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INTRODUÇÃO À PSIQUIATRIA. Parte 1. 3. Neurobiologia e Genética da Doença Mental.

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3
Neurobiologia e Genética
da Doença Mental
O homem deve entender que é da mente, e somente dela, que nascem nossos
prazeres, alegrias, risos e graças, assim como nossas tristezas, dores, sofrimentos e temores.
Por meio dela, em particular, pensamos, vemos, escutamos...
Hipócrates
O s estudantes de psiquiatria são privilegiados por estudarem doenças queafetam o órgão mais importante e interessante do corpo humano: o
miraculoso cérebro humano. O cérebro humano criou as incontáveis mara-
vilhas que nos cercam todos os dias – arranha-céus, computadores, merca-
dos econômicos complexos, avanços nas ciências médicas que vão das vaci-
nas aos antibióticos e aparelhos de ressonância magnética, a compreensão da
mecânica quântica e da teoria do caos, a arte, a literatura e a música. Essas
realizações foram possíveis porque o cérebro humano é um dos sistemas
mais complexos do universo. Composto de mais de um trilhão de neurônios
(mais células nervosas do que há estrelas na Via Láctea), ele expande seu
poder de comunicação e pensamento multiplicando a conectividade através
de uma média de 1.000 a 10.000 sinapses por célula nervosa. As sinapses são
76 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
“plásticas” na medida em que se remodelam continuamente em resposta a
mudanças em seu ambiente e nos inputs que recebem. O sistema cerebral é
composto de arcos de feedback e circuitos formados por múltiplos neurô-
nios, expandindo ainda mais os processos de pensamento e sintonia fina. As
capacidades que todos nós temos de pensar, sentir emoções e nos relacionar-
mos com outras pessoas de forma normal dependem da atividade desse ór-
gão complexo. As perturbações do pensamento, a emoção e o comporta-
mento que observamos nos doentes mentais são, em última análise, devidos
a transtornos cerebrais. Compreender esses transtornos – e corrigi-los – é o
grande desafio.
A moderna psiquiatria estende-se da mente à molécula e da neurobiologia clínica
à neurobiologia molecular na tentativa de compreender como os transtornos do
comportamento têm origem em mecanismos biológicos subjacentes. Este capítulo
oferece um panorama seletivo de alguns tópicos da neurobiologia que são relevantes
para o estudo das doenças mentais. Durante as últimas décadas, a neurociência cres-
ceu até tornar-se um dos principais domínios da pesquisa científica contemporânea.
Este capítulo destaca alguns aspectos que são relevantes para a compreensão dos
sintomas e os tratamentos das doenças mentais.
SISTEMAS CEREBRAIS ANATÔMICOS E FUNCIONAIS
O cérebro humano pode ser dividido em uma variedade de sistemas que medeiam
muitas funções cognitivas, emocionais e perceptivas diferentes, como o sistema
motor, o visual, o auditivo e o cortical somatossensorial. Os sistemas que são de
especial interesse para a psiquiatria são aqueles que representam os circuitos ou
funções particularmente perturbadas nas doenças mentais. Eles representam al-
gumas das “últimas fronteiras” no estudo do cérebro humano. Três sistemas
anatômicos importantes são o pré-frontal, o límbico e o dos gânglios da base.
Sistemas funcionais importantes incluem a memória, a linguagem, a atenção e
as funções executivas.
Qualquer método para dividir o cérebro em partes ou sistemas será um
tanto arbitrário, porque os três sistemas anatômicos estão interconectados e
trabalham de forma interativa. Os sistemas funcionais também são altamen-
te interdependentes entre si e em relação aos sistemas pré-frontal, límbico e
dos gânglios da base. Além disso, a divisão do cérebro em “sistemas funcio-
nais e anatômicos” e “ sistemas neuroquímicos” também é arbitrária. Essas
supersimplificações são introduzidas por simples conveniência conceitual,
fornecendo uma estratégia para reduzir a imensa complexidade do sistema
Introdução à psiquiatria 77
nervoso central (SNC) a um nível que permita discussões e análises. Porém,
o entendimento pleno do cérebro só pode ocorrer por meio de um processo
contínuo de análise (ou decomposição e simplificação) e síntese (ou recons-
trução e unificação).
É imprescindível atentar para nosso nível atual de ignorância. No presente
momento, ainda não temos um mapa completo do cérebro humano que resuma
com precisão seus vários circuitos neurais, sua anatomia química e sua especiali-
zação ou interação funcional. Esse processo é permanente e está se tornando
muito mais sofisticado, particularmente com o auxílio de técnicas de neuroima-
gem, como ressonância magnética funcional e estrutural (RMe e RMf), espec-
troscopia de ressonância magnética (ERM), magnetoencefalografia (MEG) e to-
mografia por emissão de pósitron (PET), que permitem estudos in vivo da ana-
tomia e fisiologia do cérebro humano de maneiras antes consideradas impossí-
veis. Quando os estudos de neuroimagem não estavam ainda disponíveis, nosso
conhecimento sobre os circuitos e os sistemas funcionais se baseava sobretudo
em estudos sobre lesões e autópsias. A visualização direta de como o cérebro
realiza o trabalho mental durante uma RMf ou PET é sem dúvida mais precisa
do que tentar inferir de forma indireta como ele funciona pelo registro do que
ele não pode fazer quando alguma parte é lesada.
O sistema pré-frontal e as funções executivas
O sistema pré-frontal, ou córtex pré-frontal, é uma das maiores sub-regiões cor-
ticais do cérebro humano. Constitui 29% do córtex nos seres humanos, compa-
rado a 17% nos chimpanzés, 7% nos cachorros e 3,5% nos gatos. O desenvolvi-
mento relativo do córtex pré-frontal em várias espécies animais é mostrado na
Figura 3.1.
Essa imensa região de associação no cérebro integra o input de boa parte do
neocórtex, das regiões límbicas, hipotalâmicas e do tronco cerebral e (via tála-
mo) a maior parte do resto do cérebro. Seu alto grau de desenvolvimento sugere
que ela pode mediar uma variedade de funções especificamente humanas, mui-
tas vezes referidas como funções executivas, como o pensamento abstrato de ordem
superior, a solução criativa de problemas e o seqüenciamento temporal do compor-
tamento. Estudos sobre traumas e lesões, complementados por estudos experimen-
tais em primatas não-humanos, acrescentaram informações substanciais a essa vi-
são das funções do córtex pré-frontal. Agora está claro que essa região medeia
uma grande variedade de funções, incluindo atenção e percepção, motilidade,
integração temporal, afeto e emoção.
78 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
FIGURA 3.1 Desenvolvimento filogenético do córtex pré-frontal.
s.a.= sulco arqueado; s.c.= sulco do cíngulo; g.pr.= gyrus proreus; f.i.p.= fissura pré-central
inferior; f.p.= fissura pré-silviana; f.pr.= fissura proreal; s.p.= sulco principal.
Reproduzida de Fuster JM: The Prefrontal Cortex: Anatomy, Physiology, and Neuropsychology of the Frontal
Lobe, 2nd Edition. New York, Raven Press, 1989. © Lippincott Williams & Wilkins. Usada com permissão.
Macaco de
cheiro
Gato
g.pr. f.p.
s.c.
s.a.
s.p.
Macaco
rhesus
Cachorro
f.p.
f.pr.
s.c.
Chimpanzé
Humano
f.p.i.
Introdução à psiquiatria 79
A integridade do córtex pré-frontal pode ser avaliada por meio de várias
tarefas cognitivas, e também foi explorada por estudos de neuroimagem. O Tes-
te de Classificação de Cartas de Wisconsin, que avalia a capacidade de pensar
de forma abstrata e de alterar o conjunto de respostas, e os Labirintos da
Torre de Londres e de Porteus, que avaliam a capacidade de planejamento,
são três testes-padrão do “lobo frontal” na neuropsicologia. O Teste de De-
sempenho Contínuo é uma medida de atenção que também se acredita que
investigue o funcionamento cortical pré-frontal. Vários desses testes foram
explorados com neuroimagens e foi demonstrado (pelo menos em alguns
indivíduos) que eles produzem ativação do lobo frontal. Como os sintomas
negativos da esquizofrenia refletem um comprometimento de muitas fun-
ções mediadas frontalmente, investigadores propuseram que alguns porta-
dores dessa condição podem ter “hipofrontalidade”, um achado que foi cor-
roborado em numerosos estudos de neuroimagens anatômicas e funcionais.Pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo, que se caracteriza por pla-
nejamento excessivo e abstração exagerada do pensamento, demonstraram
ser “hiperfrontais” em estudos com PET.
O sistema límbico
A palavra límbico significa “fronteira” em latim. Esse termo foi usado pela pri-
meira vez por Paul Broca, um neurologista francês, para se referir ao anel circu-
lar de tecido que parece contornar o neocórtex pré-frontal, parietal e occipital
quando o cérebro é visto de uma perspectiva mediossagital. Ainda não há con-
senso sobre o que constitui uma definição clara do sistema límbico ou seus
componentes. Como em outros sistemas cerebrais, as fronteiras podem ser
definidas com base na citoarquitetura, interconexões ou inputs. Walle Nau-
ta mais tarde propôs, como um conceito unificador, que as várias estruturas
do sistema límbico compartilham circuitos que as conectam ao hipotálamo.
Ele observou que as interconexões entre o hipotálamo (via corpos mamila-
res), a amígdala, o hipocampo e o giro do cíngulo são recíprocas. O hipotá-
lamo recolhe sinais sensoriais viscerais da medula espinal e do tronco cere-
bral, enquanto o input também chega a esse circuito por meio de duas im-
portantes regiões associativas neocorticais, o córtex pré-frontal e o córtex
associativo temporal inferior.
As funções do sistema límbico também são incertas, embora claramente
de grande importância para a compreensão da emoção e da experiência psi-
cológica humanas. As várias interconexões sugerem funções relacionadas a
80 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
integração de sensações viscerais e experiências do ambiente externo por
intermédio de múltiplas modalidades (p. ex., visual, sensorial, auditiva). Com
base em estudos sobre lesões, acredita-se há muitos anos que a amígdala e o
hipocampo medeiam aspectos da aprendizagem e da memória. Por isso, re-
ferências a experiências passadas também podem ocorrer dentro do sistema
límbico. As lesões na amígdala, em particular, parecem levar a sensações de
medo e suspeita, sugerindo que essa região possa desempenhar algum papel
no desenvolvimento da paranóia.
Os gânglios da base
As principais estruturas dos gânglios da base incluem o núcleo caudado, o
putame e o globo pálido, que são mostrados de forma esquemática na Figu-
ra 3.2. Uma visão triplanar do caudado e de outras estruturas dos gânglios
da base vistas por RM é mostrada na Figura 3.3. A substância negra, locali-
zada no mesencéfalo, não é visualizada. O caudado é uma massa de tecidos
de substância cinzenta em forma de C que tem sua cabeça nos limites late-
rais anteriores dos cornos frontais dos ventrículos. Faz um arco posterior em
forma circular e depois se inclina para a frente, terminando na amígdala, em
ambos os lados. Separado dele, e ao seu lado, fica o núcleo lentiforme, assim
chamado por ter a forma de uma lente. A porção medial desse núcleo, que é
mais escura e mais densamente cheia de substância cinzenta, é o putame; já
o globo pálido fica ao seu lado. O caudado é separado do núcleo lentiforme
pelo ramo anterior da cápsula interna, mas as imagens de RM mostram com
clareza que lâminas de substância cinzenta interligam esses dois núcleos;
posteriormente, o núcleo lentiforme é separado do tálamo pelo ramo poste-
rior da cápsula interna. Como contêm uma mescla de substância cinzenta e
branca, essas estruturas têm uma aparência listrada no cérebro em autópsia
e em imagens de RM, fazendo com que sejam denominadas corpus striatum
(corpo estriado).
É possível que essa região cerebral seja importante para a compreensão
das doenças mentais por diversas razões. Primeiro, existem várias síndromes
maiores que envolvem anormalidades nessas regiões e que se manifestam
com sintomas psiquiátricos. A doença de Huntington, caracterizada por atro-
fia grave do núcleo caudado, de modo geral apresenta uma variedade de
sintomas mentais semelhantes aos vistos nos transtornos psicóticos, como
pensamento delirante. A demência grave também pode se desenvolver, ocor-
rendo no contexto de uma personalidade anteriormente normal. A doença
Introdução à psiquiatria 81
FIGURA 3.2 Interconexões dos gânglios da base.
Reproduzida de Andreasen NC: The Broken Brain: The Biological Revolution in Psychiatry.
New York, Harper & Row, 1984, p. 105. Copyright 1984, Nancy C. Andreasen.
de Parkinson é outra síndrome que afeta os gânglios da base, e é devida à
perda neuronal na substância negra, a região do mesencéfalo dos gânglios da
base que envia projeções para o caudado, usando a dopamina como seu neu-
rotransmissor primário. Nessa doença, a perda de neurônios pigmentados e
a perda associada de atividade dopaminérgica produz uma série de sintomas
Núcleo caudado
Núcleo lenticular
Cabeça do caudado
Substância negra
Estruturas anatômicas
Amígdala
Cauda do caudado
Núcleo
subtalâmico
Tálamo
Sistema motor
extrapiramidal
Sistema motor
piramidal
Córtex associativo
frontal e parietal
Córtex
motor
Caudado
e putame
Conexões
Medula
espinal
Núcleos
talâmicos
ventrais
Núcleo
subtalâmico
Substância
negra
Globo
pálido
Tronco
cerebral
82 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
semelhantes aos sintomas negativos da esquizofrenia, incluindo embotamento
afetivo e perda da volição. Uma leve demência também pode ocorrer.
Os gânglios da base também são relevantes para a psiquiatria devido a sua
anatomia química. O caudado e o putame contêm uma concentração muito
alta de receptores da dopamina, em particular receptores D2. Foi demonstrado
que a eficácia das medicações antipsicóticas está altamente correlacionada com
sua capacidade de bloquear esses receptores (ver “Sistemas neuroquímicos” mais
adiante, neste capítulo). Como os receptores D2 têm uma densidade muito alta
nessas regiões, o caudado e o putame podem ser sítios importantes para a ação
de drogas antipsicóticas e desempenhar um papel na geração de sintomas psicó-
ticos, como delírios e alucinações.
O sistema da memória
O sistema da memória é um dos principais sistemas funcionais do cérebro,
podendo estar comprometido com doenças mentais em alguns pacientes.
Os déficits na aprendizagem e na memória são a marca registrada das de-
mências. Embora pacientes com transtornos psicóticos não costumem ter
FIGURA 3.3 Os gânglios da base vistos por meio de imagens de ressonância magnética.
A reamostragem e visualização triplanar, obtida de um programa desenvolvido localmente
para análise de imagens (BRAINS, ou Brain Research: Analysis of Images, Networks, and
Systems), permite que se vejam estruturas com uma forma complexa, como o núcleo cauda-
do, a partir de três ângulos diferentes, aumentando, assim, nossa capacidade de compreen-
der a anatomia cerebral de forma tridimensional.
Copyright 1993, Nancy C. Andreasen.
Introdução à psiquiatria 83
déficits graves de memória, alguns investigadores especularam que os meca-
nismos neurais de alucinações e delírios podem se basear, pelo menos em
parte, em uma excitabilidade anormal ou em anomalias dos circuitos neu-
rais envolvidos na codificação, recuperação e interpretação de memórias. Na
teoria psicanalítica, acredita-se que as várias “neuroses”, como os transtor-
nos de ansiedade ou a histeria (i.e., o transtorno de somatização), podem
representar um estímulo doloroso de memórias reprimidas que não foram
psicologicamente integradas. A psicoterapia envolve o processo de aprendi-
zagem, que se baseia, por sua vez, na memória. Pacientes que completam
com sucesso um curso de psicoterapia aprenderam novas formas de pensar
sobre si próprios, de compreender suas experiências passadas e de relacio-
nar-se com outras pessoas.
A memória é, na verdade, um conjunto diversificado de funções que são
mediadas de diferentes maneiras. Em geral, atualmente é concebida como um
processo de dois estágios. O primeiro envolve a memória de curto prazo, que
usamos para aprender, por exemplo, um número de telefone que precisamos
discar ou um número de RG que precisamos anotar. Às vezes, esse tipo de me-
mória também é denominado memória “de trabalho”, porquefica acessível no
armazenamento de curto prazo e é usado como um bloco de notas mental ao
qual recorremos quando realizamos operações mentais, como cálculos matemá-
ticos. A memória de longo prazo, por sua vez, consiste em informações que
aprendemos e retemos por períodos maiores do que alguns minutos. Esse tipo
às vezes é referido como memória “consolidada” e está, no momento, sendo
empregado pelos leitores deste livro.
A experiência humana normal, bem como as pesquisas em neurociências,
indicam que uma variedade de técnicas podem ser usadas para facilitar o apren-
dizado ou a consolidação da memória. Essas incluem coisas como a repetição, o
ensaio ou dispositivos mnemônicos. Esse tipo de memória é mediado por um
conjunto diferente de mecanismos que levam ao armazenamento de longo pra-
zo das informações. O trabalho de Eric Kandel, usando o reflexo de retração das
guelras na lesma Aplysia como modelo, demonstrou que a memória de longo
prazo depende da síntese de proteínas e do RNA em neurônios que são conecta-
dos sinapticamente no momento em que a aprendizagem de curto prazo está
ocorrendo; esse processo criaria uma consolidação molecular da memória que é
armazenada de forma mais permanente. Kandel recebeu o Prêmio Nobel de
Fisiologia ou Medicina de 2000 por esse trabalho, que explica a capacidade
extraordinária do cérebro humano de remodelar-se neuroplasticamente ao lon-
go da vida.
84 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
O sistema da linguagem
Como sabemos, a capacidade de comunicação em linguagem desenvolvida e
complexa se limita aos seres humanos. Ainda que se acredite que botos, golfi-
nhos e algumas outras criaturas possam transmitir mensagens específicas uns
aos outros, somente os seres humanos parecem ter uma linguagem sintatica-
mente complexa que existe em forma tanto oral como escrita. A capacidade
de registrar nossa história e de comunicação científica e cultural permitiu-
nos construir repetidas civilizações e sistemas sociais complexos e talvez tam-
bém destruí-los.
A capacidade de comunicação por meio da linguagem oral e escrita, que
provavelmente ocorre apenas nos seres humanos, é facilitada por regiões cere-
brais. Esses sistemas de linguagem estão localizados no neocórtex. Um diagrama
esquemático simplificado dos circuitos do cérebro humano, que por tradição
eram considerados mediadores das funções da linguagem, aparece na Figura
3.4. Com base em estudos sobre lesões, esse sistema parece estar localizado qua-
se totalmente no hemisfério esquerdo na maioria dos indivíduos, embora cerca
de um terço dos canhotos use seu hemisfério direito ou ambos para realizar
funções da linguagem.
No hemisfério esquerdo existem três grandes regiões da linguagem, bem como
algumas regiões subsidiárias. A área de Broca é a região dedicada à produção da
fala. Ela contém informações sobre a estrutura sintática da linguagem, for-
nece as palavras funcionais ou de classe fechada, como as preposições que
costuram o tecido da linguagem, e é a geradora da fala fluente. As lesões na
área de Broca que ocorrem em vítimas de acidente vascular cerebral (AVC)
(muitas vezes com hemiparesia direita) levam a uma fala entrecortada, tarta-
mudeante e com deficiências sintáticas (agramatismo). A área de Wernicke é
referida com freqüência como o “córtex de associação auditiva”. Ela codifica
as informações que nos permitem “compreender” ou “interpretar” as informa-
ções apresentadas em forma auditiva. A percepção de ondas sonoras, que codifi-
cam a fala, ocorre por meio de transdutores no ouvido que convertem as infor-
mações em sinais neurais. Os sinais são recebidos no córtex auditivo, mas o
sentido dos sinais específicos não pode ser compreendido (i.e., percebido
como constituindo palavras com sentidos específicos – em oposição, p. ex.,
à música sem palavras de uma sinfonia) sem ser comparado a “modelos” na
área de Wernicke. Um processo análogo ocorre quando compreendemos a
linguagem escrita. Nesse caso, as informações são coletadas pelos nossos olhos,
repassadas via trato ótico até o córtex visual primário, no lobo occipital, e então
transmitidas para o giro angular, um córtex de associação visual que contém as
Introdução à psiquiatria 85
FIGURA 3.4 Interconexões do sistema da linguagem.
Andreasen 2001. Copyright 1984, Nancy C. Andreasen.
informações ou os modelos que nos permitem reconhecer a linguagem apresen-
tada em forma visual.
Pacientes com doenças mentais graves têm uma variedade de perturbações
em sua capacidade de comunicação por meio da linguagem. Algumas dessas
incapacidades são semelhantes às observadas nas afasias produzidas por AVCs,
mas nenhuma é precisamente idêntica. Alguns pacientes com esquizofrenia
têm a fala empobrecida que lembra a afasia de Broca, mas que carece de sua
característica entrecortada, agramatical. Da mesma forma, alguns portado-
res de esquizofrenia ou mania produzem uma fala muito abundante e desor-
ganizada semelhante à afasia de Wernicke, mas, ao contrário dos pacientes
com essa síndrome, parecem ter a compreensão intacta. Alucinações auditi-
vas (escutar “vozes”) são percepções anormais de linguagem – ou seja, o
indivíduo percebe a fala auditiva quando ela não está presente. As razões
para essas diversas perturbações e transtornos da função da linguagem na
psicose (e também em muitas demências) ainda não estão claras. Elas po-
dem representar anormalidades específicas em regiões cerebrais da lingua-
gem, mas é mais provável que representem uma desorganização em algum
nível integrativo mais alto ou mais baixo.
Perna
Braço
FaceLobo frontal
Giro
submarginal
Giro
angular
Área de
Broca
Lobo parietal
Lobo occipital Área
visualÁrea de
Wernicke
Córtex
auditivo
Lobo temporal
86 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
O sistema da atenção
A atenção é o processo cognitivo pelo qual o cérebro identifica estímulos no contex-
to do tempo e do espaço, selecionando o que é relevante como input e output. Somos
bombardeados continuamente com informações sensoriais em múltiplas modalida-
des, bem como com informações de nosso próprio repertório cognitivo interno.
Uma pessoa que dirige um carro em uma estrada movimentada está recebendo in-
formações sobre os outros carros, a estrada e as cercanias vindas de seu sistema visual,
assim como input auditivo do motor do carro e do som dos outros veículos que
passam por ela e input tátil de suas mãos sobre a direção, dos pés nos pedais e das
sensações físicas experimentadas pelo resto do corpo derivadas do atrito do carro
com a estrada e de suas oscilações e irregularidades. O motorista também pode estar
falando ao celular, ouvindo música ou pensando sobre uma conversa recente. A
atenção é o processo cognitivo que permite à pessoa suprimir os estímulos irrelevan-
tes (p. ex., ignorar a maior parte da paisagem), perceber o importante (p. ex., que o
carro a sua frente está freando de repente) e passar de um estímulo a outro (p. ex., de
pensamentos sobre a conversa recente para o trânsito). Se não tivéssemos essa capa-
cidade, ficaríamos sobrecarregados de estímulos. A atenção às vezes é comparada a
um holofote que o cérebro usa para destacar o que é importante para a sobrevivên-
cia, necessidades ou interesses do organismo.
A atenção parece ser mediada por múltiplos sistemas cerebrais. É provável
que o input para o cérebro seja fornecido em primeiro lugar pelo sistema ativa-
dor reticular, que tem origem no tronco cerebral. Os circuitos da linha média
passam as informações para o tálamo, que parece desempenhar uma função vital
de “gating” ou “filtragem”. Muitas outras regiões cerebrais também parecem
desempenhar funções importantes na atenção, incluindo o giro do cíngulo, o
hipotálamo, o hipocampo e a amígdala, o córtex pré-frontal e os córtices tem-
poral, parietal e occipital. Todas essas regiões estão interconectadas.
Estudos de neuroimagem usando RMf e PET revelaram que o giro do
cíngulo mostra aumentos no fluxo sangüíneo cerebral durante tarefas que
representam demandas pesadas ao sistema da atenção, como as que envol-vem competição e interferência entre estímulos. Eles também mostraram
que o fluxo sangüíneo pode ser deslocado de um hemisfério a outro como
conseqüência da atenção direcionada; um aumento no fluxo sangüíneo é
visto no giro temporal superior direito como conseqüência de instruções
para escutar com o ouvido esquerdo, e o aumento se desloca para o giro
temporal superior esquerdo em resposta a instruções para escutar à direita.
Aumentar a dificuldade da tarefa por meio de estímulos rivalizantes tam-
bém produz aumento no fluxo sangüíneo frontal.
Introdução à psiquiatria 87
A atenção fica comprometida em muitas doenças mentais, desde a esquizo-
frenia ao transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) e aos trans-
tornos do humor.
SISTEMAS NEUROQUÍMICOS
Além dos sistemas funcionais e anatômicos já descritos, o cérebro também con-
siste em um agrupamento de sistemas neuroquímicos. Esses sistemas fornecem
o “combustível” que permite o desempenho dos sistemas funcionais e anatômi-
cos, o qual pode ser deficiente quando ocorrem anormalidades. Os sistemas
neuroquímicos são interligados com os sistemas anatômicos e funcionais, sendo
todos interdependentes. Qualquer subsistema anatômico no cérebro geralmen-
te utiliza múltiplas classes de neurotransmissores. Essa complexidade de organi-
zação anatômica e neuroquímica permite uma sintonia muito mais fina do sis-
tema como um todo.
O sistema dopaminérgico
A dopamina, um neurotransmissor da catecolamina, é o primeiro produto sin-
tetizado a partir da tirosina por meio da atividade enzimática da tirosina hidro-
xilase. Sua via sintética, bem como as vias subseqüentes da noradrenalina e da
adrenalina, são apresentadas na Figura 3.5.
Existem três subsistemas no cérebro que usam a dopamina como seu
neurotransmissor primário, e todos se originam na área tegmental ventral.
Um grupo, que tem origem na substância negra, se projeta para o núcleo
caudado e o putame, sendo denominado via nigroestriatal. Suas termina-
ções parecem ser ricas em receptores D1 e D2. Um segundo trato importan-
te, chamado mesocortical ou mesolímbico (ou mesocorticolímbico), proje-
ta-se para o córtex pré-frontal e regiões temporolímbicas, como a amígdala e
o hipocampo. A concentração de receptores D2 nessas regiões é mínima,
enquanto os receptores D1 predominam. O terceiro componente do sistema
dopaminérgico origina-se no núcleo arqueado do hipotálamo e projeta-se
para a hipófise. Esses vários subsistemas dopaminérgicos são apresentados
na Figura 3.6. Como a figura indica, o sistema dopaminérgico está localiza-
do de maneira bastante específica no cérebro humano. Como suas projeções
incluem apenas uma parte limitada do córtex e se concentram sobretudo em
regiões cerebrais importantes para a cognição e a emoção, ele é considerado
88 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
um dos sistemas de neurotransmissores mais importantes para a compreen-
são dessas funções e potencialmente para a compreensão de suas perturba-
ções em indivíduos com transtornos psicóticos.
Por muitos anos, a esquizofrenia, o mais importante dentre os vários
transtornos psicóticos, foi explicada pela hipótese dopaminérgica, que propu-
nha serem os sintomas dessa doença devidos a um excesso funcional de do-
pamina. Como a eficácia de muitas drogas antipsicóticas usadas para tratar a
psicose tem alta correlação com sua capacidade de bloquear os receptores
D2, a hipótese dopaminérgica também sugeria que a anormalidade nessa
FIGURA 3.5 Via sintética da dopamina.
Tirosina
Adrenalina
Noradrenalina
Dopamina
Tirosina
hidroxilase
Dopamina
β-hidroxilase
Feniletanolamina
N-metiltransferase
Dopa
Dopa
 decarboxilase
HO
NH2
CH2 CH COOH
CH2CH NH CH3HO
HO
OH
HO
HO
CH2 CH COOH
NH2
HO
HO
OH
CH CH2 NH2
HO
HO
CH2 CH2 NH2
Introdução à psiquiatria 89
doença poderia residir especificamente nos receptores D2. Existe uma corre-
lação modesta, mas muito mais fraca, com sua capacidade de bloquear os
receptores D1. Essa hipótese está hoje sendo reavaliada, porém, à luz de
diversas linhas de evidências recém-descobertas. Primeiro, a distribuição dos
receptores D1 e D2 foi mapeada de forma mais específica, e parece haver
uma densidade bastante esparsa de receptores D2 em regiões cerebrais cru-
ciais que medeiam a cognição e a emoção, como o córtex pré-frontal, a amíg-
dala e o hipocampo. Essas regiões são, porém, ricas em receptores D1 e tam-
bém em receptores da serotonina do tipo 2 (5-HT2). Essa última observa-
ção, combinada aos efeitos proeminentes sobre a serotonina e o D1 dos no-
vos antipsicóticos de segunda geração, sugere que a hipótese dopaminérgica
tradicional necessita ser revisada.
Compreender as projeções do sistema dopaminérgico, bem como a localiza-
ção diferencial dos receptores D1 e D2, esclarece algumas das outras ações das
drogas antipsicóticas. Algumas dessas drogas têm potentes efeitos extrapirami-
dais como conseqüência do bloqueio dos receptores D2 na via nigroestriatal.
Por isso, as drogas com efeito D2 fraco (das quais a clozapina e a olanzapina são
exemplos recentes) tendem a ter menos efeitos colaterais extrapiramidais. Se
entendêssemos de maneira mais específica as regiões cerebrais onde os sintomas
Sistema límbico
Gânglios
da base
Área
ventral
tegmental
FIGURA 3.6 O sistema dopaminérgico
Andreasen, 2001. Copyright 1984, Nancy C. Andreasen.
90 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
da esquizofrenia têm origem, seria possível delinear uma psicofarmacologia ra-
cional com drogas para agir em determinadas regiões, com base no conheci-
mento que temos sobre a anatomia química do cérebro. Essa psicofarmacologia
racional poderia se valer dos conhecimentos sobre os neurotransmissores e as
regiões cerebrais envolvidas e a estrutura química dos receptores relevantes, con-
forme revelados pela clonagem de receptores.
O sistema noradrenérgico
O sistema noradrenérgico tem origem no locus ceruleus e envia projeções difusa-
mente para todo o cérebro. Tais projeções são resumidas na Figura 3.7. Como é
ilustrado na figura, a noradrenalina parece exercer efeitos em quase todas as
regiões do cérebro humano, incluindo o córtex como um todo, o hipotálamo, o
cerebelo e o tronco cerebral. Essa distribuição sugere que o sistema pode ter um
efeito modulador ou regulador difuso no SNC.
Existem algumas evidências de que a noradrenalina pode desempenhar um
papel importante na mediação de sintomas de doenças mentais graves, em espe-
cial dos transtornos do humor. Logo após terem sido desenvolvidos, foi de-
monstrado que os antidepressivos tricíclicos inibem a recaptação de noradrena-
lina, aumentando assim a quantidade disponível desse neurotransmissor para
estimular os receptores pós-sinápticos. Da mesma forma, os antidepressivos ini-
bidores da monoaminoxidase também aumentam a transmissão noradrenérgi-
ca, inibindo a degradação do neurotransmissor. No entanto, também está claro
que muitos antidepressivos têm atividades noradrenérgicas e serotonérgicas mistas
ou efeitos apenas serotonérgicos (i.e., os inibidores seletivos da recaptação da
serotonina [ISRSs]). Assim, a hipótese catecolaminérgica original dos transtor-
nos do humor, que sugeria ser a depressão devida a um déficit funcional da
noradrenalina em terminais nervosos cruciais, enquanto a mania se devia a um
excesso funcional, era claramente uma supersimplificação.
O sistema serotonérgico
Os neurônios serotonérgicos têm uma distribuição admiravelmente semelhante
à dos neurônios da noradrenalina (Fig. 3.8). Os neurônios serotonérgicos têm
origem nos núcleos da rafe, localizados em torno do aqueduto do mesencéfalo.
Eles se projetam para uma gama também ampla de regiões do SNC, incluindo
todo o neocórtex, os gânglios da base, regiões temporolímbicas, o hipotálamo, o
Introdução à psiquiatria 91
cerebelo e o tronco cerebral. Como acontece com o sistema noradrenérgico, o
sistema serotonérgico parece ser um modulador geral.
A hipótese serotonérgica da depressão também foi proposta, em grande par-
te porque alguns medicamentosantidepressivos (p. ex., fluoxetina) facilitam a
transmissão serotonérgica bloqueando a recaptação. É provável que a serotonina
também esteja envolvida na esquizofrenia e em outros transtornos psicóticos.
Sendo assim, provavelmente não existam relações simples entre um único neu-
rotransmissor e uma única doença.
O sistema colinérgico
Como a dopamina, a acetilcolina tem uma localização relativamente mais
específica no cérebro humano, como é mostrado de forma esquemática na
FIGURA 3.7 O sistema noradrenérgico.
Andreasen, 2001. Copyright 1984, Nancy C. Andreasen.
Córtex
parietal
Córtex
frontal
Córtex
occipital
Lobo
temporal
Hipotálamo
Locus
ceruleus
Cerebelo
Medula
espinal
92 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
Figura 3.9. Os corpos celulares de um grande grupo de neurônios acetilcoli-
nérgicos estão localizados no núcleo basal de Meynert, nas regiões ventral e
medial do globo pálido. Neurônios desse núcleo projetam-se para todo o
córtex. O segundo grupo de projeções acetilcolinérgicas, que tem origem na
banda diagonal de Broca e no núcleo septal, projeta-se para o hipocampo e
para o giro do cíngulo. Um terceiro grupo de neurônios colinérgicos são
neurônios de circuitos locais que se inserem nas estruturas principais dos
gânglios da base.
O sistema acetilcolinérgico desempenha um papel importante na codifi-
cação da memória, embora seus mecanismos precisos não sejam compreen-
didos. Pacientes com doença de Alzheimer exibem perda de projeções ace-
tilcolinérgicas tanto no córtex quanto no hipocampo, e o bloqueio dos re-
ceptores muscarínicos produz comprometimento da memória. A dopamina
e a acetilcolina compartilham altas concentrações de atividade dentro dos
FIGURA 3.8 O sistema serotonérgico.
Andreasen, 2001. Copyright 1984, Nancy C. Andreasen.
Córtex
parietal
Córtex
frontal
Córtex
occipital
Lobo
temporal
Hipotálamo
Cerebelo
Medula
espinal
Núcleos
da rafe
Introdução à psiquiatria 93
gânglios da base, e as drogas usadas para bloquear os efeitos colaterais extra-
piramidais dos antipsicóticos são agonistas anticolinérgicos. Isso sugere uma
possível relação recíproca entre a dopamina e a acetilcolina na modulação da
atividade motora e possivelmente até da psicose. Os agonistas colinérgicos
também podem comprometer funções cognitivas, como a aprendizagem e a
memória.
O sistema GABA
O ácido γ-aminobutírico (GABA) é um neurotransmissor aminoácido, como o
glutamato. Esses dois principais neurotransmissores aminoácidos parecem ser-
vir a funções complementares, sendo que o GABA desempenha um papel inibi-
dor e o glutamato um papel excitante.
Os neurônios GABAérgicos são um misto de sistemas de circuito local e
de trato longo. No córtex cerebral e no sistema límbico, predominam os
neurônios de circuito local. Seus corpos celulares no caudado e no putame
projetam-se para o globo pálido e para a substância negra, tornando-os de
FIGURA 3.9 O sistema acetilcolinérgico.
Andreasen, 2001. Copyright 1984, Nancy C. Andreasen.
Córtex
parietal
Córtex
frontal
Córtex
occipital
Núcleo basal
de Meynert
94 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
trato relativamente longo, e neurônios GABAérgicos de trato longo tam-
bém ocorrem no cerebelo.
O sistema GABA tem importância substancial para o entendimento da neu-
roquímica da doença mental. Muitas drogas ansiolíticas (p. ex., diazepam) agem
como agonistas de GABA, aumentando o tônus inibidor dentro do SNC. A
perda dos neurônios GABA de trato longo que conectam o caudado ao globo
pálido libera essa estrutura do controle inibidor, permitindo assim ao globo
pálido “funcionar descontroladamente” e produzir os movimentos coreiformes
que caracterizam a doença de Huntington.
O sistema glutamatérgico
O glutamato, um neurotransmissor aminoácido excitatório, é produzido pelas
células piramidais em todo o córtex cerebral e no hipocampo. Por exemplo, as
projeções do córtex pré-frontal para os gânglios da base são glutamatérgicas.
Há muitos anos se observa que o glutamato, além de ser um neurotransmis-
sor, é potencialmente uma neurotoxina se estiver presente em quantidades que
produzam excitação neuronal excessiva. Essa observação veio se somar a acha-
dos quanto aos efeitos psicológicos e bioquímicos da fenciclidina (PCP), levan-
do à sugestão de um possível papel do glutamato na psicose ou nas doenças
neurodegenerativas, como a doença de Huntington. A PCP bloqueia os efeitos
da ativação de um subgrupo de receptores de glutamato, os receptores de N-
metil-D-aspartato (NMDA), com provável bloqueio do canal de cátion ati-
vado pelo receptor de NMDA. A intoxicação por PCP produz uma psicose
caracterizada por retraimento, estupor, pensamento e fala desorganizados e
alucinações. As possíveis relações entre a PCP, sua psicose característica e
seus efeitos no sistema glutamatérgico sugerem que o glutamato possa de-
sempenhar algum papel na produção dos (ou na proteção) sintomas da psi-
cose. Essas doenças poderiam ser causadas por um excesso de atividade glu-
tamatérgica, o qual poderia produzir a degeneração neuronal por meio da
excitação excessiva.
A GENÉTICA DA DOENÇA MENTAL
Graças à conclusão do mapeamento do genoma humano, agora sabemos que ele
é composto de aproximadamente 30.000 genes, cerca de 70.000 a menos do
que o número que aparecia nos livros há apenas alguns anos. Mais da metade
Introdução à psiquiatria 95
desses genes são expressos no cérebro. Durante as próximas décadas, os médicos
estarão vivendo na “Era do Genoma” – um tempo em que começaremos a des-
cobrir os mecanismos dos principais transtornos mentais ao nível molecular.
Cada vez mais seremos capazes de compreender como a expressão genética e os
produtos genéticos resultam nas manifestações de uma variedade de doenças.
Também vamos reconhecer de forma crescente a complexidade da maioria
dos transtornos médicos graves – isto é, que poucas doenças são transtornos
mendelianos simples. A oportunidade de compreender doenças em níveis
genético e genômico oferece grandes promessas para o futuro. Entender seus
mecanismos contribui para que possamos intervir antecipadamente e talvez,
em última análise, implementar medidas preventivas para modificar a ex-
pressão e os produtos genéticos. Esse é o “cálice sagrado” da genética psi-
quiátrica.
Abordagens epidemiológicas
Já há muitos anos se reconhece que as doenças mentais têm um componente
genético significativo. Uma variedade de estudos usou as ferramentas da
epidemiologia psiquiátrica para demonstrar que as doenças mentais tendem
a reproduzir-se nas famílias. Tais estudos geralmente são divididos em três
grupos amplos: estudos de família, estudos de gêmeos e estudos de adoção.
Cada um desses três tipos oferece diferentes perspectivas sobre a genética
dos transtornos.
Estudos de família
Os estudos de família examinam o padrão de agregação familiar, começando
com a identificação de um probando (ou caso índice) que tenha um trans-
torno de particular interesse, como transtorno bipolar ou esquizofrenia. Logo
após, todos os parentes em primeiro grau disponíveis (pais, irmãos, filhos)
também são avaliados, usando-se entrevistas estruturadas e critérios diag-
nósticos. A prevalência do transtorno específico sob investigação é compa-
rada com a prevalência em um grupo-controle selecionado cuidadosamente.
Se uma taxa maior da doença mental específica sob estudo for observada nos
parentes em primeiro grau dos probandos, comparados com os parentes em
primeiro grau dos sujeitos-controle, esses resultados sugerirão que o trans-
torno é familiar e possivelmente genético. Tais estudos não podem excluir a
96 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
possibilidade de que o transtorno tenha causas não-genéticas proeminentes.
Os transtornos também podem se repetir nas famílias devido a comporta-
mentos aprendidos, modelagem de papéis ou ambientes sociais predispo-
nentes. Foi constatado que os seguintes transtornos são “familiares”: depres-
são maior, transtorno bipolar, esquizofrenia, transtorno de pânico, fobia
social, transtorno obsessivo-compulsivo,transtorno da personalidade anti-
social, transtorno da personalidade borderline, transtorno autístico, TDAH
e provavelmente diversos outros. Os estudos de família também levaram a
compreensão de que um espectro de transtornos está relacionado à esquizo-
frenia, incluindo o transtorno da personalidade esquizotípica.
Estudos de gêmeos
Os estudos de gêmeos oferecem uma perspectiva melhor sobre o grau em que
um transtorno é de fato genético. Esses estudos em geral comparam a taxa de
um transtorno específico em gêmeos monozigóticos (idênticos) versus dizigóti-
cos (não-idênticos). A justificativa por trás dos estudos de gêmeos é que os mo-
nozigóticos têm material genético idêntico, enquanto os dizigóticos comparti-
lham uma média de 50% do material genético. Quanto mais alta a taxa de
concordância em gêmeos monozigóticos, comparados com os dizigóticos, maior
o grau de influência genética. Portanto, se um transtorno fosse totalmente gené-
tico e por completo penetrante, a taxa teórica de concordância em gêmeos mo-
nozigóticos seria de 100%, enquanto nos dizigóticos seria de 50%. Na verdade,
as taxas em ambos os grupos são mais baixas para a maioria das doenças mentais
maiores. A Tabela 3.1 mostra as taxas de concordância para uma variedade de
condições médicas que foram avaliadas por meio de estudos de gêmeos. Vale
observar que as doenças mentais parecem ter mais bases genéticas, como é indi-
cado pelo método dos gêmeos, do que outros transtornos médicos.
TABELA 3.1 Taxas de concordância em gêmeos idênticos e não-idênticos para
várias condições psiquiátricas, doença cardíaca coronariana e câncer de mama
Tipo de doença Gêmeos idênticos Gêmeos não-idênticos
Autismo, esquizofrenia, 60% 5%
transtorno bipolar
Doença arterial coronariana 40% 10%
Depressão 50% 15%
Câncer de mama 30% 10%
Introdução à psiquiatria 97
Embora poderosos, os estudos de gêmeos não são um método perfeito
para estudar a genética dos grandes transtornos mentais, porque fatores psi-
cológicos não-genéticos podem desempenhar papel significativo. Como os
gêmeos são criados juntos, a modelagem de papéis pode ser muito influente.
Além disso, esse fator provavelmente terá mais peso em gêmeos monozigóti-
cos do que nos dizigóticos, porque aqueles muitas vezes são tratados como
idênticos por seus pais e pares, até mesmo recebendo brinquedos e roupas
iguais.
Estudos de adoção
Os estudos de adoção são a técnica mais refinada para diferenciar as influências
genéticas das ambientais. Nesses estudos, o foco está em crianças nascidas de
pais com uma doença mental grave, adotadas no nascimento e criadas por pais
sem o transtorno. Essas crianças são comparadas com um grupo-controle cons-
tituído de crianças nascidas de pais saudáveis do ponto de vista psiquiátrico,
também adotadas ao nascer e criadas por pais da mesma forma saudáveis. Se a
taxa da doença for mais alta nas crianças adotadas nascidas de pais com uma
doença mental específica, esta poderá ser considerada como transmitida geneti-
camente, e não por fatores ambientais. Nesse modelo, o comportamento apren-
dido e a modelagem de papéis dos pais com doenças mentais são excluídos,
porque a criança é criada separada dos pais doentes. Foram conduzidos estudos
de adoção para esquizofrenia e transtornos do humor, os quais demonstraram
um componente genético bem-definido.
Doenças simples versus “complexas”
Os pesquisadores em genética provavelmente tinham um otimismo exagera-
do no início da era moderna da “caça aos genes” devido ao sucesso na loca-
lização do gene para a doença de Huntington, um transtorno mendeliano
autossômico dominante causado por um único gene de alta penetração.
Usando técnicas clássicas de clonagem posicional, a ligação foi estabelecida
de forma relativamente rápida no cromossoma 4 por meio do estudo de um
grande pedigree venezuelano. Dois anos mais tarde, isso levou ao desenvolvi-
mento de um teste pré-clínico para o diagnóstico da doença. Assim, indiví-
duos de famílias com doença de Huntington passaram a poder determinar
98 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
se possuíam o gene causador, evitar filhos com o risco se o desejassem e
planejar suas vidas levando em conta esse resultado desafortunado. Também
sabemos que o gene causa repetições de trinucleotídeos e que um número
maior de repetições conduz a uma idade de início mais precoce. Apesar dis-
so, ilustrando os enigmas intransigentes inerentes à biologia humana, ainda
não sabemos qual a anomalia estrutural ou a proteína regulatória que causa
essa doença e ainda somos incapazes de tratá-la ou preveni-la. Mesmo para
uma doença dominante autossômica clara e até certo ponto simples, para a
qual o locus cromossômico foi identificado, a resposta final que buscamos
não é encontrada com facilidade.
A maioria das doenças mentais, da mesma forma que outros distúrbios co-
muns na medicina, como a hipertensão ou o diabete, são doenças complexas.
Elas são claramente não-mendelianas e em geral consideradas decorrentes de
múltiplos genes de efeitos pequenos que interagem com diversos fatores não-
genéticos, fazendo com que a doença surja se um número suficiente de fatores
de risco genéticos e não-genéticos cumulativos co-ocorrerem. Complicando
ainda mais a busca por esses genes, as doenças mentais são relativamente
comuns na população em geral, tornando difícil encontrar famílias nas quais
uma doença específica apareça de forma sistemática. Embora os pesquisado-
res em genética abordem doenças complexas com entusiasmo reservado, re-
conhecem que humildade e paciência serão necessárias e que as respostas
virão lenta e esporadicamente.
Encontrando os genes
Três abordagens principais foram usadas para localizar genes para doenças e
outros transtornos mentais.
Estudos de ligação
Os estudos de ligação (linkage) foram as primeiras abordagens a serem apli-
cadas na busca por genes. Mesmo que tenham produzido resultados signifi-
cativos para alguns transtornos (p. ex., a identificação de um locus no cro-
mossoma 4 para a doença de Huntington), eles têm tido um sucesso bem
menor para outros tipos de doenças mentais, que podem ser geneticamente
complexas. Já foi dito que os estudos de ligação das doenças mentais têm
Introdução à psiquiatria 99
uma “história maníaco-depressiva”. Os primeiros relatos identificam uma
ligação entre um sítio em um determinado cromossoma e uma doença espe-
cífica, levando a entusiasmo e excitação, seguidos de estudos de replicação
que são incapazes de reproduzir o achado inicial em uma população diferen-
te de sujeitos, levando à depressão. Alguns exemplos são os relatos iniciais
de ligação para doença bipolar no cromossoma 11 ou o cromossoma X ou
ligações entre esquizofrenia e sítios nos cromossomas 6, 8 e 22. Conseqüen-
temente, embora os estudos de ligação continuem a ser conduzidos e pos-
sam trazer algumas contribuições para nossa compreensão dos mecanismos
genéticos das doenças mentais, eles estão cada vez mais sendo complemen-
tados ou suplantados por outras abordagens. A chave dos estudos de ligação
bem-sucedidos é a capacidade de replicar os achados iniciais em múltiplas
amostras. As dificuldades em manter esse princípio básico por vezes levaram
a confusões e decepções em relação aos estudos genéticos dos transtornos
mentais. No entanto, o principal problema tem sido a ingenuidade ou o
otimismo excessivos quanto ao poder desse tipo de estudos.
Estudos de associação
Os estudos de associação fornecem uma abordagem alternativa. De modo geral,
começam com a seleção de um gene candidato, orientada por uma hipótese. Os
genes candidatos são escolhidos por serem polimórficos e porque codificam uma
proteína que pode ter algum efeito conduzindo a uma doença mental específica.
Os exemplos de genes candidatos incluem proteínas que regulam o desenvolvi-
mento cerebral, como o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF); enzi-
mas que afetam a síntese de neurotransmissores, como a catecol-O-metiltrans-
ferase (COMT); ou hormônios que regulam a atividade cerebral, como o neu-
ropeptídeoY. A força da abordagem do gene candidato permite aos investigado-
res determinar diretamente se uma proteína em particular tem alguma relevân-
cia para uma doença mental específica. Na abordagem do gene candidato, um
grupo de pacientes com o transtorno específico em geral é comparado a um
grupo-controle. Outra variante de delineamento envolve o uso de trios (i.e.,
duas gerações de uma família portadoras da doença com uma amostra que in-
clua indivíduos afetados e não-afetados). Os estudos de genes candidatos têm
algumas das mesmas limitações que os estudos de ligação; por exemplo, podem
produzir resultados falso-positivos, de modo particular se as amostras não forem
bem escolhidas, e, como os estudos de ligação, sua credibilidade depende de
100 Nancy C. Andreasen & Donald W. Black
replicações repetidas. Apesar dessas ressalvas, diversos genes candidatos foram
identificados e replicados como genes potenciais de vulnerabilidade para a es-
quizofrenia, incluindo BDNF, COMT, disbindina e neurregulina 1.
Também foram encontradas algumas indicações para outras doenças men-
tais, como autismo e transtornos do humor.
Triagem genômica
As triagens genômicas são a terceira abordagem na busca de genes para doenças
mentais que se tornou possível graças a avanços como o mapa do haplótipo de
todo o genoma humano. Até agora, nenhuma dessas pesquisas produziu resulta-
dos relevantes. Elas geraram evidências fracas para genes nos cromossomas 9, 10
e 12 para as demências e nos cromossomas 1, 6, 8, 10, 11, 13 e 22 para as
psicoses. No entanto, as evidências de ligação muitas vezes são para uma região
ampla, com diferentes mapeamentos para áreas não-sobrepostas do mesmo bra-
ço de cromossoma. Mesmo assim, à medida que os métodos estatísticos se sofis-
ticam e os dados do mapa do haplótipo são integrados com o método, as tria-
gens genômicas podem fornecer informações adicionais significativas sobre a
localização dos vários genes ao longo da próxima década.
QUESTÕES DE AUTO-AVALIAÇÃO
1. Qual é a definição anatômica-padrão de córtex pré-frontal? Descreva as fun-
ções realizadas por esse córtex.
2. Descreva o sistema límbico, listando pelo menos quatro estruturas in-
cluídas nele. Que papel esse sistema desempenha na emoção e na memó-
ria?
3. Discuta as possíveis relações entre anormalidades no sistema frontal, no
sistema da memória e no sistema da linguagem em relação aos sintomas
da psicose.
4. Discuta como o conhecimento da estrutura dos receptores pode influen-
ciar o desenvolvimento de drogas usadas para tratar doenças mentais.
5. Descreva a localização de corpos celulares e projeções para os sistemas dopa-
minérgico, noradrenérgico, serotonérgico e colinérgico.
6. Descreva os mecanismos pelos quais as anormalidades nos neurônios
GABAérgicos podem produzir a doença de Huntington. Descreva as fun-
Introdução à psiquiatria 101
ções do glutamato e suas possíveis relações com os sintomas da psicose, usan-
do a PCP como modelo.
7. Descreva a força relativa dos estudos de família, de gêmeos e de adoção como
métodos para determinar o caráter familiar das doenças mentais e o grau em
que fatores puramente genéticos desempenham um papel causal.
8. Discuta a interação possível entre genes e fatores ambientais na produção de
doenças mentais.
9. Quais são as principais abordagens usadas na genética molecular para identi-
ficar um gene?
	PARTE I - 
Fundamentos
	3 Neurobiologia e Genética da Doença Mental

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