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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL CURSO DE DOUTORADO LIANA AMARO AUGUSTO DE CARVALHO AS NECESSIDADES HUMANAS EM AGNES HELLER NATAL - RN 2020 1 LIANA AMARO AUGUSTO DE CARVALHO AS NECESSIDADES HUMANAS EM AGNES HELLER NATAL - RN 2020 Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Serviço Social e ao Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGSS/CCSA/UFRN) como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutora em Serviço Social, realizada sob orientação do Prof. Dr. Henrique André Ramos Wellen, defendida no semestre letivo 2020.2. 2 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA Carvalho, Liana Amaro Augusto de. As necessidades humanas em Agnes Heller / Liana Amaro Augusto de Carvalho. - 2020. 396f.: il. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós Graduação em Serviço Social. Natal. RN, 2020. Orientador: Prof. Dr. Henrique André Ramos Wellen. 1. Agnes Heller - Tese. 2. Escola de Budapeste - Tese. 3. Necessidades humanas - Tese. 4. Necessidades radicais - Tese. 5. Marxismo - Tese. I. Wellen, Henrique André Ramos. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/Biblioteca CCSA CDU 92:385 Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355 3 LIANA AMARO AUGUSTO DE CARVALHO AS NECESSIDADES HUMANAS EM AGNES HELLER APROVADA EM: 11/12/2020. Prof.º Dr. Henrique André Ramos Wellen Orientador – PPGSS/UFRN Prof. Dr. Jamerson Murilo Anunciação de Souza Avaliador Externo – Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Prof.º Dr. José Paulo Netto Avaliador Externo – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Prof.º Dr. Ranieri Carli de Oliveira Avaliador Externo – Universidade Federal Fluminense (UFF) Prof.º Dr.ª Silvana Mara de Morais dos Santos Avaliador Interno – PPGSS/UFRN Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Serviço Social e ao Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGSS/CCSA/UFRN) como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutora em Serviço Social, realizada sob orientação do Prof. Dr. Henrique André Ramos Wellen, defendida no semestre letivo 2020.2. 4 5 DEDICATÓRIA Ao meu avô “Carlito” (in memorian), por ter acreditado e lutado por um mundo diferente deste. 6 AGRADECIMENTOS A Deus. À minha família. Especialmente aos meus amados pais, Carlos e Graça, e ao meu querido irmão, Carlinhos, pelo amor e cuidado presentes em todas as horas. Aos meus avós paternos, Carlito (in memorian) e Lia; e maternos, João e Maria, pelo apoio e incentivo de sempre. Também à minha família extensa, àqueles que me acompanharam e contribuíram para esta realização, especialmente ao meu tio Cristóvam, pelas trocas filosóficas e diálogos sempre instigantes. Aos amigos que sempre incentivaram o andamento da minha pesquisa, especialmente à Dryka, Myne e Fischer, que dividiram comigo os momentos de angústia e se preocuparam tanto com a minha saúde física e mental durante estes anos. Também aos meus amigos do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (DCJ/UFPB), especialmente a Daniela e Lília. À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ao Programa de Pós Graduação em Serviço Social e aos docentes que conduziram as disciplinas cursadas. Agradeço especialmente ao meu orientador, Prof.º Dr. Henrique Wellen, por quem tenho grande admiração, pelo acompanhamento constante desde o início do curso em relação aos meus intentos de pesquisa, pelas muitas indicações e provocações que, sem dúvida, foram decisivas para este momento da minha formação profissional e para o desenvolvimento das minhas reflexões em torno do meu objeto de estudo e para além dele, bem como pela atenção, disponibilidade, apoio e compreensão sempre presentes. Foi uma honra trabalhar juntos por todos esses anos. Tenho orgulho de ter sido sua orientanda! Aos companheiros do Curso de Doutorado e especialmente àqueles que se tornaram mais que colegas de curso e de profissão: Thaísa Simplício, Juary Chagas e Milena Santos. Esta longa trajetória não teria sido a mesma sem a presença de vocês. Tais agradecimentos são extensivos à Ana Paula Agapito, Jinadiene Silva e Vinícius Lopes, pela companhia e por todos os cafés que tomamos juntos. Obrigada pelo compartilhamento de tantas ideias e pelo carinho de sempre. 7 Aos integrantes do Grupo de Pesquisas sobre Trabalho, Ética e Direitos (GEPTED/UFRN), bem como aos do Grupo de Estudos e Pesquisa Sobre Economia Política e Trabalho (GEPET/UFPB). Agradeço especialmente à minha querida mestra, Prof.ª Dr.ª Cláudia Gomes, pelo incansável acompanhamento em toda a minha trajetória acadêmica, pela atenção e incentivo em todo o tempo. Sem dúvida, esta foi uma contribuição decisiva para o meu crescimento pessoal, intelectual e profissional. Também, externo minha gratidão à Jéssica Mélo, Emanuelle Galdino, Conceição Cruz e Fabiana Alcântara, minhas contemporâneas, bem como aos demais integrantes do grupo pelas trocas, contribuições e boas vibrações sempre presentes. À banca. Externamente, ao Prof. Dr. Jamerson Souza, por quem tenho grande estima, também partícipe da qualificação da referida tese, ocasião na qual fez indicações certeiras e indispensáveis ao bom andamento da pesquisa. Também, ao Prof. Dr. José Paulo Netto e ao Prof. Dr. Ranieri Carli por terem aceitado prontamente o convite de participação e por terem contribuído ativamente para o meu processo de formação profissional como contribuições teóricas marcantes nas minhas reflexões cotidianas. Internamente, à Prof.ª Dr.ª Silvana Mara, pelas contribuições ímpares no andamento do curso de doutoramento, bem como pelas indicações preciosas efetuadas por ocasião da qualificação desde trabalho. Também, ao Prof. Dr. Marcelo Braz, que mesmo não sendo partícipe do meu processo formativo diretamente na UFRN foi um diálogo teórico sempre presente em minha trajetória acadêmica e aceitou a suplência da minha defesa. Sinto-me honrada em tê-los! Ainda, e não menos importante, à Agnes Heller (in memorian), por ter sido uma companhia constante nos últimos anos, proporcionando pistas e provocações que me levaram a tantas descobertas e, sem dúvida, a muitas outras perguntas ainda passíveis de respostas. Além disso, agradeço à CAPES pelo financiamento através de concessão de bolsa durante quarenta meses de pesquisa. E, por fim, a todos aqueles que me acompanharam nessa trajetória e torceram pelo sucesso da mesma. 8 RESUMO A tese ora apresentada analisa as necessidades humanas nas obras de Agnes Heller, filósofa húngara e integrante da Escola de Budapeste. A justificativa do estudo em epígrafe relaciona-se principalmente com o fato de que, apesar de ser significativamente utilizada, a produção helleriana sobre as necessidades humanas ainda se constitui como um campo de incógnitas na produção teórica do Serviço Social. Nesse sentido, questionamos qual a contribuição de Agnes Heller sobre as necessidades humanas e como a categoria de necessidades radicais se situa no debate helleriano, tentando identificar se é possível articular o debate das necessidades humanas e radicais a partir de Heller ao arcabouço teórico marxiano. Portanto,com este estudo objetivamos de maneira geral analisar as necessidades humanas a partir da contribuição de Agnes Heller, analisando especificamente o contexto, a composição e a importância da Escola de Budapeste; abordando a vida e a obra de Agnes Heller; e discutindo criticamente as principais obras sobre o tema das necessidades humanas. Para chegar a este fim, utilizamos como perspectiva de análise o método crítico dialético marxiano, e como procedimentos metodológicos as técnicas de pesquisa bibliográfica de natureza qualitativa, a partir da utilização de fontes primárias e secundárias, através de leituras e fichamentos de materiais disponíveis em meio eletrônico ou em exemplares físicos. Sustentamos a ideia de que o desenvolvimento da Teoria das Necessidades na obra helleriana demonstra que houve um processo de aproximação e afastamento de Marx e do marxismo, resultando em uma produção que absorveu várias influências filosóficas de pensamento, partindo da reflexão sobre os principais eventos históricos do século XX e em particular do contexto vivenciado na formação social húngara, resultando numa produção eclética sobre o tema, o que conforma uma teoria das necessidades própria. PALAVRAS CHAVE: Agnes Heller. Escola de Budapeste. Necessidades Humanas. Marxismo. 9 ABSTRACT The thesis presented here analyzes human needs in the works of Agnes Heller, Hungarian philosopher and member of the Budapest School. The justification of the study in question is mainly related to the fact that, despite being significantly used, Hellerian production on human needs is still a field of unknowns in the theoretical production of Social Work. In this sense, we question what Agnes Heller's contribution on human needs and how the category of radical needs is situated in the Hellerian debate, trying to identify whether it is possible to articulate the debate on human and radical needs from Heller to the Marxian theoretical framework. Therefore, with this study we aim in general to analyze human needs from the contribution of Agnes Heller, specifically analyzing the context, composition and importance of the Budapest School; addressing the life and work of Agnes Heller; and critically discussing the main works on the topic of human needs. To reach this end, we use the Marxian dialectical critical method as an analysis perspective, and as qualitative procedures, bibliographic research techniques of a qualitative nature, from the use of primary and secondary sources, through readings and records of materials available in the medium. electronic or in physical copies. We support the idea that the development of the Theory of Needs in the Hellerian work demonstrates that there was a process of approaching and moving away from Marx and Marxism, resulting in a production that absorbed several philosophical influences of thought, starting from the reflection on the main historical events of the twentieth century and in particular the context experienced in the Hungarian social formation, resulting in an eclectic production on the theme, which constitutes a theory of needs itself. KEYWORDS: Agnes Heller. Budapest School. Human Needs. Marxism. 10 RESUMEN La tesis que aquí se presenta analiza las necesidades humanas en la obra de Agnes Heller, filósofa húngara y miembro de la Escuela de Budapest. La justificación del estudio en cuestión se relaciona principalmente con el hecho de que, a pesar de ser significativamente utilizada, la producción helleriana sobre las necesidades humanas sigue siendo un campo de incógnitas en la producción teórica del Trabajo Social. En este sentido, cuestionamos cuál es la contribución de Agnes Heller sobre las necesidades humanas y cómo se sitúa la categoría de necesidades radicales en el debate helleriano, tratando de identificar si es posible articular el debate sobre necesidades humanas y radicales desde Heller al marco teórico marxista. Por tanto, con este estudio pretendemos en general analizar las necesidades humanas a partir de la aportación de Agnes Heller, analizando específicamente el contexto, composición e importancia de la Escuela de Budapest; abordar la vida y obra de Agnes Heller; y discutir críticamente las principales obras sobre el tema de las necesidades humanas. Para alcanzar este fin, utilizamos el método crítico dialéctico marxista como perspectiva de análisis, y como procedimientos cualitativos, técnicas de investigación bibliográfica de carácter cualitativo, desde el uso de fuentes primarias y secundarias, pasando por lecturas y registros de materiales disponibles en el medio. electrónicas o en copias físicas. Apoyamos la idea de que el desarrollo de la Teoría de las Necesidades en la obra helleriana demuestra que hubo un proceso de acercamiento y alejamiento de Marx y el marxismo, resultando en una producción que absorbió varias influencias filosóficas del pensamiento, partiendo de la reflexión sobre los principales hechos históricos de la época. siglo XX y en particular el contexto vivido en la formación social húngara, resultando en una producción ecléctica sobre el tema, que constituye una teoría de las necesidades en sí. PALABRAS CLAVE: Agnes Heller. Escuela de Budapest. Necesidades humanas. Marxismo. 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11 CAPÍTULO 1: GYORGY LUKÁCS E A ESCOLA DE BUDAPESTE ....................... 36 1.1 A HUNGRIA E LUKÁCS NO SÉCULO XX: o lugar da Escola de Budapeste ..... 37 1.2 A ESCOLA DE BUDAPESTE: um esforço conceitual ......................................... 80 CAPITULO 2: AGNES HELLER: VIDA E OBRA ENTRELAÇADAS ....................... 98 2.1 ASPECTOS BIOGRÁFICOS E BIBLIOGRÁFICOS DE AGNES HELLER ........ 104 2.1.1 Os anos de aprendizado (1950-1964) ............................................................ 108 2.1.2 Os anos de diálogo (1965-1980) .................................................................... 125 2.1.3 Os anos de construção e intervenção (1980-1995) ........................................ 156 2.1.4. Os anos de peregrinação (1995-2010) .......................................................... 179 CAPÍTULO 3: AS NECESSIDADES HUMANAS NA OBRA DE AGNES HELLER: OS ANOS DE APRENDIZADO E DE DIÁLOGO (1950-1980) ............................... 194 3.1. AS NECESSIDADES HUMANAS NOS ANOS DE APRENDIZADO ................ 198 3.1.1 Teoria, práxis e necessidades humanas (1961) ............................................. 198 3.2. AS NECESSIDADES HUMANAS NOS ANOS DE DIÁLOGO .......................... 210 3.2.1 Teoria das necessidades em Marx (1974) ..................................................... 210 3.2.1.1 O conceito marxiano de necessidades ........................................................ 214 3.2.1.2 A alienação das necessidades .................................................................... 223 3.2.1.3 As necessidades sociais ............................................................................. 240 3.2.1.4 As necessidades radicais ............................................................................ 247 3.2.1.5 O sistema de necessidades e a sociedade de produtores associados ...... 265 CAPÍTULO 4: AS NECESSIDADES HUMANAS NA OBRA DE AGNES HELLER: OS ANOS DE CONSTRUÇÃO E INTERVENÇÃO (1980-1995) ............................ 286 12 4.1 AS NECESSIDADES HUMANAS NOS ANOS DE CONSTRUÇÃO E INTERVENÇÃO ...................................................................................................... 289 4.1.1 As necessidades verdadeiras e falsas podem ser postuladas? (1985) .......... 289 4.1.2 A sociedade insatisfeita (1985) ...................................................................... 302 4.1.3. Da satisfação numa sociedade insatisfeita (1987) ........................................ 312 4.1.4 Uma revisão da Teoria das Necessidades(1993) .......................................... 323 CAPÍTULO 5: O PENSAMENTO DE AGNES HELLER SOBRE AS NECESSIDADES HUMANAS E OS SEUS LIMITES ............................................. 333 5.1. SOBRE A TEORIA DAS NECESSIDADES NA FILOSOFIA HELLERIANA: um diálogo com os intérpretes ...................................................................................... 333 5.2 AS NECESSIDADES HUMANAS EM AGNES HELLER E OS SEUS LIMITES.355 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 380 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 386 13 INTRODUÇÃO A tese ora apresentada analisa as necessidades humanas nas obras de Agnes Heller. Esta foi uma filósofa húngara, de origem judia, sobrevivente do Holocausto e dos Gulags. Por ter sido dona de uma ampla capacidade criativa e de uma interpretação própria do mundo, apresentando um rápido e contínuo fluxo de ideias acerca dos seus temas de preocupação filosófica – estando as necessidades humanas entre eles – desenvolveu uma extensa obra, composta de inúmeras publicações, caracterizadas sobretudo por uma continuidade fragmentada das suas ideias controvertidas, que articulam as percepções políticas e filosóficas do seu tempo, mas nunca abandonando a viga mestra de pensamento: a ética. A escolha de estudar as necessidades humanas, por ocasião do doutoramento em Serviço Social, aparece como um desdobramento de pesquisas realizadas anteriormente, vinculadas especialmente ao debate sobre transferência de renda e pauperismo no Brasil, desenvolvidas na graduação e no mestrado em Serviço Social, respectivamente. As primeiras aproximações com o universo da pesquisa se deram ainda no momento da graduação em Serviço Social, com a participação no Programa de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação de Iniciação Científica da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), na condição de bolsista (UFPB/CNPQ), com o Projeto de Pesquisa Programas de Transferência de Renda: impacto na desestruturação dos direitos do trabalho, vinculada ao Grupo de Pesquisa sobre Economia Política e Trabalho (GEPET) do Departamento de Serviço Social da mesma instituição. A partir da referida experiência, surgiu o interesse de continuar aprofundando os conhecimentos sobre a temática estudada, o que levou ao recorte voltado especificamente para o Programa Bolsa Família, a fim de torná-lo tema de Trabalho de Conclusão de Curso, defendido sob o título Os limites do Programa Bolsa Família no combate à pobreza e a desigualdade de renda no Brasil. Dos estudos principiados na Iniciação Científica e desdobrados no trabalho monográfico, a pesquisa continuou sendo desenvolvida no mestrado acadêmico, vinculado ao Programa de Pós Graduação em Serviço Social da UFPB 14 (PPGSS/UFPB), discutindo o programa Bolsa Família e os impactos sobre o empobrecimento absoluto e relativo no Brasil, com dissertação concluída no ano de 2014, sob o título Os impactos do programa Bolsa Família sobre a pobreza absoluta e relativa no Brasil. Naquele momento entendíamos que durante os anos dos governos petistas, com os aumentos sensíveis do salário mínimo, a expansão dos programas socio assistenciais e de transferência de renda, e a queda do desemprego, a sociedade brasileira vinha sofrendo processos reiterados de pauperização, pois a utilização de técnicas consideradas arcaicas de extração de mais valor estavam sendo recombinadas com a sua forma relativa, ou seja, a articulando pauperismo absoluto e relativo. Identificamos ainda que esta tendência vinha se apresentando como uma estratégia contemporânea de reprodução ampliada do capital considerando as configurações que o trabalho assumiu historicamente na particularidade da formação social brasileira. Ficava, portanto, evidente que as transferências de renda causavam um impacto pequeno sobre os níveis de pauperização, e apesar de gerar aquecimento econômico no mercado local pela via do consumo de bens de primeira necessidade, a erradicação da pobreza não poderia ser garantida pela transferência direta de dinheiro para as famílias que faziam parte do referido programa. No tocante aos bens que são consumidos, é impossível desconsiderar a sua função enquanto bem útil a manutenção da vida em sociedade. Entendemos a partir de Marx (2013) que esta é a sociedade na qual a mercadoria se universalizou e os bens necessários à sobrevivência, além da sua utilidade – ou seja, o seu valor de uso – tem o seu valor de troca expresso numa equivalência monetária que constitui uma dimensão de interesse fundamental, uma vez que é através dos atos de compra e venda que a mercadoria se realiza proporcionando o lucro aos donos dos meios de produção. Por mais que no modo de produção capitalista o acesso a estes bens apareça mediatizado pela troca, o consumo dos “itens de primeira ordem” significou – ainda que de forma contraditória, por um viés político-assistencial e clientelístico que historicamente perpassa a formação social brasileira – a satisfação imediata das necessidades das famílias beneficiárias. 15 Sob a ótica econômica liberal o consumo funciona como a mediação para satisfação das necessidades humanas. Essa perspectiva reforça a lógica do pleno funcionamento do mercado, escondendo a essência do “problema” da pobreza. Na verdade, o desvelamento crítico e dialético das suas reais tendências demonstra que, para além de uma simples problemática passível de uma solução imediata, o pauperismo é traço candente da lógica exploratória desta forma de sociabilidade, gerando riqueza material de um lado e pauperismo em escala ampliada do outro (MARX, 2013). Este é, portanto, um traço insuprimível do modo de produção capitalista. Contudo, a discussão sobre o pauperismo em correlação com os programas de transferência de renda no Brasil e com o perfil dessas famílias aparece frequentemente mistificada, de maneira que suscita no campo do senso comum reiteradas colocações que reforçam o famoso “uso indevido” do dinheiro repassado. Por isso, não raramente, identificamos argumentos que legitima um determinado gasto em detrimento do outro. Por vezes reconhece-se a necessidade de comer, o que tornava legítima a compra de alimentos, mas nega-se a necessidade de vestir, rechaçando a compra de uma peça de roupa, por exemplo. De acordo com essa ideia, uma família considerada pobre não deveria consumir itens que excedam a mera reprodução biológica. Desse modo, determinadas necessidades assumem um caráter secundário diante de outras consideradas primordiais, ou essenciais na reprodução de força de trabalho. Em geral percebemos que essas críticas se relacionam a uma lógica moralizante comumente aceita pela qual determinados bens não devem ser consumidos por determinadas famílias, e geralmente aquelas pertencentes aos substratos de menor poder aquisitivo. Dito de outro modo: tais argumentos têm como pano de fundo a culpabilização moral do contingente mais empobrecido da sociedade em relação à identificação das suas necessidades, de maneira que o acesso a determinados bens, considerados supérfluos ou até suntuários, tornam-se “indevidos” ou “inadequados” para algumas dessas famílias. O referido debate perpassa as discussões contemporâneas sobre as políticas sociais e, sem dúvida, tornou-se pauta polêmica especificamente em relação às políticas de transferência de renda. 16 Nesse sentido, ao refletir sobre o universo categorial com o qual lidávamos em pesquisas anteriores, começamos a questionar: O que seria um “gasto legítimo” ou não? O que seria, de fato, um bem necessário ou uma necessidade em si? Quem pode determiná-los? Surgia, portanto, dos desdobramentos do próprio movimento do objeto de estudo anterior uma categoria nova a ser desvelada: asnecessidades humanas. Desse modo, além dos estudos realizados, foram as observações, os questionamentos e as reflexões acerca do movimento da própria realidade que nos levaram ao tema a ser desvelado neste estudo, dando continuidade às pesquisas interrompidas pela conclusão do mestrado acadêmico. Ao iniciar as pesquisas por ocasião do doutoramento, vinculado ao PPGSS/UFRN, fizemos inicialmente um levantamento bibliográfico sobre o referido tema com o objetivo de subsidiar elementos para o debate. De imediato nos deparamos com um universo de discussões das mais variadas ordens, que transitavam entre várias perspectivas teórico metodológicas. De tal modo, passamos a entender que o debate sobre as necessidades humanas abarca um lastro variado de compreensões que versam sobre a reprodução da vida humana em sociedade. Por este motivo entendemos que as várias contribuições em torno do tema não podem ser relegadas, pois guardam diferentes formas de apropriação do debate apontando, guardando obviamente interesses diversos. Entre as principais referências desse primeiro contato destacamos o livro Das necessidades humanas aos direitos: ensaio de sociologia e filosofia do direito, de Miracy Barbosa de Sousa Gustin. O livro faz o esforço de qualificação da discussão em torno das necessidades humanas sob as mais variadas perspectivas teóricas, destacando os principais posicionamentos paradigmáticos sobre a mesma. Corroborando com as contribuições de Jurgen Habermas, Gustin (1999) também qualifica as necessidades a partir da teoria social crítica marxiana e enfatiza a importância da contribuição de Agnes Heller nesta área da produção do conhecimento. Continuando essa primeira aproximação com o tema em epígrafe, dessa vez a partir de um recorte à luz da perspectiva crítico dialética marxiana, a mesma que norteia a realização desta pesquisa, algumas poucas referências se destacaram sobre o referido debate no Brasil. Uma contribuição recente e bastante elucidativa que deve ser destacada é a dissertação de mestrado de Paulo Denisar Vasconcelos 17 Fraga, sob o título A teoria das Necessidades em Marx: da dialética do reconhecimento à analítica do ser social, defendida e publicada em 2006, vinculada ao Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas. Essa produção exerceu um papel fulcral no desenvolvimento desta pesquisa, pois funcionou como uma chave de leitura sobre o tema das necessidades humanas, observando-se a identidade desta pesquisa com o referencial teórico metodológico utilizado. Fraga (2006) parte do suposto de que Marx tem os seus primeiros contatos com o tema das necessidades a partir da sua relação com Hegel, Feuerbach e a economia política clássica. Por isso, ele inicia a discussão da dissertação pela dialética do desejo e das necessidades em Hegel, passando pelos diálogos do jovem Marx com Feuerbach, e identifica a contribuição marxiana nos Manuscritos Econômico Filosóficos de 1844 como a primeira crítica da economia política marxiana. O autor argumenta que há na obra de Marx uma articulação categorial fundada na relação com a filosofia de Hegel, de Feuerbach e dos economistas clássicos que torna o tema das necessidades um debate de todos e de ninguém ao mesmo tempo, pois apesar de compreender uma discussão antiga ela aparece diluída em muitas contribuições, de modo que o tema ganha transversalidade em sua discussão. No século XVIII Hegel se destacou pela contribuição com a economia política clássica e dedicou parte dos seus estudos ao entendimento da modernidade, e “o tratamento desse tema, [...] [compreende] a primeira seção da “sociedade civil” de sua teoria de Estado, intitulada “Sistema das Necessidades”, [...] na Fenomenologia do Espírito” (FRAGA, 2006, p. 19 – 20). Em Feuerbach o tema aparece na crítica da teologia, “quando ele evidencia a não-essencialidade para-si da religião, reduzindo-a a fundamentos antropológicos e terrenos” (FRAGA, op. cit.). Ainda, para o autor, em Marx a preocupação com o tema das necessidades sempre esteve presente, pois a análise das questões de cunho social que se colocaram à sua época o fizeram continuamente referir-se e tratar o tema principalmente relacionando-o com a questão do empobrecimento a priori, em controvérsia com os chamados interesses materiais. Complementa que as primeiras evidências podem ser percebidas quando, ainda como editor da Gazeta Renana, Marx se defronta com os problemas materiais que se desdobravam naquele momento na Alemanha, como por exemplo com o 18 furto da lenha. A partir desse confronto ele passou a dialogar novamente com a filosofia do direito de Hegel e a referir-se, mais tarde, às necessidades radicais na sua crítica, observando no proletariado a “única classe com capacidade universal de resgatar as necessidades humanas de sua miséria e conduzir a sociedade à emancipação e à liberdade” (p. 21). Ainda nos Manuscritos de 1844, depois do contato decisivo com a economia política clássica, a noção de necessidades aparece reiteradamente. Fica ali candente, portanto, “o parâmetro da riqueza das necessidades, contraposto ao seu dilaceramento pelas lógicas da propriedade privada e do trabalho estranhado” (p. 22). O autor destaca ainda que no século XX o debate continuou fervoroso diante da experiência do “socialismo real”, destacando- se as obras de integrantes da Escola de Frankfurt, principalmente com os trabalhos de Herbert Marcuse, na aproximação do existencialismo de Sartre com o marxismo, bem como nas contribuições da Escola de Budapeste (FRAGA, op. cit.). Dando continuidade aos processos investigativos com a finalidade de delimitar o nosso objeto de estudo, buscamos também identificar na produção científica brasileira quais as contribuições do Serviço Social sobre o referido debate, e encontramos algumas alusões ao mesmo. Sobre este ponto podemos destacar inicialmente uma produção teórica que se tornou referência obrigatória para discutir as necessidades humanas na categoria profissional, uma vez que este foi um dos primeiros esforços para lidar com o tema. Refiro-me ao livro de Potyara Pereira, sob o título “Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais”, publicado originalmente nos anos 2000. O livro tece a discussão acerca das necessidades humanas fazendo uma crítica a concepção de mínimos sociais, isto é, correlacionando aquelas com os traços seletivo e focalizado das políticas sociais contemporaneamente. Reconhecendo a ampla dimensão genérica que o debate sobre as necessidades humanas tem, oscilando frequentemente entre conteúdos, contornos e particularidades, de acordo com as suas escolhas epistemológicas, ela defende que esse debate se encaminhou ao longo do tempo para uma polarização, que concentrou de um lado os que defendem as necessidades básicas a partir de concepções subjetivas e relativas e do outro, minoritariamente, aqueles que entendem as necessidades de modo objetivo, passível de generalização. Partindo desse pressuposto, ela tece uma crítica aos chamados approaches relativistas, que 19 na sua concepção revelam-se como subjetivas e arbitrárias, sendo, portanto, inconsistentes, caóticas a até desastradas. E situa-se nos grupos minoritários que defende uma concepção objetiva de necessidades, pois a inespecificidade determinaria formas confusas e voluntaristas de materialização dos direitos (PEREIRA, 2011). Nesse sentido, a autora faz uma defesa do básico em detrimento do mínimo, partindo do entendimento de que a noção de direitos sociais guarda uma relação tênue com as necessidades humanas, e as políticas sociais compreendem a forma de satisfação destas. Mínimo e básico são, na verdade, conceitos distintos, pois, enquanto o primeiro tem a conotação de menor, de menos, em sua acepção mais ínfima, identificada com patamares de satisfaçãodas necessidades que beiram a desproteção social, o segundo não. O básico expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base de sustentação indispensável e fecunda ao que ela se acrescenta. [...] Assim, enquanto o mínimo pressupõe supressão ou cortes de atendimento, tal como propõe a ideologia liberal, o básico requer investimentos sociais de qualidade para preparar o terreno a partir do qual maiores atendimentos podem ser prestados e otimizados. Em outros termos, enquanto o mínimo nega o ótimo de atendimento, o básico é a mola mestra que impulsiona a satisfação básica de necessidades em direção ao ótimo. Sendo assim, mínimo e básico, ao contrário do que tem sido apressada e mecanicamente inferido no texto da LOAS, são noções assimétricas, que não guardam, do ponto de vista empírico, conceitual e político, compatibilidade entre si (idem, ibidem, p. 26 – 27). Ao fazer a distinção entre as concepções de mínimo e básico, defendendo um conceito objetivo e universal de necessidades humanas básicas, a autora situa o debate afirmando que as necessidades compreendem a base material da chamada “questão social” e que não é possível existir efetivamente serviços sociais sem a delimitação do que seriam aquelas. Interessante também é registrar que a autora cita a contribuição de Agnes Heller sobre o tema, como uma referência vinculada ao marxismo, mas que tem um enfoque relativista e subjetivista de compreensão das necessidades humanas, defendendo que as necessidades básicas são essencialmente produto do meio e da cultura dos quais os homens fazem parte. Em suas palavras, afirma que Para Heller, portanto, a estrutura das necessidades varia de um modo de produção para outro, sendo impossível, por isso, comparar culturas diferentes com base num conceito comum. Ou seja, no entender de Heller, necessidades são sentimentos conscientes de carecimentos socialmente relativos, os quais expressam desejos que se diferenciam de grupo para grupo. [...] Mas o sentimento consciente também pode ser uma motivação em busca de preenchimento da “falta de alguma coisa” ou da eliminação 20 dessa falta. E, nessa busca, o Eu se expande, assim como podem surgir novas necessidades pessoais ou sociais. [...] Daí por que, de par com as necessidades naturais (ou biológicas), ligadas à sobrevivência, ela fala, inspirada em Marx, de necessidades radicais (idem, ibidem, p. 44). Diante do exposto, compreendemos que o entendimento de Pereira (2011) aparece hipotecado a uma visão da obra helleriana contemporânea às tratativas sobre as necessidades das décadas de 1980 e 1990, pela qual a perspectiva helleriana já compreendia um verdadeiro paradoxo com o próprio Marx, defendendo uma lógica de satisfação individual e subjetiva e inclusive liberal das necessidades básicas. Contudo, parece que para a autora referir-se às necessidades radicais indica suficientemente que Heller esteja compartilhando de uma inspiração marxiana em suas alegações. Destacamos ainda o artigo de Norma Braz, sob o título Necessidades humano-sociais: ensaio sobre a atualização das necessidades radicais, publicado no ano de 2013, na Revista Argumentum. O ensaio, originalmente apresentado no 7º Encontro Nacional de Política Social, traz a discussão acerca da categoria de necessidades humanas correlacionando-a com a categoria de valor em Marx, a partir da contribuição de Agnes Heller. De acordo com o entendimento da autora, a contribuição da filósofa húngara permanece sendo uma referência válida para resgatar a memória histórica e compreender lições sobre as chamadas necessidades radicais sob o capitalismo contemporâneo, adensando a defesa do socialismo como única forma de resistência ídeopolítica à barbárie das relações sociais instaurada no modo de produção capitalista (BRAZ, 2013). A partir deste raciocínio, a autora desenvolve a sua argumentação inicialmente sobre o conceito de necessidades e a sua base material no modo de produção capitalista, afirmando que as necessidades são construções sociais assim como os seus modos de satisfação. Continua discutindo o que seria o conceito de necessidades no socialismo a partir de uma base ideal de raciocínio, atestando o conceito helleriano de necessidades radicais como fundamental para identificar quais são estas necessidades na contemporaneidade. Além das contribuições de Pereira e Braz, identificamos ainda outros debates recentes na produção teórica do serviço social que abordam o tema das necessidades humanas indiretamente, com a finalidade de subsidiar a discussão de outros objetos de pesquisa. 21 Este é o caso, por exemplo, da dissertação de mestrado de Andressa Amorim, sob o título O serviço social e a institucionalização das demandas sociais: um estudo a partir das necessidades sociais no capitalismo, concluída pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Alagoas (UFAL) e defendida no ano de 2010. Amorim (2010) teve como objeto de discussão a estruturação das demandas para o Serviço Social na sociedade capitalista, com a finalidade de identificar a relação entre as necessidades e demandas sociais e institucionais. Para a autora as demandas surgem das necessidades sociais, encontrando- se no âmbito das relações sociais perpassadas por interesses diversos entre as classes e que se antagonizam na esfera produtiva do mundo material. Desse modo, as necessidades compreendem o fundamento material das demandas sociais, que funcionam para o Serviço Social como alvo da sua prática profissional. Na dissertação a autora reconhece que a discussão sobre as necessidades no Serviço Social acaba assumindo contornos mistificados por se tratar de um tema pouco estudado pela categoria profissional. Em seu percurso teórico metodológico, no primeiro capítulo, a autora recorre a contribuição de Marx e Lukács para discutir e correlacionar as categorias de trabalho e alienação. Em seguida, para abordar o debate específico sobre as necessidades sociais, utiliza-se a contribuição de Agnes Heller colocando o caráter social das necessidades, a sua estrutura variante de um modo de produção a outro, e a classificação de necessidades proposta pela filósofa húngara. Nos capítulos seguintes as demandas sociais são contextualizadas como requisições profissionais. Ao final a autora atesta a sua principal conjectura de pesquisa: as requisições profissionais dirigidas ao Serviço Social são contraditórias pela própria natureza das demandas sociais na sociedade burguesa, sendo estas últimas expressões das necessidades sociais. Outra produção que pode ser destacada é a tese de Newton Narciso Gomes Júnior, publicada com o título Segurança alimentar e nutricional como princípio orientador de políticas públicas no marco das necessidades humanas básicas, pelo programa de pós-graduação em Política Social da Universidade de Brasília (UNB), no ano de 2007. 22 Nesta produção que mais tarde se transformou em livro, Gomes Júnior (2015) ao discutir qual o papel que a segurança alimentar poderia assumir e como seria desenvolvida nas políticas elaboradas para este fim, buscou compreender quais as razões do esgotamento ou os descaminhos das iniciativas que deveriam garantir a segurança alimentar e nutricional para toda a sociedade. O seu objeto de discussão é a segurança alimentar e nutricional, e o tema das necessidades aparece na sua tese com o objetivo de tecer a discussão sobre a sua satisfação. Para ele, o tema das necessidades humanas básicas está relacionado aos direitos básicos, que tem a função de tirar as pessoas do carecimento biológico e englobam a realização da condição humano-social que somente se dá a partir da satisfação adequada da saúde, capacidade de agenda e crítica do indivíduo com o exercício da cidadania. O autor entende a satisfação das necessidades humanas como alvo da conquista de direitos através da justiçasocial, defendendo as necessidades humanas básicas e não as mínimas, utilizando-se dos argumentos sustentados por Pereira (2011). O autor cita ainda Agnes Heller como uma importante referência no debate, mas não adentra na sua contribuição teórica. Por fim, destacamos a tese defendida no ano de 2018 por Renato Tadeu Veroneze, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), com o título Liberdade ainda que tardia: Agnes Heller e a teoria das necessidades radicais frente à devassa da devassa brasileira. Mesmo não tendo como objeto de discussão a filosofia helleriana, esta é uma das únicas produções teóricas brasileiras que consegue abordar com mais afinco o legado teórico de Agnes Heller no Serviço Social. A pesquisa parte da categoria helleriana de necessidades radicais para compreender as crises cíclicas e estrutural do capital e ainda a crise político econômica enfrentada no Brasil levando em consideração as manifestações populares. No entendimento do autor, a teoria das necessidades constitui a pedra angular da filosofia helleriana sobre a práxis revolucionária. A tese sustentada versa sobre as necessidades radicais como facilitadoras da organização da sociedade civil para a superação do status quo da vida social atrelada à lógica destrutiva do capital, e capazes de alterar o modus operandi de organização, manifestação e controle social por parte dos sujeitos sociais individuais e coletivos (VERONEZE, 2018). 23 Veroneze estrutura toda a argumentação da categoria de necessidades radicais nos dois primeiros capítulos da tese recuperando a contribuição helleriana como indiscutivelmente marxista, e, portanto, sendo coerente com a tradição a qual o trabalho se reivindica. Partilhando da construção teórica de Heller, o autor concorda com a filósofa quando afirma ser necessário ler Marx com os olhos de hoje, revivendo a perspectiva do sujeito revolucionário, e “criando condições para uma maior conscientização da destrutibilidade do capital e suas consequências” (idem, ibidem, p. 167). Para isso, aceita a categorização helleriana madura da sociedade civil como sujeito revolucionário, partindo do pressuposto de que a classe trabalhadora, diante das suas configurações atuais de esfacelamento, não teria condições de se propor a fazer o enfrentamento ao capitalismo, destacando, portanto, a função dos movimentos sociais nesse quesito. Aqui, não estamos desconsiderando o poder revolucionário da classe trabalhadora, contudo, tendo em vista o esfacelamento característico da classe nos dias atuais, fica difícil conceber que esta tenha o mesmo papel revolucionário da época de Marx e de Engels. A questão é que a sociedade civil engloba tanto a classe operária, quanto a classe burguesa, e é nesse palco contraditório de tensões que encontramos o grande problema. Mas, se pensarmos a sociedade civil hoje é a classe operária, mesmo em suas diversas expressões e fragmentações, ainda assim podemos entender a sociedade civil como um mecanismo capaz de extinguir gradativamente os mecanismos coercitivos e autoritários do Estado burguês, fortalecendo, desse modo, os organismos democráticos e de hegemonia social como força motriz da radicalização da democracia e do socialismo (idem, ibidem, p. 61). Sem dúvida, a referida tese, como a produção mais recente sobre o debate das necessidades humanas e utilizando-se especificamente da contribuição helleriana, levanta questões provocativas sobre o contexto contemporâneo brasileiro e ainda sobre a atualidade das ideias de Agnes Heller. Entretanto, em síntese, como podemos perceber, os estudos sobre as necessidades humanas na produção do conhecimento em Serviço Social ainda são pontuais, diferenciando-se por enfoques diversos, e aparecendo na maioria das vezes subjacente a outros objetos de pesquisa. Por isso, concordamos com Amorim (2015) quando sugere que especificamente na área do Serviço Social essa categoria acaba se ausentando do debate ou se tornando uma questão menor. Contudo, ao observar as produções que foram desenvolvidas no Serviço Social sobre o tema, um elemento em comum nos chamou a atenção. Como o leitor deve ter percebido, existe uma menção frequente ao debate contido na obra de 24 Agnes Heller. Em todas as produções aqui evidenciadas encontramos discussões que trazem a categoria de necessidades humanas a partir da concepção helleriana, e, na maioria delas, com um destaque especial para a categoria de necessidades radicais. Como vimos, apesar da menção recorrente, em nenhum deles existe um tratamento aprofundado da categoria de necessidades humanas no pensamento de Agnes Heller. Por isso, diante da ausência de maiores estudos em torno da obra de Agnes Heller no Brasil, compreendemos que o que se tem são aproximações que não conseguem captar a essência da discussão feita pela mesma, deixando uma lacuna teórica que requer um tratamento denso, elucidativo e objetivo, com a finalidade de desvelar não apenas os seus determinantes de pensamento, mas os desenvolvimentos filosóficos da própria Agnes Heller no tocante às necessidades. Portanto, entendemos que a relevância do estudo ora apresentado justifica-se por questões de três ordens: primeiro, parece inegável que esta é uma categoria fulcral para compreender o universo de discussões que são subjacentes aos debates do Serviço Social, pois, sendo as necessidades elemento estruturante da vida humana em sociedade, esta compreende ainda a base material da chamada “questão social” (PEREIRA, 2000) – objeto de intervenção da categoria profissão através das políticas sociais (NETTO, 2011). Além disso, quando olhamos para a produção teórica do serviço social percebemos que, diante da sua importância, este tema foi relegado por muito tempo, sendo o termo frequentemente compreendido como algo natural, autoexplicativo, carregado de obviedade e que merece um tratamento teórico adequado, como reflexo de um conhecimento advindo do exercício investigativo da pesquisa (GUERRA, 2009). Ainda, como vimos, frequentemente os autores do Serviço Social recorrem à obra de Agnes Heller, principalmente referindo-se às necessidades radicais, sem ter na maioria das vezes a dimensão do seu verdadeiro significado ontológico e reflexivo, utilizando a categoria de maneira reiterada e, no entanto, isolada e descritivamente, reduzindo-a apenas a um conceito formal, mas não entendendo-a dentro do contexto e da totalidade da produção teórica da própria Heller. 25 Por isso, esta pesquisa justifica-se pelo fato de que a produção científica de Heller no tocante às necessidades humanas constitui-se ainda como um campo de incógnitas na produção teórica brasileira e especificamente na do Serviço Social, pois poucos estudos atreveram-se a adentrar nessa área de discussão da produção do conhecimento, passando por ela com lateralidade. Reafirmamos, portanto, que o intento desta pesquisa é, pois, estudar as necessidades humanas em Agnes Heller. Sem dúvida, esta pesquisa não apenas adensa um debate que pretende preencher uma lacuna teórica no serviço social, mas também atende a uma indicação antiga. Desde o início da década de 1980 Carlos Nelson Coutinho pontuava a necessidade de perscrutar o universo helleriano, a fim de identificar as suas potencialidades e debilidades, não descartando a validade das suas contribuições. Como ele bem disse: “é preciso saber pagar o preço do bilhete de ingresso numa pesquisa que deve ser estudada e interpretada no que realmente é, e não segundo o que se ouviu que seja” (COUTINHO, 1982, p. 8). Corroboramos com as palavras do autor e pensamos inclusive que essa lacuna na produção teórica brasileira, e no serviço social especificamente, se dê em razão de uma ausência de aprofundamento sobre a filosofia helleriana, o que é extensivo ao debatedas necessidades humanas. Obviamente, à época, Coutinho ainda via Heller ligada à Lukács, vinculação que pouco a pouco foi se desfazendo não apenas pelo desaparecimento deste último, e pelas divergências com os integrantes da Escola de Budapeste, mas também pelas divergências teórico metodológicas e filosóficas com as perspectivas maduras do filósofo húngaro e com o próprio Marx, expostas paulatinamente principalmente a partir de fins da década de 1970. Em nosso entendimento, a concepção amplamente difundida pela qual, em razão de ter sido integrante da Escola de Budapeste e orientada por Gyorgy Lukács, Heller seria “discípula” deste último constituiu-se como um equívoco e aumenta a profundidade e largura desse fosso teórico, impossibilitando uma leitura adequada da obra helleriana, que, em terras brasileiras, em última instância, parece ter sido sempre compreendida à sombra lukácsiana. Através dessa pesquisa, portanto, objetivamos analisar as necessidades humanas na obra de Agnes Heller, nos propondo especificamente a apresentar o 26 contexto, a composição e a importância da Escola de Budapeste; abordar a vida e a obra de Agnes Heller a partir do seu contexto sócio histórico; e, por fim, analisar o debate das necessidades humanas na obra da referida filósofa. Nossa intenção é fomentar a discussão sobre as necessidades humanas em Agnes Heller, recorrendo inicialmente ao contexto histórico do Leste Europeu, dando atenção às particularidades da formação social húngara e à Escola de Budapeste, identificando ainda as características pessoais, filosóficas e teóricas que perpassaram a constituição e o desenvolvimento da obra helleriana. Com base nas alegações de Fraga (2006), dissemos inicialmente que no século XX o tema das necessidades ganhou atenção principalmente diante da experiência do “socialismo real”, o que suscitou várias contribuições sobre o tema, inclusive na Escola de Budapeste. Em seu entendimento, a obra de Agnes Heller merece evidência por ser uma das únicas que, reivindicando-se dentro da perspectiva teórica marxiana, enfrenta diretamente o debate das necessidades humanas, principalmente em Teoria das Necessidades em Marx, publicado originalmente em alemão, no ano de 1974. Ainda, para o autor, a produção de Heller sobre as necessidades é ampla, de maneira que é possível encontrar elementos sobre este debate em vários outros textos escritos por ela. Reivindicamos que para compreender a totalidade dos argumentos por ela defendidos é necessário utilizar, além do referido texto, outras publicações que se relacionam a este momento de transição, incluindo as anteriores e posteriores à sua publicação, pois nos ater apenas àquele nos levaria a manutenção de um debate superficial, equiparando-nos às leituras preexistentes na nossa área do conhecimento. Por isso, compreendendo que o principal texto de Heller sobre o tema das necessidades não pode ser compreendido de maneira isolada, pensamos que estes elementos devem ser compreendidos a partir de uma análise do seu contexto, atentando para os determinantes sócio históricos da sua emergência que, cotejados com o entendimento de alguns intérpretes de sua obra e ainda outros textos sobre o tema da filósofa húngara, anteriores e posteriores à este. Isto porque a filosofia de Agnes Heller, além de ter sido moldada por várias ocasiões históricas decisivas que perpassaram o século XX e a particularidade da formação social húngara, onde a mesma permaneceu até 1979, parece ter sido resultado de uma amálgama de pensamento entre as principais influências com as 27 quais ela dialogou ao longo da vida, antes e depois da sua saída do país de origem. Com o arcabouço teórico marxiano a situação não foi diferente, de modo que, apesar de reivindicar-se como pertencente à tradição que se formou em torno de Marx e Engels e ter participado ativamente das atividades da Escola de Budapeste liderada por Gyorgy Lukács, Heller adensou as suas contribuições filosóficas a partir da apropriação de muitas outras influências filosóficas de pensamento, o que nos leva a compreender os seus desenvolvimentos filosóficos – inclusive sobre as necessidades humanas – como ecléticos. Por isso, a tese ora apresentada reivindica que o desenvolvimento da Teoria das Necessidades na obra helleriana demonstra que houve um processo de aproximação e afastamento de Marx e do marxismo, resultando em uma produção que absorveu várias influências filosóficas de pensamento, bem como a reflexão sobre os principais eventos históricos do século XX e em particular do contexto vivenciado na formação social húngara, resultando numa produção eclética sobre o tema, o que conforma uma teoria das necessidades própria. Nesse sentido, as principais perguntas que nortearam a realização desse estudo podem ser sintetizadas da seguinte forma: qual a contribuição de Agnes Heller sobre as necessidades humanas? Como a categoria de necessidades radicais se situa no debate helleriano? Podemos, de fato, articular o debate das necessidades humanas e radicais em Heller ao arcabouço teórico marxiano? Estas são os principais questionamentos que tentaremos responder ao longo da nossa exposição. Para responder às referidas questões, nos vinculamos a uma perspectiva interpretativa que tem por base o materialismo histórico, baseando-nos na compreensão da realidade como uma totalidade dialética, ou seja, a partir de um método de elucidação do real pelo qual o posicionamento adotado pelo pesquisador diante do objeto estudado é do entendimento de uma prioridade ontológica deste último sobre aquele. Nesses termos, em suma, nos vinculamos ao método crítico dialético elaborado pelos autores marxianos, que compreende, portanto, o trabalho como a atividade que proporciona não só a transformação da natureza, mas também a autocriação do ser social (LESSA; TONET, 2008). Esta é, portanto, uma mediação fundamental para compreender a lógica contraditória das relações sociais capitalistas, pautada na existência de classes sociais fundamentais antagônicas 28 entre si, apontando para a revolução do modo de produção capitalista, situando-nos, portanto, no terreno do marxismo. De acordo com Mandel (2001), esta forma interpretativa da realidade tem suas origens na forma pela qual Marx e Engels, no século XVIII, procederam às suas pesquisas sobre o capitalismo e que pode ser entendida como o resultado da síntese das transformações da filosofia clássica alemã, da historiografia sociológica francesa e da economia política clássica inglesa. Segundo o referido autor, a principal contribuição da filosofia clássica alemã para o marxismo foi advinda de Georg Hegel, filósofo idealista alemão. É possível identificar nas obras dos pensadores marxianos uma influência hegeliana de um pensamento dialético, entendendo-se por este último que toda realidade está em estado de contínua transformação, por uma combinação de processos em contínuo movimento, de modo que é mister atentar para as suas contradições internas e para o seu movimento ideal. Entretanto, essa noção de dialética amplamente recuperada por Marx e Engels foi reinterpretada e elevada a uma nova perspectiva, a materialista, negando o idealismo objetivo do filósofo, de modo que interessava para os marxianos compreender o movimento da realidade, e não do pensamento. Desse modo, à diferença do filósofo clássico alemão, no entendimento marxiano a concepção do conhecimento está hipotecada a uma apreensão dialética do movimento do real, atentando para a interação entre sujeito e objeto, na qual este último é independente e se sobrepõe ao primeiro, não sendo idênticos. Nesse sentido, a perspectiva dialética proposta por Marx visa uma aproximação do movimento na realidade, uma vez que ele também é histórico, tentando captar o seu contexto, seus determinantes, característicase contradições com o objetivo de tornar o pensamento do sujeito eficaz para ir além da aparência do objeto e chegar à sua essência. Por isso, compreendemos que “o real é, portanto, compreensível. [...] o critério final do grau de veracidade do pensamento da ciência é, portanto, prático" (MANDEL, 2001, p. 25). Através de contribuição da historiografia sociológica francesa, os autores marxianos passaram a visualizar os acontecimentos anteriores ao advento do capitalismo como resultantes do conflito entre as classes sociais em cena, de modo que a luta de classes passa a ser um instrumento metodológico na compreensão da 29 própria história. Como consequência, chegaram à conclusão de que "não são os grandes homens que fazem a história, mas que essa resulta fundamentalmente de conflitos que opõe um grande número de indivíduos, ou seja, de conflitos de forças sociais" (idem, ibidem, p. 27). Nesse sentido, a contribuição da historiografia sociológica francesa para a elaboração do pensamento dos autores marxianos reside nessa combinação dos aspectos historiográficos com a estrutura e a dinâmica das sociedades. Por fim, a contribuição da economia política clássica inglesa reside principalmente na análise científica da expectativa econômica que norteia o surgimento do modo de produção capitalista. Embora seja uma teoria da burguesia ascendente e revolucionária, datada do período anterior a 1848, a economia política clássica inglesa tinha o objetivo de resolver questões econômicas em aberto à época, compreendendo aquela sociedade que emergira das entranhas do mundo feudal. Nesse sentido, a principal contribuição apropriada pelos autores marxianos foi a teoria do valor trabalho, que tem como principal expressão a ideia de que as trocas se fundam numa equivalência entre quantidades de trabalho contidas nas mercadorias. Em outras palavras, a principal ideia absorvida é de que o trabalho produz valor. Mandel (ibidem) explica que Marx estabeleceu que o trabalho não é uma unidade de medida comum dos diferentes elementos dos custos de produção das mercadorias. Ele é a própria essência do valor. O valor é o trabalho, mas exatamente uma fração do potencial de trabalho da massa de jornadas de trabalho/horas de trabalho disponível em uma sociedade determinada durante um período determinado. [Nesse sentido], o valor das mercadorias é a quantidade de trabalho socialmente necessária para produzi-las (p. 40, 41). Operando uma síntese de tais contribuições sob a forma de um construto teórico coerente para a interpretação do capitalismo, a principal descoberta realizada dessa combinação resultou na tese da mais-valia, pela qual Marx passa a compreender que a partir do uso da força física e psíquica do trabalhador ao operar os meios e objetos de produção que não lhe pertencem, ele se torna capaz de transferir valor para as mercadorias que produz, criando ainda um valor adicional, um sobretrabalho. Portanto, "a mais-valia é a diferença entre o valor produzido pela força de trabalho e o valor próprio dessa força de trabalho, quer dizer, a diferença entre o valor produzido pelo trabalhador ou trabalhadora e os custos de reprodução da sua força de trabalho" (ibidem). Tal descoberta funcionou como uma categoria fundamental de elucidação da sociedade burguesa e de seu modo de produção, 30 sendo importante para a explicação das suas origens e suas contradições, representando, portanto, “a principal contribuição de Marx à ciência econômica e às ciências sociais em geral" (idem, ibidem, p.42). Portanto, a partir dos ganhos da economia política clássica inglesa elevados a uma análise crítica, Marx e Engels passaram a tratar os problemas da ciência econômica pelos conceitos de classe social e luta de classes uma perspectiva histórica e dialética, procedendo à análise crítico-dialética do modo de produção capitalista. De acordo com Jacob Gorender (1996), o principal campo de pesquisa de Marx foi a economia política clássica, mas os seus interesses intelectuais e filosóficos abrangiam trabalhos da filosofia e da teoria social e da historiografia, como vimos. Marx estudou direito, foi mentoriado ideologicamente por Hegel, quando consolidou uma formação filosófica ampla, principalmente em diálogo permanente com a filosofia clássica alemã. Contudo, seguindo na trilha disputada por Ludwig Feuerbach, Marx começou a tecer críticas contra o pensamento idealista hegeliano, permitindo realizar um afastamento do idealismo objetivo em direção ao materialismo histórico. Por isso, “o materialismo histórico-dialético, portanto, é a superação histórica tanto do idealismo quanto do materialismo mecanicista. Ele possibilita compreender a base material das ideias e, ao mesmo tempo, a força material das ideias na reprodução social” (LESSA & TONET, 2008, p. 45). Essa mudança de perspectiva ficou evidente principalmente em Crítica a filosofia do direito de Hegel e em A questão judaica. Contudo, foi nos Manuscritos Econômicos Filosóficos de 1844 que Marx conseguiu tecer uma crítica mais incisiva ao idealismo hegeliano, mesmo ainda influenciado pelo materialismo naturalista de Feuerbach. Nesse momento, o conceito de alienação passava a ser compreendido como um processo pelo qual a essência humana dos operários se objetivava nos produtos do seu trabalho e se contrapõe a eles por serem produtos alienados e convertidos em capital. Como Marx ainda não tinha elaborado melhor esse conceito, que mais tarde apareceria relacionado a exploração da força de trabalho, a priori havia uma impossibilidade de superar uma concepção ética do comunismo e, portanto, não científica, tão presente naqueles manuscritos. No entanto, ao ter contato com a economia política clássica e com a teoria do valor-trabalho Marx teve condições de superar antropologia Feuerbachiana, o que também lhe permitiu tecer modificações expressivas no conceito de alienação agora compreendido como uma 31 categoria explicativa da situação da classe operária. Absorvendo aquela contribuição da economia política clássica Marx teve portanto condições de elaborar a sua crítica à economia política clássica, enxergando esta como uma ciência que, mesmo tendo ganhos sérios enquanto a burguesia revolucionária não requisitava sua legitimação, agora passa a ser mediada pela ideologia burguesa e a apresentar uma teoria econômica vulgar. Nesse sentido, Marx elaborou uma alternativa interpretativa que supera as contribuições científicas dos economistas clássicos pela utilização de um método revolucionário de interpretação da realidade. Tais ganhos das pesquisas marxianas só seriam devidamente sistematizados na elaboração do que mais tarde seria a sua opus magnum, intitulada O capital, infelizmente inacabada pelo desaparecimento do seu autor. Portanto, a partir da compreensão de como Marx elaborou seus estudos é possível também compreender que existe como pano de fundo das suas elaborações um método de compreensão da realidade que norteou os seus mergulhos investigativos, bem como a sua exposição inconclusa. De tal modo, as considerações de Gorender (1996) sobre estes aspectos são indispensáveis. Marx distinguiu entre investigação e exposição. a investigação exige o máximo de esforço possível no domínio do material fatual. o próprio Márcio não descansava enquanto não houvesse consultado todas as fontes informativas de cuja existência tomasse conhecimento. O fim último da investigação consiste em se apropriar em detalhe da matéria investigativa, analisar suas diversas formas de desenvolvimento e descobrir seus nexos internos. Somente depois de cumprida tal tarefa, seria possível passar a exposição, isto é, a reprodução ideal da vida da matéria. [...] A exposição deve figurar um todo artístico. suas diversas partes precisam se articular de maneira a constituir em uma totalidade orgânica e não um dispositivo emque os elementos se justapõem como somatório mecânico. [...] o tratamento lógico da matéria faz da exposição a forma organizacional apropriada do conhecimento a nível categorial sistemático e resulta na radical superação do historicismo [sendo este] a compreensão da história para o seu fluxo singular consubstanciado na sucessão única de acontecimentos ou fatos sociais. a exposição lógica afirma orientação anti historicismo na substituição da sucessão histórica pela articulação sistemática entre categorias abstratas de acordo com suas determinações intrínsecas daí que se possa assumir a aparência de construção importa a realidade de cima e por fora. [...] em suma o lógico não constitui o resumo do histórico nem há paralelismo entre um e outro (conforme pretendeu Engels) porém entrelaçamento, cruzamento e circularidade (p. 24, 25). De tal modo, fica evidente pelas palavras do autor que tal método distingue-se por uma interpretação da realidade que compreende dois momentos interligados entre si: a investigação e a exposição. Enquanto o primeiro consiste na apropriação do objeto pesquisado, compreendendo as suas formas, características, nuances e 32 contradições; o último versa sobre a maneira artística pela qual o pesquisador irá tornar compreensível aquilo que foi pesquisado, isto é, garantindo uma reprodução ideal e teórica do objeto em epígrafe. A partir das suas primeiras impressões acerca do método em Marx, Lukács pensou a compreensão de tal método como ortodoxo. Em 1923 ele alegava que o marxismo ortodoxo não significa, pois, adesão acrítica aos resultados de pesquisa de Marx, nem fé numa outra tese marxiana ou a exegese de um texto sagrado. A ortodoxia, em matéria de marxismo, refere-se ao contrário e exclusivamente ao método. Ela implica a convicção científica de que, com o marxismo dialético, encontrou-se o método correto de investigação e de que este método só pode ser desenvolvido e aperfeiçoado e aprofundado no sentido indicado por seus fundadores; mais ainda: implica na convicção de que todas as tentativas de superar o melhorar esse método conduziram a sua trivialização transformando-o num ecletismo (NETTO, 1981b, p. 60). Já em 1967, no famoso prefácio de História e Consciência de Classe onde Lukács reviu os seus posicionamentos de outrora e fez uma autocrítica, o velho filósofo húngaro reafirmou as suas colocações anteriores (LUKÁCS, 2016). A partir do exposto compreendemos que, no entendimento Lukácsiano, o método crítico dialético compreende a forma flexível pela qual Marx analisa a realidade, atentando para o contínuo movimento do real. Seguindo essa esteira interpretativa, Netto (2011) pontua que a questão do método compreende um dos problemas centrais e mais polêmicos da teoria social marxiana, seja por si mesmo, ou pelo seu confronto com os clássicos das ciências sociais. Dentro do campo da própria tradição que se formou a partir de Marx a situação não é diferente, tendo em vista as várias desfigurações que o pensamento marxiano sofreu historicamente, conformando interpretações equivocadas. Nesse campo as principais deformações operadas tiveram por base as influências positivistas, engendradas principalmente pelos pensadores da Segunda Internacional, tendo como suposto uma espécie de insuficiência do materialismo histórico para lidar com os aspectos e problemas que surgiram na realidade a época. Nesse sentido, a principal resultante de tais influências foi uma simplificação da obra marxiana articulando a teoria geral do ser e as suas classificações em face da sociedade pelo materialismo dialético e histórico respectivamente. Disto resultou uma interpretação manualesca, pela qual a análise marxiana passou a corresponder a meros princípios fundamentais e o método como uma simples aplicação para a solução de problemas. Até hoje, várias concepções reducionistas ainda são 33 utilizadas como confrontação do pensamento teórico marxiano, hora acusando-o de economicista, hora de historicista, ou ainda relegando as suas contribuições a uma perspectiva ultrapassada de mundo, sendo estes últimos os desqualificadores de tal concepção de mundo. Contudo, utilizando-nos das indicações metodológicas inscritas no horizonte crítico-dialético de interpretação do movimento do real, que tal método de pesquisa propicia o conhecimento teórico partindo da aparência para alcançar a essência do objeto na realidade. Como o leitor deve ter percebido, não nos ateremos a um conjunto de regras pelas quais precisamos submeter o objeto para extrair dele os seus resultados, como querem outros métodos científicos, como o positivismo, isto porque em Marx o método não se reduz a meras regras formais de pesquisa, mas sim uma lógica interpretativa de captação do movimento da realidade sendo portanto fiel ao objeto em suas determinações concretas. Sabendo que o objeto de pesquisa tem uma existência objetiva que independe do sujeito que quer conhece-lo, compreendemos que a teoria corresponde a captação do movimento real de tal objeto na realidade, de modo que o seu movimento deve ser transposto idealmente para a consciência do pesquisador, aqui no movimento disposição tem a tarefa de reproduzir dialeticamente o seu movimento e interpretá-lo reflexivamente. Em síntese, a nosso ver, o objeto a ser desvelado torna-se compreensível à luz do referido método uma vez que, saindo da aparência dos fatos, pretende captar a sua essência, pensando-o concretamente. O fenômeno como se apresenta na esfera imediata do cotidiano é apenas o ponto de partida, pois a construção do conhecimento se aproxima do “concreto pensado”, após a sua desconstrução e reconstrução a nível ideal, incorporando movimento dialético e as contradições da realidade. Nesse sentido, a construção teórica e dialética de um determinado objeto só possui sentido quando respeita as suas expressões reais. Nesse sentido, o conhecimento produzido a partir do método crítico dialético em Marx ultrapassa o simples entendimento do objeto de pesquisa, ou seja, a sua aparência enquanto fenômeno na realidade, pois tem a intenção de captar a sua lógica e o seu movimento, bem como os seus fundamentos, a sua capacidade de transformação, e a sua negatividade. Nos dizeres de Netto (2009), [...] a teoria é o movimento real do objeto transposto para o cérebro do pesquisador – é o real reproduzido e interpretado no plano ideal (do 34 pensamento). [...] O objetivo do pesquisador, indo além da aparência fenomênica, imediata e empírica [...] é apreender a essência (ou seja: a estrutura e a dinâmica) do objeto. [...] Numa palavra: [este é] o método de pesquisa que propicia o conhecimento teórico, partindo da aparência, visa alcançar a essência do objeto. Alcançando a essência do objeto, isto é: capturando a sua estrutura e dinâmica, por meio de procedimentos analíticos e operando a sua síntese, o pesquisador a reproduz no plano do pensamento; mediante a pesquisa, viabilizada pelo método, o pesquisador reproduz, no plano ideal, a essência do objeto que investigou (p. 674). Ainda, não podemos relegar que para Marx, a sociedade burguesa é uma totalidade concreta, e não é um “todo” constituído por “partes” funcionando de maneira integrada. Isso significa que todas essas “partes” estão interligadas, e não possuem sentido se analisadas de maneira isolada do todo. Na verdade, essas “partes” são totalidades menores, mas tão complexas quanto a primeira. Partimos, portanto, do suposto de que na totalidade do objeto, há de se considerar o seu movimento dialético e as mediações necessárias para se chegar a este fim. Para Tonet (2016), na perspectiva marxiana a totalidade expressa o fato de que a realidade social é um conjunto articulado de partes. Cada uma dessas partes é, em si mesma, uma totalidade de maior ou menor complexidade, mas jamais absolutamente simples. Expressa ainda o fato de que aspartes que constituem cada um desses conjuntos se determinam reciprocamente e que sua natureza é resultado de uma permanente processualidade. Expressa também o fato de que há uma relação dialética entre o todo e as partes, sendo, porém, o todo o momento determinante. Expressa também o fato de que há uma relação dialética entre o todo e as partes, sendo, porém, o todo o momento determinante. E, por fim, expressa o fato de que esse conjunto é permeado por contradições e por mediações, que resultam no dinamismo próprio de todos os fenômenos sociais e na específica concretude de cada um deles (p. 118). Outrossim, é através do entendimento da singularidade do objeto, elevando-o ao universal até chegar a uma síntese particular, através das mediações para atingir esse fim. Enquanto na singularidade as mediações estão ocultas ao sujeito do conhecimento, e tanto a gênese histórica quanto sua estrutura social são simplesmente factuais, existindo no cotidiano, com a aparência imediata de estarem soltas ou não terem um sentido em si mesmas, sendo elevadas à universalidade elas podem ser comparadas às as grandes determinações e leis do conhecimento. Nesse sentido, a particularidade, compreendendo o campo das mediações, ocorre a confrontação, quando “os fatos singulares se vitalizam com as grandes leis da universalidade, e a universalidade se embebe da realidade do singular” (GUERRA, 2009, p. 711). Nesse confronto, o sujeito que pretende conhecer determinado objeto pode realizar uma síntese que, considerando a aparência e a essência bem como a 35 permanência e as mudanças características do objeto perseguido. Contudo, “essa síntese é sempre provisória, histórica, daí que o conhecimento é aproximativo e historicamente situado” (ibidem). Como dissemos inicialmente, a obra de Agnes Heller é extensa e complexa. Segundo Granjo (2008), ela compreende mais de cem publicações entre livros e artigos. Por isso, com a finalidade responder àquelas questões de pesquisa, negando uma percepção imediata do debate e pensando em um percurso metodológico exequível diante do tempo hábil de pesquisa e dos nossos objetivos, fizemos um recorte nas obras hellerianas selecionando para a nossa análise aquelas que foram publicadas tratando especificamente as necessidades humanas, pois compreendemos que estes possuem uma relação de complementariedade entre si. Nesse sentido, nosso enfoque de pesquisa abarcou o tema das necessidades humanas em toda a produção filosófica helleriana, proporcionando ao leitor uma compreensão da totalidade das suas preocupações teóricas sobre o referido debate ao longo da vida. Outrossim, com a finalidade de captar o contexto sócio histórico de emergência da sua obra no tocante às necessidades outras publicações e entrevistas da autora foram amplamente utilizadas. Como o leitor pode perceber, até agora nos atemos ao movimento do objeto na realidade e à sua captação pelo sujeito pesquisador a partir de uma perspectiva crítico dialética de análise. Contudo, o nosso objeto de estudo, por compreender as necessidades em Agnes Heller, foi encontrado em textos escritos pela autora, uma vez que a mesma documentou o seu debate sobre o tema em várias obras, como vimos. Por isso, acrescentamos que como metodologia de pesquisa adotada, utilizamos a técnica de análise imanente, por compreender uma metodologia de pesquisa pela qual um texto se torna objeto de estudo, o que coloca obviamente para o pesquisador exigências metodológicas completamente distintas do estudo direto da realidade. Isto porque, diferente da captação do movimento do real, os textos são construídos de uma forma direta imediata e implícita de modo que internamente se tem tanto o conteúdo explícito, da maneira como ele se manifesta imediatamente, assim como o um conteúdo tácito, implícito, de modo que importa desvelar tanto o que está expresso como o que aparece tacitamente a partir ir de uma articulação dedutiva entre ambos. Nesse sentido, importa captar o que o texto diz explicitamente, mas também o que ele se refere nas suas entrelinhas, aquilo que 36 ele não expõe objetivamente. Portanto todo o texto é portador de uma lógica imanente que versa sobre o seu verdadeiro significado e que nem sempre condiz com aquilo que o autor explicita em sua construção. Em suma, A articulação dos momentos de silencio ou do que está implícito com o conteúdo extraído pela leitura inicial é o primeiro passo da leitura imanente. Abre o acesso à trama das conexões internas do texto o que possibilita não apenas compreender de forma mais profunda o que está explícito, mas também ao que ele se refere ao dizê-lo, ou seja, seus pressupostos e “pontos negros” que vela ou não consegue divisar. [...] A investigação puramente exegética, que busca exclusivamente as relações internas do texto, sua malha conceitual e seu tecido categorial, não consegue ir além da mera exploração formal do texto. Pois, como todo texto é escrito tendo em vista um objeto externo a ele (um outro texto ou, então, a realidade enquanto tal), apenas na referência a este objeto exterior a lógica imanente do texto pode receber seu verdadeiro significado (que nem sempre coincide com aquilo que o autor deseja, embora este desejo tenha também sua função). Todo o texto, portanto, remete ao seu contexto e ao contexto do próprio leitor, remete para além de si próprio. [...] ao lado das exigências do reconhecimento da imanência do texto, [...] se adicionam novas dimensões que tornam a leitura ainda mais acurada - embora inevitavelmente ainda mais complexa. Trata-se não só de explicar o que o texto diz, mas também porque o texto o faz da forma como o faz (LESSA, 2011, p. 17 – 19). A partir da contribuição acima recuperada podemos sumariar que análise imanente corresponde a um processo investigativo em torno de um texto, como um objeto que faz requisições metodológicas diferentes da apreciação da realidade. Esse é um processo que busca a trama lógica dos textos decompondo-o em suas unidades significativas elementares, buscando reflexivamente e internamente a sua teoria tese ou hipótese de pensamento. esta metodologia e que, portanto, não se conforma com os aspectos imediatos salientados pelo autor, mas busca os seus nexos lógicos e causais implícitos, sem desvincular-se das suas determinações históricas e contextuais mais profundas. Nesse sentido, a partir desse movimento investigativo é possível construir expositivamente uma teoria interpretativa do texto em questão respeitando o objeto investigado. Portanto, sobre os procedimentos metodológicos utilizados na execução dessa pesquisa, utilizamos as técnicas de pesquisa bibliográfica de natureza qualitativa, a partir da utilização de fontes primárias e secundárias, através de leituras e fichamentos de materiais disponíveis em meio eletrônico ou em exemplares físicos, fazendo uma leitura imanente do material selecionado. Ainda, sobre os procedimentos investigativos em torno do nosso objeto de estudo, salientamos ainda que na realização desta pesquisa enfrentamos dificuldades diante 37 da ausência de traduções em língua portuguesa da maioria da produção teórica helleriana. A ausência de traduções se estende também aos autores que, fora do Brasil, mantém o diálogo sobre o tema das necessidades com a sua obra. Esse fator exigiu uma maior aproximação com a língua espanhola e a inglesa. Com a finalidade de permitir ao leitor um sequenciamento lógico do nosso mergulho investigativo e a compreensão das nossas principais alegações em torno da pesquisa realizada, estruturamos este trabalho em cinco capítulos articulados entre si, de acordo com aqueles objetivos ulteriormente explicitados. O primeiro, sob o título Gyorgy Lukács e a Escola de Budapeste, cumpre o objetivo de apresentar o contexto, a composição e a importância da Escola de Budapeste, passando pelas particularidades
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