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EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA Programa de Pós-Graduação EAD UNIASSELVI-PÓS Autoria: Kevin Daniel dos Santos Leyser CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Ivan Tesck Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Prof.ª Bárbara Pricila Franz Prof.ª Tathyane Lucas Simão Prof. Ivan Tesck Revisão de Conteúdo: Neivor Schuck Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Copyright © Editora Grupo Uniasselvi 2017 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri Grupo UNIASSELVI – Indaial. 231.044 L685e Leyser, Kevin Daniel dos Santos Epistemologia da teologia / Kevin Daniel dos Santos Leyser. Indaial: UNIASSELVI, 2017. 242 p. : il. ISBN 978-85-69910-60-2 1.Teologia. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. Kevin Daniel dos Santos Leyser Possui graduação em Psicologia com Licenciatura Plena, Bacharelado e Formação pela Universidade Comunitária Regional de Chapecó (2005), em Filosofia com Licenciatura Plena pela Universidade Comunitária Regional de Chapecó (2004), em Teologia com Bacharelado pela Faculdade de Educação Teológica Logos (2002). É especialista em Psicopedagogia e Práticas Pedagógicas e Gestão Escolar pela Faculdade de Administração, Ciências, Educação, Letras (FACEL) (2007). Mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau (FURB) (2011). Trabalha há 11 anos no Ensino Superior, atualmente é professor na FAMEG/ UNIASSELVI em Guaramirim (SC) e no Centro Universitário Leonardo da Vinci/UNIASSELVI em Indaial (SC). Faz parte do grupo de pesquisa em Filosofia da Educação (EDUCOGITANS). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em epistemologia, pragmatismo e educação; na área de Psicologia, com ênfase em psicoterapias fenomenológico-existenciais, processos cognitivos, aprendizagem sócio emocional e educação; na área e Teologia, com ênfase em filosofia e epistemologia da religião. Na EAD, publicou: Filosofia Geral e da Religião; Psicologia Geral e da Religião; Filosofia Política e Ética e Profissão. Sumário APRESENTAÇÃO ......................................................................7 CAPÍTULO 1 Introdução à Epistemologia .................................................9 CAPÍTULO 2 A Epistemologia da Teologia e da Religião .......................53 CAPÍTULO 3 O Conhecimento Religioso e suas Implicações Epistemológicas .....................................................................89 CAPÍTULO 4 Argumentos Cosmológicos da Existência Divina ............125 CAPÍTULO 5 Argumentos Teleológicos da Existência Divina .............163 CAPÍTULO 6 Argumentos Ontológicos da Existência Divina ..............193 CAPÍTULO 7 Problemas do Mal ...............................................................215 APRESENTAÇÃO Caro(a) pós-graduando(a), este livro tem como objetivo sistematizar os elementos básicos da disciplina de Epistemologia da Teologia, o qual proporcionará um contato com os principais tópicos, autores e obras da área, além dos instrumentos necessários, não apenas para acompanhar a disciplina ofertada, mas também para os estudos autônomos posteriores. A epistemologia, em uma perspectiva ampla, pode ser caracterizada como o estudo do conhecimento. Dentro da disciplina da filosofia, a epistemologia é o estudo da natureza do conhecimento e da justificação. Em particular, é o estudo do conhecimento e da justificação em três aspectos: seus componentes definidores, suas condições ou fontes substantivas, e os seus limites. Tem sido comum na epistemologia dar atenção cuidadosa não apenas à epistemologia como empreendimento genérico, mas também explorar detalhadamente a epistemologia de disciplinas acadêmicas específicas. A epistemologia da ciência, por exemplo, recebeu a maior parte do interesse. Mas também se deu atenção à matemática, à história, à estética e à ética. O mandado crucial para esses desenvolvimentos posteriores remonta a Aristóteles quando ele insistiu no que poderíamos chamar de princípio de ajuste epistêmico. Devemos ajustar nossas avaliações epistêmicas de forma apropriada ao assunto sob investigação. Como resultado, não esperamos que as afirmações históricas sejam avaliadas pelo tipo de argumentos que se aplicariam à matemática e às ciências naturais. Surpreendentemente - dada a atenção dirigida a reivindicações teológicas - esta visão não tem sido sistematicamente explorada no caso da teologia. Apesar da riqueza do material disponível tanto na filosofia como na teologia ao longo dos séculos, não tem havido nenhum esforço concertado para articular e examinar o que conta como avaliação epistemológica apropriada em teologia. Por epistemologia da teologia, entendemos uma investigação crítica da desiderata epistêmica apropriada aplicada à teologia. Acreditamos que o tempo está maduro na filosofia e na teologia para tal empreendimento. E estamos convencidos de que há uma grande necessidade para o desenvolvimento desta nova conversa que terá seu lugar natural na interseção da teologia e da filosofia. Este livro se propõe a introduzir esta conversa. No primeiro capítulo introduzimos o objeto de estudo da epistemologia e seus métodos de investigação, identificando os principais problemas e questões que neste campo são comumente levantadas. No segundo capítulo nosso foco foi o de apresentar a epistemologia da teologia ou da religião propriamente dita, descrevendo a relação entre estas áreas de conhecimento. Exploramos aqui questões atuais de debates entre posições distintas como o fideísmo, o evidencialismo e a epistemologia reformada. No terceiro capítulo aprofundamos as implicações epistemológicas do conhecimento religioso, percorrendo questões sobre a razoabilidade da crença religiosa e da própria possibilidade de um conhecimento religioso. O foco aqui foi particularmente na questão da justificação e da racionalidade de tal conhecimento. No quarto, quinto e sexto capítulos, tratamos dos argumentos teístas e antiteístas para a existência divina. Foram abordados os argumentos cosmológicos, teleológicos e ontológicos respectivamente. A proposta foi expor de maneira mais objetiva possível a lógica das argumentações em suas várias formas, iniciais e atuais, e de suas contra- argumentações. Finalmente, no sétimo capítulo, apresentaremos vários argumentos antiteístas, assim como as respostas aos mesmos, ao problema do mal. A proposta aqui, tal como nos três capítulos anteriores mencionados, é de explicitar a maneira como a justificação e a racionalidade de argumentos filosóficos e teológicos podem ser articuladas e permitirem uma análise mais apurada da própria crença religiosa. Este é um dos principais objetivos da epistemologia da teologia ou da religião, nos auxiliar a perceber a justificabilidade e a racionalidade do conhecimento religioso. Aplicar, portanto, a epistemologia à teologia e ao conhecimento religioso é um empreendimento certamente repleto de desafios, mas pleno de possibilidades para um crescimento acadêmico e pessoal. Boa jornada, rumo à edificação acadêmica, profissional e pessoal, e sucesso frente aos desafios intelectuais, éticos e pessoais proporcionados pelo estudo da Epistemologia da Teologia. Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser. CAPÍTULO 1 Introdução à Epistemologia A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: � Compreender o objeto de estudo da epistemologia e seus métodos de investigação.� Identificar os principais problemas e questões levantados pela epistemologia. � Comparar as diferentes abordagens de investigação da epistemologia ao conhecimento humano. � Distinguir as posições epistemológicas quanto ao conhecimento e à justificação. 10 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA 11 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 Contextualização Neste capítulo faremos uma introdução à epistemologia, elucidando seu campo investigativo de modo geral, apresentando as principais abordagens, os temas centrais e os problemas que surgem nesse empreendimento. Tal intro- dução à epistemologia se faz essencial para que você, acadêmico, compreenda o objeto de estudo da epistemologia e seus métodos de investigação, podendo então, posteriormente, identificar a relação entre a epistemologia, a teologia e o conhecimento religioso. A epistemologia, em uma perspectiva ampla, pode ser caracteri- zada como o estudo do conhecimento. Dentro da disciplina da filosofia, a epistemologia é o estudo da natureza do conhecimento e da justi- ficação. Em particular, é o estudo do conhecimento e da justificação em três aspectos: seus componentes definidores, suas condições ou fontes substantivas, e os seus limites. Todavia, para simplificar a série de tarefas com que os epistemólogos se preocupam, podemos classificar em duas categorias. Primeiro, o desafio é determinar o que entendemos por natureza do conhec- imento. Isto é, o que significa dizer que alguém sabe, ou não sabe, alguma coisa. Trata-se de compreender o que é o conhecimento e de distinguir entre casos em que alguém conhece alguma coisa e casos em que alguém não conhece alguma coisa. Embora haja algum consenso geral sobre alguns aspectos desta questão, veremos que este tema é muito mais difícil do que se poderia imaginar. Em segundo lugar, devemos determinar a extensão do conhecimento huma- no. Isto é, quanto nós conhecemos ou podemos conhecer? Como podemos usar nossa razão, nossos sentidos, o testemunho de outras pessoas e outros recursos para adquirir conhecimento? Há limites para o que podemos conhecer? Por exem- plo, existem algumas coisas que não podem ser conhecidas? É possível que nós não conheçamos o tanto quanto nós pensamos que conhecemos? Deveríamos ter uma preocupação legítima sobre o ceticismo, a visão de que não conhecemos ou não podemos conhecer absolutamente nada? A epistemologia é o estudo da natureza do conhecimento e da justificação. 12 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA Murilo Ferraz e Marcos Carvalho Lopes recebem Alexandre Meyer Luz, Doutor em Filosofia pela PUC do Rio Grande do Sul, professor e coordenador do programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina para falar sobre Epistemologia. Veja a entrevista no site: <http://filosofiapop.com.br/ podcast/filosofia-pop-034-epistemologia/>. Tipos de Conhecimento O termo "epistemologia" vem do grego episteme, que significa "conhecimento", e do termo logos, que significa, aproximadamente, "palavra escrita ou falada, razão ou explicação". Logos é utilizada como a raiz de termos como psicologia, antropologia, teologia e lógica, e tem muitos outros significados relacionados, mas nestes contextos indica um âmbito do saber racional (NORRIS, 2007; FUMERTON, 2014). A palavra "conhecimento" e seus cognatos são usados de diversas maneiras. Um uso comum da palavra "conhecimento" é como uma expressão de convicção psicológica. Por exemplo, podemos ouvir alguém dizer: "Eu simplesmente sabia que não iria chover, mas depois choveu." Embora isso possa ser um uso apropriado, filósofos tendem a usar a palavra "conhecer" em um sentido factivo, de modo que não se pode conhecer algo que não é o caso. Veremos mais sobre este aspecto no decorrer deste capítulo. Mesmo se nos restringirmos a usos factivos, ainda existem múltiplos sentidos de "conhecimento", e por isso precisamos distinguir entre eles. Assim, o conhecimento pode ser explícito ou tácito. O conhecimento explícito é autoconsciente, na medida em que o conhecedor está consciente do estado de conhecimento relevante, enquanto o conhecimento tácito é implícito, escondido da autoconsciência. Muito do nosso conhecimento é tácito: é genuíno, mas desconhecemos os estados de conhecimento relevantes, mesmo que possamos alcançar a consciência através de uma reflexão adequada (BOMBASSARO, 1992). Nesse sentido, o conhecimento se assemelha a muitos de nossos estados psicológicos. A existência de um estado psicológico em uma pessoa não requer a consciência da pessoa desse estado, embora possa exigir a consciência da pessoa de um objeto desse estado (como o que é sentido ou percebido). 13 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 Outro tipo de conhecimento é o “conhecimento procedural”, às vezes chamado de competência, habilidade ou conhecimento de saber-como (know- how). Por exemplo, pode-se saber como andar de bicicleta, ou pode-se saber dirigir de Florianópolis a São Paulo. Outro tipo de conhecimento é conhecimento de trato ou familiaridade, que é um conhecimento adquirido de forma direta sem necessidade de justificativas (OLIVA, 1990). Por exemplo, pode-se dizer que se conhece alguma pessoa, ou alguma coisa por estar familiarizado com ela. Os epistemólogos normalmente não se concentram no conhecimento procedural ou de familiaridade, no entanto, em vez disso, preferem se concentrar no “conhecimento proposicional” (CHISHOLM, 1974). Uma proposição é algo que pode ser expresso por uma sentença declarativa, e que pretende descrever um fato ou estado de coisas, como "cães são mamíferos", "2 + 2 = 7", "é errado assassinar pessoas inocentes por diversão". Observe que uma proposição pode ser verdadeira ou falsa, ou seja, não precisa realmente expressar um fato. O conhecimento proposicional, então, pode ser chamado de “conhecimento-que”. Declarações de conhecimento proposicional (ou a falta deste) são adequadamente expressas usando sentenças "que", tais como "ele sabe que Florianópolis está em Santa Catarina" ou "ela não sabe que a raiz quadrada de 9 é 3". No que se segue, estaremos preocupados apenas com o conhecimento proposicional. O conhecimento proposicional, obviamente, abrange conhecimentos sobre uma ampla gama de assuntos: conhecimento científico, conhecimento geográfico, conhecimento matemático, autoconhecimento e o conhecimento sobre qualquer campo de estudo, como veremos no decorrer deste livro, especificamente sobre o campo teológico e religioso. Qualquer verdade pode, em princípio, ser cognoscível, embora possa haver verdades incognoscíveis. Um dos objetivos da epistemologia é determinar os critérios de conhecimento para que possamos saber o que pode ou não ser conhecido, ou seja, o estudo da epistemologia inclui fundamentalmente o estudo da metaepistemologia (o que podemos conhecer sobre o próprio conhecimento). Uma proposição é algo que pode ser expresso por uma sentença declarativa, e que pretende descrever um fato ou estado de coisas. 14 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA O conhecimento não empírico ou a priori é possível independentemente ou antes de qualquer experiência e requer apenas o uso da razão A metaepistemologia é, grosso modo, o ramo da epistemologia que faz perguntas sobre questões epistemológicas de primeira ordem. Investiga aspectos fundamentais da teorização epistêmica como metafísica, epistemologia, semântica, agência, psicologia, responsabilidade, razões para a crença e além. Assim, se, como tradicionalmente concebido, epistemologia é a teoria do conhecimento, a metaepistemologia é a teoria da teoria do conhecimento (KYRIACOU, 2016). Podemos também distinguir entre diferentes tipos de conhecimento propo- sicional, com base na fonte desse conhecimento. O conhecimento não empírico ou a priori é possível independentemente ou antes de qualquer experiência e requer apenas o uso da razão.Exemplos incluem o co- nhecimento de verdades lógicas tais como a lei da não contradição, bem como o conhecimento de reivindicações abstratas (tais como reivindica- ções éticas ou reivindicações sobre vários assuntos conceituais). O co- nhecimento empírico ou a posteriori só é possível depois, ou posterior, a certas experiências sensoriais (além do uso da razão). Os exemplos incluem o conhecimento da cor ou forma de um objeto físico ou o conhe- cimento de locais geográficos (GRECO; SOSA, 2008). Podemos dizer que uma preocupação primordial da filosofia moderna clássica, nos séculos XVII e XVIII, era a extensão do nosso conhecimento a priori relativo à extensão do nosso conhecimento a posteriori. Racionalistas como Descartes, Leibniz e Spinoza sustenta- vam que todo conhecimento genuíno do mundo real é a priori (HUENE- MANN, 2012), enquanto que empiristas como Locke, Berkeley e Hume argumentavam que todo esse conhecimento é a posteriori (MEYERS, 2017). Em sua Crítica da Razão Pura de 1781, Kant (2001) buscou uma grande reconciliação, com o objetivo de preservar as principais lições do racionalismo e do empirismo. Desde os séculos XVII e XVIII, o conhecimento a posteriori tem sido am- plamente considerado um conhecimento que depende, para o seu sustento, de alguma experiência sensorial ou perceptual específica. E o conhecimento a priori tem sido amplamente considerado como um conhecimento que não depende do seu fundamento em tal experiência (BONJOUR; BAKER, 2010). Kant (2001) e O conhecimento empírico ou a posteriori só é possível depois, ou posterior, a certas experiências sensoriais (além do uso da razão 15 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 outros sustentam que o fundamento para o conhecimento a priori vem unicamente de processos puramente intelectuais chamados de "razão pura" ou "entendimen- to puro". O conhecimento de verdades lógicas e matemáticas serve tipicamente como um caso padrão de conhecimento a priori, enquanto que o conhecimento da existência ou presença de objetos físicos serve tipicamente como um caso padrão de conhecimento a posteriori. Uma tarefa importante para uma explicação do conhecimento a priori é a explicação de quais são os processos puramente intelectuais relevantes e de como eles contribuem para o conhecimento não empírico. Uma tarefa análoga para uma explicação do conhecimento a posteriori é a explicação do que é a ex- periência sensorial ou perceptual e como ela contribui para o conhecimento empí- rico. Mais fundamentalmente, os epistemólogos têm buscado uma explicação do conhecimento proposicional em geral, isto é, uma explicação do que é comum ao conhecimento a priori e a posteriori. Podemos também distinguir o conhecimento entre conhecimento individual e conhecimento coletivo. A Epistemologia Social é o subcampo da epistemologia que aborda a maneira como grupos, instituições ou outros corpos coletivos podem adquirir conhecimento. Pesquise mais sobre a Epistemologia Social começando pela leitura da obra “Epistemologia Social: dimensão social do conhecimento” (MÜLLER; RODRIGUES, 2013). Veja na lista de referências deste livro o link para acessar o E-book. A Natureza do Conhecimento Proposicional Tendo limitado nosso foco ao conhecimento proposicional, devemos nos perguntar o que, exatamente, constitui o conhecimento. O que significa alguém saber alguma coisa? Qual é a diferença entre alguém que sabe alguma coisa e alguém que não sabe, ou entre algo que se sabe e algo que não se sabe? Uma vez que o alcance do conhecimento é tão amplo, precisamos de uma caracterização geral do conhecimento, que seja aplicável a qualquer tipo de proposição. 16 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA Desde o Mênon e o Teeteto de Platão (2001a, 2001b), epistemólogos têm tentado identificar os componentes essenciais, definidores do conhecimento. A identificação desses componentes proporcionará uma análise do conhecimento. Uma visão tradicional proeminente, sugerida por Platão e Kant, entre outros, é que o conhecimento proposicional (de que algo é assim) tem três componentes individualmente necessários e conjuntamente suficientes: crença, verdade e justificação. Nesta visão, o conhecimento proposicional é, por definição, uma crença verdadeira justificada. Esta é a definição tripartida que passou a ser chamada de análise padrão. Podemos esclarecê-la atendendo brevemente a cada uma de suas três condições. O conhecimento proposicional (de que algo é assim) tem três componentes individualmente necessários e conjuntamente suficientes: crença, verdade e justificação Atividades de Estudos: 1) Entre os diferentes tipos de conhecimento, vimos que o proposicional é o alvo principal das investigações epistemológicas. Sintetize a definição tradicional de conhecimento proposicional. _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ a) A Condição de Crença Comecemos com a observação de que o conhecimento é um estado mental. Isto é, o conhecimento existe na mente de alguém, e as coisas não pensantes não podem conhecer nada. Além disso, o conhecimento é um tipo específico de estado mental (NORRIS, 2007). Embora as sentenças "que" também possam ser usadas para descrever desejos e intenções, estas, de acordo com a análise padrão, não poderiam constituir conhecimento. Em vez disso, o conhecimento é uma espécie de crença. Se alguém não tem crenças sobre algo em particular, não se pode ter conhecimento sobre isso. Por exemplo, suponha que eu deseje que me seja dado um aumento salarial, e que eu pretendo fazer o que eu possa para ganhar. Suponhamos, além disso, 17 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 que eu duvide que realmente me seja dado um aumento, devido à complexidade do orçamento da empresa onde trabalho. Dado que eu não acredito que vai ser me dado um aumento, não se pode dizer que eu sei que vou receber o aumento. Só se eu estiver inclinado a acreditar em alguma coisa, posso conhecê-la. Da mesma forma, os pensamentos que um indivíduo nunca tenha pensado não estão entre suas crenças, e, portanto, não podem ser incluídos em seu corpo de conhecimento. Deste modo, a condição de crença exige que qualquer pessoa que saiba que p (onde “p” representa qualquer proposição ou declaração) deve acreditar que p. Se, portanto, você não acredita que as mentes são cérebros (digamos, porque você nunca chegou a considerar o assunto), então você não sabe que as mentes são cérebros. Um conhecedor deve estar psicologicamente relacionado de alguma forma a uma proposição que é objeto de conhecimento para aquele conhecedor. Os defensores da análise padrão sustentam que somente a crença pode fornecer a relação psicológica necessária (MIGUENS, 2009). Os filósofos não compartilham uma explicação uniforme da crença, mas algumas considerações fornecem um terreno comum. As crenças não são ações de assentimento para uma proposição. Elas são estados psicológicos disposicionais que podem existir mesmo quando não manifestados (BONJOUR; BAKER, 2010). Por exemplo, você não deixa de acreditar que 2+2=4 sempre que sua atenção deixa a aritmética. Nossa crença que p parece exigir que tenhamos uma tendência para assentir a p em certas situações, mas parece também ser mais do que apenas essa tendência. O que mais a crença requer continua muito controverso entre os filósofos. Alguns filósofos, como Radford (1966), Schwitzgebel (2015), Rose e Schaffer (2013), opuseram-se à condição de crença da análise padrão com base no fato de que podemos aceitar ou assentir a uma proposição conhecida sem realmente acreditar nela. Eles afirmam que podemos aceitar uma proposição mesmo que não consigamos adquiriruma tendência, exigida pela crença, de aceitar essa proposição em determinadas situações. Nesta visão, a aceitação é um ato psicológico que não envolve qualquer estado psicológico disposicional, e tal aceitação é suficiente para relacionar psicologicamente um conhecedor a uma proposição conhecida (RODRIGUES, 2013). Independente do desempenho deste ponto de vista, uma suposição subjacente da análise padrão parece correta: nosso conceito de conhecimento requer que um conhecedor esteja de alguma forma psicologicamente relacionado a uma proposição conhecida (SMITH; SILVA FILHO, 2005; LANDESMAN, 2006; BRADLEY, 2015). Salvo essa exigência, encontraremos dificuldades para explicar como os conhecedores possuem psicologicamente seu conhecimento de proposições conhecidas. A condição de crença exige que qualquer pessoa que saiba que p (onde “p” representa qualquer proposição ou declaração) deve acreditar que p. Nosso conceito de conhecimento requer que um conhecedor esteja de alguma forma psicologicamente relacionado a uma proposição conhecida 18 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA Mesmo se o conhecimento requer crença, a crença que p não requer conhecimento que p, uma vez que a crença geralmente pode ser falsa. Esta observação, familiar ao Teeteto de Platão (2001b), supõe que o conhecimento tem uma condição de verdade. Na análise padrão, se você sabe que p, então é verdade que p. Se, portanto, é falso que as mentes são cérebros, então você não sabe que as mentes são cérebros. É, portanto, enganoso dizer, por exemplo, que os astrônomos antes de Copérnico sabiam que a Terra é plana. Na melhor das hipóteses, eles acreditavam justificadamente que eles sabiam disso. Além disso, podemos observar que algumas crenças, aquelas que o indivíduo ativamente processa, são chamadas de crenças ocorrentes. A maioria das crenças de um indivíduo são não ocorrentes. Estas são crenças que o indivíduo tem como plano de fundo, mas não são alvo de atenção em um determinado momento. Correspondentemente, a maioria de nosso conhecimento é não ocorrente. Apenas uma pequena quantidade do nosso conhecimento está sempre ativamente em nossa mente (EYSENCK; KEANE, 2017). b) A Condição de Verdade O conhecimento, então, requer crença. Naturalmente, nem todas as crenças constituem conhecimento. A crença é necessária, mas não suficiente para o conhecimento. Todos nós, às vezes, nos enganamos no que cremos. Em outras palavras, enquanto algumas de nossas crenças são verdadeiras, outras são falsas. À medida que tentamos adquirir conhecimento, então, estamos tentando aumentar nosso estoque de crenças verdadeiras, minimizando ao mesmo tempo nossas crenças falsas. Esta condição de verdade da análise padrão não atraiu para si nenhum desafio sério. A controvérsia sobre ela se concentrou, em vez disso, na pergunta veemente de Pilatos: “O que é a verdade?” (BÍBLIA, João, 18, 38). Esta questão diz respeito sobre o que a verdade consiste e não sobre o nosso modo de descobrir o que é verdadeiro. As respostas influentes provêm de, pelo menos, três abordagens: a verdade como correspondência (ou seja, o acordo, de algum tipo especificado, entre uma proposição e uma situação real); a verdade como coerência (isto é, a interconexão de uma proposição com um sistema especificado de proposições); e a verdade como valor cognitivo pragmático (ou seja, a utilidade de uma proposição para atingir certos objetivos intelectuais) (KIRHAM, 2003). Sem avaliar essas abordagens proeminentes, devemos reconhecer, de acordo com a análise padrão, que nosso conceito de conhecimento parece ter uma exigência factual: sabemos genuinamente que p somente se é o caso que p. A noção pertinente de "ser o caso" parece equivalente à noção de "como a realidade é" ou "como as coisas realmente são". Esta última noção parece essencial à nossa noção de conhecimento, mas está aberta à controvérsia sobre sua explicação. Nosso conceito de conhecimento parece ter uma exigência factual: sabemos genuinamente que p somente se é o caso que p. 19 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 Podemos dizer, então, que o propósito mais típico das crenças é descrever ou apreender a maneira como as coisas realmente são. Isto é, quando se forma uma crença busca-se uma correspondência entre a mente de alguém e o mundo (BLACKBURN, 2006). Às vezes, é claro, formamos crenças por outras razões – criar uma atitude positiva, enganar a nós mesmos, e assim por diante –, mas quando buscamos o conhecimento, estamos tentando fazer as coisas de um modo específico. Contudo, às vezes não conseguimos alcançar tal correspondência. Algumas de nossas crenças não descrevem a maneira como as coisas realmente são. Observe que estamos assumindo aqui que existe uma coisa como a verdade objetiva, de modo que é possível que as crenças correspondam ou não correspondam à realidade. Ou seja, para que alguém conheça algo deve haver algo sobre o qual se conheça. Lembre-se de que estamos discutindo conhecimento no sentido factivo. Se não há fatos da matéria, então não há nada para conhecer (ou para deixar de conhecer). Esta suposição não é universalmente aceita (DUTRA, 2001), em particular, não é compartilhada por alguns defensores do relativismo, mas isso não será abordado neste momento. Contudo, podemos dizer que a verdade é uma condição do conhecimento. Isto é, se uma crença não é verdadeira, ela não pode constituir conhecimento. Por conseguinte, se não há tal coisa como verdade, então não poderá haver conhecimento. Mesmo que haja tal coisa como verdade, se existe um domínio no qual não há verdades, então não pode haver conhecimento dentro desse domínio. Por exemplo, se a beleza está no “olhar do espectador”, então a crença de que algo é bonito não pode ser verdadeira ou falsa e, portanto, não pode constituir conhecimento. c) A Condição de Justificação O conhecimento, então, requer crença factual. No entanto, isso não basta para apreender a natureza do conhecimento. Assim como o conhecimento requer alcançar com êxito o objetivo da crença verdadeira, também requer sucesso em relação à formação dessa crença. Em outras palavras, “nem todas as crenças verdadeiras constituem conhecimento” (O’HEAR, 1997, p. 46). Somente as crenças verdadeiras a que chegamos de maneira correta constituem conhecimento. Qual é, então, o caminho certo para chegar às crenças? Além da verdade, quais outras propriedades uma crença deve ter para constituir o conhecimento? Podemos começar observando que o raciocínio sadio e a evidência sólida parecem ser a maneira de adquirir o conhecimento. Em contrapartida, um palpite de sorte não pode constituir conhecimento. Da mesma forma, a desinformação e o raciocínio falho não parecem uma receita para o conhecimento, mesmo se eles levam a uma crença verdadeira. Diz-se que uma crença é justificada se for obtida da maneira correta (NORRIS, 2007). Embora a justificação pareça, à primeira Nem todas as crenças verdadeiras constituem conhecimento” (O’HEAR, 1997, p. 46). Somente as crenças verdadeiras a que chegamos de maneira correta constituem conhecimento. 20 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA vista, ser uma questão de uma crença estar baseada na evidência e no raciocínio, e não na sorte ou na desinformação, veremos que há muito desacordo quanto à forma de especificar os detalhes. A exigência de que o conhecimento envolva justificação não significa necessariamente que o conhecimento requer certeza absoluta. Os seres humanos são seres falíveis, e o falibilismo é a visão de que é possível ter conhecimento mesmo quando a crença verdadeira de alguém venha a ser confirmada como falsa (RODRIGUES, 2013). Entre as crenças que são necessariamente verdadeiras e aquelas que são verdadeiras unicamente pela sorte encontra-se um espectro de crenças com relação ao qual nós temos alguma razão revogável para acreditar que elas sejam verdadeiras.Por exemplo, se eu ouvi o meteorologista dizer que há uma chance de 90% de chuva, e como resultado eu formo a crença de que vai chover, então a minha crença verdadeira de que iria chover não era verdadeira puramente por sorte. Mesmo que houvesse alguma chance de que minha crença pudesse ter sido falsa, havia uma base suficiente para que essa crença constituísse o conhecimento. Esta base é referida como a justificação para essa crença. Podemos então dizer que, para constituir conhecimento, uma crença deve ser verdadeira e justificada. Observe que por causa da sorte, uma crença pode ser injustificada, mas verdadeira. E por causa da falibilidade humana, uma crença pode ser justificada, mas falsa (GRECO; SOSA, 2008). Em outras palavras, a verdade e a justificação são duas condições independentes das crenças. O fato de uma crença ser verdadeira não nos diz se ela é ou não justificada. Isso depende de como chegamos a esta crença. Assim, duas pessoas podem ter a mesma crença verdadeira, mas por razões diferentes, de modo que uma delas é justificada e a outra é injustificada. Da mesma forma, o fato de que uma crença é justificada não nos diz se é verdadeira ou falsa. É claro que uma crença justificada presumivelmente será mais provável de ser verdadeira do que falsa, e crenças justificadas presumivelmente serão mais prováveis de serem verdadeiras do que crenças injustificadas (GOLDMAN, 1979). Como veremos mais adiante neste capítulo, a natureza exata da relação entre verdade e justificação é contenciosa. Deste modo, podemos afirmar que o conhecimento não é simplesmente crença verdadeira. Como vimos, algumas crenças verdadeiras são apoiadas apenas por conjecturas com sorte e, portanto, não se qualificam como conhecimento. O conhecimento requer que a satisfação de sua condição de crença seja "apropriadamente relacionada" à satisfação de sua condição de verdade. Esta é uma maneira ampla de entender a condição de justificação da análise padrão. Mais especificamente, poderíamos dizer que um conhecedor Algumas crenças verdadeiras são apoiadas apenas por conjecturas com sorte e, portanto, não se qualificam como conhecimento. O conhecimento requer que a satisfação de sua condição de crença seja “apropriadamente relacionada” à satisfação de sua condição de verdade 21 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 deve ter indicação adequada de que uma proposição conhecida é verdadeira (NORRIS, 2007). Se entendemos tal indicação adequada como uma espécie de evidência que indica que uma proposição é verdadeira, alcançamos a visão geral tradicional da condição de justificação: a justificação como evidência. As perguntas sobre a justificação atraem a maior parte da atenção na epistemologia contemporânea. A controvérsia centra-se no significado de "justificação", bem como nas condições substantivas para uma crença ser justificada de uma forma apropriada ao conhecimento. Os debates atuais sobre o significado da "justificação" giram em torno da questão de saber se (e se assim for, como) o conceito de justificação epistêmica (relevante ao conhecimento) é normativo. Desde os anos 50, Roderick Chisholm (1974) defendeu uma noção de justificação deontológica (orientada à obrigação/ dever). Podemos sintetizar essa noção na afirmação de que se uma proposição, p, é epistemicamente justificada para você, significa que é falso que você deva abster-se de aceitar p. Em outros termos, dizer que p é epistemicamente justificado é dizer que aceitar p é epistemicamente permissível – pelo menos no sentido de que aceitar p é consistente com certo conjunto de regras epistêmicas. Essa interpretação deontológica goza de ampla representação na epistemologia contemporânea. Uma concepção normativa da justificação não precisa ser deontológica. Não precisa usar as noções de obrigação e permissão. Alston (1989, 2008), por exemplo, introduziu um conceito normativo não deontológico de justificação que se baseia principalmente na noção do que é epistemicamente bom do ponto de vista de maximizar a verdade e minimizar a falsidade. Alston vincula a bondade epistêmica a uma crença sendo baseada em fundamentos adequados na ausência de razões imperativas que sejam contrárias. Alguns epistemólogos esquivam-se das interpretações normativas da justificação considerando-as supérfluas. Um ponto de vista digno de nota é que "justificação epistêmica" significa simplesmente "suporte evidencial" de um certo tipo. Dizer que p é epistemicamente justificável até certo ponto para você é, nesta visão, apenas dizer que p é suportável em certa medida pelas suas razões evidenciais. Essa concepção não será normativa desde que as noções de suportabilidade e de razão evidencial sejam não normativas (CONEE; FELDMAN, 2004). Alguns filósofos tentaram explicar estas últimas noções sem depender dos relatos de permissibilidade epistêmica ou de bondade epistêmica. Podemos entender a noção relevante de "suporte" em termos de noções não normativas de vinculação e explicação (ou, respondendo questões de “por quê”). Podemos entender a noção de uma "razão evidencial" através da noção de um estado psicológico que pode estar em uma certa relação de suporte indicadora de verdade às proposições (CARRILHO, 1991; Podemos entender a noção de uma “razão evidencial” através da noção de um estado psicológico que pode estar em uma certa relação de suporte indicadora de verdade às proposições 22 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA OLIVA, 2011). Por exemplo, podemos considerar os estados não doxásticos de "parecendo perceber" algo em virtude desses estados serem melhor explicados por essas proposições. Se algo parecido com essa abordagem conseguir ser bem-sucedido, poderíamos prosseguir sem as noções normativas de justificação epistêmica mencionadas anteriormente. Estados doxásticos e não doxásticos. Alberto Oliva (2011, p. 51- 52) esclarece: O processo de justificação só pode ser dado por con- cluído quando a evidência é conclusiva quando é impossível para p ser falsa, dada a evidência e. O critério negativista, socrático, que se devota a descartar crenças injustificadas ou mal justificadas é insuficiente porque não pode ficar adstrito à atividade de eliminar o pseudoconhecimento. Na busca de uma teoria positiva da justificação, duas modalidades de fonte de justificação são identificáveis: 1) a doxástica, aquela em que para se justificar uma crença se recorre a outra crença ou conjunto de crenças; e 2) a não doxástica, aquela em que não se recorre a outra(s) crença(s) para se justificar determinadas crenças. [...] São doxásticas as razões que promovem a justifi- cação de uma crença com base em outra(s), e não doxásticas quando se apoiam em registros perceptuais ou em intuições racionais. Atividades de Estudos: 1) Acabamos de ver as três condições para o conhecimento proposicional como apresentado pela análise padrão ou teoria tripartida do conhecimento. Descreva as características de cada condição: crença, verdade e justificação. E comente algumas dificuldades e desafios que as mesmas fazem emergir em sua investigação. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ __________________________________________________ 23 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 O Problema de Gettier Por algum tempo, a teoria da crença verdadeira justificada foi amplamente aceita como apreendendo a natureza do conhecimento. No entanto, em 1963, Edmund Gettier publicou um artigo curto, mas amplamente influente, que deu forma a muitos trabalhos subsequentes na epistemologia. Gettier (1963) forneceu dois exemplos em que alguém tinha uma crença verdadeira e justificada, mas nos quais parece negar que o indivíduo tenha de fato conhecimento, porque a sorte ainda parece desempenhar um papel para que a sua crençatenha um resultado de ser verdadeira. Considere um exemplo. Suponha que o relógio da faculdade (que mantém as horas de modo preciso) parou de funcionar às 11h50min da noite passada, e ainda não foi reparado. No meu caminho para a minha aula do meio-dia, exatamente doze horas depois, eu olho para o relógio e formo a crença de que são 11h50min. Minha crença é verdadeira, claro, desde que o horário seja de fato 11h50min. E minha crença é justificada, pois não tenho nenhuma razão para duvidar de que o relógio esteja funcionando, e não posso ser culpado por basear minhas crenças sobre o horário do relógio. No entanto, parece evidente que eu não sei que o horário é 11h50min. Afinal, se eu tivesse passado pelo relógio um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, eu teria acabado formando uma crença falsa, em vez de uma verdadeira. Este exemplo, embora talvez um tanto exagerado, parece mostrar que é possível que a crença verdadeira justificada não consiga constituir conhecimento. Em outras palavras, a condição de justificação destinava- se a assegurar que o conhecimento se baseasse em evidências sólidas e não em sorte ou desinformação, mas os exemplos de tipo Gettier parecem mostrar que a crença verdadeira justificada pode ainda envolver sorte e, assim, ficar aquém do conhecimento. Esse problema é referido como "o problema de Gettier". Para resolver esse problema, devemos mostrar que todos os casos de crença verdadeira justificada realmente constituem conhecimento ou, ao contrário, refinar nossa análise do conhecimento. Portanto, os contraexemplos tipo Gettier são casos em que uma pessoa justificou a crença verdadeira que p mas não tem conhecimento de que p. O problema de Gettier é o problema de encontrar uma modificação ou uma alternativa para a análise padrão que evita dificuldades de contraexemplos tipo Gettier. A controvérsia sobre o problema de Gettier é altamente complexa e ainda não resolvida. Muitos epistemólogos consideram a lição dos contraexemplos estilo Gettier que o conhecimento proposicional requer uma quarta condição, além da justificação, da verdade e das condições de crença. Nenhuma quarta condição específica recebeu aceitação esmagadora, mas algumas propostas tornaram-se proeminentes. Vejamos a seguir um pouco dessas propostas para uma condição adicional à análise padrão do conhecimento. Os exemplos de tipo Gettier parecem mostrar que a crença verdadeira justificada pode ainda envolver sorte e, assim, ficar aquém do conhecimento 24 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA Assista ao vídeo de Alexandre Meyer Luz sobre a definição de conhecimento, respondendo à pergunta: O que é conhecer algo? Este vídeo está disponibilizado no site: <https://www.youtube.com/ watch?v=0X8g6LOvsig>. a) A Condição de Nenhuma Crença Falsa Podemos pensar que existe uma solução simples e direta para o problema Gettier. Observe que meu raciocínio foi tacitamente baseado na minha crença de que o relógio está funcionando corretamente, e que essa crença é falsa. Isso parece explicar o que deu errado neste exemplo. Consequentemente, poderíamos revisar nossa análise do conhecimento, insistindo que, para constituir conhecimento, uma crença deve ser verdadeira e justificada e deve ser formada sem depender de crenças falsas. Em outras palavras, poderíamos dizer que a justificação, a verdade e a crença são todas necessárias para o conhecimento, mas elas não são conjuntamente suficientes para o conhecimento. Há uma quarta condição, ou seja, que nenhuma crença falsa esteja essencialmente envolvida no raciocínio que levou à crença, o que também é necessário (BONJOUR; BAKER, 2010). Infelizmente, isso não basta. Podemos modificar o exemplo para que minha crença seja justificada e verdadeira, e não se baseie em crenças falsas, mas ainda fica aquém do conhecimento. Tomemos o exemplo de Gettier, supracitado, e o adaptemos a essa nova condição. Neste caso, suponha que eu não tenha nenhuma crença sobre o estado atual do relógio, mas apenas a crença mais geral de que o relógio geralmente está em funcionamento. Esta crença, que é verdadeira, bastaria para justificar minha crença de que o horário é agora 11h50min. É claro, ainda parece evidente que eu não sei o horário. b) A Condição da Ausência de Derrotadores Epistêmicos A condição de nenhuma crença falsa não parece estar completamente equivocada. Talvez possamos acrescentar alguma outra condição à justificação e à verdade para produzir uma correta caracterização do conhecimento. Observe que, mesmo que eu não tenha ativamente formado a crença de que o relógio está funcionando corretamente, parece estar implícito no meu raciocínio, e o fato de que é falso é certamente relevante para o problema. Afinal, se me perguntassem, no momento em que olhei para o relógio, se ele está funcionando corretamente, eu teria dito que sim. Por outro lado, se eu acreditasse que o relógio não estava Uma crença deve ser verdadeira e justificada e deve ser formada sem depender de crenças falsas 25 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 funcionando corretamente, eu não estaria justificado em formar uma crença sobre o tempo baseado no que o relógio diz. Em outras palavras, a proposição de que o relógio está funcionando corretamente agora reúne as seguintes condições: é uma proposição falsa, eu não percebo que é uma proposição falsa, e se eu tivesse percebido que é uma proposição falsa, minha justificação para a minha crença de que é 11h50min teria sido anulada ou derrotada. Se denominarmos proposições como essas de "derrotadores epistêmicos", então podemos dizer que para constituir o conhecimento, uma crença deve ser verdadeira e justificada, e não deve haver qualquer derrotador epistêmico para a justificação dessa crença (OLIVEIRA, 2016). Muitos epistemólogos acreditam que esta análise está correta. c) Explicações Causais do Conhecimento Em vez de modificar a explicação da crença verdadeira justificada do conhecimento, adicionando uma quarta condição, alguns epistemólogos veem o problema de Gettier como motivo para buscar uma alternativa substancialmente diferente. Já observamos que o conhecimento não deve envolver sorte, e que os exemplos de tipo Gettier são aqueles em que a sorte desempenha algum papel na formação de uma crença verdadeira justificada. Em casos típicos de conhecimento, os fatores responsáveis por justificar uma crença também são responsáveis pela verdade desta crença (GOLDMAN, 1967). Por exemplo, quando o relógio está funcionando corretamente, minha crença é verdadeira e justificada porque é baseada no relógio, que exibe com precisão o tempo. Mas uma característica que todos os exemplos do tipo Gettier têm em comum é a falta de uma conexão clara entre a verdade e a justificação da crença em questão. Por exemplo, a minha crença de que o horário é 11h50min é justificada porque é baseada no relógio, mas é verdade porque eu passei por ele no momento certo. Assim, podemos insistir que para constituir conhecimento, uma crença deve ser verdadeira e justificada, e sua verdade e justificação devem estar conectadas de alguma forma. Essa noção de conexão entre a verdade e a justificação de uma crença se torna difícil de formular com precisão, mas as explicações causais do conhecimento procuram apreender o espírito dessa proposta alterando mais significativamente a análise do conhecimento (NORRIS, 2007). Essas explicações sustentam que, para que alguém conheça uma proposição, deve haver uma conexão causal entre sua crença nessa proposição e o fato que a proposição encapsula. Isso mantém a condição de verdade, uma vez que uma proposição deve ser verdadeira para que ela possa encapsular um fato. No entanto, parece Para constituir o conhecimento, uma crença deve ser verdadeira e justificada, e não deve haver qualquer derrotador epistêmico para a justificação dessa crença Para constituir conhecimento, uma crença deve serverdadeira e justificada, e sua verdade e justificação devem estar conectadas de alguma forma. 26 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA ser incompatível com o falibilismo, uma vez que não permite a possibilidade de que uma crença seja justificada, mas falsa. Estritamente falando, as explicações causais do conhecimento não fazem referência à justificação, embora possamos tentar reformular o falibilismo para fazer essa observação. Collier demonstra isso em sua crítica ao artigo de Alvin Goldman (1967), no qual Goldman apresenta a sua teoria causal do conhecimento. Kenneth Collier (1973) encontrou uma lacuna na teoria causal do conhecimento elaborando um contraexemplo. O autor argumenta (COLLIER, 1973), suponha que um sujeito tenha sido, sem que ele soubesse, tratado com uma droga alucinógena. Se o alucinógeno fizer o sujeito pensar que ele está sendo drogado, então (de acordo com a teoria causal) o sujeito sabe que ele está sendo drogado. Collier sustenta que essa é uma conclusão inaceitável, e que alucinações desse tipo, ou "alucinações verídicas", não é conhecimento, mas apenas crença verdadeira. Mesmo que os relatos causais do conhecimento já não sejam considerados corretos, eles engendraram teorias confiabilistas do conhecimento, que serão discutidas mais adiante. Em suma, o problema de Gettier é epistemologicamente importante. Qualquer ramo da epistemologia procura um entendimento preciso da natureza (por exemplo, os componentes essenciais) do conhecimento proposicional (FUMERTON, 2014). Deste modo, nosso entendimento preciso do conhecimento proposicional requer que tenhamos uma análise desse conhecimento à prova do problema de Gettier. Os epistemólogos precisam, portanto, de uma solução defensável para o problema de Gettier, por mais complexa que seja a solução. Atividades de Estudos: 1) Os problemas ou casos de Gettier possuem um lugar especial na investigação epistemológica do conhecimento proposicional. Explique o que é o problema de Gettier e esclareça a sua importância para a epistemologia contemporânea. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 27 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 A Natureza da Justificação Uma das razões pelas quais o problema de Gettier é seja confuso é que nem Gettier, nem ninguém que o precedeu, ofereceu uma análise suficientemente clara e precisa da justificação. Dissemos que a justificação é uma questão de uma crença ter sido formada da maneira correta, mas ainda temos que dizer o que isso significa. Devemos agora considerar este assunto mais de perto. Observamos que o objetivo de nossas práticas de formação de crenças é obter a verdade evitando o erro e que a justificação é a característica das crenças que são formadas de modo a perseguir melhor essa meta. Se pensarmos, então, no objetivo de nossas práticas de formação de crenças como uma tentativa de estabelecer uma correspondência entre a mente de alguém e o mundo, e se pensarmos também na aplicação ou na retenção da condição de justificação como uma avaliação de se este encaixe foi obtido da maneira correta, então parece haver duas abordagens óbvias para interpretar a justificação. Ou seja, em termos da mente do sujeito que crê ou em termos do mundo, ou seja, em termos de internalismo ou externalismo (KORNBLITH, 2001). Geralmente, quando uma pessoa sabe alguma proposição, ela faz isso com base em alguma evidência, ou boas razões, ou talvez algumas experiências que ela teve. O mesmo é verdade para crenças justificadas que podem ficar aquém do conhecimento. Essas crenças são justificadas com base em alguma evidência, ou boas razões, ou experiências, ou talvez com base na maneira pela qual as crenças foram produzidas (ROLLA, 2013). O internalismo, em primeira instância, é uma tese sobre a base do conhecimento ou da crença justificada. Esta primeira forma de internalismo sustenta que uma pessoa tem ou pode ter uma forma de acesso à base do conhecimento ou crença justificada. A ideia-chave é que a pessoa ou é ou pode estar ciente desta base. Os externalistas, pelo contrário, negam que se possa sempre ter esse tipo de acesso à base do conhecimento e da crença justificada. Uma segunda forma de internalismo, ligada apenas à crença justificada, mas provavelmente extensível ao conhecimento também, não diz respeito ao acesso, mas sim à base de uma crença justificada. Mentalismo é a tese de que o que finalmente justifica qualquer crença é algum estado mental do agente epistêmico sustentando essa crença (CONEE; FELDMAN, 2001). O externalismo nessa dimensão, então, seria a visão de que algo diferente dos estados mentais funciona como justificadores. Uma terceira forma de internalismo diz respeito ao próprio conceito de justificação, e não ao acesso ou à natureza dos justificadores. Esta terceira forma de internalismo é o conceito deontológico de justificação, cuja ideia principal é que o conceito de Primeira forma de internalismo sustenta que uma pessoa tem ou pode ter uma forma de acesso à base do conhecimento ou crença justificada. Externalistas negam que se possa sempre ter esse tipo de acesso à base do conhecimento e da crença justificada. 28 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA justificação epistêmica deve ser analisado em termos de cumprimento de deveres ou responsabilidades intelectuais. O externalismo com respeito ao conceito de justificação epistêmica seria a tese de que este conceito deve ser analisado em termos diferentes de deveres ou responsabilidades especiais (ROLLA, 2013; KORNBLITH, 2001). a) Internalismo A crença é um estado mental, e a formação de crenças é um processo mental. Consequentemente, pode-se raciocinar que, se uma crença pode estar ou não justificada – se ela é formada do modo correto – isso pode ser determinado examinando os processos de pensamento do sujeito que crê durante a formação da sua crença. Tal visão, que sustenta que a justificação depende unicamente de fatores internos à mente do crente, é chamada de internalismo (MIGUENS, 2009). O termo "internalismo" tem significados diferentes em outros contextos, aqui, será usado estritamente para se referir a esse tipo de visão sobre a justificação epistêmica. De um modo geral, as concepções internalistas de justificação epistêmica exigem que a justificação de uma crença seja interna ao crente de alguma forma. Duas principais variedades de internalismo epistêmico sobre a justificação são o internalismo de acesso e o internalismo ontológico (VALCARENGHI, 2008). Os internalistas de acesso exigem que um crente tenha acesso interno ao(s) justificador(es) de sua crença p, a fim de se justificar em acreditar p. Para o internalista de acesso, justificação equivale a algo como o crente estar ciente (ou capaz de estar ciente) de certos fatos que fazem sua crença em p racional, ou ela ser capaz de dar razões para sua crença em p. No mínimo, o internalismo de acesso requer que o crente tenha algum tipo de acesso reflexivo ou consciência a qualquer coisa que justifique sua crença. O internalismo ontológico é a visão de que a justificação de uma crença é estabelecida pelos estados mentais de cada um. O internalismo ontológico pode ser distinto do internalismo de acesso, mas os dois são muitas vezes pensados como sendo concordantes, uma vez que são geralmente considerados capazes de ter acesso reflexivo aos estados mentais (KORNBLITH, 2001). Assim, de acordo com o internalismo, os únicos fatores que são relevantes para a determinação de se uma crença é justificada são os outros estados mentais do crente. Afinal de contas, um internalista argumentará, apenas os estados mentais de um indivíduo – suas crenças sobre o mundo, seus inputs sensoriais (por exemplo,seus dados sensoriais) e suas crenças sobre as relações entre suas várias crenças – podem determinar quais novas crenças ele irá formar. Então somente os estados mentais de um indivíduo podem determinar se alguma crença particular é justificada. Em particular, para ser justificada, uma crença deve ser adequadamente baseada ou apoiada por outros estados mentais (KORNBLITH, 2001). Tal visão, que sustenta que a justificação depende unicamente de fatores internos à mente do crente, é chamada de internalismo 29 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 Isso levanta a questão do que constitui a base ou relação de apoio entre uma crença e os outros estados mentais. Podemos dizer que, para que a crença “X” seja devidamente baseada na crença “Y” (ou crenças Y1 e Y2, ou Y1, Y2 e ... Yn), a verdade de Y deve ser suficiente para estabelecer a verdade de X. Em outras palavras, Y deve implicar X. Vamos considerar a relação entre crenças e inputs sensoriais mais adiante. No entanto, se quisermos permitir a nossa falibilidade, devemos dizer que a verdade de Y oferece uma boa razão para acreditamos que X também é verdadeira, tornando plausível ou provável que X seja verdadeira. Uma elaboração sobre o que conta como uma boa razão para a crença, portanto, é uma parte essencial de qualquer explicação internalista da justificação. No entanto, há uma condição adicional que devemos acrescentar: a crença Y deve ser ela mesma justificada, uma vez que crenças injustificadas não podem conferir justificação a outras crenças. Porque a crença Y deve também ser justificada, deve haver alguma crença justificada Z em que Y é baseada? Se assim for, Z deve ser justificada, e pode derivar sua justificação de alguma outra crença justificada, W. Esta corrente de crenças derivando sua justificação de outras crenças pode continuar para sempre, levando-nos em uma regressão infinita (LANDESMAN, 2006). Embora a ideia de uma regressão infinita possa parecer preocupante, as formas primárias de evitar tal regressão podem ter seus próprios problemas também. Isso levanta o "problema da regressão", que começa a partir da observação de que há apenas quatro possibilidades quanto à estrutura das crenças justificadas de um indivíduo: 1) A série de crenças justificadas, cada uma baseada na outra, continua infinitamente. 2) A série de crenças justificadas circula de volta ao seu início (X é baseada em Y, Y em Z, Z em W, e W em X). 3) A série de crenças justificadas começa com uma crença injustificada. 4) A série de crenças justificadas começa com uma crença que é justificada, mas não em virtude de basear-se em outra crença justificada. Essas alternativas parecem esgotar as possibilidades. Ou seja, se alguém tem alguma crença justificada, uma dessas quatro possibilidades deve descrever as relações entre essas crenças. Como tal, uma explicação internalista completa da justificação deve decidir entre as quatro possibilidades. b) Fundacionalismo Consideremos cada uma das quatro possibilidades mencionadas anteriormente. A alternativa 1 parece inaceitável porque a mente humana pode conter apenas um número finito de crenças, e qualquer processo de pensamento Uma elaboração sobre o que conta como uma boa razão para a crença, portanto, é uma parte essencial de qualquer explicação internalista da justificação. 30 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA que leve à formação de uma nova crença deve ter algum ponto de partida. A alternativa dois parece não ser melhor, já que o raciocínio circular parece ser falacioso. E a alternativa três já foi descartada, uma vez que torna a segunda crença na série (e, portanto, todas as crenças subsequentes) injustificada. Isso deixa a alternativa quatro, que deve, por processo de eliminação, estar correta. Essa linha de raciocínio, tipicamente conhecida como argumento de regressão, leva à conclusão de que existem dois tipos diferentes de crenças justificadas: aquelas que começam uma série de crenças justificadas e aquelas que se baseiam em outras crenças justificadas. As primeiras, chamadas de crenças básicas, são capazes de conferir justificação a outras crenças não básicas, sem que elas mesmas tenham sua justificação conferida por outras crenças. Como tal, há uma relação assimétrica entre crenças básicas e não básicas. Essa visão da estrutura da crença justificada é conhecida como "fundacionalismo" (NORRIS, 2007). Em geral, o fundacionalismo implica que há uma relação assimétrica entre quaisquer duas crenças: se A é baseado em B, então B não pode ser baseado em A. Consequentemente, segue-se que pelo menos algumas crenças (ou seja, crenças básicas) são justificadas de alguma maneira, exceto por meio de uma relação com outras crenças. As crenças básicas devem ser autojustificadas, ou devem derivar sua justificação de alguma fonte não doxástica, como inputs sensoriais (OLIVA, 2011). A fonte exata da justificação das crenças básicas precisa ser explicada por qualquer explicação fundacionalista da justificação que pretenda ser completa. c) Coerentismo Os internalistas podem estar insatisfeitos com o fundacionalismo, já que permite a possibilidade de crenças justificadas sem se basear em outras crenças. Uma vez que foi a nossa solução para o problema de regressão que nos levou ao fundacionalismo, e uma vez que nenhuma das alternativas parece palatável, podemos procurar uma falha no problema em si. Observe que o problema é baseado em uma suposição fundamental, mas até então não declarada: a saber, que a justificação é de estilo linear. Ou seja, a afirmação do problema de regressão pressupõe que a relação de base é paralela a um argumento lógico, com uma crença baseada em uma ou mais crenças de forma assimétrica (MIGUENS, 2009). Assim, um internalista que considera o fundacionalismo problemático pode negar essa suposição, sustentando que a justificação é o resultado de uma relação holística entre crenças. Ou seja, pode-se sustentar que as crenças derivam sua justificação por inclusão em um O fundacionalismo implica que há uma relação assimétrica entre quaisquer duas crenças: se A é baseado em B, então B não pode ser baseado em A. sustentar que as crenças derivam sua justificação por inclusão em um conjunto de crenças que possuem coesão umas com as outras como um todo. Um proponente de tal visão é chamado um coerentista 31 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 conjunto de crenças que possuem coesão umas com as outras como um todo. Um proponente de tal visão é chamado um coerentista (RODRIGUES, 2013). A justificação para os coerentistas estabelece uma relação de apoio mútuo entre muitas crenças, ao invés de uma série de crenças assimétricas. Uma crença deriva sua justificação, de acordo com o coerentismo, não por ser baseada em uma ou mais crenças, mas em virtude de sua participação em um conjunto de crenças que se encaixam do modo certo. O coerentista precisa especificar o que constitui a coerência, é claro, deve ser algo mais do que a consistência lógica, já que duas crenças não relacionadas podem ser consistentes. Por isso, deve haver alguma relação positiva de apoio. Por exemplo, algum tipo de relação explicativa entre os membros de um conjunto coerente para que as crenças sejam individualmente justificadas. O coerentismo é vulnerável ao que chamamos de "objeção de isolamento" (BONJOUR, BAKER, 2010). Isso indica que há a possibilidade de que um conjunto de crenças tido como coerente, ou uma crença deste conjunto, esteja isolado da realidade. Considere, por exemplo, um trabalho de ficção. Todas as declarações no trabalho de ficção podem formar um conjunto coerente, mas presumivelmente acreditar em todas as declarações, e somente nas declarações, de uma obra de ficção não irá tornar alguém justificado. Na verdade, qualquer forma de internalismo parece vulnerável a essa objeção e, portanto, uma explicação internalistada justificação que seja completa deve abordá-la. Lembre-se de que a justificação requer uma correspondência entre a mente e o mundo, e uma ênfase desmedida nas relações entre as crenças na mente parece ignorar a questão de saber se essas crenças correspondem à maneira como as coisas realmente são. d) Fundacionalismo Versus Coerentismo Ao falar de indicadores fundamentais de verdade nos leva a uma controvérsia- chave sobre a justificação: a justificação epistêmica, e, portanto, o conhecimento, tem fundamentos e, em caso afirmativo, em que sentido? Esta questão pode ser esclarecida como a questão de se algumas crenças não só podem (a) ter sua justificação epistêmica de forma não inferencial (isto é, à parte do suporte evidencial de outras crenças), mas também (b) fornecer justificação epistêmica para todas as crenças justificadas que carecem dessa justificativa não inferencial. O fundacionalismo, como descrito acima, oferece uma resposta afirmativa a esta edição, e é representado em diversas maneiras, por exemplo, Aristóteles, Descartes, Russell, C. I. Lewis, e Chisholm (NORRIS, 2007). Os fundacionistas não compartilham de uma explicação uniforme da justificativa não inferencial. Alguns epistemólogos, como Bonjour (1978) e Sellars (2008), interpretam a justificação não inferencial como autojustificação. 32 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA Outros rejeitam a autojustificação literal das crenças e argumentam que as crenças fundacionais têm sua justificação não inferencial em virtude do suporte evidencial dos vereditos de estados psicológicos de não-crença. Estados estes como a percepção (estados de “aparentemente-perceber”) – posição defendida pelo epistemólogo Alston (2008), como a sensação (estados de "aparentemente- sentir") – posição defendida por MacGrew (2003), ou como a memória (estados de "aparentemente-lembrar") – posição defendida por Audi (2002, 2003). Outros ainda entendem a justificação não inferencial em termos de uma crença que é "produzida de forma confiável" (GOLDMAN, 1967, 1979), ou seja, causada e sustentada por algum processo (sendo este processo não dependente da crença, não-crença) ou fonte de crença (por exemplo, percepção, memória, introspecção) que tende a produzir crenças verdadeiras e não crenças falsas. Esta última visão assume a fonte causal de uma crença como sendo crucial para a sua justificação (GUIMARÃES, 2009). Ao contrário de Descartes, os fundacionistas contemporâneos separam claramente as reivindicações à justificação fundacional não inferencial daquelas reivindicações à certeza. Eles geralmente se contentam com um fundacionalismo modesto, o que implica que crenças fundamentais não precisam ser indubitáveis e infalíveis. Isso contrasta com o fundacionalismo radical de Descartes (RODRIGUES, 2013; BONJOUR, 2008; SARTORI, 2006). Os fundacionistas contemporâneos separam claramente as reivindicações à justificação fundacional não inferencial daquelas reivindicações à certeza. O FUNDACIONALISMO DE RENÉ DESCARTES O fundacionalismo moderno foi iniciado pelo filósofo francês moderno René Descartes. Em suas Meditações (2004), Descartes desafiou os princípios contemporâneos da filosofia, argumentando que tudo o que ele tinha aprendido a partir ou através de seus sentidos era dubitável. Ele usou vários argumentos para desafiar a confiabilidade dos sentidos, citando erros perceptivos e as possibilidades de estar sonhando ou sendo enganado por um Demônio do Mal. Descartes (2002) tentou estabelecer as fundações seguras para o conhecimento para evitar o ceticismo. Ele contrastou a informação fornecida pelos sentidos, que é incerta e imprecisa, com as verdades da geometria, que são claras e distintas. As verdades geométricas são também certas e indubitáveis. Descartes tentou assim encontrar verdades claras e distintas porque seriam indubitavelmente verdadeiras e um fundamento adequado para o conhecimento. O seu método era questionar todas as suas crenças até que ele alcançasse algo claro e distinto que fosse indubitavelmente verdadeiro. O resultado foi seu cogito ergo sum - “penso, logo, sou”, 33 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 ou a crença de que ele estava pensando – sua convicção indubitável apropriada como fundamento para o conhecimento. Isso resolveu o problema de Descartes do Demônio do Mal – a possibilidade de que ele estava sendo enganado por um Demônio do Mal, tornando falsas todas as suas crenças sobre o mundo externo. Mesmo que suas crenças sobre o mundo externo fossem falsas, suas crenças sobre o que ele estava experimentando ainda eram indubitavelmente verdadeiras, mesmo se essas percepções não se relacionassem com nada no mundo. Como vimos anteriormente, o concorrente tradicional do fundacionalismo é a teoria coerentista da justificação, isto é, o coerentismo episódico. Esta teoria não é a definição de coerência da verdade propriamente dita. É a visão de que a justificação de qualquer crença depende dessa crença ter suporte evidencial de alguma outra crença através de relações de coerência, tais como vinculação ou relações explanatórias. Proponentes notáveis desta teoria incluem Hegel, Bosanquet e Sellars (GRECO; SOSA, 2008). Uma proeminente versão contemporânea do coerentismo epistêmico afirma que as relações de coerência evidencial entre crenças são tipicamente relações explanatórias. A ideia, a grosso modo, é que uma crença é justificada para você desde que melhor explique ou seja melhor explicada por algum membro do sistema de crenças que tem poder explanatório máximo para você. O coerentismo contemporâneo é uniformemente sistêmico ou holístico. Ele encontra a fonte última de justificação em um sistema de crenças ou crenças potenciais interconectadas (COSTA, 2002). Assim o problema do argumento do isolamento continua preocupando todas as versões do coerentismo que visam explicar a justificação empírica. Vimos que de acordo com esse argumento, o coerentismo implica que você pode estar epistemicamente justificado em aceitar uma proposição empírica que é incompatível, ou pelo menos improvável, com sua evidência empírica total. A suposição-chave desse argumento é que a sua evidência empírica total inclui os estados de consciência (de não-crença) sensoriais e perceptivos, como a sua sensação de dor ou o aparentemente ver alguma coisa. Estes não são estados de crença. O coerentismo epistêmico, por definição, faz da justificação uma função unicamente de relações de coerência entre proposições, tais como as proposições que o sujeito crê ou aceita. Assim, esse coerentismo parece isolar a justificação da importação evidencial de estados de consciência de não-crença. Os coerentistas tentaram lidar com este problema, mas nenhuma resolução recebeu uma aceitação ampla. O coerentismo epistêmico, por definição, faz da justificação uma função unicamente de relações de coerência entre proposições, tais como as proposições que o sujeito crê ou aceita 34 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA e) Externalismo Podemos pensar que focar unicamente em fatores internos à mente do sujeito que crê conduzirá inevitavelmente a uma explicação equivocada da justificação. A alternativa, então, é que pelo menos alguns fatores externos à mente do crente determinem se ele está ou não justificado em acreditar. Um proponente de tal visão é chamado de externalista (NORRIS, 2007). As visões externalistas da justificação emergiram na epistemologia durante o final do século XX. As concepções externalistas da justificação afirmam que fatos externos ao crente podem servir como justificação para uma crença. De acordo com o externalista, um crente não precisa ter qualquer acesso interno ou compreensão cognitiva de quaisquer razões ou fatos que tornam sua crença justificada. A avaliação da justificação do externalista pode ser contrastada com o internalismo de acesso, que exige que o crente tenha acesso reflexivointerno a razões ou fatos que corroborem sua crença para justificar-se em mantê-la. O externalismo, por outro lado, sustenta que a justificativa para a crença de alguém pode vir de fatos que são inteiramente externos à consciência subjetiva do agente (ROLLA, 2013). De acordo com o externalismo, a única maneira de evitar a objeção de isolamento e garantir que o conhecimento não inclui a sorte é considerar alguns fatores diferentes das outras crenças do indivíduo. Que fatores, então, devem ser considerados? A versão mais proeminente do externalismo, chamada de confiabilismo, sugere que devemos considerar a fonte de uma crença (OLIVA, 2011). Crenças podem ser formadas como resultado de muitas fontes diferentes, tais como experiência sensorial, razão, testemunho, memória. Mais precisamente, poderíamos especificar qual o sentido perceptivo usado, quem forneceu o testemunho, que tipo de raciocínio é usado, ou quão recente é a memória relevante (GUIMARÃES, 2009). Para cada crença, podemos indicar o processo cognitivo que levou à sua formação. Alvin Goldman é um dos mais famosos proponentes do externalismo na epistemologia, conhecido por desenvolver o confiabilismo. Em seu artigo "O que é crença justificada?" (1979), Goldman caracteriza a concepção confiabilista da justificação. O autor referido observa que um processo confiável de formação de crenças é aquele que geralmente produz crenças verdadeiras. Então, em sua forma mais simples e mais direta, o confiabilismo sustenta que se uma crença é ou não justificada depende se esse processo de formação de crenças é uma fonte confiável de As concepções externalistas da justificação afirmam que fatos externos ao crente podem servir como justificação para uma crença O confiabilismo sustenta que se uma crença é ou não justificada depende se esse processo de formação de crenças é uma fonte confiável de crenças verdadeiras 35 Introdução à Epistemologia Capítulo 1 crenças verdadeiras (BRANDON, 2013). Uma vez que estamos buscando uma correspondência entre a nossa mente e o mundo, crenças justificadas são aquelas que resultam de processos que regularmente alcançam tal correspondência. Assim, por exemplo, usar a visão para determinar a cor de um objeto bem iluminado e relativamente próximo é um processo confiável de formação de crenças para uma pessoa com visão normal, mas não para uma pessoa daltônica. Formar crenças com base no testemunho de um especialista é susceptível de produzir crenças verdadeiras, mas formar crenças com base no testemunho de mentirosos compulsivos não é. Em geral, se uma crença é o resultado de um processo cognitivo que confiavelmente (a maior parte do tempo – ainda queremos deixar espaço para a falibilidade humana) conduz a crenças verdadeiras, então essa crença é justificada. Os exemplos acima começam a delinear um desafio ao confiabilismo, na medida em que mesmo sendo a formação de uma crença um evento único, a confiabilidade do processo depende do desempenho a longo prazo desse processo. Por exemplo, uma moeda que é jogada apenas uma vez e cai com a cara para cima, tem, no entanto, 50% de chance de cair com a coroa para cima, mesmo que o seu desempenho real tenha rendido a cara 100% do tempo. E isso requer que especifiquemos qual processo está sendo usado, para que possamos avaliar seu desempenho em outras instâncias. No entanto, os processos cognitivos podem ser descritos em termos mais ou menos gerais: por exemplo, o mesmo processo de formação de crenças pode ser descrito de várias maneiras como experiência sensorial, visão, visão de uma pessoa com visão normal, visão de uma pessoa com visão normal à luz do dia, visão de uma pessoa com visão normal na luz do dia ao olhar uma árvore, visão de uma pessoa com visão normal na luz do dia ao olhar uma araucária, e assim por diante. O "problema da generalidade" observa que algumas dessas descrições podem especificar um processo confiável, mas outras podem especificar um processo não confiável, de modo que não podemos saber se uma crença é justificada ou injustificada, a menos que conheçamos o nível apropriado de generalidade para descrever o processo (LUZ, 2005). Mesmo que o problema da generalidade possa ser resolvido, resta outro problema para o externalismo. Keith Lehrer (2000) apresenta este problema por meio de seu exemplo do Sr. Truetemp. Truetemp tem, sem o seu conhecimento, um “tempucomp” – um dispositivo que lê com precisão a temperatura e causa uma crença espontânea sobre essa temperatura – implantado em seu cérebro. Como resultado, ele tem muitas crenças verdadeiras sobre a temperatura, mas ele não sabe por que ele tem ou qual é a sua fonte. Lehrer argumenta que, embora o processo de formação de crenças do Truetemp seja confiável, sua ignorância do tempucomp torna suas crenças de temperatura injustificadas e, portanto, que um processo cognitivo confiável não pode render justificação a Um processo cognitivo confiável não pode render justificação a menos que o crente esteja ciente do fato de que o processo é confiável. 36 EPISTEMOLOGIA DA TEOLOGIA menos que o crente esteja ciente do fato de que o processo é confiável. Em outras palavras, o simples fato de que o processo é confiável não basta, conclui Lehrer, para justificar quaisquer crenças que são formadas por meio desse processo. f) Teorias Causais e Contextualistas Alguns epistemólogos contemporâneos endossam o contextualismo em relação à justificação epistêmica, uma visão sugerida por Dewey, Wittgenstein e Kuhn, entre outros (GRECO; SOSA, 2008). Nesta visão, todas as crenças justificadas dependem de seu suporte evidencial em algumas crenças injustificadas que não precisam de justificação. Em qualquer contexto de investigação, as pessoas simplesmente assumem (a aceitabilidade de) algumas proposições como pontos de partida para a investigação, e essas proposições "contextualmente básicas", embora sem apoio evidencial, podem servir como suporte evidencial para outras proposições. Os contextualistas enfatizam que as proposições contextualmente básicas podem variar de contexto para contexto (por exemplo, da investigação teológica à investigação biológica) e de grupo social para grupo social (DEROSE, 2008; RODRIGUES, 2013). O principal problema para os contextualistas vem de sua visão de que suposições injustificadas podem fornecer a justificação epistêmica para outras proposições. Precisamos de uma explicação precisa de como uma suposição injustificada pode render suporte evidencial, como uma crença não provável pode fazer outra crença provável. Neste aspecto os contextualistas ainda não ofereceram uma explicação uniforme. Como já referimos anteriormente, na seção sobre explicações causais do conhecimento, alguns epistemólogos recomendaram que desistíssemos da tradicional condição de evidência para o conhecimento. Eles recomendam que interpretemos a condição de justificação como uma condição causal, a qual comentamos na seção sobre os problemas de tipo Gettier (GOLDMAN, 1967). A grosso modo, a ideia é que você sabe que p se é somente se (a) você acredita que p, (b) p é verdadeiro, e (c) sua crença de que p é causalmente produzida é sustentada pelo fato que torna p verdadeiro. Esta é a base da teoria causal do conhecimento, que vem com detalhes variados. Qualquer teoria causal enfrenta sérios problemas do nosso conhecimento de proposições universais. Evidentemente, sabemos, por exemplo, que todos os dicionários são produzidos por pessoas, mas nossa crença de que isso é assim parece não estar causalmente suportada pelo fato de que todos os dicionários são humanamente produzidos. Não é claro que este último fato causalmente produz qualquer crença. Em qualquer contexto de investigação, as pessoas simplesmente assumem (a aceitabilidade de) algumas proposições como pontos de partida para a investigação, e essas proposições
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