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Indaial – 2020 Qualidade de Vida na Contemporaneidade Alberto Rosa Alessandra Bittencourt Flach Leticia Sangaletti María Fernanda González Mario Carretero Patrícia Cristine Hoff Roberta Spessato Simone de Oliveira 1a Edição 2020 Elaboração: Alberto Rosa Alessandra Bittencourt Flach Leticia Sangaletti María Fernanda González Mario Carretero Patrícia Cristine Hoff Roberta Spessato Simone de Oliveira Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Conteúdo produzido Copyright © Sagah Educação S.A. Impresso por: III apresentação Saudações prezado acadêmico! Sinta-se calorosamente acolhido ao livro da disciplina de Narrativas e Histórias de Vida. Quais são as impressões e expectativas que o título desse livro gerou em você? Um dos nossos objetivos é que por meio dos seus estudos nessa disciplina, você transforme sua maneira de explorar textos narrativos, e obtenha mais subsídios para se aventurar em escrever as suas narrativas. Para tanto, a Unidade 1 lhe oferece várias oportunidades para ampliar seus conhecimentos sobre as narrativas. Nela, você observará que as narrativas estabelecem inúmeras relações com a história, com a sociedade, e com a literatura. Poderá refletir sobre o papel que tempo e espaço ocupam nas narrativas, além de resgatar e atualizar conteúdos vistos nas aulas de língua portuguesa do seu período de escolarização, acerca de gêneros discursivos, com maior destaque para o conto. Já a Unidade 2 disponibiliza momentos de reflexão sobre a História e histórias. Portanto, além de você lembrar de algumas coisas que aprendeu enquanto estudava língua portuguesa, também se recordará de algumas aulas da disciplina de história, ou de leituras que fez a pedido dos professores de história. Isso provavelmente acontecerá, já que, a Unidade 2 aborda os seguintes temas: escrita, oralidade, fala, verdade, realidade, seleção de fatos, perspectivas, historiografia, manifestações de linguagem, tipos textuais, gêneros textuais, textos literários, performance, contadores de histórias, entre outros. Durante a sua leitura da Unidade 3, possivelmente você se lembrará de conteúdos que aprendeu nas suas aulas de biologia, pois alguns professores de biologia costumam abordar aspectos relacionados à memória, como, por exemplo, os diferentes tipos de memória. A psicologia e a neurociência vêm estudando sobre a memória, e ao longo da Unidade 3, você se deparará com as perspectivas dessas ciências a respeito da memória e dos esquecimentos. A Unidade ainda discorre sobre pesquisa em história, aprendizagem e sobre as funções psicológicas como a linguagem, e cognição. Desejamos que esse livro seja contributivo para os seus estudos nesse curso! Boa leitura! IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA V VI Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE VII UNIDADE 1 - NARRATIVAS ..................................................................................................................1 TÓPICO 1 - NARRATIVA, REALIDADE E REPRESENTAÇÃO: QUESTÕES DE PRINCÍPIO .... 3 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................3 2 REPRESENTAÇÃO E REALIDADE: PRINCÍPIOS FILOSÓFICOS ............................................3 3 A NARRATIVA: CONCEITO E ELEMENTOS .................................................................................6 3.1 TIPOS DE NARRATIVA ...................................................................................................................9 3.2 FOCO NARRATIVO ..........................................................................................................................9 3.2.1 Autor onisciente intruso .........................................................................................................10 3.2.2 Narrador onisciente neutro ...................................................................................................10 3.2.3 “Eu” como testemunha ..........................................................................................................10 3.2.4 Narrador-protagonista ...........................................................................................................11 3.2.5 Onisciência seletiva múltipla ................................................................................................11 3.2.6 Onisciência seletiva ................................................................................................................11 3.2.7 Modo dramático ......................................................................................................................12 3.2.8 Câmera .....................................................................................................................................12 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................13 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................14 TÓPICO 2 - NARRATIVA, HISTÓRIA E SOCIEDADE ..................................................................15 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................15 2 RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA .........................................................................15 3 NARRATIVA, LITERATURA E SOCIEDADE ................................................................................17 4 SOCIEDADE, LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA ................................................................19 5 REGISTROS DA HISTÓRIA EM TEXTOS LITERÁRIOS ..........................................................21 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................24 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................25TÓPICO 3 - TEMPO E ESPAÇO NA NARRATIVA ..........................................................................27 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................27 2 O TEMPO NA NARRATIVA ..............................................................................................................27 3 TEMPO CRONOLÓGICO ..................................................................................................................29 4 TEMPO PSICOLÓGICO .....................................................................................................................29 5 TEMPO DO DISCURSO .....................................................................................................................30 6 ESPAÇO E AMBIENTE ........................................................................................................................31 7 ESPAÇO ..................................................................................................................................................31 8 AMBIENTE.............................................................................................................................................32 9 ARTICULAÇÕES DO TEMPO E DO ESPAÇO NA NARRATIVA ............................................33 9.1 CIRCUITO FECHADO, DE RICARDO RAMOS: O TEMPO DEFINIDO PELO ESPAÇO ...34 10 CADEIRA, DE JOSÉ SARAMAGO: O TEMPO SUSPENSO ....................................................35 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................38 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................39 sumário VIII TÓPICO 4 - TIPOS TEXTUAIS - A NARRAÇÃO ELEMENTOS ESTRUTURA E GÊNEROS ........ 41 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................41 2 NARRAÇÃO: CONCEPÇÕES TEÓRICAS .....................................................................................41 3 ESTRUTURA E ELEMENTOS DA NARRAÇÃO ..........................................................................42 4 GÊNEROS DO TIPO TEXTUAL NARRATIVO .............................................................................43 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................47 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................48 TÓPICO 5 - TEORIA DO CONTO .......................................................................................................51 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................51 2 O CONTO ...............................................................................................................................................51 3 O CONTO E AS SUAS VARIAÇÕES ...............................................................................................53 3.1 CONTO DE TRADIÇÃO ORAL ....................................................................................................53 3.2 Conto clássico ...................................................................................................................................55 3.3 CONTO MODERNO .......................................................................................................................56 4 PRINCIPAIS TEÓRICOS E AUTORES ...................................................................................................... 57 4.1 EDGAR ALLAN POE (1809–1849) ................................................................................................57 4.2 MACHADO DE ASSIS (1839–1908) ..............................................................................................57 4.3 JULIO CORTÁZAR (1914–1984) ....................................................................................................58 RESUMO DO TÓPICO 5........................................................................................................................60 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................61 UNIDADE 2 - HISTÓRIA; ORALIDADE E ESCRITA .....................................................................63 TÓPICO 1 - A HISTÓRIA VIVE? QUE HISTÓRIA VIVE? ............................................................65 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................65 2 A HISTÓRIA É UMA FORMA DE MEMÓRIA? ............................................................................66 3 MEMÓRIA COLETIVA E HISTÓRIA ..............................................................................................68 4 A HISTORIOGRAFIA COMO CONSTRUTORA DO PASSADO E CONFORMADORA DO PRESENTE: O PAPEL CRÍTICO DO HISTORIADOR ..................69 5 QUE HISTÓRIA ENSINAR? DAS NARRAÇÕES DO PASSADO ÀS FERRAMENTAS HISTORIOGRÁFICAS E ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS ................................70 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................72 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................73 TÓPICO 2 - LEITURA, ORALIDADE E ESCRITA 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................75 2 AS DIFERENTES MANIFESTAÇÕES DA LINGUAGEM ...........................................................75 2.1 A LINGUAGEM E O CONCEITO DE LÍNGUA EM USO ........................................................75 2.2 FALA E ESCRITA: CONJUNTO DE PARTES UNIDAS ENTRE SI ..........................................77 2.3 GÊNEROS E TIPOS TEXTUAIS .....................................................................................................79 3 O TEXTO LITERÁRIO E AS SUAS MANIFESTAÇÕES LINGUÍSTICAS ...............................80 3.1 O QUE É UM TEXTO LITERÁRIO? ..............................................................................................80 3.2 ALGUNS ESCRITORES E SUAS OBRAS .....................................................................................81 3.2.1 Escritores internacionais ........................................................................................................81 3.2.2 Escritores nacionais ................................................................................................................82 3.3 MARCAS DA ORALIDADE NA ESCRITA .................................................................................82 4 A LINGUAGEM E OS SEUS DIFERENTES CONTEXTOS .........................................................85 4.1 TIPOS DE LINGUAGEM ................................................................................................................85 4.2 A INTERLOCUÇÃO E O CONTEXTO .........................................................................................87 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................88 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................89 IX A ORALIDADE E A ESCRITURA ........................................................................................................91 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................91 2 NO PRINCÍPIO,ERA A PALAVRA: AS ORIGENS ORAIS DA LITERATURA .....................91 3 ORALIDADE E PERFORMANCE .....................................................................................................93 4 AS FÓRMULAS ORAIS NA ESCRITA ............................................................................................96 4.1 LITERATURA EXCLUSIVAMENTE ORAL.................................................................................96 4.2 LITERATURA ORAL COM REGISTRO ESCRITO .....................................................................97 4.3 LITERATURA ESCRITA COM INFLUÊNCIAS DA ORALIDADE .........................................98 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................101 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................102 UNIDADE 3 - HISTÓRIAS E MEMÓRIAS ......................................................................................105 TÓPICO 1 - HISTÓRIA E MEMÓRIA ..............................................................................................107 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................107 2 O CONCEITO DE MEMÓRIA .........................................................................................................107 3 RELAÇÕES ENTRE A HISTÓRIA, A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO ............................110 4 AS POSSIBILIDADES DE PESQUISA HISTÓRICA COM A MEMÓRIA ............................113 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................116 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................117 TÓPICO 2 - FUNÇÕES PSICOLÓGICAS BÁSICAS: MEMÓRIA E COGNIÇÃO ..................119 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................119 2 AS BASES DA MEMÓRIA ...............................................................................................................120 2.1 MEMÓRIA SENSORIAL ..............................................................................................................122 2.2 MEMÓRIA DE CURTO PRAZO .................................................................................................123 2.3 MEMÓRIA DE LONGO PRAZO ................................................................................................128 2.4 MÓDULOS DE LONGO PRAZO ................................................................................................128 2.5 REDES SEMÂNTICAS ..................................................................................................................131 2.6 A NEUROCIÊNCIA DA MEMÓRIA ..........................................................................................132 3 RECORDANDO MEMÓRIAS DE LONGO PRAZO ..................................................................133 3.1 PISTAS DE RECUPERAÇÃO .......................................................................................................133 3.2 NÍVEIS DE PROCESSAMENTO .................................................................................................135 3.3 MEMÓRIA EXPLÍCITA E IMPLÍCITA .......................................................................................136 3.4 MEMÓRIAS VÍVIDAS ..................................................................................................................138 3.5 PROCESSOS CONSTRUTIVOS NA MEMÓRIA ......................................................................140 4 ESQUECIMENTO: QUANDO A MEMÓRIA FALHA ................................................................145 4.1 POR QUE ESQUECEMOS ............................................................................................................146 4.2 INTERFERÊNCIA PROATIVA E RETROATIVA ......................................................................148 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................150 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................151 TÓPICO 3 - APRENDIZAGEM MEMÓRIA LINGUAGEM E FALA ..........................................153 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................153 2 O APRENDIZADO É A AQUISIÇÃO DO CONHECIMENTO ................................................153 3 A MEMÓRIA É A HABILIDADE DE RETER E EVOCAR INFORMAÇÕES ........................154 4 A LINGUAGEM É O COMPORTAMENTO COGNITIVO MAIS ELABORADO ...............159 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................161 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................162 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................165 X 1 UNIDADE 1 NARRATIVAS OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • Relacionar as noções de narrativa, realidade e representação; • Identificar os elementos essenciais da narrativa literária; • Definir os modos pelos quais a literatura lida com temas da sociedade; • Explicar a construção do espaço na narrativa; • Analisar a função dos elementos tempo e espaço na estrutura da narrativa; • Recordar a teoria do conto; • Apontar os tipos de contos produzidos ao longo da história da literatura; Esta unidade está dividida em cinco tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 - NARRATIVA, REALIDADE E REPRESENTAÇÃO: QUESTÕES DE PRINCÍPIO TÓPICO 2 - NARRATIVA, HISTÓRIA E SOCIEDADE TÓPICO 3 - TEMPO E ESPAÇO NA NARRATIVA TÓPICO 4 - TIPOS TEXTUAIS - A NARRAÇÃO: ELEMENTOS, ESTRUTURA E GÊNEROS TÓPICO 5 - TEORIA DO CONTO Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 NARRATIVA, REALIDADE E REPRESENTAÇÃO: QUESTÕES DE PRINCÍPIO 1 INTRODUÇÃO Você alguma vez já ficou em dúvida sobre se algo é fato ou ficção? Saiba que esse também é um problema comum para os estudos literários, que motiva inúmeros debates. Em tais debates, são centrais as noções de realidade e representação, assim como as possíveis fronteiras entre elas. Outro conceito importante para a apreensão da realidade por meio da representação é o conceito de narrativa. Em linhas gerais, a narrativa serve para contar histórias, criando uma certa ordem para os fatos caó-ticos da existência. E, em se tratando da narrativa literária, os fatos são ordenados segundo a adoção de alguns elementos e de determinada perspectiva de narração. Neste texto, você irá estudar as noções de narrativa, representação e realidade. Também vai compreender como elas se relacionam e se distanciam. Além disso, irá conhecer os elementos essenciais das narrativas literárias e do foco narrativo nelas empregado. 2 REPRESENTAÇÃO E REALIDADE: PRINCÍPIOS FILOSÓFICOS Embora possam ser entendidas muitas vezes como opostas, as noções de “representação” e “realidade” não são rígidas e definitivas. Ao longo da his- tória, surgiram muitas perspectivas e muitos debates sobre esse tema. Um dos debates mais famosos é sem dúvida o gerado pelas discordâncias entre Platão e Aristóteles, lá na Antiguidade, mais precisamente no século 4 a.C. Cronologicamente,a proposta de Platão é mais antiga. Em seu livro A República (PLATÃO, 2001), ele classifica a poesia e a pintura como imitação (mimesis), mas o faz de um modo pejorativo. Como exemplo, Platão menciona uma mesa. O filósofo afirma que o marceneiro, ao produzir uma mesa, realiza uma cópia do modelo já existente no mundo das ideias (a mesa que você conhece e reconhece como mesa). Mas o pintor, ao representar a mesa na tela, efetua a cópia da cópia: ele copia na tela a cópia da mesa feita pelo marceneiro, que, por sua vez, copia a mesa de acordo com a ideia que se tem de “mesa”. Veja na Figura 1 um exemplo da mímesis platônica. UNIDADE 1 | NARRATIVAS 4 FIGURA 1 - EXEMPLO DA MÍMESIS PLATÔNICA FONTE: Shutterstock. Web. Acesso em: 25 abr. 2020. Representação e realidade: princípios filosóficos Embora possam ser entendidas muitas vezes como opostas, as noções de “representação” e “realidade” não são rígidas e defi nitivas. Ao longo da his- tória, surgiram muitas perspectivas e muitos debates sobre esse tema. Um dos debates mais famosos é sem dúvida o gerado pelas discordâncias entre Platão e Aristóteles, lá na Antiguidade, mais precisamente no século 4 a.C. Cronologicamente, a proposta de Platão é mais antiga. Em seu livro A República (PLATÃO, 2001), ele classifica a poesia e a pintura como imi- tação (mimesis), mas o faz de um modo pejorativo. Como exemplo, Platão menciona uma mesa. O filósofo afirma que o marceneiro, ao produzir uma mesa, realiza uma cópia do modelo já existente no mundo das ideias (a mesa que você conhece e reconhece como mesa). Mas o pintor, ao representar a mesa na tela, efetua a cópia da cópia: ele copia na tela a cópia da mesa feita pelo marceneiro, que, por sua vez, copia a mesa de acordo com a ideia que se tem de “mesa”. Veja na Figura 1 um exemplo da mímesis platônica. Figura 1. Exemplo da mímesis platônica. Fonte: Mesa: donatas1205 / Shutterstock.com; Tela: Zonda / Shutterstock.com Algo semelhante acontece com a poesia: ao imitar os gestos e as ações humanas, o poeta está, da mesma forma, copiando os gestos e as ações que são elas mesmas cópias dos gestos e das ações possíveis da vida das pessoas. Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa12 Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U1_C01.indd 12 09/06/2017 15:00:34 Algo semelhante acontece com a poesia: ao imitar os gestos e as ações humanas, o poeta está, da mesma forma, copiando os gestos e as ações que são elas mesmas cópias dos gestos e das ações possíveis da vida das pessoas. Em função dessa distância que os poetas possuem da realidade (sendo que, para Platão, a realidade é esse mundo das ideias), o trabalho artístico era visto por Platão como enganoso e sem seriedade. Alguns anos depois, Aristóteles, o discípulo mais famoso de Platão, seria o responsável por ampliar o horizonte dessa discussão sobre o tema da representação. Na sua Arte Poética (ARISTÓTELES, 1995), ele emprega o termo mimesis num sentido que foge ao da mimesis platônica (que é ligada às formas/ideias). Em Aristóteles, mimesis é a representação artística – no caso, a imitação propriamente dita. Assim, ao contrário de Platão, Aristóteles valoriza a arte como representação do mundo. Em função disso, passa a ver o que hoje se chama de “belas-artes” (literatura, escultura, música, retórica, pintura, etc.) como técnicas, sendo a obra de arte pensada em conformidade com regras e procedimentos de fabricação. O artista – aquele que domina uma determinada arte – segue essas normas para atingir o fim a que a arte se destina. Aristóteles foi provavelmente o primeiro teórico de arte da história, pois ele se dedicou a considerar as obras de arte de acordo com os métodos (ou meios) de que se utilizam e os objetos que imitam/representam. Além disso, foi capaz de destacar qualidades e defeitos das obras artísticas de sua época. INTERESSA NTE TÓPICO 1 | NARRATIVA, REALIDADE E REPRESENTAÇÃO: QUESTÕES DE PRINCÍPIO 5 No que diz respeito ao tema da representação, Aristóteles legou para a humanidade a ideia de que representação e realidade são conceitos inter-- relacionados, mas apenas no seguinte sentido: a representação é um tipo especial de “manipulação” da realidade. Para criar aquela representação, o artista irá adotar os recursos que julgar necessários e estabelecer as distâncias que considera relevantes entre o real e o ficcional. Os diversos movimentos artísticos que fazem parte da história da arte são, em sentido estrito, as diferentes formas que os artistas elegeram para acessar a realidade a partir de suas obras. Ainda nesse contexto, é importante que você conheça o conceito aristoté- lico de verossimilhança. Segundo Aristóteles, a representação deve sempre seguir certos critérios que a tornem possível. Ou seja, seus efeitos precisam estar de acordo com os efeitos da realidade para que ela possa, enfim, suscitar exatamente esses efeitos no espectador. Isso não significa que uma obra deva sempre reproduzir o modo como as pessoas veem a realidade. Significa, na verdade, que uma obra deve estabelecer com a realidade uma relação de lógica e necessidade com as referências que ela mesma suscita, de modo que possa ser entendida justamente a partir dessa relação. O argumento é o seguinte: de nada adianta uma obra que não produz sentidos, que não suscita impressões e interpretações – e produzir sentidos, nesse caso, é dialogar com a organização do mundo vivenciada por todos. A verossimilhança, portanto, uma lei que opera tanto interna quanto externamente: ela atua no interior da obra, costurando as relações entre os elementos que a compõem – as relações entre enredo, personagens, tempo, espaço, narração, etc. –, ao mesmo tempo em que opera com os fatos e as coisas do mundo a que necessariamente faz referência. Uma obra verossímil é a que utiliza a realidade como pano de fundo, ainda que a obra não adote as mesmas regras do mundo factual. Esse pano de fundo necessário para que o espectador consiga estabelecer o que você pode chamar de pacto ficcional. O espectador tem de saber que o que a obra apresenta é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o autor dessa obra está contando mentiras. É o que ocorre, por exemplo, quando você lê a história da Chapeuzinho Vermelho, na qual há um lobo que fala. No mundo real, você sabe que os lobos, ao menos no seu estágio atual de evolução, não possuem um aparelho fonador suficientemente desenvolvido para que articu-lem palavras, tampouco têm a consciência linguística para se comunicarem por intermédio de um código verbal. Entretanto, uma vez que você aceite o acordo ficcional assim entendido, saber que no mundo real o lobo é incapaz de falar não impedirá a sua apreensão do mundo ficcional onde lobos falam e conversam com crianças. Você, ao firmar o pacto ficcional, atribui um valor de verdade à obra, embora não esteja comparando em igual medida o mundo ficcional ao mundo real. UNIDADE 1 | NARRATIVAS 6 Ela surpreendeu-se com a aparência da vovozinha, de Gustave Doré, 1867. Ela surpreendeu-se com a aparência da vovozinha, de Gustave Doré, 1867. Fonte: Doré (1867). O conto de fadas é uma narrativa curta com elementos fantásticos. Seus personagens normalmente têm origem em tradições folclóricas, como anões, dragões, duendes, fadas, gigantes, gnomos, grifos, sereias, animais falantes, unicórnios ou bruxas. Além disso, as ações geralmente envolvem magia ou encantamentos. O gênero se difere das lendas, que implicam a crença na veracidade dos eventos narrados, e das fábulas, que trazem um ensinamento moral explícito. A narrativa: conceito e elementos Para que você estude mais a fundo o conceito de narrativa e os elementos que a compõem, cabe mais uma vez retornar à Arte Poética de Aristóteles (1995). Lá, o fi lósofo afi rma que a “arte poética” (as artes em geral) é realizada por meio da disposição do ritmo, da linguagem e da harmonia. Ele distingue diferentes gêneros que exploravam, cada um aseu modo, certos elementos. Alguns gêneros abordados por Aristóteles não são mais praticados, como o ditirambo (um canto coral entusiástico e exuberante dirigido aos deuses), mas outros gêneros, como a epopeia e o teatro, ainda hoje podem ser estudados segundo os critérios aristotélicos. Assim, é possível afi rmar que o fi lósofo deu 15Narrativa, realidade e representação: questões de princípio Textos Fundamentais de Ficção em Língua Portuguesa_U1_C01.indd 15 09/06/2017 15:00:34 Fonte: Doré (1867). O conto de fadas é uma narrativa curta com elementos fantásticos. Seus personagens normalmente têm origem em tradições folclóricas, como anões, dragões, duendes, fadas, gigantes, gnomos, grifos, sereias, animais falantes, unicórnios ou bruxas. Além disso, as ações geralmente envolvem magia ou encantamentos. O gênero se difere das lendas, que implicam a crença na veracidade dos eventos narrados, e das fábulas, que trazem um ensinamento moral explícito. INTERESSA NTE 3 A NARRATIVA: CONCEITO E ELEMENTOS Para que você estude mais a fundo o conceito de narrativa e os elementos que a compõem, cabe mais uma vez retornar à Arte Poética de Aristóteles (1995). Lá, o filósofo afirma que a “arte poética” (as artes em geral) é realizada por meio da disposição do ritmo, da linguagem e da harmonia. Ele distingue diferentes gêneros que exploravam, cada um a seu modo, certos elementos. Alguns gêneros abordados por Aristóteles não são mais praticados, como o ditirambo (um canto coral entusiástico e exuberante dirigido aos deuses), mas outros gêneros, como a epopeia e o teatro, ainda hoje podem ser estudados segundo os critérios aris- totélicos. Assim, é possível afirmar que o filósofo deu muitas contribuições para as teorias das artes que você estuda atualmente. É dele, por exemplo, o conceito de catarse e a divisão dos gêneros miméticos em função dos meios narrativo e dramático. TÓPICO 1 | NARRATIVA, REALIDADE E REPRESENTAÇÃO: QUESTÕES DE PRINCÍPIO 7 A obra Arte Poética, de Aristóteles (1995), não chegou completa aos dias atuais. Somente a parte referente à tragédia está inteira. Segundo Aristóteles, a tragédia é capaz de promover a catarse, ou seja, tem uma função ético-pedagógica que incide sobre o espectador, fazendo-o sentir os sentimentos narrados e vivenciá-los interiormente, experimentando em seguida a libertação. Para entender esse conceito, pense, por exemplo, em quando você assiste a um filme e chora. Você chora porque vivenciou o efeito catártico gerado pelo filme, porque experimentou intensamente a problemática da obra e se “purificou” com ela. ATENCAO Essa divisão das obras artísticas em gêneros, em especial as obras literá- rias, vem sendo desde então discutida, ampliada e alterada, satisfazendo às características de cada época. Os gêneros literários tradicionalmente podem ser divididos ou em dois grupos – poesia e prosa – ou em três categorias – lírico, narrativo e dramático. A primeira classificação é baseada no fator ritmo. Nela você encontra: • Poesia: gênero com ritmo marcado – com a repetição de fonemas, os acentos, o jogo de pausas vocais, a pontuação especial, etc. • Prosa: gênero com ritmo não marcado – com a preservação do ritmo espontâneo que a linguagem verbal possui em seu uso cotidiano, fora da literatura. A segunda classificação leva em conta o fator estilo, que divide os gêneros em seus diferentes tipos: • Lírico: voltado para a expressão de sentimentos e emoções – como a exaltação de alguém, um acontecimento ou um sentimento, como o amor. O gênero lírico se caracteriza por não contar histórias. • Narrativo: usado para contar histórias. A história é apresentada ao leitor por meio da mediação de um narrador. Pode conter narrações, descrições, diálogos e dissertações. • Dramático: gênero também usado para contar histórias, mas estas são apresentadas ao leitor sem a mediação de um narrador, ou seja, são contadas diretamente pelos diálogos das personagens. Agora, você irá conhecer melhor a caracterização do gênero narrativo e, mais adiante, da narrativa literária. UNIDADE 1 | NARRATIVAS 8 Em linhas gerais, o conceito de “narrativa” está relacionado ao hábito de contar histórias. Não se resume, portanto, à literatura (seja ela oral ou escrita), pois quadros, filmes, músicas, entre outras expressões artísticas, também podem ter por função primordial contar histórias e produzir sentidos. ATENCAO O hábito de contar histórias acompanha o ser humano há muitos séculos. Nesse contexto, se pode afirmar que a narrativa surgiu da necessidade de criar uma certa unidade para essas histórias. Assim, as narrativas desempe-nham a função de oferecer um certo ordenamento, uma forma no tumulto da experiência humana. A narrativa literária, por sua vez, é caracterizada pela dinamicidade, pela objetividade e por vezes pela subjetividade, mescladas às ações que se apresen- tam. O texto narrativo é um sistema complexo e imprevisível de possibilidades interpretativas, que trabalha continuamente com o real e o imaginário. A partir das situações vividas pelas personagens, a narrativa aproxima realidade e representação de fatos, lidando continuamente com o possível e o impossível. Assim, a narrativa tem por objetivos, além de relatar, produzir informação, aprendizado e/ou entretenimento. Nesse sentido, o leitor pode se apropriar dos sentidos que ecoam da narrativa até se identificar com o que está lendo. A narrativa se estrutura conforme uma rede de relações entre os seguintes elementos essenciais: • Enredo: aqui se fundamentam e se desenvolvem as ações da estrutura da narrativa. • Personagens: executam as ações. Dividem-se em protagonista (perso- nagem principal), coadjuvantes (personagens secundárias) e antagonista (personagem que se opõe à personagem principal). • Narrador: relata os fatos. Existem vários tipos de narradores: narrador-- personagem, narrador-observador, narrador onisciente, entre outros. A identificação do narrador depende da perspectiva adotada perante os fatos narrados: basicamente, ou o narrador participa da história ou é somente um espectador. • Tempo: momento ou época em que acontecem os fatos. O tempo poderá ser cronológico (linear) ou psicológico (não linear). TÓPICO 1 | NARRATIVA, REALIDADE E REPRESENTAÇÃO: QUESTÕES DE PRINCÍPIO 9 • Espaço: local ou cenário onde se desenrolam os fatos narrados. 3.1 TIPOS DE NARRATIVA Você já viu que o gênero narrativo serve para contar histórias e é estruturado conforme alguns elementos. Agora, acompanhe as definições de alguns dos principais tipos de narrativa. • Epopeia: longo poema narrativo, de tom solene e elevado. O tema da epopeia, ao contrário daqueles dos demais tipos de narrativa, é limitado, tratando sempre de um assunto heroico e nacional. Constitui a primeira modalidade narrativa criada e é escrita em verso. Seus exemplos má-ximos são Ilíada e Odisseia, de Homero. • Romance: narrativa longa que envolve um número considerável de personagens (em relação à novela e ao conto), bem como um maior número de conflitos e tempo e espaço mais dilatados. Embora haja romances que datem do século XVI (D. Quixote de La Mancha, de Cervantes, por exemplo), esse tipo de narrativa se consagrou sobretudo no século 19, assumindo o papel de refletir a sociedade burguesa, e vem se renovando desde então. • Novela: tipo mais curto de romance, ou seja, tem um número menor de personagens, conflitos e espaços, ou os tem em igual número ao romance, com a diferença de que na novela a ação no tempo é mais veloz. Um exemplo de novela seria Max e os felinos, de Moacyr Scliar, na qual o personagem central, Max, vive muitas aventuras. • Conto: narrativa mais curta que tem como característica central con-densar conflito, tempo e espaço, bem como reduzir o número de per-sonagens. O conto é um tipo de narrativa tradicional, isto é, já adotada por muitos autores nos séculos XVI e XVII, como Cervantes e Voltaire. Atualmente tem adquirido atributos diferentes,como deixar de lado a intenção moralizante e adotar o fantástico ou o psicológico para elaborar o enredo. • Crônica: texto curto, leve, que geralmente aborda temas do cotidiano. É um texto híbrido, que pode ter diferentes funções além de narrar, como contar, comentar, descrever e analisar. 3.2 FOCO NARRATIVO Analisar os tipos de narrador, embora essencial para os estudos literários, não se trata de uma tarefa simples. O estudo do foco narrativo pode ser definido como um problema técnico da ficção que supõe fazer algumas perguntas fundamentais, sintetizadas por Lígia Chiappini em O foco nar-rativo (LEITE, 1985): UNIDADE 1 | NARRATIVAS 10 1. Quem conta a história? Trata-se de um narrador em primeira ou em terceira pessoa; de uma personagem em primeira pessoa; ou não há ninguém narrando? 2. De que posição ou ângulo em relação à história o narrador conta (por cima, na periferia, no centro, de frente, ou mudando)? 3. Que canais de informação o narrador usa para comunicar a história ao leitor? (palavras? pensamentos? percepções? sentimentos? do au-tor? da personagem? ações? falas do autor? da personagem? ou uma combinação disso tudo?) 4. A que distância ele coloca o leitor da história? (próximo? distante? mudando?) Após coletar tais propriedades da narração, você pode adotar uma tipolo-gia básica de narradores para caracterizar o foco narrativo empregado. Uma tipologia interessante é a de Norman Friedman (2002), apresentada no famoso ensaio O ponto de vista na ficção. Friedman (2002) vai elencar as seguintes classificações: 3.2.1 Autor onisciente intruso Esse tipo de narrador tem a liberdade de narrar à vontade, de se colocar acima ou atrás, adotando um ponto de vista divino para além dos limites de tempo e espaço. Pode também narrar da periferia dos acontecimentos, ou do centro deles, ou ainda se limitar a narrar como se estivesse de fora, ou de frente, podendo, inclusive, mudar e adotar sucessivamente várias posições. Como canais de informação, predominam suas próprias palavras e seus pensamentos e percepções. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados com a história narrada. 3.2.2 Narrador onisciente neutro Narrador em terceira pessoa que, embora semelhante no modo de narrar (ân-gulo, distância, canais) ao autor onisciente intruso, se distingue pela ausência de instruções e comentários sobre temas gerais ou mesmo sobre o comportamento das personagens. Apesar disso, sua presença, se interpondo entre o leitor e a história, é sempre muito clara. 3.2.3 “Eu” como testemunha Narra em primeira pessoa, mas é um “eu” já interno à narrativa. Ele vive os acon-tecimentos aí descritos como personagem secundária que pode observar, desde dentro, os acontecimentos. Portanto, os oferece ao leitor de modo TÓPICO 1 | NARRATIVA, REALIDADE E REPRESENTAÇÃO: QUESTÕES DE PRINCÍPIO 11 mais direto, mais verossímil. No caso do “eu” como testemunha, o ângulo de visão é, neces-sariamente, mais limitado. Como personagem secundária, ele narra da periferia dos acontecimentos, sem conseguir saber o que se passa na cabeça dos outros; ele pode apenas inferir, lançar hipóteses, se servindo também de informações, de coisas que viu ou ouviu e, até mesmo, de cartas ou outros documentos secretos que tenham caído em suas mãos. Quanto à distância em que o leitor é colocado, pode ser próxima ou remota, ou ambas, porque esse narrador tanto sintetiza a narrativa quanto a apresenta em cenas. Nesse caso, sempre narra as cenas como as vê. 3.2.4 Narrador-protagonista O narrador, personagem central, não tem acesso ao estado mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções e aos seus pensamentos e sentimentos. 3.2.5 Onisciência seletiva múltipla Não há propriamente narrador. A história vem diretamente da mente das personagens, das impressões que fatos e pessoas deixam nelas. Difere da onisciência neutra porque agora o autor traduz detalhadamente os pensamentos, percepções e sentimentos, filtrados pela mente das personagens – enquanto o narrador onisciente os resume depois de terem ocorrido. O que predomina no caso da onisciência múltipla, como no caso da onisciência seletiva que vem logo a seguir, é o estilo indireto livre, ao passo que na onisciência neutra o predomínio é do estilo indireto. Os canais de informação e os ângulos de visão podem ser vários, nesse caso. 3.2.6 Onisciência seletiva Essa é uma categoria semelhante à anterior, mas que recai sobre uma só perso-nagem, e não muitas. É, como no caso do narrador-protagonista, a limitação a um centro fixo. O ângulo é central, e os canais são limitados aos sentimentos, pensamentos e percepções da personagem central, sendo mostrados diretamente. Além desses, Friedman aponta para tipos de narração que acontecem com a exclusão tanto do autor quanto do narrador. Isso ocorre quando se eliminam os estados mentais e se limita a informação ao que as personagens falam ou fazem – como no teatro –, com breves notações de cena amarrando os diálogos. Assim, surgem os tipos modo dramático e câmera. UNIDADE 1 | NARRATIVAS 12 3.2.7 Modo dramático Em virtude da eliminação da figura presente do narrador ou da voz narrativa, nesse tipo narrativo cabe ao leitor deduzir as significações a partir dos movi-mentos e das palavras das personagens. O ângulo é frontal e fixo, e a distância entre a história e o leitor, pequena, já que o texto se faz por uma sucessão de cenas. Trata-se de uma técnica dificilmente sustentável em textos longos. 3.2.8 Câmera Significa o máximo em matéria de “exclusão do autor”. Essa categoria serve àquelas narrativas que tentam transmitir flashes da realidade como se fossem apanhados por uma câmera, de modo arbitrário e mecânico. No momento em que são apontados os tipos de narrador, Friedman (2002) salienta que, embora seja possível identificar, por meios internos da obra, a existência de um ou outro tipo, se trata sempre de uma questão de predominância e não de exclusividade. Isso porque é difícil encontrar, numa obra de ficção, especialmente quando ela é rica em recursos narrativos, qualquer uma dessas categorias em estado puro. INTERESSA NTE 13 Neste tópico, você aprendeu que: • No que concerne à narrativa, há polêmicas entre o que é considerado realidade, e o que é considerado representação. • Tanto a representação, quanto a realidade apresentam princípios filosóficos. • A narrativa é composta por determinados elementos. • Existem diferentes tipos de narrativa. • O foco narrativo abrange pelo menos quatro perguntas específicas, que precisam ser claramente definidas pelo autor da narrativa. • Existem distinções entre autor onisciente intruso, narrador onisciente neutro, "eu” como testemunha, narrador-protagonista, onisciência seletiva múltipla, onisciência seletiva, modo dramático e câmera. RESUMO DO TÓPICO 1 14 1. Nobre (et al, 2018, p. 5), fizeram um estudo sobre população em situação de rua, seus modos de vida, manifestações de resistência e narrativas. De acordo com as autoras supracitadas, "As narrativas femininas extrapolam as questões de gênero e dizem respeito aos modos de vida de muitas outras pessoas que vivem nas/das ruas". Diante do exposto, classifique V para sentenças verdadei- ras e F para as falsas: Fonte: NOBRE, Maria Teresa et al . NARRATIVAS DE MODOS DE VIDA NA RUA: HISTÓRIAS E PERCURSOS. Psicol. Soc., Belo Horizonte , v. 30, e175636, 2018. Disponível em <https://bit. ly/3j9ThRL>. acessos em 07 jul. 2020. Epub 08-Out-2018. https://bit.ly/3fAKshH. ( ) A narrativa serve para contar histórias, criando uma certa desordem para os fatos ordenados da existência. ( ) O conto de fadas é uma narrativa curta com elementos fantásticos. ( ) A narrativa surgiu da necessidade de criar uma certa unidade para essas histórias. ( ) A narrativa tem por objetivos, relatar,produzir informação, aprendizado e/ou entretenimento. Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) F - V - V - V. b ) ( ) V - F - V - F. c ) ( ) F - V - F - V. d ) ( ) V - F - F - F. 2. Segundo o estudo de Nobre (et al, 2018, p. 9) sobre as narrativas feitas por pessoas em situação de rua, pode-se "[...] afirmar que cada uma das narrativas alcança as subversões ao modo capitalístico excludente e violento que atinge, sobretudo, os corpos femininos, pobres e negros de nosso país". Assim sendo, analise as sentenças que seguem: Fonte: NOBRE, Maria Teresa et al . NARRATIVAS DE MODOS DE VIDA NA RUA: HISTÓRIAS E PERCURSOS. Psicol. Soc., Belo Horizonte, v. 30, e175636, 2018. Disponível em <https://bit. ly/3j9ThRL>. acessos em 07 jul. 2020. Epub 08-Out-2018. https://bit.ly/3fAKshH. I - As narrativas desempenham a função de oferecer um certo ordenamento, uma forma no tumulto da experiência humana. II - A narrativa literária é caracterizada pela dinamicidade, pela objetividade e por vezes pela subjetividade, mescladas às ações que se apresentam. III - O texto narrativo é um sistema simples e previsível quanto às possibilidades interpretativas, que trabalha continuamente com a ficção. Agora assinale a alternativa CORRETA: a ) ( ) Estão corretas as sentenças I e II. b ) ( ) Estão corretas as sentenças I e III. c ) ( ) Estão corretas as sentenças II e III. d ) ( ) Apenas a sentença II está correta. AUTOATIVIDADE 15 TÓPICO 2 NARRATIVA, HISTÓRIA E SOCIEDADE UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Você já sabe que, como um produto cultural, o texto literário não é des- -vinculado do contexto social em que é produzido. Mas você sabia que, se a lite- ratura emerge de uma determinada realidade histórica, isso não quer dizer que ela deva ser o registro fiel da história? Isso porque a obra literária pode se insurgir contra esse real, ou porque, hoje em dia, a própria noção de “verdade histórica” é questionada. Neste texto, você irá estudar os conceitos e as relações entre narrativa/ literatura, história e sociedade. Além disso, irá conhecer alguns exemplos de tex- tos literários em que as aproximações com a história e a sociedade são elementos marcantes. 2 RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA Os distanciamentos e os entrecruzamentos entre literatura e história são debatidos desde a Antiguidade. Um exemplo é o texto Arte Poética, de Aristóteles, datado do século 4 a.C. Nele, Aristóteles (1995) afirma que a poesia (literatura) e a história se aproximam pela presença do mito (da narrativa). O filósofo sustenta que tanto a literatura quanto a história fazem uso do mito, da forma narrativa, mas elas diferem quanto às relações que estabelecem com o mundo relatado. Segundo Aristóteles, a história é regida pelo princípio da verdade, rela- -tando o que de fato aconteceu. Assim, a história estaria comprometida com a factualidade, sendo a narração dos fatos históricos atrelada ao modo exato como esses fatos se sucederam na realidade. Já a literatura tem o compromisso com a verossimilhança, isto é, com o que poderia ter acontecido. A literatura, portanto, obedece à noção de necessi- dade, no sentido de que uma obra deve estabelecer com a realidade uma relação de lógica e necessidade com as referências que ela mesma suscita, de modo que possa ser compreendida pelo público justamente a partir dessa relação. Assim, a verossimilhança opera na literatura tanto interna quanto externamente: ela opera no interior da obra, costurando as relações entre os elementos que a compõem – as relações entre enredo, personagens, tempo, espaço, narração, etc. –, ao mesmo tempo em que opera com os fatos e as coisas do mundo a que faz referência. UNIDADE 1 | NARRATIVAS 16 De certo modo, a perspectiva aristotélica segundo a qual a literatura e a história compartilham a forma narrativa é ainda hoje relevante aos estudos literá- rios. Porém, os debates contemporâneos divergem sobre as relações que a história e a literatura estabelecem com a realidade/a sociedade em que se inserem. Tais di- vergências são decorrentes, sobretudo, da indefinição dos limites entre literatura e história e do próprio conceito – sempre questionado – de história. Roland Barthes (2004), um dos estudiosos contemporâneos que se dedica ao tema, vai dizer, concordando com Aristóteles, que a história e a literatura são formas narrativas. Além disso, Barthes acrescenta que as narrativas históricas e literárias existem apenas no plano do discurso. Sua significação é adquirida so- mente no momento em que são articuladas linguisticamente. Contudo, enquanto que Aristóteles opõe literatura e história levando em consideração a relação que ambas mantêm com a realidade (excluindo, assim, a literatura, que é orientada pela verossimilhança), Barthes afirma que essa oposição é irrelevante. Para ele, tanto o literato quanto o historiador transformam os seus discursos em significan- te, gerando sentidos a partir do tratamento particular que dão aos aspectos narra- dos. Assim, segundo Barthes (2004), não seria possível estabelecer limites claros entre o discurso literário e o discurso historiográfico. Isso porque ambos são tipos de produção narrativa e, sendo assim, resultados de configurações linguísticas que visam a produzir sentidos variados. Outro estudioso, Hayden White (2001), também corrobora a perspectiva de Aristóteles de que a literatura e a história são formas narrativas. Ele também reafirma a posição de Barthes no que diz respeito ao entendimento de que o ofício do escritor e do historiador é o de organizar o discurso narrado para produzir sentidos. White, no entanto, em oposição a Barthes, afirma que o discurso literá- rio e o discurso historiográfico se diferenciam em função da maneira com a qual manipulam a matéria narrada. Segundo White (2001), enquanto que o discurso literário é dotado de liberdade artística, sendo o resultado de um ato de imagina- ção e inventividade, o discurso historiográfico obedece a elementos extratextuais, No século XVIII, os estudos da história eram baseados na visão “positivista” legada por Auguste Comte. Segundo essa visão, a história era caracterizada pela estrita observação dos fatos, pela ausência de subjetivismo e ornamento e pela busca da pura “verdade histórica”. Tratava-se, assim, do historicismo, que tomava os registros da história como registros científicos, “objetivos” dos fatos. Acreditava-se reproduzir a realidade em sua totalidade e de maneira neutra e fiel. Do século XX para cá, os estudos da história passaram a pertencer ao domínio da histo- riografia, que revela justamente a natureza narrativa (grafia = escrita) dos seus registros. Assim, a historiografia exige que o histo-riador reconheça que o fato histórico não é um fato objetivo. Ele é o produto de uma construção ativa para transformar a fonte em documento e, em seguida, constituir esse documento, esse fato histórico, em problema. Com isso, os discursos da história perdem o estatuto de “verdade”. Eles passam a ser discursos construídos a partir do ponto de vista do historiador acerca dos dados por ele considerados – resultando, assim, em uma per- cepção mais maleável e menos pretenciosa sobre o conceito de história. ATENCAO TÓPICO 2 | NARRATIVA, HISTÓRIA E SOCIEDADE 17 Quando você considera especificamente a narrativa literária, pode conce- bê-la como uma ferramenta dinâmica e complexa de manipulação da linguagem verbal. O texto literário é caracterizado por gerar inúmeras possibilidades inter- pretativas, trabalhando ao mesmo tempo com o real e o imaginário. A partir das situações vividas pelas personagens, a narrativa literária aproxima realidade e representação de fatos, lidando continuamente com o possível e o impossível. Na seção anterior, você leu que o discurso literário não tem o mesmo com- promisso com a realidade que tem o discurso historiográfico. Certo, é isso mes- mo. Mas essa afirmação não quer dizer que a literatura não tenha o real como re- ferente. Desse modo, vocêpode pensar que, muito embora uma obra literária não deva ser lida como um objeto de relato factual, ela não está apartada do mundo. A literatura, afinal, é uma produção cultural humana, sendo, por isso, histórica, cultural e socialmente situada. Prova disso é que você provavelmente já leu obras literárias e percebeu como elas lidavam com temas da sociedade da qual emergiram. Por exemplo, se os quais são trazidos para o texto e costu-rados com elementos imaginados pelo autor. Os elementos extratextuais são os que dizem respeito aos fatos históricos que servem de base para a escrita do historiador. Tais fatos, por existirem inde- pendentemente da vontade do autor, impõem certos parâmetros à escrita histo- riográfica. Nessa escrita, o historiador deve perseguir a realidade (ainda que a realidade não seja algo totalmente recuperável). O literato, ao contrário, não tem esse mesmo com-promisso com a realidade, pois seu ofício lhe permite, além de se referir a fatos reais, criar eventos ficcionais. 3 NARRATIVA, LITERATURA E SOCIEDADE O conceito de “narrativa” está relacionado ao hábito de contar histórias. Nesse sentido, as narrativas assumem a função de proporcionar certo ordenamento em meio ao tumulto das experiências humanas, conferindo alguma unidade aos eventos, aos pensamentos, às sensações, às angústias e às fantasias do ser humano. Além disso, as narrativas proporcionam a manutenção da memória coletiva, guar- dando e propagando os ideais das sociedades para suas gerações posteriores. Em sentido estrito, a narrativa é um produto da linguagem e, por conseguinte, um mecanismo de produção de sentidos. Por isso, ela não se resume ao âmbito da litera- tura (seja ela oral ou escrita), já que quadros, filmes, músicas, entre outras expressões artísticas, por meio de suas diferentes modalidades de linguagem, também têm por função primordial veicular sentidos e gerar interpretações. INTERESSA NTE UNIDADE 1 | NARRATIVAS 18 você leu Vidas secas, de Graciliano Ramos (2008), deve ter notado, entre outras coisas, como a família do personagem Fabiano lutava para deixar para trás o ser- tão impiedoso e buscar uma vida melhor em paisagens menos hostis, vivendo o drama da miséria e da desesperança. Ao mesmo tempo, você deve ter percebido que a narrativa de Vidas secas guarda relações com uma sociedade excludente e desigual. Isto é, essa sociedade se transforma em elementos que caracterizam as relações humanas retratadas na narrativa, como a exploração decorrente das imposições do patrão desonesto feitas ao trabalhador necessitado, as injustiças promovidas pelo comportamento policial repressor e o mal-estar gerado pelo contato de diferentes classes sociais. Em tal caso, o livro de Graciliano Ramos, além de ser um belíssimo exercício de escrita e de produção de sentidos variados, promove uma visão crítica das relações sociais, ressaltando o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, pela cidade e pelo próprio homem. Assim, Vidas secas, lançado em 1938, oferece um cenário rico em significações, incluindo a represen- tação de um Brasil das primeiras décadas do século XX – representação que em muitos aspectos não perde a atualidade. Os retirantes, de Cândido Portinari, 1944. FONTE: <https://bit.ly/3dwgsCy>. Acesso em: 25 abr. 2020. É recorrente nas artes brasileiras a representação de uma realidade marcada por miséria, ignorância e opressão nas relações sociais e de trabalho, bem como pela força da natureza impiedosa sobre um homem completamente desprotegido. Assim como Vidas secas, em INTERESSA NTE TÓPICO 2 | NARRATIVA, HISTÓRIA E SOCIEDADE 19 Em cada época, escritores e livros contribuem para que os leitores conhe- çam diferentes momentos históricos e configurações sociais. A obra literária, por- tanto, encontra-se sempre inserida em um contexto, relacionando-se de algum modo com a sociedade em que é produzida. Às vezes, a relação entre literatura e sociedade é algo tratado de modo mais evidente na superfície da narrativa; nou- tras vezes, essa relação é menos imediata, estando profundamente atrelada a uma rede de imagens ficcionais e fantásticas. Por isso, em se tratando do modo como se leem os textos literários – no âmbito da crítica literária –, não é preciso avaliar o valor de uma obra em função de como ela consegue ou não exprimir algum aspecto da realidade. Segundo o crítico Antonio Candido (2006), é preciso sempre fundir o texto ao contexto em uma interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o texto considerado em seus aspectos formais e próprios quanto o ponto de vista que olha para aspectos externos à obra se combinam enquanto elementos necessá-rios do processo inter- pretativo. Isso é importante porque o externo (no caso, o social) funciona na obra não como causa ou significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da narrativa, se tornando, portanto, interno. Voltando ao exemplo de Vidas secas, de Graciliano Ramos: você não precisa entender o con- texto social de miséria e desigualdades como algo presente na obra apenas para servir de matéria ou suporte para se retratar a história ficcional dessa família de retirantes. O contexto social presente na obra é, ao contrário, um componente in- tegrante do próprio drama de Vidas secas, livro no qual se pode dizer que ocorre justamente esse entrosamento da dor humana na tortura da paisagem. 4 SOCIEDADE, LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA Você viu que, na perspectiva de Antonio Candido, os aspectos de uma obra literária que podem ser lidos em função do contexto social não são mera- mente ilustrativos, como se apenas servissem para fixar a obra em uma certa épo- ca e em uma sociedade determinada. Segundo Candido (2006), a relação que uma narrativa literária estabelece com os aspectos sociais é, na verdade, uma relação construída internamente, no interior das estruturas significantes de que o texto se nutre para se constituir. que o leitor acompanha a fuga de uma família sertaneja pobre para um futuro incerto, o quadro Os retirantes, de Cândido Portinari, mostra o drama dos retirantes expulsos pela pobreza e pelo ambiente inóspito, que estão indo não se sabe bem para onde. Os corpos famintos e esqueléticos, as fisionomias de desesperança e angústia, as trouxas de roupa carregando os ínfimos bens, o cenário sombrio e desolado, os urubus à espera dos corpos mortos, o efeito da foice, representando a morte, no cajado do velho unido ao urubu ao longe, a súplica ao espectador que é encarado de frente pelas figuras... tudo faz parte de uma obra que, em tom de denúncia, reflete o problema da seca e da miséria que afeta muitos brasileiros, em especial os que vivem no sertão nordestino, e que compromete a sobrevivência e a dignidade de gerações consecutivas, de avós, pais e filhos. UNIDADE 1 | NARRATIVAS 20 Desse modo, o estudo literário sobre as confluências entre literatura e so- ciedade pode deixar de partir dos aspectos periféricos da sociologia ou da histó- ria para chegar a uma interpretação estética que assimila a dimensão social como fator de arte. Isso quer dizer que o elemento social se torna um dos muitos que interferem na constituição do texto, ao lado dos elementos psicológicos, religio- sos, linguísticos e outros. Todos eles, no conjunto, tra-balham para tornar a obra literária um mecanismo gerador de múltiplas e variadas interpretações. Com tais observações, Candido pretende desvencilhar os estudos literá- rios da crítica de postura determinista. Essa crítica não corresponde a uma abor- dagem única, mas se encontra vinculada, de certa forma, a diferentes tipos de estudos em que há o deslocamento de interesse da obra para os elementos sociais que formam a sua matéria, para as circunstâncias do meio que influíram na sua elaboração ou para a sua função na sociedade. Enquanto crítico literário, ou seja, enquanto pesquisador da obra literária em si mesma e nas suas relações, Candido considera que seis tipos de estudos se distanciam da literaturapara promover pesquisas situadas unicamente nos campos da sociologia e da história, embora suas análises partam de obras literárias. São eles (CANDIDO, 2006): • Estudos que procuram relacionar o conjunto de uma literatura, um período, um gênero, com as condições sociais. Esse é o método tradi-cional, esboçado no século XVIII, que equiparava a realidade histórica à configuração ficcional, visando a explicitar os nexos causais entre ambos. • Estudos que procuram verificar em que medida as obras espelham ou representam a sociedade, descrevendo os seus vários aspectos. É a modalidade mais simples e mais comum, consistindo basicamente em estabelecer correlações entre os aspectos reais e os que aparecem no livro. • Estudos da relação entre a obra e o público, isto é, o seu destino, a sua aceitação ou a ação recíproca de ambos. • Estudos da posição e da função social do escritor, procurando rela-cionar a sua posição com a natureza da sua produção e ambas com a organização da sociedade, sendo importante, por exemplo, a reflexão sobre o estatuto e a tarefa do intelectual. • Estudos da função política das obras e dos autores, em geral com intuito ideológico marcado, a exemplo dos autores de orientação marxista. • Estudos sobre a investigação hipotética das origens, seja da literatura em geral, seja de determinados gêneros. São temas de interesse, por exemplo, as raízes da poesia, a correlação entre o trabalho e o ritmo poético e as raízes sociais da tragédia grega. Candido reconhece a relevância desses grupos de estudos, inclusive como fonte para o crítico literário. Mas o que o incomoda é que, por vezes, estudos como esses encerram a obra literária em uma rede de conexões com o mundo externo que pode, por fim, limitar o seu alcance enquanto obra de arte, geradora de efeitos múltiplos. Sendo assim, nada impede que se adote uma ou mais daquelas aborda- gens. O importante é que você saiba que, embora a literatura, como fenômeno de civilização, dependa do entrelaçamento de vários fatores sociais para se consti- tuir, seu trabalho com a obra literária deve estar atento ao caráter sempre aberto TÓPICO 2 | NARRATIVA, HISTÓRIA E SOCIEDADE 21 do produto estético, não tomando interpretações pontuais como definitivas. Você deve sempre, entre outras coisas, atentar para a relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende ob- servá-la e transpô-la rigorosamente. Isso porque a representação é sempre uma forma de construção, de produção. Como tal, resulta de um processo, da junção de vários elementos, inclusive dos elementos intertextuais, os quais podem ser citados textualmente ou apenas vagamente aludidos. Para compreender como a sociedade se transforma em um elemento da narrativa, você não precisa isolar esse elemento, como se ele não fosse um componente importante para a compreensão de outros. Nos textos literários, a sociedade vem para dentro da narrativa literária para funcionar como mais um recurso a serviço da abertura da obra, da sua elaboração estética. Assim, para que não se confunda o discurso literário com o discurso, por exemplo, historiográfico, é sempre necessário considerar que o “contexto” da obra literária não é somente a sociedade considerada em sua globalidade, mas, em primeiro lugar, o campo literário que obedece a regras de construção específicas. 5 REGISTROS DA HISTÓRIA EM TEXTOS LITERÁRIOS Você já sabe que, como um produto cultural, o texto literário não é des- vinculado do contexto social em que é produzido. Além disso, você aprendeu que a literatura pode estabelecer diferentes e variadas relações com os fatos da realidade e com as configurações sociais e históricas do mundo. No que diz respeito aos entrecruzamentos entre a literatura e a história, mui- tas possibilidades podem ser suscitadas. Uma delas é o já comentado compartilha- mento da forma narrativa. Tanto a literatura quanto a história são construídas a partir da adoção de recursos narrativos. No caso da história, seu discurso é narrativamente organizado a partir do ponto de vista do sujeito historiador. Isso também pode indi- car que a historiografia é, em certo sentido, um tipo de invenção. Já a literatura tem a liberdade de poder tanto retratar eventos históricos e ambientes conhecidos quanto, por exemplo, criar universos imaginados e fantásticos ou mesmo futurísticos. A intertextualidade é um conceito que explicita a relação que a literatura estabelece com o mundo e consigo mesma – com sua história, com a história de suas produções, com a longa caminhada de suas origens. Os textos, assim, nascem uns dos outros, influenciam uns aos outros, embora isso não signifique que ocorra uma reprodução pura e simples ou uma adoção plena. Segundo Tiphaine Samoyault (2008), essa retomada de um texto existente pode ser aleatória ou consentida, vaga lembrança, homenagem simples, submissão a um modelo, subversão ao cânone ou inspiração voluntária. Desse modo, você deve compreender que todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é a absorção e a transformação de um outro texto. ATENCAO UNIDADE 1 | NARRATIVAS 22 Outra possibilidade é a de acessar, por meio do texto literário, indícios do passado. Isso ocorre quando o texto é tomado enquanto criação de um escritor situado historicamente em um determinado tempo e espaço do qual ele enuncia. Alguns grupos de textos literários, além de tecerem relações variadas com a realidade, trazem como aspectos centrais de sua construção a aproximação com os discursos da história. Você conhecerá quatro desses grupos de textos que pro- põem tal aproximação, nos quais diferentes posturas podem ser assumidas – seja para confirmar a narrativa histórica, seja para construir sobre ela uma outra ver- são, subvertendo-a. Os grupos são caracterizados como: romance histórico tradi- cional, metaficção historiográfica, literatura de testemunho e crônica. No romance histórico tradicional, ocorre justamente o que seu nome in- dica: uma produtiva articulação entre literatura e história. Essa articulação, con- tudo, depende de uma visão sacralizada e totalizadora do passado, pois o ro- mance histórico tradicional é caracterizado sobretudo pela adoção da concepção de história assumida pela corrente positivista, para a qual é possível reproduzir fielmente o passado. Assim, o escritor do romance histórico tradicional acredita estar reconstruindo o passado de maneira “neutra” e “objetiva”, lançando mão de personagens históricos que ajudam a fixar os fatos no tempo pretérito da nar- rativa. Tais personagens não assumem, portanto, papéis de protagonismo, uma vez que a trama não deve macular, questionar ou modificar o passado. Além disso, o escritor desse tipo de romance normalmente ambienta tramas amorosas e com elas reproduz visões de uma sociedade privilegiada – a sociedade também relatada nos textos historiográficos tradicionais. Um dos exemplos mais conheci- dos é o romance Ivanhoé, de Walter Scott. No Brasil, são exemplos O Guarani e Iracema, de José de Alencar. A metaficção historiográfica configura o tipo de texto que melhor desvela o caráter narrativo da história, se recusando a sustentar as diferenças entre o dis- curso literário e o discurso historiográfico. Tal como o romance histórico tradicio- nal, a metaficção historiográfica promove um entrecruzamento claro entre litera- tura e história; mas, ao contrário daquele, essa tem por característica se apropriar de personagens e/ou acontecimentos históricos visando a problematizar os fatos concebidos e reproduzidos tradicionalmente como “verdadeiros”. Exemplos de como a literatura ajuda a compreender a história são os fatos de que grande parte da história grega foi construída a partir das epopeias homéricas Ilíada e Odisseia e de que muito da história dos povos romanos foi interpretado a partir da Eneida de Virgílio. Os textos referentes à conquista da América também caminham nesse sentido, como o exemplo brasileiroda Carta de Pero Vaz de Caminha, estudada tanto como registro da história quanto como obra de literatura. DICAS TÓPICO 2 | NARRATIVA, HISTÓRIA E SOCIEDADE 23 Os textos que pertencem à chamada literatura de testemunho estabelecem um certo compromisso ético e moral com a história, uma vez que buscam recuperar, com a maior veracidade possível, experiências reais traumáticas. Diferentemente da metaficção historiográfica, que visa a subverter os discursos históricos, a litera- tura de testemunho lida com momentos específicos da história, que podem ser vi- vidos por grupos de pessoas ou por indivíduos. Assim, há inúmeras modalidades de testemunho, seja em relação a situações, eventos, períodos (genocídios, guerras, ditaduras, tortura, miséria, opressão, etc.), seja em relação a formas de expressão do testemunho (memória, romance, filme, depoimento, poema, quadrinhos, canções, etc.). Em linhas gerais, diz-se que é literatura de testemunho porque não há pro- vas para além dos relatos que compõem os eventos narrados. Ou seja, assim como acontece com a teste-munha no âmbito jurídico, que goza da confiança presumida do júri, o leitor precisa confiar naquilo que é narrado, precisa acreditar na palavra do narrador enquanto sujeito/testemunha que estava lá quando o evento aconte- ceu. São exemplos o famoso Diário de Anne Frank, escrito pela jovem alemã Anne Frank, e, no Brasil, Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. A crônica é, segundo alguns autores, um gênero híbrido que mistura discur- so literário e discurso jornalístico (e, portanto, factual e histórico). A crônica faz dos acontecimentos e temas miúdos do cotidiano do leitor o seu tema narrativo, dando a eles uma luz especial. O cronista capta o que até então não era notado e que agora se torna objeto de reflexão e julgamento, se preocupando em defender o seu ponto de vista e o endereçando aos seus contemporâneos. Assim, é a apropriação temática de fatos reais e de reflexões baseadas nos comportamentos humanos na sociedade que caracteriza a crônica como um gênero que aproxima a literatura da história. A metaficção historiográfica tem por característica essencial o questionamento das “verdades históricas”, as quais, devido às relações de interesse e poder de grupos con- servadores, permaneceram por muito tempo inabaladas. Na metaficção historiográfica, a história é recuperada não em caráter de certeza, mas como uma entre tantas outras possibilidades de compreensão do mundo. São exemplos História do Cerco de Lisboa, de José Saramago, e, no Brasil, Agosto, de Rubem Fonseca. ATENCAO Você deve entender que a crônica, por se referir a dados do cotidiano, é sempre colada ao momento histórico em que é produzida, sendo, por isso, uma importante fonte de historicidade para tempos posteriores. Ainda assim, as crônicas podem abordar outros temas, se referindo a assuntos de interesse não apenas local. INTERESSA NTE 24 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • As narrativas estabelecem inúmeras relações com a história, com a sociedade, e com a literatura. • As narrativas também se relacionam com a crítica literária. • Textos literários podem abarcar registros da história. 25 1. "O tema Narrativa e História é objeto de um debate na historiografia contemporânea em relação ao qual as Ciências Sociais não deveriam estar desatentas: seja diante das questões envolvidas nas reconstruções históricas da sociedade isto é, diante dos modos de percepção ou representação dos seus tempos históricos seja diante da forma que a escrita de uma história a ser reconstruída pode tomar" (CARDOSO, 2000, P. 3). Sendo assim, classifique V para sentenças verdadeiras e F para as falsas: Fonte: CARDOSO, Irene. Narrativa e história. Tempo soc., São Paulo , v. 12, n. 2, p. 3-13, Nov. 2000 . Available from <https://bit.ly/32ppv5v>. access on 07 July 2020. https://bit.ly/33kuYcJ. ( ) O filósofo David Hume sustenta que tanto a literatura quanto a história fazem uso do mito, da forma narrativa, mas elas diferem quanto às relações que estabelecem com o mundo relatado. ( ) A partir das situações vividas pelas personagens, a narrativa literária aproxima realidade e representação de fatos, lidando continuamente com o possível e o impossível. ( ) Facilmente pode-se estabelecer limites claros entre o discurso literário e o discurso historiográfico, já que se processam por meio de tipos textuais diferentes e gêneros discursivos totalmente opostos entre si. Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) F - V - F. b) V - F - V. c) V - V - F. d) F - F - V. 2. Para Cardoso (2000, p. 10) "[...] a narrativa histórica poderia ser aproximada de uma narrativa ficcional quando uma história-memória, cujo objeto é a memória histórica das sociedades (no sentido anteriormente construído), defronta-se com as construções desaparecidas que são também desconhecidas. E esta questão é significativa porque esse desconhecimento, embora constituindo-se como um ponto cego de compreensão na história, jamais poderá ser inteiramente recoberto por um conhecimento histórico construído a partir de traços deixados na história". Desta maneira, classifique V para sentenças verdadeiras e F para as falsas: Fonte: CARDOSO, Irene. Narrativa e história. Tempo soc., São Paulo , v. 12, n. 2, p. 3-13, Nov. 2000 . Available from <https://bit.ly/32ppv5v>. access on 07 July 2020. https://bit.ly/33kuYcJ. ( ) A narrativa literária pode ser considerada uma ferramenta dinâmica e complexa de manipulação da linguagem verbal. AUTOATIVIDADE 26 ( ) O conceito de “narrativa” está relacionado ao hábito de contar histórias. Para o estudioso Barthes tanto a história quanto a literatura são formas narrativas. ( ) As narrativas são responsáveis pela perda da memória coletiva, prevenindo que os ideais das sociedades sejam repassados para suas gerações posteriores. Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) V - V - F. b) V - F - V. c) F - V - F. d) F - F - V. 27 TÓPICO 3 TEMPO E ESPAÇO NA NARRATIVA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Neste capítulo, você vai se aprofundar na análise de dois aspectos importantes da narrativa: o tempo e o espaço. Cada uma dessas categorias tem papel essencial na consolidação da narrativa e também na construção dos efeitos de sentido do texto. O modo como esses elementos se articulam no texto e as escolhas do autor em relação a eles produzem incontáveis histórias, cada uma com seu encanto e suas surpresas. Como a narrativa se caracteriza pela sucessão de ações no tempo e no espaço, é inquestionável a importância de um estudo teórico sobre a elaboração dessas categorias. Neste capítulo, você vai ver muitas informações sobre os vários processos de criação literária a partir do tempo e do espaço. Além disso, vai conhecer alguns exemplos de histórias que exploraram muito bem essas potencialidades. 2 O TEMPO NA NARRATIVA Para começar a sua reflexão, veja este breve comentário do escritor Lodge (2017, p. 83–84, grifo nosso): A maneira mais simples de se contar uma história, preferida dos bardos tribais e dos pais que põem os filhos a dormir, é começar pelo começo e então seguir até chegar no fim, ou até que o público durma. Mas, ainda na antiguidade, os contadores de histórias perceberam que era possível obter efeitos interessantes ao se abrir mão da ordem cronológica. [...] Graças à manipulação temporal, a história evita apresentar a vida como uma sucessão de acontecimentos um atrás do outro, permitindo-nos fazer ligações de causalidade e de ironia entre acontecimentos muito distantes. A partir dessa ideia, você pode depreender muitas informações acerca da importância da representação do tempo na história. Lodge (2017) se refere à manipulação do tempo como um aspecto significativo para atrair o leitor e complexificar a narrativa. De fato, “subverter” a ordem cronológica, ou seja, optar por começar as histórias por outro ponto que não
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