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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia O YOUTUBE COMO APARELHO PRIVADO DE HEGEMONIA: A EXPERIÊNCIA DA ONDA CONSERVADORA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Felipe Bezerra de Andrade Natal/RN 2021 2 Felipe Bezerra de Andrade O YOUTUBE COMO APARELHO PRIVADO DE HEGEMONIA: A EXPERIÊNCIA DA OFENSIVA CONSERVADORA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Dissertação elaborada sob orientação da Prof. Dr. Isabel M. F. Fernandes de Oliveira e apresentada ao programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia. Natal/RN 2021 3 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA Andrade, Felipe Bezerra de. O Youtube como aparelho privado de hegemonia: a experiência da onda conservadora no Brasil contemporâneo / Felipe Bezerra de Andrade. - Natal, 2021. 187f. Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2021. Orientadora: Profa. Dra. Isabel Maria Farias Fernandes de Oliveira. 1. Neoconservadorismo - Dissertação. 2. Youtube - Dissertação. 3. Crise de Hegemonia - Dissertação. I. Oliveira, Isabel Maria Farias Fernandes de. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9:32(81) Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 4 SUMÁRIO RESUMO....................................................................................................................... 04 ABSTRACT......................................................................... ......................................... 05 CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO E MÉTODO ............................................................. 06 1.1 – Introdução...............................................................................................................06 1.2 – Alinhamento Metodológico....................................................................................14 1.3 – Método....................................................................................................................19 CAPÍTULO II – ESTADO, LUTA DE CLASSES E CRISE.........................................23 2.1 - Estado Ampliado e Aparelhos Privados de Hegemonia..........................................23 2.2 - As demandas da classe dominante e as transformações do Estado Capitalista no século XX: Até onde vai a democracia burguesa?.....................................................................38 2.3 - Neoliberalismo e Imperialismo: A Periferia no Capitalismo..................................63 2.4 - A crise de Hegemonia no Brasil: O que aconteceu depois de junho.......................82 CAPÍTULO III – APRASENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS................................114 3.1 – Apresentação de Dados.........................................................................................114 3.2 – Análise de Dados..................................................................................................165 REFERÊNCIAS............................................................................................................ .181 5 Resumo: A dinâmica do Estado Ampliado opera instituições que gerem a luta de classes continuamente através de um consenso estabelecido por uma Hegemonia. Tal dinâmica pode também ser alterada a partir das disputas que ocorrem no âmbito da Sociedade Civil e das demandas da reprodução do capital. Quando a reprodução é dificultada, ocorrendo uma crise econômica, ou a condição da luta de classes se altera, é possível que o consenso se desgaste, ocorrendo uma Crise de Hegemonia, momento no qual um novo consenso é estabelecido, mas não sem a resolução de disputas operadas pelos Aparelhos Privados de Hegemonia. O Brasil atravessa uma Crise deste tipo que eclodiu em junho de 2013, derrubando um consenso estabelecido desde o final da ditadura que se baseava em democracia e Direitos Humanos. Neste momento se popularizaram também as ferramentas virtuais, que foram rapidamente politizadas e transformadas em formas de organização e divulgação por diversos setores da direita, que às ocuparam de forma exitosa, com especial atenção para o Youtube. A partir disto, buscamos discutir sobre a função social do Youtube na crise de hegemonia que se estabeleceu no Brasil na derrocada do projeto socialdemocrata petista. Para isto analisamos 55 vídeos de 11 canais, separados em quatro grupos: “Homens de Fé”, “Liberais”, “Jornalistas” e “Patriarcas”, buscando analisar como estes canais representam projetos de sociedade e de que forma se deu a amalgama de tais projetos na onda conservadora qual no Brasil. Vimos que tal união perdeu força depois da vitória de Bolsonaro, mas que os diferentes setores ainda estão fortes separadamente, operando seus aparelhos privados de hegemonia e se reorganizando de acordo com as demandas do capital, que ditam todas as políticas estatais e, diante de sua crise estrutural, exige cada vez mais. Palavras –Chave: Neoconservadorismo; Youtube; Crise de Hegemonia; Bolsonaro. 6 Abstract: The dynamics of the Extended State operates institutions that continuously manage the class struggle through a consensus established by a Hegemony. Such dynamics can also be changed based on the disputes that occur within the scope of Civil Society and the demands for the reproduction of capital. When reproduction is hindered, starting an economic crisis, or the condition of the class struggle changes, it is possible that the consensus wears out, leading to a Hegemony Crisis, at which time a new consensus is established, but not without the resolution of disputes operated by the Private Devices of Hegemony. Brazil is going through a crisis of this kind that broke out in June 2013, overturning a consensus established since the end of the dictatorship that was based on democracy and human rights. At this time, virtual tools also became popular, which were quickly politicized and transformed into forms of organization and dissemination by various sectors of the right, which occupied them successfully, with special attention to Youtube. Based on this, we seek to discuss the social role of Youtube in the crisis of hegemony that was established in Brazil in the collapse of the PT socialist democratic project. For this, we analyzed 55 videos from 11 channels, separated into four groups: “Men of Faith”, “Liberals”, “Journalists” and “Patriarchs”, seeking to analyze how these channels represent projects of society and how the amalgamation of such projects in the conservative wave as in Brazil. We saw that such a union lost strength after Bolsonaro's victory, but that the different sectors are still strong separately, operating their private devices of hegemony and reorganizing themselves according to the demands of capital, which dictate all state policies and, in the face of their structural crisis, demands more and more. Key words: Neoconservatism; Youtube; Hegemony Crisis; Bolsonaro. 7 1 – Introdução e Método 1.1 - Introdução O Brasil está atravessando um intenso processo de avanço do conservadorismo nos últimos anos, tanto no âmbito político quanto no cotidiano. Durante mais de uma década um projeto de conciliação de classes direcionou as políticas públicas e prioridades do governo brasileiro. Este projeto tenta minimizar os contrastes entre as classes fundamentais do capitalismo, sendo elas a burguesia, classe que detémos meios de produção, e o proletário, classe que tem apenas a sua força de trabalho para vender. A forma de gestão do estado derivada deste projeto é chamada de Social-Democracia. Durante a gestão do Partido dos Trabalhadores, este projeto foi aceito por setores majoritários da população, visto que ele busca ações que privilegiem tanto a grande burguesia quanto a classe trabalhadora. O governo do Partido dos Trabalhadores soube utilizar bem o crescimento causado pelo processo neodesenvolvimentista atravessado pelo Brasil, assim como a conjuntura favorável em terreno internacional, para expandir o padrão de vida da população pobre sem mudar negativamente a margem de lucro e crescimento da parte mais rica da população (Sampaio Jr, 2012). O neodesenvolvimentismo é um conjunto de reformas institucionais e políticas econômicas que visam aumentar a renda per capita de países subdesenvolvidos. Este conjunto de ações é baseado em valores da sociedade burguesa e não leva em conta a relação de exploração entre os países subdesenvolvidos e os países centrais. A leitura utilizada aqui é que, em determinado momento, quando tais reformas já foram aplicadas, a velocidade de crescimento diminua, surgindo a demanda de que agora políticas de cunho neoliberalista sejam aplicadas (Sampaio Jr, 2012). 8 E foi quando o ciclo neodesenvolvimentista alcançou os seus limites estruturais que o período de bonança econômica foi desacelerando, o que evidencia as contradições entre capital e trabalho e faz com que diversos setores que antes eram favoráveis à gestão Petista do estado agora questionassem suas práticas e chegassem até mesmo a exigir a sua retirada. Daremos especial atenção à pequeno-burguesia, classe que se encontra no meio do caminho entre burguesia e proletário, posição que a faz ter elementos e interesses de ambas as classes. Ela abraça as promessas da ideologia e valores burgueses de forma totalmente idealista, porém ainda carrega demandas da classe trabalhadora tais como salário mínimo e previdência (Konder, 2009). Então, durante um certo período a pequena burguesia teve muito a ganhar com a gestão Petista, o que levou seus setores mais progressistas a apoiarem o governo. Neste primeiro momento, até mesmo setores da grande burguesia fazem alianças estratégias com o Partido dos Trabalhadores e contribuem para garantir a sua governamentabilidade. Porém, o fim do crescimento econômico fez com que os setores mais reacionários da pequena burguesia ganhem força e se afastem do projeto socialdemocrata. Esta guinada à direita é decorrência do crescimento econômico e do ganho de direitos da classe trabalhadora, o que retirou da pequena burguesia parte do seu poder de consumo de serviços. Esse desconforto se intensifica quando as consequências da crise de 2008 chegam no Brasil, havendo uma queda no padrão de vida em geral da população. (Haddad, 2017) Este cenário é aproveitado pela grande burguesia nacional, cujos diversos setores se reúnem em torno da aplicação de políticas neoliberais. Com o objetivo de iniciar um processo de corte de direitos da classe trabalhadora ela investe nos incômodos da pequena burguesia, com quem forma uma aliança estratégica. Tal aliança, com apoio também da mídia e de diversos setores da burguesia internacional, culminaria no golpe parlamentar de 2016. Agora 9 vive-se sobre um governo formado sobre os desejos da burguesia e que já produziu retrocessos significativos em diversos setores como nos direitos trabalhistas, no setor educacional e na previdência. O ataque à classe trabalhadora por parte do estado é quase diário, sendo camuflado por uma ótima relação com a grande mídia, que também tem o papel de direcionar os desconfortos da pequena burguesia, cuja participação na política aumentou consideravelmente e que adquiriu o caráter de base social do golpe, contra qualquer ameaça real ao sistema vigente, criando um clima de anticomunismo e antiesquerdismo em geral. Porém, o projeto político de conciliação de classes ainda não foi abandonado por grande parte da população, que insiste em pautá-lo como resposta para as contradições desta sociedade. Assim, ocorre uma gestão pautada pelo liberalismo enquanto ainda persistem várias práticas políticas e instituições com uma lógica que contribui para deslegitimar este mesmo plano. Há também o fato de que os diversos setores da burguesia estão disputando ente si a hegemonia deste novo bloco histórico. As instituições políticas, fragmentadas por esta contenda, acabam por perder a sua autoridade com a população e, durante o período aonde há a transição de um bloco histórico para outro, se instaura uma situação de “crise orgânica”, uma crise do Estado em seu conjunto. (Gramsci, 2011; Castelo, 2013) Estes momentos de crise, quando as contradições sociais se tornam mais evidentes, costumam ser um terreno fértil para práticas políticas cada vez mais radicais, tanto à esquerda quanto à direita. Na nossa conjuntura, a crise encontra uma pequeno-burguesia já incomodada pelos avanços do proletário além de uma burguesia fortalecida por investimentos e proteção estatais, situações decorrentes do projeto socialdemocrata e suas tentativas de “revoluções passivas”, aonde se busca romper com certas partes do sistema político sem alterar as estruturas de produção. Desta forma, presenciamos uma aceitação das ideias de direita no Brasil atual (Gramsci, 2011; Castelo, 2013; Konder, 2009; Silva, 2015). 10 Observa-se o aumento no número de pessoas que estão se organizando politicamente para defender as ideias conservadoras e vemos como consequência disso a luta contra o debate de igualdade de gênero nas escolas, linchamentos coletivos, aumento no número de agressões à população LGBT e cancelamento de exposições de arte “esquerdista”, entre outras coisas, todas as pautas restauradoras parecem aproveitar o momento para se posicionar ofensivamente. É digno de nota que as classes abastadas no Brasil sempre foram relacionadas a um brutal conservadorismo, não vendo problema nenhum em se unir às facetas mais extremas da direita quando as condições histórias forem favoráveis (Silva, 2015). Este cenário de avanço da direita não é inédito, se assemelhando a diversos outros momentos chaves do século XX e chegando até a mimetiza-los em alguns momentos devido à utilização de armas já clássicas da direita, como o chauvinismo e o anticomunismo, por exemplo. Além disto, tais momentos sempre surgem durante processos que revelam dinâmicas semelhanças da relação capitalismo-democracia. Porém, as devidas particularidades de cada momento histórico fazem com esta dinâmica se desenvolva de formas diferentes. Enquanto a Europa pós-primeira guerra percebeu um avanço do fascismo, a Inglaterra da era Tatcher promoveu uma onda de corte de direitos trabalhistas e ataque neoliberal. Apesar da situação inglesa nos ser mais semelhante, ainda temos elementos que provocam a existência de consequências próprias à nossa realidade como o atual estado do imperialismo e o nosso processo de formação e desenvolvimento nacional. (Gramsci, 2011; Konder, 2009). Acreditamos então que não devemos mergulhar em conclusões apressadas acerca das possibilidades de evolução da atual conjuntura nacional, mas sim tentar entender quais elementos da dinâmica entre estrutura e superestrutura estão produzindo este fenômeno e como eles interferem no processo de formação da consciência dos seus atores políticos. 11 As redes sociais, por exemplo, são uma tecnologia recente e que adquiriu papel relevante em movimentações sociais ao longo do mundo na última década, sendo utilizada para facilitar a organização e articulação de levantes populares como os da Tunísia, Egito e Espanha. No Brasil, internet revela pela primeira vez a sua possibilidade de dialogar com atos de rua durante as jornadas de junho de 2013, quando o MovimentoPasse Livre utilizou o Facebook tanto para convocar os atos de rua quanto para divulgar a repressão violenta da polícia Paulista. A reação da população foi grande, havendo um aumento rápido no número de confirmações para os atos na mesma rede social, havendo um aumento de mais de dez vezes entre uma semana e outra. Isto marca um momento em que as redes sociais passaram a ser também utilizadas para disputar a leitura da realidade, não mais havendo uma exclusividade da velha imprensa neste papel (Silva, 2015). Claro, ainda há grande influência das empresas de comunicação na formação de opinião até mesmo na internet, as postagens mais compartilhadas ainda eram de páginas como O Estado de São Paulo e O Globo. Porém, neste momento adquirem relevância páginas de esquerda que conseguem capitalizar em certos vácuos formados por este novo espaço, como o Mídia Ninja e demais coletivos de mídia independente, além, claro, da página do próprio Movimento Passe Livre (Silva, 2015). O mês de junho de 2013 vai se desenrolando nesta disputa pela narrativa hegemônica em torno das movimentações de rua daquele momento. Algo que começa como uma resistência ao aumento do preço da passagem de ônibus na Cidade de São Paulo baseada de argumentos que levavam em conta a dinâmica da sociedade capitalista acabou por se transformar em um ato pautado por valores burgueses e moralistas, como a justiça em geral, uma ideia de melhoria de vida ligada ao consumo e o combate massivo à corrupção. Isto ocorre por conta de um processo de disputa de consciência que ocorreu tanto em veículos 12 tradicionais da mídia como televisão e jornais impressos quanto nas redes sociais. Com o crescimento de páginas de direita que também capitalizaram muito bem o clima das manifestações, percebemos como as páginas tradicionais de notícias diminuem sua influência ao longo do mês enquanto páginas de memes ganham cada vez mais atenção e compartilhamentos. Às pautas já citadas soma-se também um ataque constante às prioridades de investimento do governo de conciliação de classes, não mais condizentes com os anseios da classe média naquele momento. O senso comum da época, mais condizente com o pensamento de direita, abre espaço para que haja a divulgação massiva dos pensamentos de toda uma gama de facetas reacionárias, indo desde as notícias da revista Veja até as ideias de Jair Bolsonaro e Olavo de Carvalho, todas atravessadas por um ódio ferrenho às ideias de esquerda. Claro, é importante apontar que não é só a pequena burguesia que dá avanço a este processo, ele só pode ocorrer por conta de uma dinâmica que envolve setores de várias classes. O papel especial desta classe se deve a forma como a burguesia a transformou na base social deste projeto. (Silva, 2015) As eleições de 2014 encontram este cenário mais amadurecido. Há uma atuação ainda maior de profissionais de comunicação em páginas humorísticas patrocinadas pelos partidos, mostrando que estes grupos não ignoram a relevância do ambiente virtual na formação de opinião dos brasileiros. Além disto, o Facebook criou formas de divulgação das postagens baseadas em dinheiro, reestabelecendo dinâmicas verticais e controle através do poder econômico típicos da mídia tradicional. Porém é importante entender que as redes sociais ainda se organizam de forma muito horizontal e dinâmica do que a mídia tradicional, o que permite que ideias antigas pareçam revolucionárias e renovadas por se apresentarem com uma nova roupagem. Isto causou muitas dificuldades para o Partido dos Trabalhadores que, 13 mesmo tendo vencido por pouco no Executivo acabou sofrendo uma grande derrota nos resultados da ocupação do poder legislativo (Silva, 2015). Mesmo assim o processo de ataque aos projetos de esquerda continua em 2015. Agora ainda mais focados no combate à corrupção e já preparando o terreno para o golpe parlamentar do ano seguinte. A atual crise orgânica, assim como a própria dinâmica de horizontalidade das redes sociais, permite que setores mais reacionários da direita consigam alcançar mais pessoas, chegando, assim, ao cenário atual, quando presenciamos crescimento e grande adesão das páginas de direita, utilizadas para organizar a população em torno de pautas restauradoras que vão desde a perseguição às minorias até o retorno da ditadura. Mesmo que algumas estas pautas não sejam majoritariamente aceitas pela população, é digna de nota a sua rápida popularização nos últimos anos. (Silva, 2015) A internet, por se estabelecer como um novo espaço social de comunicação, possibilita várias ferramentas de divulgação ideológica para além do Facebook. Chamaremos atenção também para a importância do Youtube, uma das maiores plataformas de divulgação de vídeos do mundo, contando com mais de um bilhão de usuários. Assim como o Facebook, o Youtube tem visto um grande crescimento nas páginas de direita nas suas várias dimensões tanto no Brasil quanto no exterior. O caráter que estas páginas assumem no youtube, entretanto, é distinto, visto que apresenta elementos muito mais personalistas do que na maioria das páginas do outro site. Aqui vemos os youtubers em suas próprias casas, formando suas narrativas de forma muito mais pessoal e alguns deles chegam até mesmo a desenvolver uma relação com os seus seguidores. (Souza, 2016) Mesmo não havendo uma concordância total entre todos os youtubers de direita, ainda podemos perceber que tais sujeitos são em grande parte membros da pequena burguesia, que, ao entrar em contato com esta mudança nas formas de produção e divulgação da comunicação 14 audiovisual, a utiliza para compartilhar sua leitura da realidade e se apropriar desta ferramenta na batalha das ideias. Ao mesmo tempo em que os vídeos da plataforma têm esta função, gostaríamos de não secundarizar as suas possibilidades enquanto narrativas que permitem melhor analisar como se deu este processo de guinada à direita da consciência de parte da população evitando que tudo seja entendido apenas como um processo mecânico e automático de relação entre classes aonde os apoiadores de retrocessos políticos são reduzidos às imagens caricatas de “coxinhas”. (Souza, 2016) Retomando categorias Gramscianas, o Youtube vem se estabelecendo enquanto um aparelho privado de hegemonia, construindo significações possíveis para a crise de hegemonia atravessada pelo Brasil. Os elementos específicos do youtuber, assim como do próprio meio de comunicação em rede, entretanto, nos fazem pensar sobre como pode se dar a atualização de tais categorias para a atualidade. Entendendo o potencial político de tais ferramentas, que têm se revelado fundamentais para a disputa de ideias no século XXI, cabe nos questionarmos sobre a relação da popularização - pensada como parte de um processo muito maior e que não se resume ao Youtube - de determinadas ideias no período posterior ao Golpe. (Gramsci, 2011) Compreendemos a significação dos eventos na mídia como um terreno chave na disputa pelo consenso. Terreno aparentemente fragmentado nas redes sociais pelo fato de lidar com diversos operadores, que muitas vezes chegam até a discordar entre si, mas cujas alianças se tornam mais evidentes quando pensamos nas suas relações de classe. Tais sujeitos não têm como objetivo enganar a classe trabalhadora, pois eles mesmos acreditam em tais leituras guiados por suas experiências de classe ou pela identificação com os valores da classe dominante. Entender as possibilidades do Youtube enquanto aparelho privado de ideologia nos parece um ponto de partida que coloque no centro da questão os meios obscuros através 15 dos quais a classe operária é traga por tais processos, sendo que ela não compartilha das experiências que constroem a leitura ideológica da classe dominante. Utilizamos desta perspectiva para buscar compreender como o Youtube pode ser utilizado para legitimaras operações do poder estatal e participar dos processos de construção do consenso em relação com outras formas de imprensa. Escolhemos youtubers de direita por estes terem uma carga ideológica diretamente relacionada com a classe dominante, o que parece revelador o potencial que tal ferramenta tem para passar alguma idéia mesmo quando ela se apresenta como tão distinta das experiências da maioria da população. É importante lembramos que o consenso não se resume à mesma forma de interpretação da realidade, mas também envolve projetos societários e propostas que muitas vezes vão totalmente de frente aos interesses da classe trabalhadora. Desta forma, procuramos acumular a discussão acerca da atual conjuntura de avanço do conservadorismo a nível global e nacional, pensando em ferramentas e práticas que possam permitir que os setores mais liberais da sociedade consigam disputar mais ativamente a consciência da classe proletária. 1.2 – Alinhamento Metodológico Este trabalho é de orientação marxista, o que demanda uma análise dos dados rigorosamente baseada em um materialismo que opere dialeticamente, compreendendo as limitações tanto do positivismo quanto do idealismo, fortes correntes das ciências sociais. Tal perspectiva parece tão central no pensamento marxista que Lukács chega cogitar que o núcleo do que ele define como Marxismo Ortodoxo, antes mesmo de serem as conclusões marxianas sobre a sociedade burguesa, é o seu método, são as ferramentas de construção do conhecimento que Marx nos legou. (Lukacs, 2003) 16 A construção do conhecimento em Marx é alinhada com uma concepção teórico- metodológica na qual, como não poderia deixar de ser para uma ciência dialética, o próprio objeto da pesquisa direciona a forma como a sua crítica se dará, tudo isto a partir de um movimento em espiral de duplo desenvolvimento, pois à medida que novos conhecimentos sobre o objeto vão sendo apreendidos amadurece também a compreensão sobre a forma como nos aproximamos dele. O novo elemento em Marx vem da percepção que a construção dos conceitos para leitura da realidade não é derivada de um puro vaivém dialético entre ideias, mas sim um movimento que não pode deixar de passar pela materialidade que cerca o sujeito. (Netto, 2011) Diante de tal unidade teórico-metodológica, são raros os momentos da obra de Marx em que ele trata especificamente sobre questões de método, estando a maioria das suas aproximações com o tema inserida dentro de uma reflexão que tomava em conta o próprio conhecimento enquanto objeto. Nestas discussões, Marx se aproxima do conhecimento teórico enquanto um tipo específico de conhecimento distinto da arte e do conhecimento do cotidiano, por exemplo, pois ele busca capturar o real com máxima fidelidade para o plano ideal, dos pensamentos. Devemos admitir, até aqui nada de radicalmente novo para as discussões sobre o que é o saber. (Netto, 2011) Marx, a partir de sua influência hegeliana, sublinha a necessidade de um papel ativo do pesquisador neste processo de passagem do plano material pra o plano das ideias, visto que, por compreender o corpo social enquanto uma totalidade na qual o sujeito que pensa está inserido, este deve se aproximar de forma crítica dos objetos que estuda. Não devemos, então, pensar no papel do pesquisador como alguém inerte, participando de um processo de tradução automática entre o real e o ideal, mas como um sujeito ativo, que devera se utilizar de diversas ferramentas para poder revelar a verdadeira essência do objeto de estudo, que se encontra em 17 sua estrutura e dinâmica, nunca evidentemente aparentes. Afinal, caso essência e aparência fossem indistinguíveis não haveria nem mesmo a necessidade de se construir pesquisas. (Marx, 2008; Netto, 2011) O papel ativo do pesquisador também é advindo da crença marxista em uma impossibilidade de se colocar de forma neutra diante da produção do conhecimento, diferente do posicionamento das ciências positivistas. O pesquisador é construído na mesma sociabilidade que seu objeto, devendo se aproximar criticamente também de suas próprias implicações para que possa se posicionar diante das contradições com que lidará. Na sociedade atual, como exemplo e embasamento de discussões posteriores, podemos falar na luta de classes, o que anula qualquer sonho de uma ciência social que possa se colocar enquanto “neutra”. (Marx, 2008; Netto, 2011) Tais apontamentos evidenciam a direção da crítica de Marx à construção do conhecimento, que buscava evidenciar seus fundamentos e limites como ponto de partida. Não como crítica de valor, mas como forma de entender sua estrutura, sua dinâmica, procurando pensar em formas de capturar a realidade de forma o mais fiel e comprometida o possível, principalmente por entender a responsabilidade de quem, não mais seguindo a tradição filosófica de apenas interpretar o mundo, buscava transformá-lo. (Marx, 2008; Netto, 2011) A partir deste esboço de crítica, surge a questão: Quais então os fundamentos marxianos para a apreensão da realidade? Como podemos nos aproximar do objeto, com quais ferramentas e pressupostos? Partimos aqui da interpretação que entende o método em Marx como uma tentativa exitosa de reler a dialética hegeliana a partir de elementos materialistas e históricos. Importante dizer, o objetivo de estudo de Marx é a sociedade burguesa, na qual ele estava inserido. Ele se propõe 18 a entender sua estrutura e dinâmica dentro de uma totalidade complexa, construída historicamente pelas ações individuais dos sujeitos que em conjunto constroem a história da humanidade, do gênero humano. (Marx, 2008; Netto, 2011) Esta história se concretiza em relações materiais entre os sujeitos, relações que continuam a existir de forma independente de cada sujeito individual, existindo em relação com a sua dinâmica coletiva. Há então, um critério da verdade para o pensamento marxiano, não estando esta dependente da perspectiva do sujeito que a pensa. Este critério é a prática social embasada em uma materialidade histórica do gênero humano. (Marx, 2008) A história não se constrói em uma tautologia, mas em um movimento de contradições que engendram e são engendradas pela materialidade de uma complexa totalidade – que é diferente de um todo formado por partes diversas – formada por outros complexos que interagem incessantemente entre si afirmando e lidando com contradições que os impulsionam à mudança. (Marx, 2008; Netto, 2011) Tais complexos por diversas vezes são pensados de forma abstrata, separados da totalidade social que atravessa todos os seus momentos. Marx de fato acredita que, em determinado momento, se faz necessária a abstração do objeto de pesquisa de forma a pensado isoladamente e perceber quais suas categorias principais, mas faz questão de sublinhar o fato de que tais categorias sempre são historicamente determinadas e transitórias, não havendo leis eternas na sociedade, mas construções mutáveis e correlatas com sociabilidades específicas. É necessário, então, sempre um caminho de volta, no qual as implicações e tendências históricas são levadas em conta para entendermos como a estrutura e a dinâmica do objeto de estudo se desenvolvem e materializam no momento da pesquisa. Isto é real tanto para a dinâmica do trabalho quanto para complexos mais intangíveis, como a cultura e seus aparelhos. Para Marx, 19 concreto não é algo sólido, mas sim algo pleno determinações, distinto das abstrações necessárias nos primeiros momentos da pesquisa. (Marx, 2008) Cabe então, nas ciências sociais, sempre pensarmos em qual momento histórico o objeto de pesquisa se concretiza, quais tendências lhe atravessam e como ele se encaixa dentro da totalidade de uma sociedade em constante luta de classes em torno dos espólios da produção Isto, em si, já é parte da pesquisa, pois evidencia determinadas implicações queajudarão a pensar o objeto de forma concreta. É importante sublinhar, para encerrar esta breve discussão acerca do método em Marx, que as contradições que, em conjunto com as ações humanas, operam a história na concepção marxista, não se apresentam em relações diretas, mas através de mediações que articulam os distintos complexos de totalidades que constroem a totalidade mais elaborada que é a sociedade burguesa. São tais mediações que permitem que a sociedade burguesa seja uma totalidade tão diversa e variada, protegida de suas próprias contradições. (Netto, 2011) Evidentemente, Marx não pensou em uma metodologia tal qual exigida pelas associações científicas de nossos tempos, este não poderia nem mesmo ser um objetivo seu, mas em seus escritos percebe-se uma rigorosa atenção pra com a relação e o trato de seu objeto a partir de categorias que amadurecem durante os mais de 50 anos de escrita que ele nos legou. O que cabe ao pesquisador contemporâneo que busca se apropriar de sua leitura da realidade é estar ciente das mudanças que a sociedade atravessou desde o fim do século XIX e refletir sobre como as tendências históricas influenciam as categorias pensadas não só pelo próprio Marx, mas também pelos seus leitores e comentadores, número de pessoas que não é pequeno, devido às inquietações provocadas pelas suas ideias. Devemos, então, nos tornamos cientes dos desafios de nossos tempos e utilizar a teoria marxista como uma ferramenta de lida com tais desafios, sempre cientes da prática necessária para mudar o mundo, que não pode ser 20 pensada em nenhum outro momento além daquele no qual as próprias contradições da sociedade emergem. MÉTODO A partir disto, nosso objetivo geral é discutir sobre a função social do Youtube na crise de hegemonia que se estabeleceu no Brasil na derrocada do projeto socialdemocrata petista. Para concretizar tal objetivo, a pesquisa tem os objetivos específicos de discutir sobre as determinações que levaram a tal crise e ao golpe de 2016; pensar o Youtube na da dinâmica de disputa de hegemonia engendrada pelas relações sociais dentro da lógica neoliberal; analisar a relação entre os discursos dos grupos de canais do Youtube que participam ativamente desta disputa com os argumentos defendidos tradicionalmente pelas diversas faces da direita. A presente pesquisa tem inspiração no método desenvolvido por Marx, o Materialismo Histórico, e trata-se de uma pesquisa documental, analisando documentos audiovisuais a partir de categorias que nos permitiram entender o contexto em que as falas foram produzidas e sua função social para que posteriormente pudéssemos analisar os documentos audiovisuais dentro deste contexto, deste conjunto de relações sociais. Acreditamos que tal tipo de estudo pode estabelecer uma percepção mais profunda e interpretativa com o tema estudado. Categorias como Classes, Estado, Sociedade Civil, Liberalismo e Conservadorismo foram retiradas da literatura marxista e têm como fundamento a compreensão da realidade a partir de uma dinâmica dialética e materialista, elas não foram as únicas utilizadas, havendo uma expansão nas categorias que fundamentaram o trabalho à medida que fomos entendendo esta necessidade. 21 Utilizaremos como fonte de informação, vídeos disponíveis no Youtube em 31 de outubro de 2019, data da coleta de dados para a pesquisa. Com o objetivo de analisar vídeos alinhados com o espectro político da direita, buscamos uma variedade nos discursos, analisando a defesa de diferentes frações do conservadorismo. Partimos de conceitos estabelecidos pela literatura para entender as diferentes faces deste grupo, que não se apresenta como homogêneo, principalmente em um período de disputa de hegemonia, aonde todas as frações disputam entre si. Baseados também no número de seguidores e no número de compartilhamento de vídeos, de início selecionando os seguintes canais como possíveis objetos para a pesquisa: Nando Moura, com 2.260.038 seguidores; Mamãe Falei, com 1.334.775; Eguinorante, canal com 646.671 seguidores; Ideia Radicais, que conta com 415.706; MBL, com 339.938 seguidores; Padre Paulo Ricardo, que apresenta 380.153 seguidores; Bernardo P Küster: canal que tem 237.280 seguidores; Gosto de Armas, com 204.296 seguidores; e Bob Nunes, um canal com 118.489 seguidores. Com o tempo esta lista foi se modificando, retiramos o canal Eguinorante, pois ele é um canal de reações, que não produz conteúdo próprio e tem o alcance dos outros, retiramos o canal do Padre Paulo Ricardo, pois Bernardo P Küster já trazia falas baseadas no catolicismo e tinha relação mais íntima com Jair Bolsonaro, e, por fim, retiramos também o canal Gosto de Armas, por ser um canal que trata mais de reviews de armas de fogo, e o canal Bob Nunes pelo reduzido número de seguidores. A lista final de canais, com o número de seguidores que apresentava em 31 de outubro de 2019, foi: Nando Moura, com 3,33 milhões de seguidores; Mamãe Falei, com 2,62 milhões de seguidores; Jair Bolsonaro, com 2,6 milhões de inscritos; MBL, com 1,27 milhões; Joice Hasselmann TV, com 1,08 milhões; Giro de Notícias, com 1 milhão de seguidores; Olavo de 22 Carvalho, com797 mil inscritos; Bernardo P Küster, com 796 mil seguidores; O Antagonista, com 597 mil seguidores; Ideias Radicais, com 581 mil inscritos; e Dois Dedos de Teologia, com 475 mil inscritos. Os vídeos canais foram sendo adicionados a partir de sua popularidade, das relações que estabelecem uns com os outros e do tipo de discurso que levantam, pois procuramos evitar o uso de muitos canais que representassem o mesmo setor da direita. O próprio número de seguidores já nos revelou um dado importante, pois enquanto o menor dos canais tem 475 mil seguidores, os canais de esquerda alcançam um número bem menor. Discutindo páginas de partidos, o PT alcança 154 mil inscritos, enquanto o PSOL tem 9 mil. Sobre editoras: a editora Boitempo tem 266 mil seguidores e a Expressão Popular tem 3,27 mil. Nem mesmo os maiores Youtubers de esquerda como Jones Manoel, com 139 mil seguidores, e Sabrina Fernandes, com 354 mil, alcançam o último canal da lista, o que nos mostra o quando a direita conseguiu sucesso na ocupação deste espaço e no engajamento de seguidores. A partir de tais canais, buscamos entender como se organiza a rede de representantes ideológicos do projeto societário vigente no Brasil atual, os separando em grupos e procurando, sempre em diálogo com a literatura, entender quais os argumentos que os sustentam e como estes se relacionam com a materialidade em disputa. Estes grupos originalmente se apresentavam como “saudosos da ditadura”, “ultraliberais”, “cristianismo conservador”, “empreendedorismo autoajuda”, mas durante a pesquisa eles se rearticularam em “Jornalistas”, “Liberais”, “Homens de Fé” e “Patriarcas” a partir da função social que ocuparam na disputa de Hegemonia. Cabe dizer que mesmo distintos eles ainda compartilham alguns argumentos centrais na defesa do projeto de restauração do poder da classe dominante, como um exacerbado ódio a tudo que lembre direitos trabalhistas, apoio ao projeto 23 imperialista estadunidense e defesa do protagonismo do capital em todas as esferas da vida social. O próprio processo de escolha dos vídeos já se apresenta enquanto momento de acúmulo de dados, visto que exigiu uma análise extensa de tais documentos audiovisuais e não deixou de desencadear reflexões por parte do pesquisador, aonde as categorias acumuladas na etapa teórica serão reelaboradas a partir do objeto de estudo. Por conta da alta produtividade de cada canal, escolhemos apenas cinco vídeos de cada um para serem analisados, cada um deles escolhido entre os 10 mais populares do canal à época que a colheita de dados foi feita, buscando variedade de temas e maior intervalo temporal entre cada um deles. A análise da relação entreas categorias apresentadas por cada vídeo e suas relações com os deslocamentos de grandes massas para posições mais conservadoras do que se deu em períodos anteriores, tal como a recente popularização do anticomunismo, não se dará com o ímpeto de acreditar ser possível encontrar em tais vídeos as raízes únicas de tal mudança, mas de discutir como estes canais se encaixam e existem dentro de uma totalidade dinâmica que levanta diversas demandas para seus atores e serve de cenário para uma disputa constante entre as suas classes fundamentais. Utilizamos também a página socialblade.com, para entender com o número de seguidores e visualizações destes canais se alterou durante o tempo, articulando estas flutuações com os acontecimentos históricos que permearam cada momento. Este é o caminho pelo qual pretendemos seguir sobre as questões aqui levantadas, acreditando ser possível que a partir dele consigamos apontar para possíveis respostas em consonância com as demandas do tempo as quais vivemos e pensamos. Dito isto, partamos ao corpo texto sem mais delongas. 24 2 – Estado, Luta de Classes e Crise 2.1 – Estado Ampliado e Aparelhos Privados de Hegemonia Marx e Engels são implacáveis ao tratarem do Estado em seu Manifesto do Partido Comunista, afirmando que “O Executivo no Estado Moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”. A despeito desta obra ter à sua disposição um tamanho muito aquém do necessário para tratar deste tema com profundidade, fato decorrente de seu objetivo primariamente panfletário, acreditamos ser possível encontrar nele diversos conceitos centrais do pensamento marxiano, mesmo que ainda em caráter embrionário por conta do momento em que se encontrava a maturação do pensamento de seus autores. Tais conceitos e suas implicações foram desenvolvidos de forma mais aprofundada nas suas obras posteriores, mas já vemos revelada nesta afirmação uma percepção reveladora da função e dinâmica do Estado dentro da sociedade de classes. (Hobsbawn, 2013; Marx & Engels, 2005) Esta afirmação marxiana denota uma divergência radical em relação aos apologistas do Estado Burguês. Através de um conjunto de argumentos que buscam naturalizar a sociedade de classes e sua organização no modo de produção capitalista, estes autores tentam legitimar a democracia burguesa, acreditando na possibilidade de um Estado que, em sua atuação, não penderia a favor de nenhum grupo social, como classes ou raças. Muitos chegam até a defender que o Estado que não deve levar em conta a existência de classes e suas especificidades, argumentando que esta separação teria um caráter ideológico e antiproducente, criando interferências artificiais no Mercado e impedindo que o capitalismo se desenvolvesse totalmente. O Estado Moderno, então, existiria para além da luta de classes, unificando todos os seus membros - seus cidadãos - de forma idêntica, universal, como no 25 exemplo da Constituição brasileira, na qual todos são, afinal, iguais perante a lei de forma que nenhuma distinção deverá ser levada em conta. (Brasil, 1988; Mascaro, 2013; Mascaro, 2015) Ainda de acordo com a tradição de pensamento liberal, as diferenças entre as pessoas se dariam por consequência de decisões individuais, sejam suas ou de quem lhes cercam. A função do Estado se resumiria garantir os direitos mínimos para que todos os seus membros encontrassem à sua disposição a possibilidade de sucesso financeiro, forma principal como a qualidade de vida é acessada dentro de uma sociedade capitalista. Tal discurso centrado no indivíduo em tal nível de independência do social encontra abrigo no pensamento de diversos grupos políticos, estando presente até mesmo no pensamento de grupos que se identificam com teóricas sociais críticas, como em setores mais liberais da “esquerda”. Nestes casos, a disputa com os conservadores se dá em torno da definição e limites destes “direitos mínimos”, não havendo real interesse na reformulação radical do Estado e da sociabilidade que o retroalimenta. (Engels & Kautsky, 2012; Gruppi, 1996; Souza, 2016) Isto deriva de um entendimento liberal da realidade, concepção esta em que o sujeito é visto como potencialmente livre na sociedade capitalista, havendo apenas a interferência externa, principalmente do Estado, nesta liberdade. Pra legitimar tal visão de mundo, na qual os espaços externos à instituição estatal, ou a sociedade civil, seriam a arena da liberdade, é preciso que o Estado seja entendido como uma esfera que existe aparte, ou até mesmo em oposição, da sociedade civil. O Estado, para os liberais, não apenas não serve aos interesses da burguesia como muitas vezes age diretamente contra estes interesses. Esta visão continua sendo apoiada por diversos atores políticos na atualidade, sustentando, por exemplo, comentários cada vez mais comuns de que qualquer intervenção estatal seria prova deste ser um Estado socialista. (Jr, 2017; Mascaro, 2013; Oliveira, 2018) 26 Aqui é importante sublinharmos que esta divergência entre liberais e marxistas, assim como a disputa de projeto societário que ela ilustra, não se dá puramente no campo das ideias, mas principalmente em um conjunto de práticas sociais concretas que legitimam as mesmas. No caso do pensamento liberal, a divulgação e aceitação de suas ideias se intensificaram com a ascensão do neoliberalismo notada nas últimas quatro décadas do século XX, nas quais o mote carregado desde a revolução francesa por “Liberdade, Fraternidade e Igualdade” não teve mais necessidade de carregar vestígios de um momento em que a burguesia precisou se aliar com as classes subalternas e se tornou apenas o grito por “liberdade”, com o adendo de que liberdade no discurso neoliberal apenas faz sentido quando associada ao direito por propriedade tal qual é concebido dentro da lógica capitalista. (Boschetti, Behring, Santos & Mioto, 2010; Marx & Engels, 2007; Mészáros, 2011) A intensificação dos elementos de produção de valor da sociabilidade capitalista desencadeada pelo neoliberalismo foi também a intensificação de sua reprodução social, sendo esta cada vez mais afirmada pelos ideólogos da burguesia como a forma “natural” de se organizar as relações humanas, o que teve intensas consequências no âmbito do senso comum e no caldo cultural da atualidade. Nesta interpretação, é estritamente na sociedade civil que o ser humano poderia seguir seus instintos naturais, sua liberdade, longe das restrições impostas pelo Estado em nome de uma coletividade não natural. Dentro desta lógica, a determinação por parte do Estado de questões como salário mínimo ou teto do tempo de trabalho semanal é entendida um ataque à liberdade dos cidadãos. Entendimento que coincide perfeitamente com as intenções da burguesia de intensificação da expropriação do valor produzido pelos trabalhadores e do fortalecimento do poder da classe dominante. (Boschetti et al., 2010; Gruppi, 1996; Marx & Engels, 2007) 27 Importante dizer: a concepção liberal do Estado pode se concretizar de diversas maneiras distintas, que podem até mesmo ser impulsionadas projetos societários que disputam entre si, desde social-democratas, que entendem que o Estado pode ser transformado sem uma mudança radical no modo de produção, até extremos como grupos anarcocapitalistas, que defendem a redução total do Estado, deixando até mesmo que a garantia das necessidades básicas de sobrevivência obedeça às “leis naturais do mercado”, que seriam reguladas naturalmente pela “mão invisível”. Entre estes dois posicionamentos existe todo um diverso leque de grupos políticos que fazem as mais distintas leituras da sociedade e da função do Estado, mas sempre compartilhando da compreensão de que o Estado e da sociedade civil são esferas, em menor ou maior grau, independentes uma da outra. (Boschettiel al., 2010; Gruppi, 1996) Emcontraste a isso, no referencial marxista buscamos superar a naturalização de elementos historicamente produzidos de nossa sociedade, entendendo o Estado e a Sociedade Civil modernos como distintos momentos de um mesmo processo histórico de produção e reprodução da sociabilidade decorrentedo modo de produção capitalista. Assim, mesmo que cada um tenha uma função específica neste processo e se utilize de diferentes instituições e ferramentas para concretizá-la, eles não poderiam existir de forma independente ou inerentemente antagônica, sendo necessário o entendimento da função social de ambos dentro de um processo global para que possamos compreender de que forma se dá, concretamente, a dinâmica desta relação. (Gramsci, 2011; Marx, 2005; Mascaro, 2013) É a partir deste debate sobre a dinâmica entre Estado - ou, na definição Gramsciana, Sociedade Política - e Sociedade Civil na reprodução do capitalismo que pretendemos iniciar nossadiscussão. Buscamos um acúmulo teórico que nos permita refletir sobre tal relação enquanto discutimos como a lógica capitalista atravessa a estruturação e atuação de ambos, 28 assim como as possibilidades e limites de sua autonomia e influência mútua. É a partir de tais elementos que poderemos nortear os debates levantados nos tópicos seguintes. O Estado Moderno se apresenta falsamente como um “ente terceiro” na luta de classes, não representando - pelo menos formalmente - nenhuma das classes fundamentais desta sociedade. Isto é algo único na história dos governos e gestões da vida social das sociedades divididas por classes, pois a classe dominante sempre exercia controle direto sobre a sociedade. Tal especificidade leva alguns autores, como Alysson Mascaro, a considerarem que as formas de controle e gestão sociais anteriores não eram Estados em si, entendendo apenas o Estado Moderno a forma verdadeira de Estado, sendo que seu reaproveitamento de antigas instituições, como prisões, parlamentos, conceito de nação, etc... não garantiriam por si uma continuidade das antigas concepções de governo. (Mascaro, 2013) Não há espaço neste trabalho para discutir os prós e contras da afirmação de Mascaro, mas o fundamental aqui, ainda de acordo com a tradição marxista, é que o Estado tem uma função muito clara e que não se resume a produzir práticas sociais que legitimem a visão de mundo da classe dominante através de práticas coercitivas, e sim que ele existe como uma resposta à contradição entre as classes fundamentais do modo de produção de forma que suas instituições são criadas para “harmonizar” a sociedade, reduzindo os atritos causados pela exploração consequente de cada modo de produção. Grosso modo, enquanto a sociedade for cindida em classes é necessária a existência de um Estado que institucionalize e faça a gestão da dinâmica desta exploração, permitindo a sua existência prática. (Engels, 2012; Gruppi, 1996; Marx, 2005; Mascaro, 2015) Desta forma, o Estado, ao ser uma esfera que exerce seu controle diretamente sobre a população, é lido por autores das tradições mais diversas como a raiz do problema sobre o poder. As revoluções burguesas compartilham desta visão ao centralizarem a origem de seus 29 problemas sociais na relação do Estado absolutista com a Sociedade Civil evidenciando a construção histórica do Estado, mas naturalizando a divisão da sociedade por classes, acreditando que o fim da história se dá no momento em que se estabelece um Estado que atue de forma coerente com os interesses da burguesia. Porém, na atualidade a questão do poder ainda persiste na Sociedade Civil, na qual as distinções neste sentido são vistas como consequências das diferenças individuais entre os sujeitos, legitimando, a partir da “opinião pública”, inclusive os exercícios de poder por parte do Estado. A emancipação na sociedade capitalista, dentro desta lógica, não pode ser total, pois se resume apenas à emancipação política, enquanto acreditamos que a verdadeira emancipação humana só poderia ser alcançada por uma sociedade sem classes sociais que não mais necessitasse de nenhuma instituição que lhe sustentasse com mecanismos coercitivos. (Boschetti et al., 2010; Gramsci, 2011; Marx, 2010) A partir disto, acreditamos que o Estado Moderno ainda ocupa a função social do Estado tradicional, que possibilita a exploração de classes subalternas pela dominante a partir de aparelhos de estruturação e gestão das contradições inerentes à esta exploração, porém, apresentando especificidades na forma como ele se concretiza e na forma como ele será ocupado. Tais especificidades encontram-se na já citada e inédita não-ocupação direta do Estado pela classe dominante, que faz com que ele se apresente como um campo neutro, contando com a sua aparente disputa, em igualdade de condições, por grupos de “cidadãos livres”, mônadas individuais que se unem em torno de projetos societários, e que será eventualmente ocupado através do rito democrático pelo grupo que conseguir representar às demandas da maioria da população. Desta forma, o Estado pretende unir todas as classes sob a identidade de cidadão, sob a bandeira da nação, que busca o melhor para todos e, ato contínuo, ignora a exploração e as contradições inerentes às sociedades divididas por classes. 30 O Estado dos Senhores que existia até o absolutismo toma agora a forma de um Estado Sobre Todos. (Gramsci, 2011; Mascaro, 2013; Mascaro, 2015) A superação da visão liberal do Estado, desvelando a função social desta esfera, nos parece um bom começo para a resposta à questão de “Como pode o Estado Moderno ser um comitê para gerir os negócios de toda a classe burguesa se sua gestão pode também ser ocupada pelo proletariado?”, porém, tal resposta não se esgota apenas neste contra- argumento, havendo muito ainda a ser discutido no que diz respeito à dinâmica do Estado capitalista na atualidade e nas suas diferentes possibilidades de estruturação, seja Fascismo, Laissez Faire ou Estado de Bem-Estar Social, por exemplo. O surgimento das estratégias com as quais o Estado Moderno cria e desenvolve o seu conceito de emancipação só faz sentido quando pensado dentro do leque de soluções possíveis para um burguês construindo sua crítica à sociedade medieval a partir de suas práticas sociais de classe e das concepções que lhes sustentam. No momento em que a sociedade europeia começa a se modificar em direção a um conjunto de relações sociais hegemonicamente burguesas, a forma estatal absolutista - que floresceu na Idade Média sob o domínio da nobreza feudal - e sua estrutura de leis revelaram sua incapacidade de permitir o desenvolvimento de uma forma de produção tão dinâmica como o capitalismo - assim como o estabelecimento de uma classe dominante que não a nobreza -, se tornando um verdadeiro empecilho para a burguesia enquanto esta ocupava o papel de classe revolucionária. Assim, o controle estatal pautado em uma hierarquia social tão estagnada estava limitando os negócios burgueses, sendo visto pelos principais porta-vozes da ideologia burguesa como um inimigo da liberdade. Desta forma, é a partir das questões levantadas pela burguesia enquanto classe revolucionária sobre o Estado Medieval que é concebido o Estado Moderno. (Boschetti et al., 2010; Gruppi, 1996; Mascaro, 2013) 31 Então, assim como mesmo os atos humanos que parecem mais insensatos são sempre motivados por concepções da realidade e conceitos que lhe justificam, o que faz Gramsci retomar a ideia Croceana de que “todo homem é um filósofo”, a sociabilidade capitalista é embasada em uma cosmovisão que germinou as suas instituições. Cosmovisão esta que condiz com a concepção de mundo produzida de forma a legitimar as práticas burguesas, a partir de então universalizadas como uma verdade para todos os círculos da sociedade, mesmo os não burgueses. O Estado moderno compartilha das mesmas raízes ideológicasque a visão de mundo burguesa, elegendo a partir daí aquilo que será transformado em lei, naturalizando e cristalizando as relações sociais na forma como elas se dão para esta classe. (Gramsci, 1999; Gramsci, 2011; Mascaro, 2013) A burguesia, ocupando o papel social de classe revolucionária, não encontra outra alternativa no combate à sociedade feudal do que criar um mundo a sua imagem e semelhança. O mercador tradicional, diante da tarefa de construir um estado a partir de suas demandas, lê toda a sociedade através da forma social da mercadoria, onde tudo pode ser vendido, inclusivea força de trabalho, e nada poderá escapar de ter um valor, de se tornar útil à reprodução do capital. Não à toa,é na mercadoria que Marx encontra a forma irredutível no capitalismo, questão que revela sua verdadeira dimensão quando pensamos na relação desta centralidade na mercadoria em sociedades capitalistas com a necessidade de reprodução social contínua encontrada em qualquermodo de produção. (Boschetti et al. 2011; Marx, 2013; Mascaro, 2013) Neste primeiro momento deteremos especial interesse na maneira como a forma mercadoria atravessa o direito e as leis, sendo este um conjunto de instituições notadamente relevante no debate a que nos propomos. O conjunto de leis burguês seria, assim como o Estado que o legitima, centrado na forma mercadoria, tendo como pedra fundamental o fato 32 do cidadão livre poder vender e comprar bens, inclusive a força de trabalho, a quem lhe interessar. Junto a isto se somam diversos outros pressupostos para o desenrolar adequado das relações capitalistas que sustentam o direito de venda e troca e formam o núcleo jurídico do Estado burguês, como o direito à propriedade individual dos meios de produção e a representação individual dos sujeitos em “pessoas jurídicas”. É dentro dos limites deste núcleo central de direitos que todos os outros se desenrolam, sempre secundários. A supremacia do direito de que tudo pode ser transformado em mercadoria acima do direito à direitos básicos como alimentação, educação e moradia pode ser vista em diversos momentos do mundo capitalista, sempre defendida pelos apologistas do sistema. (Marx, 2010; Mascaro, 2013) O sistema jurídico capitalista é, então, centrado nos direitos do cidadão enquanto indivíduo que venderá ou comprará força de trabalho. Não poderia haver um sistema capitalista sem que houvesse também um conjunto de leis que permitissem que a mais-valia fosse extraída desta forma. A exploração do homem pelo homem através do modo de produção capitalista encontra seu imprescindível arcabouço jurídico no Estado Moderno, cujas próprias raízes de concepções de mundo e sujeito já se encontram impregnadas pelo fundamento ideológico do capitalismo. (Engels, 2012; Marx, 2010; Mascaro, 2013; Mascaro, 2015) O Estado materializa tal fundamento ideológico através de um conjunto de instituições que moldam a vida social humana e direcionam as interpretações de suas relações. É através de suas experiências e ações individuais que o sujeito vai experimentar sua relação com a sociedade, é através também da troca de mercadorias que ele vai ocupar diversos espaços que atravessam a formaçãode sua subjetividade. São estas leis que vão mediar a sua existência com a realidade, estabelecendo suas ações dentro de um conjunto de possibilidades e limites. 33 Assim, as leis ao produzirem práticas sociais também reproduzem as crenças que a legitimam, construindo condições sociais de existência que nunca se contradizem com suas raízes ideológicas nem com as formas de propriedade que compartilham destas mesmas raízes, reforçando e naturalizando a lógica das relações capitalistas de tal forma que, como disse Marx (2015): “ergue-se toda uma superestrutura de sensações, ilusões, modos de pensar e visões da vida diversos e formados de um modo peculiar (...) o indivíduo isolado, a quem afluem por tradição e educação, pode imaginar que constituem os verdadeiros princípios determinantes e o ponto de partida do seu agir.”(Mascaro, 2013; Marx & Engels, 2007) Então, o arcabouço jurídico do Estado Moderno é uma das principais ferramentas para que este possa criar e gerir as relações sociais que favoreçam o capitalismo, uma das suas funções centrais. Desta forma, mesmo que com a aparência de um ente terceiro e neutro na luta de classes, o Estado Moderno acaba por funcionar como legitimador da visão de mundo da burguesia, lhe dando ferramentas que permitem que esta classe explore o trabalho do proletariado através de todo um conjunto de ritos legais que moldam a sociabilidade capitalista. A harmonia entre as classes que o estado democrático burguês propõe nada mais é do que a harmonia de cada uma com o papel que deve assumir para que persista a reprodução social do capital. (Gramsci, 2011; Mascaro, 2013) Neste ponto é necessário sublinharmos outra diferença entre o Estado Moderno e arranjos anteriores de dominação e gestão institucional da vida social, que éo fato de certos aparelhos ideológicos não se encontrarem mais sobre o controle exclusivo e imediato do Estado, apesar de ainda estabelecerem uma relação orgânica com o mesmo. Durante o estabelecimento do Estado Burguês, antigos aparelhos sob tutela do Estado, tais como igrejas e escolas, se tornam os modernos Aparelhos Privados de Hegemonia ao mesmo tempo em que surgem aparelhos totalmente originais e típicos desta nova forma de dominação, tais como os 34 partidos em sua forma contemporânea. Com este rearranjo a democracia burguesa se baseia na divisão metodológica e jurídica entre o Estado e a Sociedade Civil, apesar de tal divisão não chegar a ser orgânica, pois ambos apresentam a mesma função social, no caso, materializar as ferramentas necessárias para a reprodução da sociabilidade capitalista, o que nos leva a entender a dinâmica unificada de ambos como o “Estado Ampliado”. (Coutinho, 2011; Gramsci, 2011; Mascaro, 2013) Na sociabilidade capitalista, o estado ampliado é bem mais dinâmico que nos antigos modos de produção, não podendo ser reduzido a um espaço institucional como o Estado, que representa uma tentativa de cristalizar os costumes de determinado momento histórico no formato de leis que se legitimam através da repressão. Se o Estado, não sendo mais algo natural ou da vontade de Deus, é agora construído historicamente por homens e mulheres de seu tempo, então é através dos “costumes” que ele encontrará legitimidade para exercer as suas ações, principalmente quando elas forem coercitivas. É no âmbito da Sociedade Civil que os costumes e senso comum se formam, ocorrendo processo de produção da cultura através de disputas pela hegemonia da sociedade. De tal forma, a classe dominante precisa também ser a classe dirigente na resolução das disputas pela hegemonia da Sociedade Civil, não podendo sustentar a sua dominação sem este controle. (Gramsci, 2011; Netto, 2006) A Sociedade Civil, por conta de sua função dentro da dinâmica do Estado ampliado, é o espaço fundamental da luta de classes. Nela ocorre a disputa pela hegemonia que subsidia as ações da Sociedade Política. Os indivíduos, mesmo quando atomizados pelo sistema jurídico burguês, encontram na Sociedade Civil a possibilidade de se identificar enquanto classes e grupos sociais específicos com interesses em comuns e desenvolver suas agendas políticas, dialogando, disputando ou se aliando com outros grupos que também tenham interesse em garantir (ou em contestar) a legitimidade desta formação social, assim como do seu Estado. A 35 Sociedade Civil funciona como uma esfera intermediária entre o Estado, pretenso representante de toda a população, e os indivíduos atomizados do mundo da produção. (Coutinho, 2011; Gramsci, 2011) O capitalismo, assim, inaugura esta separação ideológica manifesta entre Sociedade Civil e Sociedade Política, pois precisa dela para que osindivíduos atuem em um conjunto de relações independente do Estado, pelo menos ao nível do discurso, adquirindo a liberdade necessária para vender e comprar força de trabalho, materializando através de relações sociais um elemento fundamental da exploração sob os moldes capitalistas, a saber, a redução do sujeito à uma mercadoria definida pelo seu valor de troca. O empecilho deste arranjo é que os comportamentos humanos não podem mais ser controlados de forma direta e puramente coerciva pela classe dominante, mas ainda precisam ser produzidos de forma homogênea e baseada nos mesmos princípios para que esta sociabilidade continue a sua reprodução. Desta forma, privatizam-se as instâncias ideológicas, agora falsamente estabelecidas enquanto espaços de disputa independentes dos caminhos do Estado. Não à toa, é no momento em que a burguesia se fortalece enquanto classe que surge a ciência política clássica, atuando também nesta disputa de hegemonia e pretendendo pensar o funcionamento do Estado enquanto espaço separado da Sociedade Civil. A ciência política clássica surge como a tradução para o plano das ideias do projeto societário defendido pelas práticas da classe burguesa. (Coutinho, 2011; Gruppi, 1996; Marx, 2013; Mascaro, 2013) Através da Sociedade Civil se estabelecem relações sociais de hegemonia, de direção político-ideológica, que complementam e legitimam a dominação estatal, garantindo o consenso dos dominados através de uma esfera relativamente autônoma em relação ao Estado. Isto ocorre em uma materialidade social própria, na qual podemos notar um conjunto de organismo e objetivações sociais que são distintas tanto daquelas do Estado como as da esfera 36 puramente econômica. Na Sociedade Civil lidamos com o campo da organização da cultura, não havendo um sem a outra, sendo a cultura de uma sociedade resultado desta trama complexa e pluralista da qual é formada a própria Sociedade Civil. Todo um sistema de instituições de disputa ideológica que funcionam nesta esfera serve para disputar e materializar o papel da cultura, do senso comum, na construção do consenso. Assim, a produção da cultura é também a sua própria reprodução. (Coutinho, 2011; Gramsci, 2011) A Sociedade Civil tem importância central na dimensão “ética” do Estado Moderno, capturando as outras classes para os valores e a concepção de mundo burguesa, não havendo mais a separação manifesta das classes em castas com diferentes relações com o Estado, mas reforçando uma dinâmica social aonde se entende a população, mesmo que separada em sujeitos individuais, enquanto um grupo homogêneo em que os sujeitos individuais estão sempre se movendo. A concepção burguesa da realidade, desta forma, propõe uma “vontade de conformismo” que seja condizente com a história ético-política criada por esta classe, aquela que naturaliza as relações pensadas sobre sua lógica de atuação. Na leitura liberal, a única casta seriam os membros do próprio Estado, que existiriam em antagonismo à população em geral, pensada, como já apontado, de forma homogênea e individualista, sem especificidades de classe, raça ou gênero. (Coutinho, 2011; Gramsci, 2011) Neste conjunto complexo de relações há destaque especial para os “Intelectuais”, cuja função social seria intervir na disputa de hegemonia enquanto dirigentes políticos. Com a introdução dos Aparelhos Privados de Hegemonia na dinâmica social, os intelectuais- que anteriormente se encontravam em uma situação ainda bastante dependente do Estado – podem agora atuar em instituições menos dependentes de sua dinâmica, testemunhamos o surgimentodos intelectuais de sindicatos, partidos e da imprensa, além de outros, podendo atuar até mesmo de forma contrária à logica do Estado, procurando despertar na população a 37 percepção sobre as limitações do Estado Burguês. Claro, o Estado e a classe dominante continuam elegendo e produzindo os seus intelectuais, que estão sempre dispostos a levantar argumentos apologéticos em relação à sociabilidade capitalista. Importante dizer que, mesmo que agora proliferem no espaço da sociedade civil - dito como privado - por conta da forma como a luta de classes se materializa nas relações dentro da mesma, não há intelectual ou ideia desorganizada dentro da totalidade social, surgindo daí o conceito de “intelectual orgânico”. Todo intelectual apresenta, logo, uma relação orgânica com a disputa pela hegemonia dentro da perspectiva de luta de classes. Basicamente, não há produção neutra de conhecimento. (Coutinho, 2011; Gramsci, 2011) Os intelectuais da burguesia, que estão interessados em defender a sociabilidade capitalista e a estrutura de exploração inerente à mesma, por mais que tenham argumentos muitas vezes subversivos, são profundamente reacionários, se colocando muitas vezes como conservadores exatamente pelo interesse de que tais relações sociais sejam conservadas, independente dos constantes fracassos e tragédias decorrentes da sociedade de classes. Muitas vezes eles conservam também outras esferas de dominação, se apegando a elas por razões variadas. Chamaremos os intelectuais alinhados com os interesses da classe dominante de “direita” neste trabalho e aqueles que buscam combater os valores que sustentam esta sociabilidade de “esquerda”. (Gramsci, 2011; Konder, 2009) Acreditamos que esta discussão sobre o funcionamento do Estado Ampliado possa nos ajudar a entender por quê Marx e Engels afirmarem que o Estado não passa de um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa. Ele se revela, a priori mesmo de sua atuação, como uma necessidade da sociabilidade capitalista, criando e gerindo diversos aparelhos que permitam que este sistema se desenvolva e continue o seu processo de reprodução social. Desde a concepção de direito centrada no indivíduo até a forma específica 38 deste momento histórico da relação entre Sociedade Política e Sociedade Civil, todos os seus elementos são pensados dentro da lógica da burguesia. Os debates sobre o maior ou menor tamanho do Estado não passam de debates sobre como a gestão da sociabilidade capitalista se dará, não se estabelecendo jamais, pelo menos enquanto se limitar aos elementos do Estado, enquanto um risco imediato para a mesma. Claro, ainda há um grande espaço de manobra dentro desta lógica, podendo inclusive se utilizar os aparelhos ideológicos do próprio Estado para disputar a hegemonia com a classe dominante, entretanto, a verdadeira ruptura com a sociabilidade capitalista só poderá se concretizar quando as instituições do Estado, e eventualmente o próprio Estado, forem repensadas a partir da ótica de uma classe que tenha as condições materiais e subjetivas de elaborar uma crítica radical às relações capitalistas: o proletariado. (Coutinho, 2011; Engels &Kautsky, 2012; Lukács, 2003; Gramsci, 2011; Marx & Engels, 2005; Mascaro, 2013; Mascaro, 2015) Entretanto, tal debate não deve ser feito de forma tão abstrata, correndo o risco de se tornar dogmático e distante da realidade social que o pensa. Cabe então pensarmos como se dá tal disputa na contemporaneidade, no momento de avanço ferrenho do neoliberalismo por todo o mundo. O avanço do nacionalismo, neoconservadorismo e neofascismo por todo mundo se apresenta como elemento que, mesmo retomando enquanto farsa símbolos de tragédias passadas, se materializa de forma una com a conjuntura política e econômica sobre as quais as bases de tais processos históricos estão enraizadas. O cenário vivido agora veio de uma longa transformação que modificou, com maior ou menor radicalidade, diversos dos mecanismos e aparelhos de disputa hegemônica utilizados pela classe dominante, não podendo mais ser possível que as ideias de Gramsci e Marx sejam aplicadas sem uma leitura histórica mais específica. 39 Cabe então, neste ponto, buscamos um apanhado da atual dinâmica global docapitalismo, os caminhos de sua transformação, como a disputa pela hegemonia foi feita ao longo do século XX, quais as semelhanças e distinções que seus momentos centrais encontram entre si e, mais enfaticamente, como as transformações políticas, econômicas, culturais e tecnológicas – tecnologia cujo caminho de maturação nunca é independente de alguma forma de ideologia – influenciaram o formato atual dos Aparelhos Privados de Hegemonia e de sua inserção na luta de classes. 2.2 - As demandas da classe dominante e as transformações do Estado Capitalista no século XX: Até onde vai a democracia burguesa? Continuando a discussão do tópico anterior, se o Estado não é aqui entendido como um espaço neutro e separado da sociedade cuja única função é produzir de forma neutra as leis e da justiça, mas sim como parte de um complexo que tem como função social a reprodução das condições sociais necessárias para a reprodução do modo de produção capitalista, cabe a nós entender de que forma ele se relaciona com a Sociedade Civil, qual sua relação com as demandas da base e como ele atua na construção da totalidade social. Como os modos de produção que organizam a sociabilidade são condições históricas, não natas, eles necessitam que determinadas concepções da realidade, costumes, valores, papeis sociais, determinada ética, se materializem em relações sociais que possam justificar a sociabilidade necessária para que cada modo de produção possa se reproduzir. É em tais esferas que a ideologia se manifesta e, sendo as esferas da produção, do capital e do trabalho a Estrutura de determinada sociabilidade, as esferas que surgem a partir das necessidades destas são chamadasde Superestruturas. (Gramsci, 2011; Hall et al., 1978) 40 As formas iniciais que as superestruturas tomam são construídas a partir das necessidades da esfera da produção, tendendo a alcançar diferentes níveis de complexidade em coerência com tais demandas, inclusive podendo - como presenciado em situações revolucionárias - interferir na própria estrutura que a produziu, em uma relação que é muito mais de transformação mútua do todo social do que de construção unilateral. É a partir desta perspectiva do Estado enquanto Superestrutura que entendemos que o Estado Burguês é uma forma política própria do capitalismo, pois surgiu em consonância com as necessidades específicas desta forma de produção. (Hall et al., 1978; Mascaro, 2015) A dominação estatal na atualidade, pela sua função social de dar suporte e ferramentas para que a classe dominante possa continuar explorando a classe trabalhadora, se revela como uma forma da dominação burguesa. Esta é uma dominação em constante transformação, visto que a natureza dinâmica e mutável do capitalismo e da luta de classes neste sistema faz com que as formas de exercer o poder de classe precisem sempre estar se atualizando, abrindo mão de antigas instituições, produzindo novas, reciclando antigas, lhes dando uma nova roupagem e fazendo todo tipo de malabarismos conceituais e práticos a fim de amenizar as contradições do modo de produção e anular as possibilidades da luta de classes na direção da libertação total dos trabalhadores. (Engels, 2012; Hall et al., 1978; Marx, 2005; Marx & Engels, 2007; Mascaro, 2013) As instituições das quais o Estado irá dispor, assim como a forma como a luta de classes irá se manifestar em cada momento histórico, são construídas em decorrência de um complexo processo histórico de disputa ideológica, uma disputa de hegemonia, na qual diversas superestruturas, entre elas o próprio Estado, irão tentar direcionar a população para um consenso possível em torno de termos unificadores como Nação, Raça, Civilização, ou qualquer outra palavra de ordem que os operadores dos aparelhos ideológicos hegemônicos 41 conseguirem gerenciar para unir a porção majoritária da classe dominante e que forem devidamente aceitos pelas massas, legitimando as ações do Estado. (Gramsci, 2011; Hall et al., 1978; Mascaro, 2015) É fundamental frisar que tais disputas nunca são puramente ideológicas, funcionando enquanto mediação entre as demandas da esfera da produção e a produção da legitimidade necessária para que o Estado possa aplicar as reformas necessárias para que estas demandas sejam respondidas e a lógica capitalista continue se reproduzindo. (Gramsci, 2011; Hall et al., 1978) Este processo de tradução das crises da esfera da produção para as esferas da superestrutura através de mediadores ideológicos não é racional ou consciente, mas se desenrola de forma orgânica através dos deslocamentos do Bloco Histórico, o movimento conjunto de Estrutura e Superestruturas, sempre lidando com as contradições internas decorrentes da dinâmica própria de cada uma de suas esferas e buscando encontrar equilíbrio social mínimo para a continuidade da reprodução do capital diante de tais contradições. (Gramsci, 2011; Hall et al., 1978) Importante assinalar ainda a importância da ação humana na construção destas mudanças, pois o desenvolvimento da história não está limitado ao comportamento automático da dinâmica de atuação das diferentes esferas sociais, mas é engendrado a partir dos movimentos da luta de classes, que, mesmo naqueles momentos históricos em que toma uma forma cuja aparência seja de passividade, jamais deixa de ser o motor da história e de produzir e demonstrar as contradições das sociedades divididas em classes. (Gramsci, 2011; Mascaro, 2015) 42 Diante de tal explanação, reafirmamos que, na dinâmica social do capitalismo, o interesse do estado burguês e das demais superestruturas é garantir as condições sociais necessárias para a reprodução social do capital. Especificamente sobre o Estado, este objetivo se baseia fundamentalmente em dois elementos: A divisão das classes e demais grupos sociais em mônadas individuais no formato de sujeitos de direito livres para vender e comprar mercadorias, entre elas a sua força de trabalho, e aparência da estrutura jurídica enquanto ente terceiro na luta de classes, legitimando as suas intervenções, muitas vezes coercitivas, enquanto ações neutras e justas que visem o bem maior da população. (Mascaro, 2015) Por mais que a democracia burguesa seja necessária em certo nível de desenvolvimento das superestruturas a fim de legitimar suas intervenções, especialmente aquelas de natureza coercitiva, ela não nos parece fundamental para que a estrutura capitalista continue a se reproduzir, pelo menos não na forma tal como foi concebida pelos pensadores burgueses que lhe idealizaram a partir das demandas decorrentes da limitação do Estado que tinham à sua disposição naquele momento histórico. (Boschetti et al., 2010; Mascaro, 2015) As formas da democracia foram bastante alteradas ao longo do desenvolvimento deste sistema, sendo até mesmo completamente limitadas em momentos nos quais foi impossível se conseguir o consenso - a hegemonia do bloco histórico - por maneiras tradicionais. A democracia, por sua dependência para com as instituições do Estado, é influenciada pela lógica das superestruturas, se transformando a partir da atuação da luta de classes dentro das necessidades levantadas pela esfera da produção. (Mascaro, 2015) Faz-se mister, então, a discussão sobre como se deu o desenvolvimento na prática desta dinâmica, assim como a maturação das ferramentas de controle e disputa hegemônica que a burguesia e a classe trabalhadora encontraram à sua disposição para a mediação da luta de classes. Buscaremos apontar dois momentos de virada e crise no capitalismo no século 43 XXI que forçaram o Estado a se reinventar, compreendendo que os elementos de disputas, mesmo que locais, acabaram por desenvolver aparelhos e dinâmicas por parte do Estado que tiveram influência na gestão global da vida social. O primeiro processo histórico que nos interessa debater aqui será o Fascismo
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