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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS AMANDA DE SOUZA NOGUEIRA MARA(CATUCANDO) QUESTÕES RACIAIS: UM CORTEJO EM HOMENAGEM À CULTURA NEGRA NATAL/RN 2022 AMANDA DE SOUZA NOGUEIRA MARA(CATUCANDO) QUESTÕES RACIAIS: UM CORTEJO EM HOMENAGEM À CULTURA NEGRA Dissertação apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Artes Cênicas. Área de concentração: Práticas Investigativas da cena: Poéticas, Estéticas e Pedagogias Orientadora: Prof.ª Dr.ª Larissa Kelly de Oliveira Marques NATAL/RN 2022 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS DEPARTAMENTO DE ARTES FOLHA DE APRESENTAÇÃO A apresentação da dissertação de mestrado intitulada “MARA(CATUCANDO) QUESTÕES RACIAIS: UM CORTEJO EM HOMENAGEM À CULTURA NEGRA”, apresentada por Amanda de Souza Nogueira, contou com a participação da seguinte banca: ________________________________________________ Prof.ª Drª. Larissa Kelly de Oliveira Marques - UFRN ORIENTADORA ________________________________________________ Prof. Dr. Adriano Moraes de Oliveira - UFRN EXAMINADOR ________________________________________________ Prof. Dr. Victor Hugo Neves de Oliveira - UFPB EXAMINADOR EXTERNO Nogueira, Amanda de Souza. Mara(catucando) questões raciais : um cortejo em homenagem à cultura negra / Amanda de Souza Nogueira. - 2022. 114 f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2022. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Larissa Kelly de Oliveira Marques. 1. Maracatu. 2. Cultura afro-brasileira. 3. Negros - Dança. 4. Criação na arte. I. Marques, Larissa Kelly de Oliveira. II. Título. RN/UF/BS-DEART CDU 793.3 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART Elaborado por Ively Barros Almeida - CRB-15/482 DEDICATÓRIA Dedico esta dissertação ao meu avô Cícero Estevam (in memoriam), exemplo de negritude e amor. Aos meus pais, Zélia Souza e José Nogueira, por todo apoio na minha trajetória e por serem a minha fortaleza. Dedico também àqueles e àquelas que, injustamente e sob o pretexto da supremacia racial, sofreram e foram privados de oportunidades. É a voz de uma cultura negra que precisa ser lida, ouvida e dançada! AGRADECIMENTOS Primeiramente agradeço a Deus, sou grata por todo dia ter o privilégio de acordar e conseguir correr atrás das realizações dos meus sonhos, agradeço-o por colocar pessoas que me ajudam nessa jornada e por todo o acolhimento e toda a força nos momentos difíceis. À minha mãe Zélia Souza e ao meu pai José Nogueira, por sempre apoiarem minhas escolhas, acreditar em mim, mesmo quando nem eu acreditava. Gratidão por sempre me fazerem sentir amor e proteção. À minha irmã, Aline Souza, por todo incentivo e por sempre ficar feliz com minhas conquistas. Aos meus sobrinhos, Juliana Nogueira, Maria Luiza e Luís Otávio, que com seus sorrisos me motivam a sempre continuar, apesar de fazerem bastante barulho em casa e, às vezes, atrapalharem na hora em que estava escrevendo a dissertação (risos). Ao meu companheiro e amigo Lucas Diego, que está ao meu lado em todos os momentos, que me apoia e me aconselha, sempre com muito carinho e amor me motiva a ir além, gratidão por tudo. À minha orientadora maravilhosa e paciente, Larissa Marques, que nesse processo de escrita sempre esteve presente, sendo compreensiva e disposta a ouvir e me fazer refletir sobre minhas ações, contribuindo para que essa dissertação seja uma possível contribuição para o campo das Artes Cênicas. À banca examinadora, o professor doutor Adriano Oliveira e o professor doutor Victor Oliveira, pelas contribuições e disponibilidade. À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pelo espaço de crescimento e formação, e ao Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas (PPGARC), por todo o conhecimento adquirido e por ser uma fonte de grandes artistas-pesquisadores nas artes cênicas. À turma de mestrado, em especial ao meu amigo Tales Atyhê e às mestrandas guerreiras que sempre me deram forças para não desistir. À escola de balé Sonhos por dar abertura para o desenvolvimento da pesquisa, à turma de dança contemporânea (Ruth Dayane, Abynna Safira, Sarah Nascimento e Vitória Fernandes) por se permitirem serem brincantes da cultura popular; meu muito obrigado a esses corpos que compuseram a essência prática desse cortejo. Um agradecimento especial ao mestre Walter, mestre Biu, Carlos Eduardo, Lucas Oliveira, Luiz Carlos e João Silva, por compartilharem suas narrativas e sabedorias sobre o Maracatu Nação. À Silas Braúna, coordenador do grupo Balé Popular Terras Potiguares, pelo empréstimo dos figurinos que foram utilizados nesse cortejo; à Olivia Macedo, que com sua ótica sensível/artística foi responsável por toda a parte de mídia do projeto; e a todos que direta ou indiretamente ajudaram para que esse cortejo fosse realizado. GRATIDÃO! RESUMO A dissertação em questão é um cortejo de maracatu no caminhar que enaltece a cultura negra. Propõe oficinas intituladas Maracatucar, em uma perspectiva de “catucar” (chamar a atenção) das bailarinas da turma de dança contemporânea da Escola de Balé Sonhos e você, caro leitor e cara leitora, sobre as questões raciais, além de provocar o fortalecimento das culturas negras, gerando, portanto, uma discussão em torno do maracatu enquanto movimento de luta negra, enquanto uma dança popular afro-brasileira, bastante presente, aliás, na nossa cultura nordestina. O estudo visa ressaltar as possibilidades (no que diz respeito aos processos de criação), existentes nos estudos do campo da dança, na procura de um reconhecimento sobre ser um corpo negro na sociedade e como isso reflete no contexto social. Ademais, está presente o intuito de estudar e mostrar, nesse cortejo, os elementos do maracatu para compreender e valorizar sua religiosidade, sua estética da dança e a identidade de uma comunidade negra - que sofre diariamente discriminação. Há, portanto, o propósito de iniciar uma reflexão acerca da identidade cultural afro-brasileira. No que tange à metodologia, o trabalho é de natureza narrativa-descritiva, de abordagem qualitativa. Pretende-se, pois, problematizar questões raciais, por meio da experimentação e da criação, levando à reflexão sobre o maracatu, expressão cultural pernambucana, esta que ecoa em si a luta do povo negro. Palavras-chave: Maracatu, Cultura Negra, Dança, Criação. RESUMEN La disertación en cuestión es una procesión de maracatu en el caminar que enaltece la cultura negra. Propone talleres tituladas Maracatucar, en una perspectiva de "catucar" (llamar la atención) de las bailarinas de la clase de danza contemporánea de la Escuela de Ballet Sueños y usted, querido lector y querida lectora, acerca de las cuestiones raciales, además de provocar el fortalecimiento de las culturas negras, generando, por tanto, una discusión alrededor del maracatu mientras movimiento de lucha negra, mientras una danza popular afrobrasileña, demasiada presente, por cierto, en nuestra cultura nororiental. El estudio tiene como objetivo resaltar las posibilidades (en el que dice respeto a los procesos de criación), existentes en los estudios en el campo de la danza, en labusca de un reconocimiento sobre el cuerpo negro en la sociedad y como eso refleja en el contexto social. Además, está presente el intuito de estudiar y mostrar, en esa procesión, los elementos del maracatu para comprender y valorar su religiosidad, su estética de la danza y la identidad de una comunidad negra - que sufre diariamente discriminación. Hay, por lo tanto, el propósito de iniciar una reflexión acerca de la identidad cultural afrobrasileña. En el que respecta a la metología, el trabajo es de naturaleza narrativas descriptivas, de enfoque cualitativa. El objetivo, pues, problematizar cuestiones raciales, por medio de experimentación y de la criación, llevando a la reflexión sobre el maracatu, expresión cultural pernambucana, esa que resuena en si a lucha del pueblo negro. Palabras clave: Maracatu, Cultura Negra, Danza, Criación. LISTA DE IMAGENS Imagem 1: Maracatucando questões raciais. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022.....13 Imagem 2: Identidade negra. Fonte: Acervo pessoal, 2016..............................21 Imagem 3: A dama do paço e a sua calunga. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022.....25 Imagem 4: Ruth Dayane. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................32 Imagem 5: Abynna Safira. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................32 Imagem 6: Sarah Nascimento. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................33 Imagem 7: Vitória Fernandes. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................35 Imagem 8: O cheiro doce-amargo I. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........38 Imagem 9: O cheiro doce-amargo II. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........41 Imagem 10: O cheiro doce-amargo III. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........41 Imagem 11: O sagrado do maracatu. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........44 Imagem 12: A calunga. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........................................47 Imagem 13: Oxum. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........................................48 Imagem 14: Iansã. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........................................48 Imagem 15: Composição das calungas. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........51 Imagem 16: A corte real. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................53 Imagem 17: Rainha. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........................................57 Imagem 18: Rei. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........................................57 Imagem 19: A realeza do maracatu. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........58 Imagem 20: As catitas e a baiana. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........61 Imagem 21: As caboclas I. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................65 Imagem 22: As caboclas II. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................67 Imagem 23: As caboclas III: Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..............................68 Imagem 24: A dança do maracatu. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022..........69 SUMÁRIO PORTA-ESTANDARTE: ABRINDO ALAS.......................................................13 ALA I. MEMÓRIAS DAS DAMAS DO PAÇO...................................................25 1.1 A história do povo negro..............................................................................25 1.2 Oficina Maracatucar I: O cheiro doce-amargo.............................................31 1.3 O sagrado do Maracatu...............................................................................43 1.4 Oficina Maracatucar II: Experienciando o sagrado das calungas................46 ALA II. AS NAÇÕES DO MARACATU.............................................................52 2.1 As coroações dos Reis e Rainhas negros do Congo..................................53 2.2 Oficina Maracatucar III: Experienciando o contexto da realeza do Maracatu............................................................................................................57 2.3 Oficina Maracatucar IV: As baianas e as catirinas......................................61 2.4 Oficina Maracatucar V: Experenciando a ancestralidade indígena.............65 O CORTEJO DANÇADO: FECHANDO ALAS.................................................69 REFERÊNCIAS.................................................................................................73 ANEXOS............................................................................................................79 APÊNDICE A.....................................................................................................86 APÊNDICE B.....................................................................................................90 APÊNDICE C..................................................................................................110 13 PORTA-ESTANDARTE1: ABRINDO ALAS Imagem 1: Maracatucando questões raciais. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022. A minha bandeira é a mais bonita enfeitei com flores e laços de fitas e quando ela passa e arrasta a multidão mostra que a princesa brilha no seu pavilhão, toque os tambores 1Segundo o dossiê realizado pelo INRC – Inventário Nacional de Referências Culturais, o porta- estandarte no cortejo de maracatu é o personagem que carrega em suas mãos o estandarte, material que leva o nome da agremiação e a sua data de fundação; sempre muito bem trajado, é ele quem abre caminho para os demais desfilantes passarem. 14 que as baianas vão dançar senhoras e senhores o baque explosão já vai passar com o apito do mestre avisou a batucada pra mostrar pro povo a força da nossa pisada. Toada de Mestre Ruy Bandeira2 Senhoras e senhores, sejam todos bem-vindos ao cortejo Maracatucando questões raciais3, este que homenageia a cultura negra. Nessa escrita dissertativa, iremos conhecer, refletir, problematizar, dançar e enaltecer o maracatu, uma manifestação popular e carnavalesca presente no âmbito cultural da cidade de Recife/PE,sendo símbolo de resistência e luta da comunidade negra, por isso, preciso lhe adiantar que, antes de iniciar este cortejo, é preciso que você se desprenda de ideias advindas do senso comum, em relação à cultura negra, esta ainda desvalorizada em nosso país. No imaginário social em vigência, a imagem construída acerca da população negra é incompatível com a riqueza cultural e humana deste povo, não sendo, portanto, aceitável que diariamente haja expressões voltadas à discriminação racial, esta forma de preconceito estruturada no nosso país há séculos. Solicito, portanto, que esteja de mente e corpo abertos para se deixar catucar pela energia desse cortejo. Após o aviso inicial, peço a sua atenção, pois iniciaremos nossa caminhada no cortejo Maracatucando questões raciais em: 3, 2 Grande compositor e cantor, também conhecido como mestre Papagaio, é um dos personagens que faz parte do Maracatu Nação Raízes de África, fundado pelo mestre Walter em Recife/PE. 3 A presente dissertação é escrita em formato de cortejo, assim como é composto o maracatu; dito de outro modo, utilizo-me da ordem do maracatu para desenvolver a escrita da pesquisa, iniciando com o porta-estandarte (introdução), que abre alas para o cortejo Maracatucando questões raciais passar, depois seguimos com as memórias da dama do paço (capítulo I), depois as nações do maracatu (capitulo II), que traz os personagens da corte real e os demais desfilantes do maracatu, como as catirinas, as baianas e os caboclos. Vale salientar que no Maracatu Nação existem mais personagens, porém, para essa dissertação, foram utilizados os descritos acima, sendo eles os que mais se destacam em um cortejo de maracatu. 15 2, 1, Todos juntos com o pé direito à frente, para darmos o primeiro passo Pedimos licença aos mestres de maracatus E proteção aos deuses africanos Que esse cortejo escrito Nos leve a refletir Problematizar Dançar As poéticas de um povo negro E ecoar a voz que clama do batuque Pedindo apenas Respeito! Caminhemos... (NOGUEIRA, 2021, p.02) Nossos primeiros passos nos levam para uma discussão acerca de como o maracatu, uma manifestação popular de origem afro-brasileira, pode ser refletido e experienciado como modo de afirmação do pertencimento da identidade negra. Vale salientar que existem dois tipos de maracatu: o Maracatu Nação ou Baque Virado e o Maracatu Rural ou Baque Solto4, porém o nosso cortejo adentra no Maracatu Nação, uma manifestação típica da região metropolitana de Recife, cuja origem se deve aos antigos escravos africanos instalados em Pernambuco, estes trazidos do Congo5. Tal expressão cultural 4 Segundo Silva (2013), o Maracatu Rural ou, como também é conhecido, maracatu de Baque Solto é uma dança que teve sua origem na zona da mata do estado de Pernambuco, com o surgimento dos canaviais dos engenhos de cana-de-açúcar, na primeira metade do século XX. É uma manifestação coletiva que forma um belo cortejo composto por rei e rainha, pelos caboclos de lança, os arreimás, as baianas, o Mateu, a Catirina, a Burra, entre outros. Ver: SILVA, João Ribeiro da. Maracatu de baque solto: experiência do sagrado / João Ribeiro da Silva; orientador Sergio Sezino Douets Vasconcelos, 178f.: il. Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica de Pernambuco. Pró-reitoria Acadêmica. Programa de Mestrado em Ciências da Religião, 2013. 5 Souza (2014) nos revela que no período escravista o Congo era um reino estruturado, que abrangia grande extensão da África Centro-Ocidental e continha diversas províncias. Ver: SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo / Marina de Mello e Souza. – 2.ed. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. 16 tem consigo a tradição de eleger reis negros, para simbolizar a união de uma comunidade. A disseminação da eleição de reis negros por toda a América pode ser melhor entendida se, ao invés de a tomarmos como sobrevivências de tradições africanas, ou como transplante de costumes criados na Península Ibérica, onde também existiram, tentarmos entender os processos históricos que constituíram tais costumes. É no contexto do encontro de culturas nas sociedades coloniais que devemos buscar as razões que levaram grupos de africanos, que criavam novas identidades, a escolherem reis, anualmente festejados com batuques, cortejos e dramatizações. (SOUZA, 2014, p.215). O maracatu tem a tradição de, durante o carnaval, sair nas ruas em forma de cortejo, com o porta-estandarte à frente, abrindo espaço para os desfilantes passarem, segurando o estandarte com o nome da agremiação e sua data de fundação; logo após vêm as damas do paço, que em suas mãos levam bonecas, conhecidas como calungas, representantes dos deuses protetores para os negros; dando seguimento vem a corte real, na qual os reis negros escolhidos seguem embaixo de um guarda-sol (pálio) - segurado por seus vassalos - acompanhados de figuras importantes da realeza, como príncipes, princesas, imperadores, imperatrizes, condes e condessas; logo atrás vêm as baianas ricas e a baianas pobres (as catirinas), e os caboclos de terra e os arreimás - todos esses personagens seguem guiados pelo baque, composto por instrumentos de percussão, que com seus batuques e toadas dão vida às movimentações dos brincantes de maracatu. Neste cortejo, todos os brincantes de maracatu seguem em uma procissão que enaltece os seus ancestrais, em uma mistura de dança, canto, batucada e celebração. A fim de ampliar a explicação sobre o que é o Maracatu Nação, adentremos nas narrativas daqueles que introduziram em suas vidas a prática do maracatu, fazendo dessa manifestação cultural um ato do cotidiano, mantendo viva a tradição na sua comunidade. Façamos, então, a leitura das falas dos mestres Walter6 e Biu7 e do brincante Carlos Eduardo8, integrantes 6 Walter Ferreira de França, natural de Recife/Pernambuco, nascido em 28 de março de 1950, fundador, coordenador e mestre de baque do Maracatu Nação Raízes de África, fundado no dia 12 de outubro de 1995. Atualmente, o grupo tem como sede a casa do mestre supracitado, localizada na Rua Córrego Bombeirense, 115, na bomba do Hemetério, Água Fria, Recife/PE. 17 dos grupos Maracatu Nação Raízes de África e Maracatu Nação Sol Brilhante, estes entrevistados por mim no ano de 2021, na cidade de Recife/PE. Conta-se que vem da senzala, outros já falam que é de origem africana, mas como o Brasil foi feito e criado por negros escravos que traziam da África para cá, que lá também viviam dentro de senzala, conta-se que eles às noites, no descanso, que negro não tinha descanso, na noite que eles paravam aquele trabalho árduo do dia, se ajoelhava e fazia aquela oração forte, pedindo a Deus força, para que no outro dia tivesse força para fazer o trabalho novamente, e ali eles batucavam dentro de senzala, isso quer dizer o maracatu, o cara pode dizer que ele surgiu de uma pedra, vamos acreditar, o maracatu surgiu do som das águas, porque ninguém viu fundação de maracatu, a gente viu o maracatu pelos nossos ancestrais, os nossos antepassados, agora sabe sim que é brincadeira de rua nesse aspecto, mas, pelo lado religioso, é uma brincadeira que vem de muitos anos com respeito, alguém diz até que é do candomblé, que veio do candomblé, aí a gente não sabe quem nasceu primeiro, se foi o candomblé ou se foi o maracatu, agora a gente sabe que tem uns maracatus muito antigos. (confira em entrevista no apêndice B, p.98). O maracatu, segundo alguns historiadores, porque há controvérsias, surgiu dos negros; os negros, eles se reuniam para brincar dentro da senzala, mas foi colonizado; depois que foi colonizado, houve uma grande modificação, mas nós ainda continuamoscultuando o maracatu dos nossos ancestrais, que é o maracatu negro, o maracatu de tradição nagô. (confira em entrevista no apêndice B, p.98). Os aspectos históricos e origem dessa dança popular: os maracatus foram formados pelos negros escravos que até então não podiam expressar suas origens, por motivo de perseguição política e religiosa, foi aí que saíam em cortejos fazendo sátiras mostrando que negros podiam ser rei e rainha, príncipes e princesas, condes, imperadores, damas ricas etc. O maracatu na verdade é um "candomblé de rua", que junta os terreiros de matrizes africanos e seus adeptos; também pessoas sem ser da religião brincam nos maracatus. (confira em entrevista no apêndice B, p.99). O maracatu é sobre a história dos nossos ancestrais negros escravizados, e interessa-nos aqui evidenciar que, em toda nossa trajetória escolar, aprendemos aspectos importantes sobre a construção histórica dos acontecimentos até os dias atuais, uma história dita oficial que sabemos atender a interesses de uma aristocracia colonialista e excludente, a qual subjugou e escravizou povos (por exemplo, o povo banto9 e os Ewe10, entre 7 Wilson Gonzaga da Silva, nascido em 1968, produtor cultural, conhecido popularmente dentro do movimento de cultura como mestre Biu. Reside em Recife/PE, é o idealizador da sambada do mestre Biu, fundador do coco do mestre Biu e presidente da nação do Maracatu Sol Brilhante. 8 Carlos Eduardo Lino da Silva tem 49 anos. É artesão aderecista, reside na cidade de Recife/PE e é integrante do Maracatu Nação Sol Brilhante. 9 ‘‘Banto: Denomina-se um povo ao qual pertenciam os primeiros africanos escravizados que vieram para o Brasil de países que hoje se chamam Angola, Congo, Zaire, Moçambique e outros’’. (NASCIMENTO, 2009, p. 207). 18 outros do continente africano) e as suas culturas, traçando reflexos discriminatórios que perduram na contemporaneidade. Em outras palavras, é inadmissível que, nas instituições de ensino, ainda sejam escassas as tematizações sobre aspectos da história dos povos negros no nosso país. Povos que navegaram por águas turvas, com marcas de sangue, com ondas fortes, que sofreram e sofrem em decorrência de uma discriminação racial e cultural, com uma acentuada hierarquização cultural e social que sobrepõe o branco sobre o negro e busca silenciar e anular identidades de sujeitos e grupos que deveriam compor o pertencimento de serem brasileiros, com direitos e deveres garantidos e partilhados igualitariamente, para a abordagem afrocentrada: A questão não se localiza no reconhecimento das identidades, mas na capacitação para participar do jogo democrático do poder. Antes de pleitear o reconhecimento do outro, o afrocentrista quer construir as bases para o pleno autorreconhecimento de seu povo e sua cultura, condição necessária a essa capitação. Prioriza, então, a crítica aos conceitos dominantes de história e cultura africanas distorcidos pelo eurocentrismo, bem como a reconstrução dos conteúdos por eles encobertos. (NASCIMENTO, 2009, p. 192). No que tange à abordagem afrocentrada, ela não se pauta em conceitos biológicos sobre raça, mas sim em uma ótica que parte da identidade do sujeito, o seu centro, se preocupa em definir sua localização. A identidade nesse caso é encarada como questão social e política. Assume postura crítica em relação à visão eurocêntrica, constatando que ela não contempla a pluralidade existente nas experiências humanas (NASCIMENTO, 2009). Trata-se da teoria do centro, que postula a necessidade de explicitar a localização do sujeito para desenvolver uma postura teórica própria ao grupo social e fundamentada em sua experiência histórica e cultural. De acordo com essa localização teórica, o centro, o grupo se define como sujeito de sua própria identidade, em vez de ser definido pelo outro com base em postulados pretensamente universais, porém elaborados com um posicionamento específico, alheio e dominante. (NASCIMENTO, 2009, p.190-191). Visto por esse ângulo, o nosso cortejo visou propiciar a turma de dança contemporânea11 da Escola de Balé Sonhos12, composta por quatro alunas, um 10 ‘‘Ewe ou gêge, povo africano de Gana, Togo e Daomé (Benin); milhões de Ewes foram escravizados no Brasil. Eles são parte do nosso povo e da nossa cultura afro-brasileira’’. (NASCIMENTO, 2009, p. 207). 11 A turma de dança contemporânea é orientada por mim; tal modalidade de dança foi inserida na Escola de Balé Sonhos em 2021. 12 A Escola de Balé Sonhos foi fundada em 2016, pela professora de balé clássico Ruth Dayane, no município de Monte Alegre/RN, com apenas duas turmas: uma de balé infantil e 19 processo educativo pluricultural (SANTOS, 2009), que iniciasse um despertar nelas sobre um olhar mais sensível para o corpo historicamente marcado pela escravidão, tendo como possibilidade a brincadeira do maracatu, se utilizando do conceito de brincante, que nas brincadeiras (dança popular) ocupa um lugar de transformação do ser. Nas danças populares, o brincante é a figura que expressa a brincadeira, trazendo para ela emoções, sensações e criações, que transmite para o externo, com a celebração da sua corporeidade, a essência da cultura, da religiosidade, estética, energia, paixão. (NOGUEIRA, 2018, p. 18). Nessa perspectiva, o estudo utilizou-se dos princípios presentes na abordagem pluricultural de Inaicyra Santos (2009) para possibilitar às bailarinas do grupo a oportunidade de terem a experiência de imergir em uma cultura afro-brasileira e, além disso, sentirem-se pertencentes da herança cultural que há no Maracatu Nação, indo além de uma visão unilateral, instaurando, desse modo, uma ótica plural. A proposta pluricultural corpo e ancestralidade trilha um caminho que entrelaça a tradição herdada, a oralidade, a mitologia, as danças, os cantos, os gestos, os ritmos de forma técnica e criativa. Assim, é instaurado um campo para a ressignificação, na contemporaneidade, de valores míticos que influenciam os pensamentos, a natureza e a forma da tradição africana brasileira e as histórias individuais. Na dimensão prática, proporciona a exploração em profundidade dos movimentos propostos e das formas de comunicação tradicionais, priorizando a troca de experiências e constituindo um espaço para discussão de uma linguagem própria. (SANTOS, 2009, p.33). Nosso objetivo de pesquisa com esse cortejo escrito é, portanto, discutir (catucar) questões raciais e provocar o fortalecimento das culturas negras, bem como ressaltar as possibilidades (no que diz respeito aos processos de criação), existentes nos estudos do campo da dança, na procura de um reconhecimento sobre ser um corpo negro na sociedade e como isso reflete no contexto social. Além disso, está presente o intuito de estudar e mostrar, nesse cortejo, os elementos do maracatu, para compreender e valorizar sua religiosidade, sua estética da dança e a identidade de uma comunidade negra que sofre diariamente discriminação; há, portanto, o propósito de promover uma reflexão acerca da identidade cultural afro-brasileira. Intenta ainda uma de balé adulto iniciante. Em seguida, foram acrescentadas as seguintes modalidades: balé hit, dança litúrgica e dança contemporânea. Chama-se Sonhos em alusão às várias meninas que sonhavam em aprender balé clássico. É escola-referência na cidade e há seis anos vem transmitindo com muito amor a aprendizagem da dança. 20 responder às questões de estudos que permeiam a dissertação, são elas: Como se compõe o cortejo do Maracatu Nação? Que atravessamentos culturais perpassam essa manifestação para pensarmos sobre a ancestralidade, religiosidade e organização social de povos negros? E quais as possibilidades existentes nos processos criativos em dança a partir do maracatu para o enaltecer da cultura negra? Com os objetivos e as questões traçadas, agora iremos passar porum caminho que revela muito sobre mim e o porquê de estarmos hoje aqui em um cortejo que maracatuca questões raciais, em um desnudamento da artista negra que sonhava quando criança em ser branca e hoje sonha com um mundo sem RACISMO. Os passos a seguir vão em direção às minhas memórias da infância: Meu cabelo era preso, pois ao soltar, era de “juba de leão” que era chamada. Minhas unhas de laranja não podiam ser pintadas que já vinham dizer: “Quem já viu negro de laranja, só quer chamar atenção”. E reforçavam: “Dê dinheiro a negro, mas não dê cartaz”. Ao receber de presente uma boneca negra, ouvir alguém dizer: “Por que você não troca por uma boneca branca? Essa é muito feia”. Quando via a minha avó, ela falava sempre a mesma piada: “Negro só é gente no banheiro... quando alguém bate e ele responde: tem gente”. (NOGUEIRA, 2021, p.03) Eu era apenas uma criança que precisava de representatividade, mas ao invés disso eu vivenciava situações que me machucavam de tal maneira que, ao olhar no espelho, só conseguia imaginar o quanto seria melhor ter a pele branca. Não foi nada fácil se libertar dessas amarras, cuja mágoa guardei por anos. Somente na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no Curso de Licenciatura em Dança, aos 19 anos, pude reconhecer quem era, por meio da dança, do ser brincante da cultura popular. Na brincadeira, fui me transformando e aos poucos fui soltando o cabelo e percebendo que a “juba de 21 leão” era, na verdade, meus cachos mostrando o volume da minha força. Em disciplinas como Práticas Educativas em Dança Popular13, ministrada pela docente Teodora Alves, e Práticas Educativas em Dança Moderna14, ministrada pela docente Patrícia Leal, ao experienciar danças de motrizes africanas15, enfim me reconheci NEGRA. Foi um processo lento, mas de tamanha intensidade, diante do qual meu corpo, ecoou, dançou, cantou... Imagem 2: Identidade negra. Fonte: Acervo pessoal, 2016. (...) a liberdade de ser quem sou: mulher, artista, pesquisadora, professora, negra! 13 Disciplina da grade curricular do Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ART0302). 14 Disciplina da grade curricular do Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal do Rio Grande do norte (ART0304). 15 É utilizado o termo motrizes africanas, ao invés de matrizes africanas, por concordar com o autor Ligiéro (2011), quando expressa que o termo matriz é ‘‘insuficiente para conceituar a complexidade dos processos interétnicos e transitórios verificados nas práticas performativas ou performances culturais’’, definindo que o termo motriz é mais apropriado para ‘‘conceituar a complexidade das dinâmicas das performances culturais afro-brasileiras’’ (LIGIÉRO, 2011, p.130). Ver: LIGIÉRO, Zeca. O conceito de ‘‘motrizes culturais’’ aplicado às práticas performativas afro-brasileiras. Revista Pós Ciências Sociais, Maranhão, v. 16, n. 8, p. 129- 144, jul./dez. 2011. 22 Todas as frases de cunho discriminatório que ouvi, de acordo com Moraes (2013), configuram um processo de naturalização, este que é base de muitos preconceitos sutilmente arraigados em segmentos da sociedade, por interesses hegemônicos que perpetuam distinções e discriminações sociais profundas. Ditos populares como os citados anteriormente evidenciam uma valoração negativa em relação ao negro, como podemos constatar em mais um exemplo, descrito abaixo, para deixar essa questão mais compreensível. Quando vivemos uma situação de grande perturbação, nos utilizamos de termos como ‘‘A coisa ficou preta!’’. Sendo assim, o preto recebe atribuição de “coisa ruim” e naturalizações deste cunho reafirmam o quanto as pessoas precisam desenvolver seu senso crítico em relação às concepções do senso comum. Esse ponto é fundamental para o contexto brasileiro pois talvez a mais destacada característica do racismo no Brasil seja sua natureza inconsciente. As atitudes racistas e o privilégio atribuído ao branco imperam como subtexto de raça no consenso intersubjetivo da cultura, ou seja, como fenômenos da ordem natural das coisas. (NASCIMENTO, 2009, p.188). Santana (2015, p.13) fala em seu livro quando se reconheceu e se descobriu negra: ‘‘Tenho trinta anos, mas sou negra há dez anos, antes era morena.’’ Ela demorou vinte anos para se apropriar da sua negritude. Assim como eu, conforme exposto em meu relato, ela se descobriu negra somente na fase adulta. Transparece-nos, pois, o embranquecimento social, estado no qual se observa relutância do indivíduo em se aceitar como negro. O problema é saber se é possível ao negro superar seu sentimento de inferioridade, expulsar de sua vida o caráter compulsivo, tão semelhante ao comportamento fóbico. No negro existe uma exacerbação afetiva, uma raiva em se sentir pequeno, uma incapacidade de qualquer comunhão que o confina em um isolamento intolerável. (FANON, 2008, p.59). Todavia, ao atingir esse ideal de pertencimento negro, encontramos pessoas que se aceitam por serem quem são. Cansadas de deixarem os cabelos presos, passam a usar cabelos black power, seus turbantes, tocam tambores, emanando suas cores para todos, espalham seus molejos, sua dança, sua identidade negra, ou seja, expressam a luta de um povo que combate a crueldade vivida. Em concordância com Fanon (2008, p.56), ‘‘Se sou negro não é por causa de uma maldição, mas porque, tendo estendido 23 minha pele, pude captar todos os eflúvios cósmicos. Eu sou verdadeiramente uma gota de sol sob a terra...’’. Nesse cortejo, julgo que meu compromisso é levar as bailarinas envolvidas na vivência em questão à compreensão de que o maracatu é uma manifestação dançante, uma exaltação de corpos negros que celebram, reverenciam sua ancestralidade, afirmam modos de ser e estar no mundo por meio da sua identidade cultural e reivindicam o seu pertencimento e valorização, em uma sociedade discriminatória e excludente. Nesse sentido, meu intento está na direção de fazer com que elas reconheçam e experienciem a essência de manifestações populares de motrizes afro-brasileiras e compartilhem suas histórias, as quais podem ser atravessadas pelas histórias dos seus antepassados, e pensá-las em uma manifestação da arte na qual o corpo é uma linguagem que: Transmite mensagens, conta histórias, expressa marcas de sua própria dança no tempo e no espaço, se ressignificando no presente como possibilidade de celebrar e provocar transformações na vida em comunidade e, consequentemente, na história. (NOGUEIRA, 2018, p. 28). Enquanto exercício crítico, este cortejo é também uma homenagem a Miguel Otávio da Santana da Silva, 5 anos, que caiu do 9° andar por desleixo da empregadora da mãe (2020); Ana Carolina de Souza Neves, 8 anos, morta por uma bala perdida na cabeça, foi atingida dentro de casa (2020); Marcos Vinícios, 14 anos, baleado na barriga e morto pela PM do Rio de Janeiro, indo para escola e usando uniforme escolar (2018); Ágatha Felix, 8 anos, baleada nas costas pela PM do Rio de Janeiro, quando voltava para sua casa (2019); às mais de cinco milhões de pessoas que foram trazidas para o Brasil e aqui escravizadas; E pelas demais vítimas que tiveram suas vidas interrompidas pelo RACISMO, ainda latente em nosso país. Caro leitor, o caminho se direciona agora à rua #VIDASNEGRASIMPORTAM, que evidencia o quanto precisamos valorizar uma cultura NEGRA. Cabe-nos orientar as nossas crianças, que são o futuro do nosso país, estimulando-as ao entendimento que conduz à busca pela igualdade de direitos, pelo reconhecimento da identidade de cada povo. O respeito, pois, necessita ser exercido, para que ninguém,mas ninguém mesmo, perca o direito de viver por apenas ser de determinada cor. Em face 24 desta necessidade de protesto, planejo este cortejo, que nos guia a um MARACATUCAR na consciência, em uma reflexão para a construção de um mundo melhor. No que tange à metodologia usada, foi feito um planejamento de Oficinas Maracatucar, a partir da referência da manifestação artística do Maracatu Nação, em diálogo com a narrativa de natureza descritiva e por uma abordagem qualitativa. A narrativa nesse cortejo está presente no atravessamento entre as narrativas da pesquisadora e as narrativas da dança do maracatu e de seus brincantes (entrevistados em 2021) das nações de maracatu Sol Brilhante e Raízes de África, ambos de Recife/PE. Há, então, um entrecruzamento com as narrativas criadas pelas participantes no processo criativo, de modo a entender que a narrativa é uma forma de compreender a experiência humana e de que ‘‘as pessoas precisam ser entendidas como indivíduos, que estão sempre em interação e sempre inseridas em um contexto social.’’ (SAHAGOFF, 2015, p.02). A pesquisa narrativa é um estudo da experiência como história, assim, é principalmente uma forma de pensar sobre a experiência, que pode ser desenvolvida apenas pelo contar de histórias, ou pelo vivenciar de histórias. A narrativa é o método de pesquisa e ao mesmo tempo o fenômeno pesquisado. (SAHAGOFF, 2015, p.06). Utiliza-se, para isso, uma abordagem qualitativa, a qual se caracteriza como: ‘‘A busca constante de novas respostas e indagações; a retratação completa e profunda da realidade’’ (VENTURA, 2007, p.384). Conforme descrito, o paradigma metodológico aqui utilizado estimula: Novas descobertas, em função da flexibilidade do seu planejamento; enfatizam a multiplicidade de dimensões de um problema, focalizando-o como um todo e apresentam simplicidade nos procedimentos, além de permitir uma análise em profundidade dos processos e das relações entre eles. (VENTURA, 2007, p.386). O trabalho está estruturado nessa parte introdutória e se segue em dois capítulos, nos quais discutiremos sobre o contexto sociocultural e histórico dos personagens (presentes no Maracatu Nação) e refletiremos sobre os processos de criação elaborados a partir deles. No primeiro capítulo, abordaremos, por intermédio das memórias das damas do paço, uma síntese da história do período escravista no Brasil, como também o sagrado das calungas, que deram subsídios para a realização das oficinas: Cheiro doce-amargo e Experienciando o sagrado das calungas. No segundo capítulo, discorreremos 25 sobre o contexto histórico dos reis negros do Congo, sobre as baianas ricas, as catirinas e os caboclos, elementos que originaram as oficinas: Experienciando o contexto da realeza do maracatu, As baianas e as catirinas e Experenciando a ancestralidade indígena. Por último, encontra-se a parte conclusiva, na qual apresentaremos uma discussão acerca dos resultados obtidos no percurso desse cortejo escrito, no que diz respeito às questões raciais e ao enaltecer da cultura negra. Enfim, chegamos ao final do Abrindo Alas, vamos agora adentrar a Ala I. ALA I: MEMÓRIAS DAS DAMAS DO PAÇO Imagem 3: A dama do paço e a sua calunga. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022. Agradecemos ao porta-estandarte pela abertura do nosso cortejo e por ter trazido todos até aqui. Agora nós, as damas do paço, iremos resgatar nossas memórias de um passado cruel, da época escravista, que revela muito sobre o sofrimento, a luta, existência e resistência dos povos negros! SEGUIMOS ANDANDO... 1.1 A história do povo negro 26 Nossos passos agora seguem em uma travessia marítima, leva-nos a navegar por águas turvas; nelas há sangue, por elas ondas fortes foram capazes de simbolizar destruição de culturas e de identidades de povos advindos do continente africano. Navegamos num mar repleto de memória da transformação de um ser humano, de um indivíduo indigno de liberdade, apenas digno de se calar, trabalhar, sofrer, morrer. Embarcamos então no contexto histórico do negro que foi trazido ao Brasil de forma impiedosa. A história do negro brasileiro não teve início com o tráfico de escravos. É uma história bem mais antiga, anterior à escravidão nas Américas, à vida de cativo no Brasil. Trata-se de uma saga que se cruza com a aventura dos navegadores europeus, principalmente os portugueses, e com a formação do Brasil como país. (ALBUQUERQUE, 2006, p. 13). Na África do século XV, período em que colonizadores europeus desembarcaram neste território, a organização socioeconômica se baseava em vínculos de parentesco e era comum que ocorressem guerras tribais, no intuito de conquistar territórios férteis que possibilitassem condições satisfatórias de subsistência. Destes confrontos, uma prática recorrente por parte dos vencedores era a escravização de uma parcela dos povos perdedores, isto é, a escravização doméstica. Se valendo deste aspecto cultural e, evidentemente, de uma subjugação do valor humano dos sujeitos, comerciantes africanos em associação com exploradores da Europa redesenharam este processo de guerra e aprisionamento de cativos, transformando-o em um mercado lucrativo e bastante disputado (ALBUQUERQUE, 2006). Perante o rentável tráfico de escravos, exposto anteriormente, o contexto vigente à época possibilitou que negros fossem tratados como mercadoria, e não como seres humanos, inclusive a mais barata do mercado, como canta Elza Soares em sua regravação da música ‘‘A carne’’, a qual possui tom crítico perante o racismo instaurado em nossa nação e cuja autoria se deve a Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, em 1998. Segundo Schroder (2019), no Brasil, os desembarques dos navios negreiros tiveram seu início em 1530. Nosso país foi o que mais recebeu escravos, num total de 4,8 milhões de africanos, aproximadamente, vindos de Angola, Congo, Moçambique, Golfo de Benim, Gana e Nigéria. A viagem ao Brasil durava dias, meses; em condições precárias, muitos morriam, alguns se atiravam ao mar, 27 pois entendiam que a morte era a solução imediata para o sofrimento; aqueles que sobreviviam eram negociados com os compradores. Faz sentido, neste momento, entender que este princípio de inferiorização, o qual sustenta a escravidão, tem como cerne a remoção de direitos civis, políticos e sociais dos negros, isto é, a impossibilidade de se praticar a cidadania. Uma vez que o negro foi privado de liberdade e deslocado de sua origem, e levando em consideração que a sua cultura era estritamente relacionada aos vínculos familiares e comunitários, houve uma ruptura com aquilo que o tornava pulsante no mundo: a sua percepção de pertencimento. Sem esta característica e, portanto, sem a capacidade de ser cidadão, tornou- se, acima de tudo, um ser sem honra e sem raiz. O recorte aqui tratado faz parte de uma sistemática usada em outros tempos históricos e em outras ocasiões, a exemplo do antissemitismo e extermínio de judeus na Alemanha nazista. Conforme salienta Arendt (1989), é através da liberdade e da cidadania que surge a base para a realização plena da condição humana. Moura (2004) revela em seu livro - ‘‘Dicionário da escravidão negra no Brasil’’ - as condições desumanas vividas pelos negros escravizados, dentre elas as más condições de trabalho, falta de segurança, longas horas de trabalho e alimentação escassa. Tratado como mercadoria, um negro morto poderia ser reposto. O autor conta ainda os castigos cruéis que eles sofriam. Um deles era o açoite, em que ‘‘atava-se o paciente solidamente a um esteio e, depois, despidas as nádegas, eram flageladas até ao sangue, às vezes até a destruição de parte do músculo’’ (MOURA, 2004, p.17). Esse é apenas um exemplo dentre inúmeros casos de atrocidadesocorridas com essas pessoas escravizadas. As mudanças sociais e econômicas geradas pela Revolução Industrial, embrião do processo de produção capitalista, trouxeram a necessidade de fomento da economia de mercado, ou seja, da existência de uma massa de consumidores. O escravo, enquanto ser que não possuía remuneração e, desta maneira, que não poderia comprar, passou gradativamente a ser encarado como uma figura incompatível com a realidade em ascensão. Aliado a esta pressão externa, apelos internos (pautados por um lado no receio de rebeliões 28 escravistas e no entendimento de que o escravismo impedia a modernização da nação; por outro, na compreensão de que escravizar era desumano) deram força ao movimento abolicionista brasileiro. Embora tenha havido certo sucesso, com a decretação da Lei Áurea em 1888, a abolição não permitiu aos negros a inserção na sociedade, uma vez que não só foram mantidas as relações de subserviências aos quais eram expostos, mas também o racismo e o preconceito (MACHADO, 2021). Revelou-se, assim, que só libertar não foi o suficiente, porque a lei por si só não garantiu ao negro: trabalho, moradia, alimentação, educação, segurança. Nenhum direito básico foi atribuído a ele naquela época. Havia, pois, pessoas livres, contudo ainda sem valor na sociedade. Cento e trinta e quatro anos se passaram da abolição da escravidão e é fato que o negro ainda sofre exclusão social, esta que simplesmente se naturalizou no nosso país. Infelizmente, o olhar de uma certa parcela da população brasileira, que acredita num falso sentimento de superioridade, ao enxergar uma pessoa negra, é de medo ou nojo. Esta porção da sociedade, encorajada pela impunidade e pelo status quo que favorece o ideal de supremacia branca, ainda marginaliza o negro. A exclusão social, derivada como consequência natural desta marginalização que se arrasta desde os primórdios do abolicionismo brasileiro, expressa-se no constante exercício de impedimento das potencialidades humanas das quais o negro, como qualquer sujeito, dispõe; ao mesmo tempo, se exige que as necessidades do negro se adaptem aos serviços públicos prestados (e não o contrário, como seria o correto); ainda, em uma manobra que aniquila a representatividade política, o negro é tratado como objeto de manipulação, cujo voto pode ser trocado por pequenos favores (ESCOREL, 1993). No tocante ao mercado de trabalho, os cargos ocupados por pessoas negras são aqueles voltados a prestar um serviço como empregado doméstico, vendedor de loja, babá, jardineiro, entre outras profissões com pouco prestígio social. Há também forte aversão ao sujeito negro, a qual se manifesta em não querer compartilhar o mesmo espaço, ou até mesmo não ter contato, como se a negritude fosse uma doença contagiosa. São acontecimentos inadmissíveis em pleno século XXI, mas que são ainda muito corriqueiros nos tempos 29 hodiernos, muito em virtude de termos uma naturalização do racismo em nossa cultura. Lima (2020), em uma alusão à obra literária de Huxley, torna claro o modus operandi deste processo: No livro Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley descreve uma distopia, onde o controle social é conduzido por uma série de procedimentos de condicionamento e de drogas psicoativas. A hipnopedia é uma dessas técnicas, ela consiste em ensinar as máximas do controle social enquanto o indivíduo dorme, por repetições intensivas de mensagens (...) A cultura faz conosco algo semelhante em relação aos estereótipos e preconceitos. Eles são transmitidos culturalmente e assimilados pelos indivíduos muitas vezes de forma automática, quase que inconscientemente, “enquanto nossa consciência dorme”, através de associações, repetições, enfim, produção de hábitos. (LIMA, 2020, p. 62). A fim de exemplificar, trago narrativas de discriminação raciais sofridas por amigos meus, colhidas em conversas pessoais, em que eles relataram situações desagradáveis que vivenciaram em razão da sua cor de pele ser preta; vejamos os relatos de Maria Santos, Júlia Oliveira e Pedro Lima16: Já sofri racismo e preconceito por conta da cor de minha pele e pelo meu tipo de cabelo. Na verdade comecei a sofrer desde a época de escola por não ter um "padrão" de cabelo específico como as outras alunas da época, me deixando fora de trabalhos, atividades em grupos muitas das vezes e racismo no cotidiano por desconfiarem de que eu estivesse fazendo algo errado, ou que por conta de minha cor eu não teria condições de ter algo na vida, ou até que já chegou num ponto de se negarem a me vender um produto de maquiagem, porque no dia e na loja especificamente logo me disseram que pra o meu tipo de cor essa loja não trabalhava com o produto ‘‘x’’. Narrativa: Maria Santos, 2022. Já sofri muita discriminação devido a minha cor e meu cabelo, com apelidos do tipo nega maluca, cabelo de bucha, cabelo de bombril e entre outros que não gosto de citar. Narrativa: Júlia Oliveira, 2022. Minha família (pais e irmãs) é negra, dentro de uma família onde a maioria eram brancos. Sofríamos piadas dos primos, tios e éramos muito rejeitados por nossa 16 Os nomes citados são fictícios. 30 cor. Minha mãe era empregada doméstica e às vezes me levava para o trabalho dela e lá o preconceito continuava, não podia brincar ou ficar dentro da casa, às vezes ficava no jardim a margem daquela pomposidade. Morávamos em uma casa de sapê no fundo do quintal de minha avó, sem energia elétrica e diante disso as dificuldades só aumentavam. Meu pai chegava às vezes alcoolizado, talvez por não ter condições de nos dar uma vida melhor. Minha mãe, analfabeta, era empregada doméstica, mas sempre investiu em nossa educação. Estudávamos em uma escola particular muito boa, porém distante e muitas vezes eu e minha irmã saíamos para a escola sem ter almoço, sem levar lanche. Quando chegava fazia minhas atividades à luz de vela ou candeeiro. Lembro que para assistir TV, tinha que ir para a casa dos meus amigos da rua e nem sempre os pais deixavam. Isso não me afligia muito na época por ser criança, apenas vivenciava minha infância, fazendo meus brinquedos de lata de leite, improvisando objetos, mas fotografava na minha mente tudo aquilo e ansiava por um dia tudo aquilo ser diferente. Em algum momento da minha vida inclusive, já quis ter a pele branca, a mídia da minha época de infância e juventude enfatizava que o belo vinha da pele branca. O galã da novela era branco enquanto o negro era empregado, escravo, menos o artista principal. Os cantores de sucesso eram em sua maioria brancos...os bailarinos brancos. Então éramos vítimas da sociedade. Comecei a me aceitar quando criei uma nova consciência, quando vi o negro lutar pelos seus direitos, quando começaram a valorizar o cabelo crespo, a comida típica, a entender toda a luta, sofrimento e conquista de um povo. Então tudo mudou. Hoje valorizo minha pele negra, minha cultura, respeitando essa diversidade brasileira. Hoje sou educador, herança desse período que minha mãe tanto lutou. Hoje eles não estão mais aqui entre nós, mas certamente se orgulhariam por quem me tornei. Narrativa: Pedro Lima, 2022. A intenção aqui é enfatizar o quanto a cor de pele influencia a forma com a qual a pessoa é tratada, as oportunidades que lhe são ofertadas e como se é visto pelo outro. Os sentimentos gerados a partir de situações discriminatórias são fatores determinantes na trajetória de uma pessoa. O negro cansou de tanto receber não, muitas vezes encontra no crime um meio de ganhar o pão. E a escola não é mais uma opção, 31 então não entenderá que só ela é a solução. No fim o negro vira mais uma estatística, de mais um negro morto pela criminalização, e mesmo sem ser ladrão, mas por ser negro, É MORTO SEM EXPLICAÇÃO. (NOGUEIRA, 2021, p.04) 1.2 Oficina Maracatucar I: O cheiro doce-amargoNessa oficina, propicio às bailarinas a oportunidade de dançarem o doce-amargo. Antes de iniciar nossa experiência, vamos conhecer um pouco daquelas que compõem esse cortejo, os corpos dançantes que aceitaram dançar e serem catucadas pelo Maracatu. A Escola de Balé Sonhos é administrada pela professora de balé clássico Ruth Dayane. Fundada no ano de 2016, localizada no município de Monte Alegre/RN, conta hoje com turmas de balé infantil, balé adulto iniciante e turmas nível intermediário e avançado da referida dança, além da turma de contemporâneo, ministrada por mim desde 2021, que tem em sua composição quatro bailarinas. A fim de conhecê-las melhor, foi feito um questionário17 - com cincos questões, relacionadas a informações básicas (nome, idade e profissão), bem como a suas experiências no campo da dança (se tinham vivências nas danças populares), além de averiguar se já sofreram algum tipo de discriminação, racial ou por qualquer outra característica física, e como conceituam o racismo - cujas respostas descrevo abaixo. Sendo assim, seguimos agora pelas narrativas das nossas bailarinas que aceitaram se transformar em brincantes de Maracatu Nação: Ruth Dayane, 24 anos, é professora de balé clássico, começou inicialmente na dança com a dança litúrgica e foi se aprimorando com o passar do tempo com as aulas de balé clássico em algumas escolas. Nunca dançou dança popular e também nunca passou por nenhuma discriminação, declara- nos que o racismo é um tema que deve ser muito bem discutido; para ela, é uma causa que deve ser lutada e apoiada por todos; acredita que é necessário 17 Confira o questionário na entrevista do Apêndice A, p.86. 32 lutar por igualdade e respeito, pois cor não interfere de forma alguma na capacidade e caráter de um ser humano. Imagem 4: Ruth Dayane. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022. Abynna Safira, 16 anos, é estudante. A dança sempre foi presente em sua vida e a ajudou a se expressar de uma forma diferente (sempre teve dificuldade com isso). Já dançou dança popular, como carimbó, coco de roda e forró. Sentiu-se representando as raízes do povo brasileiro e, principalmente, dos nordestinos. Nunca sofreu discriminação por sua cor, mas sofreu bullying por um tempo pelo seu jeito de ser. Sobre o racismo, ressalta que sempre que pode tenta manter o respeito e a dignidade das pessoas que lutaram por essa liberdade, por esse direito, seja em um texto, seja em ações do cotidiano. Imagem 5: Abynna Safira. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022. 33 Sarah Nascimento, 18 anos, é estudante. Seu primeiro contato com a dança foi através do teatro, onde ela fazia aulas de música, desenho e se apresentava em peças; daí surgiu o ballet clássico. Desde então, segue dançando e conhecendo outras modalidades. Sobre as danças populares, teve uma breve experiência com forró e carimbó em que sentiu dificuldades para dançar, pois são ritmos que não tem muito conhecimento. Nunca sofreu discriminação pela cor. Relata que, como uma pessoa branca, nunca sofreu racismo; o que pode fazer é estudar e tentar combater. Imagem 6: Sarah Nascimento. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022. Vitória Fernandes, 22 anos, é assistente administrativo. A dança em sua vida se iniciou aos 6 anos de idade, na dança clássica; em 2018 conheceu uma grande amiga que a possibilitou experimentar novas formas de dança; aventurou-se, então, na dança contemporânea. Aos 18 anos de idade, começou a graduação de Licenciatura em Dança na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e hoje permanece no ballet clássico e na dança contemporânea. Sobre as danças populares que teve acesso, destaca apenas o forró. Sua vivência com o forró foi desafiadora, dada a padronização de um modelo que já vinha sendo vivido por ela desde a infância; reconhece, assim, que o forró na prática foi libertador, pois permitiu mexer o corpo em sua totalidade. Na infância e adolescência, passou por várias situações desagradáveis pelo fato de ter a parte frontal do crânio (testa) mais desenvolvida. Por muito tempo, não conseguiu aceitar essa diferença que tinha 34 em relação às demais pessoas, sofria por causa dos apelidos que colocavam nela. Em uma determinada fase da sua vida, também a chamavam de magrela pela sua estrutura física e muscular. Com base nisso, acredita que nenhuma dessas situações se compara à dor de sentir a rejeição por causa da cor da pele, essa dor ela nunca poderá mensurar. Ressalta que se sentir rejeitado por causa de alguma diversidade física ou mental é algo destruidor! A rejeição causa dor, faz pensar que somos insuficientes e que não somos merecedores para desfrutar da vida. Logo, traz a memória a metáfora do Schopenhauer, que trata do dilema do ser humano: "Somos uma espécie de porco-espinho" - quando estamos juntos, causamos dores uns nos outros; quando estamos separados, passamos frio. Compreende que a grande questão sobre esse dilema é que, quando não sabemos lidar com as diferenças e as particularidades de cada um, provocamos e somos agentes de sofrimento, e que respeitar, em termos simples, seria uma forma de mudar essa cultura enraizada. Por fim, conceitua que o preconceito racial não existe apenas no Brasil, mas no mundo todo. No Brasil tudo começou na colonização dos portugueses com o "descobrimento" do país, visto que já existia povos que habitavam essa terra; neste instante, começou a acontecer atos de discriminação, contra os povos nativos e mais tarde contra os negros, que começaram a ser escravizados e maltratados. Dessa maneira, essa propagação de ódio tem repercussão até os dias atuais e isso é inaceitável, se torna um descalabro com a vida humana. Na Constituição Federal, o artigo V nos diz que todos são iguais perante a lei e sem distinção de qualquer natureza. Desse modo, é preciso reconhecer em primeiro ponto que temos uma "causa" que precisa ser mudada com extrema urgência, pois é direito, é notório, é perceptível que somente uma educação poderá salvar e transformar as mentes e as atitudes humanas. 35 Imagem 7: Vitória Fernandes. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022. Apresentamos um pouco das trajetórias das nossas bailarinas para que você, caro leitor e cara leitora, possa conhecer os corpos que compõem esse cortejo, as experiências dançantes, as subjetividades de cada uma, estas que farão com que esse processo siga em determinado fluxo. Vale salientar que você, aqui presente como aquele que toma conhecimento destas narrativas por meio das minhas palavras, ao ler esse cortejo e vivenciar comigo esse processo, também faz parte desse maracatucar. Então eu lhe pergunto: está preparado para dar o passo seguinte em direção à oficina maracatucar I: o cheiro doce-amargo? Antes de irmos, é preciso que façamos uma reflexão acerca de um fato interessante que é percebido nas narrativas das nossas participantes, que é a ausência da discriminação racial. Por que será que isso acontece? Como é percebido nas fotos, todas elas possuem a pele branca ou de tom bem claro, que não chega a ser um tom de pele de uma pessoa preta. É notório o quanto isso influencia no desconhecimento da dor de ser subjugada pelo seu tom de pele, de serem privadas de oportunidades de inserção social. Provavelmente, essas jovens não experienciaram olhares discriminatórios e de indiferença. Situação diferente se encontra nas narrativas descritas no capítulo anterior, em que percebemos relatos carregados de situações discriminatórias. Em geral, podemos inferir que, a cada pessoa negraque eu fizesse tal pergunta, teríamos relatos cheios de violências, sejam elas de cunho verbais, físicas ou 36 simbólicas, que podem até parecer absurdos, mas que infelizmente são práticas que foram se consolidando, se tornando naturais para pessoas negras pelo mundo. Andemos então em direção à nossa oficina, que se iniciou com um aquecimento corporal por meio da experimentação das ações cotidianas, no que diz respeito ao processo de produção baseado na cana-de-açúcar. Foram exploradas as movimentações de cortar, empurrar, descascar e mexer. Foi um momento de tentar buscar no corpo diversas possibilidades de se mover. Estando aquecidas, as meninas imergiram na metodologia de Patrícia Leal, a Dança/Arte pelos Sentidos (2012), que nesse cortejo possibilitou a elas um processo de criação através de percepções do olfato e do paladar. No que tange à esta metodologia, o processo de criação se inicia com o sentir o cheiro, em uma busca de perceber o ponto de origem, o movimento primário, que Leal (2012) considera ser a matriz do movimento. Trata-se de um movimento pequeno, sutil, que para percebê-lo é preciso estar atento, presente de corpo inteiro, estar consciente para realmente identificar e perceber, sem julgamentos prévios, afinal, ele será o ponto inicial de todo o processo criativo. Em nossa oficina, as bailarinas tiveram como referência o cheiro da cana-de-açúcar: A produção do açúcar era monopólio do Oriente Médio e que, para romper esse monopólio, a coroa portuguesa decidiu iniciar essa atividade em solo brasileiro. Os negros eram considerados a mão de obra mais qualificada para o plantio e a colheita da cana-de-açúcar devido ao fato de já terem sido escravizados na atividade açucareira na Península Ibérica, onde o plantio já ocorria há cerca de 100 anos. (GONZAGA, SANTANDER, REGIANI, 2019, p.27). A história revela a cana-de-açúcar, matéria-prima do açúcar, da cachaça e do álcool, como um dos produtos responsáveis pelo avanço econômico no nosso país a partir do século XVII. Através da mão de obra escrava dos negros trazidos da África, em uma mistura de sofrimento e rotina de trabalho insalubre, os derivados desta planta se fizeram presentes na rotina do povo brasileiro (SILVA, 2010). O documentário 500 anos: Brasil colônia na TV, episódio 02: Cana de mel, preço de fel nos mostra que a realidade da monocultura de cana-de- açúcar se estabeleceu principalmente no território de Pernambuco, localizado 37 no nordeste brasileiro. Evidencia ainda as etapas de produção da época escravista, destacando a atenção requerida por parte dos trabalhadores em busca da excelência, pois qualquer erro poderia desencadear um grande prejuízo para os donos do engenho (o que certamente traria castigo aos negros) ou causar mutilações e acidentes. Primeiro a cana era colocada em uma moenda para que fosse extraído o caldo ou garapa; o líquido produzido era levado até a casa de fornalha para ser cozido e apurado em caldeiras de cobre; depois o caldo já cozido era despejado em formas onde esfriava e cristalizava; por fim, era pulverizado e colocado ao sol. Silva (2010) enfatiza que a produção de açúcar exige um conhecimento técnico elevado, portanto, enquanto os escravos eram obrigados a trabalhar gratuitamente e faziam a maior parte do trabalho, existiam os especialistas remunerados para supervisionar cada etapa, no intuito de evitar déficit produtivo. Num primeiro momento, nós poderíamos ser induzidos a pensar que todos os trabalhadores envolvidos na produção de açúcar seriam escravos, o que não corresponde à realidade. Se assim fosse, estes teriam uma poderosa ferramenta nas mãos contra o sistema. Bastava prejudicar irremediavelmente a produção de açúcar que destruiria as finanças do senhor de escravos. Sem o poder econômico, a luta contra a escravidão seria facilitada (SILVA, 2010, p.92). Um fato interessante ainda sobre a cana-de-açúcar é sobre a origem das palavras pinga e aguardente. Silva (2010) conta em seu texto ‘‘Cana de Mel, Sabor de Fel – Capitania de Pernambuco: Uma Intervenção Pedagógica com Caráter Multi e Interdisciplinar’’ a história que ouviu no Museu do Homem do Nordeste, localizado no Recife: No Brasil, para ter melado de cana, os escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e levavam ao fogo. Não podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse. Porém um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos simplesmente pararam e o melado desandou! O que fazer agora? A saída que encontraram foi guardar o melado longe das vistas do feitor. No dia seguinte, encontraram o melado azedo (fermentado). Não pensaram duas vezes e misturaram o tal melado azedo com o novo e levaram os dois ao fogo. Resultado: o “azedo” do melado antigo era álcool que aos poucos foi evaporando e se formaram, no teto do engenho, umas goteiras que pingavam constantemente, era a cachaça já formada que pingava (por isso o nome - PINGA). Quando a pinga batia nas suas costas marcadas com as chibatadas dos feitores ardia muito, por isso deram o nome de “ÁGUA-ARDENTE”. (SILVA, 2010, pp. 91-92). 38 Nosso cortejo caminha pelo contexto histórico, social e econômico da cana-de-açúcar, pois o intuito da nossa oficina, além da criação pelo cheiro, é fazer com que as bailarinas reflitam sobre esta gramínea tão utilizada no nosso país, cuja origem revela muito a história do negro, este que trabalhou arduamente, teve seu corpo mutilado, sua liberdade privada, sua humanidade negada, para atender às demandas econômicas dos colonizadores. Na busca do movimento matriz, as bailarinas tiveram certo tempo para sentir o cheiro e reconhecer a movimentação primária. Cada uma, em sua experiência, sentiu o cheiro e se moveu, em uma percepção de um movimento sútil, o qual será o ponto inicial da nossa jornada coreográfica. Imagem 8: O cheiro doce-amargo I. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022. A cana-de-açúcar, um cheiro doce-amargo, levanta as sobrancelhas de alguns, levam a cabeça para trás, para frente ou para o lado esquerdo, expande o tórax, treme o rosto, contrai o pescoço! 39 Nesse singelo poema, de autoria própria, revelo os movimentos matrizes das bailarinas que nos levam à segunda etapa da metodologia Arte/Dança pelos sentidos: a criação de células, que são pequenas estruturas de movimentos potentes que derivam da matriz, sendo responsáveis por desencadear o desenvolvimento coreográfico (LEAL, 2012). As bailarinas nesse momento experimentaram os movimentos que fluíam após o movimento matriz. Tratou-se, portanto, de um período de escuta do corpo, de sentir novamente o cheiro, de repetir a matriz e deixar a movimentação fluir. A terceira etapa foi a exploração e o desenvolvimento de frases e temas, estes que podem ser pequenos ou grandes; são variações mais compostas, tecendo relações entres as células criadas; em suma, é um aprofundamento de movimentações tecidas pelo criador (LEAL, 2012). Nesse instante foram acrescentados mais dois estímulos ao processo: além do cheiro, as bailarinas tiveram que degustar a cana-de-açúcar ao som de uma cena do filme 12 anos de escravidão, lançado no cinema em 21 de fevereiro de 2014, dirigido por Steven McQueen, com roteiro de John Ridley. Nesse momento, faço um convite para que você também participe desse momento. Infelizmente, é improvável que seja possível degustar a cana-de- açúcar, mas, se tiver algum produto derivado dela, sinta-se à vontade em pegar. As instruções são as seguintes: coloque o produto na boca (caso tenha), clique no link a seguir - https://www.youtube.com/watch?v=6PzU3x9IloQ/ - e feche os olhos. A vivência, há pouco descrita, foi um momento muito forte e significativo da oficina, creio que tenha sido para você também. Interessantesalientar que, após a experimentação, as bailarinas afirmaram que foi difícil engolir o gosto doce ao som do amargo. Houve um processo de reflexão sobre o contexto histórico e social da cana-de-açúcar, que traz consigo, na verdade, toda uma trajetória de dor, de luta, de resistência do povo negro no Brasil. A quarta etapa foi a definição da estrutura coreográfica, juntando e estruturando todas as frases criadas pelos sujeitos. A oficina maracatucar I tem sua estrutura pautada em improvisação, que é um dos recursos utilizados para exploração de movimentações em criação em dança; por vezes, também é https://www.youtube.com/watch?v=6PzU3x9IloQ/ 40 resultado final de um processo que alia criação e interpretação no momento presente. Vale salientar que, para improvisar em dança, é necessário que o(a) bailarino(a) desenvolva um amplo repertório e tenha muita técnica para lidar com a criação e a interpretação no momento da apresentação, entendendo esse lugar de improviso como transformador, que pode se renovar e tecer novos caminhos, os quais potencializam o movimento no presente. Nesse sentido, a improvisação exige uma ampla consciência do corpo, do outro, do espaço e do público (LEAL, 2012). Partindo desse pressuposto, com a improvisação, com todo o repertório desenvolvido na oficina e com os estímulos sonoros dos batuques de Maracatu, as bailarinas teceram uma materialidade em dança. A materialidade em suas transformações na criação coreográfica. A materialidade como linguagem, fluxo pulsional da motricidade. Os recursos da materialidade em processo em improvisação, em exploração máxima são valorizadas como linguagem artística. (LEAL, 2012, p. 116). O processo de criação é um lugar de construção e desconstrução, é um espaço à espera de preenchimento pelo sentido do criar. Neste intuito, é preciso se desprender do que já está pronto e dar sempre lugar ao novo, seja no espaço (cenografia) ou no corpo (movimento), dando liberdade à criatividade pois "é no corpo livre que tudo nasce ou morre" (BROOK, 2002). E isso demanda: Presença, demanda que o aprendiz nele se coloque por inteiro. E exige relação com o outro. Entrar em contato, em sintonia com os signos é relacionar-se, deixar-se afetar por eles, na mesma medida em que os afeta e produz outras afecções. (GALLO, 2012, p.06). 41 Imagem 9: O cheiro doce-amargo II. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022. Imagem 10: O cheiro doce-amargo III. Fonte: Olivia Macedo, foto tirada no processo do cortejo ‘‘Maracatucando questões raciais‘’ no ano de 2022. A princípio iniciamos aquecendo com alguns movimentos como: movimentar ações que eram feitos na época da escravidão quando cortavam, mexiam, empurravam e descascavam a cana-de-açúcar. Logo depois começamos a sentir com a cana na boca e ouvir um som de um homem chicoteando a sua mulher e a sensação 42 foi de muita dor e sofrimento, eu me comprimi toda ao ver esses dois sentimentos de contradições: sentir algo doce na boca e ouvir a dor de alguém. Por último fizemos composição coreográfica, eu e mais duas amigas e foi a junção dos movimentos estudados. Narrativa: Ruth Dayane, 2022, p.02. Em todo momento eu senti experimentando algo novo, foi muito interessante as novas perspectivas que experimentei. Já tinha parado para pensar sobre o movimento matriz, porém nunca tinha experimentado na dança, é engraçado que pouco percebemos o movimento, mas tudo começa partindo dele e com estímulos sonoros muitas vezes deixamos escapar o primeiro movimento. É bem relevante analisar que movimentos simples como: empurrar, descascar, mexer e cortar contam uma história, movimentos que inclusive fizeram parte de uma história de verdadeiros guerreiros. Nunca havia experimentado cana-de-açúcar e com certeza não vou esquecer da forma que a senti. Narrativa: Abynna Safira, 2022, p.02. O começo da oficina partiu de estímulos sonoros associados à movimentos cotidianos nos engenhos de cana-de-açúcar: mexer, cortar, empurrar e descascar. A princípio achei difícil assimilar e criar movimentos a partir disso, mas a música fez com que fluísse com mais facilidade. A segunda experiência foi com a cana-de-açúcar, onde sentimos o cheiro e observamos qual a primeira reação do corpo diante disso: o movimento matriz. O meu foi uma elevação sútil da cabeça, esse foi mais fácil, era um exercício de atenção. Depois do cheiro, veio o sabor. Dois estímulos e um contraste: a doçura da cana com um áudio agressivo, amargo. Meu corpo encolheu, o maxilar travou, o doce se tornou difícil de sentir, senti desconforto. Esse movimento se uniu ao “matriz’’ e foi formada uma célula. Partindo da célula, foi desenvolvida uma frase, esta última individual, onde usei as composições anteriores mais alguns movimentos livres para uma coreografia. Por fim, fomos divididas em um trio e uma dupla para unir nossos movimentos. No início da aula senti dificuldades e uma certa estranheza, por ser uma dança que não estou habituada, mas no decorrer da música, práticas e estímulos consegui soltar o corpo. Narrativa: Sarah Nascimento, 2022, p.02. Método: No início em particular foi uma experiência nova e desafiadora, a metodologia me fez desejar e me sentir envolvida em cada parte dando começo no momento da matriz que fez sentir os movimentos praticados pelas pessoas em seu cotidiano, tais como cortar, empurrar, descascar e mexer. Em cada movimento experimentamos passar pelos níveis alto, médio e baixo, dessa forma cada movimento vivido e expressado por cada membro do corpo. Momento de experimentação com a cana-de-açúcar: Em primeiro momento foi usado os sentidos de sentir e de degustação (olfato e paladar), ao sentir o sabor doce que a proporciona me fez se sentir leve, mas ao escutar o som me fez sentir angústia e dor, a cada chicotada e grito que a mulher ecoava me sentia triste e me fez pensar sobre à proporção que a dor nos causa. Momento de criação: Poder viver cada parte e criar foi algo que trouxe em meu corpo e mente uma novidade. Ao poder dançar o maracatu é como eu pudesse viver a dor e, ao mesmo tempo, a libertação dessa dor. Narrativa: Vitória Fernandes, 2022, p.02. 43 As narrativas acima foram extraídas do diário de bordo das bailarinas; em suas falas, notoriamente é percebido que elas estiveram de corpos presentes para essa oficina, cada uma em sua subjetividade teceu composições que revelaram toda a potência desse primeiro momento do estudo em questão. Vale salientar que os mecanismos usados na prática buscam fazer com que elas iniciem um processo de pensar sobre como é ser um corpo escravizado, tentar imaginar a dor de ser explorado, castigado, ser subjugado, ser tratado como propriedade de alguém. Porém, reconhecemos que uma prática apenas não é suficiente para realmente compreender o que aquelas pessoas passaram ou o que pessoas atualmente ainda sofrem em decorrência deste passado. Apesar do pouco tempo com as participantes, temos um catucar para que comecem a perceber, a pensar sobre como é ser negro em nosso país. Nesse primeiro momento, usou-se como meio uma experimentação que enfatiza o contraste presente no produto que era cultivado, este que adoça a vida, mas que é fruto do suor, do sangue das pessoas negras que o cultivaram, tornando-o amargo. Tal oficina buscou gerar o início de uma reflexão sobre a relação da produção da cana-de-açúcar no Brasil e a exploração da mão de obra escrava, que gera riquezas para os seus patrões às custas de suor, lágrimas e chibatadas, trazendo o pouco do contexto histórico e econômico que constitui esse período e sua repercussão tão ainda enraizada nos dias atuais. 1.3 O sagrado do Maracatu O Maracatu Nação carrega em sua dança o sagrado do povo negro resistente e a luta pela valorização de
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