
This dissertation presents a panoramic study concerning the orality in African novel, 
particularly, in the book called Niketche: uma história de poligamia (2004), from Mozambican 
writer Paulina Chiziane, considered one of the first novelist from her country to publish in 
this genre. We investigated the form in which the narration embodies and articulates the 
three categories that features an important role to the sensitivity and the oral perception of 
the written text: the voice, the letter and the gesture. By the nature of the chosen corpus, 
such study permeated discussions about the role of the woman as a writer, weaving 
interpretations concerning the fictional, historic and cultural discourses about the women 
and associating the space of the artistic creation as a possible territory in which new forms 
of representation emerge concerning the feminine. The instruments that served as basis to 
our reflections are anchored in the postulates of the literary theory about the orality, such 
as the works of Paul Zumthor (2000) and Hampaté-Bâ (1980), as well as the cultural and 
post-colonial studies of Homi K. Bhabha (2003) and Gayatry Spivak (2010). 
 
 
 
Key-words: Paulina Chiziane. Orality. Mozambican literature. 
 
 
 
 
LISTA DE FIGURAS 
 
Página 33 - Figura 1: Paulina Chiziane por Douglas Freitas. 
 
Página 34 – Figura 2: Malangatana Ngwenya (1969), "Momentos de Festa", CasaComum.org, 
Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_116107 (2017-10-28). 
 
Página 64 – Figura 3: Malangatana Ngwenya (1962), "O Feitiço", CasaComum.org, 
Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_115932 (2017-10-28). 
 
Página 70 - Figura 4: (1:18 min) Grupo de Teatro Luarte – Encenando o Niketche. 12 de 
junho de 2013. Spot disponível em: youtube.com.br. Acesso em: 05 de maio de 2017, às 
15h25min. 
 
Página 70 - Figura 5: Niketche – O musical. Associação dos Atletas de Dança Despotiva 
de Maputo. 26 de novembro de 2014. Spot disponível em: youtube.com.br. Acesso em: 05 
de maio de 2017, às 15h44min. 
 
Página 83 - Figura 6: Mulheres prisioneiras da Frelimo banhando-se escondidas, no rio 
(min 51:47). Filme: Virgem Margarida,2013. Direção: Licinio Azevedo. Fonte: 
youtube.com.br. Acesso em 04 de maio de 2017. 
 
Página 84 - Figura 7: A personagem Rosa, forçada a cavar um buraco que mais tarde será 
um local para castigos físicos (min 25:19). Filme: Virgem Margarida,2013. Direção: Licinio 
Azevedo. Fonte: youtube.com.br. Acesso em 04 de maio de 2017. 
 
Página 88 – Figura 8: Malangatana Ngwenya (s.d.), "Sem título", CasaComum.org, Disponível 
HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_116015 (2017-10-28). 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
1 INTRODUÇÃO ........................................................................…................................. 12 
1.1 Problema ........................................................................................................................19 
1.2 hipótese ........................................................................................................................... 21 
1.3 Objetivos ......................................................................................................................... 22 
1.3.1 Geral .............................................................................................................................. 22 
1.3.2 Específicos ...................................................................................................................... 22 
1.4 Metodologia ................................................................................................................. ...23 
1.4.1 A obra ............................................................................................................................28 
1.4.2 A autora e o seu tempo ................................................................................................ 30 
2. A Voz ............................................................................................................................... 34 
2.1 Considerações sobre o ato de narrar ..............................................................................35 
2.2 A oralidade como tradição literária ................................................................................41 
2.3 Paulina Chiziane: a voz que canta todos os cantos .......................................................48 
3. O Gesto............................................................................................................................ 64 
3.1 O corpo é o centro de tudo ........................................................................................... 65 
3.2 Narração e ritual: a palavra assume gestos .................................................................... 77 
4. A Escrita .......................................................................................................................... 88 
4.1 Considerações acerca do romance moçambicano .........................................................89 
4.2 Contar histórias, tecer inscritas ......................................................................................92 
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................102 
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................106 
7. ANEXOS........................................................................................................................ 115 
ANEXO 1 ......................................................................................................................... 115 
ANEXO 2 ......................................................................................................................... 116 
 
12 
 
 
1. INTRODUÇÃO – Aqui existem leões2 
 
 
 Durante muito tempo, houve um costume tradicionalmente difundido no ocidente: 
o de contar histórias sobre a África. Estas histórias povoam, ainda hoje, a imaginação de 
muitos. Deste fato, duas inquietações devem ser postas a consideração. A primeira delas, a 
inegável herança de práticas orais nos povos do ocidente – a Ilíada e a Odisseia são 
exemplares dignos deste modo de expressão. A segunda inquietação, deve-se a um detalhe 
igualmente importante: afinal de contas, quem eram os sujeitos que narraram o continente 
africano para o resto do mundo? Aparentemente simples, estas duas vias indagativas 
apresentaram-se como um caminho valioso a se percorrer. 
 Apesar de o continente africano ser reconhecido pelos cientistas evolutivos como o 
berço da humanidade, além de trazer vestígios históricos que datam de períodos anteriores 
ao paleolítico3, a história da África vem sendo contada, tomando a Idade Média europeia 
como ponto de partida frequente. Este detalhe pode ser interpretado como resultante das 
relações comerciais estabelecidas neste período entre os povos africanos e os europeus, 
através das rotas de comércio na região das Índias Orientais. Sem restrições, o continente 
passa a ser inserido nas mais diversas representações, seja através de mapas mundi, seja no 
relato dos navegantes, povoando o imaginário do homem branco diante de seu próprio 
desconhecimento. 
 
2 Título em referência a frase latina “Ibi Sunt Leones” que resumia o conhecimento dos escribas a 
respeito do continente africano, quando representado como uma grande e inominável porção de terra nos 
mapas antigos. História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África / editado por Joseph Ki -Zerbo. – 
2.ed. rev. – Brasília: UNESCO, 2010. 
3 Paleolítico, refere-se ao 1º período da Pré-História, cerca de 2,5 milhões de anos atrás, em que os 
antepassados do Homem começaram a produzir os primeiros artefatos em pedra lascada. O cálice e a espada, 
Riane Eisler, 2001, p.14. 
13 
 
 O resultado destas aproximações provocou inúmeras mudanças, sobretudo, na 
compreensão do que seria a história do continente africano, trazendo uma visão não do que 
poderia ser o percurso de seus povos, mas daquilo que se pensava que ele deveria ser. 
 Outro detalhe que silenciou ainda mais a possibilidade de uma história digna aos 
africanos, foi a instauração das colônias de exploração e o tráfico negreiro. Destes fatos 
históricos catastróficos emergiram esteriótipos raciais, geradores de incompreensão e de 
desrespeito, tão profundamente enraizados nas culturas, que até hoje ainda há marcas 
incontestáveis de racismo em, praticamente, todos os países que estiveram sob um contexto 
de exploração colonial. Marcado pela pigmentação de sua pele, transformado em 
mercadoria, e destinado ao trabalho forçado, o africano veio a simbolizar, na consciência 
de seus dominadores, uma essência racial criada ilusoriamente como algo inferior: a de 
negro. Este processo de falsa identificação depreciou a história dos povos africanos no 
espírito de muitos (M’BOW, 1980, p.22) e levou-os a lutar contra esta dupla servidão, tanto 
econômica, quanto psicológica. 
 Com efeito, ainda hoje há uma certa resistência do ocidente em tornar a voz dos 
povos africanos como significantes de sua própria história. Dentre as diversas prerrogativas, 
existe a que punha em xeque a tradição oral no continente como uma fonte contestável, 
além da quase total ausência de fontes escritas e documentais relativas aos períodos 
anteriores ao século XVI. 
 Todavia, é necessário reconhecer a tradição oral como a grande fonte de 
conhecimento africana. Ela atribui a memória humana a importância de transmitir e 
armazenar a sabedoria necessária para as futuras gerações. Por mais significativa que seja, o 
caráter documental da escrita cristaliza e sujeita o conhecimento e sua forma de transmissão 
ao desaparecimento através dos tempos. A memória enquanto recurso fundamental, tem a 
capacidade de revestir de materialidade o esqueleto do passado, apresentando sob três 
dimensões o que, com recorrência, é esmagado sobre a superfície de uma folha de papel. 
Por meio da oralidade, a prática da contação de histórias recompõe o valor das experiências 
14 
 
coletivas. Numa sociedade de imensa mecanização e individualismos como a nossa, as 
formas de transmissão do oral, parece-nos, a princípio, qualidades praticamente esquecidas. 
 A exemplo destas histórias contadas a volta da fogueira, temos a fala da escritora 
nigeriana Chimamanda Adichie, acerca dos perigos de uma história única4 sobre um povo. 
No caso particular tratado pela autora, aparece o continente africano, que fora capturado 
por discursos e representações que negaram o direito ao passado e à memória de seus povos. 
Desconstruir esse perigo implica em adotar o que Chinua Achebe, citado por Chimamanda, 
apresenta como um “equilíbrio de histórias”. Contar outras e novas versões sobre um 
mesmo acontecimento, uma pessoa, uma cultura, um povo,um país, um continente. Os 
perigos de uma história única sobre África, pode ser entendido como a violência discursiva 
à produção da desmemória que corrompe a História dita oficial e provoca o que Anthony 
Appiah chama de processo de desonra: “a escravidão promoveu essa experiência de desonra 
aos africanos diante do mundo e de si próprios” (APPIAH, 2012, p.114). 
No campo das Ciências Humanas e Sociais, bem como o das Letras, cada vez mais 
pesquisas têm voltado as atenções para o continente africano, enquanto terreno fértil para 
os mais diversos estudos, entre eles, os concernentes a política, a história, a cultura, a 
economia, a sociedade. Esta abertura da ciência para novas abordagens investigativas 
permite não somente uma aproximação produtiva com os povos africanos, mas uma 
mudança epistêmica dos horizontes científicos de diversas áreas de conhecimento. No 
esforço de se instituir caminhos possíveis para a democratização e a liberdade de 
conhecimento acerca deste continente, as universidades brasileiras têm empenhado-se em 
construir e incentivar estudos sobre África, principalmente depois da criação das Leis 
10.639\03 e 11.645\08 5. Política, economia, história, cultura e literatura africanas são temas 
 
4 ADICHIE, Chimamanda. 2009, TEDx. O Perigo de uma história única. <Disponível em: 
www.youtube.com.br>. Acesso em 4 de junho de 2014. 
5 A Lei 10.639/03 altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases 
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática 
História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares. 
A Lei 11.645\08 modifica a Lei 10.639/03 tornando também obrigatório o estudo da história e da cultura dos 
http://www.youtube.com.br/
http://www.youtube.com.br/
15 
 
que passaram a integrar os currículos dos professores e dos alunos, tanto na educação básica, 
quanto nos níveis superior brasileiro. 
Detendo quatro títulos do prêmio Nobel de Literatura – o escritor Wole Sayinka, 
da Nigéria (1986), o escritor egípicio Naguib Mahfouz (1988), além dos sul-africanos 
Nadine Gordimer (1991), e J. M. Coetzee (2003) –, a literatura dos países africanos ainda é 
pouco difundida entre os leitores de literatura. Entrando, ao desconstruir os olhares 
estereotipados sobre os africanos, estas literaturas trazem outros horizontes de abordagem e 
interpretação acerca das relações humanas quando afirmam as potencialidades da memória 
e da palavra e que tornam a África um espaço composto por uma miríade de sistemas 
culturais. Ao considerarmos a literatura como importante campo simbólico, esta dissertação 
insere-se igualmente neste percurso, isto é, como fonte de investigação e de contribuição 
para uma nova visão das ciências sobre o continente africano e seus povos. 
No cerne destas questões, aportamos em Moçambique, um país localizado na África 
austral, banhado pelo oceano Índico, voltado para o oriente. Deste lugar pluricultural, com 
mais de 67 línguas diferentes, algo em comum aproxima-o da história do Brasil: a língua 
portuguesa. A partir dela, partilhamos conhecimentos, formas de expressão, nossas histórias, 
nossa literatura. Da experiência fecunda destas partilhas, deparamo-nos com uma das vozes 
mais significativas do país atualmente, a escritora moçambicana Paulina Chiziane. 
Nesse contexto, é importante lembrar que a escrita literária feminina, africana ou 
não, imergiu em uma zona de profunda exclusão (PADILHA, 2004, p.255), ocupando 
sempre uma posição subordinada, sendo a mulher, na organização patriarcal, privada de sua 
própria história e das histórias que modelizam sua própria experiência. A escrita de autoria 
feminina, particularmente em Moçambique, torna-se representativa para a discussão sobre 
a oralidade, além da representação de si dentro do território artístico, uma vez que configura 
 
povos indígenas brasileiros e suas colaborações para a formação da sociedade nacional, resgatando as suas 
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. 
16 
 
a relação que a mulher tem com o mundo e, consequentemente, com a sua forma de senti-
lo e de se posicionar perante a linguagem, a cultura e o poder dominante. 
O lugar de subordinação da mulher, por vezes discutido pela crítica, aparece, de 
certa maneira, em desacordo com outras formas de organização das sociedades africanas 
matrilineares6, como é o caso dos povos macua e dos bantus7, em Moçambique, nos quais o 
feminino possui papéis representativos (ALTUNA, 1983, p.256). Há, dessa forma um 
impasse entre as marcas patriarcais do ocidente e as matrizes africanas que trazem a mulher 
como indivíduo sacralizado por onde as etnias prolongam as linhagens de seus antepassados 
graças ao poder de gestação. Os processos de colonização interferem, portanto, nessas 
formas de subjetivação, uma vez que impõe modelos sociais “civilizadores” como forma de 
controle e de dominação. Por isso, ao se repensar o papel da mulher africana, não se pode 
deixar de considerar que a rasura, em tal plano simbólico, significa um duplo mergulho no 
silêncio (PADILHA, 2004, p.255). 
Ao ressignificar as produções discursivas e enfrentar os sistemas literários de 
imposição, a literatura de Paulina Chiziane surge, então, como uma literatura transgressora 
que assinala ao mesmo tempo memória e voz de resistência e que influenciará a outros 
escritores de seu país. Pensando o contexto pós-colonial de Moçambique, no qual os 
moçambicanos tiveram que reestruturar profundamente as relações sociais e culturais 
dentro de suas comunidades, Paulina aparece como uma das vozes femininas 
contemporâneas mais significativas, e a sua escrita é permeada de dilemas vividos pelas 
mulheres cotidianamente, o que constitui um terreno propício para o diálogo acerca das 
questões relacionadas ao gênero nas sociedades ditas pós-coloniais. 
As narrativas contemporâneas de Moçambique, a exemplo de escritores como Mia 
Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Lilia Momplé, além da própria Paulina, trazem a 
 
6 DIOP, Cheik Anta. A Unidade Cultural Da África Negra: esferas do patriarcado e do matriarcado na 
antiguidade clássica. Angola: Pedago, 2014. 
 
7 Grupos etnolinguísticos presentes, desde séc. V d.C., no território compreendido hoje como o país de 
Moçambique. 
17 
 
representação feminina a permear, cada vez mais, os enredos, mas com uma mudança 
significativa: de figuras coadjuvantes - remetendo a metáfora da grande Mãe África – as 
mulheres passam a ser escritas como personagens centrais, portando valores vanguardistas 
acerca de suas comunidades e reescrevendo o imaginário de suas tradições. Os escritores, 
de maneira geral, têm dado destaque ao deslocamento da personagem, como uma das 
formas de representar as mulheres em busca de outros espaços na sociedade. A viagem 
aparece, portanto, como uma busca de algo perdido ou adiado para a mulher. Essa fuga se 
concretiza pela passagem da personagem feminina por um posicionamento que se opõe ao 
espaço opressor. Nesses deslocamentos, percebemos que as questões de gênero ficam mais 
expostas e abertas a diferentes possibilidades, pois a construção dessa identidade se dá em 
processos mais difusos e plurais, visto que o sujeito que parte em busca de mudanças aparece 
dividido, fragmentado e cambiante. Este detalhe é interessante quando observamos que a 
identidade cultural de uma nação do ponto de vista das mulheres que a constituem não é 
uma maneira frequentemente analisada, mas porque não? 
Spivak assinala que as narrativas históricas são resultantes de processos discursivos de 
negociação8, para compreendermos toda uma situação cultural, social e política de um país, 
é preciso, portanto, que se permitao espaço para emergir vozes de histórias alternativas ao 
que é posto oficialmente como identitário. Em Eu mulher, por uma nova visão de mundo, 
testemunho escrito em 1992 e publicado em meados de 1994, por iniciativa da UNESCO 
em fase dos preparativos da Conferência Internacional sobre a Mulher, Paz e 
Desenvolvimento, Paulina Chiziane afirma: 
 
Coloquei no papel as aspirações da mulher no campo afetivo para que o 
mundo as veja, as conheça e reflita sobre elas. Se as próprias mulheres não 
 
8 Notas apresentadas pela professora e tradutora brasileira da obra de Spivak, Sandra Regina Goulart 
Almeida, no ensaio intitulado Apresentando Spivak, prefácio da obra Pode o Subalterno falar? UFMG, 2010. p, 
15. 
18 
 
gritam quando algo lhes dá amargura da forma como pensam e sentem, 
ninguém o fará da forma como elas desejam. (CHIZIANE, 1994, p. 6) 
 
A partir dos apontamentos tratados até então, vemos convergir três questões 
significativas que se inserem nas letras de Moçambique e que se afetam mutuamente: a 
tentativa de reescrever uma nação, repensando, criticamente, a história colonial que 
silenciou o projeto identitário e cultural de um povo; as novas formas de colonialidade 
interna ou externa que emergiram com a história mais recente, no período de pós-
independência; além de um novo sentido à visão feminina na literatura contemporânea de 
Moçambique. 
Assim, para mergulhar nos silêncios do eu feminino, a partir de uma literatura que 
migra da oralidade para a escritura, dimensionando tal silêncio e os movimentos para 
ultrapassá-lo, propomos o estudo da obra Niketche: uma história de poligamia (2004), de 
Paulina Chiziane. O desejo de ler e adentrar o texto da autora foi orientado pela percepção 
da singularidade do olhar feminino nos modos como os saberes do mundo se articulam em 
seu discurso ficcional. O corpus de análise foi escolhido a partir da experiência de leitura da 
narrativa que influenciou a perspectiva comparatista, as temáticas e o enredo versados nesta 
pesquisa. Abordar estas questões leva-nos diretamente ao problema a que se dispõe essa 
dissertação, do qual trataremos a seguir. 
 
 
19 
 
1.1 Problema 
 
Grande parte da fortuna crítica a respeito da oralidade africana é perpassada por uma 
figura primordial nas culturas orais: o contador de histórias. Esta figura mítica aparece em 
todos os estudos sobre a temática e é quase sempre representada como um homem mais 
velho designado para esta função, considerada de prestígio dentro dos grupos, que detêm o 
poder da palavra, e sua memória é uma espécie de biblioteca viva que resguarda as histórias 
que o antecederam. Um dos escritos introdutórios sobre a questão é o texto A Tradição Viva 
(1980), de Amadou Hampaté-Bâ. Nele, o autor vai traçando as formas de organização social 
das comunidades através da oralidade. Todavia, o espaço a que o autor explicita sua 
abordagem é marcadamente islamizado – por se tratar do Mali, o seu país – uma vivência 
que não se aplica a todos os outros contextos do continente africano. A figura da mulher 
que desempenha a função de contar histórias acaba, portanto, passando despercebido. 
Quando as contadoras de história assumem, na contemporaneidade, a função de 
escritoras e reivindicam, por meio da literatura, um espaço de significação subjetivo dentro 
de sua cultura, elas tornam a recorrer a sua própria ancestralidade como uma lógica singular 
e fundante de novas possibilidades tangíveis em relação à invisibilidade e ao silêncio. 
Relativizando fronteiras culturais em torno do feminino, a ancestralidade 
apresentada pelas escritoras africanas propõe encruzilhadas – a exemplo da nigeriana 
Chimamanda Adichie, da angolana Ana Paula Tavares, além da própria Paulina Chiziane, 
escritora a que trata esta dissertação. O lugar de invisibilidade e silêncio, culturalmente 
associado a mulher, a partir destas escritoras, passa a ser como um grande campo de 
significações discursivas a serem analisadas não em função de seus limites, mas como 
processo emancipatório. Não se trata de criações que apenas tentam reviver ou glorificar 
uma origem ancestre, mas, sim, um modo de ressignificar estas origens em detrimento do 
contexto contemporâneo, híbrido e aberto a multirreferencialidade. 
20 
 
Vale salientar que há uma recusa insistente das escritoras africanas de aceitarem suas 
produções rotuladas enquanto gêneros literários ocidentais, tal como romance, novela, 
conto, poesia, etc. Todas elas – não somente as mulheres, como também alguns autores - 
preferem nomear-se como contadores de histórias. No caso de Paulina Chiziane, a 
explicação dada por ela, em diversas entrevistas, é a de que não há, em sua cultura – a etnia 
chope -, a figura do romancista, nem há em sua língua tradicional uma palavra para 
romance. O que há, segundo a autora, são contadores de histórias e, por este motivo, ela 
prefere designar assim o trabalho que exerce com as palavras e as histórias que ouve. 
Esta posição ideológica em relação a literatura escrita pode ser considerada como um 
posicionamento subversivo tanto em relação aos rótulos europeus de classificação dos textos 
em gêneros literários – que, por vezes, inferiorizam as narrativas orais em detrimento das 
narrativas de registro escrito – quanto ao papel de contadores de histórias como uma 
herança tratada pela teoria, como abordado sabedoria passada apenas entre os homens de 
uma comunidade, excluindo o feminino deste percurso de continuação. 
O romance escolhido para este estudo, Niketche: uma história de poligamia (2004), 
não é uma exceção. Nele, as personagens femininas são as figuras centrais, assim como em 
grande parte dos escritos da moçambicana Paulina Chiziane. Não é mera coincidência, 
portanto, que as mulheres de suas histórias desejem falar de experiências mais íntimas, de 
impressões, emoções e sentimentos. A temática envolvendo a representação de si mesma 
está posta. Ao considerarmos a posição engajada da autora, é possível apontar a sua produção 
literária como uma linha de fuga; um espaço simbólico que faz emergir as angústias 
vivenciadas pelas mulheres no contexto de Moçambique. 
A partir deste cenário, é de extrema importância, então, problematizarmos o papel 
da mulher dentro da tradição oral, além de analisarmos como esta oralidade, sobretudo, os 
seus recursos expressivos, apresentam-se enquanto processos estilísticos na obra de Paulina 
Chiziane. 
 
21 
 
1.2 Hipótese 
 
Profundamente marcada pela oralidade, a literatura moçambicana traz a dimensão 
gestual da contação de histórias como uma de suas matrizes fundamentais de significação. 
A proposta de se pensar a oralidade adentrando a literatura escrita de Paulina Chiziane, 
conduziu-nos, pela própria natureza do texto da autora, a ir em busca de uma oralidade no 
feminino. 
Vê-se que entre a palavra escrita e a voz, em meio a narração, cada uma delas possui 
seus próprios recursos específicos de adequação, tradução e adaptação, de conteúdo, a partir 
do contexto pelo qual se enunciam. Há ainda o que Paul Zumthor (2000) vai tratar como 
poética da oralidade. Comparando-a com as práticas escritas, o estudioso aborda a poética 
do oral como algo que jamais pode ser econômico, o que nos obriga a adotar um exercício 
interdisciplinar de investigação. O autor aponta ainda as diferenças entre a experiência de 
leitura individual em contraponto a um contexto de contação, o que insere, no contexto 
narrativo, a necessária e intensa presença de um corpo vivo em performance, o que, na 
leitura, ficaria na “ordem do desejo”. 
A partir de um modo particular de narrar, operado por Paulina Chiziane no romance 
Niketche: uma história de poligamia (2004), é criado um discurso oral sob a performance de 
uma contadora de histórias que privilegia o feminino em sua narrativa. Hipotetiza-se, aqui, 
por conseguinte, que existam marcas estilísticaspróprias da oralidade no corpus escolhido, 
além de lógicas fundantes de uma estética que dialoga com as criações artísticas de outras 
mulheres escritoras contemporâneas do continente africano. 
 
 
 
 
 
22 
 
 
1.3 Objetivos 
 
1.3.1 Geral 
 
Objetiva-se, com esta dissertação, investigar o romance Niketche: uma história de 
poligamia (2004) analisando a forma sob a qual o corpo da narração articula as três categorias 
que desempenham um importante papel para a sensibilidade e a percepção do oral no texto 
escrito: a voz, a letra e o gesto. 
 
 
1.3.2 Específicos 
 
A fim de acrescer ao objetivo geral proposto, intenciona-se: 
 
 rastrear como as tradições orais se ramificam na literatura contemporânea de 
Moçambique; 
 examinar as relações entre oralidade e escritura na obra de Paulina Chiziane; 
 compreender a participação feminina na historiografia literária moçambicana; 
 discernir os modos como o texto literário da autora traz a voz feminina para um 
espaço de poder em contraposição a um contexto de silêncio cultural, social e sexual 
sobre a mulher; 
 propor o diálogo entre o romance Niketche e outras expressões artísticas 
performáticas, tais como o teatro e o cinema moçambicano; 
 investigar como o romance, gênero menos recorrente em África, passa a existir no 
cenário literário de Moçambique. 
 
23 
 
 
1.4 Metodologia 
 
 
 Esta pesquisa, tendo em vista o objeto de estudo e a problemática apresentada, 
desenrola-se dentro do amplo espectro das teorias de cunho pós-colonial como base 
metodológica, uma vez que é necessário o esclarecimento sobre o denso emaranhado 
histórico e cultural que permeia a literatura de Moçambique. 
 Apesar dos estudos concernentes às literaturas orais apresentarem um manancial 
interminável de teorias – a fortuna crítica atém-se, sobretudo, ao contexto da Europa 
Medieval e de esquemas formais sobre a narrativa, entre elas: o conto, a fábula, etc. – Vê-
se, a partir do Niketche, a possibilidade de desenvolver um estudo analítico de abordagem 
para além da estética formal do gênero proposto, o que coincidiu, em certa medida, com a 
atual abertura dos estudos literários em direção a uma ciência interdisciplinar que deixam 
margem para empréstimos de outras áreas. Interessa-nos, portanto, desenvolver um discurso 
analítico que revisitasse a possibilidade de diversos enfoques, entrelaçando a crítica literária 
aos estudos culturais, antropológicos, históricos e etnográficos. 
 Os estudos pós-coloniais nada mais é do que uma ramificação teórica ligada aos 
Estudos Culturais desenvolvidos ao longo da segunda metade do século XX, na Inglaterra 
e nos Estados Unidos. Dentro das proposições dessa abordagem, deparamo-nos com as 
teorias acerca do hibridismo cultural relativas ao contexto sociocultural do colonialismo de 
Homi K. Bhabha. Pensando o aporte de Bhabha pelo viés literário, encontramos a 
prerrogativa de que as literaturas das antigas colônias se pautam numa constante permuta 
com as antigas metrópoles através de um jogo discursivo de subversão, desconstrução e 
carnavalização. Sobre essa questão, comenta Pires Laranjeira (1985): só pelo fato de ser 
escrita em línguas europeias, a literatura africana deriva das sequelas do colonialismo 
(LARANJEIRA, 1985, p.10). 
24 
 
 O panorama da literatura moçambicana atual, a exemplo de Ungulani Ba Ka Khosa, 
Suleiman Cassamo, Aldino Muianga, Mia Couto e a própria Paulina Chiziane – estes dois 
últimos com uma maior projeção dentro e fora do país -, tem mostrado uma forma de 
representação intercultural que passa a não ser somente um descrição externa, mas sim uma 
tentativa de representação. Sendo assim, torna-se essencial encarar a criação artística tanto 
por seu valor estético, quanto por sua forma de reprodução do substrato implícito em seu 
contexto cultural particular. 
 
A ruptura operada pela literatura pós-colonial e a apropriação do idioma 
europeu para desenvolver a expressão imaginativa na ficção aconteceram 
após investigações e reflexões sobre o mecanismo do universo imperial, o 
maniqueísmo por ele adotado, a manipulação constante do poder e a 
aplicação do fator desacreditador na cultura do outro. (BONICCI, 1998, p.8) 
 
 
 Nas primeiras páginas de O local da Cultura (1998), Homi K.bhabha sinaliza-nos o 
quanto a pós-modernidade é marcada, entre outras características, pelo fato das fronteiras 
eurocentradas perderem sua exclusividade e cederem lugar a um alargamento das fronteiras 
enunciativas, abrindo espaço para outras vozes e outras histórias, muitas vezes dissoantes e 
mesmo dissindentes (BHABHA, 1998, p.24). As palavras de Bhabha são importantes para 
ressaltar a preocupação e o cuidado que devemos ter, a partir de um lugar de fala não 
africano, ao tecer uma análise crítica, sobre o que é posto como tradição dentro da teia 
cultural de Moçambique, e até que ponto se pode falar de modernidade e pós-modernidade 
nos espaços pós-coloniais, pensando aqui, também, os questionamentos propostos pelo 
teórico africano Anthony Appiah em Na casa de Pai (1997), e que fazem parte também das 
problemáticas de definição em torno da literatura moçambicana. 
 
Estas histórias não têm nada de ficção. E se têm, de certeza, não é o narrador 
que ficciona. As histórias são aquelas, tal e qual são contadas à volta da 
lareira, numa noite amendoada de estrelas. As pessoas são aquelas e os 
25 
 
lugares também. E as tradições, também, são essas. Quero dizer, essas 
histórias não são minhas, não foram inventadas por mim. Elas resultam do 
que as pessoas contam-se, entre si, e que, provavelmente, tenham passado 
de boca em boca. Elas resultam duma leitura atenta das vivências e das 
crenças (ROQUE, 2016, p.13)9. 
 
Nesta citação, temos a posição de um autor moçambicano sobre a questão em torno 
da ficcionalidade. Por se tratar de narrativas advindas da oralidade, sendo a oralidade tratada 
como verdade, há um abismo intransponível entre o real e a ficcionalidade, uma vez que, a 
partir da fala dos escritores/contadores de histórias, uma coisa não é possível sem a outra. 
 A partir dessas colocações, além do foco proposto por Bhabha, observamos que o 
romance contemporâneo, em África, segue o sentido inverso do paradigma romanesco 
“hegemônico” ocidental das últimas décadas, que foge à tradição oral, como Walter 
Benjamim prevê no ensaio O narrador (1983). O nascimento do romance, como analisou 
Benjamin, decreta a morte da arte de narrar, pois “o lado épico da verdade, da sabedoria, 
está agonizando”. Todavia, a contemplação da memória como o objeto que move a 
narrativa, a experiência como matéria-prima para a criação literária, a alteridade como 
princípio poético e a influência da tradição oral na literatura moçambicana contradiz a tese 
de Benjamim na qual a figura do contador ou da contadora de histórias – como, no caso, 
se intitula Chiziane, autora do romance escolhido como corpus desta pesquisa – sofre um 
processo de dissolução com o advento do romance moderno. 
 Nesta seção, por conseguinte, apresentam-se e explicam-se o caráter e os 
procedimentos adotados na pesquisa enquanto argumento desencadeador de reflexões 
acerca da oralidade no romance Niketche. O método empregue, com base nas teorias 
expostas até então, percorreu vias singulares graças a própria natureza do corpus: sua 
 
9 Resposta do autor Moçambicano Carlos Rofino Roque quando indagado sobre as suas influências literárias 
com relação a prosa romanesca. A relação de autoria é muito parecida com as concepções apontadas por 
Paulina, o que pode demonstrar de certo modo, uma forma desconstruída quanto a centralidade do poder do 
autor na criação literária. Revista Literatas. Edição 64. Junho de 2016. Fonte: < http://literatas.blogs.sapo.mz>. 
Acesso em 15 de junho de 2016, às 11h45min. 
 
http://revistaliteratas.blogspot.com/
26 
 
potencialidade performática. A escolhapor tratar da questão em três grandes eixos temáticos 
- a voz, o gesto e a inscritura – representam a característica expressa pelo texto de Paulina 
Chiziane. 
Capítulo de carácter introdutório, A Voz, traz um panorama geral acerca da tradição 
oral africana a partir do apanhado teórico sobre cultura da narração no ocidente, o valor da 
palavra oral e o papel do narrador africano. Detivemo-nos às teorias sobre o narrador e a 
narrativa como matéria-prima de experiência e ancestralidade propostas por Hampaté-Bâ 
(1980), Walter Benjamin (1983) e Jan Vansina (2010). Em seguida, apresentamos como essa 
tradição oral se ramifica em Moçambique e na produção literária de Paulina Chiziane. 
Consideramos este capítulo necessário para melhor situar o tecido textual moçambicano, 
uma vez que a história, a cultura, as etnias e os fatores geográficos de Moçambique ainda 
são informações pouco compartilhadas, mas que se fazem constantemente presentes no 
lugar de enunciação da literatura que é produzida. Para tanto, utilizamos o conceito deste 
teóricos acerca da oralidade em diálogo com as leituras críticas de Pires Laranjeira (1996) e 
Ana Mafalda Leite (2012). 
No segundo eixo, intitulado O Gesto, propomos uma análise textual dos artifícios 
enunciativos da escrita literária fundamentada na oralidade, com o intuito investigativo de 
perceber a maneira pela qual o corpo do contador se mostra enquanto recurso estilístico do 
romance de Paulina Chiziane. Este é um dos passos mais significativos que o texto dá - 
dentro de nossa análise - em direção aos seus múltiplos jogos de significação. Nesse capítulo, 
percorremos teorias em torno das performances, entre elas os ensaios críticos do professor 
Zeca Ligiero (2011), Terezinha Taborda Moreira (2009) dialogando com a teoria elementar 
de Paul Zumthor (2000), em seu estudo mais recente sobre performance, recepção e leitura. 
Trata-se de uma proposta ousada, pois adota a sensibilidade e a percepção poética – 
seguindo os passos das ideias de Zumthor - como parte do método analítico. 
No terceiro e último capítulo intitulado A Escrita, indagamos o confronto 
oral/escrito em observação com a atual ficção moçambicana. O romance aparece-nos como 
27 
 
imenso laboratório da narrativa e vem ganhando cada vez mais espaço na história da 
literatura moçambicana. Por ser um gênero menos recorrente em África, foi preciso discutir 
e problematizar o papel deste gênero e suas implicações fenomenológicas na estética literária 
contemporânea do país. Abordar as tendências de uma determinada literatura, induz-nos, 
de alguma forma, a assumirmos o recinto criativo da palavra como um espaço do qual se 
pode reconhecer as marcas da vitalidade, da pluralidade, das diversidades estéticas e 
temáticas (NOA, 2001, p. 21). A participação feminina na composição destas novas 
narrativas é, igualmente, um fator significativo, de modo que essa escrita rastreia formas de 
subversão e de resistência frente ao discurso oficial. Para tanto, dialogamos, mais uma vez, 
com os escritos de Ana Mafalda Leite (2012), além dos críticos e ensaístas Laura Cavalcante 
Padilha (2002) e Francisco Noa (2001). 
Dado o pouco conhecimento que geralmente se tem dos escritores moçambicanos, 
optou-se também por trazer, ao longo do corpo do texto, trechos de algumas obras de modo 
a criar um diálogo indireto - ainda que ele não tome completamente o foco da dissertação 
- com outras produções literárias do país. Além disso, compreendeu-se também a 
necessidade de se compartilhar o enredo do romance, junto com uma breve explanação, 
mais adiante, acerca do percurso biográfico da autora. 
Por fim, compondo o anexo dessa pesquisa, apresentamos a transcrição de uma breve 
e exclusiva entrevista concedida a nós pela escritora Paulina Chiziane em abril de 2017, 
durante a XII Bienal Internacional do Livro no Ceará. 
 
 
28 
 
 
1.4.1 A obra 
 
 
 Niketche10: uma história de poligamia, o quarto romance da autora, publicado em 2002 
pela Editora Caminho em Portugal, e em 2004, no Brasil, pela Cia. Das Letras, Num relato 
breve, o romance conta a história dos infortúnios de uma mulher casada, e sua vida solitária 
ao lado do marido ausente, e de outras tantas mulheres, amantes de seu marido que 
encontram-se em situações semelhantes à sua. De modo emblemático, a história traz as 
diferenças histórico-culturais do feminino no espaço ficcional moçambicano, que encena 
as contradições culturais que demarcam as fronteiras do país. 
 Narrado em primeira pessoa, a personagem protagonista chama-se Maria Rosa ou, 
para muitos, apenas Rami. Uma mulher moçambicana que vive uma vida baseada nos 
preceitos cristãos do catolicismo. Ela é casada com Tony, um alto funcionário da hierarquia 
policial. Constantemente só, Rami empreita uma busca para entender as ausências de seu 
companheiro e acaba por descobrir vários relacionamentos extraconjugais mantidos em 
silêncio por ele. Estas outras mulheres são muitas e estão espalhadas por toda Maputo, 
configurando-se assim, uma poligamia não-declarada. 
 Em quarenta e três capítulos, a protagonista conduz a narração e o tempo da história 
percorre dias infinitos. No percurso de sua narração, deparamo-nos com as diferenças 
culturais presentes no país, as marcas de colonialidade, as representações sociais da mulher 
e os diferentes arranjos de casamentos polígamos e monogâmicos. O casamento é uma 
temática frequentemente abordada nas histórias de Paulina. Suas protagonistas, de certa 
maneira, sempre deixam marcas de insatisfação sexual e política em relação ao matrimônio, 
seja ele polígamo ou não. A maneira como a autora constrói essa crítica literariamente se dá 
 
10 Dança feminina que envolve os rituais de amor, sedução e erotismo presentes nas tradições dos povos da 
Zambézia e de Nampula, ambos localizados na parte norte de Moçambique. 
29 
 
por meio do tom confessional dos monólogos que emergem na fala das personagens 
femininas e, sobretudo, dos relatos de experiência das mulheres mais velhas que aparecem 
na narrativa. 
No caso de Rami, essa ancestralidade feminina floresce no discurso de suas rivais, de 
sua sogra, de sua mãe e de suas tias. Ao dialogarem umas com as outras, inúmeras violências 
cotidianas aparecem banalizadas e incorporadas às novas relações instituídas. O casamento 
cristão, supostamente moderno, irrompe em marcas antigas de dominação patriarcal. Rami 
guia-nos pela complexa realidade social de seu país e sua nação passa a ser narrada por si 
com um misto de estranhamento e nostalgia. Os rituais de magia, iniciação sexual da mulher 
e purificação sexual das viúvas aparecem descritos com minúcia pela protagonista. Nesta 
descoberta, instituições ocidentais e ritos tradicionais se entrelaçam na voz das personagens 
e nos faz tecer significados múltiplos ao que chamamos de feminino. A escritora, com 
grande sensibilidade, constrói o seu mosaico narrativo a partir da recuperação de histórias 
orais ligadas a feminilidade, o que atribui ao seu romance leveza e lirismo. A narrativa 
explora, portanto, a tematização do signo feminino como forma de apontar para a 
desconstrução de uma visão hegemônica e opressiva quanto ao lugar social da mulher em 
Moçambique. 
 
 
30 
 
 
1.4.2 A autora e o seu tempo 
 
Eu preciso do meu espaço, 
é por isso que escrevo. 
Em primeiro lugar eu escrevo para existir, 
 eu escrevo para mim. 
Eu existo no mundo e 
 a minha existência 
repete-se nas outras pessoas. 
E neste caso é um livro 
 que depois será lido. 
 
Paulina Chiziane 
 
 
Faz-se necessário apresentar uma breve explanação sobre a vida e a obra da 
escritora moçambicana Paulina Chiziane, uma vez que, apesar da intensa produção literária, 
seus textos ainda são pouco difundidos no Brasil. 
Paulina nasceu no distrito de Manjacaze, província de Gaza, em 4 de Junho 1955. É 
uma escritora moçambicana,que apesar de ser identificada como romancista, nunca 
assumiu esta identidade do gênero literário e intitula-se como uma contadora de histórias 
longas. Em entrevista, quando indagada sobre o fato de ser a primeira romancista de seu 
país, Paulina declara: 
 
Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher moçambicana a 
escrever um romance, mas eu afirmo: sou contadora de histórias e não 
romancista. Escrevo livros com muitas histórias, histórias grandes e 
pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira 
escola de arte (CHIZIANE, 2010, p. 2)11. 
 
 
 
11 CHIZIANE, Paulina. Entrevista. Fonte:<kuphaluxa.blogspot.com.br/2010/05/literature-as-andorinhas-
de-paulina.html.>. Acesso: 25 de janeiro de 2016 às 14h10min. 
http://setorlitafrica.letras.ufrj.br/mulemba/%E2%80%9D
http://setorlitafrica.letras.ufrj.br/mulemba/%E2%80%9D
31 
 
Iniciou os seus estudos em Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, em 
Maputo, mas não chegou a concluí-los. Seu envolvimento com as letras, no entanto, 
ultrapassou a esfera da formação acadêmica e passou a fazer parte de sua vida quando, em 
1984, começou a publicar seus contos na imprensa de Moçambique. 
Na juventude, participou ativamente da cena política de seu país como militante 
da FRELIMO12. Durante a guerra de desestabilização, Paulina serviu a Cruz Vermelha, o 
que fez com ela pudesse vivenciar de perto os horrores que uma guerra produz. Deixou, 
todavia, de se envolver na política para se dedicar à escrita e a publicação de seus escritos. 
Entre as razões da sua escolha pelo afastamento estava a desilusão com as diretivas políticas 
do partido FRELIMO no período de pós-independência, sobretudo em termos de políticas 
ocidentais e ambivalências ideológicas internas, quer pelo que diz respeito às políticas 
de mono e poligamia, quer pelas posições de políticas econômicas em relação à liberdade e 
as condições materiais das mulheres de diferentes grupos étnico-linguísticos de 
Moçambique. 
Paulina foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz em 2005 em reconhecimento ao seu 
trabalho de escrita militante pela justiça e pela igualdade, além disso, foi nomeada uma das 
mil mulheres pacíficas do mundo, iniciativa promovida pelo Movimento Internacional da 
Paz, One Thousand Peace Women13. 
Sobre sua produção literária, depois da independência de Moçambique, Paulina 
publica o seu primeiro livro, Balada de Amor ao Vento (1990) que é apontado pela crítica 
como o primeiro romance de uma mulher moçambicana. Na sequência, os livros Ventos do 
Apocalipse, concluído em 1991, só vem ser publicado em 1999, em Portugal, assim como o 
Sétimo Juramento (2000) e o premiado14 Niketche: uma história de poligamia (2002). Paulina 
 
12 FRELIMO é a sigla para Frente de Libertação de Moçambique. Trata-se de um partido político oficialmente 
fundado em 25 de Junho de 1962, com o objetivo de lutar pela independência de Moçambique do domínio 
colonial português. O primeiro presidente do partido foi o Dr. Eduardo Mondlane, um antropólogo que 
trabalhava na ONU. Desde a independência, em 25 de junho 1975, até o presente momento, todos os 
presidentes eleitos são representantes deste partido. 
13 Organização suíça que proporciona a visibilidade de mulheres que promovem a paz ao redor do mundo. 
14 Prêmio José Craveirinha, 2003. 
http://pt.wikipedia.org/wiki/Monogamia
http://pt.wikipedia.org/wiki/Poligamia
32 
 
também publicou contos, roteiros para o cinema, biografias e histórias mais curtas, tais 
como: O alegre Canto da Perdiz (2008), As heroínas sem nome – memórias de guerra e paz 
das mulheres em Angola (em parceria com a escrita angolana Dya Kassembe, 2008), As 
Andorinhas (2009), Quero ser alguém – histórias de crianças soropositivas (2010), Mão de 
Deus (co-produção com Maria do Carmo da Silva, 2012), Por quem vibram os tambores do 
além – Biografia do curandeiro Rasta Pita (2013) e Ngoma Yethu – O Curandeiro e o Novo 
Testamento (2015) o mais recente livro da escritora, elaborado conjuntamente com a 
curandeira Mariana Martins. 
Seus textos avulsos aparecem publicados em diversas antologias em Moçambique, 
Portugal e Brasil. Atualmente, a autora participa de conferências de arte e literatura por 
todo o mundo e sua escrita, que perpassa diversos gêneros literários, continua a ser adaptada 
para bailados e peças teatrais em Moçambique, Portugal e Brasil. 
 
 
33 
 
 
 
 
 
 
 
Figura 2 – Paulina Chiziane 
Por Douglas Freitas15
 
 
15 Divulgada em http://homoliteratus.com/paulina-chiziane-uma-voz-feminina-em-africa/. Acesso: 13 de 
janeiro de 2015. 
http://homoliteratus.com/paulina-chiziane-uma-voz-feminina-em-africa/
34 
 
[capítulo dois] 
A Voz 
 
 
 
Figura 2 – Momentos de Festa. Malagatana, 1969. 
 
 
Ouve-se, de tempos imemoráveis, casos de homens condenados à morte que 
puderam se salvar contando histórias. O poder da voz e a astúcia de quem narra aparece 
eternizado pela tradição literária numa das vozes femininas mais poderosas do mundo árabe: 
a narradora Sherazade. Uma mulher que escapa da morte entregando-se ao ato de contar. 
Num assalto a memória, esta contadora ganha o direito à vida pela fina lâmina da palavra. 
Este capítulo destina-se a percorrer os caminhos da voz, observando a arriscada e sedutora 
relação entre o tecer narrativo e o fiar da vida.
35 
 
 
2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATO DE NARRAR 
 
 
 
A narração, desde os povos mais antigos, sempre pertenceu a uma esfera ritualística. 
A narração nasce da memória e da partilha com o outro. É um convite. Um ato que se faz 
em conjunto. Uma abertura para o sagrado. No princípio era o verbo e o Verbo estava com 
Deus, e o Verbo era Deus16. O nascimento do universo começa na palavra e na voz do 
narrador. Contar o céu, o mar, a terra, as chuvas, a natureza, a savana, a floresta e o deserto. 
Cantar os antigos ensinamentos. Nomear o mundo. 
Contar histórias até o amanhecer foi uma prática comumente celebrada e 
disseminada na época dos califas abássidas17. Segundo Malba Tahan, na antiguidade havia 
narradores por profissão em todo o Oriente, em cada uma das aldeias árabes. Quem sabe 
por isso narrações infinitas se fazem presentes nas histórias de As Mil e Uma Noites. Na 
forma de seduzir e entreter os ouvintes, Sherazade, assim como os personagens que existem 
no instante de sua narração, conscientemente pretendem ganhar tempo, adiar a morte, o 
que nos leva a verificar os artifícios de uma narração primordial além dos seus efeitos; que 
afasta o homem do desfecho definitivo da sua existência. Para um mestre das artes de narrar, 
nem mesmo a morte, o mais profundo embate da experiência individual, representa um 
impedimento. Ao abranger em si a complexidade da narrativa, seu corpo torna-se 
gigantesco. Sua existência real transforma-se em algo sublime. 
Sobre a origem divina da palavra, Amadoul Hampaté-Bá, em Tradição Viva, traz a 
história da gênese do mundo a partir do olhar de uma comunidade do Mali. Nela, Maa 
Ngala 18 cria Maa, o Homem, o ser humano que, diferentemente dos outros seres, possuía 
 
16 Bíblia Sagrada. Novo Testamento, Evangelho de João 1:1. 
17 O Califado Abássida foi fundado pelos descendentes do profeta islâmico Maomé, em 750 d.C. 
18 Maa Ngala pode ser entendido como a força criadora, o deus do universo. Um ser autocriado que representa 
a síntese de tudo o que existe e ninguém pode situá-lo no tempo e no espaço. Segundo Hampaté Bâ, aqueles 
considerados grandes depositários da herança oral são chamados de tradicionalistas. Em algumas etnias como 
36 
 
uma centelha divina dentro de si, a herança espiritual da força que o criou: o dom da mente 
e da palavra. 
Como provinha de Maa Ngala para o homem, as palavras eram divinas 
porque ainda não haviam entrado em contato com amaterialidade. Após 
o contato com a corporeidade, perderam um pouco de sua divindade, mas 
se carregaram de sacralidade. Assim, sacralizada pela Palavra divina, por sua 
vez a corporeidade emitiu vibrações sagradas que estabeleceram a 
comunicação com Maa Ngala. [...] Mas toda essas forças, das quais é 
herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele. Ficam em estado de repouso 
até o instante em que a fala venha coloca-las em movimento. Vivificadas 
pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar. Numa primeira fase, 
tornam-se pensamento; numa segunda, som; e numa terceira, fala. A fala 
é, portanto considerada como a materialização, ou a exteriorização, das 
vibrações das forças. (HAMPATHÉ-BÂ, 1980, p. 185) 
 
Aos nossos olhos, a perspectiva africana da narração mostra-se como algo mais 
místico que epistêmico, entretanto, isso nos interessa profundamente. A figura do velho 
griô19 presente em todo o continente africano aparece em mil facetas: feiticeiro, sacerdote, 
rei, chefe, ferreiro. Todas estas atribuições apontam para a voz do contador como uma 
espécie de poder. Ferramenta para a criação da história e a lapidação das palavras. 
Certamente, aquele que é designado para exercer esta função carrega a memória de sua 
comunidade. Seu itinerário é reforçar laços. Continuar a história. Talvez emprestar os 
ouvidos às palavras do contador seja como quem recebe uma bênção divina e a narração 
 
os bambaras e fulanis, o termo escolhido para expressar esta função seria traduzido por “conhecedor”. Para 
aprofundamentos no tema, consultar HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (coord.) 
Metodologia e Pré-História da África, História Geral da África. Brasília: Unesco, 2010. v.1. 
19 Optamos pelo uso de griô por ser o termo mais difundido no Brasil. Ele representa uma variação da palavra 
de origem francesa griot. Este termo designa a função de poeta, músico, comunicador social, mediador da 
transmissão oral, dos saberes e fazeres da tradição das nações, famílias e grupos culturais africanos. Esta 
definição que nos parece pertinente foi sistematizada por Líllian Pacheco, idealizadora da Pedagogia Griô e 
coordenadora do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô, a partir da discussão coletiva de Griôs e mestres da 
tradição oral e associações culturais, os quais elaboraram um projeto de lei que disponha sobre a proteção e 
fomento à transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral no Brasil: o Projeto de Lei nº 1.786, de 2011, 
também conhecido como Lei Griô. 
37 
 
seja, de alguma forma, uma maneira de abençoar os ouvintes. A fala, como infere o próprio 
Hampaté-Bâ, torna-se o agente ativo da magia africana. 
O narrador, nesta perspectiva, permeia uma visão cosmogônica do universo e da 
natureza. A imagem onírica da palavra ligada aos elementos da terra e da água, das marés, 
das chuvas e dos rios representa fluxo, movência, ciclo e renovação. A relação que une o 
narrador africano com o seu ofício rústico pode ser, de certa maneira, percebida nos 
apontamentos de Walter Benjamin no ensaio, O Narrador. Nele, o autor traz a figura do 
narrador como uma espécie de artífice da fala e ressalta ainda que as pessoas que detinham 
a experiência na arte de narrar exerciam socialmente funções ligadas à natureza, o que fez 
o autor dividir os tipos de narrador em duas famílias: 
 
A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes 
esses dois grupos. Quem viaja tem muito o que contar, diz o povo. E com 
isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também 
escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem 
sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos 
concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, 
podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário e o outro 
pelo marinheiro comerciante. (BENJAMIN, 1987, p.199) 
 
 
As considerações sobre a tradição oral na cultura europeia e os narradores 
arquetípicos, em O Narrador, são construídas a partir de uma análise em torno da obra do 
escritor russo Nikolai Leskov, que tem sua produção literária voltada ao universo oral de 
seu país e é tomado por Benjamin como um narrador ideal que estaria em vias de extinção 
no mundo moderno. A partir de sua ótica, Walter Benjamin apresenta o narrador em 
contraponto à figura prototípica do homem moderno que desdenha de suas tradições e 
busca o completo domínio da natureza. Para o autor, o ato de narrar é colocado como um 
dom artesanal de comutar experiências coletivamente, por meio da comunicação do 
contador com seus ouvintes. A figura dos narradores arquetípicos da tradição europeia é 
apresentada por Benjamin a partir desses dois grandes grupos: o camponês sedentário e o 
38 
 
marinheiro comerciante. O desenvolvimento de uma rede de transmissão oral europeia e o 
aperfeiçoamento dessa prática pode ser atribuído ao sistema corporativo medieval que 
permitiu a interação entre os grupos e a difusão das histórias. Todavia, narrar, de modo 
algum, seria um produto exclusivo da voz. O contador de histórias compartilha com os 
interlocutores um profundo conhecimento acerca de suas raízes locais, além de referências 
sobre lugares distintos num acervo de memórias múltiplas assimilada à sua própria vivência. 
A narrativa nunca encerra em si mesma. Narrar é um ofício artístico e o grande transmissor 
da narrativa é, antes de tudo, o corpo humano. O lugar no qual as percepções e a 
sensibilidade do Ser concebem significâncias ao mundo e suporta seus efeitos. 
A narrativa floresce num meio artesanal; é lapidada sem pressa e sem pretensões de 
entregar-se inteiramente. Por isso, ao pensarmos na oralidade e em tudo o que ela representa, 
precisamos compreender a palavra falada não apenas como um meio de comunicação 
cotidiano entre as pessoas, mas também como uma espécie de preservação da herança do 
conhecimento humano. Grande parte das civilizações africanas são civilizações apoiadas no 
valor da palavra falada, onde a ligação entre o homem e seu discurso é mais fidedigna. 
Compenetrar-se num mundo oral, em que “dizer” é o mesmo que “ser”, parece, a princípio, 
uma atitude aparentemente desajustada para os acostumados ao mundo da mentalidade 
cartesiana, repleto de evidências escritas. Adentrar a um tema que envolve a tradição oral 
africana requer novas atitudes investigativas, mais lentas e fruídas, além de um contínuo 
retorno a fonte, uma vez que a memória coletiva das civilizações está contida no tecido oral 
das culturas. Por isso, primeiramente, devemos nos emaranhar nos modos de pensar da 
sociedade oral antes de tentar, a qualquer custo, compreender e interpretar suas tradições a 
partir de um ponto de vista alheio a sua forma de conduta. 
Parte da existência de quem narra instala-se no conteúdo da narrativa que flui de 
sujeito a sujeito por milênios, transmitido sempre de boca a ouvido. Uma das funções 
primordiais de um mestre contador é a de ponte entre o passado e o presente, e é sob a 
perspectiva de intercâmbio de experiências que as histórias coletivas formam um conjunto 
39 
 
virtual e conseguem ser conservadas como a memória viva da comunidade. É preciso ainda 
complementar a ideia acerca do narrador africano, uma vez que a imagem do griô em África 
está vinculada a algo sacralizado e a comunidade lhe atribui poderes místicos incontestáveis. 
Tratando das funções desempenhadas pelo narrador, Frederico Fernandes, em A voz e o 
sentido: poesia oral em sincronia, afirma: 
 
O narrador, ao atualizar o arquétipo, desempenha uma tripla função na 
cultura oral: narra, é o performer sensível ao auditório, já que incorpora a 
voz da comunidade; ouve, troca experiências com outros narradores e 
absorve as histórias que lhe contam; e cria, torna-se o responsável por 
construir um sentido para o que ouviu, bem como por atualizar isso com 
significantes e significados diferenciados.(FERNANDES, 2007, p. 56) 
 
Para a tradição oral africana, a matéria e o espírito são indissociáveis. Essa visão 
particular em torno do real poderia se configurar como uma filosofia africana, visto que, a 
arte, a espiritualidade, a ciência, a historicidade dos sujeitos e todos os aspectos de sua 
existência aparecem relacionados entre si e demonstram modos singulares de pensar o 
mundo. O produto dessa tradição é, por conseguinte, a constituição do homem, de sua 
humanidade e transcendência. Mesmo não havendo a sistematização do conhecimento nos 
moldes do cânone ocidental, a responsabilidade com a palavra e a valorização do ato de 
narrar evidencia o poder da memória no legado cultural africano continuamente 
reelaborado como herança coletiva de suas nações. 
Há ainda uma indagação fundamental para a essência destes apontamentos: afinal, o 
que pode ser compreendido como tradição oral? Não é simples tentar responder a esta 
questão. Devido à pluralidade de aspectos relativos à oralidade, é delicado agarrar-se a um 
conceito que englobe todos os seus sentidos. Uma definição mais abrangente propõe que a 
tradição oral pode ser compreendida como uma mensagem transmitida de uma geração 
para outra, distinguindo-se da tradição escrita em seu caráter verbal e em sua forma de 
transmissão. Deste modo, o que pode ser concebido como corpus pertencente à tradição 
oral inclui diversas formas de agenciamentos que vão muito além do testemunho e do 
40 
 
depoimento, tanto vivenciado quanto inconsciente. Segundo aponta Jan Vansina (2010)20, 
tal formulação não implica nenhuma limitação diante do que se pode apreender enquanto 
tradição oral, dado que pode se incluir crônicas e genealogias de sociedades segmentárias 
que conscientemente pretenderam descrever acontecimentos passados e são fontes 
fundamentais para a história das ideias e dos valores contemporâneos da coletividade. 
Para nos auxiliar nos percursos deste estudo que se seguem, fica uma abertura para 
o universo da voz ancestral, na fala de um griot mandinka21 que diz: 
 
As palavras muito antigas 
São como as sementes 
Você as semeia antes das chuvas 
A terra é ressecada pelo sol 
A chuva vem molhá-la 
A água da terra penetra nas sementes 
As sementes se transformam em plantas 
Então, desenvolvem as espigas de milho 
Assim você, a quem acabo de dizer as Palavras Muito 
Antigas, 
Você é a terra 
Eu planto em você a semente da palavra, 
Mas é preciso que a água de sua vida penetre na semente 
Para que a germinação da palavra tenha lugar. 
(CAMARA, 1982, p.8) 
 
 
 Nos estudos africanos das mais diversas áreas do conhecimento, a palavra dos griôs 
terá sempre valor insubstituível, mesmo que essa oralidade não tenha sido ainda 
suficientemente explorada em razão de seu complicado exercício de interpretação. Ainda 
assim, as abordagens contemporâneas já sinalizam a necessidade de se buscar novos modos 
de análise, mais aprimorados para se extrair o potencial imprescindível que reside na palavra 
oral, monumento vivo da cultura africana. 
 
20 VANSINA, Jan. A tradição oral e sua Metodologia. In: História geral da África, I: Metodologia e pré -
história da África / editado por Joseph Ki -Zerbo. – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010, p. 142-166. 
21 Palavras de um griô mandinka reproduzidas por Sory Camara, 1982, p. 8. Tradução publicada em artigo 
por Celso Sisto Silva. 
41 
 
2.2 A ORALIDADE COMO TRADIÇÃO LITERÁRIA 
 
 
Nos discursos fundadores das literaturas nacionalistas do ocidente, em virtude da 
retórica europeia e de seus arquivos escritos, a textualidade oral dos povos africanos e 
indígenas, seus domínios de linguagem, seus repertórios narrativos, poéticos, e seu modo 
de apreender e figurar o real foram desconsiderados. Desse aforismo vemos surgir elementos 
essenciais para se entender a história de quem esteve sempre à margem do discurso oficial, 
e em especial, a história das omissões, dos silêncios e das lacunas causadas pela hegemonia 
eurocêntrica. Ana Mafalda Leite (2012) assinala a preocupação da crítica em confrontar as 
produções literárias de autores africanos aos moldes estéticos da oralidade: 
 
Uma das questões mais permanentes nos estudos críticos africanos no 
decorrer das últimas décadas tem a ver com a demonstração das relações que 
a literatura africana, escrita em línguas europeias, estabelece com as fontes 
indígenas orais. A tendência geral tem sido mostrar como a configuração 
especial que a oralidade, ou a oratura, institui nos textos literários leva à 
caracterização da especificidade e autonomia dessas literaturas em relação às 
suas origens coloniais (LEITE, 2012, p.163). 
 
 
 A formação de um sistema literário que tem como base o livro impresso e a escrita 
exige condições específicas de recepção e de produção para o seu exercício. Nos países 
africanos, e mais especificamente em Moçambique, foco de nosso estudo, o acesso à 
educação formal e aos meios editoriais de produção foram espaços de completa exclusão 
para os moçambicanos, uma consequência direta do sistema colonial português, uma vez 
que, durante o período colonial em que Moçambique esteve sob o domínio português (do 
século XVI até 1975), a administração limitou o acesso ao ensino formal, e consentiu à 
igreja católica a responsabilidade pela sua gerência e admissão. Tal como no Brasil colonial 
42 
 
que conhecemos, a educação era restrita e possuía intensos fundamentos de doutrinação 
religiosa. 
O controle de acesso aos meios escritos também afetava a circulação de produções 
escritas, uma vez que toda a impressa era controlada pelo governo colonial e por um regime 
imposto de censura. Grande parte da literatura oficial produzida nesse período é 
caracterizada pelos gêneros como o diário de viagem, além dos tratados que continham 
como proposta a descrição exótica das tradições e dos costumes da população local. Nesse 
contexto, como em tantos outros, as descrições em relação aos moçambicanos são 
elaboradas a partir de uma visão de mundo eurocêntrica, que encara o lugar da diferença 
como algo selvagem e primitivo. O discurso oficial que circulou na imprensa da época 
demonstra, portanto, marcas cruciais de opressão e racismo, tal qual o discurso da 
colonização. Vejamos, a exemplo, um trecho extraído de um tratado que circulou na 
imprensa colonial no ano de 1929, intitulado Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de 
Moçambique e que encontra-se, atualmente, num acervo de consulta pública via internet, 
reunidos com vários outros documentos de valor histórico redigidos pelos órgãos do 
Governo português nas colônias portuguesas africanas durante a primeira metade do século 
XX: 
 
Que ningnem22 julgue que o indígena das outras nações coloniais, isto é, 
mais civilizado que o indígena da Africa Oriental Portuguêsa! Meio e 
natureza iguais – já aqui se disse – produzem indivíduos iguais. Nem 
melhores, nem piores selvagens ou pouco civilizados. Apenas – e mal cabe 
no assunto deste introito falar deles – apenas o trabalho dos Missionários, 
desprendidos da vida, esquecidos do mundo – e no mundo, o que é pior – 
tem conseguido fazer do indígena esta coisa difícil: um homem. 
Incansavelmente, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, ano a ano, 
<<desde há mais de 400 anos>>! Têm as Missões portuguesas desbravado 
terreno que o mesmo é que dizer em palavras certas: humanizando cérebros, 
iluminando-os com a palavra persuasiva e com o melhor exemplo. As 
Missões católicas portuguesas da Colónia de Moçambique, além da 
propaganda e assistência religiosas, também prestam nas suas ambulâncias, 
 
22 A ortografia do excerto apresenta-se transcrita conforme o texto original. 
43 
 
assistência sanitária aos indígenas e manteem escolas de ensino primário e 
oficinas de aprendizagens [...]. Não há ponto da Africa Oriental 
Portuguêsa que o missionário não tenhacalcado. Nem sempre, porém, 
permanecido, poucos que são! Onde êle missiona erguendo um altar ou 
abrindo uma escola, deixa o indígena os seus costumes atrazados. E, como 
disse o Governador da Colónia de Moçambique [...] que a luz se derrame 
nesta Africa de Portugal, iluminando os 3.500,00 indígenas que a habitam 
e, mais além, na Africa de todo o mundo! E estarão banidos os costumes e 
os usos dos indígenas (RUFINO, 1929, p. 7-8)23. 
 
 A administração colonial, motivada pelo trabalho dos missionários e pelo medo de 
insubordinações tratou a escolarização liberal como uma forma de inserir nas colônias a 
literatura da metrópole portuguesa, um modo subversivo de controle das populações nativas. 
Vários estudos relacionados ao conteúdo oficial que circulava nas colônias do século XIX 
partiam de uma única fonte ideológica e funcionaram, sobretudo, como veículo de 
propaganda e cristalização de valores. Aos olhos de hoje, é notável a forma como o 
colonialismo maquiou o seu discurso “civilizador” coisificando os sujeitos em face aos seus 
doutrinamentos de controle e dominação. No fragmento citado, percebemos o quanto são 
destacados as supostas “ajudas” portuguesas em prol de uma alienação imposta as culturas, 
na tentativa de despersonalizar e assegurar uma homogeneização de práticas das quais são 
defensores e unicamente portadores. Os valores, a cultura, a língua e os parâmetros são 
atribuídos a partir de uma ideia de superioridade da civilização europeia, resultando, 
consequentemente, na degradação de qualquer manifestação cultural originária, 
considerada digna de extinção. 
 
23Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colónia de Moçambique. 10, [Raças, Usos e Costumes Indígenas. Fauna 
Moçambicana] José dos Santos Rufino, 1929. (p. 7-8) Disponível em: http://memoria-africa.ua.pt/Library. 
Acesso em: 23 de maio de 2016, às 15h 13min. 
 
 
 
http://memoria-africa.ua.pt/Library
44 
 
 A ação colonizadora em Moçambique promoveu, de certo modo, o 
desenvolvimento de novos hábitos que foram incorporados pouco a pouco, em suas 
tradições. Um deles pode ser o uso da língua portuguesa. Uma vez que o arcabouço da 
oralidade predominava como o modo mais próximo do que podemos conceber - aos modos 
ocidentais - como corpus literário, não havia um sistema de escrita estabelecido e que servisse 
de oposição a língua do colono. O letramento e o desenvolvimento de uma literatura escrita 
em Moçambique nascem então, em língua portuguesa, influenciado, sobretudo, pela 
tradição literária ocidental. Todavia, essa incorporação cultural não é de todo excludente, 
uma vez que a oralidade é o fundamento cultural mais marcante em Moçambique e tornou-
se a principal representação literária de africanidade e de continuidade de uma tradição 
autóctone. 
 Ainda assim, é preciso depreender a dificuldade do contexto, uma vez que, o modo 
de constituição da expressão literária da minoria torna-se praticamente infactível, quer pela 
marginalidade dos sujeitos - onde a liberdade que pressupõe o ato de escrita é proibido e, 
por vezes, impraticável -, quer pela impossibilidade de escrever de outra maneira que não 
seja na língua do dominador, conferindo à língua dominante a “alma” da outra língua num 
exercício de quase tradução. 
 Em meados do século XX, mesmo diante dos problemas de circulação impostos pela 
censura colonial, alguns escritores moçambicanos se uniram e formaram um jornal no 
distrito de Lourenço Marques24. A partir dessa organização inicial, surge o jornal Itinerário 
que exprimiu os primeiros sentimentos de inconformismo frente à condição colonial, 
nascendo com ele o despontar de uma literatura com forte tendência de manifesto. Pires 
Laranjeira (1995) apresenta esse período (1945-1968) como de intensa formação de uma 
literatura moçambicana, em razão da consciência de coletividade que emerge nos discursos 
dos jovens escritores, além da influência estética do neorrealismo, das lutas anticoloniais, e 
 
24 Corresponde hoje a capital do país, a cidade de Maputo. 
45 
 
das temáticas relacionada ao movimento da Negritude25. Desta maneira, as criações deste 
período marcaram categoricamente os itinerários estético-literários das produções 
moçambicanas que se sucederam. 
 A reivindicação por uma nação independente ajudou a construir coletivamente uma 
identidade moçambicana. O espaço literário para os moçambicanos surgiu, sobretudo, 
como uma alternativa de libertação; uma zona sob a qual as circunstâncias sociais do povo 
aparece em evidência. Vale lembrar de que em quase todas as histórias de lutas e revoluções 
pelo mundo afora as expressões artísticas – e, particularmente a literatura – antecipam e 
discutem apontamentos que, mais adiante, tornam-se centrais nas sociedades que lutam por 
um bem comum. 
 A literatura, portanto, andou de mãos dadas com a independência de vários países 
africanos, entre eles, Moçambique. Os conhecimentos e valores tradicionais que ficaram 
por centenas de anos à sombra da exploração europeia, tomou conta do discurso de seus 
poetas que, em defesa de uma nova realidade, recriam antigas narrativas coloniais e discutem, 
contemporaneamente, novas relações de poder e independência dentro dos processos 
homogeneizantes da globalização. É possível dizermos que Moçambique ergueu-se como 
espaço geográfico, antes de tudo, nos versos de seus poetas que bradaram gritos de 
resistência contra o colonialismo português e ajudaram ao seu povo a perceberem-se 
enquanto nação. 
 Por isso, a oralidade (um dos mananciais mais poderosos da memória), na escritura 
africana, passa a ser analisada como suporte essencial do texto escrito. Todavia, esta 
 
25 O termo negritude vem adquirindo diversos "usos e sentidos" nos últimos anos. Com a maior visibilidade 
da "questão étnica" no plano internacional e do movimento de afirmação racial no Brasil, negritude passou a 
ser um conceito dinâmico, o qual tem um caráter político, ideológico e cultural. No terreno político, 
negritude serve de subsídio para a ação do movimento negro organizado. No campo ideológico, negritude 
pode ser entendida como processo de aquisição de uma consciência racial. Já na esfera cultural, negritude é a 
tendência de valorização de toda manifestação cultural de matriz africana. Portanto, negritude é um conceito 
multifacetado, que precisa ser compreendido a luz dos diversos contextos históricos. DOMINGUES, Petrônio. 
Movimento Da Negritude: Uma Breve Reconstrução Histórica. In: Mediações – Revista de Ciências Sociais, 
Londrina, v. 10, n.1, p. 25-40, jan. 2005. 
46 
 
característica dominante não é a única e exclusiva. Enquanto a cultura fundamentada na 
escrita atribui o valor e a autenticidade do conhecimento aos “autores” e as obras, negando 
qualquer pensamento que não se apoia em fonte escrita, a oralidade é reconhecida como 
atribuição coletiva, elaboração cultural de partilha. O oral e o escrito na flexibilidade da 
linguagem fazem o novo e o antigo coexistirem de forma híbrida na literatura. Os textos 
produzidos pelos africanos, mesmo em línguas europeias, passam a se distinguirem do 
cânone ocidental, sobretudo, enquanto unidade fundamental de referencialidade e de visão 
de mundo. A concepção fragmentada da experiência dos primeiros escritores que 
produziram uma nação que hoje compreendemos como Moçambique, mostra-nos que os 
diferentes modos de usarmos a língua simulam e executam diferentes registros e 
interpretações. O conto e o poema aparecem, por exemplo, como as primeiras formas de 
expressão de escrita literária moçambicana, efeito resultante do contexto de oralidade 
popularmente disseminado. A oralidade, portanto, é um aspecto fundante para a construção 
poética e política da literatura de Moçambique. 
 Se o colonialismo resultou incontáveis massacres para a

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