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O QUE SE TRANSCRIA EM EDUCAÇÃO?
Conselho Editorial
Betina Schuler (UCS/EMEF Rincão/PM-POA)
Dóris Helena de Souza (SMED/POA)
Gláucia Maria Figueiredo (UNIOESTE)
Karen Nodari (UFRGS/Colégio Aplicação)
Luciano Bedin da Costa (UFRGS/SETREM)
Ludmila de Lima Brandão (UFMT)
Maria Amélia Santoro Franco (Universidade Católica de Santos)
Nadja Maria Acioly-Regnier (Université Claude Bernard Lyon1)
Vânia Dutra de Azeredo (PUC/Campinas)
Comitê Editorial
Carla Gonçalves Rodrigues (UFPel)
Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE)
Silas Borges Monteiro (UFMT)
© Sandra Mara Corazza, 2013
Editoração por SUPERNOVA EDITORA
Capa e escultura da Classe Monstra por LEONARDO GARBIN
Classe Monstra · 2013
cerâmica, vidro, lápis e canetas, ferro, papel e nanquim. 25 x 30 x 22 cm
acervo do artista · Porto Alegre/RS
Fotos por WILLIAN ANSOLIN
Bibliotecário: Douglas Rios (CRB - 1/1610)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
C788q 
 Corazza, Sandra Mara.
 O que se transcria em educação?/ Sandra
 Mara Corazza. Porto Alegre-RS : Doisa, 2013.
 228p.
 ISBN: 978-85-66308-03-7
 1.Educação. 2.Pesquisa 3.Docência.
 4.Currículo. 5.Didática. I. Título.
CDU 37 
O QUE SE TRANSCRIA EM EDUCAÇÃO?
SANDRA MARA CORAZZA
A quem transparadisa o mundo:
PEDRO, ALICE, LUCAS
SUMÁRIO
PARA FALAR DELA 11 
 Paola Zordan; Nilton Pereira; Samuel Bello 
PARTE 1 – ENSAIO E MÉTODO 15
1. Para artistar a educação: 
 sem ensaio não há inspiração 17
2. Método Valéry-Deleuze: 
 um drama na comédia intelectual da educação 41
3. Pedagogia dos sentidos: 
 a infância informe no método Valéry-Deleuze 71
PARTE 2 – PESQUISA E DOCÊNCIA 91
4. A formação do professor-pesquisador 
 e a criação pedagógica 93
5. Discurso biografemático: 
 Vidarbos 103
6. O docente da diferença: 
 identidade e singularidade 119
PARTE 3 – CURRÍCULO E DIDÁTICA 141
7. Os sentidos do currículo: 
 necessidades inadiáveis 143
8. O drama do currículo: 
 pesquisa e vitalismo da criação 163
9. Currículo da infância e infância do currículo: 
 uma questão de imagem 183
10. Didática-artista da tradução: 
 transcriações do currículo 203
OS QUE 225
11
PARA FALAR DELA1 
Paola Zordan; Nilton Pereira; Samuel Bello
Estou aqui hoje pra falar DELA, falar sobre ELA, falar na 
cara DELA. Ela. A infernal botadora de boca nos trombones 
maquinais das comissões, dos colegiados, conselhos, do 
DEC, dessa Faculdade, da Universidade. Por isso chamam Ela 
de Fera. Ela, a colega do DEC da FACED, parceira intelectual 
que não se amesquinha por pontos e descontos. Ela, a 
distribuidora de brindes e rodadas. Partilhadora de ideias, 
sopradora de palavras, doadora de escritos, indicadora de 
bibliografias inesgotáveis, ela É MESMO FERA. Mas, como 
uma boa paradoxal, Ela também é Bela. Mãe do Paulo, do 
André e do Sérgio. Agora a avó do Pedro, da Alice e do Lucas. 
A dona dos dálmatas. A mulher de mil e uma multiplicadas 
noites do especial Hugo. Das poucas viventes desse pago que 
teve a coragem de deixar de ser gremista, talvez antes de ter 
deixado de ser Rodrigues. Sorte d’Ela, agora bicampeã da 
Libertadores... E o mundo nos espera de novo! Mas a taça 
que vem erguer no coração dessa homenagem é outra. ELA! 
Mesmo que “libertadora” tenha tentado ser. Isso no tempo em 
que vivia dentro dos livros do Paulo Freire. E atuava na Rede 
Estadual de Ensino, lutando por uma educação libertária, 
coordenando projetos em torno de um Tema Gerador. 
Quando acampava na Praça da Matriz e batia sineta na frente 
do Palácio do Governo. Ah, num tempo em que era militante, 
e sabia de cor e salteado as cartilhas de Freud e Marx, e lutava 
na linha de frente por uma Educação Básica de qualidade. Bah! 
1 Texto produzido pelos colegas do Departamento de Ensino e Currículo (DEC): 
Paola Zordan, Nilton Pereira, Samuel Bello; e lido por Cesar Lopes (falador-
transmissor-atravessador-corruptor do texto), em nome do DEC, na Sessão 
de Homenagem a Professores, em comemoração aos 40 anos da Faculdade de 
Educação da UFRGS, realizada em 10 de dezembro de 2010 na FACED/UFRGS.
12
Quase arrebentou as cordas vocais, tanto que quase 
desistiu de ser escutada pelo poder estatal e tenha se ocupado, 
dali para frente, a falar só para minorias. Mas com sua garganta 
forte que a levou muito jovem, ainda em Montenegro, para 
a frente de uma classe primária de Séries Iniciais, corpo 
coletivo infantil que toda aluna de curso Normal tem como 
decisivo na vida. E este seu amor pelo Infantil a carregou 
para os mares agitados de seus estudos infindáveis, maiores 
e bem mais ecléticos que os de sua Faculdade de Filosofia... 
E também a conduziu aquele medo horrível de ser (como 
alguns colegas efetivamente foram) carregada para dentro de 
um porão e apanhar por causa de ideologias; desaparecer 
sem nem ter ainda aparecido. Logo Ela, leoa rugidora que, 
goste ou não, sempre acaba aparecendo. Mesmo quando Ela 
é Uma. Porque Ela é muitos, muitos livros, muitos artigos, 
incontáveis publicações, pareceres, orientandos vários. Ela é 
Bando. Ela é uma multiplicidade em si. Ela dá de ombros 
para a sirene que avisa que acabou o período e a aula está 
burocraticamente encerrada. Para Ela, o ensino não termina 
nunca e a aprendizagem é sempre a aventura. Embarcando 
na Jangada de Medusa, largou bandeiras e ideologias para 
pegar a fina pena dos manifestos canibais. Antropófaga, 
quanto mais vive, mais autores devora. Aliás, também é 
conhecida por Esfinge. Assusta todos a quem questiona. 
E deuses, Ela QUESTIONA... E como eu sei bem disso... 
Desde nosso primeiro encontro, Professora-questionadora-
banca x aluno-iniciante-químico num Salão de Iniciação 
Científica do século XX. Questionar faz parte do seu método 
pedagógico. Ainda que até o pedagógico seja um conceito a 
ser posto em xeque. Não porque Ela goste de ser crítica, e sim 
porque aprendeu com Nietzsche que sem o rugir do Leão 
o Camelo continua a carregar estupidamente seus fardos. 
A criança precisa brincar, sem peso, sem “camelagem”. 
E por mais séria e de terninho, de cabelo arrumado e de 
óculos que apareça, Ela, a Fera, nunca deixou de ser a 
menina Bela dançante sobre suas sapatilhas de balé. Só que 
agora, sexagenária, sua dança são as palavras precisas nas 
coreografias espetaculares que apresenta em sala de aula. 
13
E quem já assistiu uma aula Dela sabe: ninguém sai do mesmo 
jeito que entrou. Muito menos o currículo. Do currículo, 
Ela já perguntou: o que queres? Então trouxe currículos 
nômades, vagabundos e de tantos tipos, que dizer de todos 
eles aqui seria viajar em letras que a Ela mesma escapam. 
Ela, que acabou com tantas prescrições e traz outras para 
facilitar os modos de uso. Artistou a pesquisa e veio criar um 
currículo cheio de Artistagens. Ela, que explora a potência 
do disciplinar e torna as palavras indesejadas, apavorantes, 
em questões vitais. Necessária, oportuna, quando se trata de 
pensar, de falar baixinho para si, as ideias que depois surgem 
literárias. Inventou, alguns julgam que até demais, cifrou 
conceitos em textos que a Educação estranha, fantasiando 
sempre. Tanto que a acusam de “filha de Hermes”, quando, 
por ignorância, não decifram os n códigos que seus textos 
costumam por em jogo. Ousou tanto que ninguém duvida o 
quanto seja Diferente. Não apenas por coordenar o DIF e sim 
por tudo o que veio a ser numa vida, à qual ninguém consegue 
ser indiferente. Perto d’Ela, ou se ama ou se odeia. Afectos 
neutros são impossíveis. Ela é trágica, exagerada, estridente. 
Pega sempre o teu ponto mais fraco, principalmente quando 
te ama. Boa professorinha, que nunca deixou de ser, quer que 
tu aprendas e sabe que isso, muitas vezes, é na marra. Bem, 
daí tanta gente sair correndo. Mas os que ficam aprendem a 
superar suas falsas limitações. Afinal, limite é uma palavra 
que, como muitas outras, Ela transforma em outra coisa. 
Limites são humanos e tudo o que é demasiadamente 
humano se torna intolerável, mesmo para a mais didática 
das professoras. E maisque, uma vez pesquisadora, essa 
professora só faz romper com os limites de suas próprias 
crenças, com o limite de todo discurso pedagógico. Ciente dos 
limites dos discursos, Ela os transverte em versos e fabuladas 
versões. Ela, a Mara, Márai, Maradea nunc sum, Amor fati, 
De Fouror, corazzakai, S. M. Costello, Lisbeth Salander, 
Salamandra, Cassandra, San, Sandy, sandramaracorazza. 
FERA! Vem pra cá.
Da tribo dos adoradores da Medusa.
PARTE 1
ENSAIO E MÉTODO
17
 1PARA ARTISTAR A EDUCAÇÃO: – sem ensaio não há inspiração1
Em O Abecedário de Gilles Deleuze (Deleuze, 2007), no 
vocábulo Professor, Claire Parnet pergunta a Deleuze (então 
com 64 anos e aposentado) se ele não sentia falta de dar 
aulas, já que as dera, com paixão, durante quase 40 anos, 
nos níveis médio e superior de ensino. Deleuze responde-lhe 
que, no momento, é uma alegria não ter mais de dar aulas, 
porque já não tinha mais vontade, embora elas tivessem 
constituído uma parte importante da sua vida. Diz, então, que 
essa questão de aulas é simples, já que elas têm equivalentes 
em outras áreas, em função de ser algo muito preparado: 
– “Se você quer 5, 10 minutos de inspiração, tem de fazer 
uma longa preparação”. E acrescenta que sempre fez dessa 
maneira porque gostava: – “Eu me preparava muito para ter 
esses poucos momentos de inspiração”. 
Entretanto, com o passar dos anos, Deleuze começou 
a perceber que precisava de uma preparação crescentemente 
maior para obter uma inspiração cada vez menor. E concluiu 
que estava na hora de parar, para fazer outra coisa, como 
escrever. Ele diz que não saberia calcular quanto tempo essas 
preparações lhe exigiam, mas que, como tudo, tratava-se de 
ensaios: – “Uma aula é ensaiada, como no teatro”. Se não 
a ensaiarmos suficientemente, “não estaremos inspirados”; 
e se ela não resultar de “momentos de inspiração”, não quererá 
“dizer nada”. O ensaio que fornece a inspiração consiste 
em “considerar fascinante a matéria da qual tratamos”; em 
achar “interessante o que se está dizendo”; para “chegar ao 
ponto de falar de algo com entusiasmo”. E Deleuze finaliza: 
– “O ensaio é isso”.
1 Texto publicado, com variações, em 2007 e 2012 (2ª edição), na Revista Edu- 
cação Especial Biblioteca do Professor (Editora Segmento, SP, volume 6, 
p. 16-27; p. 68-73); e, ainda, em 2008, na Revista de Educação Pública (Univer- 
sidade Federal de Mato Grosso, UFMT, v.olume 17, número 34, p. 237-254).
18
Para ensaiar Deleuze, ao escrever sobre algumas resso- 
nâncias, provocadas por sua Filosofia da Diferença na 
Educação, vários usos conceituais poderiam ser enfatizados, 
tais como os que vêm sendo produzidos em diversos espaços 
institucionais, de relações e textuais (Tadeu; Corazza, 2002; 
2005). Seguindo Barthes (2005), para que as escolhas que 
fazemos dos conceitos, textos, livros, obras dos outros passem 
para nós, é necessário defini-los como escritos por nós; e, ao 
mesmo tempo, torná-los outros, deformando-os por amor, 
desde que por eles fomos seduzidos. O que buscamos nos 
conceitos que desejamos é que alguma coisa ocorra: uma 
nova aventura, uma nova conjunção amorosa; e, por isso, a 
relação que estabelecemos com determinados conceitos do 
autor amado é a de que eles fiquem lá, como signos de nós 
próprios, inspirando-nos a passar do Prazer de Ler ao Desejo 
de Escrever (Scripturire = Querer-Escrever). 
É em nome dessa relação que, primeiramente, ficcionalizo 
a questão “O que Deleuze quer da educação”? Em seguida, 
para imaginarizar respostas, extraio, traduzo e uso alguns 
conceitos deleuzianos, como cartografia, impessoalidade, 
simulacro, devir, nômade, acontecimento, entre outros. Com 
eles transvertidos, constituo e qualifico quatro temáticas 
educacionais, quais sejam: Crianças, Professores, Currículos 
e Pesquisa. Então, concluo, diferindo do que escrevi.
1. Deleuze 
 O que Deleuze quer Da eDucação?
Quem vem por lá, no meio da neblina? Quem entra sem 
bater, sem se anunciar, sem dizer o próprio nome? Quem 
chega ao jardim de infância da Educação? As crianças se 
assustam, pois veem que é um homem de saúde frágil, a 
quem frequentemente falta ar. Elas gritam por socorro, ao 
olharem suas unhas longas, não aparadas, que protegem a 
falta de impressões digitais. Todas se perguntam: – “O que 
ele vem fazer aqui? O que quer da Educação? Cometerá 
violências contra a sua educação, ao fazê-las aprender a 
pensar sem imagens e a desaprender o que já aprenderam? 
19
Quem ele pensa que é, para vir se meter com elas, até agora 
tranquilamente fixadas em formas essenciais e saturadas de 
definições substanciais? Quanto atrevimento por parte de 
quem nunca atribuiu à infância qualquer valor, enquanto 
fonte do sujeito, origem do sentir e do pensar adultos! Quanta 
invasão de quem jamais deu qualquer importância à infância-
arquivo, à criança-lembrança ou ao infantil-universal, por 
privilegiar somente um devir-criança do mundo! Que ousadia 
a desse homem intrometer-se na Educação, justamente 
ele que, enquanto aluno, foi uma nulidade na escola”. (Até 
descobrir que a filosofia podia ser tão desafiadora e divertida 
quanto qualquer obra de arte!)
Os professores tentam acalmar as crianças, que choram 
de medo, quando o homem lhes fala com a sua voz rouca e 
a dicção fatigada, como as de um feiticeiro. Então, mostram-
lhes que este pensador traz, para todas, belas, novas e fortes 
lufadas de enunciação, que nos levam a pensar e a viver a 
Educação do mesmo modo que um artista pensa e vive a sua 
arte. Explicam-lhes tratar-se de um filósofo que prossegue 
a tarefa (que Spinoza começou e Nietzsche continuou) de 
nos levar a detestar todos os poderes ligados à tristeza, que 
transmitem a ideia de se viver em estado perpétuo de dívida 
infinita. De alguém que tem horror a tudo que apequena 
e entristece a vida, isto é, dos poderes de quem trabalha para 
diminuir ou nos separar das forças ativas de que somos 
capazes; e que, com isso, buscam conduzir nossas vidas 
à resignação, à má consciência, à culpa, recheando-as de afetos 
tristes e imobilizadores, de queixas e de ressentimentos. 
As crianças, agora, entendem melhor o rico presente 
que esse homem trouxe consigo: a possibilidade de pensar 
e de viver a alegria em Educação; já que ele mostra como 
amar tudo aquilo que desenvolve e efetua as potências 
afirmativas e como odiar todos os poderes que obstaculi- 
zam essa efetuação. E lhes diz que qualquer poder é sempre 
muito triste, mesmo se aqueles que o exercem alegram-se 
em fazê-lo: – “Os que exercem os poderes e com eles se 
alegram são uns pobres coitados, porque a sua é uma alegria 
triste”! 
20
Nesse momento, as crianças param de chorar, porque 
se existem, neste Universo, criaturas que não querem saber 
de alegrias tristes, mas só de alegrias que as regozijam – 
por serem o que são e por chegarem aonde chegam, por 
meio de suas potências infantis –, essas criaturas são as 
crianças! No entanto, os professores alertam: – “Sejam pru- 
dentes! Não exibam demasiadamente essa alegria em estado 
puro, pois há muita gente para quem a infantilidade – que 
diz um Sim incondicional à Vida – é insuportável”!
2. Crianças 
 Cartógrafas-impessoais-artistas
Após o pavor que o encontro inicial com o Feiticeiro 
do Pensamento da Diferença provocou, tudo muda na 
Educação. A começar pelas próprias crianças, que não mais 
se pensam ou são pensadas como embriões originários 
do ser humano cognitivo e psíquico, nem como fontes da 
sociedade e da cultura, mas se anunciam como cartógrafas, 
impessoais e artistas. Cartógrafas porque exploram os 
meios das aulas, escolas, parques; fazem trajetos dinâmicos 
pelas vizinhanças das ruas, campos, animais; traçam mapas 
virtuais dos currículos, projetos político-pedagógicos, em 
extensão e intensão, os quais remetem uns aos outros; e 
que elas superpõem aos mapas reais, cujos percursos, então, 
são transformados. 
Como mapeadoras extensivas dos movimentos das 
relações pedagógicas de poder e dos deslocamentos dos 
saberes curriculares,as crianças redistribuem impasses e 
aberturas desse poder, limiares e clausuras desses saberes, 
limites e superações dos seus modos de subjetivação, em 
busca do Acontecimento – que elas sabem não se tratar 
de fatos educacionais, dados históricos nem práticas 
pedagógicas; embora ele não exista fora dessas efetuações; 
só que, nelas e em seu existir atual, o Acontecimento não 
se esgota, pois é imaterial, incorporal e virtual. 
Já, enquanto mapeadoras intensivas de afetos (ativos e 
alegres, passivos e tristes), as crianças produzem constela- 
21
ções educacionais, que preenchem suas deambulações 
sociais. Impessoais, elas falam e escrevem por indefinidos, 
que consistem naquela forma de expressão que precede as 
manifestações da sua subjetividade infantil, delas fazendo 
singularidades pré-individuais e consciências pré-reflexivas 
sem Eus. Por isso, as crianças adoram o indefinido Uma-
Criança, que é como elas se enunciam como sensíveis; o 
que as leva à conclusão de que também são Artistas. 
Artistas porque, definindo-se como sensíveis, fazem 
as mesmas coisas que a Arte. Ou seja, tanto as crianças 
Cartógrafas-Impessoais como a Arte não ordenam lugares, 
mas abrem rasgões para o Fora; movimentam-se sobre 
um devir-infantil e sobre o esquecimento da história e o 
abandono das lembranças de infância; percorrem passagens 
e linhas erráticas de materiais flexíveis e heteróclitos; 
desenroscam anéis de superfície pura, sem interior nem 
exterior; conectam e desconectam inimagináveis zonas de 
vizinhança; jogam pedras numa velocidade infinita contra 
todos os organismos; realizam viagens histórico-mundiais, 
sem saírem do Continente da Infância e da Arte; abrem e 
fecham portas, telhados e planos, enlouquecendo totalmente 
o pensamento do bom senso da Infância e do senso comum 
da Arte. Em suma, em devir-infantil, as crianças, cartógrafas-
impessoais-artistas fazem até voar os morcegos que bicam 
as suas janelas.
3. Professores 
 Devir-simulacro
– “Estivemos sempre sob o jugo do Princípio de Iden-
tidade”. Eis um diagnóstico que Deleuze realiza, juntamente 
com toda filosofia pós-nietzschiana, e que orienta o seu 
pensamento na direção oposta ao do pensamento da 
identidade – o qual, para reunir a multiplicidade sob um 
conceito, deve, necessariamente, igualar o não-igual. Assim, 
ao utilizar esse Princípio da Identidade para formular a 
designação uniformemente válida do conceito de Professor, 
abandonamos todas as diferenças singulares das inúmeras 
22
maneiras de ser, de tornar-se, de operar como um professor, 
além de despertar o pensamento da Representação. 
Assim procedemos porque tal Princípio, ao formular o 
conceito de Professor, leva-nos a esquecer tudo aquilo que é 
distintivo; como se, no campo da Educação, além dos vários 
professores e de suas ações individualizadas e desiguais, 
houvesse algo ou alguém que fosse O Professor-Primordial 
(Uno, Padrão, Verdadeiro, Normal). E, ainda, como se, a 
partir deste determinado professor, todos os outros fossem 
formados, embora por mãos inábeis; de maneira que nenhum 
saísse correto e fidedigno à Ideia Pura daquele Professor-
Modelo, dotado de uma qualidade essencial, ou qualitas 
occulta, cujo nome pode ser Professoralidade; e à qual cada 
um e todos os professores deveriam submeter-se ou esforçar-
se para dessa categoria se aproximar, como Cópias bem 
ou mal assemelhadas; caso contrário, seriam considerados 
simulacros; e, assim, por estarem tão distantes e por serem 
tão dessemelhantes da Professoralidade (que é a causa de 
O Professor e de todos os professores) seriam profunda- 
mente desprezados.
Essa matriz platônica compõe o que Deleuze denomina 
Imagem Dogmática de Pensamento, que integra a Filosofia 
da Representação; a qual, juntamente com todas as áreas 
que operam com o pensamento monocentrista, positiva as 
Cópias-Ícones como sucedâneos válidos do Original, en- 
quanto teme os simulacros (fantasmes), considerados es- 
tranhos, primitivos, selvagens, desviados, divergentes e 
perigosos subversivos das hierarquias estabelecidas, verda- 
deiros casos perdidos, que Platão detestava e recomendava 
que fossem jogados nos abismos dos oceanos mais pro- 
fundos, ou abandonados no mais recôndito das florestas; 
visto negarem tanto o Original quanto as Cópias. Imagem 
que, em Educação, valoriza positivamente os Professores-
Cópias (como imitações do Primordial), pois eles teriam 
relações diretas com a Ideia Pura da Professoralidade; sendo, 
dessa maneira, os seus pretendentes bem fundados; ao mesmo 
tempo que desvaloriza os professores-simulacros, como 
falsos pretendentes que sobrevivem graças a semelhanças 
23
falsificadas; e que vivem abertos para a dessemelhança, 
ficando, cada vez mais, afastados do centro do Modelo-Ideia-
Essência-de-O-Professor. 
Vê-se como um regime de imagem do pensamento 
desse tipo somente pode ser formulado num plano trans- 
cendente, metafísico, concebido em um além-mundo supe- 
rior, organizado, ordenado e hierarquizado; que preexiste e 
sobre-existe àquele plano ordinário no qual os professores 
vivem e atuam; em um plano idealista, portanto, que amal- 
diçoa a diferença, ao desconsiderá-la por meio do conceito, 
uma vez que cada professor, como Cópia-Ícone, deve re- 
presentar (re-apresentar) o Modelo; e, assim, repetir o seu 
agir, fazer, dizer, pensar, sentir. Logo, quando um professor 
é denominado Bom, Verdadeiro, Correto, Competente; en- 
quanto outro é denominado Mau, Falso, Incorreto, Incom- 
petente, é porque cada um deles está sendo julgado por sua 
Professoralidade; em função do maior ou menor grau de 
semelhança ou de infidelidade a ela, considerada a causa de 
todos eles. 
Já a Filosofia da Diferença (também chamada por 
Deleuze de Empirismo Transcendental) reverte esse plano 
transcendente e privilegia a mobilidade perpétua do real, 
exercida num plano de imanência; a ser traçado pelos 
professores, que lhe vão dando consistência à medida que 
o criam por meio de experimentações. Plano que é desse 
mundo dos professores e, no qual, o único ser-professor que 
pode ser dito é o do devir; isto é, daquele ser que não para 
nunca de se deter no jogo da sua própria proliferação. Plano 
que é povoado por professores em devir-simulacro e que 
extrai a força da sua imanência dos conceitos nietzschianos 
de Vontade de Potência e de Eterno Retorno; os quais não 
repetem o Mesmo; mas, a cada repetição, produzem a 
Diferença Pura. 
Por isso, o platonismo, inclusive em Educação, é ferido 
de morte em sua diferença relativa, entre O-Bom-Professor 
e O-Mau-Professor, que nada mais são do que Cópias, bem 
ou mal-assemelhadas ao Padrão; diferença que sempre 
hierarquiza, privilegiando uns e secundarizando outros 
24
professores. Platonismo ferido pelo pensamento deleuziano, 
que valoriza justamente os professores-simulacros como 
os únicos que têm condições de produzir novidades e de 
levar a Educação à diferença não maldita; pois, somente 
eles possuem forças inventivas orientadas para o porvir. 
Esse devir-simulacro dos educadores-professores-pedagogos 
pode ser considerado, também, no plano educacional, como 
uma espécie de Gaia Ciência, que fornece ferramentas 
conceituais para pensar um devir-alegre, um devir-criador, 
um devir-artista.
Plano, para o qual, a aula brilhante que um professor 
porventura tenha realizado, no dia de hoje, não seja comparada 
a nenhum Modelo-de-Aula, nem a outras aulas dadas por 
ele ou por seus colegas; tampouco, seja ele considerado um 
Bom-Professor, em comparação com um Professor-Padrão, 
nem com outros professores. Mas, considera brilhante uma 
aula, pelo fato de que, hoje, neste dia determinado, nesta 
aula específica, o professor em questão, circunstancialmente, 
conseguiu formular algo novo para pensar; problematizar, 
com e diante dos alunos, o que até então não era considerado 
problemático por ninguém; conseguiu levar os alunos a 
encararem as besteiras e desaprender as verdades, que lhes 
haviam sido transmitidas e ensinadas, e que eles haviamassimilado; para, desse modo, aprender algo que não fosse 
senso comum nem opinião. 
Esse professor conseguiria, assim, mostrar que a 
dificuldade de pensar é algo de direito do pensamento, não 
possuindo nada de inato ou de recognição; nem trataria de 
responder a perguntas para as quais já existem respostas; 
tampouco, pensaria a partir de postulados previamente 
definidos; já que, para ele, pensar é, antes de tudo, criar. 
Logo, trata de engendrar o pensar no próprio pensamento: 
condição de possibilidade para uma criação que merece 
esse nome, dado por um Pensamento sem Imagem. Um 
pensamento que os professores em devir-simulacro podem 
experienciar, pois é relativo à economia de fluxos materiais 
e semióticos do desejo (nem subjetivo nem representativo), 
que precedem sujeitos e objetos e procedem por afetos 
25
e transformações, independentemente de serem ou não 
calcados sobre pessoas, imagens, identificações. 
Desse modo, um professor etiquetado como Tradicio- 
nal, um pedagogo rotulado como Construtivista, ou um 
educador definido como Progressista podem ser atravessa- 
dos por devires múltiplos: por um devir-simulacro, que 
coexiste com um devir-mulher, com um devir-criança, 
com um devir-animal, com um devir-negro, com um devir-
poético, com um devir-imperceptível. Devires, que o ligam 
a processos de singularização e remetem à problemática 
da multiplicidade; processos e problemática que excluem 
a obsessão – que o Pensamento da Representação instalou 
no campo educacional – de encontrar, formular ou reconhe- 
cer algum perfil, identidade, função, papel de O Professor; 
os quais reificam uma natureza pedagógica verdadeira, 
uma essência universal de professor, uma arcaica vocação 
educadora, um modo certo de planejar, de dar aula, de 
avaliar, de formular um currículo. 
Tais devires-simulacros são compostos por processos 
transversais de artistagem, que permeiam as diferentes 
subjetividades dos educadores, instauram-se através de cada 
um deles e dos grupos sociais que integram, realizando uma 
crítica radical a formas determinadas e a funções legitimadas. 
Devires de pedagogos-artistas, feito por elementos virtuais, 
embora reais, que se distinguem apenas pelo movimento 
e pelo repouso, pela lentidão e pela velocidade; que não 
são átomos, apesar de serem finitos; que, embora possam 
ser dotados de formas, nem por isso são indefinidamente 
divisíveis; e que consistem nas últimas partes, infinitamente 
pequenas de um infinito atual, estendidas num plano de 
consistência. Partes essas que se definem pelos graus de 
intensidade e relações, nos quais entram, e que pertencem 
a este ou àquele professor, pedagogo, educador, artista, que 
pode ser parte de outro, numa relação complexa; embora 
cada um seja uma multiplicidade de multiplicidades 
perfeitamente individuadas. 
Os educadores-artistas são tomados em segmentos de 
um devir-simulacro, cujas fibras levam de um devir a outros, 
26
transformados naquele e que atravessam limiares de poderes, 
saberes, subjetividades. Desse modo, quando professores-
artistas compõem, pintam, estudam, escrevem, pesquisam, 
ensinam, orientam, eles têm apenas um único objetivo: 
desencadear devires. Devires que são sempre moleculares, já 
que devir não é imitar algo, nem identificar-se com alguém, 
tampouco promover relações formais entre identidades. 
A partir da bagagem cultural que esses pedagogos-artistas 
possuem, de suas formas-professorais, do sujeito-educador 
em que se transformam, das funções-educativas que 
aprendem a exercer, devir-simulacro é extrair partículas disso 
tudo; que são as mais próximas daquilo que eles estão em 
vias de se tornarem; e através das quais se tornam outros 
educadores, professores, pedagogos e artistas diferentes 
daqueles que são. 
Assim, devir-simulacro é o próprio processo do desejo 
de educar. Isto é, a partir do educador que é; dos fundamen- 
tos, metodologias, pedagogias que aprende; de como sabe 
exercer a profissão; o professor-artista entra na zona de 
vizinhança – que marca o pertencimento a uma mesma 
molécula, independentemente dos sujeitos e das formas – do 
desejo, ou em sua co-presença, entre as partículas extraídas 
do que carrega em si e que não mais pertencem ao que ele 
é, ao que possui, a como ensina. 
Por isso, um pedagogo-educador-professor, em devir-
artista-simulacro, é considerado uma hecceidade; isto é, 
uma coletividade molecular não separável de um espaço 
corpuscular. Não que um professor se torne um artista, 
nem que um pedagogo se assemelhe a um artista, tampouco 
que um educador seja análogo a um artista, ou vice-versa, 
já que o devir não é metáfora simbólica; mas, sim, que o 
educador, o professor, o pedagogo e o artista invocam uma 
zona objetiva de indeterminação ou de incerteza, comum 
e indiscernível; na qual não se pode dizer onde passam as 
fronteiras de uns e de outros. E não que esse devir-simula-
cro aconteça somente para alguns privilegiados, corajosos 
ou iluminados: todos os educadores, pedagogos, professo- 
res e artistas, independentemente de evoluções, possuem 
27
potência para outras possibilidades inatuais e para outros 
devires. 
Devires que não são regressões, mas involuções cria- 
doras, núpcias anti-natureza, que ocorrem fora dos corpos 
programados e dão testemunho de uma vivificação per- 
manente. Essa é a realidade do devir-artista dos educadores-
simulacros e do devir-educador dos artistas-simulacros, 
sem que os educadores se tornem artistas ou os artistas 
se tornem educadores; embora possam tornar-se. Isso 
porque, no devir-simulacro não se compara e, quando se 
usa a palavra “como”, esta já mudou de sentido e de função, 
porque fica remetida às hecceidades e não a sujeitos, 
significados ou estados significantes. 
Assim, quando um professor brinca, um educador 
uiva, um pedagogo canta, um artista ensina, se isso for 
feito com bastante intensidade e paixão, o professor emite 
uma criança molecular; o educador, um lobo molecular; 
o pedagogo, um cantor molecular; o artista, um professor 
molecular. Não que um se torne o outro, como se mu- 
dassem de espécies molares, em suas formas e subjetividades; 
o que ocorre é uma emissão de partículas, que entram em 
vizinhança com moléculas compostas e produzem um 
professor-criança, um educador-lobo, um pedagogo-cantor, 
um artista-educador moleculares. Claro que é no professor 
que a criança brinca, no educador que o lobo uiva, no peda- 
gogo que o cantor canta, no artista que o pedagogo-educador-
professor ensina; mas por meio de emissões corpusculares 
e não por imitação, nem pela proporcionalidade de suas 
formas. Portanto, mudam aqui, também, a realidade-em-
devir da criança, do lobo, do cantor, do artista; sem que eles, 
necessariamente, tornem-se professores, educadores ou 
pedagogos.
4. Currículos 
 Currículos-nômaDes
Desde a chegada do pensamento de Deleuze na Educação, 
vê-se como, para crianças-cartógrafas-impessoais-em-devir-
28
artista e para professores-pedagogos-educadores-artistas- 
em-devir-simulacro, não há mais possibilidade de operar 
com qualquer tipo de currículo, a não ser com currículos 
plurais, que podemos chamar por diferentes nomes, 
como Currículo-Nômade; o qual apresenta os seguintes 
componentes em seu plano de composição. 
Sem memória nem ambição, disforme e alienado, 
fora de si, esse Currículo-Louco é ilegítimo, odeia planos 
homogêneos e unidades metodológicas, objetivos e projetos, 
formas didáticas e medidas avaliativas. Pensado a partir 
de um desmoronamento da interioridade do pensamento 
curricular, é dotado da potência extrínseca de surgir em 
qualquer ponto e de traçar qualquer linha, irrompendo nas 
águas mansas da sabedoria adquirida, de modo involuntá- 
rio, imprevisto, incompreensível, inassimilável.
Vive às voltas com as forças do Fora, como uma vio- 
lência que se abate destrutiva sobre os saberes consoli- 
dados, como um estranhamento recíproco entre o pen- 
samento racional e a realidade de algum objeto. Por se 
movimentar em outro espaço-tempo,esse Currículo-Errante 
é inconstante, versátil, anda de terra em terra, corre mundo; 
de modo que os seus pontos se alternam, subordinados 
aos trajetos que eles mesmos vão traçando; enquanto os 
seus traços apagam-se à medida que os trajetos vão sendo 
feitos. Em movimento perpétuo, com vagos trejeitos de 
um Currículo-Ambulante, distribui-se, em espaços abertos, 
sem partilha, sem alvo nem destino, sem partida nem 
chegada, crescendo no meio do campo curricular como 
grama. 
Esse Currículo-Fluido desterritorializa e reterritorializa, 
faz ruptura das próprias territorialidades, abrindo-se para 
o novo e consolidando-o, mediante a construção de outras 
adjacências, desfaz-se e renuncia a si mesmo, vai embora 
para outra parte. E, mesmo que os fluxos desse Currículo-
Turbilhão sejam canalizados por condutos e diques, precipita-
se, torna a jorrar, transborda, flexibilizando as distinções 
binárias, ternárias e sintéticas, afetando seus pontos hete-
rogêneos, fazendo com que se revezem, ramifiquem-se 
29
e se encadeiem, extrinsecamente, para se tornarem vetores 
de transformação. 
Polimorfo e difuso, bifurcado e fibrilado, esse Currículo-
Estrategista corre solto numa atmosfera de errâncias. 
Deformante e móvel, o Currículo-Ubíquo agencia elementos 
díspares, opera multiplicidades acentradas, realiza disjunções 
inclusivas e, por meio de sua rapidez e leveza, conecta-se 
com outras máquinas de pensar e de viver que têm forças 
vivas de devires, para conjurar o peso e a gravidade de 
currículos paquidérmicos e tingidos de cinza-chumbo. Esse 
Currículo-Imoderado fornece provas de interações inéditas 
com crianças, professores, matérias, vivendo cada instante 
curricular molar, em termos de relações moleculares e de 
movimentos de fuga. 
Por ser um Currículo-Amoroso com tudo aquilo que 
inventa, conjura as cruéis forças econômicas e políticas, as 
insuportáveis humilhações humanas, os centros de poder, ao 
desenrolar os seus segmentos e figuras imóveis, dispersando-
os, de modo que voltem a bailar. Currículo-Dançarino, que 
não pretende ter desenvolvimento autônomo ou tomar 
algum poder e, inclusive, espanta-se com a servidão abjeta 
dos Currículos-Oficializados, não entendendo como eles 
podem ser tão desejados, triunfantes e duradouros. Irritado 
com os torpores, adaptações e consciências dos Oficializados, 
esse Currículo-Abalo tensiona-os, faz com eles piruetas, 
rolinhos e cambalhotas, dá-lhes rasteiras com novas ideias, 
cria personagens misteriosos, que são irrepetíveis. 
Indisciplinado, o Currículo-Rebelde questiona conser- 
vações e convenções, regimes de legitimidade e rouba- 
lheira, direções constantes e delimitações fincadas sobre 
codificações. Esse Currículo-Bandido define-se por suas 
ações livres, inventa revides, luta, joga projéteis, questiona 
hierarquias, regimes de propriedade, direções constantes, 
delimitações de objetos e se transforma em arma para 
ferir os currículos firmados sobre bases sólidas, não 
relevando sentimentos ternos diante de nenhum sujeito 
dos Currículos-Equilibrados; embora seja pleno de afe- 
tos variáveis, que atravessam corpos de alunos e de pro- 
30
fessores como flechas, numa velocidade infinita de des- 
territorialização andeja. 
Possuidor de uma Ciência-Menor, contrária à Ciência-
Régia, o Currículo-Balístico reporta-se a agenciamentos ma- 
quínicos e coletivos de enunciação, definindo-se pelo con- 
junto das singularidades extraídas de seus fluxos curricula- 
res, que convergem para uma consistência inventiva. 
Esse Currículo-Hiper-Ativo funciona como uma máquina 
vagamunda, social e coletiva, cujos agenciamentos definem, 
num determinado e volátil momento, a sua racionalidade 
curricular e o seu nível de compreensão; tais como os usos 
e a extensão dos seus conteúdos, as paixões e os desejos 
das emoções de um Currículo-Eros, que promove descargas 
de afetos múltiplos, opostos aos pesados conhecimentos 
estáveis, bagagens culturais, valores eternos, sujeitos idên- 
ticos, essências constantes, verdades verdadeiras. 
Um Currículo-Itinerante desse tipo pode ser chamado 
Currículo-Mar; pois é fluência pura, nada representa, não 
fixa lugares, não disciplina, mas engendra-se e percorre-se, 
faz fugir os sujeitos e os objetos, que implicam um ponto 
de vista fixo e exterior, procedem por iteração, valorizam 
reiterações, reconhecem fenômenos, buscam resultados, 
comprovam constantes. Já um Currículo-Intuitivo capta as 
singularidades da matéria e a variação contínua das variáveis 
para constituir a sua territorialidade móvel. Remetido 
ao par matéria e forças, subordina as suas operações a 
condições sensíveis da intuição e da construção; por isso, 
é tanto arte quanto técnica, produz mudanças de estado, 
processos de deformação e de transformação dos modelos, 
métodos e programas gradeados, opera individuações por 
acontecimentos, nunca por fatos ou por sujeitos. 
Como um Currículo-Anexato, não deixa de ser rigoroso, 
pois não é nem inexato como as coisas sensíveis, nem exato 
como as essências ideais, possuindo essências vagas – que 
despreendem uma materialidade não confundível com a 
essencialidade inteligível ou com a coisidade sensível –, as 
quais geram uma identidade anexata entre os pensamentos 
e as coisas curriculares. Materialidade de um Currículo-
31
Força, cuja matéria-movimento, matéria-energia e matéria-
em-variação são seguidas por uma intuição em ato, que 
não para de situar-se de um lado e de outro dos seus 
limiares, nem de transformar as matérias homogeneizadas 
e suas formas estabelecidas. Esse Currículo-Problemático 
antes formula problemas do que os resolve. Por isso, é um 
Currículo-Aprendizado, operando como experiência de 
problematização, que não fornece condições empíricas do 
saber, não faz transição do saber ao não-saber, não é solução 
para alguma falta de saber. 
Currículo-Aprendente, não sabe direito como alguém 
aprende; só sabe que não é por assimilação de conteúdos, 
nem por faculdades inatas, ideias a priori, elementos 
transcendentes. Ao juntar o pensar, o aprender e o viver, 
procura tornar o pensamento possível outra vez, pois 
acredita que, assim, pode retirar o pensar da sua imobili- 
dade e separação da vida. Encontrando-se em relação com 
forças e velocidades infinitas do caos, é um Currículo-que 
-aprende-ao-mesmo-tempo-em-que-ensina, a partir da ques- 
tão “O que é pensar”? – que só acontece na imanência 
absoluta, na criação de novidades e na vida ativa. Currículo-
Vitalista, dotado de vida com luz própria e de produtividade 
híbrida, rizomática, que dá saltos, faz desembocaduras, 
passagens e desvios, que costumam ser sobrecodificados 
pelo pensamento curricular reativo e triste, que os tenta 
capturar, sitiar e harmonizar; de modo a colmatar suas fugas, 
subordinar suas diferenças às identidades, impor limites a 
suas inumeráveis conexões. 
Por isso, é um Currículo-Inimigo da adequação do 
intelecto às coisas, do amigável acordo entre as faculdades 
mentais, do Bem/Mal, do Certo/Errado, do Verdadeiro/Falso. 
Esse Currículo-de-Briga com o pensamento moral, odeia 
besteiras comunicativas, opinião medíocre, contemplação, 
reflexão, clichês, decalques, regras, ordens, certezas fáceis 
e repetidas ad nausean. Esse Currículo-Violento tem a sua 
violência chegando-lhe do não conhecido, do tempo não 
cronológico de Aion, dos elementos selvagens não domes- 
ticados, ou seja, do Fora, que lhe é trazido pelos Signos. 
32
Signos que fazem dele um Currículo-Enigma, pois o for- 
çam a pensá-los, a decifrá-los, a interpretá-los; para que, 
desse modo, possa praticar um ensinar e um aprender 
imprevisíveis, que nos levam a não reconhecer nada do que 
até então conhecíamos, impedem-nos de pensar e de viver 
como antes, constrangendo-nos a nos desprender de nós 
próprios.
O Currículo-Ignorante ensina que importa perder tem- 
po para aprender e para enamorar-se dos Signos, de sua 
necessidade e urgência, inevitabilidade e força. Esse Currí- 
culo-Aventureiro não propõe gestos a serem reproduzidosou conteúdos a serem reconhecidos; nunca diz – “Faça 
como eu faço”!, mas convida: – “Venha, faça comigo”!, enca- 
deando sensibilidade, intuição e pensamento para sacrificar 
os Imperativos dos Objetos, as Palavras de Ordem da 
Linguagem e a Facilidade das Recognições; funcionando 
como um atrator-caótico, contagiando e propagando, pu- 
xando, arrastando matérias e encontros para um devir-
vagamundo, feito da proliferação de possíveis e da ramifi- 
cação de não-sensos. E é tão forte esse Currículo-Desejante, 
que só se preocupa em ser avaliado pelo que produz e pelos 
efeitos que causa: se são importantes e interessantes, no- 
táveis e potencializadores de mais vida. 
O Currículo-Ladrão-da-Paz não adota jamais uma po- 
sição neutra ou passiva diante do mundo e da vida; ao 
contrário, trata-os como uma questão de artistagem, vincu- 
lada à produção de diferenças, a intervenções e à invenção 
de vidas ricamente vividas por minorias ex-cêntricas, que 
procedem por difusões móveis de prestígio. Por sua própria 
natureza, esse Currículo-Gangue existe e opera, mesmo 
que de modo imperceptível, em Todos os Currículos Exis- 
tentes e em Funcionamento. Embora os Currículos-Oficia- 
lizados queiram sempre pô-lo na prisão, segmentarizar os 
seus espaços lisos, cortar as suas linhas de fuga, represar os 
seus fluxos que teimam em escorrer. O problema é que os 
Currículos-Bandos movimentam os Oficializados, porque 
estes (embora muita gente não aceite ou não perceba) vivem 
em metamorfose perpétua e em errância perigosa, voam, 
33
galopam, varrem tudo aquilo que, neles, foi organizado e 
ordenado enquanto dualidades, correspondências, estrutu- 
ras; de modo a poderem criar novos movimentos curriculares, 
que ousem impulsos inovadores e vivam em permanentes 
devires-revolucionários. 
Agora, chegou a hora de perguntar: – “Como criar, para 
si, um Currículo-Clandestino que desenvolva, no campo 
curricular, um novo espaço de pensar? Como abrir nossos 
poros e criar novas sensibilidades, que nos dêem condições 
de possibilidades para acompanhar os movimentos im- 
perceptíveis e intempestivos de currículos fortemente codi- 
ficados”? Ora, é simples: – “Fiquemos atentos”! Por que esses 
Currículos-Andarilhos, fazendo aparições descontínuas, 
praticando atos violentos, esticando linhas de inovação, 
criando contrapensamentos para pensar o impensável, o 
não-pensado do pensamento, a exterioridade pura, acabam 
movimentando todos os currículos, sem exceção. 
Então, cabe a um pedagogo-professor-educador, em 
devir-simulacro, que trabalha com crianças-cartógrafas-
impessoais em devir-artista, analisar as multiplicidades não 
métricas e os pontos de singularidades de cada um daqueles 
Currículos-Codificados, para ver do que eles ainda são 
capazes, quais são as suas vagas e andamentos curvilíneos, o 
turbilhonar de suas linhas diferenciais e os novelos de seus 
fios subterrâneos, que saem de um Currículo-Malta, arras- 
tam um Codificado e o explodem. 
Então, nesse campo de batalha desordenado, nesse 
vapor incorporal de pura intensidade, nessa cena funerária 
do sujeito, nesse espelho cego dos objetos, nessa película de 
experimentação rebelde, nesse tabuleiro de jogo ideal, nessa 
dobradiça do aprender, nesse reservatório do pensar; em um 
tempo fora dos gonzos, renascendo e recriando-nos, altiva e 
revolucionariamente, viveremos, com prazer e gozo, a porção 
Marginal dos Currículos-Certinhos. Porção que são como 
grandes fetos mexendo-se, boiando, mergulhando, circu- 
lando e crescendo na barriga do grande Tubarão Pensamental 
do Currículo-Maior. Engendrar, encontrar e seguir ou não 
esses fetos, cuidar ou não deles é uma questão de juventude 
34
ou de velhice, de tristeza ou de alegria, de vida ou de morte. 
É aí que a covardia ou a coragem de cada um de nós se decide.
5. Pesquisa 
 Pesquisa Do acontecimento
Por último, na relação amorosa e intelectual com os 
conceitos deleuzianos, distingo um conceito que me parece 
imprescindível para a pesquisa contemporânea em Educação: 
o de Acontecimento. Trata-se de um conceito formulado ao 
longo de toda a produção de Deleuze, desde a sua Tese de 
Estado Diferença e repetição (Deleuze, 1988) – na qual, tanto 
o problema quanto suas condições são remetidos à ordem 
do Acontecimento; até ganhar força e complexidade em 
Lógica do sentido (Deleuze, 1998) – sob influência da teoria 
estóica dos incorporais (Bréhier, 1997) e de Leibniz; passando 
pelo livro A dobra. Leibniz e o Barroco (Deleuze, 1991a) – em 
que há um capítulo inteiro dedicado à questão “Que é um 
acontecimento?”, no qual, Whitehead é identificado como 
o terceiro pensador do Acontecimento; indo até o último 
livro escrito com Guattari, O que é a filosofia? (Deleuze; 
Guattari, 1992) – em que aparecem como influências Péguy 
e Blanchot, saudados como os novos pensadores, que foram 
capazes de penetrar o Acontecimento; chegando até o seu 
último texto “A imanência: uma vida...”, em que escreve: 
“Uma vida [...] é feita de virtualidades, acontecimentos, 
singularidades. Os acontecimentos ou singularidades dão 
ao plano toda sua virtualidade, como o plano de imanência 
dá aos acontecimentos virtuais uma realidade plena. O 
acontecimento considerado não atualizado (indefinido) não 
carece de nada” (Deleuze, 2002).
De uma Pesquisa do Acontecimento (Corazza, 2005), 
seguem-se novas maneiras de pensar e de realizar uma crítica-
escrileitura, que vão até a singularidade da experimentação 
de cada pesquisador-professor, num processo de artistagem 
inventiva da Educação. Por essa via, buscam-se novas formas 
de expressão e de conteúdos, que derivam de percursos 
intensivos e de trajetos extensivos das produções que vêm 
35
sendo realizadas, já há alguns anos, no campo educacional; 
lutas contra a secura dos corações, a acídia nas relações e 
o agreste dos códigos; inspirações fornecidas por filósofos, 
escritores, educadores do Pensamento da Diferença, os 
quais participam de um gesto coletivo, cuja divisa consiste 
na palavra simples de Nietzsche (1986), embora dotada de 
um poder infinito: “Uma nova maneira de sentir, uma nova 
maneira de pensar”. 
Esse gesto coletivo fornece impulsos para que também 
a Educação participe da pesquisa de novos meios de 
expressão, que Deleuze aponta para a Filosofia, em Dife- 
rença e repetição: “Aproxima-se o tempo em que já não 
será possível escrever um livro de Filosofia como há muito 
tempo se faz: ‘Ah! O velho estilo”... A pesquisa de novos 
meios de expressão filosófica foi inaugurada por Nietzsche 
e deve prosseguir, hoje, relacionada à renovação de outras 
artes, como, por exemplo, o teatro ou o cinema”. Uma 
Educação, portanto, a ser criticada, lida e escrita enquanto 
“ficção científica”, no sentido em que não se evita “aquilo que 
não sabemos ou que sabemos mal”; mas que é realizada, 
necessariamente , “neste ponto que imaginamos ter algo a 
dizer”; já que dar um jeito de acabar com a ignorância faria 
com que transferíssemos, indefinidamente, “a escrita para 
depois” ou a tornássemos impossível (Deleuze,1988, p. 18-19).
Assim, para a Pesquisa do Acontecimento, escrever não 
é impor uma forma de expressão a uma matéria vivida, 
mas trata-se de um procedimento informe, de um processo 
inacabado, de uma passagem de Vida que atravessa o vivível e 
o vivido. E, quando o professor-pesquisador critica-lê-escreve, 
fica comprometido com a Literatura do Acontecimento em 
Educação, necessitando ser um bom artesão, um esteta, 
um pesquisador de palavras, frases, imagens, para atuar no 
limite, na ponta extrema, que separa o saber e a ignorância, 
e os transforma. 
Por ser construída ao mesmo tempo em que se desen- 
volve, esta Pesquisa possui uma natureza empírica-trans- 
cendental e condensa, nas ações correlatas de pensar, criticar, 
ler e escrever, que lhes são constitutivas, a criação de sentidos 
36
imanentes, que resultam de uma reversão das represen- 
tações feitas por outras pesquisas. Age, despojada de 
qualquer significação prévia, pois forma-se na anulaçãodos referentes externos e nos sentidos transcendentes 
anteriormente construídos. Seus movimentos são expressi- 
vos, em relação aos sujeitos, objetos, temáticas, já que é uma 
pesquisa que não consiste num ato subjetivo decorrente 
de condições empíricas negativas, como a ignorância do 
pesquisador; nem objetiva ultrapassar obstáculos de des- 
conhecimento acerca de algum fenômeno; como se pesqui- 
sar fosse uma passagem do não-saber ao saber. 
Ao contrário, trata-se de uma Pesquisa que investiga o 
conhecimento, no sentido deleuziano, como aquilo que 
não é “nem uma forma, nem uma força, mas uma ‘função’”. 
Conhecimento-função que não se realiza sobre “paradigmas 
arborizados do cérebro”, mas é feito com “figuras rizomáticas, 
sistemas acentrados, redes de autômatos finitos, estados 
caóides”, que se conjugam em processos criadores sobre 
planos de pensamento (Deleuze; Guattari, 1991, p. 26). 
A Pesquisa do Acontecimento esparrama-se, assim, 
sobre três “planos”, “disciplinas”, “pedagogias” e seus res- 
pectivos componentes, que são como solos nos quais ela 
se movimenta: a filosofia – com o seu plano de imanência, 
forma do conceito, conceitos e personagens conceituais; a 
arte – com o seu plano de composição, força da sensação, 
sensações e figuras estéticas; e a ciência – com o seu plano 
de referência ou de coordenação, função do conhecimento, 
funções e observadores parciais.
A filosofia pode operar, em separado, sobre cada um 
desses planos e utilizar seus elementos específicos; pode, 
também, dedicar-se às interferências intrínsecas de um 
plano sobre o outro e aos deslizamentos entre funções, 
sensações, figuras estéticas; ou pode, ainda, efetivar-se sobre 
interferências ilocalizáveis, isto é, sobre os negativos de 
cada disciplina, desde que a ciência encontra-se em relação 
com uma não-ciência, a arte com uma não-arte; e a filosofia 
necessita de uma compreensão não-filosófica, em cada 
instante de seu devir ou desenvolvimento. 
37
Assim, a sua energia provém da utilização de múltiplas 
linguagens (ciência, pintura, música, literatura, poesia, 
teatro, cinema), que lhe fornecem a consistência de uma 
coexistência heteróclita, a qual transforma os elementos 
pesquisados numa unidade virtual, à medida que cria um 
vazio na consciência atual que deles possuímos. Por dedi- 
car-se à parte não-histórica do que acontece em Educação, 
esta Pesquisa trata os conceitos como acontecimentos e 
não como noções gerais; como singularidades e não como 
universais; o que não implica a reconversão ao aqui-e-
agora, nem a troca do essencial pelo acidental; já que o 
Acontecimento a ser pesquisado é um dinamismo criador 
– que permaneceria imperceptível caso se tentasse investigá- 
lo pelos canais habituais da tradição. 
Buscando o Acontecimento, a Pesquisa substitui a ques- 
tão ontológica da Essência “O que é”? pelas questões da 
novela, do conto, do romance “O que se passou”? “O que vai 
se passar”? (Deleuze; Guattari, 2004, p. 235). Experimentando 
e mostrando o Acontecimento como produção de eventos, a 
Pesquisa troca o eterno pelo presente, não realizando uma 
fenomenologia da atualidade, mas uma Ontologia do Pre- 
sente, no sentido de Foucault (Deleuze, 1991b). Assim, ela 
não pesquisa divisões, unidades, identidades definidas e 
formadas (crianças, professores ou currículos), mas dia- 
gramatiza-as em fuga, valoriza os seus devires, nomadismos 
e inatualidades, conceitualizando suas configurações por vir. 
Para tal Pesquisa, tudo é considerado Acontecimento 
puro, isto é, potencialidade inexistente fora de suas atua- 
lizações e, todavia, delas transbordante. Incorporal sem 
ser vago, coletivo e particular, perceptível e microscópico, 
o Acontecimento é modo de individuação, ligado a um 
clima, a um clarão, a um silêncio, a outros acontecimentos. 
Ele não designa coisas, fatos, ações, paixões dos corpos, 
estados de ser ou de coisas, pessoas, sujeitos, porque os 
toma como individuados por linhas acontecimentais, como 
individuações assubjetivas, impessoais, subpessoais; cada 
qual dotado de duração própria e variável, embora intensiva, 
feita de afetos e de sensações. 
38
Relatórios, críticas, leituras e escrituras feitos nessa 
Pesquisa do Acontecimento são constantemente dissolvidos 
e reformulados por novos planos de pensamento, que pro- 
curam identificar a imagem peculiar de cada linguagem; 
afastar o nevoeiro de universalidade que rodeia cada pe- 
dagogia; restabelecer o momento da originalidade de cada 
pensar. A Pesquisa investe, portanto, contra tudo aquilo a 
que o pensamento se dirige: a besteira, o erro, a superstição, 
a ideologia, a estupidez, o senso comum, o bom senso, a 
opinião, a comunicação. 
Para escapar da Imagem Dogmática do Pensamento, 
ela se posiciona a favor de que pesquisar é criar e criar é 
problematizar; só que problematizar é determinar dados 
e incógnitas dos problemas, que vão sendo formulados à 
medida que a pesquisa se realiza e que persistem nas solu- 
ções que lhe são atribuídas, como em um jogo afirmativo 
de novidades, por meio da Vontade de Pesquisar. Esta Von- 
tade que, para o professor-pesquisador, abre novos caminhos, 
que interferem e ecoam uns nos outros, graças a materiais 
de expressão ainda informes ou de conteúdos incodificados. 
Pesquisa que se dedica a raspar, escovar, lixar clichês de 
resultados já organizados, para construir um espaço liso, 
como no deserto, onde seja possível realizar experiências 
empírico-transcendentais. Pesquisa desenvolvida, por meio 
de imagens e de signos, que a burilam esteticamente e 
dela fazem um compósito de conceitos, afectos, perceptos 
e funções. Pesquisa que atenta, a um só tempo, para as 
multiplicidades das multiplicidades e para os seus movi- 
mentos de desterritorialização, reterritorialização e terri- 
torialização. Pesquisa que, ao traçar mapas de intensão e de 
extensão, considera, em primeiro lugar, as linhas de fuga; 
depois, as moleculares, mais flexíveis; e toma as linhas duras, 
molares, como resíduos secundários; pois refere decalques 
aos mapas, relaciona raízes e árvores aos rizomas, e nunca 
o inverso. Pesquisa que investiga os agenciamentos em suas 
duas faces: a do agenciamento técnico-maquínico, voltada 
para os estratos e a do agenciamento coletivo de enunciação, 
voltada para o corpo sem órgãos. 
39
6. Diferir-Artistar 
 Pensar-ensinar, pesquisar-criticar, ler-escrever, 
 Diferir-artistar com Deleuze
Amante dos encontros, a cada vez em que é exercida, a 
Pesquisa do Acontecimento estabelece diferentes relações 
entre os elementos e compõe geografias inéditas, nos quais 
os acontecimentos curriculares se tecem e destecem, já que 
não há, para essa pesquisa, primeiros princípios, represen- 
tações eternas, regras normativas, orientações naturais. 
Assim, os Professores pesquisam incessantemente 
porque não acreditam nas coisas pré-fabricadas da Educa- 
ção e detestam a inércia pedagógica que os impele a repetir. 
Eles possuem como guias iniciáticos as suas paixões 
concretas, que os desviam dos conjuntos espaço-temporais; 
não os deixam passar ao longo das Crianças; nem recolher 
a sua efetuação na atualidade; mas os levam a instalarem-
se no Acontecimento do Currículo, como num devir, para 
rejuvenescer e envelhecer, simultaneamente, componentes 
e singularidades que na Educação circulam. 
Então, os Pesquisadores-Professores conseguem criar 
algo novo ao promoverem a irrupção de um devir em 
estado puro, que Nietzsche chamou “Intempestivo” ou 
“Inatual”. Realizam, desse modo, uma Pesquisa-Docência 
de uma Infância-Inatual, que implica que sejam dignos do 
Acontecimento Curricular e que artistem a Educação, em 
devir-revolucionário: o único devir, que conjura o intolerá- 
vel e os faz acreditar no mundo.
Referências
BARTHES, Roland. A preparação do romance I: da vida à obra. (Trad. Leyla 
Perrone-Moisés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005. 
BRÉHIER, Émile. La théorie des incorporels dans l’ancien stoïcisme. Paris: 
J.Vrin, 1997.
CORAZZA, Sandra Mara. Pesquisaro Acontecimento: estudo em XII exemplos. 
In: TADEU, Tomaz; CORAZZA, Sandra; ZORDAN, Paola. Linhas de escrita. 
Belo Horizonte: Autêntica, 2004 (p. 7-78).
40
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto 
Machado) Rio de Janeiro: Graal, 1988.
_____. A dobra: Leibniz e o barroco. (Trad. Luiz B. L. Orlandi.) Campinas, São 
Paulo: Papirus, 1991a. 
_____. Foucault. Paris: Minuit, 1991b.
_____. Lógica do sentido. (Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes.) São Paulo: 
Perspectiva, 1998.
_____. A imanência: uma vida... In: Dossiê Deleuze e a Educação. (Trad. Tomaz 
Tadeu.) Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, julho-dezembro 2002 
(p. 10-18). 
 DELEUZE, Gilles. O Abecedário de Gilles Deleuze. Disponível em: <http://www.
oestrangeiro.net/>. Acesso em: 18 de setembro de 2007.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: 
Minuit, 1991. 
_____. 8. 1874 – Trois nouvelles, ou ‘qu’est-ce qui s’est passé? In: ____. 
Capitalisme et schizophrénie 2. Mille plateaux. Paris: Minuit, 2004 (p. 235-242). 
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para 
ninguém. (Trad. Mário da Silva.) São Paulo: Círculo do Livro, 1986. 
TADEU, Tomaz; CORAZZA, Sandra Mara. (Orgs.). Dossiê Deleuze e a 
Educação. In: Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 27, n. 2, jul./dez. 2002.
_____. (Orgs.) Dossiê Entre Deleuze e a Educação. Educação e Sociedade. 
Campinas, v. 26, n. 93, set./dez. 2005. 
41
MÉTODO VALÉRY-DELEUZE: 
um drama na comédia intelectual da educação2
Justamente porque o espírito humano enfrenta 
dificuldades para pensar o informe, este artigo constitui o 
Método Valéry-Deleuze (Método do Informe), enquanto 
componente de uma Educação ou Pedagogia da Sensação, 
que associa a vivência dos limites formais e a criação 
artistadora. Tributário do gosto filosófico, extrai conceitos 
do meio-Deleuze (expressão, pensar, dramatização) e 
do meio-Valéry (informe, criação, comédia), para operar 
com as unidades analíticas de Autor, Infância, Currículo 
e Educador (doravante referidos em um bloco AICE); 
pela via biografemática, ao modo de Roland Barthes. Com 
esses instrumentais operatórios, impulsiona as pesquisas 
a capturar as forças de acontecimentos educacionais, em 
suas modulações assignificantes, vitalidades assubjetivas, re- 
lações ininterpretadas, devires inorgânicos e imperceptíveis.
O valor
Distante de Flaubert (1997; 1999) que, com Bouvard et 
Pécuchet e Dictionnaire des idées reçues, sonha realizar uma 
obra sobre a estupidez humana, o Método do Informe, aqui 
composto, sonha pesquisar o valor do espírito humano. 
Assim, em vez de celebrar o triunfo da mediocridade sobre 
o gênio, que imola “os grandes homens aos imbecis, os 
2 Texto intitulado “Valéry-Deleuze Method: a Drama in the Intellectual 
Education Comedy”, publicado em Anais completos (p. 629-642) do evento 
International Conference & International Summer University: Borders, 
Displacemente and Creation: Questioning the Contemporary, realizado na 
Universidade do Porto, Portugal, de 29 agosto a 04 de setembro de 2011. 
Ainda publicado na revista Educação & Realidade, da Faculdade de Educação 
da UFRGS, v. 37, n. 3, set./dez. 2012 (p. 1009-1030). 
2
42
mártires aos carrascos”, funcionando como uma “apologia 
da canalhice humana” (Reys, 1999, p. 407), empenha-se em 
fazer triunfar o espírito sobre a mediocridade. Se, diz Valéry 
(1997, p. 57), “um poema deve ser uma festa da inteligência” 
– isto é, “um jogo tão bem regulamentado que não se pode 
concebê-lo de modo diferente”; já que a “‘impressão de 
Beleza, tão irrefletidamente buscada, tão vãmente definida, 
é talvez o sentimento de uma impossibilidade de variação’” 
(Maurois, 1990, p. 46) –, acreditamos que, também, a lite-
ratura educacional pode ser essa espécie de festa, desde que 
em vias de se fazer. 
Literatura derivada de pesquisas que tomam, como 
objetos ou materiais, as Vidarbos – vidas-obras, e inver- 
samente – de infantis, educadores, autores e currículos de 
diversas destinações e níveis de ensino (Adó, 2010; Corazza, 
2010b; Costa, C., 2010; Costa, L., 2010; Feil, 2011; Oliveira, 
2010). Para tanto, o Método detecta e lança saberes, em um 
AICE iluminado pela inteligência, delineando os processos 
de sua gênese e composição. Diante de cada AICE, os 
pesquisadores professam ignorância, em vez de projetarem 
seus sentimentos em ídolos; consideram os sistemas das 
verdades como aquilo que há de mais arbitrário, em termos 
de convenções, ficções e mitos; explicitam de que maneira 
multiplicidades, ideias e singularidades podem adquirir 
realidade em educação. O Método demonstra que, pela 
criação da obra de arte, a impossibilidade de variação e o 
arbitrário da criação transformam-se em necessidade de 
agir para viver, não podendo ser diferente (Bergson, 2006).
À medida que os pesquisadores deslocam-se da boa 
vontade, do senso comum e das decisões premeditadas, para 
encontrar-se com o acaso e com o caos, o Método trans- 
forma-se na Paidéia (cultura) de AICE revisitado. Pesquisar 
consiste, assim, em devir outra coisa que não pesquisador: 
realizando movimentos de ataque e proteção, vontade e 
decisão, viagens e mutação; borboleteando intelectualmente 
e titubeando entre blocos de saber-poder e subjetivida- 
des; suspendendo o que encontra, para desenhar traços 
imprevistos e excêntricos de possibilidades; desmoronando 
43
e traindo o sistemático; proliferando o processual e anda- 
rilhando num tabuleiro de experimentações fictícias, que 
sobrepujam qualquer retidão.
A busca
A experimentação e a construção de um método con- 
sistem tanto numa força intensiva da obra de Valéry como 
de Deleuze. Em nome de quê e para quê? Em Valéry, sob a 
influência de Poe, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, 
o Método importa para fazer da criação poética uma obra 
de precisão, como resultado de uma consciência organizada: 
“Um espírito inteiramente ligado seria bem, em direção a 
esse limite, um espírito infinitamente livre, visto que a 
liberdade, em suma, não é mais que o uso do possível, e 
que a essência do espírito é um desejo de coincidir com 
seu Todo” (Valéry apud Maurois, 1990, p. 8). Em Deleuze, 
o método importa para a realização de um “alfabeto do que 
significa pensar”, considerando que a “Ideia não é o elemento 
do saber, mas de um ‘aprender’ infinito”. Para ter e aprender 
uma Ideia, a filosofia deve seguir a exigência bergsoniana, 
que indica a necessidade de formular não conceitos abstratos 
e gerais (que não concernem a nada em particular e podem 
aplicar-se a tudo e a seu contrário); mas conceitos precisos, 
talhados na medida dos objetos singulares, de modo que 
a filosofia alcance não as condições de toda experiência 
possível (como em Kant), e sim as condições da experiência 
real (Bergson, 2006, p. 3-4; p. 192 segs.; Deleuze, 1988, p. 295; 
p. 310; p. 153 segs.; 1998, p. 97 segs.; 1999, p. 13; p. 39).
Em ambos os autores, dispõe-se e insiste a mesma 
questão, qual seja: uma inteligência ansiosa por precisão, 
necessária para elucidar as relações que tecem uma de- 
terminada maneira de pensar, de escrever, de estar no mundo, 
de viver. Assim, de um lado, em Valéry, encontramos uma 
epistemologia expandida em poética; enquanto, de outro, 
em Deleuze, uma epistemologia expandida em filosofia.
Nas pegadas desses dois pensamentos rizomáticos, que 
procedem por aforismos, poemas, relâmpagos punctiformes 
44
e linhas descontínuas, o duplo Método atinge a consciência, 
suas relações, condições e possibilidades. Método que é 
contrário ao substancialismo da representação, pelo uso da 
“exatidão de imaginação e de linguagem”, com uma “rigorosa 
geometria do cristal” (Calvino, 1990, p. 133): “o gosto da ordem 
intelectual da exatidão, a inteligência da poesia juntamente 
com a da ciência e da filosofia”. Perseguindo o dogmático 
e o vago, sob o controle da consciência, o Método constrói 
transversalidades entre as artes verbais e não-discursivas, 
as ciências da exatidão,a matemática, a física, a filosofia, a 
poética, a educação. Buscando o rigor e a consistência, sem 
perder a sensibilidade, o Método formula procedimentos, 
para os quais, “[Mr.] Teste é a impossibilidade caricatural”, 
enquanto “Leonardo [da Vinci é] o arquétipo da realização 
bem-sucedida” (Barbosa, 1991, p. 14). 
Operar com Valéry e o seu olhar semiológico implica 
que as pesquisas inscrevam-se “num campo de possibilidades 
combinatórias”, que transcende “qualquer expectativa crítica” 
(Gonçalves, 1991, p. 227). Existe, aqui, uma correspondência 
entre os domínios artísticos, técnicos e científicos, por in- 
termédio de uma lógica imaginativa e analógica, fundada nas 
relações “entre coisas cuja lei de continuidade nos escapa”. 
Ao modo valéryano, a unidade do presente Método baseia-
se nas “vertigens da analogia”, vinculadas à “consciência 
das operações de pensamento”; a qual é capaz de articular 
a “indissolubilidade entre o sensível e o inteligível”; e que 
Valéry apreendia “tanto no ostinato rigore de Leonardo quanto 
no princípio de consistência elaborado e defendido por Poe 
em Eureka” (Barbosa, 1996, p. 272).
Definindo o próprio ato poético como tensão para a 
exatidão, Valéry, leitor de Bergson e amante de Proust, com 
eles concordava que pouca valia tem remontar ao passado, 
para refazer episódios vividos; desde que a lucidez da 
consciência e da linguagem depende das operações do espírito 
e nunca das vivências mundanas. É o rigor da construção do 
espírito que processa os elementos da experiência e expressa, 
na literatura tratada como jogo da arte, a indissociabilidade 
entre linguagem e pensamento. Dessa maneira, “como se 
45
tivesse um bisturi entre os dedos”, Valéry consegue “abrir 
cada fibra do mundo das referências tangíveis e imaginárias 
e decompor, aos nossos olhos, a natureza construída”. É 
esse mesmo movimento que “determina as irregularidades 
regulares não só das coisas e dos seres” e que “demonstra 
as noções de Tempo e de Espaço, mediante a consciência”. 
Consciência, que, para Valéry, “reside no Homem e só nele e, 
por isso, só esse animal sensível e inteligente torna-se capaz 
de agir sobre a Natureza e recriá-la, apontando para a sua 
insuficiência” (Gonçalves, 1991, p. 226). 
Já do lado da produção de Deleuze (1997), sob marcada 
influência de Nietzsche (além de Spinoza, Bergson, Foucault, 
Artaud, Kafka, Proust), o Método importa para tomar dis- 
tância da epistemologia representacional, levando o pen- 
samento a capturar forças, numa semiótica da sensação 
e numa física dos afectos. Dessa maneira, não requer es- 
crileituras (escrituras-leituras) evolutivas, cronológicas ou 
progressivistas, acerca de sujeitos plenos ou autoridades; 
de mestres renomados ou grandes obras; de currículos 
bem sucedidos ou documentos-chaves; como se fossem 
expressões de Obra, Autor, Gênio, Pessoa, Pai, Senhor. Essas 
categorias ficam fora de questão, permanecem desfocadas, 
ou sujeitas a problematizações; desde que o terreno e os 
materiais das pesquisas atualizam-se, sob a forma de blocos 
de sensações, perceptos e afectos. Como artistas ou opera- 
dores das forças, ao efetivar experimentações de posturas 
vitais, os pesquisadores fazem da pesquisa, clínica; e, ao 
diagnosticar o tipo vital de cada Vidarbo de AICE (o seu de-
Fora), fazem do discurso, crítica. 
Trata-se, para Deleuze, de articular pensamento e vida, 
devir e história, concebendo os encontros disjuntivos, daí 
advindos, enquanto irrupção da criação e do novo. Para tal, 
o Método, que lhe é correlato, formula uma teoria intensiva 
e diferencial das formas, como relações de forças e de 
afectos; a qual rompe com a hermenêutica da interpretação 
e seus sentidos invariantes, sujeitos, objetos, territórios de 
organização e de estratificação. Empenhando-se, nas zonas 
de intensidade das suas pesquisas, para diagnosticar como 
46
as forças insensíveis produzem tanto signos como imagens, 
os pesquisadores agenciam movimentos e vibrações de 
afectos; encontros com hecceidades e variação de potências; 
relações complexas de velocidades e lentidões, movimento e 
repouso, entre moléculas ou partículas. Funcionando como 
Afectologia, as pesquisas transformam o poder de afetar e de 
ser afetado de cada participante; tornam sensíveis forças antes 
insensíveis; procedem a deformações inorgânicas; fogem 
da segurança das formas constituídas (clichês orgânicos); e 
lutam para permanecer no nível das intensidades instáveis 
(corpo sem órgãos). 
Feito as crianças que preferem as aventuras, com suas 
maravilhas, dificuldades, perigos e possibilidades, o Método 
Valéry-Deleuze, em sua infância aventureira, reconstrói o 
prazer de fazer (le plaisir de faire): “prazer atravessado de 
tormento, misturado de sofrimentos e prazer na busca do 
qual não faltam nem os obstáculos, nem as amarguras, nem 
as dúvidas e nem mesmo o desespero”. É que os efeitos do 
Método criam, para os pesquisadores, uma segunda natureza 
e uma segunda educação; através das quais, eles combinam 
e conservam estranhamentos, mediante o que executam. 
Provocado por esses efeitos, cada artista “troca a cada instante 
aquilo que ele quer por aquilo que ele pode, o que ele pode 
por aquilo que ele obtém” (Gonçalves, 1991, p. 230). 
o método
Privilegiando o real puro de AICE, como percebido e 
não conhecido, irredutível a uma única lei, e não dedutível 
por meios racionais, o Método opera com os indefinidos 
– “um autor”, “um infantil”, “um currículo”, “um educador” –, 
considerados outsiders, excepcionais e anômalos, vagos e 
únicos, que não se parecem com ninguém, não são idênticos 
a nada e jamais foram vistos. Localiza essas hecceidades 
(singularidades) tão-somente ocupando um lugar no espaço 
e possuindo uma existência de fato; logo, que não têm 
formas, mas são forças. O ponto de partida radica na dis- 
tância entre aquilo que os pesquisadores acreditam ver e 
47
aquilo que efetivamente vêem, entre sua visão habitual e 
a visão vazia. Isso porque o quadro teórico-operatório do 
Método consiste em um construcionismo, que defende 
o fato de as impressões não terem, necessariamente, de 
ser substituídas, de maneira imediata, por conceitos ou 
signos, em detrimento de presenças anteriores aos arranjos 
inteligíveis. 
Desnudando as formas de AICE, através das ambi- 
guidades do Informe, o Método leva os pesquisadores 
a realizarem dois movimentos, diversos e próximos: a 
percepção e a criação. Considerando-se não “uma doutrina”, 
mas “um sistema que realiza melhor que o espírito entregue 
a si próprio o trabalho do espírito”, com “operações quase 
materiais”, que “podem ser concebidas, senão realizadas, 
por meio dum mecanismo” (Valéry, 1965, p. 137), o Método 
propõe Exercícios do Informe (Valéry, 2003). Exercícios que, 
em primeiro lugar, desenvolvem a sutileza e a instabilidade 
sensorial, incitando os pesquisadores a ver AICE, para, 
deste, arrancar a impressão bruta e a existência efetiva; 
em vez das significações de objeto, representações de sujeito 
e configurações de códigos, que implicam a generalização 
pelo conceito. 
Mesmo que não haja disposição de ordem entre os 
elementos de AICE, vistos pelos pesquisadores, pois o In- 
forme não emite lei, o Método posiciona-os no começo do 
começo, para ler as impressões visuais, únicas e insubstituí- 
veis; e, assim, criar a possibilidade de conhecer as unidades 
dos corpos regulares de AICE. Fazendo-os demorar na 
sensação, possibilita criar uma visão singular, como se AICE 
fosse visto por vez primeira. Ao mesmo tempo, em que é 
abandonado tudo aquilo que, anteriormente, tinha sido 
constituído como tesouros, bagagens e ideais. 
Porém, ao lado dessa desconstrução, o Método exige 
construção. O seu segundo gesto requer a colaboração dos 
corpos dos pesquisadores, num diálogo entre o Eu que vê 
e o Eu que desenha (rabisca, escreve, pinta, esculpe, canta, 
etc.). Na passagem da sensação visual para a configuração 
manual, a visão encarna-se sobre um suporte (papel, tela, 
48
monitor, teclas,pautas, areia, etc.); ao mesmo tempo em 
que são desfeitos o objeto e o sujeito de referência. Desse 
modo, ao lançarem, sobre algum suporte, não só o AICE que 
viram, mas aquele que querem fazer ver, os pesquisadores 
têm condições de criar um AICE, constituído por sua von- 
tade de expressão, articulada à sensação. 
Podem, assim, atribuir ao AICE informe uma (nova) 
forma. Porém, esse ato não o fixa; já que, ao ser expresso, 
AICE pode ser modificado, enquanto “o Infantil”, “o Edu- 
cador”, “o Autor” e “o Currículo” familiares tornam-se outros. 
Desde que “a expressão precede o conteúdo e o conduz” 
(Deleuze e Guattari, 1977, p. 62), as mãos dos pesquisadores 
também guiam sua visão: a “pintura é pensamento: a visão 
existe pelo pensamento, e o olho pensa” (Deleuze e Guattari, 
1992, p. 250). Se o Método considera AICE informe, isso não 
quer dizer que ele não possua formas; e sim que as formas 
de AICE não encontram mais, no pensamento das pesquisas 
(liberto de clichês e de memória), nada que permita substituí-
lo pela recognição ou pelo reconhecimento. 
Diante das formas de AICE – que não são fixas, mas 
intensas, carregando puras possibilidades e sendo irredutíveis 
a nada –, o Método colabora para a identificação daquilo que 
os pesquisadores ignoravam ou que nunca haviam visto; 
bem como, para a condição que AICE pode ser modificado 
pelos Exercícios do Informe. Além disso, por breves e fugazes 
que sejam as novas formas de AICE, os pesquisadores são 
surpreendidos, exploram acasos felizes, dominam alguns 
achados, terminam sua criação. Podem, assim, exercer a 
potência própria de quem estuda uma Literatura Menor; 
educa uma Infância Informe; vive um impessoal Devir-Do- 
cente; e fabrica Currículos Nômades (Corazza, 2010a; 2010c). 
O espírito e a ideia 
Para se constituir, o Método Valéry-Deleuze junta o 
esprit de géométrie ao esprit de finesse, através, em parte, 
de elementos conceituais do pensamento em prosa de 
Paul Valéry, especialmente no que se refere àquilo que ele 
49
denomina, a partir de 1894, “Comédia do Intelecto” (Comédie 
de l’Intellect) – também “Comédia Intelectual” (Comédie 
Intellectuelle); “Comédia da Inteligência” (Comédie de 
l’Intelligence); “Comédia do Espírito” (Comédie de l’Esprit) –, 
qual seja: “Acontece-me muito freqüentemente sonhar 
com uma obra singular, que seria difícil de fazer, mas 
não impossível”; “e que teria lugar no tesouro de nossas 
letras, junto à Comédia humana, de que seria um notável 
desenvolvimento, consagrada às aventuras e às paixões da 
inteligência”. Seria “o drama das existências dedicadas a 
compreender e a criar”; nelas, ver-se-ia “tudo o que distingue 
a humanidade, tudo o que a eleva um pouco acima das 
condições animais monótonas”; e que consiste na “existên- 
cia de um número restrito de indivíduos, aos quais devemos 
o que pensar, como devemos aos operários o que viver” 
(Valéry, 1996, p. 252). 
Essa autarquia intelectual, pertinente à Comédia In- 
telectual – que Valéry define como “autodiscussão infinita”; 
“teoria de si mesmo”; “obra de arte feita com os fatos do 
próprio pensamento” –, entra em composição com o 
pensamento do Deleuze dos anos 60, no que se refere ao 
aporte do “Método de Dramatização”, presente nos livros 
Nietzsche e a filosofia (1991, [1962]) e Diferença e repe- 
tição (1988, [1968]); bem como, na conferência proferida 
na Societé Française de Philosophie, em 28 de janeiro de 
1967, intitulada “O método de dramatização” (2006, p. 
145), na qual afirma: “Tento definir mais rigorosamente a 
dramatização: são dinamismos, determinações espaços-
temporais dinâmicas, pré-qualitativas e pré-extensivas 
que têm ‘lugar’ em sistemas intensivos onde se repartem 
diferenças em profundidade, que têm por ‘pacientes’ 
sujeitos-esboços, que têm por ‘função’ atualizar Ideias”. 
Assim, ao corresponder um tal sistema de determinações 
espaços-temporais a um conceito, “um logos é substituído 
por um ‘drama’”, e estabelecemos o drama desse logos. 
Se, afirma Deleuze, existe “um liame fundamental entre 
a dramatização e um certo mundo do terror, mundo que 
pode comportar o máximo de bufonaria, de grotesco”, 
50
“uma cólera”, por exemplo, é uma dramatização que põe 
em cena sujeitos larvares”. 
Porém, em quais pontos, a Comédia Intelectual de 
Valéry e o Método da Dramatização de Deleuze levam suas 
produções a realizarem um bom (ativo) encontro, que nos 
possibilita erigir o Método do Informe em Educação? 
1. O espírito 
Para Valéry, a cultura é obra do espírito humano. A 
tarefa do espírito é sonho, isto é, superação do dado, von- 
tade ativa e busca incansável de um plano de realidade, que 
não seja o da aparência, nem o da experiência imediata, 
tampouco o plano sólido do já trilhado. Ocorre que este 
plano é prisão, o complexo de resistências dos estudiosos, 
no qual se debate todo querer humano, em seu afã de 
perfeição e justiça, segurança e certezas. O grande inimigo 
do espírito é, assim, a natureza, no que tem de mais ime- 
diato; por isso, embora o espírito seja também natureza, 
toda obra do espírito, desde que há cultura no mundo, é 
contranatural. 
Na concepção valéryana, o espírito trabalha, funciona; 
é pergunta sem resposta (demande sans réponse); negação 
de fundamentos e determinações. “Alma” é um dos 
nomes historicamente dados a espírito, como dinamismo 
perceptível, que suscita uma estruturação psíquica íntima. 
Há outras acepções da palavra espírito, que apontam para 
noções que, semanticamente, se aproximam, como ψυχή 
e anima, na antiguidade clássica: substância intelectual e 
incorpórea, que sobrevive à morte do corpo, nas doutrinas 
espirituais platônicas e neo-platônicas e no cristianismo. 
Para o aristotelismo e o estoicismo, o espírito consiste numa 
energia que vivifica e anima o corpo. Desde Montaigne e 
Descartes, na modernidade, o subjetivismo segue essa ideia 
de espírito como energia e a introduz no senso comum, 
sendo usada como característica central de uma instituição, 
disciplina, povo, nação. Em Hegel e no idealismo alemão, 
alma é entendida como espírito finito, intelecto; em 
51
Schopenhauer, como vontade de viver; em Freud, como in- 
consciente; e em Nietzsche, como vontade de potência.
Espírito, na acepção de consciência de si ou Eu, é raro, 
seja na antiguidade, no medievo ou na renascença, por 
ficar, até então, dependente da ordem cósmica e natural. 
Com a burguesia, no entanto, espírito adquire o sentido 
da substância (algo em si) de um pensar autônomo e livre, 
em relação a instituições, tradições e esquemas tidos como 
imutáveis. Valéry é um herdeiro crítico dessa tradição, 
chamada racionalista-cartesiana; e adota a palavra francesa 
esprit para designar Eu, consciência, consciência de si, razão, 
intelecto, sujeito (não assujeitado), que aspira e realiza 
criações. Em sua obra, contudo, não encontramos a noção 
de espírito remetida à metafísica de alguma alma imortal; 
nem inserida num sistema idealista; ou referida a qualquer 
divindade reguladora.
Assim, quando poetiza o mar, o sol, a luz, a concha, 
a dança, Valéry é apolíneo, adotando um ambíguo sen- 
sualismo-materialista. Para ele, o espírito humano não é 
totalmente controlado por forças irracionais, escravizado 
pela inconsciência ou determinado por estruturas. Existindo 
em situação, o espírito tem, quase sempre, possibilidades 
de escapatória ou de superação das condições mais vis. 
O próprio inconsciente nada mais é do que um condicio- 
nante e tudo o que humano realiza é resultado da sua 
racionalidade, mesmo que mesclada com alguns fatores 
obscuros. O homem de gênio aproveita-se, consciente- 
mente, das figuras lançadas pelo acaso; daí advindo a famosa 
fórmula valéryana: “Gênio = consciência das inconsciências” 
(Valéry, 1977, p. 221). Apenas a consciência realiza ações e 
obras, pois, um espírito totalmente inconsciente nada faz: 
“A consciência é a possibilidade de atos”. O inconsciente 
pode até fornecer soluções; porém, formular e decidir qual 
o melhor problema, ou solução, só podeser feito pela 
consciência. 
Em suma, para Valéry, o espírito é o de um Eu funcio- 
nal, em vez de um Eu substancial; não é separado do 
corpo, mas inseparável da matéria, e reciprocamente; não 
52
é determinado nem determinante, mas em circunstância, 
existindo num dado tempo e espaço, em sua fragilidade 
real e limitações, condicionado a si mesmo, aos outros e 
ao mundo: “Após tudo, eu fiz o que eu pude”; é imperma- 
nência, self-variance, isto é: auto-variação, variação do ser, 
variação de si, processo, devir, movimentos interiores; 
possui, no entanto, uma identidade, uma unidade, um Eu 
invariante: se há recorrências, padrões, obsessões, nunca 
há término, tudo é retomada e invenção; apresenta a 
impossibilidade de pensar uma ideia fixa, já que nenhuma 
ideia, ou pensamento, existe como linha homogênea, mas 
como fenômeno contínuo, dotado de matizes e grada- 
ções: “Toda consciência é incessantemente mutável”; para 
o espírito, não existe último pensamento porque não 
há pensamento que esgote a própria virtualidade; como 
pensamento, o espírito é conflituoso, diálogo interior, 
“dissonância permanente”, “jogo ininterrupto”, “PR [per- 
gunta-resposta]”; cuja linguagem interior “cria um Outro no 
Mesmo” (Valéry, 1931, p. 188).
Na produção valéryana, há distinção entre dois tipos 
de espírito: o Eu empírico, self-variance; e um Eu puro, que 
é o Eu ao qual tende “o culto ao Ídolo do Intelecto” (Idolle 
de l’Intelect). Este Eu puro é tido como um dos conceitos 
mais problemáticos da obra de Valéry, por guardar ecos do 
Eu substancial e racionalista- cartesiano, bem como do Eu 
absoluto do idealismo alemão. Só que esse Eu puro não é 
moral (substancial ou absoluto), pois consiste: num “ponto 
virtual, para o qual, o meu conhecimento se ordena”; logo, 
na invariância daquilo que no espírito não muda: “O eu – é 
um invariante que resulta de toda produção de fenômenos 
suficientemente consciente e complexa”; na “origem, meio 
ou campo” de “uma propriedade funcional da consciência”; 
no núcleo duro, um centro, ao redor do qual gravitam a 
esfera movente do espírito, suas lembranças, aspirações, 
pensamentos e desejos: “0, 1 e infinito – 0 é o signo da 
negação, a resposta que é negada no diálogo demande-
réponse do espírito; 1 é o signo da unidade do espírito ante 
as possibilidades; e infinito é o signo da pura possibilidade 
53
do espírito”; numa virtualidade heurística, não numa reali- 
dade: “A palavra Eu designa sempre virtualidades – Não há 
Eu redutível ao atual” (Pimentel, 2008, p. 38-39).
Portanto, o Eu puro é um estado de espírito, ao qual o 
Eu empírico aspira; um possível, que precisa ser conquis- 
tado, realizado, estabelecido no agir; um Eu virtual, que, 
tendo cumprido o culto ao Ídolo do Intelecto, encontra-se 
purificado das paixões, metafísicas, opiniões, subjetivida- 
des, outros ídolos e idolatrias, que impedem o seu livre 
pensar. O Eu puro é um vazio de pessoalidade; o espírito 
em estado de total despersonalização e desumanização; já 
que é preciso sair do acúmulo da personalidade para nele 
ingressar. O Eu puro é, assim, superior ao Eu empírico, 
porque este possui ego e aquele não; porque não é um “Eu 
penso” e a consciência de estar pensando, mas um “Pensa-
se”, indefinido, e a consciência de se estar pensando, na 
imanência do mundo.
Por isso, em face da self-variance do Eu empírico, 
importa aos pesquisadores desenvolver um programa de 
autoconsciência para purificar o espírito; de modo que o 
Eu puro possa cultuar o Ídolo do Intelecto, exercitando a 
consciência como a sua possibilidade de atos. Programa que 
integra uma espécie de funcionalismo, que não se restringe 
à meditação analítica de si; mas abre-se para analisar a 
gênese dos processos de todas as obras humanas, próprias 
e dos outros. Programa que, assim, exclui toda esperança 
teleológica, já que nada é necessário além do seu próprio 
processo. Quando a consciência pensa estar pensando-se, 
não deixa o pensamento solto ou distraído; mas fornece-lhe 
formas de meditação, para manter um certo grau de lucidez, 
controle e rigor. Com Valéry, os pesquisadores precisam 
prover-se do maior grau possível de consciência, durante 
qualquer ação; seja esta íntima ou ações que se transfor- 
mam em arte, filosofia ou ciência. 
Seria como dizer a um pesquisador: controle-se a si 
mesmo, em eterna vigília, controlando o mecanismo de 
seus processos mentais, para eliminar o vago, as oscilações 
e as facilidades. As pesquisas ressaltam, por conseguinte, a 
54
dedicação ao acompanhamento dos passos daqueles que 
criam; mesmo que na imaginação, mesmo que de modo 
conjetural, via uma Comédia do Espírito. Assim, interpretar 
e criticar obras alheias são modos de meditar sobre si 
mesmo: interpretar é interpretar-se, criticar é criticar-se. 
Daqui, decorre a necessidade de os pesquisadores fazerem 
um contínuo e disciplinado exercício de atenção do espírito 
e esforço da vontade, quando postos num fazer, pois, per- 
gunta Valéry: “O que me importa aquilo que estou farto 
de saber”? Daqui, também, derivam as críticas ao mundo 
moderno e às suas facilidades, aos meios curtos e rápidos, 
que reduzem os esforços do espírito humano. Daqui, ainda, 
o próprio funcionamento valéryano de ascese intelectual, 
na aurora, entre 6 e 9 horas da manhã, todos os dias, de 
um dos milhares de dias, ao longo de mais de cinqüenta 
anos, em que escreveu seus Cahiers: “A arte não é nada 
mais do que um pedagogo, porém mais importante – pois 
ela pode me ensinar a dispor do meu espírito para além de 
suas aplicações práticas” Valéry (1977, p. 217).
2. A iDeia 
Em 1967, na conferência “O método de dramatização”, 
Deleuze (2006) propõe, sob o nome de Dramatização, um 
Método para o exercício do pensamento filosófico. Método 
(ou “esquema kantiano”), que é de leitura, compreensão, 
análise e produção do pensamento; o qual, mais adiante, 
nos anos 70 e 80, será substituído, em parte, pelos concei- 
tos de estratégia, operação, procedimento, especialmente 
nos dois livros sobre cinema (Deleuze, 2005; 2008). Agora, 
Deleuze apresenta o objeto da sua Tese de Estado (publicada 
em Diferença e repetição, especialmente nos capítulos III, 
IV e V), com a orientação determinada de uma dramati- 
zação. 
A que visa esse conceito extraído do quadro teatral? 
Ora, neste período, Deleuze distingue “Ideia” de “conceito”: 
este é considerado uma noção abstrata, hipotética, geral; 
enquanto Ideia é a verdadeira objetividade, feita de relações 
55
diferenciais e provida do problemático, como “o conjunto 
do problema e de suas condições”, que são “as próprias 
Ideias”: “a Ideia é real sem ser atual, diferençada sem ser 
diferenciada, completa sem ser inteira” (Deleuze, 2006, 
p. 290; p. 343-344). Desse modo, o conceito está do lado da 
essência teoremática (platonismo); enquanto a Ideia está do 
lado do inessencial, dos acontecimentos, afecções, aciden- 
tes, multiplicidade.
Os dramas (ou “processos dinâmicos”, que dramatizam 
as Ideias), na “aventura das Ideias”, colocam em cena forças 
e potências que agem nos acontecimentos, em detrimento 
do que aparece na superfície do pensar. Literalmente, é 
isso o que significa drama: fazer, agir, performar as Ideias, 
quase encobertas pela ação. O Método visa pôr em evidência 
o caráter dramático de todo acontecimento. Como afirma 
Deleuze (2006, p. 295; p. 347; p. 139): “Il y a toujours un 
‘drame’ sous tout logos” (“Há sempre um drama sob todo 
logos”). 
O Método tem, aqui, por objeto a parte dramática do 
pensamento que é, em geral, dissimulada. Mas, o que o 
drama recobre? Por quê? O que impede as Ideias de serem 
manifestas? Aquilo que Deleuze denomina “a imagem do 
pensamento”: “o pensamento conceitual filosófico tem como 
pressuposto implícito uma imagem do pensamento, pré-
filosófica e natural, tirada do senso comum, onde ocorre a 
atividade conjunta das faculdades”. Segundo essa imagem, 
“o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui 
formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verda-deiro. E é sobre esta imagem que cada um sabe, que se 
presume que cada um saiba o que significa pensar” (Deleuze, 
1988, p. 218-219).
A retirada do pensar do domínio do senso comum e da 
generalização pelo conceito é o que a Dramatização objetiva. 
Nisso consiste a primeira dimensão do método: uma 
dimensão crítica e genealógica, que destaca o recobrimento 
da parte dramática do pensamento, em detrimento de uma 
imagem pré-filosófica, dogmática e moral. Imagem que se 
instala antes de toda operação conceitual explícita, de todo 
56
exercício de pensar, formando uma espécie de “inconsciente 
da filosofia”. Em função dela, é que não existe um verdadeiro 
começo em filosofia; pois, tal imagem, radicada no senso 
comum, é prévia ao pensamento e pré-julga tudo o que é 
produzido. 
Se a filosofia participa desse acobertamento dos “dra- 
mas das Ideias” é porque está interessada em manter uma 
relação essencial com o exercício concertado de todas as 
faculdades. Mas, o que esse exercício de acobertamento 
objetiva? A possibilidade de recognição, apenas. Para tanto, 
as faculdades são mobilizadas ao redor de um reconheci- 
mento possível daquilo que é dado na experiência. Nesse 
sentido, a recognição é uma re-apresentação, sob a forma do 
Mesmo. Além disso, porque essa imagem é natural, não pode 
ser plural. Pode, até mesmo, conter expressões divergentes, 
em tal ou qual filósofo, mas é sempre unívoca, impondo-
se como idêntica para cada um. Por isso, Deleuze (1988, 
p. 310) afirma que existe tão-somente uma imagem em 
geral, que constitui o pressuposto subjetivo da filosofia: 
“caráter inconsciente das Ideias”.
Sendo assim, como os pesquisadores podem pôr em 
evidência aquilo que recobre a parte dramática do pen- 
samento? Pela substituição de um certo tipo de questão 
por outras, que acompanham a filosofia desde Nietzsche. 
Ora, a forma paradigmática de questão, que fica no centro 
do senso comum, consiste em “Que é”? Esta é uma questão 
que procura menos uma direção para o pensamento do 
que a indução de determinado comportamento, em prol 
da igualação do não-igual. Recorrendo a Nietzsche, Deleuze 
(1991) propõe questões de outra ordem: “Quem”? “Quando”? 
“Como”? “Onde”? Não mais “O que é o justo”?, por exemplo; 
mas “Quem o é”? “Em que condições”? “Por quais operações”? 
Questões que obrigam o pensamento a sair do seu 
recobrimento, remetendo o conceito ao drama e à imagem 
dogmática (que é moral), localizando a Ideia na concretude 
de uma dada hora e de um certo lugar.
Chegamos, assim, ao segundo componente do Método 
da Dramatização, não mais crítico ou genealógico, mas 
57
exploratório e experimental. Não se trata de sair da imagem 
dogmática do pensamento, mas de introduzir-se no interior 
de um outro nível de Ideias e de solicitar, para o pensamen- 
to, as forças de uma terra incógnita jamais conhecida. 
A exploração desse espaço sub-representativo é o principal 
elemento do Método. Porém, o que constitui esse espaço? 
Não objetos, coisas ou indivíduos, e sim, dinamismos: 
“agitações do espaço, buracos do tempo, puras sínteses 
de velocidades, direções, ritmos”; “processos dinâmicos 
que determinam a atualização da Ideia” (Deleuze, 1988, 
p. 347). 
Não há, aqui, lugar para generalizações, sob o conceito, 
na forma de uma Urdoxa; e, sim, para os modos como 
esses dinamismos dramáticos produzem individuações. 
A individuação torna-se o problema central do Método; 
originando-se, daí, um espaço pré-individual, não tributário 
do modelo ou da lógica da representação, mas elaborado 
com puras intensidades heterogêneas, que formam séries, 
as quais se comunicam por meio do que Deleuze (1988, 
p. 132) denomina “precursores sombrios”. Essas séries são 
disparatadas e paradoxais; sua comunicação não se processa 
por correspondência ou identificação; mas pela relação 
de heterogêneos. Em síntese, no meio da individuação, 
desenhando fatores individuantes, encontram-se: o espaço, 
onde se organizam as intensidades; as séries paradoxais 
que elas formam; o precursor sombrio, que põe as séries 
em comunicação; os pares, as ressonâncias internas, os 
movimentos forçados, que seguem as intensidades; e os 
sujeitos larvares que aí proliferam.
Enquanto consequência do Método da Dramatização, 
a individuação não visa nem deriva de um indivíduo, mas 
rejeita o ser individual, já que é este que se encontra no 
centro da imagem representacional; deriva de campos e de 
regimes de individuação, isto é, de uma realidade mais aberta 
e mais constitutiva do que o indivíduo; não é tomada como 
objeto de conhecimento, objeto conjunto de faculdades, mas 
experimentada; encontra-se na condição de que não sabemos 
como os sistemas paradoxais se comunicam, pois a questão 
58
passa a ser de encontros e de avaliação imanente; em sua 
teorização, constitui uma forma de pragmatismo ou de 
empirismo superior ou transcendental. 
Especificamente, para Deleuze, nos anos 60, esse Mé- 
todo de Dramatização fornece as coordenadas para que o 
empirismo transcendental de sua filosofia se constitua, ao 
explorar as consequências de um de um pensamento da 
individuação, apartado do indivíduo. Pela Dramatização, a 
filosofia da diferença rompe com o pensamento enquanto 
um universal abstrato, atemporal, neutro, moralmente 
comprometido, sendo tramado por configurações de forças. 
A nova imagem do pensamento (ou um pensamento sem 
imagem) não é mais a do Verdadeiro e do Falso, mas a do 
sentido e do valor, de acordo com as forças que do pensa- 
mento se apoderam. A lógica é, assim, substituída por 
uma topologia e uma tipologia, sobre as quais se debruça 
a cartografia das forças. Pelo Método, um conceito só tem 
sentido porque alguém que o formula, pensa ou enuncia, 
quer algo, ao pronunciá-lo, pensá-lo, enunciá-lo; passando, 
assim, a ser uma atividade, a ter uma concretude, desen- 
volvida por um tipo, desde um certo ponto de vista, em 
função de circunstâncias, a partir de um dado lugar, etc. 
O pensamento que pensa a diferença é sintomatologista, 
ou seja, trata fenômenos, ideias, conceitos, como sintomas 
de uma relação de forças capaz de produzi-los, cada 
um realizando um sentido ou um valor. O Método de 
Dramatização é, assim, crítico e experimental: cria novos 
tipos; valoriza os modos minoritários de vida; abre novos 
espaços. Afinal, escreve Deleuze (1988, p. 310), “a Ideia não é 
o elemento do saber, mas de um ‘aprender’ infinito”.
O informe
Desde o Espírito e a Ideia, diante de AICE, o Método 
Valéry-Deleuze indaga: de onde surgem as formas? Como 
se dá o ato de ver, de falar, de interpretar, de escrever as 
Vidarbos, num não-lugar, numa não-relação? Como pensar 
do lado de-Fora (Foucault, 1990)? “O que é o ato de criação”? 
59
“O que significa ter uma ideia”? “O que acontece quando 
alguém diz: tive uma ideia” (Deleuze, 2003, p. 291; 2008, p. 16; 
1988, p. 215 segs.)? O que é o ato de pensar (ou de escrever 
ou de criar)? Será “deter-se, e depois partir novamente”? 
(Valéry, 2008, p. 70)? Em outras palavras: como é possível o 
surgimento do novo e a produção do Informe em educação? 
A gênese das formas é tratada pelas teorias dinâmicas 
do pensamento das ciências, das artes e da filosofia. Na 
história dessas Unitas multiplex (diz Valéry), encontra-mos: 
a embriologia e a robótica; a Naturphilosophie (natura- 
lismo) e a ciência dos sistemas; o cognitivismo e a teoria 
da Gestalt; a epistemologia genética e o pensamento da 
complexidade; a gnosiologia e a filosofia da composição; 
a fenomenologia e a filosofia da diferença; a crítica ge- 
nética, na teoria literária; entre outras (Lestocart, 2008; 
Willermat, 2009). Em que pese suas especificidades, tais 
teorias convergem no entendimento que o pensar depende 
mais de um processo do que do objeto considerado; mais 
de um método de criação do que de resultados; mais de 
experimentações do que da aplicação de teoria à prática; 
mais de problematizações do que de descobertas. Dessa 
maneira, trata-se de saberes-processos, derivados das pes- 
quisas acercado “elemento genético”, como “o diferenciador 
da diferença” (Machado, 2009, p. 311); os quais, compor- 
tam duas operações principais: crítico-genealógica e ex- 
perimental-exploratória (Deleuze, 1991; 2006; Gaède, 1962, 
p. 245-309). 
O Método do Informe é tributário dessas pesquisas 
e, como tal, em face das quatro unidades analíticas de 
AICE, desenvolve uma morfogênese: cria fenômenos de 
organização para dar conta dos auto-engendramentos da 
forma; bem como dos momentos fecundos e movimentos 
virtuais do espírito humano, numa invenção recorrente de 
si e da realidade: “Todo filósofo, depois que terminou com 
Deus, com Si-Mesmo, com o Tempo, o Espaço, a Matéria, 
as Categorias e as Essências, volta-se para os homens e suas 
obras” (Valéry, 1998, p. 190-191). Método do cuidado de si, 
pois, ao desenvolvimento das técnicas, os pesquisadores 
60
agregam o autoconhecimento da maquinaria complexa do 
espírito: “As ‘Ideias’” são “meios de transformação – e, por 
conseguinte, partes ou momentos de alguma mudança. 
Uma ‘ideia’ do homem ‘é um meio de transformar uma 
questão’” (Valéry, 1997, p. 123). 
Método, que varia “com cada autor” e faz “parte da 
obra” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 217), criado pelo fluxo 
de experiências renováveis, sensibilidade e ação das disposi- 
ções sensório-motoras e capacidades intelectuais (Darriulat, 
2007; Hayashi, 2010; Lestocart, 2010; Mastronardi, 1955). 
Método gerado por um pensamento-cérebro, auto-organizado 
pelo corpo, como afirma Bergson (1999, p. 13): “É o cérebro 
que faz parte do mundo material, e não o mundo material 
que faz parte do cérebro. Suprima a imagem que leva o nome 
de mundo material, você aniquilará de uma só vez o cérebro 
e o estímulo cerebral que fazem parte dele”; como replicam 
Deleuze e Guattari (1992, p. 259): “É o cérebro que pensa 
e não o homem, o homem sendo apenas uma cristalização 
cerebral”; e, como exemplifica Valéry (apud Mastronardi, 
1955, p. 38): “A prosódia, por exemplo, é governada pelos 
pulmões e pela boca. As ideias gerais não têm nada a fazer 
ali dentro”. Método cerebral, cuja condição necessária é 
um plano de práticas, que faz advir o sentido, o valor e o 
possível de um corpo, a partir de processos definidos, por 
meio dos quais os pesquisadores implicam-se na vasta rede 
dos elementos informes das forças de-Fora: mundo feito 
de significações pré-linguísticas; agitador de interações 
violentas com o pensamento; que evolui em permanência e 
forma novos mundos (Heuser, 2010, p. 81 segs.; Machado, 
2009, p. 161 segs.). 
Logo, Método formalista do Informe, que desenvolve 
um funcionalismo dos pontos singulares do processo de 
vida: “método concreto”, “serial: “muito rigoroso em seu 
conjunto”; “fundado sobre as singularidades e as curvas”; 
“totalmente diferente do método de teses”; e, ainda, “método” 
ou “princípio de Foucault”, para o qual, “toda forma é um 
composto de relações de forças” (Deleuze, 1991, p. 28-29; 
p. 31; p. 34; p. 50-51; p. 86; p. 132; p. 134; p. 137-138). Método 
61
das forças de AICE, que engendra uma poiesis de infância, 
docência, currículo, literatura educacional, nos cruzamen- 
tos com a filosofia, a arte e a ciência; via procedimentos, 
personagens e paisagens, derivados de um “pensamento-
conquista” (não dádiva), para o qual: “até aqui, o acaso ainda 
não foi eliminado dos atos; o mistério, dos procedimentos; 
a embriaguez, dos horários; mas não garanto nada” (Valéry, 
2003, p. 42).
Os olhos e a voz (Deleuze) 
Embora toda forma estratificada de saber seja precária, 
pois “depende das relações de forças e de suas mutações”, 
Deleuze (1991) a toma em dois sentidos: na organização 
(ou formação) de matérias e na finalização (ou formação) 
de funções. Nos estratos e em seus agenciamentos concretos 
– dispositivos, para Foucault –, há formações discursivas 
de enunciados e formações não-discursivas de visibilidades 
(luz e linguagem). Essas matérias formadas e funções for- 
malizadas reduzem a multiplicidade, restringem-na a espaços 
determinados, impõem-lhe condutas. Embora existam 
correspondências entre formas de conteúdo e de expressão, 
elas são irredutíveis umas às outras (Foucault, 1988). Como 
podemos então explicar a sua co-adaptação? 
Determinando um conjunto de relações de forças (de 
poder), num elemento não-estratificado – como “abertura 
do futuro” –, as formas, em que as matérias fluentes e as 
funções difusas se encarnam, podem ser abstraídas. Não há 
mais, aí, o arquivo áudio-visual, de segmentaridade rígida ou 
flexível; mas puras matérias, não-formadas, não organiza- 
das, com receptividade de ser afetadas; e puras funções, 
não-formalizadas, não-finalizadas, com espontaneidade de 
afetar. Existe, nesse caso, o “diagrama informal” (mapa, car- 
tografia, phylum), que ignora as distinções entre ver e dizer; 
opera em pontas de descodificação e desterritorialização; 
jamais esgota suas forças (“móveis, evanescentes, difusas”), 
levando-as a entrarem em outras relações, desde que o seu 
devir não se confunde com a história das formas: “o devir, 
62
a mudança, a mutação concernem às forças componentes e 
não às formas compostas” (Deleuze, 1991, p. 78 segs.; Deleuze 
e Guattari, 1997, p. 227-232). 
Como máquina abstrata, imanente, singular, criativa 
– “quase muda e cega, embora seja ela que faça falar e 
ver” (Deleuze, 1991, p. 44) –, o diagrama é multiplicidade 
espaço-temporal: real, sem ser concreto; atual, mesmo que 
não efetuado; datado, nomeado, co-extensivo a todo corpo 
social. Enquanto “causa imanente não-unificadora”, age 
nos interstícios das máquinas materiais (agenciamentos 
concretos, territoriais) e os abre para a microfísica, o 
molecular, o cósmico, os devires. Porém, mesmo agindo 
no informe, a distinção entre variáveis de conteúdo e de 
expressão mantém-se; só que, desta vez, tal distinção é 
recriada no estado de traços: “traços de conteúdo (matérias 
não formadas ou intensidades)”, que arrastam a matéria-
movimento (não matéria morta, bruta, homogênea); e “traços 
de expressão (funções não formais, tensores)”, que arrastam 
a expressividade-movimento (Deleuze e Guattari, 1997, 
p. 218-220; p. 228-229). 
Altamente instável e fluido, o diagrama não cessa de 
formar matérias visíveis e de formalizar funções enunciá- 
veis, isto é, “de misturar matérias e funções de modo a 
constituir mutações”. Age desse modo não para representar 
um mundo já existente, mas para produzir novos mundos, 
realidades, verdades. É que o diagrama não “é sujeito da 
história nem a supera. Faz a história, desfazendo as realida- 
des e as significações anteriores, formando um número 
equivalente de pontos de emergência ou de criatividade, 
de conjunções inesperadas, de improváveis continuuns”. 
Para os agenciamentos formais, há história; enquanto para 
os diagramas informes, há devir e mutações, como afirma 
Deleuze (1991, p. 45; p. 124): “Considerando-se o saber 
como problema, pensar é ver e falar, mas pensar se faz no 
entremeio, no interstício ou na disjunção do ver e do falar. 
É, a cada vez, inventar o entrelaçamento, lançar uma flecha 
de um contra o alvo do outro, fazer brilhar um clarão de 
luz nas palavras, fazer ouvir um grito nas coisas visíveis”. 
63
Os olhos e a mão (Valéry)
Pensar o Informe, para Valéry (2003), é ver que há 
“coisas – manchas, massas, contornos, volumes – que têm, 
de alguma maneira, somente uma existência de fato”. São 
coisas percebidas, mas não conhecidas, que não podem ser 
reduzidas a uma lei única; nem ter o todo deduzido de suas 
partes; tampouco ser reconstruídas por operações racionais. 
O pensamento do Informe é dado pela distância entre 
intelecto e sensação, entre uma visão habitual e uma visão 
vazia: “uma obra de arte deveria sempre nos ensinar que 
não tínhamos visto o que vemos”. Quando os pesquisadores 
vêem, por meio do intelecto, o erro reside na pressa de 
atingir o conceito: “a maioria das pessoas vê aí com muito 
mais frequência com o intelecto do que com os olhos. Em 
vez de espaços coloridos, tomam conhecimentode conceitos”. 
As formas nascem, bergsonianamente, do movimento, 
ou seja, “há uma passagem para os movimentos em que 
as formas se transformam, com a ajuda de uma simples 
variação do tempo de duração” (Valéry, 1998, p. 33-35; 
p. 43). Passagem que provém de duas ações opostas, em- 
bora complementares: a desconstrução e a reconstrução do 
olhar puro sobre as coisas, cuja única propriedade é ocupar 
lugar no espaço, e que podem ser classificadas conforme a 
facilidade ou a dificuldade que oferecem à compreensão: 
“Eis-me aqui, diz o construtor, sou o ato” (Valéry, 2003, 
p. 103). O Informe nada mais é do que essa ação de começar 
pelo começo, por um ponto de partida não-significativo 
da percepção, pelo qual se apreendem fenômenos ainda 
não interpretados; sentidos não atribuídos; valores não 
acrescentados ou associados: o Real de Grau Zero. 
No primeiro procedimento do mecanismo de ver o 
informe, são acumulados elementos de contato de uma 
determinada forma, adquirindo-se, ponto por ponto, o 
conhecimento e a unidade de um corpo regular. O olhar 
(cego) esquece o nome das coisas, não se endereça a ninguém, 
não emite pré-julgamentos. O ver se faz acompanhar pela 
ação de tocar, mesmo que esta ação não antecipe a sensação 
64
empírica, em função da primazia da mecânica cerebral 
que opera sobre o verificável. Porque os pesquisadores 
percebem o Informe, acabam construindo sua própria visão, 
a partir dos toques realizados; porque não o compreendem 
com o auxílio do conhecimento, vê-lo requer que se demorem 
na sensação que dele têm. No segundo procedimento, 
eles fazem intervir a colaboração do seu corpo: “A vontade 
não pode atuar no espírito, sobre o espírito, a não ser 
indiretamente, por intermédio do corpo” (Valéry, 1998, 
p. 123). Se o Informe é sempre visto pela primeira vez, por 
ser singular, quanto mais é expresso de maneira própria, 
mais singular se torna. Ao encarnar a visão sobre um su- 
porte, com a mão, os pesquisadores reconstroem, outra 
vez, a sua visão; ao passar da sensação visual e tracejamento 
mental ao trabalho manual, tornam precisa sua percepção; 
já que não podem desenhar alguma coisa “sem uma atenção 
voluntária que transforme de forma notável” o que antes 
acreditavam “perceber e conhecer bem”. 
Através do desenho, o Informe parece tomar uma 
forma fixa. Os pesquisadores descobrem, então, que igno- 
ravam aquilo que viam ou que nunca o tinham visto antes: 
“Há uma imensa diferença entre ver uma coisa sem o lápis 
na mão e vê-la desenhando-a. Ou melhor, são duas coisas 
muito diferentes que vemos. Até mesmo o objeto mais 
familiar a nossos olhos torna-se completamente diferente 
se procurarmos desenhá-lo” (Valéry, 2003, p. 69). Porém, 
desenhar o Informe é sempre fixá-lo? Certamente não, 
pois mesmo o objeto próximo torna-se outro, se for de- 
senhado: a mão também guia a visão, como um diálogo entre 
o Eu que vê e o Eu que desenha: “O filósofo não concebe 
facilmente que o artista passe de maneira quase indiferente 
da forma ao conteúdo e do conteúdo à forma; que lhe ocorra 
uma forma antes do sentido que dará a ela, nem que a idéia 
de uma forma seja igual para ele à idéia que requer uma 
forma”. É que, “talvez só concebamos bem o que tivermos 
inventado” (Valéry, 1998, p. 203; p. 205). 
Esses dois procedimentos do Informe são, ainda, 
produtos do acaso, por trazerem a desordem de algo des- 
65
dobrado: os pesquisadores vêem, pela primeira vez e de 
uma vez por todas; suprimem objetos de referência; lançam, 
sobre algum suporte, não só o que vêem, mas também aquilo 
que querem fazer ver. Criam algo, em suma, constituído 
por sua visão e vontade de expressão; não como aqueles 
fotógrafos que buscam a representação exata das coisas 
vistas, mas como pintores que desenham. A inflexão ou o 
retorno ao Informe constitui, dessa maneira, uma virada 
em direção a um estado original da percepção e à expressão 
primitiva de traços, retrabalhados por séries mentais. O valor 
do “artista essencialmente artista” reside na singularidade 
da sua maneira de ver e de traçar. Como Degas diz a Valéry: 
o desenho não é a forma e sim “o modo de ver a forma”; 
“emanação de vida mais do que a forma” (Valéry, 2003, 
p. 95; p. 119; p. 122).
Tensões, efeitos e real
Posto isso, resta ainda pensar: digamos que, acerca 
do Método Valéry-Deleuze esteja tudo bem, até aqui. Mas, 
afinal, o que é o bloco AICE? Quem é AICE disposto 
nos textos e nas existências? Como e onde vivem as sub- 
jetividades dispersas de AICE? O que querem esses Eus, 
enquanto superfícies feridas por punctuns? Quando agem e 
sentem essas puras contingências, essas flechas que ferem 
e sobressaltam, que fazem inscrições de instantes (Barthes, 
1984, p. 69; Lira, 2006, p. 101)? Como selecionar, de AICE, 
alguns infantis, autores, currículos, educadores, e não outros? 
Um último esforço, leitores. Desde o início, os pes- 
quisadores têm consciência que AICE não é gênero, espécie, 
instituição, território, sujeito; nos quais estariam contidas 
a sabedoria do mundo, a realidade da vida ou a verdade 
da educação. Autores, infantis, currículos, educadores 
não experimentam sua infância, docência, escrileitura e 
artistagens, como espelhos da realidade, mas enquanto 
maneiras singulares de estar e de viver no mundo. Ainda 
mais, os pesquisadores não agem acreditando que chega- 
riam à vida verdadeira ou à obra legítima de algum Autor, 
66
Currículo, Infantil ou Educador; nem que suas pesquisas 
poderiam garantir a eternidade, retratar algum filão heróico, 
dispor a moral, impor uma ordem obrigatória, atingir 
qualquer finalidade salvadora ou suprir ânsias epistê- 
micas. AICE vale por seu conteúdo e expressividade: não 
individuado, impessoal, sem maiúsculas, material comum, 
moldado pelo próprio espírito dos pesquisadores. 
Se AICE propõe enigmas, multiplicam-se seres estranhos, 
que forçam os pesquisadores a construir um método, para 
investigar o luminoso disfarce da sua complexidade. Através 
do Método do Informe, aliado a ações biografemáticas, 
usando estilhaços de linguagem e flocos de sensações, 
eles traçam AICE, com vincos das vidas-obras; marcas de 
incidentes; coleta de detalhes insignificantes; personagens 
foscos; virtualidades de significação; “coisas que caem, sem 
choque, e, no entanto com um movimento que não é infinito” 
(Barthes, 2004, p. 284; p. 283). 
Do bloco AICE, os pesquisadores selecionam alguns 
infantis, autores, currículos, educadores, de maneira elíptica, 
isto é: por amizade, relações de afectos, gosto filosófico, 
inteligibilidade do desejo. Para isso, nas ruas de suas 
pesquisas, andam, como flâneurs, atentos a tudo e a todos, 
que povoam o meio AICE: curiosos e sensíveis, com apetite 
voraz, alimentando-se das obras-vidas, revelando as próprias 
em suas escolhas e composições, expressando-as nas artes. 
As Vidarbos de AICE, que daí resultam, não são ex- 
pressão do vivido, nem este é expressão daquelas; tampouco 
explicam a obra pela vida, ou vice-versa; e, sim, consistem em 
pólos de uma relação do textual e do biográfico, “um delicado 
jogo bio/gráfico” (Chelebourg, 2000, p. 115; Maingueneau, 
1995, p. 46). Posicionando-se nesses pontos de convergência 
entre o biográfico e o literário, os pesquisadores capturam 
forças imaginárias, fantasísticas e intelectuais, que os con- 
duzem ao trabalho criador. 
Definitivamente, por definição e prática, o Método 
Valéry-Deleuze faz ficção; aliás, como toda ação humana; 
não podendo não fazê-la. Mesmo assim, ou, talvez, por isso 
mesmo, as pesquisas de AICE têm a responsabilidade de 
67
produzir efeitos de Real no mundo. Acabam formando um 
palimpsesto vitalmente atlético, provando que, com “as coisas 
intelectuais, fazemos ao mesmo tempo teoria, combate crítico 
e prazer; submetemos os objetos de saber e de dissertação 
– como em qualquer arte – não mais a uma instância de 
verdade, mas a um pensamento dos efeitos” (Barthes, 2003, 
p. 105). Teremos criado, assim, um romanesco, na Comédia 
Intelectual ou Drama do Espírito emEducação. Ou, melhor 
de tudo: um Romance de Formação do Intelecto em Educação. 
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71
PEDAGOGIA DOS SENTIDOS: 
a infância informe no método Valéry-Deleuze3 
O barro
Nossa espécie é pesada. Suas criaturas são carregadas 
de formas. Vivemos de alguma forma. Pensamos conceitos 
que sintetizam formas. Calculamos formas. Tateamos para 
reconhecer formas. Cheiramos formas. Ouvimos alguma 
forma. Entramos ou saímos de forma. Estamos ou não 
em forma. Pelas formas, somos informados. Formas nos 
igualam. Encurtam caminhos. Garantem a comunicação. 
Apaziguam conflitos. Até nos alegram. Formas são odes 
do espírito humano à facilidade. É possível produzir uma 
enciclopédia só com formas. Porém, nem sempre foi assim. 
Houve um tempo em que fazíamos “deusesde pedra ou de 
madeira que nem mesmo se assemelhavam aos homens; 
alimentávamos, veneravámos essas imagens que eram 
imagens apenas de muito longe; e o fato digno de nota é 
que, quanto mais informes eram, mais foram adoradas, o 
que se observa também no trato das crianças com suas bonecas 
e dos amantes com suas amadas, e que é uma característica 
profundamente significativa. (Talvez acreditemos receber de 
um objeto tanto mais vida quanto mais vida somos obrigados 
a dar-lhe)” (Valéry, 1998, p. 209). Além disso, se você acha 
que “o barro toma a forma que você quiser”; “você nem sabe 
estar fazendo apenas o que o barro quer” (Leminski, 1983). 
3 Texto publicado, em 2010, no livro Devir-criança da filosofia: infância da 
educação, organizado por Walter Omar Kohan, Editora Autêntica, Belo 
Horizonte, (p. 81-94); e, em 2011, com título abreviado, no livro Pesquisa, 
políticas e formação de professores: distintos olhares, organizado por Betina 
Hillesheim, Felipe Gustsack e Moacir Fernando Viegas, Editora UNISC, 
Santa Cruz do Sul, RS (p. 159-179).
3
72
O ato
De onde surgem as formas? Como se dá o ato de ver, 
de falar, de interpretar, de escrever num não-lugar, numa 
não-relação? Como pensar do lado de-Fora (Foucault, 1990)? 
“O que é o ato de criação”? “O que significa ter uma idéia”? 
“O que acontece quando alguém diz: tive uma idéia” (Deleuze, 
2003, p. 291; 1994, p. 16; 1988, p. 215 segs.)? “O que é o ato de 
pensar (ou de escrever ou de criar)”? Será “deter-se, e depois 
partir novamente”? (Valéry, 2008, p. 70)? Em outras palavras: 
como é possível o surgimento do novo e a produção do 
informe? 
A genética das formas é tratada pelas teorias dinâmi- 
cas do pensamento das ciências, das artes e da filosofia. 
Na história dessa Unitas multiplex (diria Valéry), encontra- 
mos: a Embriologia e a Robótica; a Naturphilosophie (Na- 
turalismo) e a Ciência dos Sistemas; o Cognitivismo e a 
Teoria da Gestalt; a Epistemologia Genética e o Pensamento 
da Complexidade; a Gnosiologia e a Filosofia da Composição; 
a Fenomenologia e a Filosofia da Diferença; entre outras 
(Lestocart, 2008). Tais teorias convergem no entendimento 
que o pensar depende mais de um processo do que do objeto 
considerado; mais de um método de criação do que de 
resultados; mais de experimentações do que da aplicação de 
teoria à prática; mais de problematizações do que de descobertas. 
Dessa maneira, trata-se de um saber-processo, derivado da 
pesquisa do “elemento genético”, como “o diferenciador da 
diferença” (Machado, 2009, p. 311), a qual comporta duas 
operações principais: crítico-genealógica e experimental-
exploratória (Deleuze, 1976; 2006; Gaède, 1962, p. 245-309). 
O Método Valéry-Deleuze, que aqui nos ocupa, é tribu- 
tário dessas pesquisas e, como tal, diante da infância, de- 
senvolve uma morfogênese: cria fenômenos de organização 
para dar conta dos auto-engendramentos da forma; bem como 
dos momentos fecundos e movimentos virtuais do espírito 
humano, numa invenção recorrente de si e da realidade. 
– “Todo filósofo, depois que terminou com Deus, com Si-
Mesmo, com o Tempo, o Espaço, a Matéria, as Categorias e 
73
as Essências, volta-se para os homens e suas obras” (Valéry, 
1998, p. 190-191). Método do cuidado-de-si, já que, ao 
desenvolvimento das técnicas agrega o autoconhecimento 
da maquinaria complexa do espírito: “As ‘Ideias’” são “meios 
de transformação – e, por conseguinte, partes ou momentos 
de alguma mudança. Uma ‘idéia’ do homem ‘é um meio de 
transformar uma questão’” (Valéry, 2007, p. 123). 
Método que varia “com cada autor” e faz “parte da obra” 
(Deleuze e Guattari, 1992, p. 217), criado pelo fluxo de 
experiências renováveis, sensibilidade e ação das disposições 
sensório-motoras e capacidades intelectuais: linguagem, 
raciocínio, coordenação, planificação, explicação, cálculo, 
medição, compreensão, notação, operações lógicas, relações 
simbólicas, geometria das imagens, acordos e contrastes 
racionais, seqüências infinitas, equivalências, repetições, 
variações (Darriulat, 2007; Hayashi, 2010; Lestocart, 2010; 
Mastronardi, 1955). Método gerado por um pensamento-
cérebro, auto-organizado pelo corpo, como afirma Bergson 
(1999, p. 13): “É o cérebro que faz parte do mundo material, 
e não o mundo material que faz parte do cérebro. Suprima a 
imagem que leva o nome de mundo material, você aniquilará 
de uma só vez o cérebro e o estímulo cerebral que fazem 
parte dele”; como replicam Deleuze e Guattari (1992, p. 259): 
“É o cérebro que pensa e não o homem, o homem sendo 
apenas uma cristalização cerebral”; e como exemplifica Valéry 
(apud Mastronardi, 1955, p. 38): – “A prosódia, por exemplo, 
é governada pelos pulmões e pela boca. As ideias gerais não 
têm nada a fazer ali dentro”. Método cerebral, cuja condição 
necessária é um plano de práticas, que faz advir o sentido, 
o valor e o possível de um corpo, a partir de processos 
definidos, por meio dos quais nos implicamos na vasta 
rede dos elementos informes das forças do mundo de-Fora: 
feito de significações pré-linguísticas; agitador de interações 
violentas com o pensamento; que evolui em permanência e 
forma novos mundos (Heuser, 2010, p. 81 segs.; Machado, 
2009, p. 161 segs.). 
Método formalista, que desenvolve um novo funcio- 
nalismo dos pontos singulares do processo de vida: “método 
74
concreto”, “serial: “muito rigoroso em seu conjunto”; “fundado 
sobre as singularidades e as curvas”; “totalmente diferente 
do método de teses”; e, ainda, “método” ou “princípio 
de Foucault”, para o qual, “toda forma é um composto 
de relações de forças” (Deleuze, 1991, p. 28-29; p. 31; p. 34; 
p. 50-51; p. 86; p. 132; p. 134; p. 137-138). Método das forças, 
que engendra uma poiesis de infância, no cruzamento entre 
filosofia, arte e ciência, via procedimentos, personagens 
e paisagens derivados de um pensamento-conquista (não 
dádiva), para o qual: “até aqui, o acaso ainda não foi elimi- 
nado dos atos; o mistério, dos procedimentos; a embriaguez, 
dos horários; mas não garanto nada” (Valéry, 2003, p. 42).
O informe 
Os olhos, a voz
Para Deleuze (1991), no livro Foucault, embora toda 
forma (estratificada de saber) seja precária, pois “depende 
das relações de forças e de suas mutações”, ela é dita em 
dois sentidos: na organização (ou formação) de matérias; 
na finalização (ou formação) de funções. Temos, assim, nos 
estratos e em seus agenciamentos concretos – que Foucault 
denomina dispositivos –, formações discursivas de enunciados 
e formações não-discursivas de visibilidades: enunciável e 
visível; luz e linguagem; ver e falar. Essas matérias formadas 
e funções formalizadas servem para reduzir a multiplicidade 
humana, restringir-lhe a espaços determinados e impor-
lhe condutas. Embora haja correspondência entre elas, as 
duas formas (de conteúdo e de expressão) são irredutíveis 
(Foucault, 1988). Como então, indaga Deleuze, explicar sua 
co-adaptação? 
Por meio da determinação de um conjunto de relações 
de forças (ou de poder), num elemento não-estratificado 
– como o seu lado de-Fora, enquanto “abertura do futuro” –, 
abstraímos as formas em que as matérias fluentes e as fun- 
ções difusas se encarnam. Não encontramos mais o arquivo 
áudio-visual (de segmentaridade rígida ou mais flexível), 
mas puras matérias (não-formadas, não organizadas: recep- 
75
tividade de ser afetado) e puras funções (não-formalizadas, 
não-finalizadas: espontaneidade de afetar). Ou seja, nos 
deparamos com o “diagrama informal” (mapa, cartografia, 
phylum), que ignora as distinções entre o ver e o dizer; 
opera em pontas de descodificação e de desterritorialização; 
jamais esgota suas forças (“móveis, evanescentes, difusas”), 
levando-as a entrarem em outras relações, desde que o seu 
devir não se confunde com a história das formas: “o devir, 
a mudança, a mutação concernem às forças componentes e 
não às formas compostas” (Deleuze, 1991, p. 78 segs.; Deleuze 
e Guattari, 1997, p. 227-232). 
Como máquina abstrata (imanente, singular,criativa) 
– “quase muda e cega, embora seja ela que faça falar e 
ver” (Deleuze, 1991, p. 44) –, o diagrama é multiplicidade 
espaço-temporal: real, sem ser concreto; atual, mesmo que 
não efetuado; datado, nomeado, co-extensivo a todo corpo 
social. Enquanto “causa imanente não-unificadora”, age nos 
interstícios das máquinas materiais (agenciamentos con- 
cretos, territoriais) e os abre para a microfísica, o molecular, 
o cósmico, os devires. Porém, mesmo agindo no informe, 
mantém a distinção entre variáveis de conteúdo e de 
expressão; só que, desta vez, tal distinção é recriada no 
estado de traços: “traços de conteúdo (matérias não formadas 
ou intensidades)”, que arrastam a matéria-movimento 
(não matéria morta, bruta nem homogênea); e “traços de 
expressão (funções não formais ou tensores)”, que arrastam 
a expressividade-movimento (não metalinguagem sem 
sintaxe) (Deleuze e Guattari, 1997, p. 218-220; p. 228-229). 
Altamente instável e fluido, o diagrama não cessa de 
formar matérias visíveis e de formalizar funções enunciá- 
veis, isto é, “de misturar matérias e funções de modo a 
constituir mutações”. Age desse modo não para representar 
um mundo já existente, mas para produzir novos mundos, 
novas realidades, novas verdades. É que o diagrama não “é 
sujeito da história nem a supera. Faz a história desfazendo 
as realidades e as significações anteriores, formando 
um número equivalente de pontos de emergência ou de 
criatividade, de conjunções inesperadas, de improváveis 
76
continuuns. Ele duplica a história com o devir”. Por isso, 
para os agenciamentos formais, há história; enquanto para 
os diagramas informes, há devir e mutações. – “Considerando-
se o saber como problema, pensar é ver e falar, mas pensar 
se faz no entremeio, no interstício ou na disjunção do ver e 
do falar. É, a cada vez, inventar o entrelaçamento, lançar uma 
flecha de um contra o alvo do outro, fazer brilhar um clarão 
de luz nas palavras, fazer ouvir um grito nas coisas visíveis” 
(Deleuze, 1991, p. 45; p. 124). 
Os olhos, a mão
Pensar o informe, para Valéry (2003), no livro Degas 
Dança Desenho, é ver que há “coisas – manchas, massas, 
contornos, volumes – que têm, de alguma maneira, somente 
uma existência de fato”. São coisas percebidas, mas não 
conhecidas, que não podem ser reduzidas a uma lei única; 
nem ter o todo deduzido de suas partes; tampouco ser 
reconstruídas por operações racionais. O pensamento do 
informe é dado pela distância entre intelecto e sensação, 
entre uma visão habitual e uma visão vazia: “uma obra de 
arte deveria sempre nos ensinar que não tínhamos visto o 
que vemos”. Quando vemos, por meio do intelecto, nosso 
erro reside na pressa de atingir o conceito: “a maioria das 
pessoas vê aí com muito mais freqüência com o intelecto 
do que com os olhos. Em vez de espaços coloridos, tomam 
conhecimento de conceitos”. 
As formas nascem do movimento, ou seja, “há uma 
passagem para os movimentos em que as formas se 
transformam, com a ajuda de uma simples variação do 
tempo de duração” (Valéry, 1998, p. 33-35; p. 43). Passagem 
que provém de duas ações opostas, embora complementares: 
a desconstrução e a reconstrução do olhar puro sobre 
coisas, cuja única propriedade é ocupar lugar no espaço e 
que podem ser classificadas conforme a facilidade ou a 
dificuldade que oferecem à compreensão: “Eis-me aqui, diz 
o construtor, sou o ato” (Valéry, 2003, p. 103). O informe 
nada mais é do que a ação de começar pelo começo, por 
77
um ponto de partida não-significativo da percepção, pelo 
qual apreendemos fenômenos ainda não interpretados; 
sentidos não atribuídos; valores não acrescentados ou asso- 
ciados: o Real de Grau Zero. 
No primeiro procedimento do mecanismo de ver 
o informe, acumulamos elementos de contato de uma 
determinada forma, adquirindo, ponto por ponto, o conhe- 
cimento e a unidade de um corpo regular. Nosso olhar 
(cego) esquece o nome das coisas, não se endereça a nin- 
guém, não emite pré-julgamentos. O ver se faz acompanhar 
pela ação de tocar; mesmo que esta ação não antecipe a 
sensação empírica, em função da primazia da mecânica 
cerebral que opera sobre o verificável. Porque percebemos 
o informe, acabamos construindo nossa própria visão, a 
partir dos toques realizados; porque não o compreendemos 
com o auxílio do conhecimento, vê-lo requer que nos 
demoremos na sensação que dele temos. No segundo 
procedimento, fazemos intervir a colaboração do corpo, 
do olho, da mão: “A vontade não pode atuar no espírito, 
sobre o espírito, a não ser indiretamente, por intermédio do 
corpo” (Valéry, 1998, p. 123). Se o informe é sempre visto 
pela primeira vez, por ser singular – algo único, que não 
foi visto jamais, e que não se parece com nada conhecido –, 
quanto mais o expressamos da nossa maneira, mais singular 
ele se torna. Ao encarnar a visão sobre um suporte (folha, 
areia, tela), com a mão (caneta, pincel, pena), reconstruímos, 
outra vez, nossa visão; ao passar da sensação visual e 
tracejamento mental ao trabalho manual, tornamos precisa 
nossa percepção; já que não podemos desenhar alguma 
coisa “sem uma atenção voluntária que transforme de forma 
notável” o que antes acreditávamos “perceber e conhecer bem”. 
Através do desenho, o informe parece tomar uma forma 
fixa. Descobrimos, então, que ignorávamos alguma coisa ou 
que nunca a havíamos visto antes: “Há uma imensa diferença 
entre ver uma coisa sem o lápis na mão e vê-la desenhando-a. 
Ou melhor, são duas coisas muito diferentes que vemos. 
Até mesmo o objeto mais familiar a nossos olhos torna-
se completamente diferente se procurarmos desenhá-lo” 
78
(Valéry, 2003, p. 69). Porém, desenhar o informe é sempre 
fixá-lo? Certamente não, pois mesmo o objeto próximo 
torna-se outro, se nos aplicamos a desenhá-lo: a mão também 
guia a visão, como um diálogo entre o Eu que vê e o Eu que 
desenha: “O filósofo não concebe facilmente que o artista 
passe de maneira quase indiferente da forma ao conteúdo 
e do conteúdo à forma; que lhe ocorra uma forma antes do 
sentido que dará a ela, nem que a idéia de uma forma seja 
igual para ele à idéia que requer uma forma”. É que, “talvez 
só concebamos bem o que tivermos inventado” (Valéry, 1998, 
p. 203; p. 205). – Deleuze e Guattari (1992, p. 250) afirmam: 
“A pintura é pensamento: a visão existe pelo pensamento, 
e o olho pensa”.
Esses dois procedimentos do informe são, ainda, produtos 
do acaso, por trazerem a desordem de algo desdobrado: 
vemos pela primeira vez e de uma vez por todas; suprimimos 
objetos de referência; lançamos, sobre algum suporte, não 
só o que vimos, mas também aquilo que queremos fazer ver. 
Criamos algo, em suma, constituído por nossa visão e vontade 
de expressão; não como aqueles fotógrafos que buscam a 
representação exata das coisas vistas, mas como pintores 
que desenham. A inflexão ou o retorno ao informe constitui, 
dessa maneira, uma virada em direção a um estado original 
da percepção e à expressão primitiva de traços, retrabalhados 
por séries mentais. O valor do “artista essencialmente artista” 
reside na singularidade da sua maneira de ver e de traçar. 
Como Degas diz a Valéry: o desenho não é a forma e sim “o 
modo de ver a forma”. – “Emanação de vida mais do que a 
forma” (Valéry, 2003, p. 95; p. 119; p. 122).
O método 
Com Valéry e Deleuze, dispomos um método (poiético) 
do informe, o qual, mesmo com o sacrificio de seus matizes, 
pode articular-se como segue. 
1. Educação profunda. Se as “tradições ou práticas 
escolares não nos impedissem de enxergar o que é 
79
e não reunissem os tipos de espírito segundo seus 
modos de expressão, em vez de reuni-los pelo que 
têm a expressar, uma História Única das Coisas do 
Espírito substituiria as histórias da Filosofia, da Arte, 
da Literatura e das Ciências”. Nessa história, uma 
“educação profunda” (indiferente aos mitos e crenças) 
levaria à distinção entre uma infância adivinhada 
ou prevista e aquela que vemos: “as impressões do 
olho são para nós signos, e não presençassingulares, 
anteriores a todos os arranjos, resumos, escorços, 
substituições imediatas que a educação elementar, 
nos inculcou”. – “A educação profunda consiste em 
desfazer-se da educação primeira” (Valéry, 2003, 
p. 111; 1998, p. 35).
2. Prazer e necessidade. A infância não mais pensada 
“a não ser sobre modelos” (Valéry apud Lestocart, 
2010, p. 1), diante da necessidade de expressá-la sem 
representação simbólica: ato de criação necessário, 
porque “um criador não é um ser que trabalhe 
pelo prazer”; “um criador só faz aquilo do qual tem 
absoluta necessidade” (Deleuze, 2003, p. 294); ou, 
mesmo, porque nada há de “mais admirável do 
que a passagem do arbitrário para o necessário, 
que é o ato soberano do artista, pressionado por 
uma necessidade, tão forte e tão insistente quanto 
a necessidade de fazer amor” (Valéry, 2003, p. 149). 
Extração, assim, da infância como deleite ou doxa 
tirânica de um sistema controlado, feito por palavras 
de ordem: informações ou comunicações, que dizem 
o que julgam que devemos crer; como devemos nos 
comportar; ou como fazer de conta que acreditamos 
(Deleuze e Guattari, 1995, p. 11 segs.). Primeiramente, 
consideração do indefinido “um infantil”, tal qual é: 
alguém que não possui um nome ou propriedade 
particular, incognoscível, um ser vago. A seguir, as 
questões: quem é esse anômalo? Como podemos 
ver esse outsider? Como expressá-lo? Tratamento 
80
desse indivíduo excepcional, não como forma (por 
ser figurativa), mas exclusivamente enquanto força. 
Para relevar as ambigüidades do informe, como se 
o pintássemos, exercícios de visão e de desenho: 
conservação da cor, sutileza de traços, instabilidade 
sensorial; tentando dar dele uma impressão bruta 
e existência efetiva, em vez da significação (como 
objeto), implicada na generalização pelo conceito, que 
configura um código, avalizado pelo conhecimento 
comum.
3. Máquina abstrata e agenciamentos. Infância com- 
posta por um conjunto de matérias não-formadas 
que têm graus de intensidade e “funções diagramá- 
ticas que só apresentam equações diferenciais ou, 
mais geralmente, ‘tensores’” (Deleuze e Guattari, 
1997, p. 227). Infância tratada como obra de arte, 
que “se torna uma máquina destinada a excitar e 
combinar as formações individuais” dos espíritos 
(Valéry, 1998, p. 101). Verificação de cada um dos 
agenciamentos de infância, em sua maior ou menor 
afinação com a máquina abstrata (ou informe): em 
que grau apresenta linhas sem contorno, que passam 
entre os estados de coisas? Quanto frui da potência de 
metamorfose correspondente a sua matéria-função? 
Visto que a causa imanente do informe não cessa 
“de medir as misturas, as capturas, as intercessões 
entre elementos ou segmentos das duas formas” 
[de expressão e de conteúdo] (Deleuze e Guattari, 
1997, p. 230; p. 231), procedimento de qualificação: 
análise (qualitativa e quantitativa) da máquina em 
uma tipologia de máquinas abstratas. Qual máquina 
abre os agenciamentos? Qual sobrecodifica ou 
axiomatiza a infância? 
4. Ética de pesquisa; axiologia da forma. Indagação 
sobre a distância que cada agenciamento de infância 
guarda com a máquina: “um agenciamento está tanto 
81
mais próximo da máquina abstrata viva quanto mais 
abre e multiplica as conexões, e traça um plano de 
consistência com seus quantificadores de intensidade 
e de consolidação” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 230). 
Substituição das conexões criadoras por bloqueios, 
estratos, buracos negros, linhas de morte? Efetuação, 
no agenciamento, da própria máquina? – “É como 
se houvesse coeficientes de efetuação do diagrama, 
e quanto mais alto o grau, mais o agenciamento se 
difunde nos outros, adequando-se a todo o campo 
social” (Deleuze, 1991, p. 50). Se as forças, em uma 
determinada formação histórica, somente compõem 
uma forma, ao entrarem em relação com as forças 
de-Fora (que não param de derrubar os diagramas), 
investigação das relações entre elas: qual forma-
infância resulta desse composto de forças? Essa forma 
enriquece e preserva as forças ativas do humano, tais 
como: “força de imaginar, de recordar, de conceber, 
de querer”; “a força de viver, a força de falar, a força de 
trabalhar” (Deleuze, 1991, p. 132; p. 140)? Com quais 
novas forças a infância vem entrando em relação? 
Pode daí advir uma nova Forma-Infância, que não 
seja mais a Criança nem o Infantil? 
5. Crise e incompletude. Condições para um pensamento 
que não separa “o compreender do criar” ou “o 
construir do conhecer”. Logo, prática de interpretar 
a infância como um ato de resistência; como uma 
idéia que é possível ter na vida; como consciência de 
uma operação de pensamento, na qual, “as empresas 
do conhecimento e as operações da arte são 
igualmente possíveis; as trocas felizes entre a análise 
e os atos, singularmente prováveis: pensamento 
maravilhosamente excitante” (Valéry, 1998, p. 219; 
p. 111; 2008, p. 76). Exigência de uma crise, que nos 
aparta das convicções e mesmo das incertezas, trazidas 
pela observação imediata ou pelas informações; 
das imagens de infância obssessivamente fixadas; 
82
dos registros, planos, objetivos. Em desordem – “o 
espírito tende a passar da desordem à ordem” 
(Valéry, 1934, p. 77) –, dobramento e desdobramento 
da infância, por meio de: fragmentos esparsos; 
blocos dispersos; des-associações de ideias; entre- 
laçamento de temas e de relações; imagens multi- 
dimensionais; desenhos da complexa rede de pis- 
tas que sugerem a incompletude, antes do que a 
possibilidade de conclusão. Demonstração que a 
arte de pensar a infância não segue a lógica dedutiva 
nem o reconhecimento platônico das formas; mas, 
antes, o exercício de construir uma razão, que se 
executa ao transformar, distinguir e avaliar os sis- 
temas de símbolos, nos quais a escritura é uma 
forma de pensamento. 
6. Prisma da criação e protocolo interno. Comprovando 
a máxima valéryana – “a tolice não é meu forte” 
(Valéry, 1997, p. 15): interrogação e experimentação 
contínua de ideias, operações do intelecto e 
problemas filosóficos sobre o terreno do sensível 
e do vivido. – “Não existe coisa informe, tolice 
colorida, anamorfose arbitrária que não se possa 
impor à atenção e até à admiração, por via descritiva 
ou explicativa” (Valéry, 2003, p. 114). Processo auto-
reflexivo de tensionamento da infância: conhecimento 
de mecanismos, possibilidades e limitações do 
espírito; análise, disciplinada e cuidadosa, das fontes 
do pensamento; registro de movimentos, em busca 
de algo que é problema. – “Para agir sobre o corpo, 
o espírito deve descer de grau em grau em direção 
à matéria e se espacializar” (Bergson, 1969, p. 34). 
Trabalho cotidiano do cérebro, em sua capacidade 
de manipular os estímulos; expressão de um 
vivido, intraduzível em fundamentos; registro das 
possibilidades de inspiração, que nascem do traba- 
lho; tradução de regras e transmissão das formas 
de consciência para séries cognitivas, disjunções 
83
conscientes e, sobretudo, gradações e enlaces in- 
conscientes. 
7. Morfogênese e construção. – “Quero emprestar 
do mundo (visível) apenas forças – não formas, 
mas material para fazer formas. Não a história – 
Não os Cenários – Mas o sentimento da própria 
matéria, rocha, ar, águas, matéria vegetal – e suas 
virtudes elementares. E os atos e as fases – não os 
indivíduos e sua memória” (Valéry, 1997, p. 119). 
Impulso para a forma própria, do qual deriva o que 
Valéry (1977, p. 257; 2000, p. 242) chama a “Voz” 
(conceito retirado da sonoridade de Kandinsky): 
jogo dinâmico de ressonâncias, que retraça um 
processo de transformação do Eu pelo mundo (meio 
físico ou social), através da meditação criativa e sua 
transcrição pela escritura. Formação sistemática 
das formas, pela pesquisa das transformações e 
modulações de um caos primitivo, contínuo formado 
por um descontínuo. Tipo de construção, organizada 
e lenta, feita pouco a pouco, por meio da distribuição 
e espalhamento do espírito: uma máquina, que 
inverte o sentido da operação introspectivahabitual 
e abandona a mitologia de uma filosofia lírica, 
para dar lugar ao intelecto, princípio do pensamento 
em sua forma mais elevada (nous). 
8. Olho agonizante. Aceitação que o conhecimento e 
a percepção não resultam dos órgãos sensoriais do 
corpo, mas que, ao contrário, vemos mais “coisas 
do que sabemos a respeito delas” (Valéry, 1998, 
69; p. 37). – “O olhar estranho sobre as coisas, 
esse olhar de um homem que não reconhece, que 
está fora desse mundo, olho fronteira entre o ser 
e o não-ser – pertence ao pensador. Ele é também 
um olhar de agonizante, de homem que perde o 
reconhecimento. Nisso o pensador é um agonizante, 
ou um Lázaro, facultativo. Não tão facultativo” 
84
(Valéry, 1997, p. 130). Visão contextualizada e 
instrumental do pensamento como inteligência, 
que requer consciência das variáveis, para examinar 
mudanças possíveis: o construir existe entre um 
projeto ou uma visão determinada e os materiais 
escolhidos. Além do olho, os esquemas mentais 
e a estrutura neuronal do cérebro tecem a trama 
do texto ou da imagem. Nem superfície, nem tela, 
nem página, nem quadro: só momento de matéria 
e de pensamento. O desenvolvimento virtual do 
espírito: próximo às transformações topológicas, 
aos usos das matemáticas não-lineares e à teoria 
do caos, que permitem perceber a realidade em 
outro nível. Realidade supostamente mental que 
permanece física: no “país do pensamento”, aquilo 
que é caótico, instável, flutuante deixa o espaço-
tempo segmentarizado de nossas percepções e 
entendimento. 
9. Programa de Teste: Eu Corpo-Espírito-Mundo. Para 
Valéry, Teste é, ao mesmo tempo, consciência e 
testemunha – testis, no latim, é testemunha; teste, no 
francês antigo, é uma palavra para tête, no sentido de 
cérebro, espírito –, o que produz um abismo entre 
Eu (narrador) e Eu-Teste (personagem); Teste designa 
também uma cabeça que se aplica a fazer sistema: “de 
tanto pensar, acabei acreditando que Monsieur Teste 
havia chegado a descobrir leis do espírito que nós 
ignorávamos. Com certeza devia ter dedicado anos a 
essa procura: com mais certeza, outros anos, e mais 
ainda anos, e ainda muitos anos, haviam sido usados 
para amadurecer suas invenções e transformá-
las em instintos. Encontrar não é nada. Difícil é 
acrescentar-nos o que encontramos” (Valéry, 1997, 
p. 19). A personalidade é estática, o Eu é múltiplo e 
móvel, constituindo-se a cada instante e assegurando 
a permanência da identidade e do devir: entre fases 
e limites, há também pontos de convergência e de 
85
equilíbrio, cruzamento e agrupamento variável de 
possíveis. Esse Eu Corpo-Espírito-Mundo – CEM 
para Valéry (2009a, b) – é um acúmulo de ações 
e de circunstâncias diversas, momentaneamente 
convergentes. Compõe, assim, a figura efêmera de um 
novo Eu, sujeito da escritura, igualmente estrangeiro 
em relação àquele que o precedeu. Expressivos 
e impressivos, esses Eus seguem configurações 
imprevisíveis de pensamento e de criação, definindo-
se, principalmente, em termos de energias e de 
lacunas. Antagonismo entre a personalidade, que 
se projeta em ideias paradigmáticas, e um Eu, 
que descreve e demonstra a passagem da imagina- 
ção à abstração e da criação real a puras virtualidades: 
“‘O ar’, diz [Leonardo da Vinci], ‘está cheio de 
infinitas linhas retas e radiantes, entrecruzadas 
e tecidas sem que uma ocupe jamais o curso da 
outra, e representam para cada objeto a verdadeira 
FORMA da sua razão (da sua explicação)’” (Valéry, 
1998, p. 91). Entre a inteligência e o traço (signo), 
não há diferença para o poder do espírito: o sistema 
é mais do que nunca um fazer, um fabricar, uma 
poiesis. Imagética mental, morfologia generalizada, 
sistema pensamento-criação: “é um pensamento que 
se cristaliza, se solidifica, se arquiteta, se volatiza ou 
se liquefaz; em uma palavra ‘funciona’” (Lestocart, 
2010, p. 8).
10. Forma e movimento. Uma pose (uma posição) é uma 
forma; e o movimento relaciona-se com as formas. 
Isso não quer dizer que a forma seja o contrário 
do movimento, já que ela não se encontra em 
movimento; ao contrário, uma forma pode tender ao 
movimento, adaptar-se ao movimento e, até mesmo, 
preparar o movimento; o que uma forma não pode 
é estar em movimento (Deleuze, 1981). Portanto, o 
movimento da infância não deriva de sua atualização 
numa matéria-fluxo; não é remetido “a elementos 
86
inteligíveis, Formas ou Ideias”, imóveis e eternos; 
não é uma “‘dialética’ das formas, uma síntese ideal”, 
que atribui ordem e medida à matéria; nem consiste 
na “passagem regulada de uma forma a outra”. Não 
se trata da forma-infância transcendente, atualizada 
no movimento lógico; ou do movimento físico da 
matéria-infância, que passa de uma forma à outra; 
tampouco, de relações entre formas, cuja dialética 
serve de princípio à constituição do movimento 
(Deleuze, 1994, p. 17). Tornando possível uma nova 
forma de pensar a infância, realização de uma 
análise sensível do movimento, como sucessão de 
instantâneos, feitos pela “produção e confrontação 
dos pontos singulares imanentes ao movimento”. 
Movimento não referido a “instantes privilegiados”, 
mas a “um instante qualquer”; não pensado “a 
partir de elementos formais transcendentes” (como 
as poses), mas, a partir de “elementos materiais 
imanentes” (como os cortes cinematográficos). 
Desde que as formas são imóveis (no máximo, 
consistem nos movimentos de um pensamento 
puro), não é mais a forma-infância que se transforma 
e sim a matéria de infância que, por se movimentar, 
passa de uma forma à outra. Não fazemos, então, 
pesquisa de uma infância abstraída pela metafísica, 
que torna o movimento dependente da constituição 
de uma lógica das formas e, com isso, leva o abstrato 
a explicar o concreto; fazemos pesquisa, para a qual 
uma abstração de infância nada explica, mas precisa 
ser explicada. Daqui, releva o conceito de infância 
enquanto concreto (Deleuze, 1994, p. 19; 1988, p. 83 
segs.). A duração, sendo posta no pensamento, e este 
naquela, torna-se própria ao pensamento; em função 
da duração, o pensamento distingue-se das coisas, 
por um modo de duração. O pensamento de criação 
da infância, tendo velocidade, movimento e duração 
próprios, torna-se um acontecimento de movimento 
porque pensa o movimento. 
87
A liberdade 
O impressionante, para o Método Valéry-Deleuze, 
não é que a infância seja uma forma, mas que seja “dessa 
maneira e não de outra” (Valéry, 1998, p. 153). Desde 
que o cérebro-intelecto efetua, em permanência, atos 
de autovariância, que buscam saber como funciona o 
pensamento (e não para que funciona), o Método realiza 
processos que não se separam de suas produções e nem 
de si mesmo. Concedendo que a inteligência ordena- 
dora possa não ser mais do que uma ficção (embora não 
tenhamos encontrado nada melhor do que ela), o Método 
dispõe efeitos de diferença e não representa o mundo da 
exterioridade da infância, mas toma tais efeitos como 
versões codificadas de acontecimentos. Modelizando pro- 
cessualmente o espírito, como ética do intelecto, o Método 
apresenta, ao mesmo tempo, compreensão das variações 
da vida mental e apreensão da infância (seja social, técnica, 
política, educacional, artística), produzidas pelas interre- 
lações de ação, sentido e valor, entre Corpo, Espírito e Mundo 
(o CEM valéryano). Assim, quando tratamos da infância-
informe (para a qual os clichês ou a memória não contam), 
não pensamos que ela não tem formas; mas, que suas 
formas não encontram, em nosso pensar, nada que permita 
substitui-la por “um ato de traçado ou de reconhecimento 
nítido”. Essa perspectiva informal traz a lembrança de puras 
possibilidades da infância e sinaliza que podemos modificá-
la com liberdade. 
Para tornar a infância novamente inteligível, des- 
prezamos o que sabemos; exercitamos movimentos dos 
olhos, das mãos, de nosso querer; buscamos um estado 
zero de percepção coordenado à singularidade de expressão. 
Defendemos o nosso pensar das imagens dogmáticas e 
das ideias feitas, quetornam viável e fácil a vida prática, 
mas que dispensam os espíritos de se surpreenderem. 
Voltamos à formação da significação de infância, antes que 
fosse definida; e antes que o conhecimento encontrasse 
uma representação icônica da sua realidade ontológica. 
88
Fazemos nascer, então, germes ou larvas de infância, por 
meio de incidentes de consciência; campos de possibili- 
dades e transformações potenciais; pesquisas de contra-
exemplos; hipóteses absurdas. Desse modo, a infância, que 
se constituira, a partir de nossos sentidos, ideais, “tesouros 
adquiridos”, desloca-se, desfaz-se e nos abandona “a nosso 
comércio de minutos sem valor em troca de percepções 
sem futuro, deixando atrás algum fragmento que só pode 
ter sido obtido em um tempo, ou em um mundo, ou sob 
uma pressão, ou graças a uma temperatura da alma bastante 
diversos daqueles que contêm ou que produzem seja o que 
for”. Sem que saibamos se essa singularidade é uma “obra da 
vida, da arte, do tempo ou um capricho da natureza” (Valéry, 
2008, p. 67), nasce uma forma-infância contra o saber, as 
retomadas e os juízos. 
Infância de união breve e sussurro fugaz (que sugere 
mais do que diz). Forma de vitalidade multiforme. Infância 
da exploração de acasos felizes. Forma de uma idéia pre- 
cisa. Infância inventada, composta, criada e terminada, sem 
deixar ver as marcas de sua produção (como em Whistler). 
Forma que domina nossos achados (que nunca estão à 
altura do Método). Infância no extremo da fantasia da 
Grande Arte – “a arte que exige que todas as faculdades 
de um homem sejam utilizadas nela, e cujas obras sejam 
tais que todas as faculdades de outro sejam invocadas e se 
interessem por entendê-las” (Valéry, 2003, p. 86-88; p. 149). 
Logo, infância posta a nu, pelo Método Valéry-Deleuze, 
destinada a uma Educação do Informe, que “apreende o que 
só pode ser sentido”: a intensidade, “independentemente do 
extenso ou antes da qualidade”; forma tornada disforme, 
como “objeto de uma distorção dos sentidos”, destinada a 
uma Pedagogia do Conceito; forma-infância que integra 
o “‘transcendentalismo’” de uma Pedagogia dos Sentidos 
(Deleuze, 1988, p. 270; p. 378; Deleuze e Guattari, 1992, 
p. 21). Afinal das contas: “A pedagogia é infância. Diferença 
de infância. Afirmação de infância. Sensibilidade de infância”. 
– “A pedagogia é uma utopia da terra: chegar à infância” 
(Kohan, 2009, p. 153).
89
Referências
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PARTE 2
DOCÊNCIA E PESQUISA
93
A FORMAÇÃO DO PROFESSOR-ESQUISADOR 
E A CRIAÇÃO PEDAGÓGICA4
Defendo que a docência sempre foi pesquisa; e vice- 
versa. Mesmo que os sistemas educacionais (com os seus 
motivos), durante muito tempo, tenham inventado e 
divulgado o mito que existiria, de um lado, pouquíssimos 
intelectuais da educação que pesquisam; enquanto, de outro, 
haveria uma grande massa daqueles professores que somente 
ensinam. Ou, mesmo, talvez, tenhamos sido nós próprios, 
educadores, quem, sem questionar, passamos a acreditar 
nessa divisão em castas; e que, até, tenhamos desejado 
acreditar nisso. Então, por facilidade e conforto, nem faríamos 
questão de nos considerar como pesquisadores; delegando, 
com satisfação, a outros essa função, e dividindo o mundo 
da educação assim: Eles que pesquisem, pensem, escrevam e 
publiquem; eu, apenas ensino. 
O problema é que, para o Pensamento da Diferença, 
docência sem pesquisa não existe, nunca existiu, nem 
existirá. Por um motivo bem simples: para quem educa, não 
se trata de “dar” nada (seja conselhos, aulas, conteúdos, afeto, 
etc.); mas de procurar e de encontrar (ou de não encontrar) 
(Corazza, 2002). Para pensar assim, podemos nos valer da 
reflexão de Pascal sobre a verdade: “Não me procurarias, se já 
não me tivesses encontrado”. 
Em educação, esse já-encontrado está sempre lá, 
mesmo que imperceptível, enquanto algo inventado, fabri- 
cado – como a verdade que é coisa feita. Ele consiste, justamente, 
em nossa potência, em nossa força, em nossa vontade de 
educar; naquela energia, feita de velocidades e lentidões, que 
4 Em outra versão, texto derivado de palestra desenvolvida no 6º Encontro de 
Pesquisa em Arte, realizado em Montenegro, RS, em 15/06/2011; e publicado 
na Revista da FUNDARTE, volume11, número 21, do mesmo ano (p. 13-16).
4
94
nos leva a permanecer educando, apesar de tantos fatores 
adversos e desanimadores. É essa condição que abre o canal 
de uma docência que procura; logo, que cria; e que é o canal 
da pesquisa. 
Dessa perspectiva, o pesquisador não integra uma 
elite; ele não é, necessariamente, alguém, que tenha bolsas 
financiadas por CNPq, CAPES, FAPERGS, ou outro órgão 
de apoio à pesquisa (embora também possa sê-lo). Desse 
ponto de vista, que adoto, todo professor é um pesquisador; 
possui um espírito pesquisador; entra em devires-
pesquisadores, enquanto educa. Caso não fosse assim, como 
ensinaria? O quê e como ensinaria? 
Ora, por sua natureza humana, a docência-pesquisa 
integra uma tipologia das ações que são feitas com, entre, 
acerca, junto, no encontro com humanos. Logo, ações que são, 
em menor ou maior grau, da ordem do acaso, da aventura, 
do acontecimento, da surpresa, da irrupção, da novidade, do 
caos. Ensinar (fazendo pesquisa) e pesquisar (ensinando) 
consistem, dessa maneira, em criar soluções e, ao mesmo 
tempo, enigmas. Numa frase pronunciada ou escrita; no olhar 
ou no sorriso de alguém; num raio de luz; numa hora do 
dia, alguma coisa se passa, que não existia antes; e um novo, 
um inédito se faz, mesmo que não consigamos apreendê-lo. 
É que, naquilo que se apresenta como encontrado (mas, 
que, ao contrário, é procurado; isto é, pesquisado), alguma 
outra coisa quer se realizar, qual seja: o ato de criação, próprio 
aos humanos. Criação, na qual, o professor-pesquisador 
acaba encontrando, a um só tempo, mais e menos do que 
buscava. O que ele encontra tem um valor único; porém, 
está prestes a escapar de novo; visto que, desde que o novo 
se instaura, instaura-se, também, a dimensão da sua própria 
perda. O que leva o educador a começar tudo outra vez; 
e, ainda, outra vez; outra vez.
Linhas
Porém, como chegamos até essa posição de pesquisa-
docência? Quais foram as principais linhas de forças, que 
95
nos trouxeram até aqui? Podemos indicar três linhas 
transversais, que se encontram em operação, no mínimo, 
desde o século XX, quais sejam: primeiramente, uma linha 
de força mundial; em segundo lugar, uma nova linha de 
teorização nas ciências humanas e sociais; e, em terceiro, 
uma linha que atravessa os próprios educadores.
Com a modernidade, a educação envolveu-se na for- 
mação de sujeitos, saberes e poderes, que redundaram na 
governamentalização liberal e no capitalismo global ex- 
cludente; em condições empobrecedoras da qualidade de 
vida e privatizadoras das instituições sociais e das próprias 
subjetividades; no terrorismo internacional e em seu des- 
medido combate; na soberania de um cruel mercado 
transnacional; em guerras étnicas e civis de extermínio; 
no sofrimento das massas de refugiados, que perdem suas 
crianças e velhos, por caminhos sem volta; e assim por diante. 
A partir do final dos anos 80, a agenda teórica das 
ciências humanas e sociais deixou de estar concentrada, 
exclusivamente, na categoria de classe social. Ampliou-se 
com a incorporação de novas questões, geradas pela perda de 
credibilidade nas metanarrativas fundacionais e na metafísica 
do sujeito. Com a emergência das novas identidades coletivas 
e políticas, bem como de suas lutas e conquistas (como 
negro, índio, doente, louco, criança, colonizado, GLBTs, 
etc.), acelera-se o processo de erosão de categorias até então 
inquestionadas (como ideologia, ciência, minoria, autoria, 
vanguarda, revolução, alteridade, democracia, cidadania, 
etc.); produzindo a correlata complexificação do pensamen- 
to humano e social. 
Também na área educacional, passam a ser estudadas 
e valorizadas as denominadas teorias pós-críticas, pós-
estruturalistas, pós-modernistas, formadas pelos estudos 
culturais, feministas, gays, queers, de masculinidade, eco- 
lógicos, étnicos, de mídia e publicidade, pós-colonialistas, 
pós-marxistas, de religiosidade, entre tantos outros. Essa 
teorização fornece aos educadores diversas ferramentas 
conceituais e operatórias, novas linguagens e matérias-
primas, que lhes permitem trabalhar uma diferenciada 
96
problematização do mundo contemporâneo; que se torna- 
va, também ele, diferenciado. 
Acompanhando a dinâmica do mundo e da vida, assim 
como essas teorizações humanas e sociais (dentre as quais, 
a educacional), os professores-pesquisadores reinterrogam 
os sistemas de pensamento moderno e suspeitam das suas 
verdades; questionam as formas de racionalidade e suas 
promessas de liberdade, igualdade e fraternidade; duvidam 
das naturalizações de raça, sexo, geração; estranham o que 
era familiar e problematizam o que não era problemático; 
desconstroem sentidos, referentes e privilégios; identificam 
os dinamismos espaços-temporais do que era tido como 
determinado e solidamente perpetuado; reconhecem o difí- 
cil equilíbrio entre técnicas de coerção e processos de 
construção e modificação dos Eus; ressignificam experiências 
de relações de poder, jogos e cálculos estratégicos, pro- 
cedimentos de totalização, técnicas e intervenções de in- 
dividualização, tecnologias de governo do Estado, dos ou- 
tros e de nós mesmos. 
Inimigo
Os educadores encontram-se, hoje, na confluência 
dessas três difíceis linhas e de suas complexas ferramentas 
conceituais e empíricas. Insatisfeitos com o já-dito, o já-
feito, o já-sentido, o já-pensado, o já-praticado da docência 
e das pesquisas modernas, e com os seus efeitos culturais 
e sociais, realizam um diagnóstico antenado e hiper crítico 
dos tempos, espaços, sujeitos e relações da contempora- 
neidade. 
Só que, ao processarem a pesquisa-ensino, que pro- 
cura-e-cria, eles têm, antes de tudo, de enfrentar o pior 
inimigo: o seu inimigo íntimo. Inimigo que é formado 
pela resistente e encravada tradição da pedagogia moderna, 
expressa nas “receitas” de ajuda e nos “manuais” de auto-
ajuda. São regras e normas, compostas pelos ensinamentos 
acumulados, no campo educacional, sobre, por exemplo, 
“como dar uma aula” (Corazza, 1996); qual a melhor forma 
97
de organizar e desenvolver um currículo; quais os mais 
eficazes métodos e técnicas de bem ensinar; qual é a didática 
certa do ensino de...; e tantos outros conselhos, orientações 
e imperativos sobre conteúdo, metodologia, planejamento, 
aluno, identidade docente, etc. 
Todas as verdades que são promovidas e divulgadas 
por aqueles que exercem o poder de fazer crer que eles, 
sim, sabem o que é ensinar e como ensinar; como dar uma 
boa aula; como trabalhar com o currículo; como usar os 
métodos de ensino; como fazer da educação um processo de 
conscientização e de libertação dos oprimidos; como, como, 
como (Corazza, 2000). 
O problema é que os educadores dos tempos de agora 
não conseguem mais acreditar nem ensinar essas antigas e 
ultrapassadas ficções. Para interceptar o seu fluxo de rela- 
ções de poder-saber e de modos de subjetivação (que são, 
de fato, modos de sujeição), a docência-pesquisa-que-cria 
torna-se um exercício, cada vez mais consciente, de formas 
possíveis de modificar a mesmice da formação e da ação 
docentes, diante da repetição quase secular da prática pe- 
dagógica; transformando-se em trampolim para um outro 
nível de educação; e colocando em funcionamento uma 
outra máquina de pensar e criar, de estudar e escrever, de 
ensinar e aprender, de ser professor e professora. 
Cria
Assim, para educar, pesquisamos, procurando e criando, 
para ensinar; ensinamos, pesquisando, para procurar e, 
também, para criar. Mas, o que é que procuramos? O ato 
de criação (Deleuze, 1988; 2003; 2006; Deleuze e Guattari, 
1992), que faz da pesquisa-docência e da vida de cada 
educador uma obra de arte. Aquele que cria é aquele que 
adota um ponto de vista criador. Aquele que raspa, es- 
cova, faxina os clichês do senso comum e das formas 
legitimadas. Aquele que enfrenta o desafio de explicar suas 
criações, sem apelar para uma instância criadora, superior e 
extrínseca a ele e a seu fazer. Aquele que distinguecriação 
98
de criatividade; considerando a criatividade (isto é, a criação 
de soluções originais para problemas já dados), apenas, 
como uma parte do processo de criação; o qual é mais 
amplo e envolve a invenção dos próprios problemas. Aquele 
educador que sabe que a criação é sempre um processo 
de auto-criação, de criação de si; ou seja, um diferenciar, 
diferenciando-se.
Daí decorre uma docência-pesquisa que reconhece que 
só funciona, isto é, torna-se ativa e afirmativa, se, além de 
criar uma nova sensibilidade, também lida com as problemá- 
ticas contemporâneas; transformando-se numa educação 
nunca definitivamente fixada, jamais esgotada, intempes- 
tiva (no sentido de Nietzsche), a favor de um tempo por vir. 
Porém, nada disso acontecerá se a educação que fizermos 
for feita do mesmo jeito que nos educaram; se for uma 
educação igual àquela que todos fazem, fincada na tradição, 
na opinião ou no dogma; se for uma educação que achamos 
que dominamos, que temos certeza que sabemos fazer, que 
é só seguir as diretrizes X ou Y, o livro didático, a voz da 
experiência, ou aquilo que a faculdade nos ensinou. Em 
outras palavras, definitivamente, hoje, educar, por meio de 
certezas e de verdades verdadeiramente verdadeiras, não 
pode mais ser considerado educar. 
Para realizar uma educação que esteja sintonizada com 
a contemporaneidade, o mais importante é nos interrogar 
se tudo o que dissemos, até então, sobre pedagogia, currículo, 
escola, aluno, professor é tudo o que podemos dizer; se tudo 
o que vimos, até agora, é, de fato, tudo o que podemos ver; 
se tudo o que pensamos é tudo o que podemos pensar; se 
tudo o que sentimos é tudo o que podemos sentir; e assim 
por diante. 
Coragem
O ensino-pesquisa de nosso presente rejeita tanto 
as lógicas quanto as práticas daquele outro ensino, feito 
sem-pesquisa, e daquela outra pesquisa, feita sem-ensino. 
O que afirma é a falta de verdade absoluta desses modos 
99
de ensinar e de pesquisar, indagando: como, em que con- 
dições, as verdades pedagógicas, transmitidas pela docên- 
cia-sem-pesquisa e pela pesquisa-sem-docência, chegaram 
a ser verdadeiras? Quais relações de poder e formas 
de saber possibilitaram a sua construção? Quais seus 
efeitos sobre os educadores que assujeitaram? Como pro- 
fessores-pesquisadores, o que podemos saber, o que po- 
demos fazer, e o que devemos esperar da educação do sé- 
culo XXI? 
É não é que essa pesquisa-ensino não produza, ela também, 
saberes e verdades; só que estes são parciais, localizados e 
datados. Saberes e verdades que, por mais eficazes que sejam, 
não deixam de ser simples experimentações; configurando, 
muito mais, um problema do que soluções – as quais, se 
obtidas, prosseguem sendo questões e problemáticas. 
O ensino-pesquisa é, assim, uma invenção; não com- 
provação do que já foi sistematizado; nem aplicação ou 
mediação de conhecimentos produzidos em outros domínios. 
Sua principal contribuição é ser uma sementeira de vivências 
e sentidos imprevistos, que implode o sistema habitual 
e consensual da educação. Implosão, que cria condições, 
tanto para professores quanto alunos, de capturar as forças 
dos acontecimentos educacionais, em suas modulações 
assignificantes, vitalidades assubjetivas, realidades ininter- 
pretadas, devires inorgânicos e imperceptíveis.
Essa pesquisa-ensino exige um grau razoável de to- 
lerância à frustração, representada pelas incertezas geradas; 
pelo abandono de qualquer pretensão à universalização dos 
seus resultados; pela capacidade de suportar tudo o que, 
apesar dos esforços, ainda não-faz-sentido, ou será sempre 
inseguro. Requerendo insubordinação e transgressão, von- 
tade e coragem de optar por uma nova ética de trabalhar e 
de viver a educação, extrai outros modos de olhar e outras 
palavras para ver e dizer o mundo e nós próprios. Isso 
porque quem faz o ensino-pesquisa busca a transformação 
deste tempo, desta cultura e desta sociedade, em algumas 
coisas outras, que não as que já são; a par de transformar-se 
em alguém que não aquele que já é. 
100
Desafios
Resumindo, para concluir, afirmo que, para nós, 
educadores, dentre os desafios que, no presente, são 
lançados, o mais urgente parece ser uma artistagem de 
criação e inovação. Penso que é por meio da pesquisa-
docência, artistadora de variações múltiplas, que a educação 
pode produzir ondas e espirais; compor linhas de vida e 
devires reais; promover fugas ativas e desterritorializações 
afirmativas. 
A educação feita por aqueles que nos antecederam, em 
outros tempos e espaços, constitui a efetiva e necessária 
condição para elaborar e executar nossa própria docência-
pesquisa; e, ao mesmo tempo, o privilegiado campo de 
experimentação, para que possamos exercitar outras 
possibilidades educacionais. 
Dentre essas possibilidades, ao fissurar certezas e 
verdades herdadas, a nossa pesquisa-ensino potencializa 
os fluxos desejantes, que se insinuam entre os blocos 
epistêmicos e sensíveis. Eminentemente crítica, maquina 
suas composições, sob o signo da heterogênese contra a 
homogênese, atribuindo primado à fluidez criadora, em 
detrimento das normas formais. Embora suscetível a regimes 
de ações estáveis, é um sistema aberto, distante do equilíbrio 
e do apaziguamento; e, mesmo quando estabiliza suas ações, 
bifurca-se e ingressa em novos regimes de instabilidade.
Executamos, por seu intermédio, uma autopoiese, 
enquanto processo de produção do novo, criando codificações 
(formas de expressão e formas de conteúdo), em campos 
de comutabilidade e diferencialidades. Circunscrevendo os 
limites de uma educação, que tem como matéria principal 
a vida, valorizamos a multiplicidade e funcionamos como 
resistência e luta contra a mesmidade, a mediocridade e as 
injustiças. 
O ensino-pesquisa que fazemos é, assim, impuro, pois 
mescla e cruza o que passou, o que nos afeta, e os mundos 
possíveis por vir. Extrai acontecimentos das coisas, dos 
corpos, dos estados de coisas: inventando personagens e 
101
estabelecendo ligações entre eles e os acontecimentos. Rejeita 
as modelizações confinantes, que negam o novo e requerem, 
apenas, regularidades, médias e métricas: priorizando a 
poética, o processual e a reversibilidade. Captura e libera as 
forças inéditas e vitais, que agem sob as formas: trabalhando 
as potências que estas carregam e carreiam. Associa e desfaz 
disciplinas, em devires de mutação, favorecendo as culturas 
do dissenso. Reinventa novas significações, posições de 
indivíduos e de grupos, traçando linhas, que dobram saberes, 
fazeres, sentires, uns sobre os outros. 
Com atos de ruptura, nossa pesquisa-docência instala-se 
em regiões de ser e de pensamento, que portam problemas 
que, talvez, não consigamos ainda formular; por isso, 
pode revelar aspectos de seres que estavam ocultos e abrir 
circuitos inéditos de pensamento-ação. Os seus critérios de 
avaliação são o vital, o interessante e o notável. Critérios 
que verificam a maior ou menor liberação de nossas forças 
vitais (onde quer que estejam represadas), trabalhando para 
que reencontrem a sua virtualidade, via desestratificação 
das camadas sedimentadas de saber, poder e subjetividade. 
Assim, a finalidade precípua da docência-pesquisa, que 
nos tocou criar, neste século XXI, é tornar-nos dignos dos 
acontecimentos que nos constituíram como educadores; e, 
ainda, daqueles acontecimentos que nós mesmos, apesar de 
tudo, estamos conseguindo produzir.
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ensinar e aprender. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p. 89-103.
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102
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Rio de Janeiro: Graal, 1988. 
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_____. A ilha deserta e outros textos. (Trad. Luiz Orlandi, coord.) São Paulo: 
Iluminuras, 2006. 
_____; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Júnior; Alberto 
Alonso Muñoz.) Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. 
103
DISCURSO BIOGRAFEMÁTICO: 
Vidarbos5
O discurso, o método, a biografemática 
O Discurso do Método Biografemático considera Método 
distante de doutrina e de processo técnico; de sistema, como 
aspecto de conteúdo, e do próprio método, como aspecto 
formal; distante, ainda, de leis científicas e da natureza 
reta da faculdade de conhecer superior (Deleuze, 1994); do 
modelo matemático, das regras da lógica formal, de garantias 
analíticas e sintéticas sobre o conhecimento da Verdade. 
Método é entendido, aqui, como meta + hodós (= por 
essa via): “direção definível e regularmente seguida numa 
operação do espírito” (Lalande, 1999, p. 679). Direção que se 
transforma em procedimento de pesquisa, não determinado 
a priori, nem independentemente de sua aplicação, como 
um programa de operações, iniciado só após a formulação 
de regras. Método realizado em operações efetivas, enquanto 
percurso de conhecimento estabelecido “como criação e 
não como descoberta”, desde que “o percurso é conhecer; 
seu método, a criação, o ensaio”. E, caso produza algum 
saber, este será apenas “uma perspectiva entre outras e não, 
ao estilo metafísico, o conhecimento único e eterno sobre 
a realidade” (Monteiro e Biato, 2008, p. 270; p. 267). Logo, 
trata-se de Método não ordenado, repetível e autocorrigível. 
Guiado conceitualmente por Roland Barthes (1979; 
1982; 1984; 1988; 1989a,b; 1991; 2003a,b; 2005a,b; 2008), 
5 Uma versão ampliada deste texto, sob o título “Introdução ao método 
biografemático”, foi apresentada no evento Vidas do fora: habitantes do 
silêncio e publicada no livro do mesmo nome, organizado por Tania Mara 
Galli Fonseca e Luciano Bedin da Costa, pela Editora da UFRGS, em Porto 
Alegre, 2010 (p. 85-107). 
5
104
o Método tem por objeto a própria linguagem, sendo uma 
ficção que segue o método da linguagem e luta para baldar 
todo discurso que pega, procurando mantê-lo sem, no 
entanto, impô-lo. Logo, sua principal tarefa é obter meios 
próprios para desprender e aligeirar o poder discursivo 
das formas, através das quais é proposto. 
O Discurso do Método é apreciado por quem, alguma 
vez, já se interessara por vida (biografia) e por obra (bi- 
bliografia); só que, em vez de vida e obra, tomadas em 
separado, ou uma como derivada ou causa da outra, trata 
de Vidarbo. Para pôr vida na obra, implica atos de mutação, 
que se engajam no disfarce e no mascaramento. Ao 
despersonalizar o sujeito que vive e escreve, realiza escrita 
de vida. Cria o narrador da obra, ao fragmentar o autor 
da vida. Inventa o autor da vida, ao pulverizar o narrador 
da obra. Escritura de vida, risca, inscreve, traça e ocupa “o 
terreno do tempo por uma energia de inscrição, inteira- 
mente perversa” (Barthes, 2004c, p. 287; 2005b, p. 156).
Ao encontrar “o real da ficção” ou, “quem sabe, o real 
da realidade” (Nolasco, 2004, p. 14), a escritura encontra 
o prazer do texto, que transmigra para a vida-obra. Prazer 
que, ao realizar a escrita de outrem, como mundo possível 
(Deleuze, 1998), reelabora fragmentos de cotidianidade, 
considerando que todo fragmento (acabado no momento em 
que é escrito) é dotado não de uma “grandeza da ruína ou 
da promessa”, mas da “grandeza do silêncio que acompanha 
todo acabamento” (Barthes, 2004c, p. 282-283). Na “efetuação 
de realidade” (Ribeiro, 1988, p. 21), o índice para o prazer 
expressa-se no viver com um autor, embora a vida seja “feita 
a golpes de pequenas solidões”. Passando para a cotidiani- 
dade fragmentos de inteligível, não narramos o que vemos 
ou o que sentimos, nem agimos como psicólogos ou 
psicanalistas, que se serviriam “de uma linguagem feliz 
para enumerar os atributos originais de sua visão”; mas, 
como escritores, criando uma metonímia desejante: “es- 
crita contagiosa que faz recair sobre o leitor o desejo mesmo 
com que formou as coisas” (Barthes, 1984, p. 11; 2004c, 
p. 292). 
105
Os textos biografemáticos emitem, assim, ordens 
fantasísticas (fantasmáticas), desde que a idéia de autor 
voltou à cena com algum valor. Mas não se trata de um 
autor chapado em documentos de identidade; herói das 
biografias; o grande narcisista das autobiografias; mortos 
famosos; mestres imortais; ícones de sedentos ideais-do-eu; 
tampouco trata-se de biografias, que funcionam como auto-
ajuda, modelos, ou janelas indiscretas para o voyeurismo. 
O autor, que salta dos textos e entra na vida do leitor, não 
tem unidade, mas é plural de encantos, lugar de por- 
menores sutis, fonte de vivos clarões, canto descontínuo. 
Definitivamente, não se trata de uma pessoa civil ou 
moral; mas de um corpo impessoal que lança um eu, cuja 
individualidade é dada pela “mão corporal que escreve”. 
A substância que separa as pessoas da narração não é de 
identidade, somente de anterioridade: “ele é cada vez aquele 
que vai escrever eu; eu é cada vez aquele que, começando 
a escrever, vai no entanto entrar na pré-criatura que lhe 
deu origem” (Barthes, 1982, p. 23-24).
O Método adota de Nietzsche (1995, p. 50) o processa- 
mento de uma “casuística do egoísmo”, por intermédio 
de uma “Vida Metódica” (Barthes, 2005b, p. 175; p. 201; p. 
205), encontrando-se, outra vez, com o sujeito, embora 
desfeito e deformado, para readequar os planos de vida. 
Realiza intersecções entre vida e escrita, não fazendo a 
obra parecer-se com a vida, mas a escrita conduzir a vida. 
Quanto mais fragmenta escrita e vida, mais cada fragmento 
se torna homogêneo: “Um fragmento de escritura é sempre 
uma essência de escritura” (Barthes, 2004c, p. 282). Arquite- 
tando uma tipologia dos eus que escrevem, Barthes (2005b, 
p. 173-174) ensina a distinguir entre a persona (pessoa 
cotidiana); o scriptor (imagem social); o auctor (fiador do 
que escreve); e o scribens (que vive escrevendo). 
Ao fragmentar e expor a digressão – “ou, para dizê-lo 
por uma palavra preciosamente ambígua: a excursão” –, o 
Método dissemina traços de textos da cultura: “pertinentes 
e por isso mesmo descontínuos”. Através de fórmulas 
irreconhecíveis, apaga a falsa eflorescência sociológica, 
106
histórica e subjetiva de determinações, estruturas, visões, 
projeções dos textos. Ostenta textos nômades, desligados 
dos sentidos recebidos, que buscam recobri-los. Recusa-
se a inferir autor da obra e obra do autor. Descreve a sua 
própria população, posicionado no mundo do autor, sem 
fontes exteriores. Abala os sentidos do mundo, fazendo 
uma interrogação indireta, que sofre abstenção de resposta 
única. Afirma e substitui respostas que passam, enquanto as 
interrogações permanecem, já que não pára de responder ao 
escrito, fora de qualquer resposta (Barthes, 1989a, p. 43-44; 
2003a, p. 330; Barthes, 2008, p. VII-XI). 
Dessa maneira, o Discurso afirma: a biografemática 
é filosofia, ciência e arte, como “um jogo de imagens, de 
espelhos” daquilo que é “colhido numa narrativa, num texto” 
(Barthes, 2003a, p. 212); quem realiza a biografemática é um 
biografólogo; o biografólogo coleta e cria biografemas; o 
biografema produzido pela biografemática consiste em um 
traço distintivo, elemento quase-unitário, que finge que re- 
vela; o biografema, a biografemática e o biografólogo são 
grandes mentirosos ontológicos, que emitem raiosradio- 
ativos; sem documentos, não há biografemática, nenhum 
biografema, nada de biografólogos; biografemas monta- 
dos, em um bastidor biografemático, resultam numa bio- 
diagramação (Pignatari, 1996); a biodiagramação dá visão 
do conjunto de uma-vida (Deleuze, 2007); uma-vida não é 
feita com “o ‘vivido’ (o ‘vivido’ é banal e é justamente ele que 
o escritor deve combater)”, nem, tampouco, com “a razão 
(categoria geral adotada sob diversos artifícios por todas as 
literaturas fáceis)” (Barthes, 2004c, p. 290); por realizar “a 
utopia de uma linguagem particular”, a substância de uma-
vida é constituída por espaços vazios, flutuantes, lacunas, 
incidentes, punctuns; assim, uma-vida não é veraz, da mesma 
maneira que a biografemática não é imaginária: trata-se 
da biografemática veraz de uma-vida imaginária. 
Por tudo isso, o Discurso do Método Biografemático 
fica e não fica na vizinhança de um manual, de uma 
quimera, do anarquismo (Feyerabend, 1989); não apela à 
heurística, “que visaria a produzir deciframentos e apresen- 
107
tar resultados” (Barthes, 1989a, p. 42); e terá atingido as 
fimbrias da perfeição, se fornecer energia vital àquele 
pensador que o experimentar. 
A fantasia, a leitura e a escritura 
1. Fantasia De origem
Assim como nas origens de uma pesquisa, de um 
ensino e de uma cultura, também a biografemática parte da 
fantasia, tomando-a como um “Guia Iniciático”, para executar 
um “engendramento de formas”, que é engendramento de 
diferenças (Barthes, 1989a, p. 44; 2003a, p. 8; p. 273; 2005a, 
p. 22).
Mesmo que a fantasia seja apenas uma virtualidade, sua 
realização, por meio de atos biografemáticos, propicia prazer, 
por criar um objeto fantasístico, que “não quer ser assumido 
por uma metalinguagem (científica, histórica, sociológica)” 
(Barthes, 2005a, p. 117; p. 23; p. 29; 2003d, p. 284). Dotada 
de originalidade, a biografemática considera que, ao menos 
no que tange à discursividade, costumamos estudar o que 
desejamos ou tememos (Barthes, 2003d, p. 430). Há, assim, 
como no romance, uma generosidade da biografemática, que 
nos leva a amar o mundo, abarcá-lo e abraçá-lo, enquanto 
uma prática “para lutar contra a secura do coração, a acídia”. 
Uma pulsão amorosa colore a biografemática, porque 
esta é fantasiada como ato de amor, não na direção do “Amor 
apaixonado= falar de si como apaixonado = lírico”; mas 
do “Amor-Agápe: falar dos outros que se ama”, “dizer aqueles 
que se ama”. Pela biografemática, ama-se e escreve-se aqueles 
que conhecemos, fazendo-lhes justiça, testemunhando “por 
eles, (no sentido religioso)”, imortalizando-os (Barthes, 
2005a, p. 28). 
Escrevendo aqueles que amamos, importa considerar 
a biografemática não sob a ótica dialética, “o contrário de 
seu contrário racional, lógico”, nem “uma frustração vivida 
como avesso”. Se os guias forem fantasias negativas, não se 
tratará da oposição entre “uma imagem e uma realidade”; 
mas da existência de “duas imagens fantasmáticas”, ou de 
108
roteiros imaginários, desde que a fantasia é um “= enredo 
breve, enquadrado”, “absolutamente positivo, que encena o 
positivo do desejo, que só conhece positivos”. Um roteiro, 
como “vislumbre narrativo do desejo”, que “se entrevê, muito 
recortado, muito iluminado, mas imediatamente esvaecido”. 
Roteiro, pelo qual voltam os desejos, “que se buscam em 
nós, por vezes durante uma vida toda, e freqüentemente 
só se cristalizam através de uma palavra”. Palavra-roteiro 
que “induz da fantasia à sua exploração”, “por diferentes 
bocados de saber = a pesquisa”, sendo a fantasia “um filme 
com tomadas fixas”, explorada “como uma mina a céu aberto” 
(Barthes, 2005b, p. 117; p. 177; 2003a, p. 9-10; p. 12; p. 35).
Para haver biografemática, “é preciso haver cenário, 
portanto lugar”, e a fantasia funciona como “projetor incerto”, 
que varre, mesmo que de modo entrecortado, “fragmentos 
de mundo, de ciência, de história – de experiências” e recorta 
“a cena iluminada onde o desejo se instala e deixa na sombra 
os dois lados da cena” (Barthes, 2003a, p. 14; p. 17; p. 35).
Para movimentar-se, a fantasia se liga “a uma imagem 
grosseira, codificada”, como o Poema, o Romance, a Biogra- 
fia, etc. Energia, ela “põe em marcha”; mas, aquilo que, a 
seguir, é por ela produzido “não depende mais do Código”. 
Ao lutar e se chocar com o Real – que “é o Tempo (a 
Duração) como potência de atraso, de freagem, e portanto 
de modificação, de infidelidade” –, a fantasia perde-se, aban- 
dona a sua “rigidez”, “ingenuidade” e “virtualidade” (Barthes, 
2005a, p. 277; p. 22; p. 25; p. 117), para atingir o ineditismo.
Já se vê como o querer-escrever (scripturire) da fantasia 
relaciona o texto biografemático com a verdade: principia 
“não pelo falso, mas quando se misturam, sem prevenir, 
o verdadeiro e o falso”, vindos “da ordem do Desejo e do 
Imaginário”. Compõe uma “tela pintada de ilusões, de lo- 
gros, de coisas inventadas, de ‘falsidades’: tela brilhante, 
colorida”. Um “véu da Maia”: “poikilos, estampado, variado, 
mosqueado, sarapintado, coberto de pinturas, de quadros, 
vestimenta bordada, complicada, complexa; raiz pingo 
[pintar], bordar com fios diversos, tatuar”; “um heterogêneo, 
um heterológico de Verdadeiro e de Falso” (Barthes, ib., p. 224).
109
2. Leitura por cima Do ombro
A leitura, requerida pelo Método Biografemático, não 
consiste em um gesto parasita, mas trata-se de um trabalho, 
como “ato lexiológico, lexiográfico”; desde que escrevemos 
aquilo que lemos e “cujo método é topológico”, deslocando 
“sistemas cujo percurso não pára no texto nem no ‘eu’” 
(Barthes, 1992, p. 44). 
Ocorrendo em “três campos de diferenças”, a leitura 
apresenta três ordens: ordem individual (corporal), no qual 
os textos são lidos – “em picada”, isto é, sobrevoando a 
página e recolhendo “um sintagma saboroso, ou chocante, 
ou problemático, enfim, “digno de nota”; “em prise”: 
apreendendo, com delicadeza, uma página inteira do texto 
e saboreando-a; “em rolo”: desenrolando o texto, do início 
ao fim, e avançando, sem ligar para prazer ou tédio; “em 
aplainador”: lendo, em detalhe, cada palavra, sem economizar 
tempo; “em céu aberto”: vendo o texto, como “um objeto 
distante, pretexto para uma reflexão”, recolocando-o na 
“paisagem histórica”; ordem sociológica de leitura, na qual 
não se distingue o texto de sua acolhida crítica, como se 
esta o compusesse; ordem histórica, na qual se lê como 
“leitores que não vivem no mesmo tempo de leitura (mesmo 
se biograficamente são contemporâneos)”, correndo o risco 
da “pulverização na História” (Barthes, 1982, p. 69-72). 
Há, também, três tipos de relações para uma tipologia 
dos prazeres da leitura biografemática: fetichista, que “tira 
prazer das palavras” (“prática oral e sonora oferecida à pulsão”) 
e necessita de “vasta cultura lingüística”; de desgaste, em que 
o leitor é puxado para frente, por uma força, “mais ou menos 
disfarçada, da ordem do suspense” – “quero surpreender, não 
agüento esperar: pura imagem do gozo”; aventura de escritura, 
cuja leitura conduz o desejo de escrever e que não deseja 
“escrever como o autor cuja leitura nos agrada”, mas “apenas 
o desejo que o escritor teve de escrever” – “desejamos o ame-
me que está em toda escritura” (Barthes, 2004c, p. 38-40). 
Liberando-nos de uma falsa idéia objetiva, para incluir, 
na leitura de um texto, “o conhecimento que podemos ter 
110
de seu autor”, a leitura defende a posição de quem age o 
texto é o leitor. Há, para um mesmo texto, “uma multidão 
de leitores”, que não são apenas indivíduos diversos, mas, 
em cada corpo que lê, “ritmos diferentes de inteligência, 
conforme o dia, conforme a página”. 
Decididamente, essa leitura acontece “por cima do ombro 
daquele que escreve, como se nós escrevêssemos ao mesmo 
tempo que ele”. Ao realizá-la, levantamos “a cabeça o tempo 
todo para devanear ou refletir” e reencontrar, “no nível do 
corpo, e não do da consciência”, como aquilo foi possível 
de ser escrito. A cabeça levantada implica nos colocar“na 
produção, não no produto” e ler, “senão voluptuosamente, pelo 
menos ‘apetitosamente’”, “fora de qualquer responsabilidade 
crítica”. Encontramos, assim, um “prazer de leitura livre, 
feliz, guloso”, como escrever, isto é, re-escrever o texto lido, 
às vezes, “melhor e mais adiante do que o seu autor o fez” 
(Barthes, 1982, p. 72; 2004a, p. 268-269; 1984, p. 84).
3. Escritura nebulosa De teia 
Já a escritura, feita com o Método Biografemático, arma 
sua teia interpretante (aleatória, arbitrária, inconsciente) 
para ler-escrever uma Vidarbo, tal como a aranha às moscas 
(Pignatari, 1996). 
Para tanto, escapa aos riscos e codificações da tradição 
biográfica, tais como: estagnação dos vínculos entre vida 
e obra, através de conexões lineares, causais, axiológicas, 
psicologistas, historicistas; fetichização da descendência, 
do fatalismo, da extraordinariedade, da verdade, da trans- 
parência, do tempo (Vilas Boas, 2008); execução de biogra- 
fias bisbilhoteiras, moralistas, institucionais, logocêntricas, 
mecanicistas, apocalípticas, militantes, aliciantes (Noronha, 
2001; Lejeune, 1986); impregnação de pobreza intelectual, 
por meio de postulados teleológicos “do sentido da exis- 
tência, da ilusão de coerência e da construção ex post de 
uma necessidade dos acontecimentos”; criação de ilusões, 
retrospectivamente coerentes, pela “coagulação das ima- 
gens”, “condensação do legendário em ‘traços’, ‘anedotas’, 
111
‘idiotias’” (Boyer-Weinmann, 2005, p. 56; p. 52); trabalho 
em prol da “ilusão biográfica”, considerando uma-vida 
como “um todo, um conjunto coerente e orientado”, a ser 
apreendido enquanto “expressão unitária de uma ‘intenção’ 
subjetiva e objetiva, de um projeto”; preocupação “de tornar 
razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retros- 
pectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância” a 
uma-vida, pela descrição de relações inteligíveis, “como a do 
efeito à causa eficiente ou final, entre os estados sucessivos, 
assim constituídos em etapas de um desenvolvimento 
necessário” (Bourdieu, 1996, p. 184); operação por meio 
de “modelos que associam uma cronologia ordenada, uma 
personalidade coerente e estável, ações sem inércia e deci- 
sões sem incertezas” (Levi, 1989, p. 169).
A nebulosa dessa escritura é cultivada através da se- 
leção, recolhimento e revalorização de resíduos difusos, 
excertos, cortes, hiatos, esgarçamentos miúdos, imagens 
inacabadas, fluidos pulsantes, que povoam o que é (e o 
que não é) mostrado nas formas da anotação do presente, 
em sua proliferação densa: documentos pessoais, diá-rios, 
depoimentos, entrevistas, memórias, confissões, corres- 
pondência, álbuns, cadernetas, fotografias, auto-retratos, 
testamentos, hieróglifos, etc. (Barthes, 2005a; Chaia, 1996). 
A escritura biografemática efetiva, assim, uma “anamnese 
factícia”, como “recordação errática, caótica”, atribuída ao 
autor que amamos; ou seja, mistura gozo e esforço e nos 
faz “reencontrar, sem o ampliar nem o fazer vibrar, uma 
tenuidade de lembrança”. Anameses que, quanto mais 
forem foscas, insignificantes, isentas de sentido, impedindo 
qualquer indução, mais chances terão de escapar ao ima- 
ginário (Barthes, 2003d, p. 126; 2004c, p. 288; Martin-Achard, 
2007).
Nas vidas-obras, interessa “os buracos que elas compor- 
tam, as lacunas”, as “catalepsias ou uma espécie de so- 
nambulismo”, pois é neles que o movimento se processa. 
Agora, como fazer esses movimentos? Talvez, responde 
Deleuze (1992, p. 172), “não se mexendo demais, não fa- 
lando demais” e residindo “onde não há mais memória”; 
112
ou, responde Barthes (1979, p. 14), optando pelos “espaços 
vazios”, que contém alguns pormenores, gostos, inflexões, 
os quais deambulam “fora de qualquer destino” e contagiam, 
“como átomos voluptuosos”, “algum corpo futuro, destinado 
à mesma dispersão”.
Escritura que, para substituir as crônicas das identi- 
dades pela “biotópica de um Eu disperso e volátil” (Boyer-
Weinmann, 2005, p. 52), segue o princípio da vacilação 
do tempo: abre as comportas de abalo da cronologia, sub- 
traindo “o tempo rememorado à falsa permanência da 
biografia”; desorganiza, não o inteligível do tempo, mas 
“a lógica ilusória da biografia, na medida em que segue 
tradicionalmente a ordem puramente matemática dos anos”; 
preserva a biografia, visto que “numerosos elementos da 
vida pessoal são conservados”, embora deformados (Barthes, 
2004c, p. 354). 
Por isso, a escritura biografemática desvia-se de: um 
enunciador: “o eu que escreve o texto nunca é mais do que 
um eu de papel”; pois quem enuncia põe “em cena – ou em 
escritura – um ‘eu’ (o Narrador)”, não mais “exatamente um 
‘eu’ (sujeito e objeto da autobiografia tradicional)”, civil e 
patronímico, senão “um eu de escritura, cujas ligações com 
o ‘eu’ civil são incertas, deslocadas”; narrativa, já que a 
escritura consiste em um desejo de escrever “uma vida 
desorientada”, enquanto a biografemática “não é a de uma 
vida”; vida mesma, pois a escritura faz “biografia simbólica” 
ou “história simbólica da vida”, que requer a escrita não de 
um curriculum vitae, mas de “uma constelação de circuns- 
tâncias e de figuras” (Barthes, 2004c, p. 72; p. 354-356). 
A natureza dessa escritura é feita com lembranças 
fragmentárias de linguagem que pululam. O fragmento 
consiste em elevada condensação, “não de pensamento, ou 
de sabedoria, ou de verdade (como na Máxima), mas de 
música”, como “a idéia musical de um ciclo”, intermezzo. 
Coletamos, portanto: traços biográficos, que são aqueles que, 
em uma-vida, nos “encantam tanto quanto certas fotografias” 
– “a Fotografia tem com a História a mesma relação que 
o biografema com a biografia”; punctuns, que consistem 
113
em detalhes, objetos parciais vistos, registrados; pontos de 
referência, “chamadas de atualidade, sintagmas prontos, 
pequenas ‘condensações de saber’”, “lufadas de legibilidade, 
breves coágulos surgidos do discurso dos outros”. Nessas 
coletas, a memória social surge, vagueia, não fica no lugar, 
eclipsa-se. Produzimos, então, uma “nova língua na língua, 
um grund, uma tela móvel, eletrificada” (Barthes, 2003d, 
p. 109-110; 1984, p. 51). 
A unidade dessas experimentações de escritura é o 
Incidente – “menos contundente que o acidente, mas mais 
inquietante” –: “minitextos, recados, haicais, anotações, jogos 
de sentido, tudo o que cai, como uma folha, etc.” (Barthes, 
2003d, p. 167). Incidente feito com aquilo que tomba, sem 
choque, num movimento infinito, mas também que sobre- 
vive: “pequenas cenas, estilhaços de romance”, de linguagem, 
“nem esboços, nem anotações, nem materiais, nem exer- 
cícios”. Com esse “contínuo descontínuo do fluxo de neve”, 
promovemos, amorosamente, aquilo que é tomado por um 
pormenor insignificante. Tomamos pormenores precisos, 
descontínuos irregulares, interrompidos, intermitentes 
(Barthes, 2004c, p. 282-284; p. 372) – frutos do Satori (Zen), 
da Kairós (céticos), da Epifania (Joyce), do Momento de 
Verdade (Proust), do Instante Pleno (Diderot) – para captar 
“um fragmento de presente”, ao vivo, “o cume do particular”, 
uma “picada essencial”, “com-presença”, “ligação instantânea”, 
que indica “retorno da letra”. 
Cada incidente de uma-vida pode “dar azo ou a um 
comentário (uma interpretação), ou a uma fabulação que 
lhe dá ou lhe imagina um antes e um depois narrativos”. 
Ao ligar e desenvolver os incidentes, tecemos “uma narra- 
tiva, ainda que frouxa”, com os seguintes traços estilísticos: 
aventuras infinitesimais; incongruência mínima; rápido 
deslocamento na apreensão do cotidiano; detalhe que 
toca; acontecimento minúsculo; impressão breve; diálogos 
descontínuos e rápidos; dobra sutil no tecido dos dias; 
modo menor de enunciações não argumentativas, mas 
toques, diante dos acontecimentos fortes (midiáticos, 
políticos); indiferenciação temporal, que abole a noção 
114
de duração e introduz uma temporalidade cíclica, ritual; 
sobredeterminação espacial, que elimina a distância entre 
enunciação e enunciado, criandoefeito de simultaneidade 
entre incidente e anotação; forma de escrita do presente 
absoluto, em notação grau zero, necessária para escrever: 
“faz da linguagem a frágil salvação de certo sofrimento” 
(Barthes, 1988; 2004c, p. 350; p. 289; p. 66; p. 283).
Contrária às histórias de vida, narrativas autobiográficas, 
totalidade, fidelidade, autocontrole (Barthes, 1982, p. 78), 
a escritura biografemática persegue “a arte do retrato em 
pintura”, executando “retratos mentais, conceituais”, por 
meios diferentes, nos quais a semelhança é produzida e não 
“um meio para reproduzir” – “aí nos contentaríamos em 
redizer o que o filósofo disse” (Deleuze, 1992, p. 169). Para 
realizar esses retratos em movimento, a escritura vivifica 
corpos, introduzindo neles a “dimensão carnavalesca”, 
qual seja: usa antes o imaginário do que os fatos; incide 
o desconhecido, suspeito, lacunar, ausente, sub-reptício, 
negado, interditado; surpreende estados intervalares; evi- 
dencia nuances contra formas de pensamento pronto, que 
repetem “falsas evidências” (Pierre, 2006, p. 48); trabalha 
com enigmas latentes, entre os pólos da vida e da obra; 
desvincula e transfere componentes de zonas e instâncias de 
pertencimento. 
Através de “erotografia”, “autobiografema”, “autobio- 
graficção” e “cartografemática”, a escritura faz uma “anti- 
biografia”, na qual o biografematizado é visto como uma 
“estrutura estelar repleta de desvãos que escondem as faces 
perdidas e na qual os signos equivalentes estão soltos para 
pontilharem outros rostos” (Noronha, 2001, p. 10; p. 11). 
Em diálogo escritural de montagem e composição, recolhe 
pedaços, feito molas propulsoras, refeitas no ato ficcional. 
Desenha máscaras trocadas. Identifica ardis romanescos, que 
jazem ocultos nas franjas do vivido. Constrói uma imagem 
cambiante de pulsões desejantes: “falo de mim como se 
estivesse um pouco morto, preso numa leve bruma de ênfase 
paranóica” (Barthes, 1979; 1984; 1988; Costa, 2008; Eiró, 
2008; Barthes, 2003d).
115
Escritura sensual, a biografemática exercita ausência 
de palavras e força “a passagem dos objetos sensuais dentro 
do discurso”, de modo que “a substância sensual das coisas” 
leva a linguagem a dispor alguns efeitos físicos, lembranças 
táteis, voluptuosas, saborosas; integra passagens, que são 
sempre legíveis (“se você quiser ser lido escreva de maneira 
sensual”), tais como: em Chautebriand, “as laranjeiras da Vida 
de Rancé”; em Bataille, “o prato de leite da História do olho”; 
em Hegel, “a plumagem da coruja” de Minerva, a qual, “só no 
início do crepúsculo”, “alça seu vôo”; em Marx, “a silhueta do 
tecelão e do entalhador” (Barthes, 1982, p. 62-63; Feil, 2009).
Escrevendo uma “rapsódia de vida”, sem respeitar o todo 
e reduzindo o universo a “sistemas de instantes”, essa escri- 
tura compõe uma “arte original, como é a da costureira: peças, 
pedaços são submetidos a cruzamentos, a arranjos, a ajustes”; 
e cujos “fragmentos intelectuais ou narrativos” formam 
“uma seqüência que se subtrai à lei ancestral da Narrativa 
ou do Raciocínio”, produzindo “a terceira forma, nem Ensaio, 
nem Romance” (Barthes, 2004c, p. 353-355).
Vidarbos
Vida-obra. Obravida. Vid’obra. Obra d’vida. Obr’ida. 
Vida-obra. Que diabo. Vidarbo. Viver como quem escreve. 
Escrever vivendo. Viver escrevendo. Reviver. Fabulação de 
gostos, des-gostos, descobertas, sensibilidade, estados d’alma, 
imagens, poses, figuras, músicas, afectos. Como é, para mim, 
o que não fala, sem alegar a si mesmo, condenado ao exílio 
da generalidade. Transliteração: mudar o livro é mudar a 
vida. Cenografia espaço-temporal. Nos passeios de uma-vida, 
aparição de personagens. Na retina, ações que podem ser 
tocada. Aromas ávidos no ar. Pensares apanhados. Quereres 
guardados. Sentires desovados. Na magia de ler, fascínio 
por limites. Voz do sujeito-de-escritura: escrever o que não 
pôde dizer. Grãos de sentidos, na pele do eu-de-papel, após 
travessia do deserto. Cruel desafio à interpretação. Fundos 
de silêncio. Habitantes dos interstícios. Sem economia de 
bem e mal. Não-lucro. Luxo de escritura livre. Pulsão por 
116
des-formas. Radicalização na preparação. Munição impa- 
ciente. Anarquicamente debochada. Atravessar, navegar, 
saltar: e pronto. Corda bamba, sem sombrinha, embriagado. 
Pronto. Cair. Se for o caso. Pronto. Avaliar valor dos largados. 
Simulacro romanesco anamnésico. Paixão por perturbação, 
motilidade, leveza. Sem pessoa. Caleidoscópio insólito. 
Estranho dissonante. Bolas de emoção. Roçadela. Fricção. 
Como se vê, a biografemática inunda vidas. Minha. Tua. 
Nossa. Por isso, o Discurso Biografemático põe “no topo 
aqueles capazes da risada de ouro”: “rir de maneira nova 
e sobre-humana – e à custa de todas as coisas sérias”. É 
porque os “deuses gostam de gracejos: parece que mesmo 
em cerimônias religiosas não deixam de rir” (Nietzsche, 
1992, p. 195). 
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119
O DOCENTE DA DIFERENÇA: 
identidade e singularidade6
Tratado como ser, indivíduo, pré-individual, impes- 
soal, tomado em segmentos de devir, que são processos de 
desejo, o docente é pensado a partir da Filosofia da Diferença 
em Educação. Extrator de partículas, que não pertencem 
mais a como vive, pensa, escreve, pesquisa, mas são as mais 
próximas daquilo que está em vias de tornar-se, e através das 
quais ele se torna diferente do que é, o docente da diferença 
atravessa os limiares do sujeito em que se tornou, das 
formas que adquiriu, das funções que executa. Entretanto, 
não se identifica, não imita, não estabelece relações formais 
e molares com algo ou alguém, mas estuda, aprende, ensina, 
compõe, canta, lê, apenas com o objetivo de desencadear 
devires. Ressalta o seu próprio potencial de variação con- 
tínua e critica, assim, o conceito Docente e a forma docente. 
Desenvolve traços fugidios do seu ensinartistar, por meio 
de XX devires. Então, indaga: – Como criar uma artistagem 
docente? Sabe que engendrar, encontrar e seguir alguma 
resposta de tristeza ou de alegria, de juventude ou de ve- 
lhice, de ânimo ou de cansaço, de vida ou de morte, é o que 
configura a covardia ou a coragem de cada docente artis- 
tador (Corazza, 2006). 
Ser
Tradicionalmente, a palavra docente nos reporta a um 
indivíduo constituído, já pronto: atomon, individuum, não- 
6 Este texto foi publicado, pela primeira vez, em 2009, Online, na Revista 
PALAVORAZ da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ, campus 
Duque de Caxias, com a editoria de Henrique Sobreira; e em 2010, no livro 
Educação: articulações, confrontos e controvérsias, organizado por Marcelo de 
A. Pereira, Rosa M. Filipozzi e Sandro de C. Pitano, pela Editora da UFPel, em 
Pelotas, RS (p. 75-94).
6
120
dividido. Um indivíduo do tipo cartesiano, que não ape- 
nas tem sua alma separada do corpo, mas é dotado de 
uma alma homogênea, cuja unidade impede qualquer dis- 
tanciamento do Eu atual. Para tanto, supomos que existe 
um certo princípio de individuação, por meio do qual o 
indivíduo é individuado e individuável, e que ainda ex- 
plica, produz ou conduz a sua realidade. A partir desse 
indivíduo dado, que tem primazia sobre qualquer outro, 
buscamos, então, remontar às condições da sua existência. 
Dessa maneira, enfocamos somente aquilo que constitui a 
individualidade de um ser já individuado, por acreditar que 
o indivíduo segue-se à individuação e por colocar o prin- 
cípio de individuação antes, além e acima da própria ope- 
ração de individuar. Espalhamos, assim, a individuação por 
toda parte, tornando-a co-extensiva ao ser, e a transforma- 
mos não somente no primeiro momento do ser fora do 
conceito, mas em todo o ser. 
Para o Pensamento da Diferença (Simondon, 2003; 
Deleuze, 2006), primordial é a própria operação de indi- 
viduação e, nesta, a zona obscura (insuficientemente tra- 
tada pela tradição), na qual o indivíduo pronto é ligado ao 
princípio de individuação (princípio considerado efeito 
daquela operação). Assim, para esse Pensamento, o indi- 
víduo acabado não é solução, mas o problema mais in- 
teressante a ser pesquisado e explicado. Um indivíduo que 
só pode ser contemporâneo da sua individuação e esta 
contemporânea do princípio de individuação. Ou seja, um 
indivíduo que não apenas é resultado, mas meio (milieu) 
de individuação; bem como a sua individuação não é o mo- 
mento primeiro, nem abriga todo o ser: “não há substâncias, 
mas processos de individuação, não há sujeitos, mas pro- 
cessos de subjetivação” (Lévy, 2003, p. 28).
Se, antes, considerávamos o docente, principalmente, 
como ser concreto, em sua completude, ou como substância, 
matéria, forma, é porque supúnhamos o ser unicamente 
como em estado de equilíbrio estável. A este equilíbrio (que 
excluía o devir, devido a seu baixo nível energético), a física 
quântica e a mecânica ondulatória acrescentaram a noção 
121
de energia potencial de um sistema metaestável. Sistema 
supersaturado, situado acima do nível da unidade, carregado 
de tensões pré-individuais, que não é estável nem instável, 
tampouco se encontra em movimento ou em repouso. 
Sistema, no qual existe a disparação (disparation) de duas 
ordens heterogêneas de grandeza ou de realidade, sem que 
haja comunicação interativa entre elas. É a individuação 
que estabelece comunicação entre essas ordens díspares, 
resolvendo o problema pela atualização: que “o indivíduo 
mediatiza quando vem a ser” (Simondon, 2003, p. 101). 
Podemos, então, pensar o pré-individual, como ondaou 
corpúsculo, cuja individuação não esgota a imensa (e tensa) 
carga de potenciais, que compõem a condição prévia de 
sua individuação. 
Nesse caso, o indivíduo-docente, mesmo constituído, 
carrega consigo, em regime de metaestabilidade, a realidade 
pré-individual que o constitui, e que permanecerá sempre 
associada a ele, como fonte de estados futuros de onde 
sairão novas individuações. Decorre daí a distinção entre 
singularidade e individualidade do docente, já que o sis- 
tema metaestável concebe o pré-individual como provido 
de singularidades, as quais correspondem à existência e 
à repartição de potenciais do ser. Singular sem ser in- 
dividual, eis o estado desse ser, tomado como um campo 
de singularidades pré-individuais, e que, acima de tudo, 
é diferença e disparidade. Singularidade de um ser, que 
não designa um estado provisório do nosso conhecimen- 
to, nem um conceito subjetivo indeterminado, mas, 
simplesmente, um momento do ser: o primeiro momento 
pré-individual, suposto “por todos os outros estados, sejam 
eles de unificação, de integração, de tensão de oposição, 
de resolução de oposições... etc.” (Deleuze, 2003, p. 118).
Sendo, dessa maneira, organização de uma resolução 
para um sistema objetivamente problemático (não nega- 
tivo), a individuação surge como o advento de um novo 
momento do ser, agora, fasado. O próprio processo de 
individuação é que cria as fases desse ser, as quais consistem 
no desenvolvimento de algumas das suas partes. Logo, do 
122
docente pré-individual, pode-se afirmar que é o ser, no 
qual não existem fases; ao passo que, após a individuação, 
ele é o ser fasado, acoplado a si mesmo; enquanto o seu 
devir “é o ser em cujo seio se efetua uma individuação” 
(Simondon, 2003, p. 101). 
Essa concepção conecta a individuação e o devir do 
ser; faz o pré-individual permanecer associado ao indivíduo; 
e mantém o indivíduo como fonte de estados metaestáveis 
futuros. Portanto, ontologicamente, o ser-docente nunca 
é uno, já que, por excelência, é pré-individual, mais do que 
um superposto e simultâneo a si próprio. Mesmo indivi- 
duado, ele ainda é múltiplo, porque defasado e polifasado, 
encontrando-se numa fase do devir que o conduzirá a novas 
operações, num processo de individuação permanente: 
“uma seqüência de acessos de individuação, avançando de 
metaestabilidade em metaestabilidade” (Simondon, 2003, 
p. 107). 
Indivíduo
Falar assim da individuação do docente implica abrir- 
se ao problema que atraiu Avicena (filósofo árabe do sé- 
culo XI), qual seja: “O que faz com que uma substância ou 
natureza comum a vários se torne este ou aquele indivíduo” 
(Orlandi, 2003, p. 90)? Interessa-nos, por isso, formular as 
seguintes questões: – O que faz de um docente um docente, 
em vez de um engenheiro, um advogado, uma psicóloga, 
uma nutricionista? – O que faz de um docente este docente? 
A ênfase não reside mais na indagação – O que é...?, a qual 
nos encaminha a perguntar sobre a essência do ser, mas 
radica no este..., o que configura uma inflexão sobre a sua 
existência (Antonello, 2002).
Há, aqui, uma importante distinção entre o problema 
da individuação e o da especificação (denominada, gene- 
ricamente, diferenciação): a especificação não enfatiza o 
individuar, mas o definir, desde que não queremos saber 
de um docente individual, mas do conceito Docente. Uma 
operação é, pois, conhecer e definir o Docente, isto é, deter- 
123
minar ou apreender a sua essência, por meio do conceito: 
o que se pensa que o Docente é. Outra operação, ao con- 
trário, é individuar o docente (para a qual já temos disponível 
o que o Docente é, pela via do conceito) e determinar a 
sua posição e existência. 
Segue-se que a definição do Docente é uma operação 
do tipo conceitual, enquanto a individuação do docente 
parece, à primeira vista, ser uma operação exclusivamente 
perceptiva. Assim, quando queremos individuar um do- 
cente, não perguntamos – O que o Docente é? E sim: – Onde 
o docente está, neste momento? Operamos, dessa maneira, 
um reconhecimento no ambiente circundante e, dentre 
todos os que exercem a docência, selecionamos aquele 
docente que se distingue dos outros, por meio de um 
conjunto de traços que o diferenciam.
Se, portanto, o intelecto define e a percepção indi- 
vidua, podemos dizer (com filosofemas tradicionais) que o 
docente é definido por algo essencial e individuado por algo 
empírico e acidental. Entre definir o Docente e individuar 
o docente existe uma relação análoga àquela que há entre 
demonstrar e mostrar, de modo que, se podemos mostrar 
um docente não temos necessidade de demonstrar o que é 
o Docente; ou, ainda, se temos um docente mostrado não 
precisamos demonstrar que ele é o Docente, pois temos 
necessidade de demonstrar unicamente aquilo que não 
podemos mostrar. O indivíduo-docente, por conseguinte, 
não é definível, mas pode ser apenas indicado, mostrado; 
enquanto, ao contrário, o Docente, como conceito, não é 
individuável, já que não tem nem um onde nem um quando. 
É, assim, a própria individualidade de um docente que 
o subtrai de toda possível definição. Interrogar o princípio 
da sua individuação é, nesse caso, querer saber: – O que 
faz um docente deixar de ser somente definível e passar a 
ser descrevível? Ou então: – O que transforma um docente 
definível em um docente indicável? E ainda: – O que transforma 
o Docente (enquanto universal, pensável e definível, por via 
conceitual) neste docente, localizável na realidade, por via 
empírica? 
124
Ora, acontece que a individualidade de um docente 
consiste naquilo que o determina em seu ser, de modo 
que ele é este docente e não outro. As determinações que 
individualizam um docente não dizem respeito à essência, 
mas ao ser e, portanto, não são determinações reais, 
mas ônticas. Um docente, em sua individualidade, não se 
iguala a nenhum outro e, primariamente, consiste no ser, 
enquanto não é outro. Falar em individualidade nos leva 
a considerar não somente este docente, mas mais de um 
docente: ao menos dois. Assim, mesmo que, no problema 
da individuação, encontremos uma diferença numérica 
entre indivíduos, se essa diferença for concebida tão-somente 
como real, revela-se insuficiente, por permitir o ato de 
substituição indiferente dos indivíduos, o qual é totalmente 
antagônico ao processo de individuação. 
Unidade, identidade, igualdade 
Desde que ressaltamos o movimento que vai do pré-
individual ao indivíduo, ficam abaladas tanto a unidade 
do ser (síntese, sujeito), como característica do ser 
individuado, quanto a identidade (“que autoriza o uso do 
princípio do terceiro excluído”) do indivíduo, já que este 
é apenas uma fase do ser, posterior à operação de indivi- 
duação. Como escreve Simondon (2003, p. 110): o ser “não 
possui uma unidade de identidade, que é a do estado es- 
tável em que nenhuma transformação é possível”, e sim 
“uma unidade transdutora”: isto é, “ele pode defasar-se 
em relação a si próprio, ultrapassar a si próprio de um lado 
e de outro de seu centro”. O indivíduo-docente integra, 
nessa perspectiva, um regime de além-unidade e de além-
identidade. 
Por outro lado, podemos pensar que a individuali- 
dade diz respeito mais a um problema de identidade do 
que de igualdade. Se, por exemplo, um docente afasta-se 
de uma determinada escola, a Direção pode contratar outro 
docente igual àquele que se afastou: com formação na 
mesma área ou disciplina, o mesmo nível de especialização, 
125
a mesma carga horária de trabalho, e assim por diante. 
Mas o que a Direção não pode é reaver o mesmo docente. 
Se, no entanto, a Direção considera que está recebendo um 
docente igual àquele que se afastou, exprime, com essa ati- 
tude, uma absoluta indiferença em relação à individuali- 
dade do primeiro docente. Se o interesse da Direção é 
somente reencontrar as mesmas características e funções 
do primeiro, e ela aceita o outro docente, igual àquele 
afastado, é porque não o queria, enquanto tal.
É por isso que o espaçoe o tempo funcionam como 
princípios de individuação de todos os entes, dentre os 
quais os docentes. Entretanto, quanto a isso, vale inda- 
gar: – Para determinar a individualidade de um docente, 
é suficiente a determinação espaço-temporal, sobre a qual 
se funda a distinção numérica entre os docentes, isto é, a 
sua multiplicidade? – Podemos usar o princípio de indivi- 
duação, pela via de algo determinado, como a quantidade, o 
espaço e o tempo? – Podemos partir do docente individuado 
para buscar as determinações acidentais que o tornam tal 
qual é? 
Mesmo que a concepção de individualidade, como 
multiplicidade numérica, seja atribuída à matéria, temos 
que o conceito não é exclusivamente material, nem a sua 
unidade é formal. Como conceito, Docente é um universal 
propriamente dito, uma unidade de tipo coletivo, divisível, 
capaz de dar lugar a uma multiplicidade de instâncias, que 
recaem todas sob o mesmo conceito (embora essas instâncias 
não sejam ulteriormente divisíveis). Assim, o Docente – seja 
como conceito genérico ou específico – é ilocalizável em 
alguma instância, ou seja, capaz de transmitir as próprias 
determinações a um número infinito de indivíduos. Isso 
porque o universal, enquanto forma única e idêntica de 
uma multiplicidade, caracteriza-se por sua capacidade de 
dividir-se em partes, de modo a não romper a própria 
unidade: Paulo, André, Sérgio, Flávia e Juliana são divisões 
do conceito Docente e, mesmo assim, ainda são docentes. 
O conceito é dividido pelos indivíduos que o inte- 
gram, mas apenas logicamente. A multiplicidade dos indi- 
126
víduos necessita tanto da unidade lógico-formal (não 
material), quanto da identidade do conceito (o universal 
predicável de cada um dos seres). Porém, essa divisão nu- 
mérica é entendida como uma divisão real, substancial 
(não lógico-formal), e o indivíduo é concebido não como 
um universal, já que não pode predicar-se de nada. Logo, 
a dimensão sensível não é fator individuante, mas o 
princípio definidor do individual em relação ao universal 
e do perceptível em relação ao pensável. Admitindo-se, 
por exemplo, que André diferencia-se do conceito Do- 
cente por ser sensível, não podemos evitar a conclusão 
que o ser-docente material é precisamente aquilo que 
reúne André e Sérgio, isto é, aquilo que os torna não con- 
ceitos mas indivíduos: exatamente indivíduos (generica- 
mente falando), não propriamente os indivíduos chamados 
Sérgio e André.
Dessa maneira, embora individuação, multiplicidade e 
distinção numérica estejam conectadas (Aristóteles, 1954, 
Livro V, IX, p. 108-109; Livro XII, p. 242-262), se voltamos 
ao exemplo do docente que se afasta da escola e é substi- 
tuído por outro, constatamos que a perfeita igualdade 
entre os dois docentes e a distinção entre eles, por meio 
de determinações espaços-temporais, consiste justamente 
naquilo que os torna intercambiáveis entre si; ou, em outras 
palavras, naquilo que torna irrelevante a individualidade 
de cada um. Assim, se reinvidicamos que são apenas o 
onde e o quando que sustentam a individualidade de cada 
docente, encontramos a sua existência como sendo nada 
mais do que um acidente ou a mera posição da essência, 
o que leva tal individualidade a se perder. Ou seja: se dois 
docentes são perfeitamente iguais (símiles, indistinguíveis), 
não há nenhuma razão intrínseca para que sejam dois. 
E se não há qualquer distinção entre diferentes indivíduos, 
por serem totalmente indiscerníveis entre si, cai por terra 
o próprio princípio de individuação. Por isso, os indivíduos-
docentes não diferem apenas por determinações extrín- 
secas, mas, entre eles, há diferenças que lhes são atribuídas 
por qualidades intrínsecas.
127
Virtual
São as qualidades intrínsecas de cada indivíduo que 
fazem dele um ser eminentemente virtual, como argu- 
menta Duns Scott (Antonello, 2002). Virtual, não enquanto 
um ser formado por possibilidades, à espera de um ato 
externo, que o transforme em docente, mas um ser do- 
tado de essências plenamente determinadas, embora 
ainda não explicitadas em alguma forma de ser. Um do- 
cente, assim, não é este docente (um ente particular); nem 
é o conjunto dos docentes (uma multiplicidade de entes 
particulares); tampouco pode ser confundido com o conceito 
Docente (um universal). Isso porque um docente não pode 
predicar-se, do mesmo modo pelo qual um universal se 
predica de um singular, ou seja: podemos dizer que Paulo 
é um docente, mas não podemos dizer que Paulo é toda a 
Docência.
Nesse sentido, o docente carrega sempre, em si, al- 
guma forma de indeterminação originária e possui uma 
pura potencialidade de atualização. Logo, nenhuma 
determinação pode individuar plenamente um docente, já 
que a individuação (visto ser abertura e virtualidade) não 
exige nem a universalidade nem a singularidade, sendo 
indiferente quer ao uno quer a muitos. Se, inclusive, a 
individuação produzisse um composto docente, formado 
de substância mais acidentes, o indivíduo, assim produzido, 
seria um docente ontologicamente diminuído, na medida em 
que se distinguiria dos outros docentes apenas em função 
dos acidentes. A sua individualidade não diria respeito 
à essência, mas a uma limitação da mesma; enquanto a 
sua dignidade ontológica estaria subsumida pela forma 
inteligível do indivíduo, já que este nada mais seria do que 
uma particularização acidental da essência. Para a ontogê- 
nese da individuação, ao contrário, a diferença pura do 
docente não é a posse ou a privação de uma determinação, 
uma vez que ela é essencial, ou seja: uma organização di- 
versa, um projeto diverso, uma estruturação diversa do 
indivíduo em sua inteireza.
128
Em devir 
Talvez, neste momento, se entenda melhor porque a 
individuação é apreendida não como modelo do ser, mas 
designando o caráter de devir do ser: aquilo pelo qual o 
indivíduo devém enquanto ser. Talvez se veja melhor que 
o devir não é um quadro, no qual o ser existe, pois, mais 
do que uma dimensão, o devir é o próprio ser: um modo 
de resolução de uma incompatibilidade inicial, rica em 
potenciais. Talvez, agora, se perceba mais nitidamente 
que a individuação, como devir, corresponde ao surgi- 
mento de fases no ser, das quais o indivíduo é apenas uma 
das fases. Talvez se intua melhor porque a individuação 
não é uma conseqüência, postada ao lado do devir ou dele 
isolada, mas a própria operação de individuação ao ser 
efetuada. Talvez se identifique melhor o ser, em cujo seio se 
efetua a individuação, pela capacidade de desdobrar-se em 
relação a si mesmo, de resolver defasando-se, e de carregar, 
em si, uma dimensão pré-individual, para a qual nenhuma 
fase existe. Talvez se compreenda melhor porque o indiví- 
duo é contemporâneo da sua própria individuação e esta 
contemporânea do princípio de individuação. Talvez, neste 
ponto, também fique mais consistente a idéia de individuação 
como situável em relação ao ser, num movimento que 
passa do pré-individual ao indivíduo, sendo este não apenas 
resultado, mas meio de individuação. 
Com essas inflexões, consegue-se pensar o primado 
atribuído ao indivíduo ainda não constituído, em vez do 
privilégio costumeiramente dado ao indivíduo já constituí- 
do. Consegue-se aquilatar a necessidade de tomar a opera- 
ção individuadora como algo a ser explicado e não como 
a tranqüila fonte que fornece explicações. Consegue-se pas- 
sar, mais lentamente, em primeiro lugar, pelo princípio de 
individuação; a seguir, pela operação de individuação; e, por 
fim, não chegar tão rapidamente à realidade última que é o 
indivíduo. Consegue-se armazenar dedicação para conhecer 
mais o indivíduo por meio da individuação do que esta a 
partir daquele. Consegue-se fabular o indivíduo como uma 
129
realidade relativa, por implicar uma anterior realidade 
pré-individual. Consegue-se imaginar que o indivíduo não 
existe completamente só, mesmo após a individuação, já 
que esta não esgota os seus potenciais pré-individuais. 
Consegue-se sentir que aquilo quea individuação faz apa- 
recer não é apenas o indivíduo, mas o par indivíduo-meio.
Desse modo, pensar a imanência entre a individuação 
e o indivíduo; conceitualizar a individuação como operação 
complexa ativada no indivíduo; e tomar o indivíduo como 
meio de individuação, que implica uma realidade pré-
individual, erige, na Educação da Diferença, o campo de um 
empirismo transcendental (Deleuze, 1988, p. 236-237; 1998, 
p. 69, p. 125 ss.). Empirismo, no qual as faculdades são levadas 
a exercícios transcendentais, não decalcados sobre formas 
empíricas ordinárias determinadas pelo senso comum 
(Deleuze, 1994), nem sobre a relação entre um sujeito e 
um objeto (Deleuze, 2001). Empirismo, no qual as relações 
são exteriores a seus termos, não há submissão dos dados 
da experiência às representações a priori, nem aplicação 
dessas representações à experiência (Deleuze, 1994); mas 
como um domínio composto pela natureza intensiva das 
singularidades nômades, impessoais e pré-individuais que o 
povoam (Machado, 1990; Heuser, 2008). 
Esse empirismo de potência superior revela um mundo 
de exterioridade, em estreita relação com o Fora, de ma- 
neira que o docente pode ultrapassar os dados imediatos e a 
cristalização das singularidades, realizada segundo percursos 
determinados. Em conseqüência, modifica as relações com 
os docentes encontrados em nosso cotidiano e, também, 
conosco mesmos; pois, desde uma “posição de ser”, que se 
desenvolve “no interior de uma nova individuação”, toda 
relação “não surge entre dois termos que já seriam indivíduos”, 
mas consiste num “aspecto da ressonância interna de um 
sistema de individuação” (Simondon, 2003, p. 106). 
Preferimos, assim, no cotidiano, indagar pelo sistema 
metaestável, no qual estamos tomados durante o processo 
de individuação; descobrir suas inusitadas dimensões; 
explorar suas problemáticas; agitar seus díspares; detectar 
130
suas dissimetrias; disparar o em-si da diferença pura. 
Pois, como indivíduos-docentes, nos concebemos dotados 
de um precário e metamórfico revestimento de individu- 
ação, produzido no campo de resolução da realidade-atual 
(em que as singularidades pré-individuais, ainda não ca-
nalizadas, distribuem-se nomadicamente), e que trans- 
borda para o rico campo problemático da realidade-virtual 
(Deleuze, 1998; Orlandi, 2003).
Impessoal 
Porque pensamos os processos de individuação (que 
se desdobram e excedem os indivíduos, por serem des- 
proporcionais à unidade), entramos numa realidade que 
não podia ser percebida, quando éramos guiados pelos 
conceitos de indivíduo (desde sempre constituído) e de 
sua identidade. A partir daí, nosso encontro é feito com 
um impessoal, designado por um modo de individuação 
que formula o princípio individuador de sujeitos, objetos 
e indivíduos constituídos (Deleuze, 2002). Ficamos diante 
desse ser que, desde as operações pré-individuais que o cons- 
tituem, passando pelo indivíduo como uma de suas fases, 
segue em direção à superação, enquanto realidade dada. 
É assim que, finalmente, o docente pode ser pensado da 
maneira que privilegia os acontecimentos, em detrimento 
das subjetividades e das objetividades. Maneira, para a qual 
não existem objetividades e subjetividades, a não ser aque- 
las operadas por acontecimentos (como fluxos de criação 
pré-individual), e que reporta tanto os indivíduos a aconte- 
cimentos quanto os acontecimentos a indivíduos-docentes. 
Ensinartistar em XX devires
1. Devir-enxame. O devir-docente começa pelo devir-
enxame de partículas.
2. Devir-atmosfera. Neste devir, o importante não está 
no sujeito, como ponto ou centro, mas naquilo 
131
que se passa entre os docentes e seus corpos: um 
acontecimento impessoal. 
3. Devir-olho. Possuindo um olho que não pára nos 
indivíduos, esse devir vai aos acontecimentos puros 
e aos outros devires, que funcionam por meio de 
potências afectivas (com poder de afectar e de ser 
afectadas), nas fases de um processo de individuação. 
Devir-potência, que descobre sob “as aparentes 
pessoas a potência de um impessoal, que de modo 
algum é uma generalidade, mas uma singularidade 
no mais alto grau: um homem, uma mulher, um 
animal” (Deleuze, 1997, p. 13). Arte é o nome desse 
reino de individuações sem sujeito, que é percorrido 
por: uma docente-hora-do-dia; um docente-pontos e 
outra docente-brilho compondo telas; um docente-
ritornelo que assobia um tralalá (Costa, 2006); um 
docente-rua e outra docente-nua; um docente-olhar 
e outra docente-haicai; um docente-infantil e outra 
docente-anil; um docente-poema e outra docente-
romance; um docente-puma e outra docente-pluma; 
e assim por diante. 
4. Devir-traços. Não basta afirmar que o docente é 
impessoal, como oposto ou ao lado das individuações 
subjetivas, já que é cada elemento seu (mesmo o 
rosto, sentimentos, cores, desejos) que se torna 
singularidade impessoal. De um docente em devir-
impessoal, no qual acontece a emergência de traços 
circunstanciais (que são de outra ordem que os 
processos pessoais), elimina-se todo recurso ao 
geral (Docente), pois a sua singularidade não é da 
ordem do indivíduo, mas dos acontecimentos e das 
atmosferas (Deleuze, 1997; 1998). 
5. Devir-viagem. A artistagem docente expressa-se 
pela exploração de meios, realização de trajetos e 
de viagens, numa dimensão extensional. Dimensão, 
132
para a qual, não são suficientes os traços singu- 
lares dos implicados no trajeto, mas, ainda, a 
singularidade dos meios refletida naquele docente 
que o percorre: materiais, ruídos, acontecimentos. 
Em devir-trajetória, o docente dá partida a uma 
operação de individuação, que se desdobra e se 
individualiza em personagem e meio, e os conduz por 
uma via impessoal. Como, por exemplo, no trajeto 
da fabricação de um currículo, um docente depende 
da cartografia feita com mapas, caminhos, planos 
de viagem, encontros e muito pouco (quase nada) 
de memória. Assim como os “Desprendimentos: 
aprendizagens” de Octavio Paz (1976, p. 170): “Viajar 
não é morrer um pouco e sim exercitar-se na arte de 
despedir-se para, assim, já leves, aprender a chegar, 
aprender a receber”.
6. Devir-gradiente. Definido, ontologicamente, pelas 
populações de afectos e de intensidades de que o 
docente é capaz, para esse devir, não há subjetividade, 
pessoalidade nem humanidade, pois é vivido num 
plano de vida pré-subjetivo: como grau de potência 
ou diferença intensiva.
7. Devir-turbilhão. Trata-se do movimento de docentes, 
em efervescência do caos, que efetuam o trânsito das 
intensidades mais radicais.
8. Devir-bebê. Seguindo o último texto de Deleuze 
(2002), A imanência: uma vida..., o docente é dotado 
de uma vida indefinida – a vida de um bebê –, na 
qual os afectos e os problemas são transformados 
em signos puros da arte e em intensidades de um 
rosto (Deleuze; Guattari, 1996). Rosto, que afirma a 
grandeza de uma vida.
9. Devir-rede. Desde os conceitos de individuação e de 
impessoal, as singularidades extensivas (trajeto e 
133
meio) e as intensidades (afectos) introduzem-se na 
problemática do docente, fazendo com que ele não 
possa mais ser pensado sem os dinamismos dessa 
realidade complexa e diferenciada, que o tornam 
uma multiplicidade. Enquanto multiplicidade 
interconectada ou que vive entre multiplicidades, 
numa rede de conexões fora da qual não há 
individuação, o docente entra em movimentos que 
fazem dele um ser sempre agitado por intensidades 
(Nodari, 2007). 
10. Devir-grupo. Ao individuar-se, o docente integra uma 
problemática vasta e participa de amplos sistemas 
de individuação. Estabelece aí relações, de maneira 
que a sua realidade pré-individual reúne-se à de 
outros docentes, o que os leva a participarem de 
uma operação de individuação coletiva. Os processos 
de individuação supõem, assim, não um simples 
somatório de indivíduos, mas um estado trans-
individual, dotado de potenciais de transformação 
e de constituição de novas individuações. Esse 
movimento vai em direção contrária ao que afirma 
umsenso comum disforme, supersticioso, obtuso 
e equivocado epistemologicamente, alimentado 
por quem acredita que o indivíduo é um ponto 
de partida imediato. Desde o ponto de vista ético, 
no coletivo, a singularidade não apenas não se dilui, 
mas a vida em grupo é o momento de uma ulterior 
e mais complexa individuação. Na esfera pública, 
longe de ser regressiva, a singularidade é polida 
e alcança o seu apogeu pela atuação conjunta e 
pluralidade de vozes. Assim entendido, o coletivo não 
prejudica nem atenua a individuação, mas a persegue 
e aumenta a sua potência, desde que tal continuidade 
concerne àquela parcela de realidade pré-individual 
que o primeiro processo de individuação não 
resolvera. Logo, a instância do coletivo é ainda uma 
instância de individuação, na qual está em jogo a 
134
tarefa de dar, ao indivíduo, uma forma contingente 
e impossível de confundir com o indeterminado, 
que precede a singularidade: “Podemos chamar 
Natureza a essa carga de indeterminado” (Simondon, 
2003, p. 102).
11. Devir-cristal. Consiste num devir movimentado por 
uma operação transdutora, a qual, mais do que ser 
aplicada à ontogênese, é a própria ontogênese, ou 
seja: uma “operação física, biológica, mental, social”. 
Operação, por meio da qual, “uma atividade se 
propaga gradativamente no interior de um domínio”, 
e funda essa propagação “sobre uma estruturação 
do domínio operada de região em região”. A região 
de estrutura constituída serve de princípio de 
constituição à região seguinte, ocasionando uma 
modificação que se estende ao mesmo tempo que 
a operação estruturante. O docente em devir-
transdutor cresce e aumenta, desde um germe 
pequeno, no centro do seu ser, em todas as direções. 
Disso resulta “uma estrutura reticular amplificante”, 
em que cada camada molecular serve de base à 
camada em formação. Esse devir exprime não apenas 
a individuação orgânica do docente, mas também 
suas operações psíquicas, procedimentos lógicos 
e mentais; além de, quanto ao saber, definir os 
progressos de invenção: a qual “não é indutiva nem 
dedutiva, mas transdutora”, e corresponde “a uma 
descoberta das dimensões segundo as quais uma 
problemática pode ser definida” (Simondon, 2003, 
p. 112, p. 113).
12. Devir-escritor. Como na literatura menor (Deleuze; 
Guattari, 1977), esse devir processa-se numa 
condição da linguagem que não aquela de um 
coletivo entendido como fundo social que fica em 
segundo plano. Utiliza o conceito de agenciamento 
não somente para apontar a existência de dois 
135
termos (1 docente + 1 docente), e sim para conectar 
heterogêneos, o que faz algo acontecer entre os 
docentes: uma operação de individuação que os cerca 
e arrebata. Da mesma maneira que o escritor e os 
seus personagens são tomados num agenciamento 
coletivo de enunciação, o docente, em devir-escritor, 
não dá a palavra àqueles que não a possuem, mas 
encontra-se com eles. Encontro, sem o qual nada 
haveria, nem palavras.
13. Devir-prenhe. Desde que tem o corpo prenhe de 
devires, o docente encontra o seu pedaço de mundo-
menor, o seu povo-menor, o seu currículo-menor, 
o seu aluno-menor, a sua aula-menor, o seu texto-
menor. E torna-se tudo isso. A docência-menor 
expressa o conjunto desses encontros.
14. Devir-abertura. Devir que abre as subjetividades, os 
objetos e as palavras da docência a uma virtualidade 
que os extrapola, para além dos limites do individual 
e do meramente coletivo. O docente atinge, assim, 
processos e acontecimentos que transformam 
relações, saberes, exercícios, livros.
15. Devir-infinitivo. Sendo o princípio de individuação 
a origem da hecceidade, a forma verbal do infini- 
tivo (chegar, encontrar, planejar, ensinar, escrever, 
etc.) apreende as singularidades de sentido e 
o tempo do acontecimento puro da docência, 
independentemente de coordenadas espaços-tem- 
porais. Na mesma direção, o docente verifica que 
nomes próprios, artigos e pronomes indefinidos 
designam individuações por hecceidades (Deleuze, 
1998); pois, nomear algo (como uma invenção, um 
cálculo, uma operação curricular) é recolher na 
linguagem traços evenemenciais, que se encarnam 
no designado e encontram sua individuação no 
agenciamento do qual fazem parte. 
136
16. Devir-larvar. O docente não coincide com aquele 
individuado, senão contém em si uma proporção 
irredutível de realidade pré-individual, que passa 
pela operação de individuação, sem ser efetiva ou 
totalmente individuada. Nesse devir-anfíbio, brilha o 
aspecto in-individuado do docente: o tecido íntimo 
do sujeito.
17. Devir-anônimo. Aqueles que persistem no erro 
de assimilar o sujeito ao docente individuado não 
atentaram suficientemente para a sua realidade pré-
individual e ignoram o que nele é meio. Condenam-
se, assim, a não encontrarem jamais a via do trânsito 
entre interior e exterior, entre Eu e Mundo.
18. Devir-frágil. No domínio do sujeito-docente, a 
coexistência do pré-individual e do indivíduo é 
mediada pelas emoções e paixões, que assinalam 
a integração provisória dos dois aspectos; além de, 
também, ser mediada por um eventual desapego, já 
que não faltam crises, recessões, catástrofes. Inclu- 
sive, para o docente, resta medo, pânico, angústia, 
na medida em que ele não consegue compor os 
aspectos pré-individuais da sua experiência com 
aqueles já individuados. O docente sabe que, entre 
a sua natureza pré-individual e o ser, é o aqui-e-
agora que é individuado; mas reconhece também 
que esse aqui-e-agora pode impedir uma infinidade 
de outros aquis-e-agoras virem à tona. Dá-se conta, 
assim, que a individuação nunca está garantida de 
uma vez para sempre, visto que ela pode fragilizar-
se, trincar, romper-se, estalar, reduzindo os aspectos 
pré-individuais da experiência a uma singularidade 
apenas pontual. 
19. Devir-abolição. Concerne a uma vida enquanto 
ex-pressa. A expressão homo tantum (homem 
simplesmente) abole a pessoa, lapida o seu poder 
137
de dizer Eu, e faz emergir uma quarta pessoa, pela 
qual ninguém fala, da qual ninguém fala, mas que, 
todavia, existe: um extra-ser, como o acontecimento 
do qual o indivíduo se faz o sujeito (Shérer, 2000). 
Esse indivíduo encontra aí a dispersão ou a elusão 
do sujeito, o ego dissolvido e o Eu rachado, como 
diz Deleuze (2002, p. 12-14): “a vida do indivíduo 
deu lugar a uma vida impessoal, mas singular, que 
desprende um puro acontecimento, liberado dos 
acidentes da vida interior e da vida exterior, isto 
é, da subjetividade e da objetividade daquilo que 
acontece. Homo tantum do qual todo mundo se 
compadece e que atinge uma espécie de beatitude”. 
Em tal devir, o docente substitui o Eu-penso-logo-
sou, toda consciência de sujeito, sua individualidade 
maciça, molar (característica de uma pessoa artificial 
ou alegórica), por singularidades moleculares e 
moventes, destacadas de um campo transcendental. 
Um campo impessoal, que junta o mais impessoal 
com o mais singular, e onde as singularidades são 
verdadeiros acontecimentos transcendentais (nem 
individuais nem pessoais), que presidem a gênese do 
indivíduo. 
20. Devir-alquimia. Este devir liberta o docente do peso 
das normas, das obrigações do comportamento 
social, do sujeito pessoal, de tudo que o estrutura 
fixamente. Sua natureza (aberta por um vazio, 
quando a linguagem falta) movimenta-se como 
dinamismo e potência, dos quais ele é expressão 
imanente. Ocupa, assim, um lugar alquímico de 
criação. Lugar operado pelo impessoal, onde coisas 
e palavras se trocam. Lugar, nem exterior nem 
interior, abandonado tanto pela subjetividade como 
pela objetividade. Lugar, no qual o acontecimento 
incorporal eclode, abre a região do sentido, opõe-se 
à incerteza das determinações do verdadeiro e do 
falso, do bem e do mal. E, assim, de banal, vulgar, 
138
lamurioso, o docente, com os seus devires, converte-
se em índice da mais alta potência: a evidência da 
singularidade não perecível e insubstituível de uma 
vida de docência.
Como?
Agora: – Como criar uma artistagem docente? O ponto-limite que detona nossos devires-docentes é o inexperimen- 
tado, o imperceptível, o impensável, o inominável, o indi- 
zível, o inimaginável, o intolerável. Graças ao acontecimento 
e ao impessoal, a vida é disputada à morte; e esta obtém 
valor somente por revelar a vida. A individuação mostra, 
de um lado, a vida; enquanto a morte fica do lado do Eu: 
“Toda vida é, obviamente, um processo de demolição” (Deleuze, 
1998, p. 157). Ocorre de nós, docentes, em movimento 
permanente de individuação, decididamente estancar nossos 
Eus, para viver como um conjunto de fluxos, em relação 
com outros fluxos (fora de nós e em nós), permanecendo 
abertos a todos os devires e podendo “unicamente individu- 
ar, individuar-nos e individuar em nós” (Simondon, 2003, 
p. 117). Nesse complexo Teatro da Individuação, criamos, 
assim: 1) uma Estética da Composição Transdutora; 
2) uma Ética da Individuação/Subjetivação/Virtualização; 
3) e uma Política do Devir-Artista. Ética, Estética e Política, 
que abarcam encontros corajosos com o Fora selvagem; 
um transitar improvisador no Caosmos; uma vertigem 
axiológica dos problemas vitais; um nomadizar a alegria das 
cenas e a beleza dos personagens, como expressões vibrantes 
de uma vida docente criadora de diferença. 
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PARTE 3
CURRÍCULO E 
DIDÁTICA
143
OS SENTIDOS DO CURRÍCULO: 
necessidades inadiáveis7
Das necessidades inadiáveis
Nesta mundialização liberal, polimorfa e cruel, temos, 
no Brasil, um pensamento curricular que nos força a criar 
problemas e a nos posicionar, cada vez mais criticamente, 
diante da megamáquina capitalista e de suas insaciáveis 
formas de controle social e dominação subjetiva, miséria e 
mediocridade, crimes, solidão e horror? 
Neste momento de fascínio pela globalização econô- 
mica reprodutora e cultural homogeneizadora (em que 
comunidades e indivíduos portam um niilismo absoluto 
ou um pessimismo atávico), qual currículo, dentre os que 
conseguimos produzir, mantém-nos em devir-revolucionário 
(no domínio do indestrutível), para nos confrontar, radi- 
calmente, aos abismos econômicos, sociais, tecnológicos, 
políticos?
Neste aqui-e-agora de ligação (alienadoramente apai- 
xonada) com a mídia e a publicidade humanista, as teorias 
de formação de professores desenvolvem uma nova sen- 
sibilidade para afectos e perceptos, disjunções inclusivas e 
conjunções intensitárias, anteriores aos códigos e irredutí- 
veis à cognição? Para o limite neutro de níveis marginais 
de sentido? Para a violência inerente às definições e iden- 
7 Com o título “Os sentidos do currículo”, este texto foi publicado na Revista 
Teias (Online), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ, no “Dossiê 
Currículo” (v.11, p. 1-15, 2010), sob a coordenação de Alice Casemiro Lopes; 
uma versão integral do mesmo texto, com o título “Diga-me com quem um 
currículo anda e te direi quem ele é”, estabeleceu-se no livro organizado por 
mim e intitulado Fantasias de escritura: filosofia, educação, literatura, Editora 
Sulina, Porto Alegre, 2010 (p. 143-171). 
7
144
tificações? Para os processos gerativos de individuação ou 
de subjetivação, antes do que para subjetividades ou sujei- 
tos, constituídos pela Filosofia do Indivíduo coextensivo ao 
Ser (Deleuze, 1988; 1994; 2001)?
Nestes espaços de neo-arcaísmos (família universal; 
juventude eterna; saúde puritana; lei seca do álcool e dro- 
gas molhadas; corrupção rotineira; direitos humanos es- 
tupefatos; esporte analfabeto bilionário; tirania disfarçada 
de pregação; etc.), ainda impregnados pelas dicotomias 
Indivíduo/Estado, Homem/Mulher, Inclusão/Exclusão, o 
pensamento curricular nos orienta no tecido fibroso dessa 
realidade e nos faz transbordar dessas dicotomias, ao in- 
troduzir, entre elas, insuspeitas dobras e lutas variadas? 
Nesta rede planetária de tecnocosmos, ciberespaço, re- 
produção regulada por computador, exploração genética, 
pedofilia em rede, fast-food googleano, bioética, biodiversi- 
dade, DNA, células tronco, idiotia comunicacional, auto- 
matismos informatizados, besteiras mecânicas e industriais, 
a Educação nos livra da Epistemologia da Pureza Essencial 
e da sua correspondente apreensão de seres, fenômenos e 
coisas estáveis, ao fazer a Diferença Pura, com sua capaci- 
dade de se multiplicar? Ou nos encaminha, no máximo, 
até a variedade e a diversidade multiculturais, como sendo 
o Bem Máximo? 
Nesta época de fragmentação em mil marcadores sociais 
e culturais, em que estaríamos fortemente individuados 
e personalizados (como seres humanos, pessoas, etnias, 
gêneros, classes), as teorias de formação questionam a 
serialidade majoritária e as formas inerciais da subjetividade 
capitalística (trivial,frívola, supérflua)? Desvelam o engano 
de achar que, fora das luzes da razão e dos centros de sig- 
nificância, divisões e hierarquias identitárias, existe so- 
mente confusão, anarquia, absurdo ou o indiferenciado? 
Agora, em que as minorias coincidem com o povo 
por vir (multidão indefinida), qual currículo se abre para 
subjetividades esgarçadas e sujeitos desfigurados? Qual 
teoria metamodeliza figuras emergentes e tipos sociais 
transitórios? Qual agrupamento curricular amplia e supera 
145
os próprios viscos subjetivos, de interesse e de poder? 
Qual pensamento penetra em costumes e revira maneiris- 
mos do avesso, estimulando processos de minorização e 
singularização, incorporando zonas de indeterminação, 
que acompanham formas de organização, e são correlatas 
à Substância de Spinoza e à Vida para Nietzsche (Deleuze, 
1994; 1999; 2002; Deleuze e Guattari, 1996a)?
Neste pesadume do presente, o campo curricular 
fundamenta-se nos resultados de exames nacionais e nos 
rankings internacionais? Radica na expertise de alguns 
poucos? Por inanição, prediz e conserva certezas de 
conhecimentos estabelecidos, ou desorbita a tradição e 
a faz abandonar suas elipses para inserir-se em outras? 
Reelabora o que extrai das culturas, trabalhando o sentido 
da novidade e da originalidade, não como transgressão ou 
interrupção, mas como arte da conexão e da experimentação: 
ousadia de querer pensar, deixar-se afetar e se apaixonar 
(Deleuze, 1988)? 
Quais educadores inventam travessias, produzem efei- 
tos de margem, fim das continuidades, ultrapassagem das 
fronteiras? Quais cavoucam sombras e mistérios? Quais 
criam outras materialidades para os fazeres-saberes? Quais 
produzem coletividades anômalas, idades bastardas, pen- 
samentos vagos, além de Bem e Mal? Quais estabelecem 
ressonâncias, articulações, encontros, traduções, transdu- 
ções, entre elementos dos diversos domínios culturais, 
abrem mundos possíveis e acabam de vez com o Juízo de 
Deus (Deleuze 1997; 1998b)? 
A Pedagogia torna visíveis problemas que persistem 
nas soluções e concebe uma ciência nômade (anexata, 
itinerante, ambulante), que não se confunde com a “ciência 
régia” (de Estado) e seus procedimentos científicos “de re- 
produção, de iteração e reiteração” (Deleuze e Guattari, 1997c, 
p. 39-40)? 
A formação de professores opera com um empirismo 
transcendental imanente, impelido pelo vitalismo? Isto é, 
age sobre o que está em gestação, redefinindo noções de 
realidade, prática, abstração, fantasia? Mantém-se no fictício 
146
e excede o real? Formula, ainda, problemas lógico-identi- 
tários, que remetem ao domínio do Ser (O que é o currículo...) 
ou problemas de vida, que alimentam as potências do devir 
(Como construir um currículo, para mim e para o mundo, 
enquanto obra de arte...) (Deleuze, 1988; 2001)? 
Afinal, o pensamento educacional brasileiro pensa? 
Confia que algo passará do seu agenciamento trans-histórico, 
embora não forneça certeza do que será (Deleuze e Guattari, 
1997c, p. 218-220)? Ou fica na nostalgia das revoluções 
do século XX, na doxa, no bom senso, no senso comum, 
na bagagem acumulada, na recognição, na tradição não 
criticada? O campo do currículo lavra, continuamente, suas 
terras, para nelas semear o ineditismo da contemporanei- 
dade, que é a nossa, e que não pode deixar de ser tratada? 
As teorias pedagógicas criam a alegria afirmativa de educar, 
via procedimentos inatuais, extemporâneos, intempestivos, 
para que nunca mais tenhamos de tolerar o intolerável? 
Da epistemologia política 
Por que há urgência de perguntar (e de responder) ao 
que foi perguntado? (Além de, a seguir, apontar o sentido 
de um currículo geograficamente orientado, isto é, de um 
geocurrículo.)
Porque, desterrados e clandestinos, habitamos lugares 
permanentemente controlados ao ar livre (Deleuze, 1992). 
Periferias transformam-se em desertos. Bandos e maltas 
aumentam o seu poder de fogo. Somos conjunção-disjunção 
de comércio de informações, sobre-produção global, inter- 
nacionalização do acelerado capitalismo de mercado. Es- 
paços e tempos estendem-se indefinidamente, em função 
da linhagem tecnológica da todo-poderosa divindade do 
século XXI, chamado “O Sistema”.
Porque o pensamento curricular, longe das coações, 
dá-se conta da impotência do entendimento binário para 
lidar com o contemporâneo. Desconstrói a “equação socrá- 
tica de razão = virtude = felicidade” (Nietzsche, 2006, p. 19). 
Despoja categorias de auras metafísicas, em missão quase 
147
impossível. Deseja outra humanidade, tecida de matéria-
fluxo impalpável. Trilha e esburaca o solo nômade do espaço 
liso. Autoriza-se a experimentar currículos em pesquisas 
de prática plural, para produzir uma geografia inédita. 
Assume-se como integrante do conjunto antropomórfico 
das ficções úteis à manutenção da vida. Mostra as variações 
intrínsecas, que modificam tanto videntes quanto trajetórias. 
Proclama a sua principal função: não reconhecer “algo 
estranho” remetido a “algo conhecido” (Nietzsche, 2001, 
p. 250), típico do mundo da opinião; nem construir ou 
adquirir conhecimentos pré-estabelecidos (o que bloquea- 
ria a ousadia de pensar e viver, mantendo tudo como se 
encontra); mas liberar o ar fresco de outras possibilidades 
(ANPED, 2009). 
Porque a teorização educacional ameaça o império da 
verdade e a sua entropia mortífera. Exercita modos de edu- 
car, que comportam estriamentos e também oportunidades 
de recriação. Conjuga uma realidade surpreendente, que 
parece debilitar as energias, mas cujo desequilíbrio abre 
recomeços. Conserva a sutileza estética de lutar. 
Porque os educadores mantêm um pouco de atenção 
e estão suficientemente distraídos, para não caírem nas 
armadilhas da coincidência consigo mesmos. Renunciam à 
unidade. Esquecem a busca das origens perdidas. Escapam 
de currículos que são assentados em temporalidades e 
lugares seguros. Detestam a árvore da metafísica, seus 
ramos universais de sentido e raízes essenciais. Navegam 
em novos mares, desembarcam e não colonializam. 
Porque a Educação aprende que as verdades de um 
currículo não preexistem a ele, mas decorrem da reformu- 
lação das suas formas de conteúdo e de expressão; da 
invenção de problemas e suas condições; da suscitação 
de originais modos de ver, sentir, pensar. Intui que os 
saberes, poderes e subjetividades, produzidos por um 
currículo, são sempre verdadeiros, segundo as verdades 
que ele introduz, passa, faz fugir. Logo, que não existem 
resultados melhores ou piores de um currículo, em relação 
a outros, apenas os mais apropriados às verdades formu- 
148
ladas por cada um (Deleuze, 2004; Deleuze e Guattari, 1995b; 
Foucault, 1993). 
Porque as teorias de formação não antecipam, ins- 
truem, transmitem, transportam, transformam, civilizam, 
custodiam. Descobrem forças migrantes que agem nos 
processos pedagógicos; ofendem a crueldade dos espaços 
escolares e não-escolares; formulam uma heterogênese 
de elementos didáticos e um conjunto heteróclito de pro- 
gramas; desgarram a Educação para fora da saudade de 
seus fundamentos. 
Porque fazer currículo não é lidar com a fria gramática 
do logos e a pegajosa identidade do sujeito. Não é tarefa 
de alguma comunidade eleita, mas aventura agônica, aberta 
à plurivocidade. Não atende a nenhuma condição utópica 
(que integra um sonho de messianismo, de não-identidade), 
à qual se apela para interromper as continuidades. 
Porque fazer currículo segue uma filosofia prática, ao 
modo de Spinoza, qual seja: construir um plano involutivo, 
no qual, “a forma não pára de ser dissolvida para liberar 
tempos e velocidades”; e, sem se perderem, as singularidades 
combinam-se com outras, em multiplicação molecular 
(Deleuze, 1996; 2002; Deleuze e Guattari, 1997a, p. 56). 
Porque um currículo não é só um pensamento, mas 
a ética desejante de viver com o caos e seus devires. E 
porque os educadores são arquipélagos: territórios atípicos, 
difíceis de delimitar, não integráveis, em errância, sempredesterritorializados. O que implica que podemos “trans- 
formar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e 
também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro 
modo” (Nietzsche, 2001, p. 13).
Do sentido espacial 
Após quase um século de direção histórica, impri- 
mida ao campo curricular, uma orientação espacializante 
se impõe por necessidade. Quando, hoje, perguntamos 
O que é nos orientar no pensamento curricular?, não enfa- 
tizamos mais o elemento histórico, mas uma geografia, 
149
como domínio diferencial de transformações potenciais 
(Deleuze e Guattari, 1992). Quando designa as condições, 
das quais se desvia para criar a novidade, o pensamento 
curricular reconhece que a historiografia fornece apenas a 
atualização de variáveis para a forma histórica; enquanto a 
geografia lança eixos e orientações virtuais para um currí- 
culo poder devir. 
Mesmo que não baste opor uma dimensão espacial 
(que seja estática) a movimentos históricos (que sejam 
progressivistas), dizemos que um currículo tem, pri- 
meiramente, uma geografia, e só então tem uma história. 
Assim, se a genealogia (Foucault, 1990) de um currículo 
articula as lutas com a memória, descrevendo as forças 
históricas e seus enfrentamentos, que possibilitam cultu- 
ras e formas de vida, a orientação geográfica não é “somente 
física e humana, mas mental (desenho abstrato), como a 
paisagem” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 125; 1997a, p. 55). 
Ao ferir a dominância do sentido histórico, não nega- 
mos a história, mas tão-somente “a abstração do elemento 
histórico tornado circular” (Deleuze e Guattari, 1992, 125). 
Ao recusar o elemento histórico (como forma de in- 
terioridade), podemos conhecer a pluralidade infinita das 
histórias reais; sem autômato central, não somos obrigados 
a conservar a memória longa (“família, raça, sociedade 
ou civilização”), que “decalca e traduz”; funcionando com 
memória curta (ou antimemória), “de tipo rizoma, diagra- 
ma”, descartamos a memória “arborescente e centralizada”, 
que produz “impressão, engrama, decalque ou foto” (Deleuze 
e Guattari, 1995a, p. 25; p. 26). 
E se, nesse pensamento curricular espacializado, restar 
ainda alguma história, esta é feita de elementos não-
históricos, que não seguem de um estado estabelecido a 
outro, mas circulam em séries divergentes e paradoxais, 
procedendo por variação, expansão, conquista, picada, 
captura. Assim, implicados em uma linha de “catástrofe”, 
não como desastrosa, mas como promotora de partidas 
e chegadas, prosseguimos aquém e além das territoriali- 
dades (Deleuze, 2007, p. 103). 
150
De tantos Mas...
Afirmamos que, assim como “a história é uma geo-
história” e “a filosofia é uma geo-filosofia” (Deleuze e 
Guattari, 1992, p. 78), também o currículo é um geocurrí- 
culo. O campo curricular deixa, então, de ser mediador 
entre a história do e os seus modos de saber-fazer, assu- 
mindo as fragilidades daquilo que se apresenta como evi- 
dente; afirma a irredutibilidade dos meios e a potencialidade 
das passagens, atuando nos limiares da ciência, da arte, 
da filosofia; arranca-se ao culto de suas estruturas, aven- 
turando-se na poiesis da própria manufatura e na criação 
de outros currículos que recaem na história, mas nela não 
se originam. Esses movimentos são de fácil compreensão: 
o pensamento não tem como não assumir a sua dimensão 
espacializante, de exterioridade, na medida em que a 
mundialização é correlata à urgência de integrar, num 
devir-revolucionário comum, vários territórios, culturas, 
relações, subjetividades. 
Essa multiplicidade de um geocurrículo condensa-se 
em vários Mas…, pois ele pode dar a impressão de inva- 
riante ou de modelo majoritário; quando o que produz 
nada mais é do que a projeção da possibilidade de sin- 
gularização de todos os currículos estandartizados. Vejamos 
como esses Mas…se apresentam.
Pode ser que um geocurrículo seja tomado como coisa-
em-si, abstração conceitual ou verbalista, sem qualquer 
concretude, impossível de ser relacionado com o observável 
da experiência. Mas…, em vez da clausura metafísica, 
consiste em um conjunto de processos auto-organizadores, 
relativos a estratos (orgânicos, físico-químicos, tecno-sociais, 
bio-políticos); ou seja, numa máquina revolucionária: 
“tanto mais abstrata quanto é real” (Deleuze e Guattari, 
1997d, p. 229; 2002). 
Talvez um geocurrículo seja entendido como estrati- 
ficação universal (Deleuze e Guattari, 1995b, p. 227-232), 
que captura intensidades em sistemas e as explica. Mas…, 
é, antes, uma máquina abstrata, que traça o diagrama 
151
do acontecimento; sobrevoa a paisagem curricular, cons- 
tituída por rostos, corpos, coisas, figuras, cenas; procede a 
mineralizações, endurecimentos, desacelerações dos fluxos 
(de biomassa, gens, códigos), definidos tanto pelos mate- 
riais quanto pela escala temporal dessas operações.
Falar de um geocurrículo, como máquina abstrata-
revolucionária, que opera em agenciamentos concretos, é 
falar metaforicamente. Mas…, trata-se, aqui, de uma analogia 
entre noções de ordem sensível (e erótica) e noções de uma 
ordem inteligível (e literária), bem como dos efeitos de 
transferência de uma a outra ordem. 
Compostos por camadas sedimentares, formações his- 
tóricas, práticas, positividades, empiricidades, variáveis limi- 
tadas, os estratos de um geocurrículo parecem uma repetição 
quantificada do real, que nega qualquer novo modo de 
existência. Mas…, esses estratos realizam uma itinerân- 
cia interminável, que foge e faz fugir, que não julga e faz 
existir. 
A estratificação de um geocurrículo, como a de outros 
currículos, é instrumento de poder, logo, uma forma molar, 
equilibradora, regulatória. Mas…, essa estratificação con- 
siste numa metaestável (nem estável nem instável) e bi-
direcional máquina, provida da energia potencial de afetar 
e de ser afetada (Deleuze e Guattari, 1995b). 
A superfície de estratificação de um geocurrículo é 
um organismo. Mas…, essa superfície age como: uma 
membrana, que estabelece contato entre o espaço interior 
e o exterior; um corpo sem órgãos de distribuição nômade 
(do puro spatium), atravessado por matérias não-formadas 
(leves, livres, transitórias), que correm e se interrompem 
em todos os sentidos da topologia de contato (Deleuze e 
Guattari, 1996b; 1997a; 1997b; 1997c). 
Um geocurrículo é atual porque identifica coisas e 
palavras, fixa e unifica significações, fabrica realidades. 
Mas…, em grande parte, ele é virtual, auto-diferenciador 
e criador; ocupa-se de idealidades, que agem como limites 
daquilo que pode ser visto-e-dito e da desterritorialização 
dos estratos; modifica formas de representação, compre- 
152
ensão, apreensão e ação, propiciando efeito de presença 
do real (Deleuze, 1998c; Cossutta, 1989). 
Um geocurrículo é um caos indiferenciado; mas…, 
sua natureza caosmótica implica um ser mutável, que se 
divide, é dividido por intermináveis bifurcações e capturado 
na margem infinita do devir. Parece centralizador e hierár- 
quico, absorve e bloqueia a força dos fluxos; mas…, como 
espaço-tempo virtual a-histórico, é campo transcendental. 
Dá-se como científico; mas…, constitui uma filosofia política 
da corporeidade. Faz pose de realista (ter os pés no chão); 
mas…, possui uma linha de sobrevôo dada pelo criacio- 
nismo do desejo, movimento impessoal das subjetividades 
e uma pragmática ativa, sem direção, sempre reinventada. 
Mostra-se pleno de diferença empírica, extensiva, relativa; 
mas…, é morada da diferença imanente, anti-essencialista e 
intensitária da diferença pura; a qual, num jogo de espelhos 
sem fim, é evasiva do próprio pensamento e do mundo. 
Do método 
O método (técnica, procedimento, operação) de leitura 
– e também de compreensão, de análise, de avaliação e de 
produção – de um geocurrículo não é teorético, que oporia 
à unidade abstrata da teoria a multiplicidade concreta dos 
fatos; tampouco positivista, que desqualificaria o elemen- 
to especulativo, para contrapor-lhe, sob um cientificismobanal, o rigor de conhecimentos legitimados; ao contrário, 
é perspectivista e deriva do ponto. 
A partir de uma dada inflexão, estabelecemos um 
ponto de vista, que não percorre a inflexão, não é o ponto 
de inflexão, nem “exatamente um ponto”: consiste, antes, 
em “um lugar, uma posição, um sítio, um ‘foco linear’, linha 
saída de linhas”. Mesmo que haja uma variedade (caóide) de 
pontos de vista, “todo ponto de vista é ponto de vista sobre 
uma variação”, e esta variação não existe sem aquele ponto 
de vista (Deleuze, 1991, p. 39; p. 40). 
Um currículo (como ponto de vista) não consiste em 
“um juízo teórico”, já que o procedimento de perspectivar 
153
“é a vida mesma” (Deleuze, 1998a, p. 179-180): “Até onde 
vai o caráter perspectivista da existência, ou mesmo se ela 
tem algum outro caráter, se uma existência sem inter- 
pretação, sem ‘sentido’ [Sinn], não vem a ser justamente 
‘absurda’ [Unsinn], se, por outro lado, toda a existência não 
é essencialmente interpretativa” (Nietzsche, 2001, p. 278). 
Um ponto de vista (logo, um currículo) não possui 
regras exclusivas, que fazem cada ponto abrir-se sobre ou- 
tros pontos, na medida em que convergem; mas abre-
se sobre uma divergência que afirma: “A perspectiva – o 
perspectivismo – de Nietzsche é uma arte mais profunda 
que o ponto de vista de Leibniz, pois a divergência cessa 
de ser um princípio de exclusão, a disjunção deixa de 
ser um meio de separação, o incompossível é agora um 
meio de comunicação” (Deleuze, 1998a, p. 180). 
Esse perspectivismo não é um agregado unilinear 
de pontos de vista, sem dinamismo interno ou abertura 
para outros pontos e ângulos, o que levaria um trajeto a 
ficar entre dois pontos; ao contrário, o “entre-dois” pontos 
ganha relevância, autonomia e direção próprias (Deleuze e 
Guattari, 1997c, p. 50-62). Tampouco implica um relativismo 
comum (“variação da verdade de acordo com um sujeito”), 
e sim a “condição sob a qual a verdade de uma variação 
aparece ao sujeito” (Deleuze, 1991, p. 40). Condição que, 
para Nietzsche (2001, p. 278), leva à infinitude do mundo: 
“hoje, pelo menos, estamos distanciados da ridícula imo- 
déstia de decretar, a partir de nosso ângulo, que somente 
dele pode-se ter perspectivas. O mundo tornou-se novamente 
‘infinito’ para nós: na medida em que não podemos rejei- 
tar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações”. 
Como infinito, o perspectivismo acolhe, não a des- 
continuidade, mas a topológica “distância positiva dos 
diferentes”, que afirma “toda sua distância”, “como o que 
os relaciona um ao outro” (Deleuze, 1998a, p. 178-179). 
Assim, não há vazio entre pontos de vista (em nosso caso, 
currículos) porque o espaço vazio não existe, já que tudo 
é força. O que encontramos, aí, é uma continuidade dada 
pela variação infinita: “temos diante de nós um continuum, 
154
do qual isolamos algumas partes” (Nietzsche, 2001, p. 140); 
além de pontos singulares, que não são contíguos e inte- 
gram o contínuo (infinito e inacessível) de acontecimentos. 
Também, no perspectivismo, pontos de inflexão determi- 
nam dobras, constituindo uma primeira singularização no 
extenso, o qual é a repetição contínua da posição (do ponto 
de vista) e atributo do espaço: “como ordem das distâncias 
entre pontos de vista que torna possível essa repetição”. 
Constituindo um tipo de singularidade no espaço, de acordo 
com relações indivisíveis de distância, os currículos (pontos 
de vista) compõem uma “jurisprudência ou arte de julgar” 
(Deleuze, 1991, p. 40-41; p. 42-43). 
Enquanto modelos ópticos “da percepção e da geometria 
na percepção”, os currículos se impregnam dos seguintes 
critérios de valor: toda qualificação que fazemos ao contínuo 
de puras quantidades (que é um currículo) constitui uma 
intervenção perspectivista; qualquer distinção entre pontos 
de vista (currículos) é uma ficção reguladora; logo, é uma 
interpretação ou um sentido, já que toda “interpretação é 
determinação do sentido de um fenômeno” (Deleuze, 1994, 
p. 21); como os currículos (pontos de vista) são sempre de 
alternância, só existem para serem abandonados, e não há 
nenhum sentido (ou interpretação) que prepondere sobre 
os demais. 
Assim, toda ficção (interpretação, intervenção) é de- 
terminação de sentido. Sendo o sentido uma chama sem vela 
ou o sorriso sem gato da Alice de Lewis Carroll (Deleuze, 
1998a), afirmamos que o sentido de um currículo é a sua 
própria gênese, pressuposto desde que um Eu começa a 
falar ou a escrever “currículo”.
 Só que, diante da multiplicidade de sentidos curri- 
culares cambiantes, não existe nenhum centro de con- 
figuração, hierarquia transcendente ou generalidade. 
Por conseguinte, nem todos os sentidos dos currículos 
(matérias-movimentos) se equivalem ou valem o mesmo. 
Isso deriva da condição que cada currículo perspectivado, 
ao selecionar, dispor, por em funcionamento instrumentos 
(representacionais, cognitivos, esquematizantes, corporais), 
155
o faz em relação à vontade de poder (Wille sur Macht) 
(Nietzsche, 2002, p. 159-160).
Ou seja, cada currículo apresenta valor mais forte ou 
mais fraco, em função da abrangência multiforme e 
plural do seu campo interpretativo; do maior ou menor 
desconhecimento do próprio caráter ficcional (com graus 
também diversos de substancialização); de sua delimitação 
interperspectivista na relação com outras ficções necessárias 
(Marques, 2003, p. 69-101); assim como da possibilidade, 
maior ou menor, de realizar experimentações com aquilo que 
foi marginalizado por outras perspectivas: “Certos caminhos 
(movimentos) não tomam sentido e direção, senão como 
os atalhos ou os desvios de caminhos apagados” (Deleuze 
e Guattari, 1992, p. 77).
Nas relações móveis entre currículos, não há, portanto, 
incomensurabilidade absoluta entre os seus planos pen- 
sáveis, perspectivas, pontos de vista; assim como os currí- 
culos podem se reunir ou se distanciar, uns dos outros, 
possuindo em comum a restauração da transcendência 
(da ilusão), visto que não podem evitá-la, a não ser “combatê-
la com vigor”. Ao buscar distinguir qual deles é “o melhor”, 
qual é o “bom ponto de vista”, aquele que “nos dá as respostas 
e os casos, como em uma anamorfose barroca” (Deleuze, 
1991, p. 43), verificamos: se determinado currículo abdica 
da imanência; se fecunda o transcendente; se inspira mais 
ou menos ilusões; se entrega ou não “a imanência a Algo 
= x”; se “não simula mais nada de transcendente” (Deleuze 
e Guattari, 1992, p. 78); ou, em outras palavras, se “isso de 
que lhe falo, e no que você também pensa, está você de 
acordo em dizê-lo dele, com a condição de que se saiba 
a que se ater sobre ela e que se esteja também de acordo 
sobre quem é ele e quem é ela” (Deleuze, 1991, p. 43)? 
Produzido por um ponto de vista, que nos fornece 
um tipo de permanência no mundo do devir, o método 
geocurricular apresenta, ainda, os seguintes traços: é sempre 
um outro currículo (ponto de vista) que corresponde a 
cada ponto de vista (currículo), mas não um que seja inferior 
ou superior aos outros; todos os currículos estão ligados 
156
e se afirmam por meio de suas distâncias, ressoando, entre 
si, pela divergência dos conceitos, seres, objetos; há, por- 
tanto, sempre um currículo no geocurrículo, que não carece 
de qualquer instrumento ou órgão para conhecer a ver- 
dade, desde que não existe “nem espírito, nem entendimento, 
nem pensar, nem consciência, nem alma, nem vontade, 
nem verdade: tudo ficções” (Nietzsche, 2002, p. 79). 
Na medida em que realiza atos curriculares, esse 
método instaura sentidos, ideias, generalizações, empirias, 
abstrações, imagens, vocabulários, recorrências, paráfrases, 
metáforas, polêmicas, esquemas de inteligibilidade, vozes, 
referentes enunciativos, condições de validade, regras de 
leitura, operadores textuais, etc. Ao ser processado, apre- 
senta componentes associados aos de outros campos se- 
mânticos, lógicos e ontológicos, áreas de saber-fazer, planos 
precedentes de pensamento. Reordenaformas de organi- 
zação pré-estabelecidas (cristalizadas ou em movimento), 
encetando prolongamentos e curvaturas, tracejando outras 
imagens e dispondo superposições “numa ordem estra- 
tigráfica”: “mudanças de orientação que só podem ser situa- 
das sobre a imagem anterior (e mesmo para o conceito, 
o ponto de condensação que o determina supõe ora a 
explosão de um ponto, ora a aglomeração de pontos pre- 
cedentes)” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 77). 
Frente ao método interpretativo, não totalizante, eter- 
namente movente, maximamente diferenciado, damos 
extrema atenção ao ponto que segue: se algum currículo 
jactar-se de não possuir (nem de ser) um ponto de vista, 
isto se deve a sua assunção do ponto de vista único, 
absoluto, “fixo, exterior”, daquele que vê “fluir, estando 
na margem” (Deleuze e Guattari, 1997c, p. 40). Então, tal 
currículo perspectivo (mas que nega essa sua condição) 
não será nunca um geocurrículo; mas um currículo que 
não renova o pensamento educacional, por introduzir-
se enquanto uma ficção, que se pretende completa e 
substancializada; e que, desse modo, só pode derivar da 
“beatitude de um pensamento inteiramente pronto” (Deleuze 
e Guattari, 1992, p. 69).
157
Da cartografia
Para montar um currículo, que localize a própria posição, 
num determinado plano de composição, sem elementos 
primeiros e transcendentes, não elaboramos um gráfico, 
programa, projeto, desenho, fotografia, retrato, decalque, 
plano de desenvolvimento ou de organização; mas, usando 
a arte cartográfica (do grego chartis, carta, mapa, e graphein, 
grafia, escrita), traçamos um mapa (Deleuze e Guattari, 
1995a; Rajchman, 2000). 
Esse mapa geocurricular, através de operações trans- 
formacionais, abre-se a locais e percursos, que tomam 
direções imprevistas ou promovem ações desordenadas; 
é passível de constante modificação; conectável em todas 
as dimensões; desmontável, rasgável e reversível, em suas 
múltiplas entradas e saídas.
Importa não confundir o mapa com o decalque, pois, 
mesmo que o mapa possa ser decalcado, o decalque é 
como uma foto ou um rádio, isolando aquilo que reproduz, 
via “procedimentos de coação”. Além disso, ao traduzir o 
mapa em imagem, o decalque organiza, estabiliza, neu- 
traliza “as multiplicidades segundo eixos de significância 
e de subjetivação que são os seus”, reproduzindo do mapa 
apenas “os impasses, os bloqueios, os germes de pivô ou 
os pontos de estruturação” e estruturando o que é rizo- 
mático: “não reproduz senão ele mesmo quando crê 
reproduzir outra coisa. Por isto ele é tão perigoso”. Enquanto 
o decalque remete “a uma presumida ‘competência’” (“é 
sempre o imitador quem cria seu modelo e o atrai”), por 
sua vez, também o mapa possui e propaga fenômenos de 
redundância (os estratos) – “onde se enraízam unificações e 
totalizações, massificações, mecanismos miméticos, tomadas 
de poder significantes, atribuições subjetivas”. Sendo o 
mapa “uma questão de performance”, a nós compete religar 
os decalques ao mapa, isto é, voltar a situar os impasses 
(“poderes significantes”, “afetos subjetivos”, “territorialidades 
endurecidas”) sobre o mapa e abrir tais impasses “sobre 
linhas de fuga possíveis”.
158
Mapa que pode ser “preparado por um indivíduo, 
grupo ou formação social”; desenhado “numa parede”; 
construído “como uma ação política ou como uma me- 
ditação”; concebido “como obra de arte” (Deleuze e Guattari, 
1995a, p. 22-24); rabiscado em muros e pixado em viadutos; 
grafitado nas asas de um besouro; discursado como ação 
política; refletido na solidão; descrito ao nascer da aurora; 
concebido como um projeto arquitetônico; chupado feito 
uma bala; construído como metrô ou estádio de futebol; 
teatralizado; poetizado; cantado; tocado; balbuciado; asso- 
prado; murmurado; gaguejado; assobiado no escuro, feito 
um ritornelo.
Usamos o princípio de seleção cartográfica, seguindo 
coordenadas anteriores a formas, objetos, organismos, 
conteúdos, sujeitos, indivíduos e identidades; de modo 
a reter e conservar (portanto, criar e tornar consistente) 
aquilo que “aumenta o número de conexões a cada nível 
da divisão ou da composição” (Deleuze e Guattari, 1997d, 
p. 223). Desse modo, grafematizar o mapa curricular é 
uma crítica-clínica do pensar, do educar e do viver, dotada 
de rara e eletrizante beleza. 
Sentidos inúmeros 
Preparando-se para o embate com o caos, um geo- 
currículo tem, assim, sentidos nômades, desde que é feito 
por nômades e para nômades. Desperto, não habita a cidade 
da consciência. Leve, não tem guarda-chuva, sombrinha, 
nem guarda-sol, para se proteger de um caos livre e tempes- 
tuoso. Desagregado, não rasteja atrás de consoladoras 
leis transcendentes. Espantado, não estabelece contratos 
prévios. Divertido, não formula uma humanidade este- 
reotipada, acanhada, estúpida, triste. Armadilha amorosa, 
não possui ideais de formação. Sabedor de que não “cabe 
temer ou esperar, mas buscar novas armas” (Deleuze, 
1992, p. 220), não avaliza as imagens criadas pela opinião 
dominante. Com valor de fecundação, não renuncia àquilo 
que cria problemas. Tempestade de forças, não projeta 
159
conteúdos diferentes dos pensados até então, para salvar 
algo ou alguém. Desestratificado, não pressupõe, com 
certezas, o que existe para ser pensado. Espaço anterior 
(onde nada é ainda), não se ocupa com métodos para 
pensar ou com modos canônicos de viver. Relação da força 
consigo mesma, dobra o lado de fora e derruba os próprios 
mapas e diagramas. Topologia extraordinariamente fina, 
“não repousa sobre pontos ou objetos”, mas varia no espaço 
táctil, háptico, sonoro, e “modifica sua cartografia” (Deleuze, 
2004; Deleuze e Guattari, 1997c, p. 54). Leque a dobrar-se 
e desdobrar-se, dramatiza estranhos potenciais. Dotado de 
ligeireza, fantasia existências fragmentárias. Curvilíneo e 
turbilhonar, informa a bandidagem de naturezas descon- 
tínuas. Atravessador do Rubicão, tematiza a sua estética 
múltipla, que complica vários currículos. Abertura ao 
futuro, pensa de outra maneira: afirmativamente. Roubado 
ao além, reparte aprendizagens sem fim no espaço aberto. 
Alquimista em deslocamento, não entroniza a vida como 
sobrevivência. Arabesco esfumaçado de contornos, deixa-
se ativar pela vida. Fabulosa reserva rizomática, existe 
para reinventar a vida. Sísmico, em labirintos, faz circular 
nuances infinitas da vida, pelas quais vale a pena constituir 
novos modos de existência. Artistagem do viver, para 
tornar-se “vivível, praticável, pensável” (Deleuze, 1992, 
p. 138), o geocurrículo biografematiza (Barthes, 2005) a 
sua própria feitura, identificando-se com Mallarmé (2006, 
p. 31-32), quando este premedita e arquiteta “o Livro”: 
“mostrar um fragmento executado, fazer cintilar a partir 
de um ponto sua autenticidade gloriosa, indicando todo o 
resto para o qual uma vida não basta. Provar pelas porções 
feitas que este livro existe, e que conheci o que não poderei 
ter cumprido”.
Referências 
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EM EDUCAÇÃO. TRABALHO ENCOMENDADO – Programação do 
GT Currículo na 32ª Reunião Anual, 2009 http://www.fe.unicamp. br/
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160
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. (Trad. Mário Laranjeira.) São Paulo: 
Martins Fontes, 2005. 
COSSUTTA, Frédéric. Eléments pour la lecture des textes philosophiques. Paris: 
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_____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. (Trad. Célia Pinto Costa.) 
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161
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FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: _____. Microfísica 
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Costa Albuquerque e J.A.Gilhon Albuquerque.) Rio de Janeiro: Graal, 1993. 
MALLARMÉ, Stéphane. Autobiografia. In: _____. Contos indianos. (Trad. 
Dorothée de Bruchard.) São Paulo: Hedras, 2006 (p. 29-35). 
MARQUES, Antônio. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo: 
Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003. 
NIETZSCHE, Friedrich W. A gaia ciência. (Trad. Paulo César de Souza.) São 
Paulo: Companhia das Letras, 2001. 
_____. Fragmentos finais. (Trad. Flávio R. Kothe.) Brasília: Editora Universidade 
de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 
_____. Crepúsculo dos ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. (Trad. Paulo 
César de Souza.) São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 
RAJCHMAN, John. The Deleuze connections. Cambridge: Massachusets 
Institute of Tecnology Press, 2000.
163
O DRAMA DO CURRÍCULO: 
pesquisa e vitalismo de criação8
Vontade criadora
Vitalismo de toda criação. Vontade criadora de tudo 
o que é vivo. Força de vida imanente a todas as coisas. 
Pulsação vital. Relações de força que se exercem sobre 
linhas de vida e de morte, que se dobram e desdobram 
para traçar o limite do pensamento: “vitalismo sob fundo 
de mortalismo”. Linha afetiva, atlética, cheia de desvios, 
nunca reta, que atravessa a concretude dos organismos e 
da biosfera: “São os organismos que morrem, não a vida” 
(Deleuze, 1992, p. 114; p. 131; p. 179). Energia afirmativa 
de experimentação. Potência anorgânica, como a de um 
bebê, que pode existir numa linha de música, de desenho, 
de escrita: “querer-viver obstinado, cabeçudo, indomável”, 
que “concentra em sua pequenez a energia suficiente para 
arrebentar os paralelepípedos”. Vitalidade do tipo “bebê-
tartaruga de Lawrence” (Deleuze, 1997, p. 151), que existe 
também em um currículo. 
Pensado desse modo – com variações entre suas rela- 
ções de movimento e repouso, velocidade e lentidão –, não 
há currículo que não expresse ou não viva uma vida. Vida 
impessoal, que precede hábitos, rotinas, regularidades, 
posições de sujeito, objetos reconhecíveis, valores instituí- 
dos, normas legitimadas, ordens estabelecidas, verdades 
transmitidas – “as verdades são ilusões, das quais se 
8 Texto apresentado no GT “Educação e Arte”, no X Seminário de Pesquisa 
em Educação da Região Sul (ANPED), realizado na Universidade de Caxias 
do Sul, em Caxias do Sul, RS, de 29 de julho a 1º de agosto de 2012; com 
versão publicada digitalmente em http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.
php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewFile/128/786.
8
164
esqueceu que o são” (Deleuze; Guattari, 2004, p. 334). 
Vida incondicionada, portanto, que não pode ser confun- 
dida com a vida do currículo tal, porque excede, em sua 
concepção, a existência particular de qualquer currículo. 
Vida nunca dada, já que a própria ideia de vida é uma 
ficção – embora capaz de produzir o real e não apenas de, 
tolamente, corresponder-lhe. Vida pré-individuada, singular, 
experimental, desenredada de causalidades, memória psi- 
cológica e condições materiais. Vita femina, como em 
Nietzsche (1974, p. 56; 2001, p. 22): “talvez esteja nisso o 
mais forte encanto da vida: há sobre ela, entretecido de 
ouro, um véu de belas possibilidades, cheio de promessa, 
resistência, pudor, desdém, compaixão, sedução. Sim, a 
vida é uma mulher”! E “uma mulher que dança”, acrescenta 
Valéry (1996, p. 23). Aqui, este texto trata disso: a vida 
(transcendental) de um currículo (virtual). 
Dessa perspectiva, não há currículo que não indique 
entradas e saídas para novas vidas, percursos para 
outras formas de existência, incidências sobre inéditas 
possibilidades de viver: “trata-se sempre de liberar a vida lá 
onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate 
incerto” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 222). Não há um, que 
não integre “as ‘coisas feitas’, o humano e o transcendental, 
a natureza e a cultura, o pré-social e o social” (Silva, 1999, 
p. 73). Não há currículo que não tensione a segunda 
natureza dos indivíduos e impulsione “uma vida anterior 
em potência, capaz de convocar e de reunir, sem abolir 
aquilo que nos torna singulares” (Rajchman, 2000, p. 89). 
Não há um, que não abale as próprias representações, 
arrastando-se até os seus limites, avesso ou Fora. Não há 
currículo que produza só invariantes. Não há um, que se 
repita, sem o fazer diferentemente. Não há currículo que, 
nas bordas das individuações, não se dedique aos anômalos 
nem deixe de se opor às normalidades. Não há um, que 
não fissure os padrões, reconhecimentos, recognições. 
Não há currículo que imagine e acate só identidades 
majoritárias. Não há um, que não opte pela multiplicidade 
em detrimento da diversidade. Não há currículo que não 
165
tenha como inquietação aquela preexistente às identifi- 
cações: Como fazer o múltiplo? – pois “Le multiple, il faut 
le faire” – “O múltiplo, é preciso fazê-lo” (Deleuze, 1997, 
p. 16; DeleuzE; Guattari, 2004, p. 298).
Não há currículo que não acabe se distanciando da 
ciência oficial e do aparelho de Estado, em seus consensos 
sobre estratos, classes, espécies, modelos. Nenhum, que 
não redistribua os dados, force novos lances, relance teses 
alegres e livres. Não há currículo que não considere a reali- 
dade, senão como interpretativa ou perspectivista. Nenhum, 
que não minorize currículos majoritários, calcadosna opi- 
nião e no senso comum. Não há currículo que apenas 
aplique a teoria à prática ou vice-versa. Nenhum, que se 
contente com o vazio da compreensão especulativa. Não 
há currículo que não tenha intuições. Nenhum, que não 
crie ilusões, as quais “não são contrassensos abstratos, nem 
somente pressões de fora, mas miragens do pensamento” 
(Wotling, 2001, p. 55-56; Deleuze; Guattari, 1992, p. 67). Não 
há currículo que ignore que grande parte das coisas não 
merece ser dita nem escrita. Nenhum, que não ria, es- 
pecialmente de si mesmo. Não há currículo que não sofra 
as vicissitudes de sua concepção, os devires de sua gestação 
e as dores do seu vir à luz. Nenhum que não saiba que vai 
morrer e que outros currículos advirão justamente da sua 
morte.
A pesquisa curricular depara-se, assim, com a ideia de 
um biocurrículo, a qual implica “toda uma política, uma 
‘política de vida’” (Dias, 1995, p. 152). Nessa pesquisa, la- 
teja um currículo vivente, que recorta o caos: “O caos tem 
três filhas segundo o plano que o recorta: são as Caóides, 
a arte, a ciência e a filosofia, como formas do pensamento 
ou da criação” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 267). Através 
dessas Caóides (que rugem diante do caos e se movimen- 
tam nas coisas e em nós), um currículo exclama: – “Dê-me 
um cérebro”, visto que o cérebro é “a junção (não a uni- 
dade) dos três planos” (Deleuze, 2005a, p. 244). Tal cérebro 
(tornado sujeito) realiza uma pragmática múltipla, cuja 
matéria plástica (relativamente indiferenciada e incerta) 
166
não segue circuitos fixos, mas abre-se para imprevistos 
trajetos. Em seu devir-sujeito, o cérebro de um currículo 
lida com signos, acontecimentos, rizomas; remetendo os 
pesquisadores “a um caos tornado consistente, tornado 
Pensamento, caosmos mental” (Deleuze; Guattari, 1992, 
p. 267).
Ao lutar, em aliança com outras práticas criadoras e 
forças afirmativas, um currículo vitalista cria “possibilida- 
des de vida: transmutação” (Deleuze, 1997, p. 121). Integra, 
por conseguinte, a “célebre ‘luta pela vida’” (Nietzsche, 
2006, p. 71; Dias, 1995, p. 147-148), no sentido anti-Darwin, 
qual seja: “o aspecto geral da vida não é a necessidade, a 
fome, mas antes a riqueza, a exuberância, até mesmo o 
absurdo esbanjamento – quando se luta, luta-se pelo poder” 
(Nietzsche, 1992, p. 171). Erige-se, assim, como “poder 
afirmativo da vida, enquanto sua vida age como força ativa 
do pensamento” (DELEUZE, 1997, p. 150). Poder de uma 
força que tão-somente existe, como tal, ao agir sobre outras 
forças: “não devido a uma moralidade ou imoralidade 
qualquer, mas porque vive, e vida é precisamente vontade 
de poder” (Nietzsche, 1992, p. 171). Vontade que, ao en- 
contrar obstáculos e limites, promove “combates-contra” 
(contra o Outro) e “combates-entre” (entre Si): o combate-
contra “procura destruir ou repelir uma força”; enquanto 
o combate-entre consiste no “processo pelo qual uma força 
se enriquece ao se apossar de outras forças somando-se a 
elas numnovo conjunto, num devir” (Deleuze; Guattari, 
1992, p. 270). 
Vida, portanto, de um currículo decididamente com- 
batente, exercida em seus conteúdos, órgãos, tecidos, 
conexões; e ainda em sua paixão pura, fantasia, alma, espírito 
(ou força). Sem trégua, esses afrontamentos do cérebro 
curricular com o caos resultam em hierarquias nunca 
definitivas; pois, como qualquer vida, também aquela de um 
currículo “é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do 
que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição 
de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais 
comedido, exploração” (Nietzsche, 1992, p. 171).
167
Vidas-obras contemporâneas
A pesquisa enfatiza um vitalismo curricular, desenvolvido 
em névoas não-eternas, e que acompanha aqueles autores 
que pensam o nosso presente, ou seja, os contemporâneos de 
um currículo (ANPED, s/d). Sob a condição que o presente 
é o que são e, por isso mesmo, o que já deixam de ser, os 
pesquisadores operam num tempo de coexistência, entre as 
suas próprias Vidarbos (vidas-obras), as dos currículos e as 
de seus contemporâneos, superpondo-os numa ordenação 
estratigráfica; juntamente com outras obras-vidas que 
atravessam a história da ciência e da filosofia, da literatura e 
do teatro, da poesia e da pintura, da música e do cinema, da 
crítica e da clínica. 
Lidam, assim, com diversas temporalidades e 
possibilidades de viver, as quais resistem a um nada de 
vontade; desde que a criação é resistência, enquanto devires 
e acontecimentos puros. Deslizando no devir-infinito que 
atravessa essas vidas-obras, os pesquisadores consideram-
nas “seja como pontos luminosos”, que os fazem passar 
pelos componentes de um conceito; “seja como os pontos 
cardeais de uma camada ou de uma folha”, que os visitam 
(Deleuze; Guattari, 1992, p. 145; p. 78). Entendem tais 
Vidarbos, das quais são tributários, no sentido de Nietzsche 
(1995, p. 52; p. 67; 2006, p. 11; p. 53; Souza, 2006, p. 113): 
mais do que “temporâneas”, “tempestivas” ou “atuais”, 
elas são “extemporâneas”, “intempestivas” ou “inatuais”: 
menos compreendidas do que as temporâneas, mas mais 
ouvidas – daí a sua autoridade.
As obras-vidas de um currículo agem, dessa maneira, 
“contra o passado, e assim sobre o presente”, em favor de um 
porvir, “que não é um futuro da história, mesmo utópico, é 
o infinito”: “o Intensivo ou o Intempestivo, não um instante, 
mas um devir” (Deleuze; Guattari, 1992, 144-145). Como, 
para elas, “o pensamento jamais foi questão de teoria, e 
sim problemas de vida, a própria vida”, quando cada um 
vive o seu presente, pensa e, ao mesmo tempo, o contra-
efetua, abstraindo-o dos “estados de coisas, para liberar seu 
168
conceito” (Deleuze, 1992, p. 131). E como vivem, também, 
o nosso presente, levam-nos a problematizar experiências 
presentes (existenciais, acadêmicas, artísticas, políticas), a 
par de contra-efetuá-las. Fornecem, desse modo, condições 
para pensar, perceber, sentir, avaliar, afetar um currículo, 
de maneira vívida – “uma possibilidade de vida se avalia 
nela mesma, pelos movimentos que ela traça e pelas 
intensidades que ela cria” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 205). 
A Vidarbo de um currículo é, desse modo, maquinada 
entre as vidas-obras dos pesquisadores e as obras-vidas dos 
seus contemporâneos, que são agentes de enunciação ou 
“precursores sombrios” (Deleuze, 2006, p. 132); os quais 
distribuem as energias de seus traços páticos, relacionais, 
dinâmicos, jurídicos, existenciais, para a execução de 
movimentos concretos do pensamento. Como “precisamos 
sempre de alguém que ‘interceda’ na abertura de novos 
caminhos, ou no esboço de novas linhas para as nossas 
vidas” (Rajchman, 2000, p. 92), tais agentes funcionam como 
intercessores de alguma Vidarbo curricular, ou seja: “uma 
aptidão do pensamento para se ver e se desenvolver através 
de um plano”. Pensando esse plano, a Vidarbo curricular é 
experimentada, desde que “a experimentação é sempre o 
que se está fazendo – o novo, o notável, o interessante, que 
substituem a aparência de verdade e que são mais exigentes 
que ela” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 143).
Não que, nos procedimentos de pesquisa, criados para 
vivificar um currículo, as histórias de vidas assegurem 
alguma interioridade ontológica; ou que as obras dos 
contemporâneos tenham perdido a validade; ou, mesmo, 
que a pesquisa pretenda superar problemas que foram 
anteriormente formulados. Acontece que, quando um 
pesquisador pensa um currículo, nele ressoam essas 
Vidarbos; o que prova, inequivocamente, que um currí- 
culo, mesmo que lá, naquela vida-obra determinada, não 
existisse, estava por vir. Isso porque os intercessores dos 
currículos, como artistas, criam sensações (num plano de 
composição, via figuras estéticas), trazendo variedades do 
caos; ou, como cientistas, criam funções (num plano de 
169
referência, via observadores parciais), trazendo variáveis do 
caos; ou, como filósofos, criam conceitos (num plano de 
imanência, via outros personagens conceituais),do caos 
trazendo variações (Deleuze; Guattari, 1992). 
Assim, quando os pesquisadores estudam a Vidarbo de 
um currículo ou de um contemporâneo, não realizam um 
retorno a algum autor ou obra, mas, a cada um que conta 
“(para não dizer: amado)” (Barthes, 2005, p. 20), e do qual 
são simples invólucros, pseudônimos, idiossincrasias, 
perguntam: com que intensidade você prossegue na com- 
panhia de um currículo, levando a fecundidade da sua 
experimentação a torná-lo um contemporâneo? Como 
sua vida-obra funciona para diagnosticar os devires de 
um currículo, em cada presente? Neste agora, o que você 
tem a dizer sobre um currículo? Quais modos de existência 
a sua Vidarbo implica, considerando que “um modo de 
existência é bom ou mau, nobre ou vulgar, cheio ou vazio, 
independente do Bem e do Mal, e de todo valor transcen- 
dente”; e que, portanto, “não há nunca outro critério senão 
o teor da existência, a intensificação da vida” (Deleuze; 
Guattari, 1992, p. 98)? Quais possibilidades de obras e 
vidas são abertas ou fechadas por sua Vidarbo? Como os 
conceitos, sensações ou funções, que você cria – “mediante 
que recomposições ou mesmo desvirtuações necessárias” 
(Dias, 1995, p. 146) –, encontram ainda os problemas que 
são os de hoje e nos ajudam a pensar outras coisas? 
Ao formular essas questões, que vivificam um currí- 
culo, os pesquisadores passam da leitura amorosa ao ato 
de escrever. Ao agir, reescrevem cada Vidarbo de suas 
“matrizes de escrita” (Deleuze, 1997, p. 16), voltada àquele 
currículo. Ao tornarem cada vida-obra outra, juntam-se, 
ativamente, “ao que é belo” (Barthes, 2005, p. 14). Ao se 
movimentarem em zonas de indeterminação das Vidarbos, 
apanham suas “interferências ilocalizáveis” (Dias, 1995, 
p. 43). Ao apelarem a forças extra-curriculares, executam 
“a passagem da vida na linguagem que constitui as Ideias”. 
Ao se autorizarem, por mutações precedentes de escrituras, 
constroem “formas do Pensamento-cérebro, ou do Espírito 
170
como Criação”. Ao não considerarem qualquer diagnóstico 
de deficiência a ser reparada, alienação política, inautentici- 
dade autoral ou depreciação moral de outros currículos, 
procedem a trabalhos de ficção. Ao mostrarem a “Vida no 
vivente ou o Vivente no vivido”, expressam mundos possíveis: 
nem atuais nem virtuais, tendo “o possível como categoria 
estética” (Deleuze; GuattarI, 1992, p. 278; p. 224; p. 230).
Dessa maneira, os pesquisadores tornam pública “uma 
força efetiva para além da cultura e do mundo das letras”, 
operando “sobre o dividual, o político, o social” (Pellejero, 
2009, p. 58; p. 70). Alimentando o plano informal da vida 
curricular, erguem uma reserva imprevisível e um viveiro 
inatribuível de sentidos e valores. Estimulando a abertura 
e o acolhimento crítico do pensamento às potencialidades 
de outras relações, categorizações e individuações, tornam 
os currículos inespecíficos e imprecisos. Forçando-os a não 
pertencerem a gênero algum, resguardam o seu caráter 
inefável, por amor às Vidarbos curriculares. Evitando que 
caiam no jazigo dos currículos acabados, exercitam o 
questionamento: “se eles nos convêm ou desconvêm, isto 
é, se nos trazem forças ou então nos remetem às misérias 
da guerra, às pobrezas do sonho, aos rigores da organização” 
(Deleuze, 1997, p. 153). Irradiando forças vitais, diante das 
rígidas segmentarizações, criam condições para, junto a 
Foucault, infinitamente, bradar: “Possível, por favor, senão 
eu sufoco” (Deleuze, 1992, p. 230)! 
Cultura dramática
A partir dessas vontades criadoras de Vidarbos, como 
pensar e falar, escrever e ler sobre as vidas e obras contidas, 
descritas ou produzidas nos currículos? Dentre diversas 
maneiras possíveis, que integram a literatura curricular, 
este texto apresenta o Método (técnica, operação, procedi- 
mento) de Dramatização, para tratar um currículo como 
drama e fazer um drama do currículo. 
Tal modo de curricularização deriva do pensamento 
do filósofo Gilles Deleuze dos anos 60 (Deleuze 1976; 1988; 
171
2006), no que se refere ao aporte do “Método de Dramati- 
zação”, presente, especialmente, nos livros Nietzsche e a 
filosofia; Diferença e repetição; e na conferência proferida 
na Societé Française de Philosophie, em 28 de janeiro de 
1967, intitulada dessa mesma maneira, na qual Deleuze 
(2006, p. 144) afirma: “Tento definir mais rigorosamente 
a dramatização: são dinamismos, determinações espaço-
temporais dinâmicas, pré-qualitativas e pré-extensivas 
que têm ‘lugar’ em sistemas intensivos onde se repartem 
diferenças em profundidade, que têm por ‘pacientes’ sujeitos, 
esboços, que têm por ‘função’ atualizar Ideias” (Deleuze, 
2006, p. 144). 
Deleuze (2006, p. 145-146) argumenta que, ao 
corresponder um sistema de determinações espaços-
temporais a um conceito, “um logos é substituído por um 
‘drama’”. Fornece o exemplo de “uma cólera”, como “uma 
dramatização que põe em cena sujeitos larvares”; existindo, 
inclusive, “um liame fundamental entre a dramatização e 
um certo mundo do terror, mundo que pode comportar 
o máximo de bufonaria, de grotesco”. Apoiado no drama 
filosófico do logos – transmutado, aqui, em drama educa- 
cional de um currículo –, este trabalho examina a inserção 
do teatro na obra de Deleuze; estuda os seus principais 
componentes conceituais e operatórios; e, ao mesmo tempo, 
propõe um roteiro de leitura e de escritura (uma Chave 
de Escrileitura), para evidenciar o caráter dramático de 
um currículo – Debaixo de todo currículo há um drama.
O teatro deleuziano
Aquilo que Deleuze escreveu especificamente sobre 
o teatro é pouco trabalhado, tanto pelos filósofos quanto 
pelos teóricos do teatro (Pellejero, 2006; Wiame, 2009). 
O próprio Deleuze (2005b), no Abecedário (letra C de 
Cultura), afirma a sua falta de interesse pela produção tea- 
tral contemporânea, exceção feita a Carmelo Bene (Deleuze, 
2003) e a Bob Wilson. No livro Anti-Édipo, em 1972, junto 
a Guattari, Deleuze (1976) dota o teatro de um valor nega- 
172
tivo, ao afirmar que o inconsciente não é um teatro, mas 
uma fábrica; não é uma tragédia clássica, que funciona 
seguindo a ordem da representação, mas uma produção 
desejante, de funcionamento maquínico.
Já em Diferença e repetição, de 1968, o modo como 
Deleuze (1988, p. 311) tratava o teatro era outro, visto que, 
desde o prefácio, declarava estarem esgotados os modos 
antigos de expressão em filosofia; sendo necessário renová-
los, seguindo os novos meios de outras artes, como o 
teatro e o cinema. Esse apelo a um novo teatro, oposto ao 
da representação, configura um teatro das multiplicidades, 
cuja pesquisa encena o pensamento, indo de uma máscara 
a outra e reinventando os papéis: “teatro que não deixa 
subsistir a identidade de uma coisa representada, de um 
autor, de um espectador, de um personagem em cena”; 
logo, “teatro de problemas e de questões sempre abertas”, 
que leva junto “o espectador, a cena e os personagens no 
movimento real de uma aprendizagem de todo o inconsciente, 
cujos últimos elementos são ainda os problemas” (Deleuze, 
1988, p. 310-311).
Mesmo diante da descontinuidade que a relação de 
Deleuze com o teatro sofre – em função do encontro com 
Guattari e das críticas de ambos à psicanálise –, há um 
invariante em sua posição acerca do teatro, qual seja: essa 
ideia está ligada à crítica de Nietzsche à representação, que 
toma o teatro como meio de experimentação cênica, mais 
do que como fixação sob a forma de drama. Considerando, 
desde o início, o teatro sobre o plano de expressão do 
pensamento, Deleuze mostra que Nietzsche e Kierkegaard 
possuem obras, que contêm uma nova concepção de 
movimento, para a qual toda representação é desde sempre 
mediação; e que eles são os primeiros filósofos a utilizar os 
meios de expressão próprios aos diretores de teatro (metteurs 
en scène). Chegam mesmo a fazer desse teatro, que se realiza 
no pensamento, uma máquina de guerra contra Hegel e 
contra aquilo que chamam o seu “falso teatro”, composto 
por movimentos lógicosabstratos, que operam pela mediação 
e representam conceitos; em vez de dramatizarem as Ideias. 
173
A proposta deleuziana é produzir um movimento de 
pensar, capaz de colocar o espírito fora de toda representação; 
fazer desse movimento uma obra, sem interposição; substituir 
os signos diretos pelas representações mediadas; inventar 
vibrações, rotações, gravitações, que atinjam diretamente o 
espírito. Compreende-se que essa concepção de um teatro 
do pensamento não corresponde ao teatro clássico; porque, 
nela, não há preocupação nem atos com a representação, 
com a produção de ilusão, com a distinção entre ator e 
personagem. Deleuze (1988, p. 35) constrói a ideia de um 
teatro sub-representativo, feito de intensidades, máscaras 
e singularidades, que movimentam o pensamento: “No 
teatro da repetição, experimentamos forças puras, traçados 
dinâmicos no espaço que, sem intermediário, agem sobre 
o espírito, unindo-o diretamente à natureza e à história”; 
“uma linguagem que fala antes das palavras, gestos que se 
elaboram antes dos corpos organizados, máscaras antes das 
faces, espectros e fantasmas antes dos personagens – todo 
o aparelho da repetição como ‘potência terrível’”. Deleuze 
(2006, p. 134) concebe, assim, seguindo Artaud, um Teatro 
da Crueldade contra o Teatro da Representação. 
Se recorre ao potencial expressivo do teatro em filo- 
sofia, de onde vem a insistência deleuziana sobre o teatro 
no pensamento? Essa articulação gira ao redor do conceito 
de repetição; tanto que, muitas vezes, Deleuze denomina-o 
“teatro da repetição”; o qual encontra sua razão de ser nas 
camadas mais profundas do psiquismo. Inclusive, um dos 
objetivos de sua Tese de Estado é elaborar um conceito 
de repetição que não seja uma repetição bruta, baseada 
na similaridade entre termos repetidos; mas dissimétrica, 
produtora de diferença de potências, condensadora de 
singularidades: por exemplo, o eco em relação à voz; o 
fantasma em relação à pessoa que vive; gêmeos repetidos, 
mas, para os quais, não há substituição possível entre os 
termos. Assim, para Deleuze (1988, p. 16), “as repetições 
físicas, mecânicas ou nuas (do Mesmo) encontrariam sua 
razão nas estruturas mais profundas de uma repetição 
oculta, em que se disfarça e se desloca um diferencial”. 
174
As forças fundamentais da Ideia são, intrinsecamente, 
a repetição e a questão dramática. A Ideia constitui-se numa 
pulsão teatral, através de disfarces (dramatização), que não 
vêm recobrir uma outra realidade; pois ela não é outra 
coisa que a repetição singular desses disfarces, que não 
escondem qualquer verdade nua: “A repetição é verdadei- 
ramente o que se disfarça ao se constituir e o que só se 
constitui ao se disfarçar”. Ela não fica sob as máscaras, “mas 
se forma de uma máscara a outra”, como indo de um rele- 
vante ponto a outro, de um privilegiado instante a outro: 
“As máscaras nada recobrem, salvo outras máscaras”. 
A repetição é um travestimento, que desfaz e reinventa 
personagens e papéis, constituindo sem cessar o sujeito: 
“É a máscara o verdadeiro sujeito da repetição” (Deleuze, 
1988, p. 45; p. 47).
Aventura das ideias
Em 1967, na conferência “O método de dramatização”, 
Deleuze (2006) propõe um método para o exercício do 
pensamento filosófico – método que é de leitura e com- 
preensão, de análise e produção. Mais adiante, “método” 
(ou “esquema kantiano”) será substituído, em parte, pelos 
conceitos de “estratégia”, “operação”, “procedimento”, espe- 
cialmente nos livros dos anos 80 (dentre os quais, Deleuze, 
1985; 2003; 2005a; Deleuze; Guattari, 2004). Por enquanto, 
a produção deleuziana tem a orientação determinada de 
uma dramatização. 
A que visa esse conceito tirado do quadro teatral? Ora, 
neste período, Deleuze (1988, p. 290; p. 343-344) distingue 
“Ideia” de “conceito”: se este é considerado uma noção 
abstrata, hipotética, geral; aquela é a verdadeira objetividade, 
feita de relações diferenciais e provida do problemático, 
enquanto “o conjunto do problema e de suas condições”: a 
Ideia é “real sem ser atual, diferençada sem ser diferenciada, 
completa sem ser inteira”. Desse modo, o conceito está do 
lado da essência teoremática (platonismo); enquanto a Ideia 
fica do lado do inessencial, das afecções e dos acidentes.
175
Os dramas – ou “processos dinâmicos” –, na “aventura 
das Ideias” (Deleuze, 1988, p. 347; p. 295), colocam em 
cena forças e potências que agem nos acontecimentos, em 
detrimento daquilo que aparece na superfície do pensar. 
Literalmente, é isso o que significa drama: performar as 
Ideias, quase encobertas pela ação. O método visa pôr 
em destaque o caráter dramático de todo acontecimento. 
Como afirma Deleuze (2006, p. 139): “Il y a toujours un 
‘drame’ sous tout logos” (“Há sempre um drama sob todo 
logos”). 
Porém, se o método tem por objeto essa parte dramá- 
tica do pensamento que é, em geral, dissimulada, o que 
esse drama recobre? O que impede as Ideias de serem 
totalmente manifestas? Ora, aquilo que Deleuze denomina 
“a imagem do pensamento”, qual seja: o pensamento 
conceitual tem como pressuposto implícito uma imagem 
pré-filosófica e natural, retirada do senso comum, “onde 
ocorre a atividade conjunta das faculdades”. Segundo essa 
imagem, o pensamento tem afinidade, possui formal- 
mente e quer materialmente o verdadeiro; “e é sobre esta 
imagem que cada um sabe, que se presume que cada um 
saiba o que significa pensar” (Deleuze, 1988, p. 218-219).
A extração do pensar do domínio do senso comum 
e da generalização pelo conceito é o que a dramatização 
objetiva. Nisso consiste a primeira dimensão do método: 
uma dimensão diagnóstica, crítica e genealógica, que des- 
taca o recobrimento da parte dramática do pensamento, 
em lugar de uma imagem dogmática e moral. Imagem 
que se instala antes de todo exercício de pensar, formando 
um “inconsciente da filosofia”. Em função dessa imagem, 
é que Deleuze afirma não existir um verdadeiro começo 
em filosofia; desde que ela, sendo prévia ao pensamento, pré-
julga tudo que ali é produzido. 
Se a filosofia participa desse acobertamento dos dra- 
mas das Ideias é porque tem interesse em manter uma 
relação essencial com o exercício concertado de todas as 
faculdades. Contudo, o que esse exercício pretende? Apenas 
a recognição; para a qual, as faculdades são mobilizadas 
176
ao redor de um reconhecimento possível daquilo que é 
dado na experiência. Nesse sentido, a recognição é uma 
reapresentação, sob a forma do Mesmo. Além disso, porque 
essa imagem é natural, ela não pode ser plural; pode, até 
mesmo, conter expressões divergentes, neste ou naquele 
filósofo, mas é sempre unívoca, existindo somente uma 
imagem em geral, que constitui o pressuposto subjetivo da 
filosofia: “caráter inconsciente das Ideias” (Deleuze, 1988, 
p. 310).
Movimentos do método de dramatização
Como pode o pesquisador pôr em evidência aquilo que 
recobre a parte dramática do pensamento de um currículo? 
Esse teatro é encenado através de dois grandes movimentos: 
o crítico-genealógico e o experimental-exploratório.
1. Crítico-genealógico. Inicialmente, em um currículo 
estudado, o pesquisador diagnostica as séries constituintes, 
disparatadas e paradoxais, que integram um sistema met- 
aestável, constituído de puras intensidades heterogêneas. Tais 
séries desenrolam-se em dois planos, os quais ecoam sem 
semelhança: uns, reais, ao nível das soluções engendradas; 
outros, ideacionais ou ideais, ao nível das condições do 
problema de um currículo, como atos; além de serem postas 
em comunicação, por meio de encontros e de avaliação 
sempre imanente.
Para cada uma das séries, o pesquisador relaciona 
todos os indícios e signos, que agem nas situações e nos 
acontecimentos do currículo em questão, são dados à re- 
presentação e podem ser encontrados como sintomas de 
uma vontade que quer alguma coisa, tais como: 1) Objetos\
Coisas\Fenômenos; 2) Conceitos\Conhecimentos\Saberes; 
3) Sentimentos\Emoções\Sensações; 4) Poder\Relações; 
5) Crenças\Desejos\Pretensões;6) Sujeitos\Subjetividades; 
7) Identidades\Identificações. Dentre todos os indícios e 
signos relacionados, em cada uma das séries, o pesquisador 
escolhe aquele (somente um) que seja o mais recorrente 
ou o mais incomum.
177
Considerando que os processos dinâmicos que dra- 
matizam o currículo são atualizantes e diferenciantes, 
destaca as suas propriedades, criando espaços e tempos 
particulares; formando regras de especificação para os 
conceitos; determinando o duplo aspecto da diferençação, 
qualitativo e quantitativo (qualidades e extensos, espécies 
e partes); designando um sujeito, mas um sujeito embrio- 
nado; constituindo um teatro especial, que exprime Ideias.
Tratando cada indício e signo selecionado como sin- 
toma de uma vontade (força, potência), que quer alguma 
coisa, o pesquisador atribui importância máxima à forma 
das perguntas da qual deriva o Método de Dramatização. 
Para isso, não responde às perguntas, por meio de exemplos, 
mas pela determinação de um tipo; já que o que uma von- 
tade quer não é um objeto, mas um tipo: o tipo daquele 
que fala, pensa, age, não age, reage. Sublinhando que um 
“tipo” é constituído pela nuança ou qualidade da vontade 
de poder e pela relação de forças correspondentes, e que 
todo o resto é sintoma, o pesquisador reconhece que um 
tipo só é possível de ser definido quando se determina o 
que quer a vontade, nos exemplares desse mesmo tipo. 
Em vez de perguntar “O que é este currículo?” (que 
levaria à essencialização e à igualação do não-igual), privi- 
legia um certo comportamento do pensamento, indagando: 
1) QUEM QUER? Quem é aquele que quer? O que quer 
aquele que diz? Quais são as forças que dominam aquele 
que quer isso? Qual a vontade que possui aquele que 
quer isso? Quem, então, se exprime e, ao mesmo tempo, 
se oculta naquele que quer isso? Qual o seu tipo, isto é: 
a vontade, a força, o lugar e a ocasião em que ele quer? 
Quem ou de qual ponto de vista quer isso? Esta vontade 
de poder (este “quem”?) supõe o quê? Qual a imagem do 
pensamento pressuposta por esse tipo, que não é um 
indivíduo, mas aquele que quer a vontade de? O que quer 
aquele (tipo) que diz, pensa, sente ou experimenta isso? 
O que quer aquele que não poderia dizer, pensar, sentir 
ou experimentar isso, se não tivesse tal vontade, tais forças, 
tal maneira de ser? 2) QUANDO QUER? Em que condições? 
178
Em que caso(s)? 3) ONDE QUER? Lugares? Circunstâncias? 
Pontos de vista? 4) COMO QUER? Por quais operações? 
Por quais configurações de forças? 5) QUANTO QUER? 
Intensidade das forças que querem isso? Extensão da vontade 
que quer isso?
2. Experimental-exploratório. O pesquisador chega, 
agora, ao segundo movimento do Método, não mais 
crítico ou genealógico, mas exploratório e experimental. 
Não evita mais a imagem dogmática de pensamento; mas 
se introduz no interior de outro nível de Ideias, de uma 
outra experiência do pensamento, solicitando forças que 
são potências de uma terra incógnita jamais antes conhe- 
cida. A exploração desse espaço sub-representativo e pré-
individual é o principal elemento do Método, enquanto 
constituído não por objetos, coisas ou indivíduos, mas 
por agitações do espaço, buracos do tempo, puras sínteses 
de velocidades, direções, ritmos, “que determinam a atuali- 
zação da Ideia” (Deleuze, 1988, p. 347). 
Assim, para descrever o sentido e o valor de cada série 
do currículo em questão, o pesquisador pode operar em 
termos de: tipologia e topologia; relação de forças que 
determina uma vontade (um tipo); ontologia (sujeitos lar- 
vares); ética e política; “essência” (como sentido e valor); 
modos de existência derivados da experimentação; resso- 
nâncias internas e externas; nova Ideia (pensamento sem 
imagem ou nova imagem do pensamento); campos e 
regimes de individuação; encontros imanentes; transmu- 
tação de determinações demasiado humanas (o sobre-
humano); elementos ideais, diferenciais e problemáticos; 
acontecimentos, intensidades, produção de sentidos in- 
corporais; vivência da sensação e a criação artística; Vidar- 
bos curriculares; invenção de tudo.
Tensões permanentes
Lidando com os elementos conceituais e operatórios 
dispostos acima, a pesquisa vitalista pode, então, respon- 
der: como, através da multiplicidade espaço-temporal, do 
179
“diagrama informal” (Deleuze, 1991, p. 78), um currículo 
deixa passar as tensões permanentes entre o enunciável e 
o visível das Vidarbos? Como atribui às matérias fluentes 
e às funções difusas do pensamento histórico, antropoló- 
gico, psicológico, social ou cultural dos contemporâneos 
de um currículo, a densidade teatral sem perder a sua 
inteligibilidade? Como transforma em drama curricular os 
traços de conteúdo e de expressão da existência cotidiana 
com os seus ecos na consciência? 
Perseguindo o vago e o arbitrário, sob o controle de 
uma consciência, que “vai sem parar da ciência ao sonho 
e inversamente” (Deleuze, 1988, p. 353), a pesquisa busca 
ressonâncias entre as artes verbais e as ciências da exatidão. 
Produzindo escrituras que engendram interpretações e 
avaliações, não decodifica a linguagem para determinar o 
significado de um currículo. Fazendo uma leitura distante 
da global, não salta ou inflexiona as mesmas passagens. 
Apreciando não a estrutura ou os conteúdos, dedica-se às 
fendas, intermitências e esfoladuras curriculares. Despre- 
gada da autossuficiência, como instituição ou gênero, não 
objetiva a sabedoria, a realidade da vida nem a verdade. 
Propõe enigmas aos pesquisadores, que os leva a se debru- 
çarem sobre o luminoso disfarce da complexidade de um 
currículo. Máscara sobre máscara, ambiciona ser pesquisa 
sem maiúscula, cuja importância ocorre em função da 
sua habilidade de se disfarçar ao se constituir: “em última 
instância, nada há, salvo a vontade de potência, que é po- 
tência de metamorfose, potência de modelar as máscaras, 
potência de interpretar e de avaliar” (Deleuze, 2006, p. 157).
A dramatização de um currículo faz-se “na cabeça do 
sonhador, mas também sob o olho crítico do cientista”, 
agindo aquém dos conceitos e das representações. Através 
de deslizamentos e rotações das determinações puras – que 
agitam o espaço e o tempo e agem diretamente sobre os 
espíritos –, o Método expõe os dinamismos da constituição 
atual de um currículo. Não pode, pois, deixar de encenar 
o caosmos curricular, “nesses mundos de movimentos 
sem sujeito, de papéis sem ator” (Deleuze, 1988, p. 351). 
180
Cavando espaços, precipita ou desacelera tempos, via tor- 
ções e deslocamentos de inteligibilidade, que mobilizam 
as Vidarbos nos currículos. 
Desde que os pesquisadores procuram saber como 
funciona o drama do logos de um currículo (e não para 
que funciona), realizam processos que não se separam de 
suas Vidarbos e nem de seus contemporâneos. Conce- 
dem, portanto, que a inteligência formadora de um currí- 
culo possa não ser mais do que uma ficção; embora não 
encontrem nada melhor do que ela. Por isso, dispõem, 
no campo do currículo, efeitos de diferença, que não re- 
presentam o mundo da exterioridade; mas tomam tais 
efeitos como versões codificadas de acontecimentos. Mo- 
delizam, processualmente, um currículo, como ética do 
intelecto – seja social, técnica, política, educacional, artística –, 
produzida pelas inter-relações de ação, sentido e valor, 
entre Corpo, Espírito e Mundo – o CEM de Valéry (1931; 
1977). 
Quando a pesquisa vitalista dramatiza o informe cur- 
ricular, não acredita que um currículo não tenha formas; 
mas, que estas não encontram mais, no pensar, nada que 
permita substituí-las por um reconhecimento. Esse in- 
forme traz a lembrança das puras possibilidades dos currí- 
culos e defende o pensamento das ideias feitas, que tornam 
viável e fácil a vida prática, mas dispensam os pesquisa- 
dores de se surpreenderem. De algum modo, faz nascer 
germes de biocurrículos, tornados disformes. Cria, assim, 
uma vitalidade multiforme, no extremo da fantasia da 
Grande Arte de um currículo, a qual só podeser experimen- 
tada, independentemente da sua extensão: “obra da vida, da 
arte, do tempo ou um capricho da natureza” (Valéry, 2008, 
p. 67). 
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WOTLING, Patrick. Le vocabulaire de Nietzsche. Paris: Ellipses, 2001.
183
CURRÍCULO DA INFÂNCIA E 
INFÂNCIA DO CURRÍCULO: 
uma questão de imagem9
E se tudo fosse uma questão de imagem? Se a in- 
fância, para a qual preparamos, organizamos e desenvol- 
vemos o currículo, que lhe corresponde, nada mais fosse 
do que tão-somente imagem? Se também esse currículo 
fosse apenas imagem? E se o próprio pesquisador só pes- 
quisasse a partir da imagem que faz da pesquisa? Se, antes, 
inclusive, de o pesquisador pensar o currículo da infância 
e a infância do currículo fosse necessário ter inventado 
essas imagens – dentre elas, a de pesquisa e a do próprio 
pesquisador – para, só então, poder pensar? Se esse mo- 
vimento formador de imagens fosse a sua própria gênese, 
à qual lhe seguisse o pensar? E se essas pesquisas, que 
extraem imagens e forjam modos de existência, tornassem 
o pensamento que os pensa de novo possível, promovendo 
inéditas articulações entre arte, conhecimento e vida? 
Se a pesquisa da imagem, que é a mesma da criação 
do pensamento, estimulasse a estrangeiridade do pensar, 
evitando que as certezas coincidam com as verdades e 
afastando críticas eruditas e capciosas? Se, ao conceber a 
imagem, relevada do registro do pensamento, a pesquisa 
fornecesse, face à obstrução e, mesmo, à exclusão do pensar, 
algo inédito para experimentar, problematizar, formular 
e criticar problemas? Preparasse o pensar para a intensi- 
9 Texto apresentado na sessão intitulada “Currículo e educação infantil”, 
no X Colóquio sobre Questões Curriculares e VI Colóquio Luso-Brasileiro 
de Currículo, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais, de 04 
a 06 de setembro de 2012; e publicado, com variações, no livro Desafios 
contemporâneos sobre currículo e educação básica, organizado por Marlucy 
Alves Paraíso, Rita Amélia Vilela e Shirley Rezende Sales, pela Editora CRV, 
de Curitiba/PR, em 2012 (p. 25-38).
9
184
dade e a diferença, distinguindo-se da pesquisa que apenas 
reconhece a infância e o currículo, por meio de estruturas, 
regularidades e leis; divisão do trabalho e sexual; modelos 
e fitas métricas; representação e universais? 
No caso de assumirem esse procedimento singular, 
denominado noologia, ou estudo das imagens do pen- 
samento (Corazza, 2002; 2010), os pesquisadores inves- 
tigam as imagens de currículo, infância e pesquisa, não 
para refutar ou certificar aquelas que existem e operam 
neles e na sociedade, mas para voltar a pensa-las de outra 
maneira. Promovem um pensamento por vir, que queima 
a memória e esfarela a história, enquanto controles 
miméticos, instalados no mito da infância e na essência do 
currículo. Pensam infância e currículo, como totalidades 
abertas, que mudam incessantemente, por meio da pesquisa 
que dispara, afirma e arrisca, lavada das sujidades do negativo. 
Pensamento insolente e fictício, que pensa sem trocas re- 
guladas, tomando a pesquisa em educação, o currículo 
da infância e a infância do currículo como puros acon- 
tecimentos e variabilidades infinitas.
Essa noologia, contudo, nada vale sem o agenciamento 
das forças efetivas que atuam sobre a pesquisa e as 
indeterminações afetivas que forçam o pesquisador a pen- 
sar. Pesquisa que acontece no presente e cria aquilo que 
é requerido pela experiência real, não apenas possível. 
A sua potência é avaliada pelos sentidos de infância que 
renova; pelos novos recortes que impõe ao currículo; 
pelas experimentações de pesquisa que suscita. Uma pes- 
quisa, realizada como jogo e vertigem, em zonas pré-
individuais e impessoais, sem remissão a objeto ou a sujeito; 
que expressa o que há de potente, selvagem e vital, nos 
movimentos pesquisadores.
Para viver essa pesquisa das imagens do pensamento, 
o texto usa, como ponto de partida e trampolim, a produ- 
ção de Deleuze (1976; 1985; 1987; 1988; 2003; 2005; 2006; 
2007; 2009; 2010; 2011), e de Deleuze e Guattari (1992; 
1995; 1997), feita ao redor do conceito de imagem. Cria con- 
dições para ativar o pensar do pesquisador, em meio ao 
185
pensamento educacional; e avaliar se tal pensar é nefasto 
ou propício ao vitalismo das suas afecções.Pensar 
No entanto, a pesquisa noológica não teria qualquer 
valor, caso não chegássemos a um acordo sobre o que, 
nessa condição, é entendido por pensar. Diremos, então, 
que o pensamento difere do conhecimento e da reflexão, 
os quais são voluntários e conscientes; que pensamos 
sem o saber, até contra os saberes; e que, por isso, pensar 
é um ato involuntário, seja no seu surgimento seja no seu 
criar. Não nos damos conta que pensamos e o fazemos 
sempre sem querer; por isso, afirmamos que refletimos; 
mas, talvez, não possamos afirmar que pensamos; já que 
pensar é uma experiência de raridade. 
Para a noologia, pensar não é exercício de boa von- 
tade, feito com a correta aplicação de um método; não é 
indagar sobre a verdade das coisas, que correspondem às 
próprias perguntas e definições; não é julgar, pois não se 
preocupa com a verdade. Pensar é impressão, expressão, 
encontro com signos: “algo tornado estranho porque 
instantaneamente imantado por uma heterogeneidade que 
não se oferta à recognição tranquilizadora” (Orlandi, 2012, 
p. vi). Forçando-nos a olhar, constrangendo-nos a inter- 
pretar e nos obrigando a pensar de outro modo, os signos 
propõem imagens que irrompem e afetam aquilo que já 
sabemos. Carregam, assim, uma violência da exterioridade, 
que arranca o pensamento do seu natural torpor e da 
vacuidade de meras possibilidades abstratas. Essa violência 
impele a pesquisa a fabricar conceitos, perceptos, afectos 
ou funções, em uma singular luta contra o caos; a qual, ao 
mesmo tempo, esconde a secreta aliança contra aquilo que 
é o seu inimigo: lugares comuns da opinião, clichês, idées 
reçues (ideias feitas). Contra as convenções e as imitações, a 
reflexão e a comunicação, a aliança do pensamento com o 
caos é o que restitui à pesquisa “a incomunicável novidade 
que não mais se podia ver” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 262). 
186
Em face dos signos, o pensamento é faca que corta o 
caótico, como um plano corta um cone; o que implica 
captar, apreender, definir uma fatia de caos; o qual, no 
entanto, permanece livre em outras direções. O pensamento 
é um crivo, que seleciona e fixa, determina e contém o rio 
de Heráclito; embaralha a sintaxe e produz ideias voláteis, 
precárias, facilmente perdíveis, mas que atravessam todas 
as atividades criadoras. Pensar difere, assim, dos conhe- 
cimentos adquiridos e consolidados, da erudição e da 
bagagem cultural dos pesquisadores. Logo, para estes, 
aprender consiste em decifrar a ininterrupta emissão de 
signos, que “são objeto de um aprendizado temporal, não 
de um saber abstrato”, diante de “uma matéria, um objeto, 
um ser” (Deleuze, 1987, p. 4). 
O pensamento que pensa as imagens e os signos é 
perturbação, ruptura, experimentação, processo de criação, 
singularidade, diferença, fluxo nômade, viagem. Tendo 
uma geografia antes de ter uma história: “o pensamento 
pressupõe ele próprio eixos e orientações segundo os quais 
se desenvolve”, traçando “dimensões antes de construir 
sistemas” (Deleuze, 1998, p. 131).
Ao pesquisar noologicamente, esse pensamento-outro 
não se pensa a si mesmo, sem tornar-se inútil ou aprisionar-
se numa interioridade estéril, condenado ao subjetivismo, 
ao relativismo, ou à impotência. O seu problema é pensar 
a exterioridade e a sua necessidade; exercitando não uma 
sucessão regrada dos conhecimentos do espírito, mas 
um construcionismo; que encontra o pensar se fazendo e, 
ao fazer-se, pensando as suas criações. Todo pensamento 
nasce nos limites do próprio pensar, desde que carrega 
a potência de saltar, de ultrapassar-se, de ir até o extremo 
do que pode pensar. 
Assim operando, a pesquisa propõe um pensamento 
sem imagem; ou desenvolve uma nova imagem do 
pensamento, expressa pelo plano de imanência, na filosofia; 
pelo plano de composição, na arte; ou pelo plano de 
referência, na ciência. Diferenciam-se, desde aí, a concepção 
e a prática da pesquisa noológica de outras pesquisas, 
187
baseadas na reflexão sobre o currículo e a infância. Isso 
encaminha a imagem com a qual pesquisamos. 
Imagem 
A imagem do pensamento é o que precisamos para 
pensar. Em cada tipo de pensamento, encontramos imagens, 
embora elas nem sempre sejam evidentes. Ao formar 
uma imagem de infância e de currículo, ou ao deslocar-se 
dramaticamente de uma a outra, cada pesquisador começa 
a pensar de novo; isto é, volta a formular o que seja pensar 
a infância e o currículo. Assim, para a noologia, o que valem 
são as imagens, como pressupostos do que seja pensar, 
nessa ou naquela direção. Qualquer criação supõe, em 
primeiro lugar, uma imagem – como figura, paisagem, 
cena, chão pré-teórico –, que subjaz ao saber e o prefigura; 
de modo que um saber só é compreendido a partir desse 
campo prévio.
Mas, o que é uma imagem de pensamento? Não se 
trata de cópia mental ou representação subjetiva; nem 
mesmo é uma Weltanschauung (concepção de mundo); não 
é representante da coisa no intelecto, ou visão do objeto na 
consciência; não pode ser deduzida da ideologia, nem do 
contexto social e econômico; tampouco, pode ser confun- 
dida com a transparência das formas ou das ideias, nem 
com o esclarecimento de proposições; não é um dado 
psicológico, nem está no cérebro do sujeito – ao contrário, 
tanto o cérebro quanto o sujeito são imagens entre outras. 
A imagem é diagrama, horizonte e solo, atmosfera e 
reservatório, vibração movente da matéria e relação de forças 
sensíveis, desprendidas dos afectos. Ela é um ser, uma coisa, 
“um arquivo audiovisual” (Deleuze, 1991, p. 60). Entendida 
como uma aparição, no sentido de Bergson (1999), não 
necessita ser percebida para existir; mas tem uma exis- 
tência física, como um choque, traumatismo, concussão, 
fulguração. Nesse realismo, a imagem não é encontrada; 
mas é fabricada, como resposta a problemas; os quais 
não se resolvem de uma vez por todas; mas formulam-
188
se continuamente, ou se dissolvem em novos problemas, 
persistindo nas soluções que recebem. A noologia lida 
com intuições sobre problemas (Deleuze, 1999), que fazem 
aparecer a imagem; e, ao mesmo tempo, acompanham a sua 
construção. 
Sendo plural, como a força, não há nunca uma ima- 
gem isolada, mas multiplicidade de imagens, feitas de 
velocidades e lentidões. Podemos encontrar dois tipos 
básicos, radicalmente diferentes um do outro: a imagem 
dogmática do pensamento, baseada no modelo do reconhe- 
cimento; e um pensamento sem imagem (ou uma nova 
imagem do pensamento), considerado como encontro 
com a heterogeneidade dos signos. Seguindo os percursos 
do conceito, na obra de Deleuze, os pesquisadores podem 
operar com esses tipos básicos de imagem, a moral e a 
heterogênea; sendo que esta última se abre, ainda, em duas 
direções, quais sejam: sensação e plano.
1. Moral
Junto à tradição filosófica dominante, especialmente 
racionalista, a imagem é uma preconcepção implícita e 
tácita, que o pensamento se dá dele mesmo. Tal imagem 
deriva do senso comum, do consenso, do pensamento 
identitário, pretensamente natural: “segundo esta imagem, 
o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui 
formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verda- 
deiro” (Deleuze, 1988, p. 219). 
Os pesquisadores trabalham, aqui, com uma imagem 
clássica do pensamento, que é sempre moral, fundamen- 
tando-se em oito postulados: princípio da existência de 
um pensamento universal, bom por natureza; o bom 
senso ou o senso comum são a determinação do pensa- 
mento puro; o modelo transcendente, que opera a distinção 
entre o fato e o direito, é a recognição, ou o exercício 
concordante de todas as faculdades sobre um objeto su- 
posto como o mesmo, que implica a identidade do Eu; 
a representação, que subordina a diferença ao quádruplo: 
189
Mesmo e Semelhante, Análogo e Oposto; o negativo do 
pensamento, concebido como erro; a função lógica, ou o 
primado, na proposição, da designação, identificada à re- 
lação da verdade sobre a expressão; a modalidade das 
respostas e soluções, que se dá a problemasjá dados; o 
fim, ou o resultado obtido, qual seja, o saber (Deleuze, 
1988, p. 218-p. 273).
A imagem dogmática é um dispositivo repressor, pois 
impede a pesquisa de pensar o inédito, ao valorizar noções, 
como: universalidade, ideias justas, método, pergunta e 
resposta, reconhecimento e recognição; ou temas como: 
república dos espíritos, pesquisa do entendimento, tri- 
bunal da razão, puro direito do pensamento. No trans- 
curso da história, a pesquisa tem emprestado essa ima- 
gem aos aparelhos de Estado; e, assim, perdido sua potência 
como máquina de guerra (Deleuze; Guattari, 1997). 
Para ela, pensar significa conhecer, desde que o pes- 
quisador rejeita as coisas como aparecem e as acolhe como 
verdadeiramente são. Fora de si, o pensamento reconhece 
materialmente o que, de maneira formal, já possui; levando 
a imagem a funcionar por meio de um dualismo entre a 
interioridade pura (intelecto) e a exterioridade indiferente 
(essência da coisa). A verdade da pesquisa é, assim, pen- 
sada como adaequation intellectus et rei (adequação do 
intelecto à coisa); na qual, a faculdade do pensamento 
adequa-se ao objeto externo, fazendo corresponder aquilo 
que a infância e o currículo são em essência e as suas 
representações intelectuais. 
Nesse tipo de imagem, pesquisar seria responder 
corretamente à pergunta “o que é a infância e o currí- 
culo”?, de modo a conhecê-los em suas verdadeiras natu- 
rezas. Para tanto, a pesquisa os prefigura em lugares comuns; 
e, no contato com essa imagem dogmática, reconhece-os, 
julgando sua verdade e falsidade. Logo, sabe o que significa 
e quer (mesmo) a infância e como elaborar e desenvolver 
(de fato) um currículo, por força de um ou mais atos 
fundadores. Há, nessa imagem, uma necessidade essencial 
de começar; a qual nada mais é do que uma ilusão; visto 
190
que todo fundamento refere-se diretamente à opinião vi- 
gente, ou à sua forma disfarçada em Urdoxa. A partir desse 
fundamento, outros conceitos conquistam objetividade, 
como desenvolvimento infantil ou paradigma curricular; 
porém, sob a condição de estarem ligados aos primeiros; 
de responder a problemas sujeitos às mesmas condições; 
e de permanecer sobre o mesmo plano de pensamento. 
2. Heterogênea
Em contraponto à dogmática, a pesquisa encontra uma 
nova imagem na obra de Nietzsche (Deleuze, 1976); tribu- 
tária, ainda, de Spinoza, Hume, Bergson, Proust, Godard, 
entre outros. O verdadeiro e o falso não são mais os ele- 
mentos do pensamento; mas o sentido e o valor, o nobre 
e o vil, o alto e o baixo, o interessante e o banal; segundo a 
natureza das forças que dele se apoderam. Para essa imagem, 
importa o fora do pensamento, o seu outro, o diferente de 
si, que o tira dos trilhos. O ato de pensar não é possibilidade 
natural, mas uma criação; de maneira que só pensamos 
verdadeiramente ao criar. 
Outrossim, se a pesquisa for além dessa nova imagem, 
pode até encontrar um pensamento livre de imagem 
(entenda-se de imagem dogmática): sem modelo, sem 
formato subjacente, sem regras prévias, sem estriagens. 
Um pensamento que sustenta e assina o seu começo 
autorreferente, repetição do novo e diferença múltipla; 
enquanto espaço liso, vetorial, cortado por intensidades 
e por forças de atualização; as quais passam pelo virtual e 
dele retiram consistência: “o pensamento é como o Vampiro, 
não tem imagem, nem para criar modelo, nem para fazer 
cópia” (Deleuze; Guattari, 1997, p. 47). 
A noologia trabalha, aqui, com a imagem-Heterogênea 
de um pensamento imprevisto, incompreensível, inassimilá- 
vel; que apresenta a radical novidade de ver o ato de pen- 
sar engendrado em sua própria genitalidade; o qual inclui o 
nomadismo, os devires, as núpcias contra-natureza, as cap- 
turas e os voos, as línguas menores, as gagueiras na língua. 
191
Essa imagem pensa o fora por meio de acontecimen- 
tos com conceitos; estados de coisas com funções; monu- 
mentos com sensações. Um desses pensares não é melhor 
do que o outro, ou mais plenamente pensado; mas cruzam-
se e se entrelaçam, sem síntese nem identificação; traçando, 
nas três grandes formas do pensamento (arte, ciência 
e filosofia), planos sobre o caos. Há todo um tecido de 
correspondência entre elementos heterogêneos, dotado 
de pontos culminantes e igualmente perigosos; os quais 
podem reconduzir a pesquisa à opinião de onde pretendia 
sair; ou, então, precipitá-la no caos que se dispôs a enfrentar. 
2.1. sensação
Existe, ainda, para a pesquisa noológica, a possibili- 
dade de utilizar a imagem- Heterogênea, no nível da sen- 
sação. Os pesquisadores remetem-se, assim, às imagens 
picturais e cinematográficas, independentes da linguagem e 
articuladas semioticamente à realidade plástica dos corpos, 
das linhas, das cores, dos sons, do movimento e do tempo 
(Artaud, 2008; Aumont, 1995; Aumont; Marie, 2003; Bogue, 
2003; Buyden, 1990; Colebrook, 2006; Deleuze, 1985; 1991; 
2005; 2007; 2009; 2011; Kennedy, 2000; Lins, 2007; Marrati, 
2003; Mostafa; Cruz, 2011; Paquot, 2008; Pelbart, 2004; 
Rancière, 2001; Revue d’Estéthique, 2004; Sasso; Villani, 
2003; Sauvagnargues, 2006; 2009; Vasconcelos, 2006; 2008). 
Derivada das artes não-discursivas, a matéria dessa 
imagem do pensamento de currículo e infância é não-
linguisticamente formada; assignificante e assintática; irre- 
dutível aos enunciados e significações linguageiras. Essa 
imagem signalética remete a uma lógica do sensível, que 
não deixa de ter efeito sobre o pensamento e de dar o 
que pensar. A pesquisa estética e programática dessa nova 
imagem implica avaliar a variação de seus movimentos, em 
seu poder de afetar e de ser afetada; e analisar o tempo, 
em estado puro, sem os liames sensório-motores. Fazendo 
coexistir uma imagem atual com seu duplo virtual, a 
imagem-Movimento e a imagem-Tempo definem, desta 
192
feita, a forma do que seja pensar; além de se associarem 
à matéria do ser: “é nesse sentido que se diz que pensar e 
ser são uma só e mesma coisa. Ou melhor, o movimento 
não é imagem do pensamento sem ser também matéria 
do ser” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 41). 
A pesquisa constrói enquadramentos e montagens, 
cortes móveis e perspectivas temporais no pensamento, 
desenvolvidos em prol da potência para pensar o Todo da 
infância e do currículo, que é o Aberto, como um vazio ou 
meio fluido: “o Todo é o que muda, é o aberto ou a duração” 
(Deleuze, 1985, p. 41; Bergson, 2005). Os seus movimentos 
reais e durações concretas fazem com que se autodiferen- 
ciem e exteriorizem em imagens que se dão à visibilidade; 
ou, inversamente, com que interiorizem, na própria tota- 
lidade, suas linhas, figuras de luz e blocos de espaço-tempo 
(Deleuze, 2005). A originalidade dessa imagem-Sensação 
reside no seu impoder de pensar discursivamente currí- 
culo e infância; e em poder pensa-los enquanto agencia- 
mentos de movimentos, sistemas de ação-reação, ou imagens 
óticas e sonoras puras – impoder e poder que habitam o 
coração mesmo do pensamento. 
2.2. plano
A segunda dobra da imagem-Heterogênea remete a 
uma utilização inteiramente positiva do conceito de imagem, 
que corresponde ao abandono da busca por um pensamento 
sem imagem. Agora, a imagem, como requisito inevitável 
para pensar, é assimilada a planos de imanência, composição 
e referência. Para a pesquisa dessa imagem-Plano, infância e 
currículo não são conceitos pensados nem pensáveis; mas 
tornam-se, antes, traçados não-filosóficos, não-artísticos e 
não-científicos; orientações no pensamento; imagens para 
fazer uso do pensar; reivindicando o movimento infinito 
do próprio pensamento. 
Mais complexa do que um método e positivamente 
pressuposta, como a condição mesma do exercício do 
pensamento, a imagem nunca é transcendente a algo, 
193
seja à consciência ou à qualquer forma do eu; mas exerce-
se nos termos de uma interrogação relativa às transfor- 
mações das próprias imagens. Dota de consistência a 
pesquisa da natureza dos postulados inerentes à imagem 
(dogmática) de currículo e de infância;que funcionam 
(ilusoriamente), na imagem-Moral, como prolegômenos 
ao pensar; para ir em direção à construção de uma nova 
imagem, que não obedece àquela imagem prévia que de- 
termina de antemão o que implica orientar-se no pensa- 
mento. 
A pesquisa apresenta-se, decididamente, menos como 
a produção regulada de algum quebra-cabeça e mais como 
um lance de dados. Ressoando entre si, sobre um só e 
mesmo plano de imanência, de referência ou de compo- 
sição, currículo e infância impelem a noologia a traçar os 
planos; ao mesmo tempo em que criam os pensares que 
os povoam. Os planos instauram-se, então, como solos da 
pesquisa; a par de desterritorializá-la; constituindo a imagem 
de pesquisador que o pensamento se atribui de direito: 
“Imagem do Pensamento-Ser” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 88). 
Nessas operações, a noologia leva o pensar e o ser 
a se transformar um no outro; reconhece que a base de 
todos os planos pensáveis, imanente a cada um, não pode 
ser pensado por si mesmo, mas por aquilo que perma- 
nece sempre o seu fora absoluto; e não somente pensa 
o plano, seja ele qual for, mas mostra que está lá, como o 
não-pensado em cada plano: “não cessa de se tecer, gigan- 
tesco tear” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 41). 
A partir daqui, a pesquisa cria regimes de visibilidade 
e de dizibilidade da infância e do currículo, nos quais, 
existe uma pluralidade de imagens diferentes. Imagens 
em que, no entanto, é possível encontrar similitudes, como: 
o abandono do erro, que coloca a pesquisa na errância 
infinita; a recusa de um modelo único de pensamento e 
de pensador; a multiplicação de imagens a serem pensadas 
e de planos a serem traçados. Assim, a pesquisa cumpre 
o requisito do ato de pensar; qual seja, a autocriação no 
seio do próprio pensamento. 
194
Admitindo a pertinência de usar a noção de imagem 
para pesquisar o currículo da infância e a infância do currí- 
culo, as análises conduzem os pesquisadores a confrontar 
uma imagem com outras. Longe de invalidar os princípios 
dos quais procedem cada uma, o trabalho com as imagens 
renova o interesse e alarga os limites da pesquisa; nos 
quais, elas são estabelecidas na exploração e tentativa de 
compreensão dos planos. 
Dos três tipos de imagens 
Na noologia, não perguntamos pelas imagens, mas 
pensamos em imagens. Para isso, realizamos uma taxio- 
nomia das imagens, que podemos encontrar, no cam- 
po problemático do intratável, do não-pensado, na pes- 
quisa de infância e currículo. Damos, agora, a ver três 
imagens, que são relações de forças plurais, situadas ao 
nível da própria matéria fluente e em sua variação; que 
existem em si e subjazem aos exercícios da pesquisa; deles 
se nutrindo e, ao mesmo tempo, os instaurando.
Dispostas segundo perspectivas de uma geografia 
do pensar, em que se move a pesquisa noológica, essas 
imagens distribuem os pensares em relação à mudança, 
ao movimento e à duração. O texto cartografa essa dispo- 
sição, ou seja: esboça um exame crítico dos tipos de pesquisa 
e de pesquisador, postos em jogo; realiza um mapa do 
seu poder de afetar e de ser afetado; faz estética, semiologia 
e etologia de suas potências; percebe e apreende seus mate- 
riais e vias de subjetivação; desenha seus tipos sócios-
históricos; leva seus gritos, crivos, desertos moventes, em 
viagens de tradução (Corazza, 2011). Nos circuitos da pesquisa 
de currículo e de infância, aparecem, então: a imagem-
Profunda; a imagem-Ascensional; e a imagem-de-Superfície.
1. ProfunDa
Herdeira dos pré-socráticos, a imagem-Profunda é 
aquela da pesquisa do fundo, do mais baixo sob a terra, da 
195
autoctonia, do Tártaro. Na profundidade absoluta e negra 
da physis de infância e de currículo, a pesquisa faz esca- 
vações nos corpos e no pensamento, sondando os ele- 
mentos primordiais: água e fogo, ar e terra. Para ir a campo, 
os pesquisadores calçam sandálias de bronze (que o vulcão 
Etna costuma devorar e regurgitar). O seu arquétipo é 
Empédocles. Seus pais são Diógenes Laércio; Diógenes o 
Cínico; Crisipo o Estóico. Eles têm por irmãos os megáricos, 
os estóicos e os cínicos. Os animais de sua zoologia são: 
a toupeira, o rato e o tatu.
Os instrumentos com os quais trabalham são os martelos 
do geólogo e do espeleólogo. Com eles, sentem a vibração 
dos infantis; a aspereza das pedras curriculares; a umidade 
dos buracos da pesquisa. Também deformam e quebram 
estátuas de crianças; destroem os pés de barro dos ícones 
das áreas curriculares; escavam e rasgam modelos didáticos. 
Mesmo promovendo tais subversões no mundo da pesquisa, 
desta esperam a salvação. 
Alguns, dentre os pesquisadores do subsolo, são 
populares na pólis e habitam ou ocupam lugares públicos. 
Mostram-se implacáveis, autônomos e suficientes. Todos 
recusam o fio de Teseu; e, se o usam, é para enrolar-se ou 
enforcar-se nele. Calam-se quando indagados; brandem o 
seu bastão; quebram barris; vestem andrajos; dizem dispa- 
rates; pensam em paradoxos. Isso faz com que sustentem 
discursos novos, que contêm a força do chumbo; e criem 
espaços e tempos determinados, ritmos, máscaras, ane- 
dotas. 
No abismo infernal e em suas dobras, encontram 
matérias venenosas para sair da imagem moral de pen- 
samento, que produz clichês. Sabem que só o impensável 
tem condições de fazê-los pensar; mas, nem por isso, 
deixam de ser confundidos com o clichê científico mais 
básico do personagem-pesquisador: aquele que é profundo. 
Por isso, comprometem-se a romper a maldição da pes- 
quisa feita com clichês. Para começar, reconhecem os clichês 
como pivôs decisivos e ecos importantes do impensado; 
logo, a via pela qual este pode tornar-se perceptível. 
196
Para os pesquisadores profundos, os clichês não são 
degenerescência da imagem e não vêm depois da imagem 
original de currículo e de infância; ao contrário, os clichês 
precedem essas imagens. Ou melhor, são os clichês que 
permitem à imagem aceder, nascer a seu olhar e atualizar-
se, para traçar algo. Indagam, desde aí: em que consiste 
uma imagem de infância e de currículo que não seja um 
clichê? Onde termina o clichê e começa a imagem? Onde a 
pesquisa começa, efetivamente, a pensar? Quando a pesquisa 
começa a criar e não mais a reproduzir os clichês; mas expor-
se às suas pequenas mortes, enfrentando o risco de ficar, 
eventualmente, prisioneira de sentidos congelados? 
2. Ascensional
Para a imagem-Ascensional, há toda uma reorientação 
do que significa pensar: não mais em profundidade, mas 
na altitude celeste. Os pesquisadores são dotados de asas. 
A fim de fazer suas pesquisas, devem sair das cavernas e 
elevar-se, mediante o cumprimento de exercícios ascéticos. 
O seu arquétipo é, sem dúvida, Platão. Os seus animais 
são: a águia, o abutre e o condor. Devido à metafísica dessa 
imagem, cultivam laços estreitos entre moral e pensamento. 
Transcendentes, padecem de um psiquismo ascensional. 
Seus ideais elevados os jogam em outra ideia popular e 
científica de pesquisadores: aqueles que têm a cabeça nas 
nuvens. E, para eles, o céu é, de fato, inteligível; haja visto 
que compreendem suas leis. 
As operações centrais desses pesquisadores, rumo à 
salvação, são a ascensão e a conversão. Voltados ao princípio 
do alto, do qual procedem, se, por desgraça, caem, na 
imanência terrestre, tratam de ascender aos cumes, pela 
purificação. Muito se determina se, nessa volta, encontram 
o vazio ou monstros alados, duplos dos abismos infernais. 
O grande perigo da sua pesquisa é ser acusada de evocar 
a existência de uma representação mental da natureza 
do pensamento; condicionante do fato mesmo de pensar. 
Lá, nas alturas do oriente platônico, onde tudo se passa, 
197
mora a suposição que a pesquisa é incapaz de atingir a 
verdadeira ideia de currículo e de infância; estando, de par- 
tida, condenada a não perceber mais do que os seus reflexos 
ou sombras. 
Por isso, à pesquisa Ascensional são atribuídos os 
epítetos de impotente ou ilusória; visto manejar um 
pensamento que está determinado a ignorar asua verdadeira 
natureza e os seus reais pressupostos; tal como afirma 
Heidegger (2007), para o qual, os pesquisadores não 
pensaram ainda; ou como Foucault (1966) analisa no mundo 
clássico da representação. 
Os pesquisadores elevados, no entanto, têm também, 
como os seus colegas da imagem-Profunda, de lutar contra 
os clichês de currículo e infância, para se permitirem a 
positividade de pensar alguma coisa. Entendem que as 
imagens são o próprio currículo e a própria infância; e que 
estão sempre lá, pré-fabricadas e performadas na matéria; 
como os simulacros de Lucrécio, as criaturas animadas e 
as imagens vivas. Os seus cérebros são écrans (telas), onde 
essas imagens vêm se imprimir ou se clicherizar; de modo 
que os clichês são quase o princípio do seu pensar; isto é, 
imagens flutuantes, imagens-coisas, dados figurativos; os 
quais não são os meios de ver uma imagem; mas são eles 
que os pesquisadores veem e não veem nada mais do que 
eles (Deleuze, 2007). 
3. De-superfície
O terceiro tipo de imagem da pesquisa e do pesqui- 
sador de infância e de currículo não possui a orientação 
pelo alto, com suas elevadas causas; tampouco a orientação 
das profundezas, com suas essências recobertas. Esta é 
uma imagem de-Superfície, efeito dos acontecimentos de 
currículo e de infância (Corazza, 2004). Aqui, a profundi- 
dade é vista como uma ilusão digestiva; e as alturas en- 
quanto uma ilusão ótica ideal. A sua gesta é cantada pela 
filosofia do futuro de Nietzsche; a qual coloca em questão, 
justamente, o problema das orientações do pensamento, 
198
por onde o ato de pensar se engendra no pensamento; 
e, ainda, por onde o pensador se engendra na vida: “não 
devemos nos contentar nem com biografia nem com 
bibliografia, é preciso atingir um ponto secreto em que a 
mesma coisa é anedota da vida e aforismo do pensamento” 
(Deleuze, 1998, p. 132).
Na junção entre modo de pensar e estilo de existência, 
os pesquisadores lidam com as forças vitais da linguagem, 
da sensação e dos corpos da infância e do currículo. A 
zoologia dessa imagem passa pelos golfinhos, carrapatos e 
todos os anelídeos. Os pesquisadores concebem que pensar 
é um efeito de-Superfície, da qual operam como agrimen- 
sores e pacificadores da terra. Conectando Dioniso, habi- 
tante do abismo; e Apolo, povoador do celestial; encarnam, 
agora, o Hércules da Superfície; trajando o manto duplo 
de Antístenes e Diógenes. 
Ao ser destituída de altura e de profundidade, a 
imagem sofre uma reorientação geral dramática. Subindo, 
descendo e permanecendo na superfície (como ave de 
rapina), o pensamento recebe um estatuto completamente 
outro e uma autonomia para descobrir os acontecimentos 
incorporais e os sentidos, irredutíveis aos estados de coisas, 
aos corpos profundos e às altas ideias. Nada há no céu, atrás 
das cortinas, a não ser misturas inomináveis; assim como 
nada há debaixo do tapete, salvo o piso do não-senso. Os 
sentidos de currículo e de infância surgem e atuam, como 
vapores sobre o vidro; que os dedos dos pesquisadores 
escrevem com letras de poeira. 
Não há, nessa imagem, nem conversão nem subversão; 
mas, perversão. A pesquisa não contempla, não reflete, 
nem comunica; mas traça, inventa e cria na imanência 
pura. O pensamento deixa de ser dócil e submisso, apli- 
cado e satisfeito; torna-se urgente, contrariado e perigoso, 
nascendo sob o impulso dos signos e dos acontecimentos 
intrusivos que o surpreendem. O ato de pensar é feito 
sob a contingência apavorante de uma experiência do 
fora, que o desbloqueia ou desencadeia, sem que dele se 
possa apropriar. O pensar resiste à capacidade de saber 
199
dos pesquisadores: “pensar é criar e, antes de tudo, criar 
no pensamento o ato de pensar” (Deleuze, 1987, p. 109).
Nesses redemoinhos, a pesquisa noológica confronta 
o pensamento das formas, dos sujeitos, dos órgãos, das 
funções e dos estratos às suas representações elevadas e 
subterrâneas; a ponto de se representar a possibilidade de 
pensar, independentemente de toda representação. Mostra 
as piores dificuldades para pensar, que põem a nu uma 
estrutura que pertence, de pleno direito, a todo pensamento: 
a existência de uma acefalia, que conduz à necessidade 
de engendrar pensar no pensamento; indo da percepção 
orgânica à sua franja intensiva; do significante e significado 
à semiótica de imagens e signos; do subjetivo individuado 
a uma singularidade impessoal. 
A ética dessa imagem aponta que não é suficiente 
deformar ou parodiar os clichês de infância e de currículo 
para obter uma verdadeira deformação. Os pesquisadores 
precisam deixar-se impregnar por esses canais sociais; por 
essas imagens feitas, vulgares, reativas, cansadas pelo uso; 
por essas percepções comuns, opinativas, estatísticas; e, 
até mesmo, moldar as suas condutas molares de pesquisa 
por eles; em outras palavras, entrar em um devir-clichê. 
Só então, ao quebrar a imagem dogmática e receber a 
violência de uma sensação real, não mais convencional, terão 
procedido a uma pesquisa de vidência, que faz aparecer 
o currículo e a infância, na Superfície deles mesmos – 
literalmente, sem metáforas nem analogias.
Trama
Uma pesquisa da imagem do pensamento é conce- 
bível? Há várias tábuas e uma trama de imagens a conhecer. 
Essa é a questão da noologia. Tentar dizer com imagens 
e sair da narratividade; fragmentar os protagonistas e 
extrair procedimentos; criar novos desenhos, visualidades, 
falas, biografemáticas, sem-sentidos, que apresentam pro- 
blemas. Recorte e colagem de elementos díspares. Na 
prática, um uso do discurso indireto livre. Artificio do 
200
intervalo, do hiato, em direção ao método de criação do 
entre-imagens. Experiência de disjunção inclusiva. Importa 
não lidar com as imagens no plano da significância; não fazer 
uma hermenêutica; não produzir uma massa interpretativa.
Seria um exagero afirmar que tudo é imagem? Os 
pesquisadores são centros de indeterminação, que funcionam 
como obstáculos: para refletir o visível e o enunciável, pro- 
duzindo imagens. Imagens de pensamento, que rebotam 
como bumerangues, para criar. Pesquisar é seleção, ação 
de retirada, delimitação, subtração, sonho, alucinação, 
embriaguez, dobramento do universo. As imagens são os 
seres vivos da pesquisa; enquanto os seus dinamismos espaço-
temporais são condições de possibilidades para a criação. 
Se o pesquisador de imagens é um mostrador de 
vidências, o mundo informe da pesquisa é plástico. Já o 
tempo da pesquisa é transcendental; pois, não muda; 
porém, muda tudo o que faz aparecer. Apreensão sensível 
e corte imóvel na duração, que possibilitam a diferenciação. 
A noologia pode nos levar a pesquisar em educação: não 
mais representando, mas engendrando e percorrendo; não 
descobrindo as formas, mas procurando singularidades; 
não contemplando, mas nos arrastando no fluxo turbilho- 
nar de infância e de currículo. 
O que costuma produzir a pesquisa régia? Dogmati- 
zação, representação, recognição. De qualquer modo, tudo 
aquilo que produzimos vira clichê. A clicheria parece ser 
a fatalidade humana, demasiadamente humana. Só que o 
clichê pode ser uma via para o não-clichê. Entre a forma e 
o informe, o encontro: novas direções de percepção; novos 
poros; novas sensibilidades. 
A noologia faz pensar: pensar imagens. Imaginarizar é 
questão de pesquisa. O ato de criar diferencia imagens na 
pesquisa. Pesquisa educacional como arte de selecionar, 
organizar e inventar imagens. O pesquisador-Vidente torna-
se Amigo da Imagem. Alguém que define que a sua pes- 
quisa intervém, na infância do currículo e no currículo da 
infância; e cria, ela própria, currículos e infâncias possíveis. 
Como pesquisadores, sejamos dignos dessas imagens.
201
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203
DIDÁTICA-ARTISTA DA TRADUÇÃO: 
transcriações do currículo10
Como, na área da Educação, pensar em termos 
dos processos de criação de cada um de seus domínios? 
Como definir cada domínio por sua respectiva atividade 
criadora? Nesse enfoque criacionista, o que a Pedagogia, 
o Currículo e a Didática criam? Quais as especificidades 
dos seus atos de criação em processo? O que acontece 
quando temos uma ideia em Currículo, em Pedagogia, em 
Didática? O Currículo e a Didática seriam engendrados 
pela criação pedagógica? No caso deste texto: em que 
consistem os meandros e limites de criação da Didática? 
O que é criar didáticas? Como se dão as ações de ver, 
falar, escrever, interpretar e traduzir de maneira didática? 
Como ocorrem a produção de informes e a irrupção de 
novidades didáticas? Para criar em Didática, em que medida 
necessitamos de outros processos, como os literários, 
cinematográficos, musicais, plásticos, científicos, filosóficos? 
Quais as diferenças entre esses processos e os didáticos? 
Como desenvolver didáticas, a partir de um objeto, tema 
musical, fórmula matemática, passo de dança, fato policial, 
ritmo, melodia, pintura, filme, ensaio, romance?
10 A forma textual foi engendrada durante o XVI ENDIPE - Encontro Nacional 
de Didática e Prática de Ensino “Didática e Práticas de Ensino: compromisso 
com a escola pública, laica, gratuita e de qualidade”, realizado na UNICAMP, 
de 23 a 26 de julho de 2012; mas o texto deriva de “Notas”, presentes no 
Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias, organizado por Ester 
M.D. Heuser e publicado pela EdUFMT, em 2011 (p. 31-96), na Coleção 
Escrileituras, integrante do Observatório da Educação FACED/UFRGS, 
Projeto “Escrileituras: ler-escrever em meio à vida”. Com outro título, foi 
publicado, em 2013, http://aprendeenlinea.udea.edu.co/revistas/index.php/
mutatismutandis/, Medellín, Colombia.
10
204
De onde surgem as formas didáticas? A Didática 
carrega um capital prévio de formas, tal como sugerido pela 
ideia de estrutura? Ou a forma didática é sempre inédita, 
enquanto um fenômeno de auto-organização da matéria 
(Focillon, 2001)? A Didática abala qualquer estrutura ou 
forma preestabelecida, segundo a sua mobilidade vai se 
processando; a qual inclui até mesmo o ponto de vista 
criador? Os planos, esboços, esquemas, definidos dida- 
ticamente, devem ser esquecidos, em algum momento, 
para que sucedam rasuras, silêncios, grau zero? Como 
a criação didática atribui valor e sentido a elementos de 
perceptos e afectos, fabulados pela Arte; das funções, 
produzidas pela Ciência; e dos conceitos, criados pela 
Filosofia (Deleuze; Guattari, 1992)? Como a Didática opera 
com esses elementos, para torna-los didáticos? De que 
maneira os didatas contemporâneos, criadores de didáticas 
(ANPED, 2012; ENDIPE, 2012), processam esses elemen- 
tos e os integram ao mundo educacional? Ao educar, 
cada um de nós cria didáticas? Quais? Como? Quando? 
Onde? Por quê? 
Tomando tais questões como desafios, este texto 
localiza a Didática como resultante dos atos de criação 
pedagógica; e, ao mesmo tempo, como o meio em que a 
própria Pedagogia funciona, ao atualizar-se em Currículo: 
“a didática, o que se cria em Pedagogia, é um modo, um 
processo de atualização de uma ideia de natureza peda- 
gógica que se expressa em currículos” (Oliveira, 2012, p. 27). 
Pensa aDidática como inseparável de variadas traduções e 
definições comunicáveis; embora provisórias e sujeitas a 
contínuas reformulações. Considera os percursos, reali- 
zados na história da Didática (Candau, 1984; Pimenta, 1991; 
Libâneo, 2012), como índices de processos singularmente 
criadores de conhecimento, registro, memória, tratamento 
metodológico, relacional e dialógico. Encontra alegria no 
babelismo didático de diferença e abertura, passagens e 
transposições, pluralidade e multiplicidade de influências, 
textos e autores. Configura a Didática como um território 
transdisciplinar, translinguístico, transemiótico, transliterário, 
205
transartístico, transcultural e transpensamental; que nasce e 
vive em diversas obras de diferentes línguas (Barthes, 2006). 
Concebe, ainda, esse território didático indissociável 
de uma ética, de uma política e de uma prática tradutórias, 
que realiza artistagens (Corazza, 2006; 2011; 2012a), desde 
os seguintes apoios teóricos: a) filosofia da diferença, 
atinente à criação e ao pensar (Deleuze, 2003; Deleuze; 
Guattari, 1992); b) teorias da tradução literária no Brasil, 
que a tratam como processo criador, ao lado de Haroldo de 
Campos (1972; 1976) e Augusto de Campos (1978; 1986); 
c) obra de Paul Valéry (1997; 1998; 2003), relativa a exercí- 
cios do informe e método de criação; d) formulações didá- 
ticas contemporâneas, especialmente de Selma Pimenta 
(2011) e Vera Candau (2012), dentre outras. 
DidáticArtista
É em transcursos e circuitos de tradução, que a 
Didática-Artista (DidáticArtista, foneticamente) movimenta 
os seus processos de pesquisa, criação e inovação. Acolhe 
e honra os elementos científicos, filosóficos e artísticos 
– extraídos de obras já realizadas, que diversos autores 
criaram, em outros planos, tempos, espaços –, como as 
suas efetivas condições de possibilidade, necessárias para 
a própria execução; e, ao mesmo tempo, como o privi- 
legiado campo de experimentação, necessário para as 
próprias criações. Com esses elementos, constitui um 
campo artistador de variações múltiplas e disjunções in- 
clusivas; que compõe linhas de vida e devires reais, pontos 
de vista ativos e desterritorializações afirmativas.
Quando, em detrimento das normas formais, poten- 
cializa fluxos informes, que se insinuam entre os blocos 
sensíveis e epistêmicos da Filosofia, da Arte e da Ciência, 
essa Didática fissura as certezas e verdades herdadas. 
Eminentemente heterogênea, maquina as suas composições 
contra a homogênese. Embora suscetível a sistemas de 
ações estáveis, considera-se um território em processo, 
obra sempre aberta, distante do equilíbrio e do apazigua- 
206
mento; e, mesmo quando estabiliza as suas ações, encontra 
maneiras de bifurcar-se, para ingressar em novos regimes 
de instabilidade. Executa uma autopoiese, através de novas 
codificações didáticas, em campos de comutabilidade e 
diferencialidades, que circunscrevem suas demarcações e 
funcionamento.
A principal matéria da DidáticArtista é a vida mesma, 
promovida por encontros com formas de conteúdo e 
de expressão do mundo histórico, filosófico, geográfico, 
científico, artístico e linguístico. Ao mesmo tempo em que 
se apropria dessas formas, desafia as línguas que as pro- 
duziram, liberando-as dos meios que as articularam. Con- 
serva, no entanto, traços dos elementos originais, trans-
formando-os e agenciando-os de maneiras inusitadas. O 
seu realismo não se reduz, assim, à mimese do real; desde 
que busca, aí, o outro misterioso da realidade, que possi- 
bilita a existência didática criadora.
Contrária ao idealismo e ao racionalismo, suscetível 
a imagens de pensamento e a problemáticas culturais, a 
Didática agita-se num misto de empirismo transcendental 
(Deleuze, 1988), que valoriza a multiplicidade. Funcionando 
como resistência às repetições do mesmo e luta contra a 
mediocridade da opinião, mescla e cruza o que passou, 
o que nos afeta e os mundos possíveis por construir. 
O seu método de criação possui orientação cartográfica 
(Deleuze; Guattari, 1997; Corazza, 2010; Kastrup; Passos; 
Escóssia, 2010); composto por velocidades e lentidões, que 
transversalizam e cortam em diagonal functivos, conceitos, 
perceptos e afectos. Para extrair acontecimentos inteligíveis 
e sensíveis desses elementos, que persistem em seus corpos, 
estados de coisas e seres, executa traduções das línguas 
originais de partida para a língua de chegada (língua-meta, 
língua-alvo), que é didática.
Rejeitando modelizações confinantes, que requerem 
regularidades, médias e métricas, elege o processual e a 
reversibilidade. Construindo dobras didáticas no plano 
de imanência (da Filosofia), de composição (da Arte) e de 
referência (da Ciência), captura e libera as forças vitais, 
207
que agem sob as formas. Trabalhando as potências que 
essas formas carregam, substitui a relação forma-matéria 
pela relação força-material. Associando obras, autores e 
tradutores, em devires de mutação das culturas, favorece 
culturas do dissenso. Reinventando significações, posições 
de indivíduos, comunidades e grupos, cria novas linhas de 
saberes, sentires, fazeres. Realizando atos minoritários de 
ruptura e consonâncias, instala-se em regiões desconheci- 
das de problemas. Revelando aspectos ocultos dos seres e 
circuitos inéditos de pensamento, transforma momentos, 
lugares, incidentes e circunstâncias em móveis fecundos 
de experimentações. 
Esse criacionismo didático movimenta-se através de 
procedimentos crítico-genealógicos e exploratório-experi- 
mentais (Feil, 2011; Corazza, 2012b), que partem de clichês 
– formas, sentidos, interpretações, indivíduos, identidades, 
conhecimentos. Identifica, então, a imagem dogmática de 
pensamento, que lhes corresponde, em seus pressupostos 
explícitos e implícitos de doxa e senso-comum (Heuser, 
2010). Borra e raspa os clichês, através de diagramas, ou 
conjuntos operatórios de traços pré-individuais, involun- 
tários, contingentes, não-representativos, não-ilustrativos, 
não-figurativos, não-narrativos.
Nessas zonas de indiscernibilidade e indeterminação, 
a DidáticArtista segue devires, ao produzir formas defor- 
madas, figuras desfiguradas, paradoxos e não-sensos. Ao 
arrancar e isolar o material, o figural e o jogo de forças 
(Deleuze, 2007) dos elementos científicos, artísticos e 
filosóficos, desfaz os efeitos sobrecodificados e redistribui 
suas potências informais. Ao propor e desenvolver novas 
vivências relacionais de alunos e professores com os ele- 
mentos originais, injeta-lhes interesse e faz circular vitali- 
dade. Ao traduzi-los didaticamente, em cenários con- 
temporâneos, torna notáveis ideias já criadas e vivifica 
currículos; libera forças indomesticadas dos participantes, 
onde quer que estejam represadas; desestratifica camadas 
sedimentadas de saber, poder e subjetividade, trabalhan- 
do para que reencontrem a sua virtualidade.
208
Processo de Tradução
Considerando que “a vida deve ser traduzida, como 
processo de criação” (Villani, 1999, p. 71), a tradução per- 
corre a DidáticArtista, como um dispositivo que a desen- 
cadeia e uma prática que a desdobra. Sua natureza didática 
passa a ser constituída pela tradução de perceptos, afectos, 
funções e conceitos; vertendo-os das línguas em que foram 
criados e expressando-os na cultura, no meio e na língua 
da Didática. Nesse processo tradutório, distingue entre 
descoberta e invenção; já que a descoberta “incide sobre o 
que já existe, atualmente ou virtualmente; portanto, cedo 
ou tarde ela seguramente vem”; enquanto “a invenção dá 
o ser ao que não era, podendo nunca ter vindo” (Deleuze, 
1999, p. 9).
A Didática funciona, preferencialmente, sobre o plano 
empírico-transcendental de uma tradução-invenção, que liga 
o tempo ordinário e a produção de novos elementos artísticos, 
científicos e filosóficos; não segue “linha reta, nem nas coisas, 
nem na linguagem”; mas assume “desvios femininos, animais, 
moleculares” (Deleuze, 1997, p. 12; Deleuze; Guattari, 1977).A tradução didática é, assim, uma espécie de “des-tradução”; 
que não age como “teoria da cópia ou do reflexo salivar”; 
e sim como “produção da di-ferença no mesmo” (Campos, 
2008, p. 208); ou uma “operação contra a corrente” que, mais 
do que transferir elementos para a língua didática, toma os 
originais distantes “como ponto de chegada”; em direção ao 
qual expande a própria língua (Mandelbaum, 2005, p. 198). 
Nas relações educacionais, curriculares e pedagógicas, 
com os mundos da Arte, da Filosofia e da Ciência, essa tradução 
introduz novos modelos, ideias, gostos, vocabulários, sintaxes, 
estilos. Sendo mimética e não-mimética, a um só tempo, 
funciona com a força motriz das mudanças, assegurando 
uma “sobrevida” dos elementos originais, como “estágio do 
seu perviver”; para que vivam “mais tempo e também de 
modo diverso”. Capaz de anamorfoses, quando reescreve e 
repensa os originais, torna-se capaz “de ser ela mesma e um 
outro” (Paz, 1981, p. 11).
209
Acontece que, para a Didática da Tradução, todas 
as línguas são diferenciais. Pela via do trânsito entre o 
original e sua tradução, requer diálogos entre elas, sob 
a condição que cada língua aceite tornar-se dupla de si 
mesma. A tradução é, dessa maneira, um ato político, que 
desfuncionaliza línguas instrumentais e aproxima distâncias, 
num processo de transformação cultural. Em seus atos de 
traduzir, opera como meio, que desestabiliza o próprio status 
quo da linguagem educacional. Revela-se como dissidente 
das línguas legitimadas, transtornando suas palavras 
originais, para lhes devolver “o sentimento do diferente, o 
poder de conceber o ‘outro’”, numa reconfiguração de si 
própria. Vertendo, refratando, mesclando e reescrevendo 
saberes, desejos, sujeitos, valores, planos de pensamento e 
culturas, enceta ações recíprocas entre as línguas traduzidas; 
desapropria pertencimentos, liberando “referências a sangue, 
solo ou história coletiva”; alimenta-se de diferentes línguas, 
sem sofrer “de otite” (Matos, 2005, p. 144; p. 139; p. 132). 
Em estado de heterofilia e de anacronismo explícito, 
a tradução didática compartilha línguas heterogêneas e 
simultâneas, modificando e desfazendo identidades se- 
dentárias dos elementos originais. Sob o fascínio das 
interinfluências trazidas pelas linguagens contemporâneas, 
implica a invenção de um corpus crítico-seletivo, que liga, 
criteriosamente, “tradução poética, operação metalingüística, 
paródia, carnavalização, intertextualidade, literatura com- 
parada e relações entre diversos sistemas de signos” 
(Santaella, 2005, p. 222). 
A novidade imprevisível das suas invenções exige que 
a Didática não traduza tudo; mas privilegie aqueles elemen- 
tos que mudam, afetam ou revolucionam cada uma das áreas 
com as quais trabalha. Segue, assim, Augusto de Campos 
(1978, p. 7), que afirma: “nunca me propus traduzir tudo. 
Só aquilo que sinto. Só aquilo que minto. Ou que minto 
que sinto, como diria, ainda uma vez, Pessoa em sua própria 
persona”. Por isso, traduz aquilo que, dotado de “obscuri- 
dade ou dificuldade intencional”, apresenta maiores desafios, 
pois mais recriáveis se mostram, “enquanto possibilidade 
210
aberta à recriação”; ou mesmo aquilo que releva de um 
projeto “de militância cultural” (Campos, 1992, p. 35; Milton, 
1998, p. 206). 
A tradução didática é, assim, “transcriação e trans- 
culturação”; já que textos e séries culturais “se transtextua- 
lizam no imbricar-se subitâneo de tempos e espaços” di- 
versos: “Transcodagem. Tropismo. Tradução” (Campos, 1976, 
p. 10-11). Consiste numa questão de forma, mas também 
de alma, na ressonância do poema de Augusto de Campos 
(1986, 2ª orelha): 
re-criar é a meta/ de um tipo especial/de tradução:/ a 
tradução-arte// mas para chegar à/re-criação/ é preciso 
identificar-se/ profundamente/ com o texto original/ e 
ao mesmo tempo/ não barateá-lo/ enfrentar todas as 
suas/ dificuldades/ tentar reconstituir/ a criação/ a 
partir de cada palavra/ som por som/ tom por tom// é 
uma questão de forma/ mas também/ é uma questão 
de alma
Dobra transcriadora
Ao dobrar as línguas originais sobre as próprias 
formas, a DidáticArtista parte em busca de novos sentidos 
e valores, usando a reimaginação: “‘reimaginar’ (prefiro 
esta palavra, no caso, ao conceito usual de ‘traduzir’)” 
(Campos, 1972, p. 121). Mesmo que afectos, perceptos, con- 
ceitos e funções lhe pareçam, em princípio, linguística e 
culturalmente intraduzíveis, a Didática recorre à “área da 
traduzibilidade” de textos criativos (aos quais é atribuído o 
estatuto de impossibilidade), para “traduzir o intraduzível” 
(Campos, 1992, p. 35). Assume, desse modo, a “possibili- 
dade, também em princípio, da recriação”, movimentando-se 
“por transcriações, a partir das latências do original” (Matos, 
2005, p. 137). Considerando que é da natureza da tradução 
ser infiel ao original, sabe que toda didática criada não pode 
ser menos do que resultado de alguma artistagem, dedicada 
a verter elementos que valem a pena: “Somente as coisas 
211
impossíveis são dignas de ser feitas”; ou, “Impossível, claro 
– é por isso que faço” (Milton, 1998, p. 144). 
Como prática teórica transcriadora, à Didática importa 
não reconstituir a informação semântica ou formal de um 
elemento original; mas, reconstituir os movimentos de 
sua língua e sistema de signos. Portanto, pode ocupar-se 
de: linguagem verbal e não-verbal; elementos de estrutura 
e visuais; homologias fônicas e sintáticas; espacialização e 
imagética visual; filmes e cartazes publicitários; combina- 
ções sonoras e coreografias logopaicas; assonâncias, rimas, 
aliterações, métrica, ritmo, melodias, canções; fórmulas 
e equações matemáticas; etc. Essas traduções não são fun- 
cionais, automáticas, etimológicas, estruturalistas, herme- 
nêuticas, celebrações epifanísticas, sobretraduções, semide- 
calques, superafetações; também não soam como extra- 
vagâncias; não traduzem palavra por palavra, linha por 
linha; não transmitem mensagens; não contém purismos 
acadêmicos; não explicam os textos pelo contexto histórico, 
econômico, social, ideológico ou político. 
Ao contrário, consistem em traduções, nas quais são 
postas tão altas potências recriadoras, que os seus efeitos 
valem como se fossem as obras originais, vivas e abertas 
(Paes, 1990; Laranjeira, 1993; Wanderley, 1993). Assumindo 
a realização de transposições criadoras, a Didática da Tra- 
dução pode, ainda, ser designada por: “transparadisação, 
transluminação, transluciferação mefistofáustica, bem como 
os mais comuns recriação e reimaginação” (Milton, 1998, 
p. 208; Campos, 1987). Não surpreende que as transcriações 
do Didata-Tradutor – ou Professor – sejam, mais ou menos 
inventivas, segundo a sensibilidade e a capacidade artista- 
doras de cada um (Jakobson, 2001; Campos, 2004). 
Didata-Tradutor 
O Professor não se obriga a transmitir o conteúdo 
literal ou verdadeiro dos elementos originais científicos, 
filosóficos, artísticos; não faz cópia, dublagem ou fingi- 
mento; não é um bufão, escravo ou ladrão dos autores e 
212
obras que traduz; não busca a autenticidade textual; não 
preserva a essência dos originais; não é um conselheiro, 
que goza de intimidade com as obras; não trata o original 
como sagrado; não remove a tampa de um poço escuro; 
não é filtro do autor ou chave do texto; não é fotógrafo, 
taxidermista ou anatomista; não é filólogo, erudito ou 
paleólogo; não é o traduttore-traditore (tradutor-traidor) do 
trocadilho italiano, nem o sourcier-sorcier (descobridor de 
fontes e mágico) dos franceses; não é um autor-camaleão 
ou um “trad-revisor”; não tira a casca, que reveste “a fruta 
original”, nem ergue um “manto real de amplas dobras”; 
não faz “treinamento na selva”, nem protagoniza uma 
“ressurreição” (Milton, 1998, p. 2-6; Santaella, 2005, p. 227).
Suas traduções, também, não têm o escopo de servir 
como simples auxiliares à leitura dos originais. Ao con- 
trário, esse Didata-Tradutor é um escrileitor (escritor-e-
leitor), que transcriae transcultura os elementos científicos, 
filosóficos e artísticos, reconhecendo a sua própria produção, 
em meio a um “universalismo polimorfo e cosmopolita”, de 
tipo novo: “transverso a governos, economias e mercados”; 
e que “instala em nós a diferença como condição de nosso 
estar com os outros” (Mandelbaum, 2005, p. 199; Matos, 
2005, p. 134). Sem medo do novo ou medo do antigo, defende 
“até a morte o novo por causa do antigo e até a vida o antigo 
por causa do novo”; desde que “o antigo que foi novo é tão 
novo como o mais novo”; cabendo-lhe discernir entre eles 
(Campos, 1978, p. 7). 
Cultivando uma saudável empatia com os elementos 
originais, exercita suas fantasias e habilidades amorosas, 
projetando-as em experimentações tradutórias. Usando a 
recriação imaginativa, por meio de escrileituras (escritas-e-
leituras) e diálogos críticos, encaminha o estranhamento dos 
originais, num processamento singular de interpretações. 
Como se possuísse mirada aléfica, exercita um olho criador, 
que condensa, presentifica e vivifica o passado e a tradição 
dos originais, reinventando-os, por meio da tradução, como 
queria T. S. Eliot (apud Campos, 1972, p. 110): “necessitamos 
de um olho capaz de ver o passado em seu lugar com suas 
213
definidas diferenças em relação ao presente e, no entanto, 
tão cheio de vida que deverá parecer tão presente para 
nós como o próprio presente”. 
Não se contentando com repetições empobrecedoras, 
o Professor procede a uma re-doação da forma, ao em- 
pregar recepções disseminadas dos originais, que prefiguram 
aquelas do “espectador de cinema, enquanto examinador 
distraído” (Oseki-Dépré, 2005, p. 214). Reconhecendo-se 
como datado e situado, em sua contemporaneidade, e ne- 
cessitando tomar decisões criadoras, que confiram algum 
sentido aos originais da Arte, da Ciência e da Filosofia, trata-
os como diferentes de tudo aquilo que ele mesmo poderia 
produzir em cada uma dessas áreas. E, quando não con- 
segue efetuar uma tradução que produza a diferença, pre- 
sume ter-lhe faltado a imaginação necessária: “se o tradutor 
não traz o seu próprio ser, seu relacionamento com sua 
sociedade”, o resultado da tradução será “artificial, frágil e 
flácido” (Milton, 1998, p. 101). 
Procedimentos didáticos
Nas ações de traduzir didaticamente, cada elemento 
original é concebido e tratado como algo já criado, mas 
“visto por alguém que só pode enfocá-lo pela ótica do tempo 
presente” (Campos, 1972, p. 112). Logo, os procedimentos 
tradutórios não compreendem ou referem-se a sistemas 
prontos de interpretação; mas desenvolvem experiências, 
que têm relação com modos de desterritorialização do 
existente. Por isso, pretendem que os elementos didáticos, 
emersos dos originais, valham em lugar dos mesmos; para 
fazer com que a Didática funcione criadoramente. Parafra- 
seando Valéry (1945, p. 173), os procedimentos didáticos não 
tentam impor à língua dos alunos aquela que os professores 
não impõem ao próprio ouvido: “Isto é traduzir de verdade. 
Isto é realmente traduzir, é reconstituir o mais próximo 
possível o efeito de certa causa”.
Por conseguinte, o Professor é um agente de fluxos da 
invenção, reproduzindo “o original com sua marca distin- 
214
tiva” (Milton, 1998, p. 221). Assim, suas traduções trans- 
gridem as circunscrições sígnicas; rompem a relação 
aparente entre forma e conteúdo; recusam-se a ficar atreladas 
à “tirania de um logos pré-ordenado”. Subversoras por 
excelência, propõem-se, no limite, a ser operações radicais 
de transcriação; visando converter, “por um átimo que seja, 
o original na tradução de sua tradução” (Santaella, 2005, 
p. 228). 
Entretanto, mesmo que um elemento traduzido traga 
sempre algo de novo ao mundo, “por força há de se mani- 
festar através das ideias já prontas que encontra à sua frente 
e arrasta em seu movimento” (Bergson, 2006, p. 129). Ou 
seja, o Didata traduz ideias prontas; porém, o faz “sob o 
signo da invenção”, que rasura a origem e oblitera a sua 
originalidade; visto que a tradução está, para ele, desde o 
início, disposta “como espécie da categoria criação” (Campos, 
1972, p. 111). Ao traduzir elementos já existentes, o Di- 
data não os funde numa generalização ou síntese superior; 
ao contrário, através de um projeto radical de intertextuali- 
dade, transcria-os; expondo-se aos riscos que envolvem 
toda audácia e “aventura do involuntário” (Deleuze, 1988, 
p. 270). 
Transforma-se, assim, em um Didata-Artista 
(DidatArtista), envolvido em um perigoso traduzir que é 
sempre “retraduzir, ao sabor das mutações da língua ‘cativa’ 
do original, transpondo-a”. Esse gesto rompe o dogma da 
unidade identitária entre línguas de partida e línguas de 
destino; pois a tradução, em si mesma, manifesta que “o 
caráter originário é sempre plural” (Matos, 2005, p. 146); 
e “libera a forma semiótica oculta no original, no mesmo 
gesto em que se dessolidariza, aparentemente, de sua 
superfície comunicativa” (Campos, 2008, p. 208; Benjamin, 
2011). Conversando com o elemento que traduz; promovendo 
a catarse de formas desconhecidas; e conjurando outros 
sentidos, o Didata descobre o autor “dentro dele mesmo” 
(Milton, 1998, p. 140); intuindo que, ao traduzir, está 
encontrando uma solução possível para os seus próprios 
problemas de criação (Valéry, 1984; 1991; 1996; 2009). 
215
Alargando as fronteiras da linguagem educacional, 
como tradutor didático, o Professor “subverte-lhe os dogmas 
ao influxo do texto estrangeiro” (Campos, 1976, p. 35), por 
meio de: bricolagens de saberes e intuições; agenciamentos 
de elementos heterogêneos e acontecimentos; processos 
de singularização e forças de experimentação; fabulação de 
finitos abertos ao infinito; crivos no caos circundante (de-
Fora) e extrações de Ideias; evocação e deslocamentos do 
estranho linguístico; transformação de elementos familiares 
e forças distantes em “mundos possíveis” (Deleuze, 1991; 
1998). Assim, cada uma das línguas originais, de que o 
Tradutor se ocupa, passa por tantas transmutações didá- 
ticas, que acaba não sendo mais língua de ninguém. 
Elementos isomórficos 
Em cada Didata-Tradutor, habita, por conseguinte, um 
Autor; constituído por lances inventivos, desde que traça 
“uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra 
língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um 
devir-outro da língua”. Tumultuando a linguagem da Edu- 
cação, escava uma outra língua nas línguas originais; fa- 
zendo com que estas sofram, por sua vez, reviravoltas, 
que as levam “a um limite, a um fora ou um avesso que 
consistem em Visões e Audições que já não pertencem à 
língua alguma” (Deleuze, 1997, p. 15-16). 
Os procedimentos tradutórios implicam mais do que 
transportar ou transladar os sentidos de uma língua para 
outra; visto que o elemento a ser vertido é recriado, de 
acordo com um “estoque de formas”, referente ao domínio 
das possibilidades de agenciamento “da língua para a qual 
o texto é traduzido” (Campos, 1972, p. 110). Rompendo com 
o traçado reto da tradição, a Didática apropria-se dos ele- 
mentos originais da Arte, da Filosofia e da Ciência, tor- 
nando-os seus; e, neles, fazendo ecoar a própria voz do 
Didata; de modo a não conseguir mais separa-la das vozes 
precursoras. Assim, para que a língua-meta capture forças, 
repertórios, perspectivas e sentidos das línguas originais, 
216
a maior responsabilidade do Professor é agir como um 
atualizado e competente escrileitor daqueles elementos 
que são transcriados. A sua língua materna será, a partir de 
então, a didática, usada para liberar as línguas precedentes. 
A fim de realizar essa apropriação criadora, o Pro- 
fessor necessita apresentar: “nível curricular”, para selecionar 
os mais importantes elementos filosóficos, artísticos e 
científicos do seu tempo e espaço; “irreverência temática”, 
para privilegiar elementos, obras e autores emergentes, 
marginalizados ou anômalos, que introduzem novos e 
heterodoxos temas, questões e problemas; manejo da 
linguagem educacional como

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