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Maracatucandoquestoes-Nogueira-2022

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS 
 
 
 
 
 
 
 
 
AMANDA DE SOUZA NOGUEIRA 
 
 
MARA(CATUCANDO) QUESTÕES 
RACIAIS: UM CORTEJO EM 
HOMENAGEM À CULTURA NEGRA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NATAL/RN 
2022 
 
 
 
AMANDA DE SOUZA NOGUEIRA 
 
 
 
 
 
 
MARA(CATUCANDO) QUESTÕES RACIAIS: UM CORTEJO EM 
HOMENAGEM À CULTURA NEGRA 
 
 
 
 
Dissertação apresentada à Universidade Federal do Rio 
Grande do Norte como requisito parcial à obtenção do 
título de mestre em Artes Cênicas. 
 
Área de concentração: Práticas Investigativas da cena: 
Poéticas, Estéticas e Pedagogias 
 
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Larissa Kelly de Oliveira Marques 
 
 
 
 
 
 
NATAL/RN 
2022 
 
 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS 
DEPARTAMENTO DE ARTES 
 
 
FOLHA DE APRESENTAÇÃO 
 
 
A apresentação da dissertação de mestrado intitulada “MARA(CATUCANDO) 
QUESTÕES RACIAIS: UM CORTEJO EM HOMENAGEM À CULTURA 
NEGRA”, apresentada por Amanda de Souza Nogueira, contou com a 
participação da seguinte banca: 
 
 
________________________________________________ 
Prof.ª Drª. Larissa Kelly de Oliveira Marques - UFRN 
ORIENTADORA 
 
 
________________________________________________ 
Prof. Dr. Adriano Moraes de Oliveira - UFRN 
EXAMINADOR 
 
 
 
________________________________________________ 
Prof. Dr. Victor Hugo Neves de Oliveira - UFPB 
EXAMINADOR EXTERNO 
 
 
 
 
 
Nogueira, Amanda de Souza.
 Mara(catucando) questões raciais : um cortejo em homenagem à
cultura negra / Amanda de Souza Nogueira. - 2022.
 114 f.: il.
 Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2022.
 Orientadora: Prof.ª Dr.ª Larissa Kelly de Oliveira Marques.
 1. Maracatu. 2. Cultura afro-brasileira. 3. Negros - Dança.
4. Criação na arte. I. Marques, Larissa Kelly de Oliveira. II.
Título.
RN/UF/BS-DEART CDU 793.3
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART
Elaborado por Ively Barros Almeida - CRB-15/482
 
 
DEDICATÓRIA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico esta dissertação ao meu avô Cícero Estevam (in 
memoriam), exemplo de negritude e amor. 
Aos meus pais, Zélia Souza e José Nogueira, por todo 
apoio na minha trajetória e por serem a minha fortaleza. 
Dedico também àqueles e àquelas que, injustamente e 
sob o pretexto da supremacia racial, sofreram e foram 
privados de oportunidades. 
É a voz de uma cultura negra que precisa ser lida, ouvida 
e dançada! 
 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
Primeiramente agradeço a Deus, sou grata por todo dia ter o privilégio 
de acordar e conseguir correr atrás das realizações dos meus sonhos, 
agradeço-o por colocar pessoas que me ajudam nessa jornada e por todo o 
acolhimento e toda a força nos momentos difíceis. 
À minha mãe Zélia Souza e ao meu pai José Nogueira, por sempre 
apoiarem minhas escolhas, acreditar em mim, mesmo quando nem eu 
acreditava. Gratidão por sempre me fazerem sentir amor e proteção. À minha 
irmã, Aline Souza, por todo incentivo e por sempre ficar feliz com minhas 
conquistas. Aos meus sobrinhos, Juliana Nogueira, Maria Luiza e Luís Otávio, 
que com seus sorrisos me motivam a sempre continuar, apesar de fazerem 
bastante barulho em casa e, às vezes, atrapalharem na hora em que estava 
escrevendo a dissertação (risos). 
Ao meu companheiro e amigo Lucas Diego, que está ao meu lado em 
todos os momentos, que me apoia e me aconselha, sempre com muito carinho 
e amor me motiva a ir além, gratidão por tudo. 
À minha orientadora maravilhosa e paciente, Larissa Marques, que 
nesse processo de escrita sempre esteve presente, sendo compreensiva e 
disposta a ouvir e me fazer refletir sobre minhas ações, contribuindo para que 
essa dissertação seja uma possível contribuição para o campo das Artes 
Cênicas. 
À banca examinadora, o professor doutor Adriano Oliveira e o professor 
doutor Victor Oliveira, pelas contribuições e disponibilidade. À Universidade 
Federal do Rio Grande do Norte, pelo espaço de crescimento e formação, e ao 
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas (PPGARC), por todo o 
conhecimento adquirido e por ser uma fonte de grandes artistas-pesquisadores 
nas artes cênicas. À turma de mestrado, em especial ao meu amigo Tales 
Atyhê e às mestrandas guerreiras que sempre me deram forças para não 
desistir. 
 À escola de balé Sonhos por dar abertura para o desenvolvimento da 
pesquisa, à turma de dança contemporânea (Ruth Dayane, Abynna Safira, 
 
 
Sarah Nascimento e Vitória Fernandes) por se permitirem serem brincantes da 
cultura popular; meu muito obrigado a esses corpos que compuseram a 
essência prática desse cortejo. 
Um agradecimento especial ao mestre Walter, mestre Biu, Carlos 
Eduardo, Lucas Oliveira, Luiz Carlos e João Silva, por compartilharem suas 
narrativas e sabedorias sobre o Maracatu Nação. 
À Silas Braúna, coordenador do grupo Balé Popular Terras Potiguares, 
pelo empréstimo dos figurinos que foram utilizados nesse cortejo; à Olivia 
Macedo, que com sua ótica sensível/artística foi responsável por toda a parte 
de mídia do projeto; e a todos que direta ou indiretamente ajudaram para que 
esse cortejo fosse realizado. 
GRATIDÃO! 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
RESUMO 
A dissertação em questão é um cortejo de maracatu no caminhar que 
enaltece a cultura negra. Propõe oficinas intituladas Maracatucar, em uma 
perspectiva de “catucar” (chamar a atenção) das bailarinas da turma de dança 
contemporânea da Escola de Balé Sonhos e você, caro leitor e cara leitora, 
sobre as questões raciais, além de provocar o fortalecimento das culturas 
negras, gerando, portanto, uma discussão em torno do maracatu enquanto 
movimento de luta negra, enquanto uma dança popular afro-brasileira, bastante 
presente, aliás, na nossa cultura nordestina. O estudo visa ressaltar as 
possibilidades (no que diz respeito aos processos de criação), existentes nos 
estudos do campo da dança, na procura de um reconhecimento sobre ser um 
corpo negro na sociedade e como isso reflete no contexto social. Ademais, está 
presente o intuito de estudar e mostrar, nesse cortejo, os elementos do 
maracatu para compreender e valorizar sua religiosidade, sua estética da 
dança e a identidade de uma comunidade negra - que sofre diariamente 
discriminação. Há, portanto, o propósito de iniciar uma reflexão acerca da 
identidade cultural afro-brasileira. No que tange à metodologia, o trabalho é de 
natureza narrativa-descritiva, de abordagem qualitativa. Pretende-se, pois, 
problematizar questões raciais, por meio da experimentação e da criação, 
levando à reflexão sobre o maracatu, expressão cultural pernambucana, esta 
que ecoa em si a luta do povo negro. 
Palavras-chave: Maracatu, Cultura Negra, Dança, Criação. 
 
RESUMEN 
La disertación en cuestión es una procesión de maracatu en el caminar 
que enaltece la cultura negra. Propone talleres tituladas Maracatucar, en una 
perspectiva de "catucar" (llamar la atención) de las bailarinas de la clase de 
danza contemporánea de la Escuela de Ballet Sueños y usted, querido lector y 
querida lectora, acerca de las cuestiones raciales, además de provocar el 
fortalecimiento de las culturas negras, generando, por tanto, una discusión 
alrededor del maracatu mientras movimiento de lucha negra, mientras una 
danza popular afrobrasileña, demasiada presente, por cierto, en nuestra cultura 
 
 
nororiental. El estudio tiene como objetivo resaltar las posibilidades (en el que 
dice respeto a los procesos de criación), existentes en los estudios en el campo 
de la danza, en labusca de un reconocimiento sobre el cuerpo negro en la 
sociedad y como eso refleja en el contexto social. Además, está presente el 
intuito de estudiar y mostrar, en esa procesión, los elementos del maracatu 
para comprender y valorar su religiosidad, su estética de la danza y la identidad 
de una comunidad negra - que sufre diariamente discriminación. Hay, por lo 
tanto, el propósito de iniciar una reflexión acerca de la identidad cultural 
afrobrasileña. En el que respecta a la metología, el trabajo es de naturaleza 
narrativas descriptivas, de enfoque cualitativa. El objetivo, pues, problematizar 
cuestiones raciales, por medio de experimentación y de la criación, llevando a 
la reflexión sobre el maracatu, expresión cultural pernambucana, esa que 
resuena en si a lucha del pueblo negro. 
Palabras clave: Maracatu, Cultura Negra, Danza, Criación. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LISTA DE IMAGENS 
Imagem 1: Maracatucando questões raciais. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada 
no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022.....13 
Imagem 2: Identidade negra. Fonte: Acervo pessoal, 2016..............................21 
Imagem 3: A dama do paço e a sua calunga. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada 
no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022.....25 
Imagem 4: Ruth Dayane. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do 
cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................32 
Imagem 5: Abynna Safira. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do 
cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................32 
Imagem 6: Sarah Nascimento. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do 
cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................33 
Imagem 7: Vitória Fernandes. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do 
cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................35 
Imagem 8: O cheiro doce-amargo I. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no 
processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........38 
Imagem 9: O cheiro doce-amargo II. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no 
processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........41 
Imagem 10: O cheiro doce-amargo III. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no 
processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........41 
Imagem 11: O sagrado do maracatu. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no 
processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........44 
Imagem 12: A calunga. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo 
‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........................................47 
Imagem 13: Oxum. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo 
‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........................................48 
 
 
 
Imagem 14: Iansã. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo 
‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........................................48 
Imagem 15: Composição das calungas. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no 
processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........51 
Imagem 16: A corte real. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do 
cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................53 
Imagem 17: Rainha. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo 
‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........................................57 
Imagem 18: Rei. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo 
‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........................................57 
Imagem 19: A realeza do maracatu. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no 
processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........58 
Imagem 20: As catitas e a baiana. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no 
processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........61 
Imagem 21: As caboclas I. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do 
cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................65 
Imagem 22: As caboclas II. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do 
cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................67 
Imagem 23: As caboclas III: Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do 
cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................68 
Imagem 24: A dança do maracatu. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no 
processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........69 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
PORTA-ESTANDARTE: ABRINDO ALAS.......................................................13 
ALA I. MEMÓRIAS DAS DAMAS DO PAÇO...................................................25 
1.1 A história do povo negro..............................................................................25 
1.2 Oficina Maracatucar I: O cheiro doce-amargo.............................................31 
1.3 O sagrado do Maracatu...............................................................................43 
1.4 Oficina Maracatucar II: Experienciando o sagrado das calungas................46 
ALA II. AS NAÇÕES DO MARACATU.............................................................52 
2.1 As coroações dos Reis e Rainhas negros do Congo..................................53 
2.2 Oficina Maracatucar III: Experienciando o contexto da realeza do 
Maracatu............................................................................................................57 
2.3 Oficina Maracatucar IV: As baianas e as catirinas......................................61 
2.4 Oficina Maracatucar V: Experenciando a ancestralidade indígena.............65 
O CORTEJO DANÇADO: FECHANDO ALAS.................................................69 
REFERÊNCIAS.................................................................................................73 
ANEXOS............................................................................................................79 
APÊNDICE A.....................................................................................................86 
APÊNDICE B.....................................................................................................90 
APÊNDICE C..................................................................................................110
13 
 
 
PORTA-ESTANDARTE1: ABRINDO ALAS 
Imagem 1: Maracatucando questões raciais. 
 
Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no 
ano de 2022. 
A minha bandeira 
é a mais bonita 
enfeitei com flores 
e laços de fitas 
e quando ela passa 
e arrasta a multidão 
mostra que a princesa 
brilha no seu pavilhão, 
toque os tambores 
 
1Segundo o dossiê realizado pelo INRC – Inventário Nacional de Referências Culturais, o porta-
estandarte no cortejo de maracatu é o personagem que carrega em suas mãos o estandarte, 
material que leva o nome da agremiação e a sua data de fundação; sempre muito bem trajado, 
é ele quem abre caminho para os demais desfilantes passarem. 
 
14 
 
 
que as baianas vão dançar 
senhoras e senhores 
o baque explosão já vai passar 
com o apito do mestre avisou a batucada 
pra mostrar pro povo a força da nossa pisada. 
Toada de Mestre Ruy Bandeira2 
Senhoras e senhores, sejam todos bem-vindos ao cortejo 
Maracatucando questões raciais3, este que homenageia a cultura negra. Nessa 
escrita dissertativa, iremos conhecer, refletir, problematizar, dançar e enaltecer 
o maracatu, uma manifestação popular e carnavalesca presente no âmbito 
cultural da cidade de Recife/PE,sendo símbolo de resistência e luta da 
comunidade negra, por isso, preciso lhe adiantar que, antes de iniciar este 
cortejo, é preciso que você se desprenda de ideias advindas do senso comum, 
em relação à cultura negra, esta ainda desvalorizada em nosso país. No 
imaginário social em vigência, a imagem construída acerca da população negra 
é incompatível com a riqueza cultural e humana deste povo, não sendo, 
portanto, aceitável que diariamente haja expressões voltadas à discriminação 
racial, esta forma de preconceito estruturada no nosso país há séculos. 
Solicito, portanto, que esteja de mente e corpo abertos para se deixar catucar 
pela energia desse cortejo. 
Após o aviso inicial, peço a sua atenção, pois iniciaremos nossa 
caminhada no cortejo Maracatucando questões raciais em: 
 3, 
 
2 Grande compositor e cantor, também conhecido como mestre Papagaio, é um dos 
personagens que faz parte do Maracatu Nação Raízes de África, fundado pelo mestre Walter 
em Recife/PE. 
3 A presente dissertação é escrita em formato de cortejo, assim como é composto o maracatu; 
dito de outro modo, utilizo-me da ordem do maracatu para desenvolver a escrita da pesquisa, 
iniciando com o porta-estandarte (introdução), que abre alas para o cortejo Maracatucando 
questões raciais passar, depois seguimos com as memórias da dama do paço (capítulo I), 
depois as nações do maracatu (capitulo II), que traz os personagens da corte real e os demais 
desfilantes do maracatu, como as catirinas, as baianas e os caboclos. Vale salientar que no 
Maracatu Nação existem mais personagens, porém, para essa dissertação, foram utilizados os 
descritos acima, sendo eles os que mais se destacam em um cortejo de maracatu. 
 
15 
 
 2, 
 1, 
Todos juntos com o pé direito à frente, para darmos o primeiro passo 
Pedimos licença aos mestres de maracatus 
E proteção aos deuses africanos 
Que esse cortejo escrito 
Nos leve a refletir 
Problematizar 
Dançar 
As poéticas de um povo negro 
E ecoar a voz que clama do batuque 
Pedindo apenas 
Respeito! 
Caminhemos... 
 (NOGUEIRA, 2021, p.02) 
Nossos primeiros passos nos levam para uma discussão acerca de 
como o maracatu, uma manifestação popular de origem afro-brasileira, pode 
ser refletido e experienciado como modo de afirmação do pertencimento da 
identidade negra. Vale salientar que existem dois tipos de maracatu: o 
Maracatu Nação ou Baque Virado e o Maracatu Rural ou Baque Solto4, porém 
o nosso cortejo adentra no Maracatu Nação, uma manifestação típica da região 
metropolitana de Recife, cuja origem se deve aos antigos escravos africanos 
instalados em Pernambuco, estes trazidos do Congo5. Tal expressão cultural 
 
4 Segundo Silva (2013), o Maracatu Rural ou, como também é conhecido, maracatu de Baque 
Solto é uma dança que teve sua origem na zona da mata do estado de Pernambuco, com o 
surgimento dos canaviais dos engenhos de cana-de-açúcar, na primeira metade do século XX. 
É uma manifestação coletiva que forma um belo cortejo composto por rei e rainha, pelos 
caboclos de lança, os arreimás, as baianas, o Mateu, a Catirina, a Burra, entre outros. Ver: 
SILVA, João Ribeiro da. Maracatu de baque solto: experiência do sagrado / João Ribeiro da 
Silva; orientador Sergio Sezino Douets Vasconcelos, 178f.: il. Dissertação (Mestrado) – 
Universidade Católica de Pernambuco. Pró-reitoria Acadêmica. Programa de Mestrado em 
Ciências da Religião, 2013. 
5 Souza (2014) nos revela que no período escravista o Congo era um reino estruturado, que 
abrangia grande extensão da África Centro-Ocidental e continha diversas províncias. Ver: 
SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: história da festa de coroação 
de Rei Congo / Marina de Mello e Souza. – 2.ed. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. 
 
16 
 
tem consigo a tradição de eleger reis negros, para simbolizar a união de uma 
comunidade. 
A disseminação da eleição de reis negros por toda a América pode 
ser melhor entendida se, ao invés de a tomarmos como 
sobrevivências de tradições africanas, ou como transplante de 
costumes criados na Península Ibérica, onde também existiram, 
tentarmos entender os processos históricos que constituíram tais 
costumes. É no contexto do encontro de culturas nas sociedades 
coloniais que devemos buscar as razões que levaram grupos de 
africanos, que criavam novas identidades, a escolherem reis, 
anualmente festejados com batuques, cortejos e dramatizações. 
(SOUZA, 2014, p.215). 
O maracatu tem a tradição de, durante o carnaval, sair nas ruas em 
forma de cortejo, com o porta-estandarte à frente, abrindo espaço para os 
desfilantes passarem, segurando o estandarte com o nome da agremiação e 
sua data de fundação; logo após vêm as damas do paço, que em suas mãos 
levam bonecas, conhecidas como calungas, representantes dos deuses 
protetores para os negros; dando seguimento vem a corte real, na qual os reis 
negros escolhidos seguem embaixo de um guarda-sol (pálio) - segurado por 
seus vassalos - acompanhados de figuras importantes da realeza, como 
príncipes, princesas, imperadores, imperatrizes, condes e condessas; logo 
atrás vêm as baianas ricas e a baianas pobres (as catirinas), e os caboclos de 
terra e os arreimás - todos esses personagens seguem guiados pelo baque, 
composto por instrumentos de percussão, que com seus batuques e toadas 
dão vida às movimentações dos brincantes de maracatu. Neste cortejo, todos 
os brincantes de maracatu seguem em uma procissão que enaltece os seus 
ancestrais, em uma mistura de dança, canto, batucada e celebração. 
 A fim de ampliar a explicação sobre o que é o Maracatu Nação, 
adentremos nas narrativas daqueles que introduziram em suas vidas a prática 
do maracatu, fazendo dessa manifestação cultural um ato do cotidiano, 
mantendo viva a tradição na sua comunidade. Façamos, então, a leitura das 
falas dos mestres Walter6 e Biu7 e do brincante Carlos Eduardo8, integrantes 
 
 
 
6 Walter Ferreira de França, natural de Recife/Pernambuco, nascido em 28 de março de 1950, 
fundador, coordenador e mestre de baque do Maracatu Nação Raízes de África, fundado no 
dia 12 de outubro de 1995. Atualmente, o grupo tem como sede a casa do mestre supracitado, 
localizada na Rua Córrego Bombeirense, 115, na bomba do Hemetério, Água Fria, Recife/PE. 
 
17 
 
dos grupos Maracatu Nação Raízes de África e Maracatu Nação Sol Brilhante, 
estes entrevistados por mim no ano de 2021, na cidade de Recife/PE. 
Conta-se que vem da senzala, outros já falam que é de origem 
africana, mas como o Brasil foi feito e criado por negros escravos que 
traziam da África para cá, que lá também viviam dentro de senzala, 
conta-se que eles às noites, no descanso, que negro não tinha 
descanso, na noite que eles paravam aquele trabalho árduo do dia, 
se ajoelhava e fazia aquela oração forte, pedindo a Deus força, para 
que no outro dia tivesse força para fazer o trabalho novamente, e ali 
eles batucavam dentro de senzala, isso quer dizer o maracatu, o cara 
pode dizer que ele surgiu de uma pedra, vamos acreditar, o maracatu 
surgiu do som das águas, porque ninguém viu fundação de maracatu, 
a gente viu o maracatu pelos nossos ancestrais, os nossos 
antepassados, agora sabe sim que é brincadeira de rua nesse 
aspecto, mas, pelo lado religioso, é uma brincadeira que vem de 
muitos anos com respeito, alguém diz até que é do candomblé, que 
veio do candomblé, aí a gente não sabe quem nasceu primeiro, se foi 
o candomblé ou se foi o maracatu, agora a gente sabe que tem uns 
maracatus muito antigos. (confira em entrevista no apêndice B, p.98). 
 
O maracatu, segundo alguns historiadores, porque há controvérsias, 
surgiu dos negros; os negros, eles se reuniam para brincar dentro da 
senzala, mas foi colonizado; depois que foi colonizado, houve uma 
grande modificação, mas nós ainda continuamoscultuando o 
maracatu dos nossos ancestrais, que é o maracatu negro, o maracatu 
de tradição nagô. (confira em entrevista no apêndice B, p.98). 
 
Os aspectos históricos e origem dessa dança popular: os maracatus 
foram formados pelos negros escravos que até então não podiam 
expressar suas origens, por motivo de perseguição política e 
religiosa, foi aí que saíam em cortejos fazendo sátiras mostrando que 
negros podiam ser rei e rainha, príncipes e princesas, condes, 
imperadores, damas ricas etc. O maracatu na verdade é um 
"candomblé de rua", que junta os terreiros de matrizes africanos e 
seus adeptos; também pessoas sem ser da religião brincam nos 
maracatus. (confira em entrevista no apêndice B, p.99). 
O maracatu é sobre a história dos nossos ancestrais negros 
escravizados, e interessa-nos aqui evidenciar que, em toda nossa trajetória 
escolar, aprendemos aspectos importantes sobre a construção histórica dos 
acontecimentos até os dias atuais, uma história dita oficial que sabemos 
atender a interesses de uma aristocracia colonialista e excludente, a qual 
subjugou e escravizou povos (por exemplo, o povo banto9 e os Ewe10, entre 
 
7 Wilson Gonzaga da Silva, nascido em 1968, produtor cultural, conhecido popularmente dentro 
do movimento de cultura como mestre Biu. Reside em Recife/PE, é o idealizador da sambada 
do mestre Biu, fundador do coco do mestre Biu e presidente da nação do Maracatu Sol 
Brilhante. 
8 Carlos Eduardo Lino da Silva tem 49 anos. É artesão aderecista, reside na cidade de 
Recife/PE e é integrante do Maracatu Nação Sol Brilhante. 
9 ‘‘Banto: Denomina-se um povo ao qual pertenciam os primeiros africanos escravizados que 
vieram para o Brasil de países que hoje se chamam Angola, Congo, Zaire, Moçambique e 
outros’’. (NASCIMENTO, 2009, p. 207). 
 
18 
 
outros do continente africano) e as suas culturas, traçando reflexos 
discriminatórios que perduram na contemporaneidade. Em outras palavras, é 
inadmissível que, nas instituições de ensino, ainda sejam escassas as 
tematizações sobre aspectos da história dos povos negros no nosso país. 
Povos que navegaram por águas turvas, com marcas de sangue, com ondas 
fortes, que sofreram e sofrem em decorrência de uma discriminação racial e 
cultural, com uma acentuada hierarquização cultural e social que sobrepõe o 
branco sobre o negro e busca silenciar e anular identidades de sujeitos e 
grupos que deveriam compor o pertencimento de serem brasileiros, com 
direitos e deveres garantidos e partilhados igualitariamente, para a abordagem 
afrocentrada: 
A questão não se localiza no reconhecimento das identidades, mas 
na capacitação para participar do jogo democrático do poder. Antes 
de pleitear o reconhecimento do outro, o afrocentrista quer construir 
as bases para o pleno autorreconhecimento de seu povo e sua 
cultura, condição necessária a essa capitação. Prioriza, então, a 
crítica aos conceitos dominantes de história e cultura africanas 
distorcidos pelo eurocentrismo, bem como a reconstrução dos 
conteúdos por eles encobertos. (NASCIMENTO, 2009, p. 192). 
 
 No que tange à abordagem afrocentrada, ela não se pauta em conceitos 
biológicos sobre raça, mas sim em uma ótica que parte da identidade do 
sujeito, o seu centro, se preocupa em definir sua localização. A identidade 
nesse caso é encarada como questão social e política. Assume postura crítica 
em relação à visão eurocêntrica, constatando que ela não contempla a 
pluralidade existente nas experiências humanas (NASCIMENTO, 2009). 
Trata-se da teoria do centro, que postula a necessidade de explicitar 
a localização do sujeito para desenvolver uma postura teórica própria 
ao grupo social e fundamentada em sua experiência histórica e 
cultural. De acordo com essa localização teórica, o centro, o grupo se 
define como sujeito de sua própria identidade, em vez de ser definido 
pelo outro com base em postulados pretensamente universais, porém 
elaborados com um posicionamento específico, alheio e dominante. 
(NASCIMENTO, 2009, p.190-191). 
 
Visto por esse ângulo, o nosso cortejo visou propiciar a turma de dança 
contemporânea11 da Escola de Balé Sonhos12, composta por quatro alunas, um 
 
10 ‘‘Ewe ou gêge, povo africano de Gana, Togo e Daomé (Benin); milhões de Ewes foram 
escravizados no Brasil. Eles são parte do nosso povo e da nossa cultura afro-brasileira’’. 
(NASCIMENTO, 2009, p. 207). 
11 A turma de dança contemporânea é orientada por mim; tal modalidade de dança foi inserida 
na Escola de Balé Sonhos em 2021. 
12 A Escola de Balé Sonhos foi fundada em 2016, pela professora de balé clássico Ruth 
Dayane, no município de Monte Alegre/RN, com apenas duas turmas: uma de balé infantil e 
 
19 
 
processo educativo pluricultural (SANTOS, 2009), que iniciasse um despertar 
nelas sobre um olhar mais sensível para o corpo historicamente marcado pela 
escravidão, tendo como possibilidade a brincadeira do maracatu, se utilizando 
do conceito de brincante, que nas brincadeiras (dança popular) ocupa um lugar 
de transformação do ser. 
Nas danças populares, o brincante é a figura que expressa a 
brincadeira, trazendo para ela emoções, sensações e criações, que 
transmite para o externo, com a celebração da sua corporeidade, a 
essência da cultura, da religiosidade, estética, energia, paixão. 
(NOGUEIRA, 2018, p. 18). 
 
Nessa perspectiva, o estudo utilizou-se dos princípios presentes na 
abordagem pluricultural de Inaicyra Santos (2009) para possibilitar às bailarinas 
do grupo a oportunidade de terem a experiência de imergir em uma cultura 
afro-brasileira e, além disso, sentirem-se pertencentes da herança cultural que 
há no Maracatu Nação, indo além de uma visão unilateral, instaurando, desse 
modo, uma ótica plural. 
A proposta pluricultural corpo e ancestralidade trilha um caminho que 
entrelaça a tradição herdada, a oralidade, a mitologia, as danças, os 
cantos, os gestos, os ritmos de forma técnica e criativa. Assim, é 
instaurado um campo para a ressignificação, na contemporaneidade, 
de valores míticos que influenciam os pensamentos, a natureza e a 
forma da tradição africana brasileira e as histórias individuais. Na 
dimensão prática, proporciona a exploração em profundidade dos 
movimentos propostos e das formas de comunicação tradicionais, 
priorizando a troca de experiências e constituindo um espaço para 
discussão de uma linguagem própria. (SANTOS, 2009, p.33). 
 
Nosso objetivo de pesquisa com esse cortejo escrito é, portanto, discutir 
(catucar) questões raciais e provocar o fortalecimento das culturas negras, bem 
como ressaltar as possibilidades (no que diz respeito aos processos de 
criação), existentes nos estudos do campo da dança, na procura de um 
reconhecimento sobre ser um corpo negro na sociedade e como isso reflete no 
contexto social. Além disso, está presente o intuito de estudar e mostrar, nesse 
cortejo, os elementos do maracatu, para compreender e valorizar sua 
religiosidade, sua estética da dança e a identidade de uma comunidade negra 
que sofre diariamente discriminação; há, portanto, o propósito de promover 
uma reflexão acerca da identidade cultural afro-brasileira. Intenta ainda 
 
uma de balé adulto iniciante. Em seguida, foram acrescentadas as seguintes modalidades: balé 
hit, dança litúrgica e dança contemporânea. Chama-se Sonhos em alusão às várias meninas 
que sonhavam em aprender balé clássico. É escola-referência na cidade e há seis anos vem 
transmitindo com muito amor a aprendizagem da dança. 
 
20 
 
responder às questões de estudos que permeiam a dissertação, são elas: 
Como se compõe o cortejo do Maracatu Nação? Que atravessamentos 
culturais perpassam essa manifestação para pensarmos sobre a 
ancestralidade, religiosidade e organização social de povos negros? E quais as 
possibilidades existentes nos processos criativos em dança a partir do 
maracatu para o enaltecer da cultura negra? 
Com os objetivos e as questões traçadas, agora iremos passar porum 
caminho que revela muito sobre mim e o porquê de estarmos hoje aqui em um 
cortejo que maracatuca questões raciais, em um desnudamento da artista 
negra que sonhava quando criança em ser branca e hoje sonha com um 
mundo sem RACISMO. Os passos a seguir vão em direção às minhas 
memórias da infância: 
Meu cabelo era preso, pois ao soltar, era de 
 “juba de leão” 
 que era chamada. 
Minhas unhas de laranja não podiam ser pintadas que já vinham dizer: 
“Quem já viu negro de laranja, só quer chamar atenção”. 
 E reforçavam: 
“Dê dinheiro a negro, mas não dê cartaz”. 
 Ao receber de presente uma boneca negra, ouvir alguém dizer: 
 “Por que você não troca por uma boneca branca? Essa é muito feia”. 
 Quando via a minha avó, ela falava sempre a mesma piada: 
“Negro só é gente no banheiro... quando alguém bate e ele responde: tem gente”. 
(NOGUEIRA, 2021, p.03) 
Eu era apenas uma criança que precisava de representatividade, mas ao 
invés disso eu vivenciava situações que me machucavam de tal maneira que, 
ao olhar no espelho, só conseguia imaginar o quanto seria melhor ter a pele 
branca. Não foi nada fácil se libertar dessas amarras, cuja mágoa guardei por 
anos. Somente na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no Curso de 
Licenciatura em Dança, aos 19 anos, pude reconhecer quem era, por meio da 
dança, do ser brincante da cultura popular. Na brincadeira, fui me 
transformando e aos poucos fui soltando o cabelo e percebendo que a “juba de 
 
21 
 
leão” era, na verdade, meus cachos mostrando o volume da minha força. Em 
disciplinas como Práticas Educativas em Dança Popular13, ministrada pela 
docente Teodora Alves, e Práticas Educativas em Dança Moderna14, ministrada 
pela docente Patrícia Leal, ao experienciar danças de motrizes africanas15, 
enfim me reconheci NEGRA. Foi um processo lento, mas de tamanha 
intensidade, diante do qual meu corpo, ecoou, dançou, cantou... 
Imagem 2: Identidade negra. 
 
Fonte: Acervo pessoal, 2016. 
(...) a liberdade de ser quem sou: mulher, artista, pesquisadora, professora, 
negra! 
 
13 Disciplina da grade curricular do Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal 
do Rio Grande do Norte (ART0302). 
14 Disciplina da grade curricular do Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal 
do Rio Grande do norte (ART0304). 
15 É utilizado o termo motrizes africanas, ao invés de matrizes africanas, por concordar com o 
autor Ligiéro (2011), quando expressa que o termo matriz é ‘‘insuficiente para conceituar a 
complexidade dos processos interétnicos e transitórios verificados nas práticas performativas 
ou performances culturais’’, definindo que o termo motriz é mais apropriado para ‘‘conceituar a 
complexidade das dinâmicas das performances culturais afro-brasileiras’’ (LIGIÉRO, 2011, 
p.130). Ver: LIGIÉRO, Zeca. O conceito de ‘‘motrizes culturais’’ aplicado às práticas 
performativas afro-brasileiras. Revista Pós Ciências Sociais, Maranhão, v. 16, n. 8, p. 129-
144, jul./dez. 2011. 
 
 
22 
 
Todas as frases de cunho discriminatório que ouvi, de acordo com 
Moraes (2013), configuram um processo de naturalização, este que é base de 
muitos preconceitos sutilmente arraigados em segmentos da sociedade, por 
interesses hegemônicos que perpetuam distinções e discriminações sociais 
profundas. Ditos populares como os citados anteriormente evidenciam uma 
valoração negativa em relação ao negro, como podemos constatar em mais um 
exemplo, descrito abaixo, para deixar essa questão mais compreensível. 
Quando vivemos uma situação de grande perturbação, nos utilizamos de 
termos como ‘‘A coisa ficou preta!’’. Sendo assim, o preto recebe atribuição de 
“coisa ruim” e naturalizações deste cunho reafirmam o quanto as pessoas 
precisam desenvolver seu senso crítico em relação às concepções do senso 
comum. 
Esse ponto é fundamental para o contexto brasileiro pois talvez a 
mais destacada característica do racismo no Brasil seja sua natureza 
inconsciente. As atitudes racistas e o privilégio atribuído ao branco 
imperam como subtexto de raça no consenso intersubjetivo da 
cultura, ou seja, como fenômenos da ordem natural das coisas. 
(NASCIMENTO, 2009, p.188). 
Santana (2015, p.13) fala em seu livro quando se reconheceu e se 
descobriu negra: ‘‘Tenho trinta anos, mas sou negra há dez anos, antes era 
morena.’’ Ela demorou vinte anos para se apropriar da sua negritude. Assim 
como eu, conforme exposto em meu relato, ela se descobriu negra somente na 
fase adulta. Transparece-nos, pois, o embranquecimento social, estado no qual 
se observa relutância do indivíduo em se aceitar como negro. 
O problema é saber se é possível ao negro superar seu sentimento 
de inferioridade, expulsar de sua vida o caráter compulsivo, tão 
semelhante ao comportamento fóbico. No negro existe uma 
exacerbação afetiva, uma raiva em se sentir pequeno, uma 
incapacidade de qualquer comunhão que o confina em um isolamento 
intolerável. (FANON, 2008, p.59). 
Todavia, ao atingir esse ideal de pertencimento negro, encontramos 
pessoas que se aceitam por serem quem são. Cansadas de deixarem os 
cabelos presos, passam a usar cabelos black power, seus turbantes, tocam 
tambores, emanando suas cores para todos, espalham seus molejos, sua 
dança, sua identidade negra, ou seja, expressam a luta de um povo que 
combate a crueldade vivida. Em concordância com Fanon (2008, p.56), ‘‘Se 
sou negro não é por causa de uma maldição, mas porque, tendo estendido 
 
23 
 
minha pele, pude captar todos os eflúvios cósmicos. Eu sou verdadeiramente 
uma gota de sol sob a terra...’’. 
Nesse cortejo, julgo que meu compromisso é levar as bailarinas 
envolvidas na vivência em questão à compreensão de que o maracatu é uma 
manifestação dançante, uma exaltação de corpos negros que celebram, 
reverenciam sua ancestralidade, afirmam modos de ser e estar no mundo por 
meio da sua identidade cultural e reivindicam o seu pertencimento e 
valorização, em uma sociedade discriminatória e excludente. Nesse sentido, 
meu intento está na direção de fazer com que elas reconheçam e experienciem 
a essência de manifestações populares de motrizes afro-brasileiras e 
compartilhem suas histórias, as quais podem ser atravessadas pelas histórias 
dos seus antepassados, e pensá-las em uma manifestação da arte na qual o 
corpo é uma linguagem que: 
Transmite mensagens, conta histórias, expressa marcas de sua 
própria dança no tempo e no espaço, se ressignificando no presente 
como possibilidade de celebrar e provocar transformações na vida em 
comunidade e, consequentemente, na história. (NOGUEIRA, 2018, p. 
28). 
 
 Enquanto exercício crítico, este cortejo é também uma homenagem a 
Miguel Otávio da Santana da Silva, 5 anos, que caiu do 9° andar por desleixo 
da empregadora da mãe (2020); Ana Carolina de Souza Neves, 8 anos, morta 
por uma bala perdida na cabeça, foi atingida dentro de casa (2020); Marcos 
Vinícios, 14 anos, baleado na barriga e morto pela PM do Rio de Janeiro, indo 
para escola e usando uniforme escolar (2018); Ágatha Felix, 8 anos, baleada 
nas costas pela PM do Rio de Janeiro, quando voltava para sua casa (2019); 
às mais de cinco milhões de pessoas que foram trazidas para o Brasil e aqui 
escravizadas; E pelas demais vítimas que tiveram suas vidas interrompidas 
pelo RACISMO, ainda latente em nosso país. 
 Caro leitor, o caminho se direciona agora à rua 
#VIDASNEGRASIMPORTAM, que evidencia o quanto precisamos valorizar 
uma cultura NEGRA. Cabe-nos orientar as nossas crianças, que são o futuro 
do nosso país, estimulando-as ao entendimento que conduz à busca pela 
igualdade de direitos, pelo reconhecimento da identidade de cada povo. O 
respeito, pois, necessita ser exercido, para que ninguém,mas ninguém 
mesmo, perca o direito de viver por apenas ser de determinada cor. Em face 
 
24 
 
desta necessidade de protesto, planejo este cortejo, que nos guia a um 
MARACATUCAR na consciência, em uma reflexão para a construção de um 
mundo melhor. 
No que tange à metodologia usada, foi feito um planejamento de 
Oficinas Maracatucar, a partir da referência da manifestação artística do 
Maracatu Nação, em diálogo com a narrativa de natureza descritiva e por uma 
abordagem qualitativa. A narrativa nesse cortejo está presente no 
atravessamento entre as narrativas da pesquisadora e as narrativas da dança 
do maracatu e de seus brincantes (entrevistados em 2021) das nações de 
maracatu Sol Brilhante e Raízes de África, ambos de Recife/PE. Há, então, um 
entrecruzamento com as narrativas criadas pelas participantes no processo 
criativo, de modo a entender que a narrativa é uma forma de compreender a 
experiência humana e de que ‘‘as pessoas precisam ser entendidas como 
indivíduos, que estão sempre em interação e sempre inseridas em um contexto 
social.’’ (SAHAGOFF, 2015, p.02). 
A pesquisa narrativa é um estudo da experiência como história, 
assim, é principalmente uma forma de pensar sobre a experiência, 
que pode ser desenvolvida apenas pelo contar de histórias, ou pelo 
vivenciar de histórias. A narrativa é o método de pesquisa e ao 
mesmo tempo o fenômeno pesquisado. (SAHAGOFF, 2015, p.06). 
 
Utiliza-se, para isso, uma abordagem qualitativa, a qual se caracteriza 
como: ‘‘A busca constante de novas respostas e indagações; a retratação 
completa e profunda da realidade’’ (VENTURA, 2007, p.384). Conforme 
descrito, o paradigma metodológico aqui utilizado estimula: 
Novas descobertas, em função da flexibilidade do seu planejamento; 
enfatizam a multiplicidade de dimensões de um problema, 
focalizando-o como um todo e apresentam simplicidade nos 
procedimentos, além de permitir uma análise em profundidade dos 
processos e das relações entre eles. (VENTURA, 2007, p.386). 
O trabalho está estruturado nessa parte introdutória e se segue em dois 
capítulos, nos quais discutiremos sobre o contexto sociocultural e histórico dos 
personagens (presentes no Maracatu Nação) e refletiremos sobre os processos 
de criação elaborados a partir deles. No primeiro capítulo, abordaremos, por 
intermédio das memórias das damas do paço, uma síntese da história do 
período escravista no Brasil, como também o sagrado das calungas, que 
deram subsídios para a realização das oficinas: Cheiro doce-amargo e 
Experienciando o sagrado das calungas. No segundo capítulo, discorreremos 
 
25 
 
sobre o contexto histórico dos reis negros do Congo, sobre as baianas ricas, as 
catirinas e os caboclos, elementos que originaram as oficinas: Experienciando 
o contexto da realeza do maracatu, As baianas e as catirinas e Experenciando 
a ancestralidade indígena. Por último, encontra-se a parte conclusiva, na qual 
apresentaremos uma discussão acerca dos resultados obtidos no percurso 
desse cortejo escrito, no que diz respeito às questões raciais e ao enaltecer da 
cultura negra. 
Enfim, chegamos ao final do Abrindo Alas, vamos agora adentrar a Ala I. 
ALA I: MEMÓRIAS DAS DAMAS DO PAÇO 
Imagem 3: A dama do paço e a sua calunga. 
 
Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no 
ano de 2022. 
Agradecemos ao porta-estandarte pela abertura do nosso cortejo e por 
ter trazido todos até aqui. Agora nós, as damas do paço, iremos resgatar 
nossas memórias de um passado cruel, da época escravista, que revela muito 
sobre o sofrimento, a luta, existência e resistência dos povos negros! 
SEGUIMOS ANDANDO... 
1.1 A história do povo negro 
 
26 
 
Nossos passos agora seguem em uma travessia marítima, leva-nos a 
navegar por águas turvas; nelas há sangue, por elas ondas fortes foram 
capazes de simbolizar destruição de culturas e de identidades de povos 
advindos do continente africano. Navegamos num mar repleto de memória da 
transformação de um ser humano, de um indivíduo indigno de liberdade, 
apenas digno de se calar, trabalhar, sofrer, morrer. Embarcamos então no 
contexto histórico do negro que foi trazido ao Brasil de forma impiedosa. 
A história do negro brasileiro não teve início com o tráfico de 
escravos. É uma história bem mais antiga, anterior à escravidão 
nas Américas, à vida de cativo no Brasil. Trata-se de uma saga que 
se cruza com a aventura dos navegadores europeus, principalmente 
os portugueses, e com a formação do Brasil como país. 
(ALBUQUERQUE, 2006, p. 13). 
 Na África do século XV, período em que colonizadores europeus 
desembarcaram neste território, a organização socioeconômica se baseava em 
vínculos de parentesco e era comum que ocorressem guerras tribais, no intuito 
de conquistar territórios férteis que possibilitassem condições satisfatórias de 
subsistência. Destes confrontos, uma prática recorrente por parte dos 
vencedores era a escravização de uma parcela dos povos perdedores, isto é, a 
escravização doméstica. Se valendo deste aspecto cultural e, evidentemente, 
de uma subjugação do valor humano dos sujeitos, comerciantes africanos em 
associação com exploradores da Europa redesenharam este processo de 
guerra e aprisionamento de cativos, transformando-o em um mercado lucrativo 
e bastante disputado (ALBUQUERQUE, 2006). 
Perante o rentável tráfico de escravos, exposto anteriormente, o 
contexto vigente à época possibilitou que negros fossem tratados como 
mercadoria, e não como seres humanos, inclusive a mais barata do mercado, 
como canta Elza Soares em sua regravação da música ‘‘A carne’’, a qual 
possui tom crítico perante o racismo instaurado em nossa nação e cuja autoria 
se deve a Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, em 1998. Segundo 
Schroder (2019), no Brasil, os desembarques dos navios negreiros tiveram seu 
início em 1530. Nosso país foi o que mais recebeu escravos, num total de 4,8 
milhões de africanos, aproximadamente, vindos de Angola, Congo, 
Moçambique, Golfo de Benim, Gana e Nigéria. A viagem ao Brasil durava dias, 
meses; em condições precárias, muitos morriam, alguns se atiravam ao mar, 
 
27 
 
pois entendiam que a morte era a solução imediata para o sofrimento; aqueles 
que sobreviviam eram negociados com os compradores. 
Faz sentido, neste momento, entender que este princípio de 
inferiorização, o qual sustenta a escravidão, tem como cerne a remoção de 
direitos civis, políticos e sociais dos negros, isto é, a impossibilidade de se 
praticar a cidadania. Uma vez que o negro foi privado de liberdade e deslocado 
de sua origem, e levando em consideração que a sua cultura era estritamente 
relacionada aos vínculos familiares e comunitários, houve uma ruptura com 
aquilo que o tornava pulsante no mundo: a sua percepção de pertencimento. 
Sem esta característica e, portanto, sem a capacidade de ser cidadão, tornou-
se, acima de tudo, um ser sem honra e sem raiz. O recorte aqui tratado faz 
parte de uma sistemática usada em outros tempos históricos e em outras 
ocasiões, a exemplo do antissemitismo e extermínio de judeus na Alemanha 
nazista. Conforme salienta Arendt (1989), é através da liberdade e da 
cidadania que surge a base para a realização plena da condição humana. 
Moura (2004) revela em seu livro - ‘‘Dicionário da escravidão negra no 
Brasil’’ - as condições desumanas vividas pelos negros escravizados, dentre 
elas as más condições de trabalho, falta de segurança, longas horas de 
trabalho e alimentação escassa. Tratado como mercadoria, um negro morto 
poderia ser reposto. O autor conta ainda os castigos cruéis que eles sofriam. 
Um deles era o açoite, em que ‘‘atava-se o paciente solidamente a um esteio e, 
depois, despidas as nádegas, eram flageladas até ao sangue, às vezes até a 
destruição de parte do músculo’’ (MOURA, 2004, p.17). Esse é apenas um 
exemplo dentre inúmeros casos de atrocidadesocorridas com essas pessoas 
escravizadas. 
As mudanças sociais e econômicas geradas pela Revolução Industrial, 
embrião do processo de produção capitalista, trouxeram a necessidade de 
fomento da economia de mercado, ou seja, da existência de uma massa de 
consumidores. O escravo, enquanto ser que não possuía remuneração e, desta 
maneira, que não poderia comprar, passou gradativamente a ser encarado 
como uma figura incompatível com a realidade em ascensão. Aliado a esta 
pressão externa, apelos internos (pautados por um lado no receio de rebeliões 
 
28 
 
escravistas e no entendimento de que o escravismo impedia a modernização 
da nação; por outro, na compreensão de que escravizar era desumano) deram 
força ao movimento abolicionista brasileiro. Embora tenha havido certo 
sucesso, com a decretação da Lei Áurea em 1888, a abolição não permitiu aos 
negros a inserção na sociedade, uma vez que não só foram mantidas as 
relações de subserviências aos quais eram expostos, mas também o racismo e 
o preconceito (MACHADO, 2021). Revelou-se, assim, que só libertar não foi o 
suficiente, porque a lei por si só não garantiu ao negro: trabalho, moradia, 
alimentação, educação, segurança. Nenhum direito básico foi atribuído a ele 
naquela época. Havia, pois, pessoas livres, contudo ainda sem valor na 
sociedade. 
Cento e trinta e quatro anos se passaram da abolição da escravidão e é 
fato que o negro ainda sofre exclusão social, esta que simplesmente se 
naturalizou no nosso país. Infelizmente, o olhar de uma certa parcela da 
população brasileira, que acredita num falso sentimento de superioridade, ao 
enxergar uma pessoa negra, é de medo ou nojo. Esta porção da sociedade, 
encorajada pela impunidade e pelo status quo que favorece o ideal de 
supremacia branca, ainda marginaliza o negro. A exclusão social, derivada 
como consequência natural desta marginalização que se arrasta desde os 
primórdios do abolicionismo brasileiro, expressa-se no constante exercício de 
impedimento das potencialidades humanas das quais o negro, como qualquer 
sujeito, dispõe; ao mesmo tempo, se exige que as necessidades do negro se 
adaptem aos serviços públicos prestados (e não o contrário, como seria o 
correto); ainda, em uma manobra que aniquila a representatividade política, o 
negro é tratado como objeto de manipulação, cujo voto pode ser trocado por 
pequenos favores (ESCOREL, 1993). 
No tocante ao mercado de trabalho, os cargos ocupados por pessoas 
negras são aqueles voltados a prestar um serviço como empregado doméstico, 
vendedor de loja, babá, jardineiro, entre outras profissões com pouco prestígio 
social. Há também forte aversão ao sujeito negro, a qual se manifesta em não 
querer compartilhar o mesmo espaço, ou até mesmo não ter contato, como se 
a negritude fosse uma doença contagiosa. São acontecimentos inadmissíveis 
em pleno século XXI, mas que são ainda muito corriqueiros nos tempos 
 
29 
 
hodiernos, muito em virtude de termos uma naturalização do racismo em nossa 
cultura. Lima (2020), em uma alusão à obra literária de Huxley, torna claro o 
modus operandi deste processo: 
No livro Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley descreve uma 
distopia, onde o controle social é conduzido por uma série de 
procedimentos de condicionamento e de drogas psicoativas. A 
hipnopedia é uma dessas técnicas, ela consiste em ensinar as 
máximas do controle social enquanto o indivíduo dorme, por 
repetições intensivas de mensagens (...) A cultura faz conosco algo 
semelhante em relação aos estereótipos e preconceitos. Eles são 
transmitidos culturalmente e assimilados pelos indivíduos muitas 
vezes de forma automática, quase que inconscientemente, “enquanto 
nossa consciência dorme”, através de associações, repetições, enfim, 
produção de hábitos. (LIMA, 2020, p. 62). 
 A fim de exemplificar, trago narrativas de discriminação raciais sofridas 
por amigos meus, colhidas em conversas pessoais, em que eles relataram 
situações desagradáveis que vivenciaram em razão da sua cor de pele ser 
preta; vejamos os relatos de Maria Santos, Júlia Oliveira e Pedro Lima16: 
Já sofri racismo e preconceito por conta da cor de minha pele e pelo meu tipo 
de cabelo. Na verdade comecei a sofrer desde a época de escola por não ter um 
"padrão" de cabelo específico como as outras alunas da época, me deixando fora de 
trabalhos, atividades em grupos muitas das vezes e racismo no cotidiano por 
desconfiarem de que eu estivesse fazendo algo errado, ou que por conta de minha cor 
eu não teria condições de ter algo na vida, ou até que já chegou num ponto de se 
negarem a me vender um produto de maquiagem, porque no dia e na loja 
especificamente logo me disseram que pra o meu tipo de cor essa loja não trabalhava 
com o produto ‘‘x’’. 
Narrativa: Maria Santos, 2022. 
 Já sofri muita discriminação devido a minha cor e meu cabelo, com apelidos do 
tipo nega maluca, cabelo de bucha, cabelo de bombril e entre outros que não gosto de 
citar. 
Narrativa: Júlia Oliveira, 2022. 
Minha família (pais e irmãs) é negra, dentro de uma família onde a maioria 
eram brancos. Sofríamos piadas dos primos, tios e éramos muito rejeitados por nossa 
 
16 Os nomes citados são fictícios. 
 
30 
 
cor. Minha mãe era empregada doméstica e às vezes me levava para o trabalho dela e 
lá o preconceito continuava, não podia brincar ou ficar dentro da casa, às vezes ficava 
no jardim a margem daquela pomposidade. Morávamos em uma casa de sapê no fundo 
do quintal de minha avó, sem energia elétrica e diante disso as dificuldades só 
aumentavam. Meu pai chegava às vezes alcoolizado, talvez por não ter condições de 
nos dar uma vida melhor. Minha mãe, analfabeta, era empregada doméstica, mas 
sempre investiu em nossa educação. Estudávamos em uma escola particular muito boa, 
porém distante e muitas vezes eu e minha irmã saíamos para a escola sem ter almoço, 
sem levar lanche. Quando chegava fazia minhas atividades à luz de vela ou candeeiro. 
Lembro que para assistir TV, tinha que ir para a casa dos meus amigos da rua e nem 
sempre os pais deixavam. Isso não me afligia muito na época por ser criança, apenas 
vivenciava minha infância, fazendo meus brinquedos de lata de leite, improvisando 
objetos, mas fotografava na minha mente tudo aquilo e ansiava por um dia tudo aquilo 
ser diferente. Em algum momento da minha vida inclusive, já quis ter a pele branca, a 
mídia da minha época de infância e juventude enfatizava que o belo vinha da pele 
branca. O galã da novela era branco enquanto o negro era empregado, escravo, menos 
o artista principal. Os cantores de sucesso eram em sua maioria brancos...os bailarinos 
brancos. Então éramos vítimas da sociedade. Comecei a me aceitar quando criei uma 
nova consciência, quando vi o negro lutar pelos seus direitos, quando começaram a 
valorizar o cabelo crespo, a comida típica, a entender toda a luta, sofrimento e 
conquista de um povo. Então tudo mudou. Hoje valorizo minha pele negra, minha 
cultura, respeitando essa diversidade brasileira. Hoje sou educador, herança desse 
período que minha mãe tanto lutou. Hoje eles não estão mais aqui entre nós, mas 
certamente se orgulhariam por quem me tornei. 
Narrativa: Pedro Lima, 2022. 
A intenção aqui é enfatizar o quanto a cor de pele influencia a forma com 
a qual a pessoa é tratada, as oportunidades que lhe são ofertadas e como se é 
visto pelo outro. Os sentimentos gerados a partir de situações discriminatórias 
são fatores determinantes na trajetória de uma pessoa. 
O negro cansou de tanto receber não, 
muitas vezes encontra no crime um meio de ganhar o pão. 
E a escola não é mais uma opção, 
 
31 
 
então não entenderá que só ela é a solução. 
No fim o negro vira mais uma estatística, 
de mais um negro morto pela criminalização, 
e mesmo sem ser ladrão, mas por ser negro, 
É MORTO SEM EXPLICAÇÃO. 
(NOGUEIRA, 2021, p.04) 
1.2 Oficina Maracatucar I: O cheiro doce-amargoNessa oficina, propicio às bailarinas a oportunidade de dançarem o 
doce-amargo. Antes de iniciar nossa experiência, vamos conhecer um pouco 
daquelas que compõem esse cortejo, os corpos dançantes que aceitaram 
dançar e serem catucadas pelo Maracatu. 
A Escola de Balé Sonhos é administrada pela professora de balé 
clássico Ruth Dayane. Fundada no ano de 2016, localizada no município de 
Monte Alegre/RN, conta hoje com turmas de balé infantil, balé adulto iniciante e 
turmas nível intermediário e avançado da referida dança, além da turma de 
contemporâneo, ministrada por mim desde 2021, que tem em sua composição 
quatro bailarinas. A fim de conhecê-las melhor, foi feito um questionário17 - com 
cincos questões, relacionadas a informações básicas (nome, idade e 
profissão), bem como a suas experiências no campo da dança (se tinham 
vivências nas danças populares), além de averiguar se já sofreram algum tipo 
de discriminação, racial ou por qualquer outra característica física, e como 
conceituam o racismo - cujas respostas descrevo abaixo. Sendo assim, 
seguimos agora pelas narrativas das nossas bailarinas que aceitaram se 
transformar em brincantes de Maracatu Nação: 
Ruth Dayane, 24 anos, é professora de balé clássico, começou 
inicialmente na dança com a dança litúrgica e foi se aprimorando com o passar 
do tempo com as aulas de balé clássico em algumas escolas. Nunca dançou 
dança popular e também nunca passou por nenhuma discriminação, declara-
nos que o racismo é um tema que deve ser muito bem discutido; para ela, é 
uma causa que deve ser lutada e apoiada por todos; acredita que é necessário 
 
17 Confira o questionário na entrevista do Apêndice A, p.86. 
 
32 
 
lutar por igualdade e respeito, pois cor não interfere de forma alguma na 
capacidade e caráter de um ser humano. 
Imagem 4: Ruth Dayane. 
 
Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no 
ano de 2022. 
Abynna Safira, 16 anos, é estudante. A dança sempre foi presente em 
sua vida e a ajudou a se expressar de uma forma diferente (sempre teve 
dificuldade com isso). Já dançou dança popular, como carimbó, coco de roda e 
forró. Sentiu-se representando as raízes do povo brasileiro e, principalmente, 
dos nordestinos. Nunca sofreu discriminação por sua cor, mas sofreu bullying 
por um tempo pelo seu jeito de ser. Sobre o racismo, ressalta que sempre que 
pode tenta manter o respeito e a dignidade das pessoas que lutaram por essa 
liberdade, por esse direito, seja em um texto, seja em ações do cotidiano. 
Imagem 5: Abynna Safira. 
 
Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no 
ano de 2022. 
 
33 
 
Sarah Nascimento, 18 anos, é estudante. Seu primeiro contato com a 
dança foi através do teatro, onde ela fazia aulas de música, desenho e se 
apresentava em peças; daí surgiu o ballet clássico. Desde então, segue 
dançando e conhecendo outras modalidades. Sobre as danças populares, teve 
uma breve experiência com forró e carimbó em que sentiu dificuldades para 
dançar, pois são ritmos que não tem muito conhecimento. Nunca sofreu 
discriminação pela cor. Relata que, como uma pessoa branca, nunca sofreu 
racismo; o que pode fazer é estudar e tentar combater. 
Imagem 6: Sarah Nascimento. 
 
Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no 
ano de 2022. 
Vitória Fernandes, 22 anos, é assistente administrativo. A dança em sua 
vida se iniciou aos 6 anos de idade, na dança clássica; em 2018 conheceu uma 
grande amiga que a possibilitou experimentar novas formas de dança; 
aventurou-se, então, na dança contemporânea. Aos 18 anos de idade, 
começou a graduação de Licenciatura em Dança na Universidade Federal do 
Rio Grande do Norte e hoje permanece no ballet clássico e na dança 
contemporânea. Sobre as danças populares que teve acesso, destaca apenas 
o forró. Sua vivência com o forró foi desafiadora, dada a padronização de um 
modelo que já vinha sendo vivido por ela desde a infância; reconhece, assim, 
que o forró na prática foi libertador, pois permitiu mexer o corpo em sua 
totalidade. Na infância e adolescência, passou por várias situações 
desagradáveis pelo fato de ter a parte frontal do crânio (testa) mais 
desenvolvida. Por muito tempo, não conseguiu aceitar essa diferença que tinha 
 
34 
 
em relação às demais pessoas, sofria por causa dos apelidos que colocavam 
nela. Em uma determinada fase da sua vida, também a chamavam de magrela 
pela sua estrutura física e muscular. Com base nisso, acredita que nenhuma 
dessas situações se compara à dor de sentir a rejeição por causa da cor da 
pele, essa dor ela nunca poderá mensurar. Ressalta que se sentir rejeitado por 
causa de alguma diversidade física ou mental é algo destruidor! A rejeição 
causa dor, faz pensar que somos insuficientes e que não somos merecedores 
para desfrutar da vida. Logo, traz a memória a metáfora do Schopenhauer, que 
trata do dilema do ser humano: "Somos uma espécie de porco-espinho" - 
quando estamos juntos, causamos dores uns nos outros; quando estamos 
separados, passamos frio. Compreende que a grande questão sobre esse 
dilema é que, quando não sabemos lidar com as diferenças e as 
particularidades de cada um, provocamos e somos agentes de sofrimento, e 
que respeitar, em termos simples, seria uma forma de mudar essa cultura 
enraizada. Por fim, conceitua que o preconceito racial não existe apenas no 
Brasil, mas no mundo todo. No Brasil tudo começou na colonização dos 
portugueses com o "descobrimento" do país, visto que já existia povos que 
habitavam essa terra; neste instante, começou a acontecer atos de 
discriminação, contra os povos nativos e mais tarde contra os negros, que 
começaram a ser escravizados e maltratados. Dessa maneira, essa 
propagação de ódio tem repercussão até os dias atuais e isso é inaceitável, se 
torna um descalabro com a vida humana. Na Constituição Federal, o artigo V 
nos diz que todos são iguais perante a lei e sem distinção de qualquer 
natureza. Desse modo, é preciso reconhecer em primeiro ponto que temos 
uma "causa" que precisa ser mudada com extrema urgência, pois é direito, é 
notório, é perceptível que somente uma educação poderá salvar e transformar 
as mentes e as atitudes humanas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
35 
 
Imagem 7: Vitória Fernandes. 
 
Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no 
ano de 2022. 
Apresentamos um pouco das trajetórias das nossas bailarinas para que 
você, caro leitor e cara leitora, possa conhecer os corpos que compõem esse 
cortejo, as experiências dançantes, as subjetividades de cada uma, estas que 
farão com que esse processo siga em determinado fluxo. Vale salientar que 
você, aqui presente como aquele que toma conhecimento destas narrativas por 
meio das minhas palavras, ao ler esse cortejo e vivenciar comigo esse 
processo, também faz parte desse maracatucar. Então eu lhe pergunto: está 
preparado para dar o passo seguinte em direção à oficina maracatucar I: o 
cheiro doce-amargo? 
Antes de irmos, é preciso que façamos uma reflexão acerca de um fato 
interessante que é percebido nas narrativas das nossas participantes, que é a 
ausência da discriminação racial. Por que será que isso acontece? Como é 
percebido nas fotos, todas elas possuem a pele branca ou de tom bem claro, 
que não chega a ser um tom de pele de uma pessoa preta. É notório o quanto 
isso influencia no desconhecimento da dor de ser subjugada pelo seu tom de 
pele, de serem privadas de oportunidades de inserção social. Provavelmente, 
essas jovens não experienciaram olhares discriminatórios e de indiferença. 
Situação diferente se encontra nas narrativas descritas no capítulo anterior, em 
que percebemos relatos carregados de situações discriminatórias. Em geral, 
podemos inferir que, a cada pessoa negraque eu fizesse tal pergunta, 
teríamos relatos cheios de violências, sejam elas de cunho verbais, físicas ou 
 
36 
 
simbólicas, que podem até parecer absurdos, mas que infelizmente são 
práticas que foram se consolidando, se tornando naturais para pessoas negras 
pelo mundo. 
Andemos então em direção à nossa oficina, que se iniciou com um 
aquecimento corporal por meio da experimentação das ações cotidianas, no 
que diz respeito ao processo de produção baseado na cana-de-açúcar. Foram 
exploradas as movimentações de cortar, empurrar, descascar e mexer. Foi um 
momento de tentar buscar no corpo diversas possibilidades de se mover. 
 Estando aquecidas, as meninas imergiram na metodologia de Patrícia 
Leal, a Dança/Arte pelos Sentidos (2012), que nesse cortejo possibilitou a elas 
um processo de criação através de percepções do olfato e do paladar. No que 
tange à esta metodologia, o processo de criação se inicia com o sentir o cheiro, 
em uma busca de perceber o ponto de origem, o movimento primário, que Leal 
(2012) considera ser a matriz do movimento. Trata-se de um movimento 
pequeno, sutil, que para percebê-lo é preciso estar atento, presente de corpo 
inteiro, estar consciente para realmente identificar e perceber, sem julgamentos 
prévios, afinal, ele será o ponto inicial de todo o processo criativo. Em nossa 
oficina, as bailarinas tiveram como referência o cheiro da cana-de-açúcar: 
A produção do açúcar era monopólio do Oriente Médio e que, para 
romper esse monopólio, a coroa portuguesa decidiu iniciar essa 
atividade em solo brasileiro. Os negros eram considerados a mão de 
obra mais qualificada para o plantio e a colheita da cana-de-açúcar 
devido ao fato de já terem sido escravizados na atividade açucareira 
na Península Ibérica, onde o plantio já ocorria há cerca de 100 anos. 
(GONZAGA, SANTANDER, REGIANI, 2019, p.27). 
A história revela a cana-de-açúcar, matéria-prima do açúcar, da cachaça 
e do álcool, como um dos produtos responsáveis pelo avanço econômico no 
nosso país a partir do século XVII. Através da mão de obra escrava dos negros 
trazidos da África, em uma mistura de sofrimento e rotina de trabalho insalubre, 
os derivados desta planta se fizeram presentes na rotina do povo brasileiro 
(SILVA, 2010). 
O documentário 500 anos: Brasil colônia na TV, episódio 02: Cana de 
mel, preço de fel nos mostra que a realidade da monocultura de cana-de-
açúcar se estabeleceu principalmente no território de Pernambuco, localizado 
 
37 
 
no nordeste brasileiro. Evidencia ainda as etapas de produção da época 
escravista, destacando a atenção requerida por parte dos trabalhadores em 
busca da excelência, pois qualquer erro poderia desencadear um grande 
prejuízo para os donos do engenho (o que certamente traria castigo aos 
negros) ou causar mutilações e acidentes. Primeiro a cana era colocada em 
uma moenda para que fosse extraído o caldo ou garapa; o líquido produzido 
era levado até a casa de fornalha para ser cozido e apurado em caldeiras de 
cobre; depois o caldo já cozido era despejado em formas onde esfriava e 
cristalizava; por fim, era pulverizado e colocado ao sol. 
 Silva (2010) enfatiza que a produção de açúcar exige um conhecimento 
técnico elevado, portanto, enquanto os escravos eram obrigados a trabalhar 
gratuitamente e faziam a maior parte do trabalho, existiam os especialistas 
remunerados para supervisionar cada etapa, no intuito de evitar déficit 
produtivo. 
Num primeiro momento, nós poderíamos ser induzidos a pensar que 
todos os trabalhadores envolvidos na produção de açúcar seriam 
escravos, o que não corresponde à realidade. Se assim fosse, estes 
teriam uma poderosa ferramenta nas mãos contra o sistema. Bastava 
prejudicar irremediavelmente a produção de açúcar que destruiria as 
finanças do senhor de escravos. Sem o poder econômico, a luta 
contra a escravidão seria facilitada (SILVA, 2010, p.92). 
Um fato interessante ainda sobre a cana-de-açúcar é sobre a origem das 
palavras pinga e aguardente. Silva (2010) conta em seu texto ‘‘Cana de Mel, 
Sabor de Fel – Capitania de Pernambuco: Uma Intervenção Pedagógica com 
Caráter Multi e Interdisciplinar’’ a história que ouviu no Museu do Homem do 
Nordeste, localizado no Recife: 
No Brasil, para ter melado de cana, os escravos colocavam o caldo 
da cana-de-açúcar em um tacho e levavam ao fogo. Não podiam 
parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse. Porém 
um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, 
os escravos simplesmente pararam e o melado desandou! O que 
fazer agora? A saída que encontraram foi guardar o melado longe 
das vistas do feitor. No dia seguinte, encontraram o melado azedo 
(fermentado). Não pensaram duas vezes e misturaram o tal melado 
azedo com o novo e levaram os dois ao fogo. Resultado: o “azedo” do 
melado antigo era álcool que aos poucos foi evaporando e se 
formaram, no teto do engenho, umas goteiras que pingavam 
constantemente, era a cachaça já formada que pingava (por isso o 
nome - PINGA). Quando a pinga batia nas suas costas marcadas 
com as chibatadas dos feitores ardia muito, por isso deram o nome 
de “ÁGUA-ARDENTE”. (SILVA, 2010, pp. 91-92). 
 
38 
 
Nosso cortejo caminha pelo contexto histórico, social e econômico da 
cana-de-açúcar, pois o intuito da nossa oficina, além da criação pelo cheiro, é 
fazer com que as bailarinas reflitam sobre esta gramínea tão utilizada no nosso 
país, cuja origem revela muito a história do negro, este que trabalhou 
arduamente, teve seu corpo mutilado, sua liberdade privada, sua humanidade 
negada, para atender às demandas econômicas dos colonizadores. 
 Na busca do movimento matriz, as bailarinas tiveram certo tempo para 
sentir o cheiro e reconhecer a movimentação primária. Cada uma, em sua 
experiência, sentiu o cheiro e se moveu, em uma percepção de um movimento 
sútil, o qual será o ponto inicial da nossa jornada coreográfica. 
Imagem 8: O cheiro doce-amargo I. 
 
Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no 
ano de 2022. 
A cana-de-açúcar, um cheiro doce-amargo, 
levanta as sobrancelhas de alguns, 
levam a cabeça para trás, para frente ou para o lado esquerdo, 
expande o tórax, treme o rosto, contrai o pescoço! 
 
39 
 
 Nesse singelo poema, de autoria própria, revelo os movimentos matrizes 
das bailarinas que nos levam à segunda etapa da metodologia Arte/Dança 
pelos sentidos: a criação de células, que são pequenas estruturas de 
movimentos potentes que derivam da matriz, sendo responsáveis por 
desencadear o desenvolvimento coreográfico (LEAL, 2012). As bailarinas 
nesse momento experimentaram os movimentos que fluíam após o movimento 
matriz. Tratou-se, portanto, de um período de escuta do corpo, de sentir 
novamente o cheiro, de repetir a matriz e deixar a movimentação fluir. 
A terceira etapa foi a exploração e o desenvolvimento de frases e temas, 
estes que podem ser pequenos ou grandes; são variações mais compostas, 
tecendo relações entres as células criadas; em suma, é um aprofundamento de 
movimentações tecidas pelo criador (LEAL, 2012). Nesse instante foram 
acrescentados mais dois estímulos ao processo: além do cheiro, as bailarinas 
tiveram que degustar a cana-de-açúcar ao som de uma cena do filme 12 anos 
de escravidão, lançado no cinema em 21 de fevereiro de 2014, dirigido por 
Steven McQueen, com roteiro de John Ridley. 
Nesse momento, faço um convite para que você também participe desse 
momento. Infelizmente, é improvável que seja possível degustar a cana-de-
açúcar, mas, se tiver algum produto derivado dela, sinta-se à vontade em 
pegar. As instruções são as seguintes: coloque o produto na boca (caso tenha), 
clique no link a seguir - https://www.youtube.com/watch?v=6PzU3x9IloQ/ - e 
feche os olhos. 
A vivência, há pouco descrita, foi um momento muito forte e significativo 
da oficina, creio que tenha sido para você também. Interessantesalientar que, 
após a experimentação, as bailarinas afirmaram que foi difícil engolir o gosto 
doce ao som do amargo. Houve um processo de reflexão sobre o contexto 
histórico e social da cana-de-açúcar, que traz consigo, na verdade, toda uma 
trajetória de dor, de luta, de resistência do povo negro no Brasil. 
 A quarta etapa foi a definição da estrutura coreográfica, juntando e 
estruturando todas as frases criadas pelos sujeitos. A oficina maracatucar I tem 
sua estrutura pautada em improvisação, que é um dos recursos utilizados para 
exploração de movimentações em criação em dança; por vezes, também é 
https://www.youtube.com/watch?v=6PzU3x9IloQ/
 
40 
 
resultado final de um processo que alia criação e interpretação no momento 
presente. Vale salientar que, para improvisar em dança, é necessário que o(a) 
bailarino(a) desenvolva um amplo repertório e tenha muita técnica para lidar 
com a criação e a interpretação no momento da apresentação, entendendo 
esse lugar de improviso como transformador, que pode se renovar e tecer 
novos caminhos, os quais potencializam o movimento no presente. Nesse 
sentido, a improvisação exige uma ampla consciência do corpo, do outro, do 
espaço e do público (LEAL, 2012). 
Partindo desse pressuposto, com a improvisação, com todo o repertório 
desenvolvido na oficina e com os estímulos sonoros dos batuques de 
Maracatu, as bailarinas teceram uma materialidade em dança. 
A materialidade em suas transformações na criação coreográfica. A 
materialidade como linguagem, fluxo pulsional da motricidade. Os 
recursos da materialidade em processo em improvisação, em 
exploração máxima são valorizadas como linguagem artística. (LEAL, 
2012, p. 116). 
 
O processo de criação é um lugar de construção e desconstrução, é um 
espaço à espera de preenchimento pelo sentido do criar. Neste intuito, é 
preciso se desprender do que já está pronto e dar sempre lugar ao novo, seja 
no espaço (cenografia) ou no corpo (movimento), dando liberdade à 
criatividade pois "é no corpo livre que tudo nasce ou morre" (BROOK, 2002). E 
isso demanda: 
Presença, demanda que o aprendiz nele se coloque por inteiro. E 
exige relação com o outro. Entrar em contato, em sintonia com os 
signos é relacionar-se, deixar-se afetar por eles, na mesma medida 
em que os afeta e produz outras afecções. (GALLO, 2012, p.06). 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
41 
 
Imagem 9: O cheiro doce-amargo II. 
 
Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no 
ano de 2022. 
Imagem 10: O cheiro doce-amargo III. 
 
Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no 
ano de 2022. 
 A princípio iniciamos aquecendo com alguns movimentos como: movimentar 
ações que eram feitos na época da escravidão quando cortavam, mexiam, 
empurravam e descascavam a cana-de-açúcar. Logo depois começamos a sentir com 
a cana na boca e ouvir um som de um homem chicoteando a sua mulher e a sensação 
 
42 
 
foi de muita dor e sofrimento, eu me comprimi toda ao ver esses dois sentimentos de 
contradições: sentir algo doce na boca e ouvir a dor de alguém. Por último fizemos 
composição coreográfica, eu e mais duas amigas e foi a junção dos movimentos 
estudados. 
Narrativa: Ruth Dayane, 2022, p.02. 
 Em todo momento eu senti experimentando algo novo, foi muito interessante as 
novas perspectivas que experimentei. Já tinha parado para pensar sobre o movimento 
matriz, porém nunca tinha experimentado na dança, é engraçado que pouco 
percebemos o movimento, mas tudo começa partindo dele e com estímulos sonoros 
muitas vezes deixamos escapar o primeiro movimento. É bem relevante analisar que 
movimentos simples como: empurrar, descascar, mexer e cortar contam uma história, 
movimentos que inclusive fizeram parte de uma história de verdadeiros guerreiros. 
Nunca havia experimentado cana-de-açúcar e com certeza não vou esquecer da 
forma que a senti. 
Narrativa: Abynna Safira, 2022, p.02. 
 O começo da oficina partiu de estímulos sonoros associados à movimentos 
cotidianos nos engenhos de cana-de-açúcar: mexer, cortar, empurrar e descascar. A 
princípio achei difícil assimilar e criar movimentos a partir disso, mas a música fez com 
que fluísse com mais facilidade. A segunda experiência foi com a cana-de-açúcar, 
onde sentimos o cheiro e observamos qual a primeira reação do corpo diante disso: o 
movimento matriz. O meu foi uma elevação sútil da cabeça, esse foi mais fácil, era um 
exercício de atenção. Depois do cheiro, veio o sabor. Dois estímulos e um contraste: a 
doçura da cana com um áudio agressivo, amargo. Meu corpo encolheu, o maxilar 
travou, o doce se tornou difícil de sentir, senti desconforto. Esse movimento se uniu ao 
“matriz’’ e foi formada uma célula. Partindo da célula, foi desenvolvida uma frase, esta 
última individual, onde usei as composições anteriores mais alguns movimentos livres 
para uma coreografia. Por fim, fomos divididas em um trio e uma dupla para unir 
nossos movimentos. No início da aula senti dificuldades e uma certa estranheza, por 
ser uma dança que não estou habituada, mas no decorrer da música, práticas e 
estímulos consegui soltar o corpo. 
Narrativa: Sarah Nascimento, 2022, p.02. 
 Método: No início em particular foi uma experiência nova e desafiadora, a 
metodologia me fez desejar e me sentir envolvida em cada parte dando começo no 
momento da matriz que fez sentir os movimentos praticados pelas pessoas em seu 
cotidiano, tais como cortar, empurrar, descascar e mexer. Em cada movimento 
experimentamos passar pelos níveis alto, médio e baixo, dessa forma cada movimento 
vivido e expressado por cada membro do corpo. Momento de experimentação com a 
cana-de-açúcar: Em primeiro momento foi usado os sentidos de sentir e de 
degustação (olfato e paladar), ao sentir o sabor doce que a proporciona me fez se 
sentir leve, mas ao escutar o som me fez sentir angústia e dor, a cada chicotada e 
grito que a mulher ecoava me sentia triste e me fez pensar sobre à proporção que a 
dor nos causa. Momento de criação: Poder viver cada parte e criar foi algo que 
trouxe em meu corpo e mente uma novidade. Ao poder dançar o maracatu é como eu 
pudesse viver a dor e, ao mesmo tempo, a libertação dessa dor. 
Narrativa: Vitória Fernandes, 2022, p.02. 
 
43 
 
As narrativas acima foram extraídas do diário de bordo das bailarinas; 
em suas falas, notoriamente é percebido que elas estiveram de corpos 
presentes para essa oficina, cada uma em sua subjetividade teceu 
composições que revelaram toda a potência desse primeiro momento do 
estudo em questão. 
Vale salientar que os mecanismos usados na prática buscam fazer com 
que elas iniciem um processo de pensar sobre como é ser um corpo 
escravizado, tentar imaginar a dor de ser explorado, castigado, ser subjugado, 
ser tratado como propriedade de alguém. Porém, reconhecemos que uma 
prática apenas não é suficiente para realmente compreender o que aquelas 
pessoas passaram ou o que pessoas atualmente ainda sofrem em decorrência 
deste passado. Apesar do pouco tempo com as participantes, temos um 
catucar para que comecem a perceber, a pensar sobre como é ser negro em 
nosso país. Nesse primeiro momento, usou-se como meio uma 
experimentação que enfatiza o contraste presente no produto que era 
cultivado, este que adoça a vida, mas que é fruto do suor, do sangue das 
pessoas negras que o cultivaram, tornando-o amargo. Tal oficina buscou gerar 
o início de uma reflexão sobre a relação da produção da cana-de-açúcar no 
Brasil e a exploração da mão de obra escrava, que gera riquezas para os seus 
patrões às custas de suor, lágrimas e chibatadas, trazendo o pouco do 
contexto histórico e econômico que constitui esse período e sua repercussão 
tão ainda enraizada nos dias atuais. 
1.3 O sagrado do Maracatu 
O Maracatu Nação carrega em sua dança o sagrado do povo negro 
resistente e a luta pela valorização de

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