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narrativa ,história 2

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Narrativa, história 
e sociedade
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
 n Relacionar as noções de narrativa, história e sociedade.
 n Identifi car as relações entre a literatura e o seu contexto de produção. 
 n Expressar os modos pelos quais a literatura lida com temas da sociedade.
Introdução
Você já sabe que, como um produto cultural, o texto literário não é des-
vinculado do contexto social em que é produzido. Mas você sabia que, 
se a literatura emerge de uma determinada realidade histórica, isso não 
quer dizer que ela deva ser o registro fiel da história? Isso porque a obra 
literária pode se insurgir contra esse real, ou porque, hoje em dia, a própria 
noção de “verdade histórica” é questionada. 
Neste texto, você irá estudar os conceitos e as relações entre narrativa/
literatura, história e sociedade. Além disso, irá conhecer alguns exemplos 
de textos literários em que as aproximações com a história e a sociedade 
são elementos marcantes.
Relações entre literatura e história
Os distanciamentos e os entrecruzamentos entre literatura e história são debatidos 
desde a Antiguidade. Um exemplo é o texto Arte Poética, de Aristóteles, datado 
do século 4 a.C. Nele, Aristóteles (1995) afi rma que a poesia (literatura) e a 
história se aproximam pela presença do mito (da narrativa). O fi lósofo sustenta 
que tanto a literatura quanto a história fazem uso do mito, da forma narrativa, 
mas elas diferem quanto às relações que estabelecem com o mundo relatado. 
Segundo Aristóteles, a história é regida pelo princípio da verdade, rela-
tando o que de fato aconteceu. Assim, a história estaria comprometida com 
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a factualidade, sendo a narração dos fatos históricos atrelada ao modo exato 
como esses fatos se sucederam na realidade. 
Já a literatura tem o compromisso com a verossimilhança, isto é, com o que 
poderia ter acontecido. A literatura, portanto, obedece à noção de necessidade, 
no sentido de que uma obra deve estabelecer com a realidade uma relação de 
lógica e necessidade com as referências que ela mesma suscita, de modo que 
possa ser compreendida pelo público justamente a partir dessa relação. Assim, a 
verossimilhança opera na literatura tanto interna quanto externamente: ela opera 
no interior da obra, costurando as relações entre os elementos que a compõem – as 
relações entre enredo, personagens, tempo, espaço, narração, etc. –, ao mesmo 
tempo em que opera com os fatos e as coisas do mundo a que faz referência.
De certo modo, a perspectiva aristotélica segundo a qual a literatura e a 
história compartilham a forma narrativa é ainda hoje relevante aos estudos 
literários. Porém, os debates contemporâneos divergem sobre as relações que a 
história e a literatura estabelecem com a realidade/a sociedade em que se inserem. 
Tais divergências são decorrentes, sobretudo, da indefinição dos limites entre 
literatura e história e do próprio conceito – sempre questionado – de história.
No século XVIII, os estudos da história eram baseados na visão “positivista” legada por 
Auguste Comte. Segundo essa visão, a história era caracterizada pela estrita observação 
dos fatos, pela ausência de subjetivismo e ornamento e pela busca da pura “verdade 
histórica”. Tratava-se, assim, do historicismo, que tomava os registros da história como 
registros científicos, “objetivos” dos fatos. Acreditava-se reproduzir a realidade em sua 
totalidade e de maneira neutra e fiel. Do século XX para cá, os estudos da história 
passaram a pertencer ao domínio da historiografia, que revela justamente a natureza 
narrativa (grafia = escrita) dos seus registros. Assim, a historiografia exige que o histo-
riador reconheça que o fato histórico não é um fato objetivo. Ele é o produto de uma 
construção ativa para transformar a fonte em documento e, em seguida, constituir 
esse documento, esse fato histórico, em problema. Com isso, os discursos da história 
perdem o estatuto de “verdade”. Eles passam a ser discursos construídos a partir do 
ponto de vista do historiador acerca dos dados por ele considerados – resultando, assim, 
em uma percepção mais maleável e menos pretenciosa sobre o conceito de história.
Roland Barthes (2004), um dos estudiosos contemporâneos que se dedica ao 
tema, vai dizer, concordando com Aristóteles, que a história e a literatura são 
formas narrativas. Além disso, Barthes acrescenta que as narrativas históricas 
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e literárias existem apenas no plano do discurso. Sua significação é adquirida 
somente no momento em que são articuladas linguisticamente. Contudo, 
enquanto que Aristóteles opõe literatura e história levando em consideração 
a relação que ambas mantêm com a realidade (excluindo, assim, a literatura, 
que é orientada pela verossimilhança), Barthes afirma que essa oposição é 
irrelevante. Para ele, tanto o literato quanto o historiador transformam os seus 
discursos em significante, gerando sentidos a partir do tratamento particular que 
dão aos aspectos narrados. Assim, segundo Barthes (2004), não seria possível 
estabelecer limites claros entre o discurso literário e o discurso historiográfico. 
Isso porque ambos são tipos de produção narrativa e, sendo assim, resultados 
de configurações linguísticas que visam a produzir sentidos variados.
Outro estudioso, Hayden White (2001), também corrobora a perspectiva de 
Aristóteles de que a literatura e a história são formas narrativas. Ele também 
reafirma a posição de Barthes no que diz respeito ao entendimento de que o 
ofício do escritor e do historiador é o de organizar o discurso narrado para 
produzir sentidos. White, no entanto, em oposição a Barthes, afirma que o 
discurso literário e o discurso historiográfico se diferenciam em função da 
maneira com a qual manipulam a matéria narrada. Segundo White (2001), 
enquanto que o discurso literário é dotado de liberdade artística, sendo o 
resultado de um ato de imaginação e inventividade, o discurso historiográfico 
obedece a elementos extratextuais, os quais são trazidos para o texto e costu-
rados com elementos imaginados pelo autor. Os elementos extratextuais são 
os que dizem respeito aos fatos históricos que servem de base para a escrita 
do historiador. Tais fatos, por existirem independentemente da vontade do 
autor, impõem certos parâmetros à escrita historiográfica. Nessa escrita, o 
historiador deve perseguir a realidade (ainda que a realidade não seja algo 
totalmente recuperável). O literato, ao contrário, não tem esse mesmo com-
promisso com a realidade, pois seu ofício lhe permite, além de se referir a 
fatos reais, criar eventos ficcionais.
Narrativa, literatura e sociedade
O conceito de “narrativa” está relacionado ao hábito de contar histórias. Nesse 
sentido, as narrativas assumem a função de proporcionar certo ordenamento 
em meio ao tumulto das experiências humanas, conferindo alguma unidade aos 
eventos, aos pensamentos, às sensações, às angústias e às fantasias do ser humano. 
Além disso, as narrativas proporcionam a manutenção da memória coletiva, 
guardando e propagando os ideais das sociedades para suas gerações posteriores.
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Em sentido estrito, a narrativa é um produto da linguagem e, por conseguinte, um 
mecanismo de produção de sentidos. Por isso, ela não se resume ao âmbito da litera-
tura (seja ela oral ou escrita), já que quadros, filmes, músicas, entre outras expressões 
artísticas, por meio de suas diferentes modalidades de linguagem, também têm por 
função primordial veicular sentidos e gerar interpretações. 
Quando você considera especificamente a narrativa literária, pode concebê-
-la como uma ferramenta dinâmica e complexade manipulação da linguagem 
verbal. O texto literário é caracterizado por gerar inúmeras possibilidades 
interpretativas, trabalhando ao mesmo tempo com o real e o imaginário. A partir 
das situações vividas pelas personagens, a narrativa literária aproxima realidade 
e representação de fatos, lidando continuamente com o possível e o impossível. 
Na seção anterior, você leu que o discurso literário não tem o mesmo 
compromisso com a realidade que tem o discurso historiográfico. Certo, é 
isso mesmo. Mas essa afirmação não quer dizer que a literatura não tenha o 
real como referente. Desse modo, você pode pensar que, muito embora uma 
obra literária não deva ser lida como um objeto de relato factual, ela não está 
apartada do mundo. A literatura, afinal, é uma produção cultural humana, 
sendo, por isso, histórica, cultural e socialmente situada. 
Prova disso é que você provavelmente já leu obras literárias e percebeu 
como elas lidavam com temas da sociedade da qual emergiram. Por exemplo, 
se você leu Vidas secas, de Graciliano Ramos (2008), deve ter notado, entre 
outras coisas, como a família do personagem Fabiano lutava para deixar 
para trás o sertão impiedoso e buscar uma vida melhor em paisagens menos 
hostis, vivendo o drama da miséria e da desesperança. Ao mesmo tempo, 
você deve ter percebido que a narrativa de Vidas secas guarda relações com 
uma sociedade excludente e desigual. Isto é, essa sociedade se transforma 
em elementos que caracterizam as relações humanas retratadas na narrativa, 
como a exploração decorrente das imposições do patrão desonesto feitas ao 
trabalhador necessitado, as injustiças promovidas pelo comportamento policial 
repressor e o mal-estar gerado pelo contato de diferentes classes sociais. Em 
tal caso, o livro de Graciliano Ramos, além de ser um belíssimo exercício de 
escrita e de produção de sentidos variados, promove uma visão crítica das 
relações sociais, ressaltando o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, 
pela cidade e pelo próprio homem. Assim, Vidas secas, lançado em 1938, 
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oferece um cenário rico em significações, incluindo a representação de um 
Brasil das primeiras décadas do século XX – representação que em muitos 
aspectos não perde a atualidade.
Os retirantes, de Cândido Portinari, 1944.
Fonte: Programa Cultura Viva (2012).
É recorrente nas artes brasileiras a representação de uma realidade marcada por miséria, 
ignorância e opressão nas relações sociais e de trabalho, bem como pela força da 
natureza impiedosa sobre um homem completamente desprotegido. Assim como 
Vidas secas, em que o leitor acompanha a fuga de uma família sertaneja pobre para 
um futuro incerto, o quadro Os retirantes, de Cândido Portinari, mostra o drama dos 
retirantes expulsos pela pobreza e pelo ambiente inóspito, que estão indo não se sabe 
bem para onde. Os corpos famintos e esqueléticos, as fisionomias de desesperança e 
angústia, as trouxas de roupa carregando os ínfimos bens, o cenário sombrio e desolado, 
os urubus à espera dos corpos mortos, o efeito da foice, representando a morte, no 
cajado do velho unido ao urubu ao longe, a súplica ao espectador que é encarado de 
frente pelas figuras... tudo faz parte de uma obra que, em tom de denúncia, reflete o 
problema da seca e da miséria que afeta muitos brasileiros, em especial os que vivem 
no sertão nordestino, e que compromete a sobrevivência e a dignidade de gerações 
consecutivas, de avós, pais e filhos. 
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Em cada época, escritores e livros contribuem para que os leitores conhe-
çam diferentes momentos históricos e configurações sociais. A obra literária, 
portanto, encontra-se sempre inserida em um contexto, relacionando-se de 
algum modo com a sociedade em que é produzida. Às vezes, a relação entre 
literatura e sociedade é algo tratado de modo mais evidente na superfície da 
narrativa; noutras vezes, essa relação é menos imediata, estando profundamente 
atrelada a uma rede de imagens ficcionais e fantásticas. 
Por isso, em se tratando do modo como se leem os textos literários – no 
âmbito da crítica literária –, não é preciso avaliar o valor de uma obra em 
função de como ela consegue ou não exprimir algum aspecto da realidade. 
Segundo o crítico Antonio Candido (2006), é preciso sempre fundir o texto ao 
contexto em uma interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o texto 
considerado em seus aspectos formais e próprios quanto o ponto de vista que 
olha para aspectos externos à obra se combinam enquanto elementos necessá-
rios do processo interpretativo. Isso é importante porque o externo (no caso, o 
social) funciona na obra não como causa ou significado, mas como elemento 
que desempenha um certo papel na constituição da narrativa, se tornando, 
portanto, interno. Voltando ao exemplo de Vidas secas, de Graciliano Ramos: 
você não precisa entender o contexto social de miséria e desigualdades como 
algo presente na obra apenas para servir de matéria ou suporte para se retratar 
a história ficcional dessa família de retirantes. O contexto social presente na 
obra é, ao contrário, um componente integrante do próprio drama de Vidas 
secas, livro no qual se pode dizer que ocorre justamente esse entrosamento 
da dor humana na tortura da paisagem. 
Sociedade, literatura e crítica literária
Você viu que, na perspectiva de Antonio Candido, os aspectos de uma obra 
literária que podem ser lidos em função do contexto social não são meramente 
ilustrativos, como se apenas servissem para fi xar a obra em uma certa época 
e em uma sociedade determinada. Segundo Candido (2006), a relação que 
uma narrativa literária estabelece com os aspectos sociais é, na verdade, uma 
relação construída internamente, no interior das estruturas signifi cantes de 
que o texto se nutre para se constituir. 
Desse modo, o estudo literário sobre as confluências entre literatura e 
sociedade pode deixar de partir dos aspectos periféricos da sociologia ou da 
história para chegar a uma interpretação estética que assimila a dimensão 
social como fator de arte. Isso quer dizer que o elemento social se torna um 
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dos muitos que interferem na constituição do texto, ao lado dos elementos 
psicológicos, religiosos, linguísticos e outros. Todos eles, no conjunto, tra-
balham para tornar a obra literária um mecanismo gerador de múltiplas e 
variadas interpretações. 
Com tais observações, Candido pretende desvencilhar os estudos literá-
rios da crítica de postura determinista. Essa crítica não corresponde a uma 
abordagem única, mas se encontra vinculada, de certa forma, a diferentes 
tipos de estudos em que há o deslocamento de interesse da obra para os 
elementos sociais que formam a sua matéria, para as circunstâncias do meio 
que influíram na sua elaboração ou para a sua função na sociedade. Enquanto 
crítico literário, ou seja, enquanto pesquisador da obra literária em si mesma e 
nas suas relações, Candido considera que seis tipos de estudos se distanciam 
da literatura para promover pesquisas situadas unicamente nos campos da 
sociologia e da história, embora suas análises partam de obras literárias. São 
eles (CANDIDO, 2006): 
 n Estudos que procuram relacionar o conjunto de uma literatura, um 
período, um gênero, com as condições sociais. Esse é o método tradi-
cional, esboçado no século XVIII, que equiparava a realidade histórica 
à configuração ficcional, visando a explicitar os nexos causais entre 
ambos. 
 n Estudos que procuram verificar em que medida as obras espelham 
ou representam a sociedade, descrevendo os seus vários aspectos. É 
a modalidade mais simples e mais comum, consistindo basicamenteem estabelecer correlações entre os aspectos reais e os que aparecem 
no livro. 
 n Estudos da relação entre a obra e o público, isto é, o seu destino, a sua 
aceitação ou a ação recíproca de ambos.
 n Estudos da posição e da função social do escritor, procurando rela-
cionar a sua posição com a natureza da sua produção e ambas com a 
organização da sociedade, sendo importante, por exemplo, a reflexão 
sobre o estatuto e a tarefa do intelectual.
 n Estudos da função política das obras e dos autores, em geral com 
intuito ideológico marcado, a exemplo dos autores de orientação 
marxista.
 n Estudos sobre a investigação hipotética das origens, seja da literatura 
em geral, seja de determinados gêneros. São temas de interesse, por 
exemplo, as raízes da poesia, a correlação entre o trabalho e o ritmo 
poético e as raízes sociais da tragédia grega. 
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Candido reconhece a relevância desses grupos de estudos, inclusive como 
fonte para o crítico literário. Mas o que o incomoda é que, por vezes, estudos 
como esses encerram a obra literária em uma rede de conexões com o mundo 
externo que pode, por fim, limitar o seu alcance enquanto obra de arte, geradora 
de efeitos múltiplos. 
Sendo assim, nada impede que se adote uma ou mais daquelas abordagens. 
O importante é que você saiba que, embora a literatura, como fenômeno de civi-
lização, dependa do entrelaçamento de vários fatores sociais para se constituir, 
seu trabalho com a obra literária deve estar atento ao caráter sempre aberto do 
produto estético, não tomando interpretações pontuais como definitivas. Você 
deve sempre, entre outras coisas, atentar para a relação arbitrária e deformante 
que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende 
observá-la e transpô-la rigorosamente. Isso porque a representação é sempre 
uma forma de construção, de produção. Como tal, resulta de um processo, 
da junção de vários elementos, inclusive dos elementos intertextuais, os quais 
podem ser citados textualmente ou apenas vagamente aludidos.
A intertextualidade é um conceito que explicita a relação que a literatura estabelece 
com o mundo e consigo mesma – com sua história, com a história de suas produções, 
com a longa caminhada de suas origens. Os textos, assim, nascem uns dos outros, 
influenciam uns aos outros, embora isso não signifique que ocorra uma reprodução 
pura e simples ou uma adoção plena. Segundo Tiphaine Samoyault (2008), essa 
retomada de um texto existente pode ser aleatória ou consentida, vaga lembrança, 
homenagem simples, submissão a um modelo, subversão ao cânone ou inspiração 
voluntária. Desse modo, você deve compreender que todo texto se constrói como um 
mosaico de citações, todo texto é a absorção e a transformação de um outro texto. 
Para compreender como a sociedade se transforma em um elemento da 
narrativa, você não precisa isolar esse elemento, como se ele não fosse um 
componente importante para a compreensão de outros. Nos textos literários, 
a sociedade vem para dentro da narrativa literária para funcionar como mais 
um recurso a serviço da abertura da obra, da sua elaboração estética. 
Assim, para que não se confunda o discurso literário com o discurso, por 
exemplo, historiográfico, é sempre necessário considerar que o “contexto” 
da obra literária não é somente a sociedade considerada em sua globalidade, 
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mas, em primeiro lugar, o campo literário que obedece a regras de construção 
específicas.
Registros da história em textos literários
Você já sabe que, como um produto cultural, o texto literário não é desvincu-
lado do contexto social em que é produzido. Além disso, você aprendeu que 
a literatura pode estabelecer diferentes e variadas relações com os fatos da 
realidade e com as confi gurações sociais e históricas do mundo. 
No que diz respeito aos entrecruzamentos entre a literatura e a história, 
muitas possibilidades podem ser suscitadas. Uma delas é o já comentado 
compartilhamento da forma narrativa. Tanto a literatura quanto a história são 
construídas a partir da adoção de recursos narrativos. No caso da história, 
seu discurso é narrativamente organizado a partir do ponto de vista do sujeito 
historiador. Isso também pode indicar que a historiografia é, em certo sentido, 
um tipo de invenção. Já a literatura tem a liberdade de poder tanto retratar 
eventos históricos e ambientes conhecidos quanto, por exemplo, criar universos 
imaginados e fantásticos ou mesmo futurísticos. 
Outra possibilidade é a de acessar, por meio do texto literário, indícios 
do passado. Isso ocorre quando o texto é tomado enquanto criação de um 
escritor situado historicamente em um determinado tempo e espaço do qual 
ele enuncia.
Exemplos de como a literatura ajuda a compreender a história são os fatos de que 
grande parte da história grega foi construída a partir das epopeias homéricas Ilíada 
e Odisseia e de que muito da história dos povos romanos foi interpretado a partir da 
Eneida de Virgílio. Os textos referentes à conquista da América também caminham 
nesse sentido, como o exemplo brasileiro da Carta de Pero Vaz de Caminha, estudada 
tanto como registro da história quanto como obra de literatura.
Alguns grupos de textos literários, além de tecerem relações variadas com 
a realidade, trazem como aspectos centrais de sua construção a aproximação 
com os discursos da história. Você conhecerá quatro desses grupos de textos 
que propõem tal aproximação, nos quais diferentes posturas podem ser as-
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sumidas – seja para confirmar a narrativa histórica, seja para construir sobre 
ela uma outra versão, subvertendo-a. Os grupos são caracterizados como: 
romance histórico tradicional, metaficção historiográfica, literatura de 
testemunho e crônica.
No romance histórico tradicional, ocorre justamente o que seu nome 
indica: uma produtiva articulação entre literatura e história. Essa articula-
ção, contudo, depende de uma visão sacralizada e totalizadora do passado, 
pois o romance histórico tradicional é caracterizado sobretudo pela adoção 
da concepção de história assumida pela corrente positivista, para a qual é 
possível reproduzir fielmente o passado. Assim, o escritor do romance histó-
rico tradicional acredita estar reconstruindo o passado de maneira “neutra” 
e “objetiva”, lançando mão de personagens históricos que ajudam a fixar 
os fatos no tempo pretérito da narrativa. Tais personagens não assumem, 
portanto, papéis de protagonismo, uma vez que a trama não deve macular, 
questionar ou modificar o passado. Além disso, o escritor desse tipo de ro-
mance normalmente ambienta tramas amorosas e com elas reproduz visões 
de uma sociedade privilegiada – a sociedade também relatada nos textos 
historiográficos tradicionais. Um dos exemplos mais conhecidos é o romance 
Ivanhoé, de Walter Scott. No Brasil, são exemplos O Guarani e Iracema, de 
José de Alencar.
A metaficção historiográfica configura o tipo de texto que melhor desvela 
o caráter narrativo da história, se recusando a sustentar as diferenças entre o 
discurso literário e o discurso historiográfico. Tal como o romance histórico 
tradicional, a metaficção historiográfica promove um entrecruzamento claro 
entre literatura e história; mas, ao contrário daquele, essa tem por caracte-
rística se apropriar de personagens e/ou acontecimentos históricos visando 
a problematizar os fatos concebidos e reproduzidos tradicionalmente como 
“verdadeiros”. 
A metaficção historiográfica tem por característica essencial o questionamento das 
“verdades históricas”, as quais, devido às relações de interesse e poder de grupos con-
servadores, permaneceram por muito tempoinabaladas. Na metaficção historiográfica, 
a história é recuperada não em caráter de certeza, mas como uma entre tantas outras 
possibilidades de compreensão do mundo. São exemplos História do Cerco de Lisboa, 
de José Saramago, e, no Brasil, Agosto, de Rubem Fonseca.
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Os textos que pertencem à chamada literatura de testemunho estabelecem 
um certo compromisso ético e moral com a história, uma vez que buscam 
recuperar, com a maior veracidade possível, experiências reais traumáticas. 
Diferentemente da metaficção historiográfica, que visa a subverter os discursos 
históricos, a literatura de testemunho lida com momentos específicos da his-
tória, que podem ser vividos por grupos de pessoas ou por indivíduos. Assim, 
há inúmeras modalidades de testemunho, seja em relação a situações, eventos, 
períodos (genocídios, guerras, ditaduras, tortura, miséria, opressão, etc.), seja 
em relação a formas de expressão do testemunho (memória, romance, filme, 
depoimento, poema, quadrinhos, canções, etc.). Em linhas gerais, diz-se que 
é literatura de testemunho porque não há provas para além dos relatos que 
compõem os eventos narrados. Ou seja, assim como acontece com a teste-
munha no âmbito jurídico, que goza da confiança presumida do júri, o leitor 
precisa confiar naquilo que é narrado, precisa acreditar na palavra do narrador 
enquanto sujeito/testemunha que estava lá quando o evento aconteceu. São 
exemplos o famoso Diário de Anne Frank, escrito pela jovem alemã Anne 
Frank, e, no Brasil, Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos.
A crônica é, segundo alguns autores, um gênero híbrido que mistura 
discurso literário e discurso jornalístico (e, portanto, factual e histórico). A 
crônica faz dos acontecimentos e temas miúdos do cotidiano do leitor o seu 
tema narrativo, dando a eles uma luz especial. O cronista capta o que até 
então não era notado e que agora se torna objeto de reflexão e julgamento, 
se preocupando em defender o seu ponto de vista e o endereçando aos seus 
contemporâneos. Assim, é a apropriação temática de fatos reais e de reflexões 
baseadas nos comportamentos humanos na sociedade que caracteriza a crônica 
como um gênero que aproxima a literatura da história. 
Você deve entender que a crônica, por se referir a dados do cotidiano, é sempre colada 
ao momento histórico em que é produzida, sendo, por isso, uma importante fonte de 
historicidade para tempos posteriores. Ainda assim, as crônicas podem abordar outros 
temas, se referindo a assuntos de interesse não apenas local. 
Entre os grandes cronistas brasileiros, vale citar Machado de Assis, Lima 
Barreto, Clarice Lispector e, mais recentemente, Luis Fernando Verissimo.
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