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O QUE É QUE DESVIRTUA E ENSINA?1 POR UMA EDUCAÇÃO DE IMAGENS SECAS E AQUOSAS Rodrigo Viana Sales Departamento de Ciências Sociais – UFRN Resumo: Neste trabalho faço uma reflexão sobre a imagens, convocando diversos autores para dialogar sobre essa temática. Bem como, desenvolvo duas categorias analíticas para pensar sobre o uso de imagens no exercício de docência. Através de uma metodologia não hegemônica, inspirada na antropologia filosófica, faço o uso de uma imagem para gerar os conceitos de imagens seca e imagem aquosa, e a partir deles faço considerações ainda embrionárias sobre o uso desses tipos imagéticos na prática docente e na educação num sentido mais amplo. Palavras-chave: Imagem; educação; imagem seca; e imagem aquosa. O presente trabalho tem por objetivo primordial, além de fazer uma reflexão sobre as próprias imagens, pensar o uso de imagens enquanto mediador/operador cognitivo nas práticas educativas. Conquanto, para isto, utilizo da imagem título do trabalho (O que é que desvirtua e ensina?) como catalizador que possibilita o desenvolvimento de reflexões, conceitos e narrativas. A metodologia escolhida para o desenvolvimento deste texto, não tem a intenção de endossar o uso das imagens apenas como ilustrações complementares à uma narrativa, ou conceito estruturante. Aqui, as imagens agem, sobretudo, como motivadoras da capacidade criadora e reflexiva, tanto dos seus autores, quanto daqueles que às leem/meditam. Afinal , o que é que desvirtua e ensina? Primeiramente, precisamos identificar o que entendemos por virtude. Se definirmos que é “uma disposição firme e constante para a prática do bem”, ou mesmo como uma “força moral” (FERREIRA, 2000: 713), logo entenderíamos que tanto a virtude, quanto a desvirtude estariam estritamente ligadas a valores morais antropologicamente relativos. Poderíamos assim, facilmente comparar a essa noção de desvirtude com a ideia de desvio desenvolvida por Émile Durkheim, que entende a importância social do desvio para que a sociedade, em sua dinâmica, ultrapasse os valores da norma vigente, ajudando assim, a regular as fronteiras dos sistemas sociais (DURKHEIM apud JOHNSON, 1997 69-70), ou seja, o aprendizado gerado pela desvirtude e tão importante quanto o desenvolvido pela virtude, é regulador, porém, a diferença básica entre ambas é que a primeira tem maior caráter transformador e revolucionário que a segunda. 1 Trecho da recortado da música de Legião Urbana: A MONTANHA MÁGICA; Álbum: V, faixa: 04. Consequentemente, teremos de pensar sobre o que ensina? Se considerarmos que tudo que não é inato é adquirido, e portanto, aprendido, teríamos de reconhecer que tudo que é aprendido se faz através de um processo cognitivo de leituras sobre as representações da realidade. Com isso, logo entenderíamos que toda representação, significação e simbolização são imagéticas. Ou seja, para haver cognição humana é exigida uma síntese imagética que represente as coisas que são exteriores, ou mesmo interiores, ao sujeito, tendo em vista que nunca assimilamos a própria realidade, e sim uma representação particularizada dela e essa particularização é dada pela percepção do sujeito que lê o mundo. Para Harry Pross, essa relação ocorre entre os homens e seu mundo e são pautadas em algo que dá embasamento a sua visão de mundo e permite suas diferenciações dicotomizadas, ele escreveu: Las relaciones entre conocer y designar, pensar e hablar se formam junto al <<algo>> que se dé y em su refencia que se interpreta no em la <<nada>>, sino al contrario, en algo perceptible […] a través de esta red de relaciones percibe y opera el ser humano, buscando siempre <<algo>>, para apoyarse em ello frente a la nada (PROSS, 1980:16). Assim, poderíamos afirmar que as imagens possibilitam um diálogo subjetivado com o mundo, bem como, ao mesmo tempo tem a capacidade de criar, classificar, adjetivar e/ou mistificar o fenômeno a ser entendido. Como afirmou Cassirer, as imagens são componentes do pensamento (CASSIRER, 2001: 58), a imagem é portanto genuinamente mediadora entre o sujeito e o real, e é através dessas mediações que aprendemos. Apesar de buscar reflexões sobre as imagens de maneira mais rigorosa, procuro inicialmente não conceituar de maneira definitiva o que é imagem, pois, isso seria aprisionar e reduzir um fenômeno muito amplo em uma categoria analítica certamente empobrecida, por isso, tentei apenas adjetivá-la, mantendo aberto o espaço para considerações externas. Caso contrário, poderia ocorrer o mesmo que aconteceu com o conceito de cultura2. Essa decisão metodológica ocorreu em virtude de reflexões ancoradas no texto “Para sair do século XX” de Edgar Morin, onde o autor demonstra como a percepção humana é passível de enganos através do erro da ilusão, ou melhor, do “componente alucinatório da percepção (MORIN, 1986:23). No texto, é evidenciada a necessidade de uma permanente vigilância epistemológica para transpor os obstáculos do erro e para isso se faz necessário saber ver. Em outro livro nomeado “Meus Demônios” o autor resume essa ideia em uma máxima: “ninguém está imune a mentira de si mesmo” (MORIN, 2003:10). Todavia, é necessário esclarecer que ao meditar sobre imagens, códigos, signos, e símbolos, é imprescindível reconhecê-los enquanto expressão canalizada de um ser humano, que pode servir de suporte para adesão, reflexão, contemplação, devaneio e (re)significação de outro(s) ser(es) 2 Segundo Canevacci, “todo conceito de cultura acabou em posições generalistas e homogeneizantes” (CANEVACCI, 2005, p. 16). humano(s)3. Por isso, Ernst Cassirer ao fazer uma distinção entre os outros animais e os seres humanos, atribui aos segundos o nome de “Animal Simbolicum”, justamente pela sua capacidade peculiar de simbolizar, ele afirma: “Em suma, podemos dizer que o animal possui uma imaginação e uma inteligência práticas, ao passo que só o homem criou uma forma nova: uma imaginação e uma inteligência simbólicas” ( CASSIRER, 2001,:62). É justamente Cassirer que adverte algo imprescindível para o desenvolvimento deste trabalho, ele desenvolve uma importante diferenciação entre sinais e símbolos. Para ele, “o sinal é uma parte do mundo físico do ser”, já o símbolo “é uma parte do mundo humano do sentido” (CASSIRER, 2001: 58). É essa perspectiva do simbolo que compartilhamos ao pensar as imagens. Porém, a imagem ou é adotada, ou é caminho onírico, se simplesmente adotada, ela corre o risco de se tornar veículo do poder simbólico embutido na imagem, para Pross (1980) no símbolo. Se é adotado o caminho onírico ela perde a referência objetiva inaugural, mas ganha em seu potencial criativo. Para melhor desenvolver essa ideia fazemos uso de dois conceitos novos que facilitaram o entendimento sobre o uso de imagens, sobretudo, no espaço educacional. Partimos da imagem aprisionada ao seu objeto designador, que tem a necessidade de um saber precedente para existir. Limitando-se apenas a identificar o ser, espaço, tempo, objeto, fenômeno, ou ideia, designado a partir do seu reconhecimento conceitual através de uma convenção coletiva4, designamos o conceito de imagem seca. Esse tipo de imagem tem uma evidente relação com a ideia moraniana de símbolo, pois, implica em uma relação forte entre a sua realidade própria e a realidade que designa” (MORIN,1987:146), com isso tem um sentido evocativo concreto ligado ao pensamento simbólico/mitológico/mágico (MORIN, 1987). Chegando a imagem aquosa5, que assim como as propriedades do elemento que a classifica, tem por essência a capacidade de diluir os seus pressupostosiniciais, se tornando desnuda de convicções preestabelecidas, sempre nova e inaugural. Que tem a possibilidade de se moldar segundo a forma que ela ocupa, apesar de não ser facilmente aprisionada. Assim é também a imagem poética bachelardiana. “Em sua simplicidade não tem a necessidade de um saber. Ela é dádiva de uma consciência ingênua” (BACHELARD, 2008:4), é exatamente por isto que ela serve como força motivadora para reflexão do que não estar dado, pois no que é ingênuo reside a necessidade de saber, experimentar, relacionar, conhecer. Este tipo de imagem tem maior relação com a ideia Moraniana de Signo: O signo implica uma “distinção entre e sua realidade própria e a realidade que designa” (MORIN,1987: 146), por isso tem um 3 Exemplo: uma pintura, uma frase, uma composição musical, uma poesia, um gesto, ou mesmo uma palavra. 4 Como por exemplo: a palavra porta, quando dita, evoca a coisa designada em nosso pensamento de maneira representativa e indissociável do objeto real a que remete. 5 Conceito inspirado na ideia de sociedade líquido moderna de Bauman em sua constante fluidez, bem como a ideia bachelardiana sobre a água que tudo dissolve. indicativo instrumental ligado ao pensamento empírico/técnico/racional (MORIN, 1987). Se faz valido ressaltar que não existe uma hierarquia castradora entre as imagens secas e aquosas, ambas são imprescindíveis no processo de elaboração cognitiva humana. Pois uma alicerça as bases do pensamento psicossocial para a seguinte poder transcender os limites impostos pela primeira. Também é importante destacar que ambas não são categorias genuínas, podendo em alguma medida relativa ao lugar em que se encontra o observador, uma se misturar com a outra, pois nada é tão seco que não possa ser umedecido por um devaneio poético, assim como, nada é tão aquoso que não possa ser solidificado. Contudo, se faz emergente uma nova prática de relação com a produção e disseminação do conhecimento, onde o uso de imagens deixem de ser apenas ilustrativos e possam ser um agente pedagógico efetivo, que estimule a prática de uma reflexão que vá além da aparência primeira das coisas, que estimule a imaginação inventiva, que verdadeiramente explore as possibilidades dos discentes, valorize as potencialidades artísticas, dê liberdade para que eles possam ler o mundo através de suas próprias impressões. Para isto, se faz necessário o estímulo do uso das imagens aquosas enquanto estratégia pedagógica religadora da relação: conteúdo e exercício reflexivo, para que isto possibilite a formação de indivíduos críticos, contestadores, agentes transformadores da sociedade. Enfim, tudo que desvirtua, ensina. Mas a imagem é o elemento primordial do ensino e a responsável pela sedução que leva a desvirtuação, bem como, a reprodutora das estruturas simbólicas de poder e valores que conduzem a virtude. O ensino não dotado de uma lógica maniqueísta, ele é uma prática assentada no uso e na leitura de imagens, sejam elas secas ou aquosas. O que desvirtua, apenas o faz dentro de uma perspectiva ética, sendo assim a virtuosidade e a desvirtude relativas. Contudo, entendo a imagem aquosa, em particular, como elemento que potencialmente possui maior possibilidades de desvirtuar e ensinar, pois, ela exonera a virtude da educação tradicional, estabelecida com os moldes de assepsia e objetividade da ciência cartesiana, dentre outras regras e dogmas estabelecidos. Corrompe com a dureza e objetividade cética da imagem seca, transbordando o conhecimento inicial, através do devaneio, de maneira potencialmente inesgotável. Referências: BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço / Gaston Bachelard; Tradução Antônio de Paula Danesi – 2ª ed. - São Paulo, Martins Fontes, 2008. CANEVACCI, Massimo. Culturas eXtremas: Mutações juvenis nos corpos das metrópoles. Trad. Alma Olmi, Rio de Janeiro, DP&A, 2005. (pp. 07 - 65) CASSIRER, Ernst: Ensaio sobre o Homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2001. FERREIRA. Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar: O minidicionário da língua portuguesa / Aurélio Buarque de Holanda, 4. ed. Rev. Ampliada, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000. (pp. 713). JOHNSON, Allan G. Guia prático da linguagem sociológica / Tradução Allan G. Johnson: tradução, Ruy Jungmann; consultoria, Renato Lessa. - Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1997. MORIN, Edgar. Meus demônios. Tradução de Lenine Duarte e Clarisse Meireles. - 4a Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. ______. O duplo pensamento. In:______. O método III: O conhecimento do conhecimento. Lisboa: Europa-América, 1987. (pp.144-165) ______. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. (pp.19 – 88) PROSS, Harry. Estructura simbólica del poder. Trad. Pedro Madrigal Devesa e Homero Alsina Thevenet. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1980.