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O QUE SE TRANSCRIA EM EDUCAÇÃO? Conselho Editorial Betina Schuler (UCS/EMEF Rincão/PM-POA) Dóris Helena de Souza (SMED/POA) Gláucia Maria Figueiredo (UNIOESTE) Karen Nodari (UFRGS/Colégio Aplicação) Luciano Bedin da Costa (UFRGS/SETREM) Ludmila de Lima Brandão (UFMT) Maria Amélia Santoro Franco (Universidade Católica de Santos) Nadja Maria Acioly-Regnier (Université Claude Bernard Lyon1) Vânia Dutra de Azeredo (PUC/Campinas) Comitê Editorial Carla Gonçalves Rodrigues (UFPel) Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE) Silas Borges Monteiro (UFMT) © Sandra Mara Corazza, 2013 Editoração por SUPERNOVA EDITORA Capa e escultura da Classe Monstra por LEONARDO GARBIN Classe Monstra · 2013 cerâmica, vidro, lápis e canetas, ferro, papel e nanquim. 25 x 30 x 22 cm acervo do artista · Porto Alegre/RS Fotos por WILLIAN ANSOLIN Bibliotecário: Douglas Rios (CRB - 1/1610) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C788q Corazza, Sandra Mara. O que se transcria em educação?/ Sandra Mara Corazza. Porto Alegre-RS : Doisa, 2013. 228p. ISBN: 978-85-66308-03-7 1.Educação. 2.Pesquisa 3.Docência. 4.Currículo. 5.Didática. I. Título. CDU 37 O QUE SE TRANSCRIA EM EDUCAÇÃO? SANDRA MARA CORAZZA A quem transparadisa o mundo: PEDRO, ALICE, LUCAS SUMÁRIO PARA FALAR DELA 11 Paola Zordan; Nilton Pereira; Samuel Bello PARTE 1 – ENSAIO E MÉTODO 15 1. Para artistar a educação: sem ensaio não há inspiração 17 2. Método Valéry-Deleuze: um drama na comédia intelectual da educação 41 3. Pedagogia dos sentidos: a infância informe no método Valéry-Deleuze 71 PARTE 2 – PESQUISA E DOCÊNCIA 91 4. A formação do professor-pesquisador e a criação pedagógica 93 5. Discurso biografemático: Vidarbos 103 6. O docente da diferença: identidade e singularidade 119 PARTE 3 – CURRÍCULO E DIDÁTICA 141 7. Os sentidos do currículo: necessidades inadiáveis 143 8. O drama do currículo: pesquisa e vitalismo da criação 163 9. Currículo da infância e infância do currículo: uma questão de imagem 183 10. Didática-artista da tradução: transcriações do currículo 203 OS QUE 225 11 PARA FALAR DELA1 Paola Zordan; Nilton Pereira; Samuel Bello Estou aqui hoje pra falar DELA, falar sobre ELA, falar na cara DELA. Ela. A infernal botadora de boca nos trombones maquinais das comissões, dos colegiados, conselhos, do DEC, dessa Faculdade, da Universidade. Por isso chamam Ela de Fera. Ela, a colega do DEC da FACED, parceira intelectual que não se amesquinha por pontos e descontos. Ela, a distribuidora de brindes e rodadas. Partilhadora de ideias, sopradora de palavras, doadora de escritos, indicadora de bibliografias inesgotáveis, ela É MESMO FERA. Mas, como uma boa paradoxal, Ela também é Bela. Mãe do Paulo, do André e do Sérgio. Agora a avó do Pedro, da Alice e do Lucas. A dona dos dálmatas. A mulher de mil e uma multiplicadas noites do especial Hugo. Das poucas viventes desse pago que teve a coragem de deixar de ser gremista, talvez antes de ter deixado de ser Rodrigues. Sorte d’Ela, agora bicampeã da Libertadores... E o mundo nos espera de novo! Mas a taça que vem erguer no coração dessa homenagem é outra. ELA! Mesmo que “libertadora” tenha tentado ser. Isso no tempo em que vivia dentro dos livros do Paulo Freire. E atuava na Rede Estadual de Ensino, lutando por uma educação libertária, coordenando projetos em torno de um Tema Gerador. Quando acampava na Praça da Matriz e batia sineta na frente do Palácio do Governo. Ah, num tempo em que era militante, e sabia de cor e salteado as cartilhas de Freud e Marx, e lutava na linha de frente por uma Educação Básica de qualidade. Bah! 1 Texto produzido pelos colegas do Departamento de Ensino e Currículo (DEC): Paola Zordan, Nilton Pereira, Samuel Bello; e lido por Cesar Lopes (falador- transmissor-atravessador-corruptor do texto), em nome do DEC, na Sessão de Homenagem a Professores, em comemoração aos 40 anos da Faculdade de Educação da UFRGS, realizada em 10 de dezembro de 2010 na FACED/UFRGS. 12 Quase arrebentou as cordas vocais, tanto que quase desistiu de ser escutada pelo poder estatal e tenha se ocupado, dali para frente, a falar só para minorias. Mas com sua garganta forte que a levou muito jovem, ainda em Montenegro, para a frente de uma classe primária de Séries Iniciais, corpo coletivo infantil que toda aluna de curso Normal tem como decisivo na vida. E este seu amor pelo Infantil a carregou para os mares agitados de seus estudos infindáveis, maiores e bem mais ecléticos que os de sua Faculdade de Filosofia... E também a conduziu aquele medo horrível de ser (como alguns colegas efetivamente foram) carregada para dentro de um porão e apanhar por causa de ideologias; desaparecer sem nem ter ainda aparecido. Logo Ela, leoa rugidora que, goste ou não, sempre acaba aparecendo. Mesmo quando Ela é Uma. Porque Ela é muitos, muitos livros, muitos artigos, incontáveis publicações, pareceres, orientandos vários. Ela é Bando. Ela é uma multiplicidade em si. Ela dá de ombros para a sirene que avisa que acabou o período e a aula está burocraticamente encerrada. Para Ela, o ensino não termina nunca e a aprendizagem é sempre a aventura. Embarcando na Jangada de Medusa, largou bandeiras e ideologias para pegar a fina pena dos manifestos canibais. Antropófaga, quanto mais vive, mais autores devora. Aliás, também é conhecida por Esfinge. Assusta todos a quem questiona. E deuses, Ela QUESTIONA... E como eu sei bem disso... Desde nosso primeiro encontro, Professora-questionadora- banca x aluno-iniciante-químico num Salão de Iniciação Científica do século XX. Questionar faz parte do seu método pedagógico. Ainda que até o pedagógico seja um conceito a ser posto em xeque. Não porque Ela goste de ser crítica, e sim porque aprendeu com Nietzsche que sem o rugir do Leão o Camelo continua a carregar estupidamente seus fardos. A criança precisa brincar, sem peso, sem “camelagem”. E por mais séria e de terninho, de cabelo arrumado e de óculos que apareça, Ela, a Fera, nunca deixou de ser a menina Bela dançante sobre suas sapatilhas de balé. Só que agora, sexagenária, sua dança são as palavras precisas nas coreografias espetaculares que apresenta em sala de aula. 13 E quem já assistiu uma aula Dela sabe: ninguém sai do mesmo jeito que entrou. Muito menos o currículo. Do currículo, Ela já perguntou: o que queres? Então trouxe currículos nômades, vagabundos e de tantos tipos, que dizer de todos eles aqui seria viajar em letras que a Ela mesma escapam. Ela, que acabou com tantas prescrições e traz outras para facilitar os modos de uso. Artistou a pesquisa e veio criar um currículo cheio de Artistagens. Ela, que explora a potência do disciplinar e torna as palavras indesejadas, apavorantes, em questões vitais. Necessária, oportuna, quando se trata de pensar, de falar baixinho para si, as ideias que depois surgem literárias. Inventou, alguns julgam que até demais, cifrou conceitos em textos que a Educação estranha, fantasiando sempre. Tanto que a acusam de “filha de Hermes”, quando, por ignorância, não decifram os n códigos que seus textos costumam por em jogo. Ousou tanto que ninguém duvida o quanto seja Diferente. Não apenas por coordenar o DIF e sim por tudo o que veio a ser numa vida, à qual ninguém consegue ser indiferente. Perto d’Ela, ou se ama ou se odeia. Afectos neutros são impossíveis. Ela é trágica, exagerada, estridente. Pega sempre o teu ponto mais fraco, principalmente quando te ama. Boa professorinha, que nunca deixou de ser, quer que tu aprendas e sabe que isso, muitas vezes, é na marra. Bem, daí tanta gente sair correndo. Mas os que ficam aprendem a superar suas falsas limitações. Afinal, limite é uma palavra que, como muitas outras, Ela transforma em outra coisa. Limites são humanos e tudo o que é demasiadamente humano se torna intolerável, mesmo para a mais didática das professoras. E maisque, uma vez pesquisadora, essa professora só faz romper com os limites de suas próprias crenças, com o limite de todo discurso pedagógico. Ciente dos limites dos discursos, Ela os transverte em versos e fabuladas versões. Ela, a Mara, Márai, Maradea nunc sum, Amor fati, De Fouror, corazzakai, S. M. Costello, Lisbeth Salander, Salamandra, Cassandra, San, Sandy, sandramaracorazza. FERA! Vem pra cá. Da tribo dos adoradores da Medusa. PARTE 1 ENSAIO E MÉTODO 17 1PARA ARTISTAR A EDUCAÇÃO: – sem ensaio não há inspiração1 Em O Abecedário de Gilles Deleuze (Deleuze, 2007), no vocábulo Professor, Claire Parnet pergunta a Deleuze (então com 64 anos e aposentado) se ele não sentia falta de dar aulas, já que as dera, com paixão, durante quase 40 anos, nos níveis médio e superior de ensino. Deleuze responde-lhe que, no momento, é uma alegria não ter mais de dar aulas, porque já não tinha mais vontade, embora elas tivessem constituído uma parte importante da sua vida. Diz, então, que essa questão de aulas é simples, já que elas têm equivalentes em outras áreas, em função de ser algo muito preparado: – “Se você quer 5, 10 minutos de inspiração, tem de fazer uma longa preparação”. E acrescenta que sempre fez dessa maneira porque gostava: – “Eu me preparava muito para ter esses poucos momentos de inspiração”. Entretanto, com o passar dos anos, Deleuze começou a perceber que precisava de uma preparação crescentemente maior para obter uma inspiração cada vez menor. E concluiu que estava na hora de parar, para fazer outra coisa, como escrever. Ele diz que não saberia calcular quanto tempo essas preparações lhe exigiam, mas que, como tudo, tratava-se de ensaios: – “Uma aula é ensaiada, como no teatro”. Se não a ensaiarmos suficientemente, “não estaremos inspirados”; e se ela não resultar de “momentos de inspiração”, não quererá “dizer nada”. O ensaio que fornece a inspiração consiste em “considerar fascinante a matéria da qual tratamos”; em achar “interessante o que se está dizendo”; para “chegar ao ponto de falar de algo com entusiasmo”. E Deleuze finaliza: – “O ensaio é isso”. 1 Texto publicado, com variações, em 2007 e 2012 (2ª edição), na Revista Edu- cação Especial Biblioteca do Professor (Editora Segmento, SP, volume 6, p. 16-27; p. 68-73); e, ainda, em 2008, na Revista de Educação Pública (Univer- sidade Federal de Mato Grosso, UFMT, v.olume 17, número 34, p. 237-254). 18 Para ensaiar Deleuze, ao escrever sobre algumas resso- nâncias, provocadas por sua Filosofia da Diferença na Educação, vários usos conceituais poderiam ser enfatizados, tais como os que vêm sendo produzidos em diversos espaços institucionais, de relações e textuais (Tadeu; Corazza, 2002; 2005). Seguindo Barthes (2005), para que as escolhas que fazemos dos conceitos, textos, livros, obras dos outros passem para nós, é necessário defini-los como escritos por nós; e, ao mesmo tempo, torná-los outros, deformando-os por amor, desde que por eles fomos seduzidos. O que buscamos nos conceitos que desejamos é que alguma coisa ocorra: uma nova aventura, uma nova conjunção amorosa; e, por isso, a relação que estabelecemos com determinados conceitos do autor amado é a de que eles fiquem lá, como signos de nós próprios, inspirando-nos a passar do Prazer de Ler ao Desejo de Escrever (Scripturire = Querer-Escrever). É em nome dessa relação que, primeiramente, ficcionalizo a questão “O que Deleuze quer da educação”? Em seguida, para imaginarizar respostas, extraio, traduzo e uso alguns conceitos deleuzianos, como cartografia, impessoalidade, simulacro, devir, nômade, acontecimento, entre outros. Com eles transvertidos, constituo e qualifico quatro temáticas educacionais, quais sejam: Crianças, Professores, Currículos e Pesquisa. Então, concluo, diferindo do que escrevi. 1. Deleuze O que Deleuze quer Da eDucação? Quem vem por lá, no meio da neblina? Quem entra sem bater, sem se anunciar, sem dizer o próprio nome? Quem chega ao jardim de infância da Educação? As crianças se assustam, pois veem que é um homem de saúde frágil, a quem frequentemente falta ar. Elas gritam por socorro, ao olharem suas unhas longas, não aparadas, que protegem a falta de impressões digitais. Todas se perguntam: – “O que ele vem fazer aqui? O que quer da Educação? Cometerá violências contra a sua educação, ao fazê-las aprender a pensar sem imagens e a desaprender o que já aprenderam? 19 Quem ele pensa que é, para vir se meter com elas, até agora tranquilamente fixadas em formas essenciais e saturadas de definições substanciais? Quanto atrevimento por parte de quem nunca atribuiu à infância qualquer valor, enquanto fonte do sujeito, origem do sentir e do pensar adultos! Quanta invasão de quem jamais deu qualquer importância à infância- arquivo, à criança-lembrança ou ao infantil-universal, por privilegiar somente um devir-criança do mundo! Que ousadia a desse homem intrometer-se na Educação, justamente ele que, enquanto aluno, foi uma nulidade na escola”. (Até descobrir que a filosofia podia ser tão desafiadora e divertida quanto qualquer obra de arte!) Os professores tentam acalmar as crianças, que choram de medo, quando o homem lhes fala com a sua voz rouca e a dicção fatigada, como as de um feiticeiro. Então, mostram- lhes que este pensador traz, para todas, belas, novas e fortes lufadas de enunciação, que nos levam a pensar e a viver a Educação do mesmo modo que um artista pensa e vive a sua arte. Explicam-lhes tratar-se de um filósofo que prossegue a tarefa (que Spinoza começou e Nietzsche continuou) de nos levar a detestar todos os poderes ligados à tristeza, que transmitem a ideia de se viver em estado perpétuo de dívida infinita. De alguém que tem horror a tudo que apequena e entristece a vida, isto é, dos poderes de quem trabalha para diminuir ou nos separar das forças ativas de que somos capazes; e que, com isso, buscam conduzir nossas vidas à resignação, à má consciência, à culpa, recheando-as de afetos tristes e imobilizadores, de queixas e de ressentimentos. As crianças, agora, entendem melhor o rico presente que esse homem trouxe consigo: a possibilidade de pensar e de viver a alegria em Educação; já que ele mostra como amar tudo aquilo que desenvolve e efetua as potências afirmativas e como odiar todos os poderes que obstaculi- zam essa efetuação. E lhes diz que qualquer poder é sempre muito triste, mesmo se aqueles que o exercem alegram-se em fazê-lo: – “Os que exercem os poderes e com eles se alegram são uns pobres coitados, porque a sua é uma alegria triste”! 20 Nesse momento, as crianças param de chorar, porque se existem, neste Universo, criaturas que não querem saber de alegrias tristes, mas só de alegrias que as regozijam – por serem o que são e por chegarem aonde chegam, por meio de suas potências infantis –, essas criaturas são as crianças! No entanto, os professores alertam: – “Sejam pru- dentes! Não exibam demasiadamente essa alegria em estado puro, pois há muita gente para quem a infantilidade – que diz um Sim incondicional à Vida – é insuportável”! 2. Crianças Cartógrafas-impessoais-artistas Após o pavor que o encontro inicial com o Feiticeiro do Pensamento da Diferença provocou, tudo muda na Educação. A começar pelas próprias crianças, que não mais se pensam ou são pensadas como embriões originários do ser humano cognitivo e psíquico, nem como fontes da sociedade e da cultura, mas se anunciam como cartógrafas, impessoais e artistas. Cartógrafas porque exploram os meios das aulas, escolas, parques; fazem trajetos dinâmicos pelas vizinhanças das ruas, campos, animais; traçam mapas virtuais dos currículos, projetos político-pedagógicos, em extensão e intensão, os quais remetem uns aos outros; e que elas superpõem aos mapas reais, cujos percursos, então, são transformados. Como mapeadoras extensivas dos movimentos das relações pedagógicas de poder e dos deslocamentos dos saberes curriculares,as crianças redistribuem impasses e aberturas desse poder, limiares e clausuras desses saberes, limites e superações dos seus modos de subjetivação, em busca do Acontecimento – que elas sabem não se tratar de fatos educacionais, dados históricos nem práticas pedagógicas; embora ele não exista fora dessas efetuações; só que, nelas e em seu existir atual, o Acontecimento não se esgota, pois é imaterial, incorporal e virtual. Já, enquanto mapeadoras intensivas de afetos (ativos e alegres, passivos e tristes), as crianças produzem constela- 21 ções educacionais, que preenchem suas deambulações sociais. Impessoais, elas falam e escrevem por indefinidos, que consistem naquela forma de expressão que precede as manifestações da sua subjetividade infantil, delas fazendo singularidades pré-individuais e consciências pré-reflexivas sem Eus. Por isso, as crianças adoram o indefinido Uma- Criança, que é como elas se enunciam como sensíveis; o que as leva à conclusão de que também são Artistas. Artistas porque, definindo-se como sensíveis, fazem as mesmas coisas que a Arte. Ou seja, tanto as crianças Cartógrafas-Impessoais como a Arte não ordenam lugares, mas abrem rasgões para o Fora; movimentam-se sobre um devir-infantil e sobre o esquecimento da história e o abandono das lembranças de infância; percorrem passagens e linhas erráticas de materiais flexíveis e heteróclitos; desenroscam anéis de superfície pura, sem interior nem exterior; conectam e desconectam inimagináveis zonas de vizinhança; jogam pedras numa velocidade infinita contra todos os organismos; realizam viagens histórico-mundiais, sem saírem do Continente da Infância e da Arte; abrem e fecham portas, telhados e planos, enlouquecendo totalmente o pensamento do bom senso da Infância e do senso comum da Arte. Em suma, em devir-infantil, as crianças, cartógrafas- impessoais-artistas fazem até voar os morcegos que bicam as suas janelas. 3. Professores Devir-simulacro – “Estivemos sempre sob o jugo do Princípio de Iden- tidade”. Eis um diagnóstico que Deleuze realiza, juntamente com toda filosofia pós-nietzschiana, e que orienta o seu pensamento na direção oposta ao do pensamento da identidade – o qual, para reunir a multiplicidade sob um conceito, deve, necessariamente, igualar o não-igual. Assim, ao utilizar esse Princípio da Identidade para formular a designação uniformemente válida do conceito de Professor, abandonamos todas as diferenças singulares das inúmeras 22 maneiras de ser, de tornar-se, de operar como um professor, além de despertar o pensamento da Representação. Assim procedemos porque tal Princípio, ao formular o conceito de Professor, leva-nos a esquecer tudo aquilo que é distintivo; como se, no campo da Educação, além dos vários professores e de suas ações individualizadas e desiguais, houvesse algo ou alguém que fosse O Professor-Primordial (Uno, Padrão, Verdadeiro, Normal). E, ainda, como se, a partir deste determinado professor, todos os outros fossem formados, embora por mãos inábeis; de maneira que nenhum saísse correto e fidedigno à Ideia Pura daquele Professor- Modelo, dotado de uma qualidade essencial, ou qualitas occulta, cujo nome pode ser Professoralidade; e à qual cada um e todos os professores deveriam submeter-se ou esforçar- se para dessa categoria se aproximar, como Cópias bem ou mal assemelhadas; caso contrário, seriam considerados simulacros; e, assim, por estarem tão distantes e por serem tão dessemelhantes da Professoralidade (que é a causa de O Professor e de todos os professores) seriam profunda- mente desprezados. Essa matriz platônica compõe o que Deleuze denomina Imagem Dogmática de Pensamento, que integra a Filosofia da Representação; a qual, juntamente com todas as áreas que operam com o pensamento monocentrista, positiva as Cópias-Ícones como sucedâneos válidos do Original, en- quanto teme os simulacros (fantasmes), considerados es- tranhos, primitivos, selvagens, desviados, divergentes e perigosos subversivos das hierarquias estabelecidas, verda- deiros casos perdidos, que Platão detestava e recomendava que fossem jogados nos abismos dos oceanos mais pro- fundos, ou abandonados no mais recôndito das florestas; visto negarem tanto o Original quanto as Cópias. Imagem que, em Educação, valoriza positivamente os Professores- Cópias (como imitações do Primordial), pois eles teriam relações diretas com a Ideia Pura da Professoralidade; sendo, dessa maneira, os seus pretendentes bem fundados; ao mesmo tempo que desvaloriza os professores-simulacros, como falsos pretendentes que sobrevivem graças a semelhanças 23 falsificadas; e que vivem abertos para a dessemelhança, ficando, cada vez mais, afastados do centro do Modelo-Ideia- Essência-de-O-Professor. Vê-se como um regime de imagem do pensamento desse tipo somente pode ser formulado num plano trans- cendente, metafísico, concebido em um além-mundo supe- rior, organizado, ordenado e hierarquizado; que preexiste e sobre-existe àquele plano ordinário no qual os professores vivem e atuam; em um plano idealista, portanto, que amal- diçoa a diferença, ao desconsiderá-la por meio do conceito, uma vez que cada professor, como Cópia-Ícone, deve re- presentar (re-apresentar) o Modelo; e, assim, repetir o seu agir, fazer, dizer, pensar, sentir. Logo, quando um professor é denominado Bom, Verdadeiro, Correto, Competente; en- quanto outro é denominado Mau, Falso, Incorreto, Incom- petente, é porque cada um deles está sendo julgado por sua Professoralidade; em função do maior ou menor grau de semelhança ou de infidelidade a ela, considerada a causa de todos eles. Já a Filosofia da Diferença (também chamada por Deleuze de Empirismo Transcendental) reverte esse plano transcendente e privilegia a mobilidade perpétua do real, exercida num plano de imanência; a ser traçado pelos professores, que lhe vão dando consistência à medida que o criam por meio de experimentações. Plano que é desse mundo dos professores e, no qual, o único ser-professor que pode ser dito é o do devir; isto é, daquele ser que não para nunca de se deter no jogo da sua própria proliferação. Plano que é povoado por professores em devir-simulacro e que extrai a força da sua imanência dos conceitos nietzschianos de Vontade de Potência e de Eterno Retorno; os quais não repetem o Mesmo; mas, a cada repetição, produzem a Diferença Pura. Por isso, o platonismo, inclusive em Educação, é ferido de morte em sua diferença relativa, entre O-Bom-Professor e O-Mau-Professor, que nada mais são do que Cópias, bem ou mal-assemelhadas ao Padrão; diferença que sempre hierarquiza, privilegiando uns e secundarizando outros 24 professores. Platonismo ferido pelo pensamento deleuziano, que valoriza justamente os professores-simulacros como os únicos que têm condições de produzir novidades e de levar a Educação à diferença não maldita; pois, somente eles possuem forças inventivas orientadas para o porvir. Esse devir-simulacro dos educadores-professores-pedagogos pode ser considerado, também, no plano educacional, como uma espécie de Gaia Ciência, que fornece ferramentas conceituais para pensar um devir-alegre, um devir-criador, um devir-artista. Plano, para o qual, a aula brilhante que um professor porventura tenha realizado, no dia de hoje, não seja comparada a nenhum Modelo-de-Aula, nem a outras aulas dadas por ele ou por seus colegas; tampouco, seja ele considerado um Bom-Professor, em comparação com um Professor-Padrão, nem com outros professores. Mas, considera brilhante uma aula, pelo fato de que, hoje, neste dia determinado, nesta aula específica, o professor em questão, circunstancialmente, conseguiu formular algo novo para pensar; problematizar, com e diante dos alunos, o que até então não era considerado problemático por ninguém; conseguiu levar os alunos a encararem as besteiras e desaprender as verdades, que lhes haviam sido transmitidas e ensinadas, e que eles haviamassimilado; para, desse modo, aprender algo que não fosse senso comum nem opinião. Esse professor conseguiria, assim, mostrar que a dificuldade de pensar é algo de direito do pensamento, não possuindo nada de inato ou de recognição; nem trataria de responder a perguntas para as quais já existem respostas; tampouco, pensaria a partir de postulados previamente definidos; já que, para ele, pensar é, antes de tudo, criar. Logo, trata de engendrar o pensar no próprio pensamento: condição de possibilidade para uma criação que merece esse nome, dado por um Pensamento sem Imagem. Um pensamento que os professores em devir-simulacro podem experienciar, pois é relativo à economia de fluxos materiais e semióticos do desejo (nem subjetivo nem representativo), que precedem sujeitos e objetos e procedem por afetos 25 e transformações, independentemente de serem ou não calcados sobre pessoas, imagens, identificações. Desse modo, um professor etiquetado como Tradicio- nal, um pedagogo rotulado como Construtivista, ou um educador definido como Progressista podem ser atravessa- dos por devires múltiplos: por um devir-simulacro, que coexiste com um devir-mulher, com um devir-criança, com um devir-animal, com um devir-negro, com um devir- poético, com um devir-imperceptível. Devires, que o ligam a processos de singularização e remetem à problemática da multiplicidade; processos e problemática que excluem a obsessão – que o Pensamento da Representação instalou no campo educacional – de encontrar, formular ou reconhe- cer algum perfil, identidade, função, papel de O Professor; os quais reificam uma natureza pedagógica verdadeira, uma essência universal de professor, uma arcaica vocação educadora, um modo certo de planejar, de dar aula, de avaliar, de formular um currículo. Tais devires-simulacros são compostos por processos transversais de artistagem, que permeiam as diferentes subjetividades dos educadores, instauram-se através de cada um deles e dos grupos sociais que integram, realizando uma crítica radical a formas determinadas e a funções legitimadas. Devires de pedagogos-artistas, feito por elementos virtuais, embora reais, que se distinguem apenas pelo movimento e pelo repouso, pela lentidão e pela velocidade; que não são átomos, apesar de serem finitos; que, embora possam ser dotados de formas, nem por isso são indefinidamente divisíveis; e que consistem nas últimas partes, infinitamente pequenas de um infinito atual, estendidas num plano de consistência. Partes essas que se definem pelos graus de intensidade e relações, nos quais entram, e que pertencem a este ou àquele professor, pedagogo, educador, artista, que pode ser parte de outro, numa relação complexa; embora cada um seja uma multiplicidade de multiplicidades perfeitamente individuadas. Os educadores-artistas são tomados em segmentos de um devir-simulacro, cujas fibras levam de um devir a outros, 26 transformados naquele e que atravessam limiares de poderes, saberes, subjetividades. Desse modo, quando professores- artistas compõem, pintam, estudam, escrevem, pesquisam, ensinam, orientam, eles têm apenas um único objetivo: desencadear devires. Devires que são sempre moleculares, já que devir não é imitar algo, nem identificar-se com alguém, tampouco promover relações formais entre identidades. A partir da bagagem cultural que esses pedagogos-artistas possuem, de suas formas-professorais, do sujeito-educador em que se transformam, das funções-educativas que aprendem a exercer, devir-simulacro é extrair partículas disso tudo; que são as mais próximas daquilo que eles estão em vias de se tornarem; e através das quais se tornam outros educadores, professores, pedagogos e artistas diferentes daqueles que são. Assim, devir-simulacro é o próprio processo do desejo de educar. Isto é, a partir do educador que é; dos fundamen- tos, metodologias, pedagogias que aprende; de como sabe exercer a profissão; o professor-artista entra na zona de vizinhança – que marca o pertencimento a uma mesma molécula, independentemente dos sujeitos e das formas – do desejo, ou em sua co-presença, entre as partículas extraídas do que carrega em si e que não mais pertencem ao que ele é, ao que possui, a como ensina. Por isso, um pedagogo-educador-professor, em devir- artista-simulacro, é considerado uma hecceidade; isto é, uma coletividade molecular não separável de um espaço corpuscular. Não que um professor se torne um artista, nem que um pedagogo se assemelhe a um artista, tampouco que um educador seja análogo a um artista, ou vice-versa, já que o devir não é metáfora simbólica; mas, sim, que o educador, o professor, o pedagogo e o artista invocam uma zona objetiva de indeterminação ou de incerteza, comum e indiscernível; na qual não se pode dizer onde passam as fronteiras de uns e de outros. E não que esse devir-simula- cro aconteça somente para alguns privilegiados, corajosos ou iluminados: todos os educadores, pedagogos, professo- res e artistas, independentemente de evoluções, possuem 27 potência para outras possibilidades inatuais e para outros devires. Devires que não são regressões, mas involuções cria- doras, núpcias anti-natureza, que ocorrem fora dos corpos programados e dão testemunho de uma vivificação per- manente. Essa é a realidade do devir-artista dos educadores- simulacros e do devir-educador dos artistas-simulacros, sem que os educadores se tornem artistas ou os artistas se tornem educadores; embora possam tornar-se. Isso porque, no devir-simulacro não se compara e, quando se usa a palavra “como”, esta já mudou de sentido e de função, porque fica remetida às hecceidades e não a sujeitos, significados ou estados significantes. Assim, quando um professor brinca, um educador uiva, um pedagogo canta, um artista ensina, se isso for feito com bastante intensidade e paixão, o professor emite uma criança molecular; o educador, um lobo molecular; o pedagogo, um cantor molecular; o artista, um professor molecular. Não que um se torne o outro, como se mu- dassem de espécies molares, em suas formas e subjetividades; o que ocorre é uma emissão de partículas, que entram em vizinhança com moléculas compostas e produzem um professor-criança, um educador-lobo, um pedagogo-cantor, um artista-educador moleculares. Claro que é no professor que a criança brinca, no educador que o lobo uiva, no peda- gogo que o cantor canta, no artista que o pedagogo-educador- professor ensina; mas por meio de emissões corpusculares e não por imitação, nem pela proporcionalidade de suas formas. Portanto, mudam aqui, também, a realidade-em- devir da criança, do lobo, do cantor, do artista; sem que eles, necessariamente, tornem-se professores, educadores ou pedagogos. 4. Currículos Currículos-nômaDes Desde a chegada do pensamento de Deleuze na Educação, vê-se como, para crianças-cartógrafas-impessoais-em-devir- 28 artista e para professores-pedagogos-educadores-artistas- em-devir-simulacro, não há mais possibilidade de operar com qualquer tipo de currículo, a não ser com currículos plurais, que podemos chamar por diferentes nomes, como Currículo-Nômade; o qual apresenta os seguintes componentes em seu plano de composição. Sem memória nem ambição, disforme e alienado, fora de si, esse Currículo-Louco é ilegítimo, odeia planos homogêneos e unidades metodológicas, objetivos e projetos, formas didáticas e medidas avaliativas. Pensado a partir de um desmoronamento da interioridade do pensamento curricular, é dotado da potência extrínseca de surgir em qualquer ponto e de traçar qualquer linha, irrompendo nas águas mansas da sabedoria adquirida, de modo involuntá- rio, imprevisto, incompreensível, inassimilável. Vive às voltas com as forças do Fora, como uma vio- lência que se abate destrutiva sobre os saberes consoli- dados, como um estranhamento recíproco entre o pen- samento racional e a realidade de algum objeto. Por se movimentar em outro espaço-tempo,esse Currículo-Errante é inconstante, versátil, anda de terra em terra, corre mundo; de modo que os seus pontos se alternam, subordinados aos trajetos que eles mesmos vão traçando; enquanto os seus traços apagam-se à medida que os trajetos vão sendo feitos. Em movimento perpétuo, com vagos trejeitos de um Currículo-Ambulante, distribui-se, em espaços abertos, sem partilha, sem alvo nem destino, sem partida nem chegada, crescendo no meio do campo curricular como grama. Esse Currículo-Fluido desterritorializa e reterritorializa, faz ruptura das próprias territorialidades, abrindo-se para o novo e consolidando-o, mediante a construção de outras adjacências, desfaz-se e renuncia a si mesmo, vai embora para outra parte. E, mesmo que os fluxos desse Currículo- Turbilhão sejam canalizados por condutos e diques, precipita- se, torna a jorrar, transborda, flexibilizando as distinções binárias, ternárias e sintéticas, afetando seus pontos hete- rogêneos, fazendo com que se revezem, ramifiquem-se 29 e se encadeiem, extrinsecamente, para se tornarem vetores de transformação. Polimorfo e difuso, bifurcado e fibrilado, esse Currículo- Estrategista corre solto numa atmosfera de errâncias. Deformante e móvel, o Currículo-Ubíquo agencia elementos díspares, opera multiplicidades acentradas, realiza disjunções inclusivas e, por meio de sua rapidez e leveza, conecta-se com outras máquinas de pensar e de viver que têm forças vivas de devires, para conjurar o peso e a gravidade de currículos paquidérmicos e tingidos de cinza-chumbo. Esse Currículo-Imoderado fornece provas de interações inéditas com crianças, professores, matérias, vivendo cada instante curricular molar, em termos de relações moleculares e de movimentos de fuga. Por ser um Currículo-Amoroso com tudo aquilo que inventa, conjura as cruéis forças econômicas e políticas, as insuportáveis humilhações humanas, os centros de poder, ao desenrolar os seus segmentos e figuras imóveis, dispersando- os, de modo que voltem a bailar. Currículo-Dançarino, que não pretende ter desenvolvimento autônomo ou tomar algum poder e, inclusive, espanta-se com a servidão abjeta dos Currículos-Oficializados, não entendendo como eles podem ser tão desejados, triunfantes e duradouros. Irritado com os torpores, adaptações e consciências dos Oficializados, esse Currículo-Abalo tensiona-os, faz com eles piruetas, rolinhos e cambalhotas, dá-lhes rasteiras com novas ideias, cria personagens misteriosos, que são irrepetíveis. Indisciplinado, o Currículo-Rebelde questiona conser- vações e convenções, regimes de legitimidade e rouba- lheira, direções constantes e delimitações fincadas sobre codificações. Esse Currículo-Bandido define-se por suas ações livres, inventa revides, luta, joga projéteis, questiona hierarquias, regimes de propriedade, direções constantes, delimitações de objetos e se transforma em arma para ferir os currículos firmados sobre bases sólidas, não relevando sentimentos ternos diante de nenhum sujeito dos Currículos-Equilibrados; embora seja pleno de afe- tos variáveis, que atravessam corpos de alunos e de pro- 30 fessores como flechas, numa velocidade infinita de des- territorialização andeja. Possuidor de uma Ciência-Menor, contrária à Ciência- Régia, o Currículo-Balístico reporta-se a agenciamentos ma- quínicos e coletivos de enunciação, definindo-se pelo con- junto das singularidades extraídas de seus fluxos curricula- res, que convergem para uma consistência inventiva. Esse Currículo-Hiper-Ativo funciona como uma máquina vagamunda, social e coletiva, cujos agenciamentos definem, num determinado e volátil momento, a sua racionalidade curricular e o seu nível de compreensão; tais como os usos e a extensão dos seus conteúdos, as paixões e os desejos das emoções de um Currículo-Eros, que promove descargas de afetos múltiplos, opostos aos pesados conhecimentos estáveis, bagagens culturais, valores eternos, sujeitos idên- ticos, essências constantes, verdades verdadeiras. Um Currículo-Itinerante desse tipo pode ser chamado Currículo-Mar; pois é fluência pura, nada representa, não fixa lugares, não disciplina, mas engendra-se e percorre-se, faz fugir os sujeitos e os objetos, que implicam um ponto de vista fixo e exterior, procedem por iteração, valorizam reiterações, reconhecem fenômenos, buscam resultados, comprovam constantes. Já um Currículo-Intuitivo capta as singularidades da matéria e a variação contínua das variáveis para constituir a sua territorialidade móvel. Remetido ao par matéria e forças, subordina as suas operações a condições sensíveis da intuição e da construção; por isso, é tanto arte quanto técnica, produz mudanças de estado, processos de deformação e de transformação dos modelos, métodos e programas gradeados, opera individuações por acontecimentos, nunca por fatos ou por sujeitos. Como um Currículo-Anexato, não deixa de ser rigoroso, pois não é nem inexato como as coisas sensíveis, nem exato como as essências ideais, possuindo essências vagas – que despreendem uma materialidade não confundível com a essencialidade inteligível ou com a coisidade sensível –, as quais geram uma identidade anexata entre os pensamentos e as coisas curriculares. Materialidade de um Currículo- 31 Força, cuja matéria-movimento, matéria-energia e matéria- em-variação são seguidas por uma intuição em ato, que não para de situar-se de um lado e de outro dos seus limiares, nem de transformar as matérias homogeneizadas e suas formas estabelecidas. Esse Currículo-Problemático antes formula problemas do que os resolve. Por isso, é um Currículo-Aprendizado, operando como experiência de problematização, que não fornece condições empíricas do saber, não faz transição do saber ao não-saber, não é solução para alguma falta de saber. Currículo-Aprendente, não sabe direito como alguém aprende; só sabe que não é por assimilação de conteúdos, nem por faculdades inatas, ideias a priori, elementos transcendentes. Ao juntar o pensar, o aprender e o viver, procura tornar o pensamento possível outra vez, pois acredita que, assim, pode retirar o pensar da sua imobili- dade e separação da vida. Encontrando-se em relação com forças e velocidades infinitas do caos, é um Currículo-que -aprende-ao-mesmo-tempo-em-que-ensina, a partir da ques- tão “O que é pensar”? – que só acontece na imanência absoluta, na criação de novidades e na vida ativa. Currículo- Vitalista, dotado de vida com luz própria e de produtividade híbrida, rizomática, que dá saltos, faz desembocaduras, passagens e desvios, que costumam ser sobrecodificados pelo pensamento curricular reativo e triste, que os tenta capturar, sitiar e harmonizar; de modo a colmatar suas fugas, subordinar suas diferenças às identidades, impor limites a suas inumeráveis conexões. Por isso, é um Currículo-Inimigo da adequação do intelecto às coisas, do amigável acordo entre as faculdades mentais, do Bem/Mal, do Certo/Errado, do Verdadeiro/Falso. Esse Currículo-de-Briga com o pensamento moral, odeia besteiras comunicativas, opinião medíocre, contemplação, reflexão, clichês, decalques, regras, ordens, certezas fáceis e repetidas ad nausean. Esse Currículo-Violento tem a sua violência chegando-lhe do não conhecido, do tempo não cronológico de Aion, dos elementos selvagens não domes- ticados, ou seja, do Fora, que lhe é trazido pelos Signos. 32 Signos que fazem dele um Currículo-Enigma, pois o for- çam a pensá-los, a decifrá-los, a interpretá-los; para que, desse modo, possa praticar um ensinar e um aprender imprevisíveis, que nos levam a não reconhecer nada do que até então conhecíamos, impedem-nos de pensar e de viver como antes, constrangendo-nos a nos desprender de nós próprios. O Currículo-Ignorante ensina que importa perder tem- po para aprender e para enamorar-se dos Signos, de sua necessidade e urgência, inevitabilidade e força. Esse Currí- culo-Aventureiro não propõe gestos a serem reproduzidosou conteúdos a serem reconhecidos; nunca diz – “Faça como eu faço”!, mas convida: – “Venha, faça comigo”!, enca- deando sensibilidade, intuição e pensamento para sacrificar os Imperativos dos Objetos, as Palavras de Ordem da Linguagem e a Facilidade das Recognições; funcionando como um atrator-caótico, contagiando e propagando, pu- xando, arrastando matérias e encontros para um devir- vagamundo, feito da proliferação de possíveis e da ramifi- cação de não-sensos. E é tão forte esse Currículo-Desejante, que só se preocupa em ser avaliado pelo que produz e pelos efeitos que causa: se são importantes e interessantes, no- táveis e potencializadores de mais vida. O Currículo-Ladrão-da-Paz não adota jamais uma po- sição neutra ou passiva diante do mundo e da vida; ao contrário, trata-os como uma questão de artistagem, vincu- lada à produção de diferenças, a intervenções e à invenção de vidas ricamente vividas por minorias ex-cêntricas, que procedem por difusões móveis de prestígio. Por sua própria natureza, esse Currículo-Gangue existe e opera, mesmo que de modo imperceptível, em Todos os Currículos Exis- tentes e em Funcionamento. Embora os Currículos-Oficia- lizados queiram sempre pô-lo na prisão, segmentarizar os seus espaços lisos, cortar as suas linhas de fuga, represar os seus fluxos que teimam em escorrer. O problema é que os Currículos-Bandos movimentam os Oficializados, porque estes (embora muita gente não aceite ou não perceba) vivem em metamorfose perpétua e em errância perigosa, voam, 33 galopam, varrem tudo aquilo que, neles, foi organizado e ordenado enquanto dualidades, correspondências, estrutu- ras; de modo a poderem criar novos movimentos curriculares, que ousem impulsos inovadores e vivam em permanentes devires-revolucionários. Agora, chegou a hora de perguntar: – “Como criar, para si, um Currículo-Clandestino que desenvolva, no campo curricular, um novo espaço de pensar? Como abrir nossos poros e criar novas sensibilidades, que nos dêem condições de possibilidades para acompanhar os movimentos im- perceptíveis e intempestivos de currículos fortemente codi- ficados”? Ora, é simples: – “Fiquemos atentos”! Por que esses Currículos-Andarilhos, fazendo aparições descontínuas, praticando atos violentos, esticando linhas de inovação, criando contrapensamentos para pensar o impensável, o não-pensado do pensamento, a exterioridade pura, acabam movimentando todos os currículos, sem exceção. Então, cabe a um pedagogo-professor-educador, em devir-simulacro, que trabalha com crianças-cartógrafas- impessoais em devir-artista, analisar as multiplicidades não métricas e os pontos de singularidades de cada um daqueles Currículos-Codificados, para ver do que eles ainda são capazes, quais são as suas vagas e andamentos curvilíneos, o turbilhonar de suas linhas diferenciais e os novelos de seus fios subterrâneos, que saem de um Currículo-Malta, arras- tam um Codificado e o explodem. Então, nesse campo de batalha desordenado, nesse vapor incorporal de pura intensidade, nessa cena funerária do sujeito, nesse espelho cego dos objetos, nessa película de experimentação rebelde, nesse tabuleiro de jogo ideal, nessa dobradiça do aprender, nesse reservatório do pensar; em um tempo fora dos gonzos, renascendo e recriando-nos, altiva e revolucionariamente, viveremos, com prazer e gozo, a porção Marginal dos Currículos-Certinhos. Porção que são como grandes fetos mexendo-se, boiando, mergulhando, circu- lando e crescendo na barriga do grande Tubarão Pensamental do Currículo-Maior. Engendrar, encontrar e seguir ou não esses fetos, cuidar ou não deles é uma questão de juventude 34 ou de velhice, de tristeza ou de alegria, de vida ou de morte. É aí que a covardia ou a coragem de cada um de nós se decide. 5. Pesquisa Pesquisa Do acontecimento Por último, na relação amorosa e intelectual com os conceitos deleuzianos, distingo um conceito que me parece imprescindível para a pesquisa contemporânea em Educação: o de Acontecimento. Trata-se de um conceito formulado ao longo de toda a produção de Deleuze, desde a sua Tese de Estado Diferença e repetição (Deleuze, 1988) – na qual, tanto o problema quanto suas condições são remetidos à ordem do Acontecimento; até ganhar força e complexidade em Lógica do sentido (Deleuze, 1998) – sob influência da teoria estóica dos incorporais (Bréhier, 1997) e de Leibniz; passando pelo livro A dobra. Leibniz e o Barroco (Deleuze, 1991a) – em que há um capítulo inteiro dedicado à questão “Que é um acontecimento?”, no qual, Whitehead é identificado como o terceiro pensador do Acontecimento; indo até o último livro escrito com Guattari, O que é a filosofia? (Deleuze; Guattari, 1992) – em que aparecem como influências Péguy e Blanchot, saudados como os novos pensadores, que foram capazes de penetrar o Acontecimento; chegando até o seu último texto “A imanência: uma vida...”, em que escreve: “Uma vida [...] é feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades. Os acontecimentos ou singularidades dão ao plano toda sua virtualidade, como o plano de imanência dá aos acontecimentos virtuais uma realidade plena. O acontecimento considerado não atualizado (indefinido) não carece de nada” (Deleuze, 2002). De uma Pesquisa do Acontecimento (Corazza, 2005), seguem-se novas maneiras de pensar e de realizar uma crítica- escrileitura, que vão até a singularidade da experimentação de cada pesquisador-professor, num processo de artistagem inventiva da Educação. Por essa via, buscam-se novas formas de expressão e de conteúdos, que derivam de percursos intensivos e de trajetos extensivos das produções que vêm 35 sendo realizadas, já há alguns anos, no campo educacional; lutas contra a secura dos corações, a acídia nas relações e o agreste dos códigos; inspirações fornecidas por filósofos, escritores, educadores do Pensamento da Diferença, os quais participam de um gesto coletivo, cuja divisa consiste na palavra simples de Nietzsche (1986), embora dotada de um poder infinito: “Uma nova maneira de sentir, uma nova maneira de pensar”. Esse gesto coletivo fornece impulsos para que também a Educação participe da pesquisa de novos meios de expressão, que Deleuze aponta para a Filosofia, em Dife- rença e repetição: “Aproxima-se o tempo em que já não será possível escrever um livro de Filosofia como há muito tempo se faz: ‘Ah! O velho estilo”... A pesquisa de novos meios de expressão filosófica foi inaugurada por Nietzsche e deve prosseguir, hoje, relacionada à renovação de outras artes, como, por exemplo, o teatro ou o cinema”. Uma Educação, portanto, a ser criticada, lida e escrita enquanto “ficção científica”, no sentido em que não se evita “aquilo que não sabemos ou que sabemos mal”; mas que é realizada, necessariamente , “neste ponto que imaginamos ter algo a dizer”; já que dar um jeito de acabar com a ignorância faria com que transferíssemos, indefinidamente, “a escrita para depois” ou a tornássemos impossível (Deleuze,1988, p. 18-19). Assim, para a Pesquisa do Acontecimento, escrever não é impor uma forma de expressão a uma matéria vivida, mas trata-se de um procedimento informe, de um processo inacabado, de uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. E, quando o professor-pesquisador critica-lê-escreve, fica comprometido com a Literatura do Acontecimento em Educação, necessitando ser um bom artesão, um esteta, um pesquisador de palavras, frases, imagens, para atuar no limite, na ponta extrema, que separa o saber e a ignorância, e os transforma. Por ser construída ao mesmo tempo em que se desen- volve, esta Pesquisa possui uma natureza empírica-trans- cendental e condensa, nas ações correlatas de pensar, criticar, ler e escrever, que lhes são constitutivas, a criação de sentidos 36 imanentes, que resultam de uma reversão das represen- tações feitas por outras pesquisas. Age, despojada de qualquer significação prévia, pois forma-se na anulaçãodos referentes externos e nos sentidos transcendentes anteriormente construídos. Seus movimentos são expressi- vos, em relação aos sujeitos, objetos, temáticas, já que é uma pesquisa que não consiste num ato subjetivo decorrente de condições empíricas negativas, como a ignorância do pesquisador; nem objetiva ultrapassar obstáculos de des- conhecimento acerca de algum fenômeno; como se pesqui- sar fosse uma passagem do não-saber ao saber. Ao contrário, trata-se de uma Pesquisa que investiga o conhecimento, no sentido deleuziano, como aquilo que não é “nem uma forma, nem uma força, mas uma ‘função’”. Conhecimento-função que não se realiza sobre “paradigmas arborizados do cérebro”, mas é feito com “figuras rizomáticas, sistemas acentrados, redes de autômatos finitos, estados caóides”, que se conjugam em processos criadores sobre planos de pensamento (Deleuze; Guattari, 1991, p. 26). A Pesquisa do Acontecimento esparrama-se, assim, sobre três “planos”, “disciplinas”, “pedagogias” e seus res- pectivos componentes, que são como solos nos quais ela se movimenta: a filosofia – com o seu plano de imanência, forma do conceito, conceitos e personagens conceituais; a arte – com o seu plano de composição, força da sensação, sensações e figuras estéticas; e a ciência – com o seu plano de referência ou de coordenação, função do conhecimento, funções e observadores parciais. A filosofia pode operar, em separado, sobre cada um desses planos e utilizar seus elementos específicos; pode, também, dedicar-se às interferências intrínsecas de um plano sobre o outro e aos deslizamentos entre funções, sensações, figuras estéticas; ou pode, ainda, efetivar-se sobre interferências ilocalizáveis, isto é, sobre os negativos de cada disciplina, desde que a ciência encontra-se em relação com uma não-ciência, a arte com uma não-arte; e a filosofia necessita de uma compreensão não-filosófica, em cada instante de seu devir ou desenvolvimento. 37 Assim, a sua energia provém da utilização de múltiplas linguagens (ciência, pintura, música, literatura, poesia, teatro, cinema), que lhe fornecem a consistência de uma coexistência heteróclita, a qual transforma os elementos pesquisados numa unidade virtual, à medida que cria um vazio na consciência atual que deles possuímos. Por dedi- car-se à parte não-histórica do que acontece em Educação, esta Pesquisa trata os conceitos como acontecimentos e não como noções gerais; como singularidades e não como universais; o que não implica a reconversão ao aqui-e- agora, nem a troca do essencial pelo acidental; já que o Acontecimento a ser pesquisado é um dinamismo criador – que permaneceria imperceptível caso se tentasse investigá- lo pelos canais habituais da tradição. Buscando o Acontecimento, a Pesquisa substitui a ques- tão ontológica da Essência “O que é”? pelas questões da novela, do conto, do romance “O que se passou”? “O que vai se passar”? (Deleuze; Guattari, 2004, p. 235). Experimentando e mostrando o Acontecimento como produção de eventos, a Pesquisa troca o eterno pelo presente, não realizando uma fenomenologia da atualidade, mas uma Ontologia do Pre- sente, no sentido de Foucault (Deleuze, 1991b). Assim, ela não pesquisa divisões, unidades, identidades definidas e formadas (crianças, professores ou currículos), mas dia- gramatiza-as em fuga, valoriza os seus devires, nomadismos e inatualidades, conceitualizando suas configurações por vir. Para tal Pesquisa, tudo é considerado Acontecimento puro, isto é, potencialidade inexistente fora de suas atua- lizações e, todavia, delas transbordante. Incorporal sem ser vago, coletivo e particular, perceptível e microscópico, o Acontecimento é modo de individuação, ligado a um clima, a um clarão, a um silêncio, a outros acontecimentos. Ele não designa coisas, fatos, ações, paixões dos corpos, estados de ser ou de coisas, pessoas, sujeitos, porque os toma como individuados por linhas acontecimentais, como individuações assubjetivas, impessoais, subpessoais; cada qual dotado de duração própria e variável, embora intensiva, feita de afetos e de sensações. 38 Relatórios, críticas, leituras e escrituras feitos nessa Pesquisa do Acontecimento são constantemente dissolvidos e reformulados por novos planos de pensamento, que pro- curam identificar a imagem peculiar de cada linguagem; afastar o nevoeiro de universalidade que rodeia cada pe- dagogia; restabelecer o momento da originalidade de cada pensar. A Pesquisa investe, portanto, contra tudo aquilo a que o pensamento se dirige: a besteira, o erro, a superstição, a ideologia, a estupidez, o senso comum, o bom senso, a opinião, a comunicação. Para escapar da Imagem Dogmática do Pensamento, ela se posiciona a favor de que pesquisar é criar e criar é problematizar; só que problematizar é determinar dados e incógnitas dos problemas, que vão sendo formulados à medida que a pesquisa se realiza e que persistem nas solu- ções que lhe são atribuídas, como em um jogo afirmativo de novidades, por meio da Vontade de Pesquisar. Esta Von- tade que, para o professor-pesquisador, abre novos caminhos, que interferem e ecoam uns nos outros, graças a materiais de expressão ainda informes ou de conteúdos incodificados. Pesquisa que se dedica a raspar, escovar, lixar clichês de resultados já organizados, para construir um espaço liso, como no deserto, onde seja possível realizar experiências empírico-transcendentais. Pesquisa desenvolvida, por meio de imagens e de signos, que a burilam esteticamente e dela fazem um compósito de conceitos, afectos, perceptos e funções. Pesquisa que atenta, a um só tempo, para as multiplicidades das multiplicidades e para os seus movi- mentos de desterritorialização, reterritorialização e terri- torialização. Pesquisa que, ao traçar mapas de intensão e de extensão, considera, em primeiro lugar, as linhas de fuga; depois, as moleculares, mais flexíveis; e toma as linhas duras, molares, como resíduos secundários; pois refere decalques aos mapas, relaciona raízes e árvores aos rizomas, e nunca o inverso. Pesquisa que investiga os agenciamentos em suas duas faces: a do agenciamento técnico-maquínico, voltada para os estratos e a do agenciamento coletivo de enunciação, voltada para o corpo sem órgãos. 39 6. Diferir-Artistar Pensar-ensinar, pesquisar-criticar, ler-escrever, Diferir-artistar com Deleuze Amante dos encontros, a cada vez em que é exercida, a Pesquisa do Acontecimento estabelece diferentes relações entre os elementos e compõe geografias inéditas, nos quais os acontecimentos curriculares se tecem e destecem, já que não há, para essa pesquisa, primeiros princípios, represen- tações eternas, regras normativas, orientações naturais. Assim, os Professores pesquisam incessantemente porque não acreditam nas coisas pré-fabricadas da Educa- ção e detestam a inércia pedagógica que os impele a repetir. Eles possuem como guias iniciáticos as suas paixões concretas, que os desviam dos conjuntos espaço-temporais; não os deixam passar ao longo das Crianças; nem recolher a sua efetuação na atualidade; mas os levam a instalarem- se no Acontecimento do Currículo, como num devir, para rejuvenescer e envelhecer, simultaneamente, componentes e singularidades que na Educação circulam. Então, os Pesquisadores-Professores conseguem criar algo novo ao promoverem a irrupção de um devir em estado puro, que Nietzsche chamou “Intempestivo” ou “Inatual”. Realizam, desse modo, uma Pesquisa-Docência de uma Infância-Inatual, que implica que sejam dignos do Acontecimento Curricular e que artistem a Educação, em devir-revolucionário: o único devir, que conjura o intolerá- vel e os faz acreditar no mundo. Referências BARTHES, Roland. A preparação do romance I: da vida à obra. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005. BRÉHIER, Émile. La théorie des incorporels dans l’ancien stoïcisme. Paris: J.Vrin, 1997. CORAZZA, Sandra Mara. Pesquisaro Acontecimento: estudo em XII exemplos. In: TADEU, Tomaz; CORAZZA, Sandra; ZORDAN, Paola. Linhas de escrita. Belo Horizonte: Autêntica, 2004 (p. 7-78). 40 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado) Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. A dobra: Leibniz e o barroco. (Trad. Luiz B. L. Orlandi.) Campinas, São Paulo: Papirus, 1991a. _____. Foucault. Paris: Minuit, 1991b. _____. Lógica do sentido. (Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes.) São Paulo: Perspectiva, 1998. _____. A imanência: uma vida... In: Dossiê Deleuze e a Educação. (Trad. Tomaz Tadeu.) Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, julho-dezembro 2002 (p. 10-18). DELEUZE, Gilles. O Abecedário de Gilles Deleuze. Disponível em: <http://www. oestrangeiro.net/>. Acesso em: 18 de setembro de 2007. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991. _____. 8. 1874 – Trois nouvelles, ou ‘qu’est-ce qui s’est passé? In: ____. Capitalisme et schizophrénie 2. Mille plateaux. Paris: Minuit, 2004 (p. 235-242). NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. (Trad. Mário da Silva.) São Paulo: Círculo do Livro, 1986. TADEU, Tomaz; CORAZZA, Sandra Mara. (Orgs.). Dossiê Deleuze e a Educação. In: Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 27, n. 2, jul./dez. 2002. _____. (Orgs.) Dossiê Entre Deleuze e a Educação. Educação e Sociedade. Campinas, v. 26, n. 93, set./dez. 2005. 41 MÉTODO VALÉRY-DELEUZE: um drama na comédia intelectual da educação2 Justamente porque o espírito humano enfrenta dificuldades para pensar o informe, este artigo constitui o Método Valéry-Deleuze (Método do Informe), enquanto componente de uma Educação ou Pedagogia da Sensação, que associa a vivência dos limites formais e a criação artistadora. Tributário do gosto filosófico, extrai conceitos do meio-Deleuze (expressão, pensar, dramatização) e do meio-Valéry (informe, criação, comédia), para operar com as unidades analíticas de Autor, Infância, Currículo e Educador (doravante referidos em um bloco AICE); pela via biografemática, ao modo de Roland Barthes. Com esses instrumentais operatórios, impulsiona as pesquisas a capturar as forças de acontecimentos educacionais, em suas modulações assignificantes, vitalidades assubjetivas, re- lações ininterpretadas, devires inorgânicos e imperceptíveis. O valor Distante de Flaubert (1997; 1999) que, com Bouvard et Pécuchet e Dictionnaire des idées reçues, sonha realizar uma obra sobre a estupidez humana, o Método do Informe, aqui composto, sonha pesquisar o valor do espírito humano. Assim, em vez de celebrar o triunfo da mediocridade sobre o gênio, que imola “os grandes homens aos imbecis, os 2 Texto intitulado “Valéry-Deleuze Method: a Drama in the Intellectual Education Comedy”, publicado em Anais completos (p. 629-642) do evento International Conference & International Summer University: Borders, Displacemente and Creation: Questioning the Contemporary, realizado na Universidade do Porto, Portugal, de 29 agosto a 04 de setembro de 2011. Ainda publicado na revista Educação & Realidade, da Faculdade de Educação da UFRGS, v. 37, n. 3, set./dez. 2012 (p. 1009-1030). 2 42 mártires aos carrascos”, funcionando como uma “apologia da canalhice humana” (Reys, 1999, p. 407), empenha-se em fazer triunfar o espírito sobre a mediocridade. Se, diz Valéry (1997, p. 57), “um poema deve ser uma festa da inteligência” – isto é, “um jogo tão bem regulamentado que não se pode concebê-lo de modo diferente”; já que a “‘impressão de Beleza, tão irrefletidamente buscada, tão vãmente definida, é talvez o sentimento de uma impossibilidade de variação’” (Maurois, 1990, p. 46) –, acreditamos que, também, a lite- ratura educacional pode ser essa espécie de festa, desde que em vias de se fazer. Literatura derivada de pesquisas que tomam, como objetos ou materiais, as Vidarbos – vidas-obras, e inver- samente – de infantis, educadores, autores e currículos de diversas destinações e níveis de ensino (Adó, 2010; Corazza, 2010b; Costa, C., 2010; Costa, L., 2010; Feil, 2011; Oliveira, 2010). Para tanto, o Método detecta e lança saberes, em um AICE iluminado pela inteligência, delineando os processos de sua gênese e composição. Diante de cada AICE, os pesquisadores professam ignorância, em vez de projetarem seus sentimentos em ídolos; consideram os sistemas das verdades como aquilo que há de mais arbitrário, em termos de convenções, ficções e mitos; explicitam de que maneira multiplicidades, ideias e singularidades podem adquirir realidade em educação. O Método demonstra que, pela criação da obra de arte, a impossibilidade de variação e o arbitrário da criação transformam-se em necessidade de agir para viver, não podendo ser diferente (Bergson, 2006). À medida que os pesquisadores deslocam-se da boa vontade, do senso comum e das decisões premeditadas, para encontrar-se com o acaso e com o caos, o Método trans- forma-se na Paidéia (cultura) de AICE revisitado. Pesquisar consiste, assim, em devir outra coisa que não pesquisador: realizando movimentos de ataque e proteção, vontade e decisão, viagens e mutação; borboleteando intelectualmente e titubeando entre blocos de saber-poder e subjetivida- des; suspendendo o que encontra, para desenhar traços imprevistos e excêntricos de possibilidades; desmoronando 43 e traindo o sistemático; proliferando o processual e anda- rilhando num tabuleiro de experimentações fictícias, que sobrepujam qualquer retidão. A busca A experimentação e a construção de um método con- sistem tanto numa força intensiva da obra de Valéry como de Deleuze. Em nome de quê e para quê? Em Valéry, sob a influência de Poe, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, o Método importa para fazer da criação poética uma obra de precisão, como resultado de uma consciência organizada: “Um espírito inteiramente ligado seria bem, em direção a esse limite, um espírito infinitamente livre, visto que a liberdade, em suma, não é mais que o uso do possível, e que a essência do espírito é um desejo de coincidir com seu Todo” (Valéry apud Maurois, 1990, p. 8). Em Deleuze, o método importa para a realização de um “alfabeto do que significa pensar”, considerando que a “Ideia não é o elemento do saber, mas de um ‘aprender’ infinito”. Para ter e aprender uma Ideia, a filosofia deve seguir a exigência bergsoniana, que indica a necessidade de formular não conceitos abstratos e gerais (que não concernem a nada em particular e podem aplicar-se a tudo e a seu contrário); mas conceitos precisos, talhados na medida dos objetos singulares, de modo que a filosofia alcance não as condições de toda experiência possível (como em Kant), e sim as condições da experiência real (Bergson, 2006, p. 3-4; p. 192 segs.; Deleuze, 1988, p. 295; p. 310; p. 153 segs.; 1998, p. 97 segs.; 1999, p. 13; p. 39). Em ambos os autores, dispõe-se e insiste a mesma questão, qual seja: uma inteligência ansiosa por precisão, necessária para elucidar as relações que tecem uma de- terminada maneira de pensar, de escrever, de estar no mundo, de viver. Assim, de um lado, em Valéry, encontramos uma epistemologia expandida em poética; enquanto, de outro, em Deleuze, uma epistemologia expandida em filosofia. Nas pegadas desses dois pensamentos rizomáticos, que procedem por aforismos, poemas, relâmpagos punctiformes 44 e linhas descontínuas, o duplo Método atinge a consciência, suas relações, condições e possibilidades. Método que é contrário ao substancialismo da representação, pelo uso da “exatidão de imaginação e de linguagem”, com uma “rigorosa geometria do cristal” (Calvino, 1990, p. 133): “o gosto da ordem intelectual da exatidão, a inteligência da poesia juntamente com a da ciência e da filosofia”. Perseguindo o dogmático e o vago, sob o controle da consciência, o Método constrói transversalidades entre as artes verbais e não-discursivas, as ciências da exatidão,a matemática, a física, a filosofia, a poética, a educação. Buscando o rigor e a consistência, sem perder a sensibilidade, o Método formula procedimentos, para os quais, “[Mr.] Teste é a impossibilidade caricatural”, enquanto “Leonardo [da Vinci é] o arquétipo da realização bem-sucedida” (Barbosa, 1991, p. 14). Operar com Valéry e o seu olhar semiológico implica que as pesquisas inscrevam-se “num campo de possibilidades combinatórias”, que transcende “qualquer expectativa crítica” (Gonçalves, 1991, p. 227). Existe, aqui, uma correspondência entre os domínios artísticos, técnicos e científicos, por in- termédio de uma lógica imaginativa e analógica, fundada nas relações “entre coisas cuja lei de continuidade nos escapa”. Ao modo valéryano, a unidade do presente Método baseia- se nas “vertigens da analogia”, vinculadas à “consciência das operações de pensamento”; a qual é capaz de articular a “indissolubilidade entre o sensível e o inteligível”; e que Valéry apreendia “tanto no ostinato rigore de Leonardo quanto no princípio de consistência elaborado e defendido por Poe em Eureka” (Barbosa, 1996, p. 272). Definindo o próprio ato poético como tensão para a exatidão, Valéry, leitor de Bergson e amante de Proust, com eles concordava que pouca valia tem remontar ao passado, para refazer episódios vividos; desde que a lucidez da consciência e da linguagem depende das operações do espírito e nunca das vivências mundanas. É o rigor da construção do espírito que processa os elementos da experiência e expressa, na literatura tratada como jogo da arte, a indissociabilidade entre linguagem e pensamento. Dessa maneira, “como se 45 tivesse um bisturi entre os dedos”, Valéry consegue “abrir cada fibra do mundo das referências tangíveis e imaginárias e decompor, aos nossos olhos, a natureza construída”. É esse mesmo movimento que “determina as irregularidades regulares não só das coisas e dos seres” e que “demonstra as noções de Tempo e de Espaço, mediante a consciência”. Consciência, que, para Valéry, “reside no Homem e só nele e, por isso, só esse animal sensível e inteligente torna-se capaz de agir sobre a Natureza e recriá-la, apontando para a sua insuficiência” (Gonçalves, 1991, p. 226). Já do lado da produção de Deleuze (1997), sob marcada influência de Nietzsche (além de Spinoza, Bergson, Foucault, Artaud, Kafka, Proust), o Método importa para tomar dis- tância da epistemologia representacional, levando o pen- samento a capturar forças, numa semiótica da sensação e numa física dos afectos. Dessa maneira, não requer es- crileituras (escrituras-leituras) evolutivas, cronológicas ou progressivistas, acerca de sujeitos plenos ou autoridades; de mestres renomados ou grandes obras; de currículos bem sucedidos ou documentos-chaves; como se fossem expressões de Obra, Autor, Gênio, Pessoa, Pai, Senhor. Essas categorias ficam fora de questão, permanecem desfocadas, ou sujeitas a problematizações; desde que o terreno e os materiais das pesquisas atualizam-se, sob a forma de blocos de sensações, perceptos e afectos. Como artistas ou opera- dores das forças, ao efetivar experimentações de posturas vitais, os pesquisadores fazem da pesquisa, clínica; e, ao diagnosticar o tipo vital de cada Vidarbo de AICE (o seu de- Fora), fazem do discurso, crítica. Trata-se, para Deleuze, de articular pensamento e vida, devir e história, concebendo os encontros disjuntivos, daí advindos, enquanto irrupção da criação e do novo. Para tal, o Método, que lhe é correlato, formula uma teoria intensiva e diferencial das formas, como relações de forças e de afectos; a qual rompe com a hermenêutica da interpretação e seus sentidos invariantes, sujeitos, objetos, territórios de organização e de estratificação. Empenhando-se, nas zonas de intensidade das suas pesquisas, para diagnosticar como 46 as forças insensíveis produzem tanto signos como imagens, os pesquisadores agenciam movimentos e vibrações de afectos; encontros com hecceidades e variação de potências; relações complexas de velocidades e lentidões, movimento e repouso, entre moléculas ou partículas. Funcionando como Afectologia, as pesquisas transformam o poder de afetar e de ser afetado de cada participante; tornam sensíveis forças antes insensíveis; procedem a deformações inorgânicas; fogem da segurança das formas constituídas (clichês orgânicos); e lutam para permanecer no nível das intensidades instáveis (corpo sem órgãos). Feito as crianças que preferem as aventuras, com suas maravilhas, dificuldades, perigos e possibilidades, o Método Valéry-Deleuze, em sua infância aventureira, reconstrói o prazer de fazer (le plaisir de faire): “prazer atravessado de tormento, misturado de sofrimentos e prazer na busca do qual não faltam nem os obstáculos, nem as amarguras, nem as dúvidas e nem mesmo o desespero”. É que os efeitos do Método criam, para os pesquisadores, uma segunda natureza e uma segunda educação; através das quais, eles combinam e conservam estranhamentos, mediante o que executam. Provocado por esses efeitos, cada artista “troca a cada instante aquilo que ele quer por aquilo que ele pode, o que ele pode por aquilo que ele obtém” (Gonçalves, 1991, p. 230). o método Privilegiando o real puro de AICE, como percebido e não conhecido, irredutível a uma única lei, e não dedutível por meios racionais, o Método opera com os indefinidos – “um autor”, “um infantil”, “um currículo”, “um educador” –, considerados outsiders, excepcionais e anômalos, vagos e únicos, que não se parecem com ninguém, não são idênticos a nada e jamais foram vistos. Localiza essas hecceidades (singularidades) tão-somente ocupando um lugar no espaço e possuindo uma existência de fato; logo, que não têm formas, mas são forças. O ponto de partida radica na dis- tância entre aquilo que os pesquisadores acreditam ver e 47 aquilo que efetivamente vêem, entre sua visão habitual e a visão vazia. Isso porque o quadro teórico-operatório do Método consiste em um construcionismo, que defende o fato de as impressões não terem, necessariamente, de ser substituídas, de maneira imediata, por conceitos ou signos, em detrimento de presenças anteriores aos arranjos inteligíveis. Desnudando as formas de AICE, através das ambi- guidades do Informe, o Método leva os pesquisadores a realizarem dois movimentos, diversos e próximos: a percepção e a criação. Considerando-se não “uma doutrina”, mas “um sistema que realiza melhor que o espírito entregue a si próprio o trabalho do espírito”, com “operações quase materiais”, que “podem ser concebidas, senão realizadas, por meio dum mecanismo” (Valéry, 1965, p. 137), o Método propõe Exercícios do Informe (Valéry, 2003). Exercícios que, em primeiro lugar, desenvolvem a sutileza e a instabilidade sensorial, incitando os pesquisadores a ver AICE, para, deste, arrancar a impressão bruta e a existência efetiva; em vez das significações de objeto, representações de sujeito e configurações de códigos, que implicam a generalização pelo conceito. Mesmo que não haja disposição de ordem entre os elementos de AICE, vistos pelos pesquisadores, pois o In- forme não emite lei, o Método posiciona-os no começo do começo, para ler as impressões visuais, únicas e insubstituí- veis; e, assim, criar a possibilidade de conhecer as unidades dos corpos regulares de AICE. Fazendo-os demorar na sensação, possibilita criar uma visão singular, como se AICE fosse visto por vez primeira. Ao mesmo tempo, em que é abandonado tudo aquilo que, anteriormente, tinha sido constituído como tesouros, bagagens e ideais. Porém, ao lado dessa desconstrução, o Método exige construção. O seu segundo gesto requer a colaboração dos corpos dos pesquisadores, num diálogo entre o Eu que vê e o Eu que desenha (rabisca, escreve, pinta, esculpe, canta, etc.). Na passagem da sensação visual para a configuração manual, a visão encarna-se sobre um suporte (papel, tela, 48 monitor, teclas,pautas, areia, etc.); ao mesmo tempo em que são desfeitos o objeto e o sujeito de referência. Desse modo, ao lançarem, sobre algum suporte, não só o AICE que viram, mas aquele que querem fazer ver, os pesquisadores têm condições de criar um AICE, constituído por sua von- tade de expressão, articulada à sensação. Podem, assim, atribuir ao AICE informe uma (nova) forma. Porém, esse ato não o fixa; já que, ao ser expresso, AICE pode ser modificado, enquanto “o Infantil”, “o Edu- cador”, “o Autor” e “o Currículo” familiares tornam-se outros. Desde que “a expressão precede o conteúdo e o conduz” (Deleuze e Guattari, 1977, p. 62), as mãos dos pesquisadores também guiam sua visão: a “pintura é pensamento: a visão existe pelo pensamento, e o olho pensa” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 250). Se o Método considera AICE informe, isso não quer dizer que ele não possua formas; e sim que as formas de AICE não encontram mais, no pensamento das pesquisas (liberto de clichês e de memória), nada que permita substituí- lo pela recognição ou pelo reconhecimento. Diante das formas de AICE – que não são fixas, mas intensas, carregando puras possibilidades e sendo irredutíveis a nada –, o Método colabora para a identificação daquilo que os pesquisadores ignoravam ou que nunca haviam visto; bem como, para a condição que AICE pode ser modificado pelos Exercícios do Informe. Além disso, por breves e fugazes que sejam as novas formas de AICE, os pesquisadores são surpreendidos, exploram acasos felizes, dominam alguns achados, terminam sua criação. Podem, assim, exercer a potência própria de quem estuda uma Literatura Menor; educa uma Infância Informe; vive um impessoal Devir-Do- cente; e fabrica Currículos Nômades (Corazza, 2010a; 2010c). O espírito e a ideia Para se constituir, o Método Valéry-Deleuze junta o esprit de géométrie ao esprit de finesse, através, em parte, de elementos conceituais do pensamento em prosa de Paul Valéry, especialmente no que se refere àquilo que ele 49 denomina, a partir de 1894, “Comédia do Intelecto” (Comédie de l’Intellect) – também “Comédia Intelectual” (Comédie Intellectuelle); “Comédia da Inteligência” (Comédie de l’Intelligence); “Comédia do Espírito” (Comédie de l’Esprit) –, qual seja: “Acontece-me muito freqüentemente sonhar com uma obra singular, que seria difícil de fazer, mas não impossível”; “e que teria lugar no tesouro de nossas letras, junto à Comédia humana, de que seria um notável desenvolvimento, consagrada às aventuras e às paixões da inteligência”. Seria “o drama das existências dedicadas a compreender e a criar”; nelas, ver-se-ia “tudo o que distingue a humanidade, tudo o que a eleva um pouco acima das condições animais monótonas”; e que consiste na “existên- cia de um número restrito de indivíduos, aos quais devemos o que pensar, como devemos aos operários o que viver” (Valéry, 1996, p. 252). Essa autarquia intelectual, pertinente à Comédia In- telectual – que Valéry define como “autodiscussão infinita”; “teoria de si mesmo”; “obra de arte feita com os fatos do próprio pensamento” –, entra em composição com o pensamento do Deleuze dos anos 60, no que se refere ao aporte do “Método de Dramatização”, presente nos livros Nietzsche e a filosofia (1991, [1962]) e Diferença e repe- tição (1988, [1968]); bem como, na conferência proferida na Societé Française de Philosophie, em 28 de janeiro de 1967, intitulada “O método de dramatização” (2006, p. 145), na qual afirma: “Tento definir mais rigorosamente a dramatização: são dinamismos, determinações espaços- temporais dinâmicas, pré-qualitativas e pré-extensivas que têm ‘lugar’ em sistemas intensivos onde se repartem diferenças em profundidade, que têm por ‘pacientes’ sujeitos-esboços, que têm por ‘função’ atualizar Ideias”. Assim, ao corresponder um tal sistema de determinações espaços-temporais a um conceito, “um logos é substituído por um ‘drama’”, e estabelecemos o drama desse logos. Se, afirma Deleuze, existe “um liame fundamental entre a dramatização e um certo mundo do terror, mundo que pode comportar o máximo de bufonaria, de grotesco”, 50 “uma cólera”, por exemplo, é uma dramatização que põe em cena sujeitos larvares”. Porém, em quais pontos, a Comédia Intelectual de Valéry e o Método da Dramatização de Deleuze levam suas produções a realizarem um bom (ativo) encontro, que nos possibilita erigir o Método do Informe em Educação? 1. O espírito Para Valéry, a cultura é obra do espírito humano. A tarefa do espírito é sonho, isto é, superação do dado, von- tade ativa e busca incansável de um plano de realidade, que não seja o da aparência, nem o da experiência imediata, tampouco o plano sólido do já trilhado. Ocorre que este plano é prisão, o complexo de resistências dos estudiosos, no qual se debate todo querer humano, em seu afã de perfeição e justiça, segurança e certezas. O grande inimigo do espírito é, assim, a natureza, no que tem de mais ime- diato; por isso, embora o espírito seja também natureza, toda obra do espírito, desde que há cultura no mundo, é contranatural. Na concepção valéryana, o espírito trabalha, funciona; é pergunta sem resposta (demande sans réponse); negação de fundamentos e determinações. “Alma” é um dos nomes historicamente dados a espírito, como dinamismo perceptível, que suscita uma estruturação psíquica íntima. Há outras acepções da palavra espírito, que apontam para noções que, semanticamente, se aproximam, como ψυχή e anima, na antiguidade clássica: substância intelectual e incorpórea, que sobrevive à morte do corpo, nas doutrinas espirituais platônicas e neo-platônicas e no cristianismo. Para o aristotelismo e o estoicismo, o espírito consiste numa energia que vivifica e anima o corpo. Desde Montaigne e Descartes, na modernidade, o subjetivismo segue essa ideia de espírito como energia e a introduz no senso comum, sendo usada como característica central de uma instituição, disciplina, povo, nação. Em Hegel e no idealismo alemão, alma é entendida como espírito finito, intelecto; em 51 Schopenhauer, como vontade de viver; em Freud, como in- consciente; e em Nietzsche, como vontade de potência. Espírito, na acepção de consciência de si ou Eu, é raro, seja na antiguidade, no medievo ou na renascença, por ficar, até então, dependente da ordem cósmica e natural. Com a burguesia, no entanto, espírito adquire o sentido da substância (algo em si) de um pensar autônomo e livre, em relação a instituições, tradições e esquemas tidos como imutáveis. Valéry é um herdeiro crítico dessa tradição, chamada racionalista-cartesiana; e adota a palavra francesa esprit para designar Eu, consciência, consciência de si, razão, intelecto, sujeito (não assujeitado), que aspira e realiza criações. Em sua obra, contudo, não encontramos a noção de espírito remetida à metafísica de alguma alma imortal; nem inserida num sistema idealista; ou referida a qualquer divindade reguladora. Assim, quando poetiza o mar, o sol, a luz, a concha, a dança, Valéry é apolíneo, adotando um ambíguo sen- sualismo-materialista. Para ele, o espírito humano não é totalmente controlado por forças irracionais, escravizado pela inconsciência ou determinado por estruturas. Existindo em situação, o espírito tem, quase sempre, possibilidades de escapatória ou de superação das condições mais vis. O próprio inconsciente nada mais é do que um condicio- nante e tudo o que humano realiza é resultado da sua racionalidade, mesmo que mesclada com alguns fatores obscuros. O homem de gênio aproveita-se, consciente- mente, das figuras lançadas pelo acaso; daí advindo a famosa fórmula valéryana: “Gênio = consciência das inconsciências” (Valéry, 1977, p. 221). Apenas a consciência realiza ações e obras, pois, um espírito totalmente inconsciente nada faz: “A consciência é a possibilidade de atos”. O inconsciente pode até fornecer soluções; porém, formular e decidir qual o melhor problema, ou solução, só pode
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