Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
INTRODUÇÃO As síndromes psicóticas caracterizam-se por mudanças de comportamento, distorções da apreensão da realidade e inapropriação do afeto; Os fenômenos psicopatológicos mais importantes incluem ideias delirantes, alucinações, discurso incompreensível e prejuízo sócio-ocupacional; As síndromes psicóticas que não estão relacionadas a causas externas constituem os transtornos psiquiátricos propriamente ditos, dos quais se destaca a esquizofrenia como o transtorno mais comum e mais importante deste grupo; EPIDEMIOLOGIA A esquizofrenia é um transtorno grave, heterogêneo, de causa desconhecida, com sintomas psicóticos que prejudicam significativamente o funcionamento social; Os transtornos esquizofrênicos são descritos, em geral, por distúrbios característicos do pensamento, da percepção e do afeto; É uma doença de distribuição universal, que atinge principalmente a população jovem; Acomete igualmente os dois sexos, variando, contudo, quanto ao início e curso da doença. No sexo masculino, a doença tem o início mais precoce, entre 10 e 25 anos, enquanto a idade de início nas mulheres varia entre 25 e 35 anos; Aproximadamente 90% dos pacientes em tratamento têm entre 15 e 55 anos, e o início na infância ou após os 60 anos é extremamente raro; Considera-se que a prevalência da doença seja de 1% na população mundial e não parece haver diferença entre classes sociais, áreas urbanas ou rurais, países desenvolvidos ou em desenvolvimento; As pessoas com esquizofrenia têm grande redução em sua expectativa de vida, entre 10 e 20 anos; Estima-se que 10% da mortalidade seja por suicídio; No entanto, a principal causa de excesso de mortalidade nesse grupo são as doenças cardiovasculares; Possivelmente, esse aumento da diferença na expectativa de vida entre a população em geral e as pessoas com esquizofrenia reflete maior exposição a fatores de risco cardiovasculares, como obesidade, tabagismo e diabetes, menor adoção de estilo de vida saudável, como atividade física, e menor acesso aos serviços de saúde; FISIOPATOLOGIA A esquizofrenia abrange pacientes com manifestações clínicas, resposta ao tratamento e curso da doença bastante variados. Sendo assim, nenhum fator etiológico isolado é considerado como causador; O modelo etiológico usado com maior frequência é o modelo de diátese-estresse, segundo o qual o indivíduo que desenvolve esquizofrenia teria uma vulnerabilidade biológica específica (diátese), que, ativada pelo estresse, permitiria o aparecimento dos sintomas; Os fatores estressores podem ser genéticos, biológicos, psicossociais ou ambientais; TEORIA DOPAMINÉRGICA E ALTERAÇÃO DA SALIÊNCIA A formulação da hipótese dopamínica postula que a esquizofrenia resulte de uma atividade dopaminérgica exacerbada; Alteração funcional da transmissão dopaminérgica com liberações de grandes quantidades fora de contexto, o que alteraria um processo cognitivo denominado saliência (a capacidade de atribuir relevância a um objeto ao mudar o foco atencional) – função essencial à sobrevivência e ao convívio social; A liberação excessiva, fora de contexto, levaria a atribuir saliência de forma errática e inadequada; Em contrapartida, não se atribuiria saliência aos estímulos adequados, o que também causaria uma quebra no padrão de comportamento esperado; O bloqueio de receptores dopaminérgicos D2 pelos antipsicóticos impediria o processo de atribuição aberrante de saliência, mas 1) não reverte os processos que causam a liberação excessiva e fora de contexto; 2) não corrige a redução de atribuição de saliência a estímulos esperados; OUTROS NEUROTRANSMISSORES Alterações em vários sistemas de neurotransmissores foram identificadas na esquizofrenia e sugeridas para explicar manifestações específicas da doença; O sistema glutamatérgico tem se destacado por permitir ligar as evidências que indicam alterações do neurodesenvolvimento encontradas na esquizofrenia e a modulação do sistema dopaminérgico; A teoria serotoninérgica postula que existe excesso de liberação de serotonina pelos receptores 5-HT2A e/ou aumento de sua expressão na região cortical, o que causaria liberação subsequente de glutamato; O aumento de glutamato em neurônios projetados para a área tegumentar ventral poderia então hiperativar a via mesolímbica, resultando em excesso de dopamina e, por fim, causando delírios ou alucinações auditivas; TEORIA DO NEURODESENVOLVIMENTO E DA DESCONECTIVIDADE Esquizofrenia Neurodesenvolvimento: a doença estaria associada a uma vulnerabilidade genética que seria afetada pela exposição precoce ou tardia a fatores ambientais de risco, levando a uma trajetória de desenvolvimento cerebral alterada, propiciando não só o início da psicose, mas a sua persistência, associada a outros prejuízos e sintomas identificados na esquizofrenia; Desconectividade: sugere-se que a esquizofrenia seria o resultado de falhas integrativas na conectividade neuronal, mais bem explicada em termos funcionais – como alterações na dinâmica de diferentes regiões corticais que afetam, então, a sua efetividade conectiva – do que em termos estruturais ou anatômicos; FATORES GENÉTICOS Ter um parente de primeiro grau aumenta em 10% a chance de ser afetado. No caso de um gêmeo monozigótico ser afetado, há uma chance de 40 a 50% de o outro também ser; A herdabilidade da esquizofrenia é uma das mais altas entre os transtornos psiquiátricos, com estimativas normalmente em torno de 80%; FATORES AMBIENTAIS Existem fatores de exposição ambiental consistentemente associados à esquizofrenia, como complicações obstétricas, migração, urbanicidade, uso de maconha e exposição a eventos traumáticos; HIPÓTESE INFLAMATÓRIA Variações genéticas no sistema complemento, bem como aumento de citocinas pró-inflamatórias (p. ex., IL-6, TNF-alfa), têm sido identificados em indivíduos com esquizofrenia e naqueles com ultra alto risco para a doença; Exposições pré-natais a agentes infecciosos (p. ex., vírus influenza, Toxoplasma gondii) parecem ativar o sistema imunológico materno e têm sido associadas a aumento do risco para a esquizofrenia na adolescência e na idade adulta; O mecanismo envolvido seria um aumento da sensibilidade a estímulos da micróglia, que, em resposta ao estresse/trauma na infância e adolescência, se tornaria excessivamente ativada. Isso levaria a um excesso de poda sináptica em uma janela crítica do desenvolvimento e que, em um contexto de inflamação persistente, contribuiria para a patologia cortical e o surgimento da esquizofrenia; MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS O quadro clínico da esquizofrenia é bastante polimorfo e heterogêneo. Não há sinal ou sintoma patognomônico da esquizofrenia, e é preciso considerar o nível educacional, a capacidade intelectual e o ambiente cultural do paciente. Além disso, os sintomas podem mudar com a evolução do quadro; PERSONALIDADE PRÉ-MÓRBIDA Os traços mais característicos são retraimento social e emocional, introversão, tendência ao isolamento e comportamento desconfiado e excêntrico; São pessoas de poucos amigos, que apresentavam dificuldades na escola e no relacionamento afetivo com o sexo oposto; Muitas vezes, também não conseguem se adaptar ao trabalho, sendo incapazes de manter vínculo empregatício prolongado; Em alguns casos, podemos observar retrospectivamente características clínicas compatíveis com personalidade esquizoide (frieza emocional, preferência por atividades isoladas, introspecção) ou esquizotípica (comportamento estranho, crenças excêntricas); SINAIS E SINTOMAS O paciente esquizofrênico dificilmente tem crítica de que seu estado é patológico e a ausência de insight frequentemente está relacionada à má adesão ao tratamento; Embora o nível de consciência, a orientação temporoespacial, a memória e a inteligência não estejam diretamente afetados, muitas vezes o paciente tem alterações destas funções psíquicas em decorrência do quadro psicótico que está vivenciando; Aspecto geral: a aparência é, em geral, desleixada, denotando a ausência de cuidados próprios. O comportamento pode tornar-se agitado ou violento, frequentemente em resposta à atividade alucinatória. Nos quadros de catatonia, o paciente pode apresentar posturas bizarras, mutismo, negativismo e obediência automática. Outros comportamentos observados incluem estereotipias, maneirismos, tiques e ecopraxia, na qual o paciente imita a postura ou atitudes adotadas pelo examinador; Afetividade: os sintomas afetivos mais comuns na esquizofrenia são embotamento e inapropriação do afeto. Perplexidade, ambivalência ou instabilidade afetiva também podem ser observadas; Sensopercepção: quaisquer dos sentidos podem ser afetados por experiências alucinatórias nos pacientes esquizofrênicos. As alucinações mais comuns são auditivas, com vozes geralmente ameaçadoras, obscenas ou acusatórias. Duas ou mais vozes podem dialogar entre si ou uma voz pode comentar a vida e as atitudes do paciente. Alucinações cenestésicas são percepções alteradas dos órgãos e do esquema corporal, como sentir o cérebro encolhendo, o fígado se despedaçando ou perceber que roubaram seus ossos. Alucinações visuais, táteis, olfativas e gustativas também podem ocorrer, mas geralmente indicam a presença de uma síndrome psico-orgânica ou de psicose desencadeada por drogas; Pensamento: o delírio é uma das principais alterações do pensamento encontrada em pacientes esquizofrênicos e podem ter conteúdos persecutórios, autorreferentes, religiosos ou grandiosos. O paciente pode acreditar que seus pensamentos ou comportamento são controlados por uma entidade externa, constituindo delírios de influência. O pensamento pode apresentar-se desagregado, com vivências de roubo, intrusão, difusão ou bloqueio. Outras alterações incluem o afrouxamento dos nexos associativos, incoerência e tangencialidade; Linguagem: neologismos e ecolalia podem ser observados, assim como quadros de mutismo. A mussitação é a produção repetitiva de uma voz muito baixa, murmurada, em tom monocórdico, sem significado comunicativo, como se estivesse falando “para si”; DIAGNÓSTICO O diagnóstico da esquizofrenia envolve o reconhecimento de um conjunto de sinais e sintomas associados ao prejuízo social ou ocupacional; O tempo mínimo de sintomas ativos é de um mês, mas o DSM-5 exige um tempo total de prejuízo no funcionamento de seis meses, incluindo a fase prodrômica – anterior ao início do primeiro episódio psicótico – e sintomas residuais. No DSM- 5, exige-se prejuízo claro no funcionamento, enquanto, na CID-11, não; Os subtipos da doença – paranoide, desorganizado/hebefrênico e catatonia – foram retirados de ambas as classificações, sob a justificativa de terem pouca tradução para a clínica, não indicando tratamento ou prognóstico específicos; Atualmente, propõe-se agrupar os sintomas em dimensões, nas quais a intensidade pode variar, não sendo apenas uma questão de apresentar ou não o sintoma, mas de quão intenso ele é; O modelo dimensional mais aceito é composto por cinco dimensões: sintomas positivos, negativos, cognitivos, de desorganização e de humor/ansiedade; A dimensão dos sintomas positivos é composta por delírios (alteração do conteúdo do pensamento) e alucinações (alterações da sensopercepção); Um elemento semiológico essencial seria a presença da vivência delirante primária, ou seja, como o todo do comportamento passa a ser direcionado pela vivência psicótica. Isso implica ir além do conteúdo do delírio, entendendo como as ações do paciente são influenciadas pela psicose no seu dia a dia; A dimensão dos sintomas negativos foi assim chamada como um contraponto à ideia de sintomas resultantes da excitação neuronal, princípio que define o termo “positivo”; Mais diretamente, esses sintomas dizem respeito à ausência de determinados comportamentos esperados, mais notadamente na expressão do afeto e da vontade; O prejuízo na vontade é apontado, em especial, como o principal preditor de prejuízo funcional nas pessoas com esquizofrenia; O consenso do National Institute of Mental Health (NIMH) propôs cinco domínios para os sintomas negativos: alogia, alteração do afeto, associabilidade, avolição e anedonia. São aspectos que devem ser explorados, de preferência, com informações de familiares, pois, muitas vezes, os pacientes não têm crítica da sua condição e minimizam seu impacto; Sobre os sintomas cognitivos, praticamente todos os domínios cognitivos podem ser afetados pela doença. Os principais achados apontam para alterações na atenção, na velocidade de processamento, nas funções executivas e na aprendizagem; Os sintomas de desorganização se manifestam no pensamento, sendo observados principalmente no discurso e no comportamento, este último avaliado durante a entrevista e a partir de relatos de familiares; O elemento central é a falta do encadeamento lógico esperado para a conclusão de um raciocínio ou ação. Às vezes, os pacientes conseguem articular uma lógica intrínseca, mas absurda, o que não deixa de denotar também certa desorganização de conceito; Os sintomas de humor/ansiedade chamam a atenção para o fato de muitas manifestações da doença se associarem a alterações esperadas no conteúdo emocional; Um exemplo simples seria maior ansiedade ou tristeza provocadas pelo fato de o paciente se sentir perseguido, vítima de um complô; Além dos sintomas que acompanham as alterações psicóticas, os pacientes podem evoluir com sintomas depressivos na fase pós-psicótica, quando entram em contato com a crise e suas consequências; Nesses casos, há a descrição do quadro conhecido como depressão pós-psicótica, mais comum em jovens e em pacientes com maior nível educacional; DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Os exames complementares devem ser solicitados de acordo com a avaliação clínica e o exame físico. Em caso de dúvidas, exames toxicológicos para uso de substâncias (sempre informados) podem ser úteis; Excluído que os sintomas sejam secundários ao uso de substâncias ou a uma condição clínica, passa-se ao diagnóstico diferencial entre os transtornos psiquiátricos. Historicamente, esse é o momento de distinguir quadros psicóticos associados a um transtorno do humor dos quadros psicóticos primários; Descartado se tratar de um quadro de humor, passa- se ao diagnóstico diferencial entre os transtornos psicóticos primários; A diferenciação se faz inicialmente pelo tempo: menos de 30 dias – psicose breve; entre um e seis meses – transtorno esquizofreniforme; mais de seis meses – transtorno delirante persistente e esquizofrenia. O transtorno delirante costuma ser mais tardio e de evolução mais favorável; TRATAMENTO e PROGNÓSTICO O tratamento de escolha baseia-se no uso de Antipsicóticos (AP), também chamados de neurolépticos, associado a estratégias psicossociais; Existem duas classes principais: os antipsicóticos típicos ou de primeira geração e os atípicos ou de segunda geração. Uma vez que os AP são igualmente eficazes em doses equivalentes, qualquer uma das drogas pode ser utilizada inicialmente; Os antipsicóticos de primeira geração (APGs) têm em comum uma alta afinidade por receptores D2 e, em relação aos de segunda geração (ASGs), apresentam maior potencial para induzir SEPs (p. ex., tremores, rigidez e bradicinesia), como resultado do bloqueio dopaminérgico em via nigroestriatal; São eficazes no tratamento de sintomas positivos e podem produzir efeitos colaterais, comosintomas parkinsonianos e aumento da prolactina; Entre os AP típicos, encontramos drogas de alta e baixa potência. Os AP de alta potência são mais utilizados, apesar da possibilidade de efeitos extrapiramidais; Por sua vez, os AP de baixa potência são caracteristicamente mais sedativos e costumam ser escolhidos como primeira opção em pacientes que apresentem agitação ou insônia; Os ASGs, por sua vez, têm perfis de ligação muito heterogêneos, envolvendo, também, antagonismo serotonérgico (5-HT2A, principalmente), entre outros mecanismos, e se associam mais frequentemente com maior ganho de peso e alterações metabólicas; Em geral, diretrizes e manuais clínicos dão preferência à prescrição de ASGs, principalmente nos casos de primeiro episódio psicótico, devido a maior risco de aparecimento de SEPs nesses pacientes; Os APGs apresentam menor custo e são as únicas medicações disponíveis em diversos contextos clínicos no Brasil, sendo indicado, nessas situações, o seu uso em doses baixas para reduzir o risco de SEPs; Os AP podem demorar de três a oito semanas para produzir algum efeito. Se não houver resposta satisfatória dos sintomas após este período, deve-se trocar por um neuroléptico de outra classe farmacológica; A medicação deve ser mantida por um mínimo de 6 a 12 meses após a remissão dos sintomas. Nos episódios psicóticos agudos, em que há extrema agitação e agressividade, podem ser utilizados neurolépticos injetáveis (intramuscular), até que a medicação oral atue eficazmente; Quando o paciente apresenta estabilização da sintomatologia, é indicado manter a menor dose possível da medicação, com o mínimo de efeitos colaterais e prevenir recaídas; Nesta fase, é possível utilizar medicações injetáveis de liberação lenta (depot ou de depósito), melhorando a adesão ao tratamento; O tratamento medicamentoso é fundamental para aliviar sintomas e prevenir recaídas, porém, não é suficiente para reestabelecer relacionamentos sociais, manter-se no emprego ou viver de forma independente; Sintomas prodrômicos de ansiedade, perplexidade ou depressão, geralmente, precedem o início do quadro e podem estar presentes por meses antes de ser feito um diagnóstico definitivo; Classicamente, o curso da doença consiste de exacerbações e remissões. A cada recaída segue-se uma deterioração adicional do funcionamento básico do paciente; A vulnerabilidade ao estresse é mantida. Ao longo do quadro, os sintomas positivos mais exuberantes (delírios e alucinações) tendem a diminuir de intensidade, enquanto os sintomas negativos mais residuais (embotamento afetivo e estranhezas do comportamento) podem se tornar mais graves;
Compartilhar