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Rede e Singularidade das Ciências

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Sobre a noção de rede e a singularidade das ciências 
 
Marcia Moraes 
 
 
 
Resumo: Este artigo tem o objetivo de analisar as relações entre as discussões acerca da 
singularidade das ciências propostas por Isabelle Stengers e a noção de rede tal como proposta 
nos trabalhos de Bruno Latour e Michel Callon. Colocar as ciências sob o signo do acontecimento, 
tese de Stengers, implica uma redefinição das noções de fato científico, verdade e razão. Trata-se 
de considerar as ciências como um processo de fabricação de fatos, nos quais estão articulados 
atores heterogêneos e díspares. A noção de rede é o fio condutor que permite entender o sentido 
e o alcance da tese a respeito da singularidade da ciência. Por fim, são analisadas as 
conseqüências desse enfoque para o debate em torno da cientificidade da psicologia. 
 
Palavras-chave: singularidade da ciência, rede, psicologia. 
 
Sobre a noção de rede e a singularidade das ciências 
 
 
 
Analisar as ciências sob o signo dos acontecimentos, tese deleuziana de Isabelle Stengers (1993), 
é aceitar - contra qualquer critério a-histórico e a-político - a possibilidade de um paralelo com a 
maneira pela qual Deleuze & Guattari caracterizam a filosofia, isto é, como um processo 
contingente. A tese de Stengers se baseia, numa grande medida, nos trabalhos de Bruno Latour e, 
talvez por este motivo, ela lhe dedique o livro L’Invention des Sciences Modernes. 
 
A invenção das ciências modernas decorre, de acordo com Stengers (ibid), da invenção de um 
dispositivo, cujo autor é Galileu e cuja característica é a produção de um “fato de arte” ou um 
artefato. Esse dispositivo se caracteriza principalmente por permitir a seu autor se retirar da cena 
experimental, isto é, no caso de Galileu, o movimento descrito pelo plano inclinado prescinde da 
presença do seu autor. Assim, a lei do movimento independe de uma observação, ele depende de 
uma ordem de fato, criada a partir de um dispositivo de laboratório. Mas, Stengers (ibid) salienta, 
esse dispositivo tem uma peculiaridade: ele produz uma ficção, um artefato só passível de ser 
interpretado de um modo, isto é, o dispositivo permite afirmar que a única descrição fiel do 
movimento é aquela que lhe confere Galileu. Produzida por um dispositivo experimental, a 
verdade apresenta-se como uma ficção, uma produção peculiar que se define negativamente por 
não poder ser enunciada senão de acordo com os parâmetros estabelecidos por aquele 
dispositivo experimental. A verdade de um enunciado experimental faz calar o cético, faz calar 
qualquer adversário. “O mundo fictício proposto por Galileu não é somente o mundo que Galileu 
sabe como interrogar, é um mundo que ninguém pode interrogar diferentemente dele” (ibid, p. 
100). O dispositivo experimental é, nesse sentido, um operador que incide simultaneamente 
sobre as coisas e sobre os humanos uma vez que ele propõe, numa mesma operação, uma 
encenação das coisas e uma desqualificação daqueles que, dentre os homens, não aceitam o 
desafio dessa encenação. Esse enfoque de Stengers se coaduna com o de Latour (1994), uma vez 
que o plano inclinado ocupa em seu trabalho um lugar semelhante àquele que Latour (ibid) 
confere à bomba de ar, inventada por Boyle. Tanto num caso quanto no outro importa salientar a 
função mediadora do dispositivo experimental; aqui vale lembrar que o termo mediação implica 
uma operação de transformação, de tradução. Assim, os dois dispositivos em questão 
redistribuem e redefinem sujeito e objeto, sociedade e natureza[1] e funcionam, segundo 
Stengers, como “dispositivos tutelares da prática teórico-experimental” (Stengers, op. cit., p. 116). 
Como mediadores, tais dispositivos operam deslocamentos, desvios, traduções, operam, enfim, 
transformações nos atores que, de um modo ou de outro, estão implicados na prática 
experimental. Atores certamente tão heterogêneos e díspares quanto uma bomba de ar e uma 
guerra civil iminente. Quais são as conseqüências de considerar desse modo a invenção das 
ciências? O que significa, do ponto de vista de uma reflexão sobre as ciências, tratar os 
dispositivos experimentais como mediadores? 
 
De saída a concepção citada acima tem como conseqüência questionar a idéia de que um 
cientista trabalha isolado em seu laboratório. Não se trata simplesmente de afirmar a existência 
de uma “comunidade científica”. É mais do que isto. Dizer que um cientista não está isolado 
significa dizer que, em seu laboratório, ele só faz existir um fato na medida em que mobiliza 
aliados. A ciência é, nesse sentido, um processo de bricolage e negociação. Assim, para fazer 
existir um fato, é preciso estender, ampliar a rede[2] de aliados que o sustentam. O 
acontecimento experimental levanta o problema político da co-existência da ciência com outros 
atores que precisam ser mobilizados, aliados; em outras palavras, o acontecimento experimental 
abre o problema das suas conseqüências, dos seus efeitos sobre atores heterogêneos. Esse modo 
de tratar a ciência requer um questionamento de qualquer perspectiva filosófica ou 
epistemológica que enquadre a ciência, através de suas distinções e fronteiras, em relação ao 
contexto social, cultural ou político. Stengers, do mesmo modo que Latour, afirma a estreita 
relação entre ciência e política, ciência e redefinição dos laços sociais. 
 
A principal característica da política inventada pelas ciências é o vínculo por ela engendrado entre 
a praxis - a sabedoria prática - e a poiesis - o saber-fazer. Segundo Stengers (ibid), a distinção 
aristotélica entre praxis e poiesis diz respeito à distinção entre a ação humana, aberta e ilimitada, 
por um lado, e o trabalho de fabricação de um produto, por outro. O laboratório é o lugar de 
cruzamento da poiesis com a praxis. Poiesis, porque ele é o lugar de fabricação de um fato por 
meio de um dispositivo experimental. Praxis porque o fato não é um fim em si mesmo; ao 
contrário, ele abre um domínio de ação díspar, ele se endereça a outros atores e é disso que 
depende a sua existência. 
 
Com essa linha de argumentação, Stengers afirma que “a questão do poder não é um parasita da 
prática das ciências”(ibid, p.119). Stengers entende a questão do poder como uma das 
conseqüências do acontecimento experimental. Poder é sinônimo de poder local, poder de 
interessar e mobilizar aliados. Numa palavra, poder é sinônimo de redes de poder. O 
acontecimento experimental não garante a um fato ser estabelecido como científico. Não há a 
priori nenhuma garantia acerca das conseqüências do acontecimento experimental; como uma 
contingência, ele não se justifica por qualquer ordem transcendente, mas sim pelas ordens locais, 
pelas alianças performativas produzidas a partir de seu advento. O acontecimento experimental 
se situa num ponto de cruzamento entre fato e história, isto porque um fato não possui uma 
identidade que o defina em si, isoladamente, ele depende de uma rede composta de atores 
múltiplos. O acontecimento experimental abre um campo de negociação a partir do qual serão 
definidos a identidade do fato, o brilho do cientista, a importância de um laboratório, enfim, 
desse campo de negociação emergem como pontos locais, a verdade do fato, a racionalidade da 
atividade científica, a natureza e a sociedade. 
 
Os laboratórios e suas redes 
 
Stengers (ibid) faz uma leitura interessante de um trabalho clássico de Bruno Latour, o seu livro 
Science in Action. Ela mostra que, nesse texto, Latour trabalha de maneira brilhante com a 
concepção de ciência como estratégia de mobilização do mundo por meio de seus produtos, os 
fatos científicos. Nesse livro, Latour lida com um exemplo: a descrição de uma semana na vida de 
um cientista, diretor de um laboratório onde foi identificado um hormônio secretado pelo 
cérebro, a pandorina. Esse hormônio é um artefato. A pandorina isolada e purificada não é mais 
do que uma molécula produzida pelo cérebro. No entanto, dependendo da estratégia do cientista 
para mobilizar aliados, ela pode vir aser um ponto de partida para uma revolução, pode valer um 
prêmio Nobel, pode servir para colocar fim em uma controvérsia. O papel do cientista é produzir 
interesse, intrigar, negociar. Um campo de negociação é aberto pelo advento da pandorina e a 
identidade desse artefato vai ser um efeito dos resultados de tal negociação. Da universidade à 
industria, os deslocamentos são necessários para definir a pandorina como um fato científico. As 
operações de tradução e mediação efetuam as transformações necessárias para que a pandorina 
possa interessar a uma indústria, a uma universidade, a outros cientistas, aos alunos de pós-
graduação, aos jornalistas. O cientista deve fazer existir o fato nos mais díspares registros. Isso 
não significa que a pandorina dependa, para existir, única e exclusivamente da estratégia do 
cientista. É certo que no laboratório ela passa por rigorosas condições de prova. Mas, salienta 
Stengers, 
 
nada confere à molécula ‘em si’, independentemente do cientista, o poder de 
suscitar essas provas das quais ela depende, de impor aos pesquisadores, aos 
industriais, aos jornais científicos, um interesse sem o qual ela permaneceria uma 
simples molécula, nua, com papel e possibilidades indeterminados. (...) O cientista 
é constrangido a se interessar pelo mundo, a transformá-lo, para que este mundo 
faça existir sua molécula. (Stengers,1993, p. 138). 
 
Enquanto as leituras epistemológicas das ciências procuram, de um modo ou de outro, 
estabelecer uma relação entre razão e verdade, a perspectiva aberta pela teoria ator-rede, 
endossada por Stengers, relaciona política e razão, ou seja, faz valer à noção de rede uma política 
da razão. O interesse é parte constitutiva dessa política: interessar, convencer, negociar, procurar 
aliados são as condições de possibilidade para um fato ser científico. Não há razão sem 
negociação, sem essa política inventada pela ciência. Daí decorre a importância de investigar uma 
ciência em ação, isto é, a ciência praticada pelos cientistas nas bancadas dos laboratórios. Qual a 
importância de uma etnografia de laboratório, tal como aquela que Latour e Woolgar (1997) 
propõem a respeito do Instituto Salk? 
 
Na perspectiva da teoria ator-rede, um laboratório está longe de ser um lugar isolado, fechado e 
separado do mundo. Ele é o locus onde são constantemente redistribuídas a natureza e a 
sociedade. Latour (1992) salienta que não há de um lado, um contexto social e de outro, um 
laboratório. A questão fundamental diz respeito ao papel desestabilizador de um laboratório: a 
clonagem de uma ovelha mobiliza a Igreja, redefine as ciências biológicas, levanta questões éticas, 
políticas. Numa análise do trabalho de Pasteur no século XIX, quando o grande cientista inventou 
uma vacina contra o antraz, uma doença que atacava o gado e infernizava a vida dos criadores de 
animais, Latour afirma que: “em seu próprio trabalho científico, nas profundezas de seu 
laboratório, Pasteur modifica a sociedade de seu tempo e o faz de maneira direta - e não indireta 
- por meio do deslocamento de alguns de seus atores mais importantes”(ibid, p.156). Ao inventar 
uma vacina contra o antraz, Pasteur se tornou o único porta-voz autorizado a falar em nome do 
micróbio, agente causador da doença. Com isso, ele deslocou para o seu laboratório interesses 
diversos: dos criadores de animais, dos veterinários e dos higienistas, por exemplo. Há uma série 
de deslocamentos, de operações de tradução nas relações entre o laboratório e as propriedades 
agrícolas implicadas no problema do antraz. E Latour salienta: “nessa sucessão de deslocamentos, 
ninguém pode dizer onde fica o laboratório e onde fica a sociedade” (ibid, p. 154). A dicotomia 
entre interior e exterior deixa de ter pertinência quando o que está em jogo é a construção de 
uma rede capaz de fazer existir a vacina do antraz, a esperteza de Pasteur, os consumidores da 
vacina. Toda uma série de traduções e desvios estão implicados na mobilização desses atores. As 
análises da ciência como o exercício de uma razão, ou como a instituição de uma norma, deixa 
escapar uma estreita relação entre ciência e sociedade, ciência e política e é justamente sobre 
esse ponto que incide a teoria ator-rede. Em outras palavras, estudar a ciência em ação significa 
estudar a ciência como um processo de fabricação do mundo - social e natural. Ação é aqui o 
mesmo que fabricação, invenção; não se trata da ação de um indivíduo, mas de uma prática 
coletiva, uma prática de mediação que articula humanos e não-humanos. A noção de rede 
desloca o cerne dos estudos em ciência: da representação para a fabricação. Disso decorre a 
importância das etnografias de laboratório. Estudar a ciência em ação é questionar a distinção 
entre o nível macrossocial e as ciências de laboratório porque os resultados do trabalho 
experimental se deslocam numa rede de ação cuja extensão alcança desde os laboratórios até os 
mais diversos atores. Por esse motivo, Callon (1989) propõe tratar o laboratório como uma rede 
que articula humanos - os cientistas, os técnicos - a não humanos - os equipamentos, 
instrumentos, revistas, dados , etc. 
 
“A ciência é a política praticada por outros meios”, diz Latour (op. cit., p. 168). É política na 
medida em que ela é fonte de poder, isto é, ela convence, interessa, mobiliza, desloca os mais 
diversos atores. No exemplo de Pasteur, Latour mostra como, por meio dos mais imprevisíveis 
recursos, o cientista deslocou atores importantes na sociedade do século XIX. Levando esse 
argumento às últimas conseqüências, Latour considera que nas sociedades contemporâneas “a 
maior parte do poder realmente novo vem das ciências e não do processo político clássico” (ibid). 
Por isso, os sociólogos da ciência, quando investigam os macroníveis, isto é, os contextos sociais, 
políticos, econômicos, excluem de cena exatamente o que é forte nas ciências e na tecnologia: as 
políticas por elas inventadas, a sociedade por elas definidas e a natureza por elas criadas. Para 
estudar o modo como as ciências redefinem os laços sociais, para estudar a sociedade e a 
natureza que elas fabricam, é preciso, conforme indica Latour (ibid), estudar o conteúdo das 
ciências, estudar as ciências em ação na bancada dos laboratórios. 
 
Fazer da ciência um acontecimento contingente implica levantar o problema da sua singularidade. 
Stengers (op. cit.)afirma que a singularidade das ciências consiste numa invenção peculiar - o 
dispositivo experimental - que produz ficções convincentes, ficções que têm, conforme dito 
anteriormente, o poder de fazer calar qualquer adversário. Para usar os termos de Latour (1994), 
a singularidade das ciências diz respeito ao seu poder de produzir assimetrias, produzir nós em 
uma rede de atores, de produzir pontos de passagem obrigatória. A singularidade das ciências faz 
valer o caráter coletivo, político da prática científica porque, para produzir uma assimetria na rede 
de atores, é necessário buscar aliados. Foi o que fez Pasteur com a vacina contra o antraz e é o 
que faz qualquer cientista. 
 
A singularidade das ciências ou as ciências como potências de inovação 
 
A noção de singularidade das ciências, proposta por Stengers, encontra ressonâncias na a filosofia 
deleuziana e é um dos pontos-chave para traçar o paralelo entre filosofia e ciência. Na filosofia da 
diferença, o conceito de singularidade remete à alegação de uma realidade pré-individual para a 
gênese das formas individuadas. Nesse medida, a noção de indivíduo é segunda e relativa em 
relação ao pré-individual. Buydens (1990) salienta que, por esse viés, Deleuze & Guattari 
ultrapassam o substancialismo atomista porque neste domínio os átomos são unidades fechadas 
e delimitadas de tal maneira, que qualquer processo genético parte de uma realidade já 
determinada. Em outras palavras, está em jogo, nesse caso, um processo de gênese que consiste 
em passar de um indivíduo a outro e ao contrário disso, o desafio da filosofia de Deleuze & 
Guattarié tratar de um processo genético cujo solo é composto por uma realidade pré-individual. 
As singularidades são intensivas, nômades e móveis, não havendo nenhuma relação de afinidade 
que, de antemão, estabeleça os critérios de seus agenciamentos. Dessas características decorrem 
o aspecto sempre contingente das multiplicidades: “sua forma não é de modo nenhum 
necessária, mas resulta do agenciamento sempre espontâneo e modificável das 
singularidades”(Buydens, ibid, p.23). Falar de uma singularidade das ciências, como faz Stengers, 
significa afirmar o caráter contingencial das práticas científicas e, mais do que isto, significa 
considerá-las a partir de distribuições de errância, instáveis por natureza. 
 
A idéia de uma singularidade das ciências não se confunde com as discussões epistemológicas em 
torno de sua autonomia. A epistemologia de língua francesa se baseia num princípio geral de 
estabelecer as fronteiras entre ciência e não-ciência. Stengers salienta que a epistemologia tem 
uma preocupação démarcationniste[3] e por isso não pode prescindir das noções de corte e 
ruptura. Como conseqüência disso, a ciência é vista como um domínio autônomo, entendendo o 
termo autonomia como a constituição de uma realidade distinta do contexto social, político. Na 
perspectiva de sua singularidade, as ciências são vistas como processos contingentes, políticos, 
instáveis por natureza e marcadas por uma deriva intrínseca; já na leitura epistemológica, as 
ciências são vistas como uma instituição de normas, como um domínio separado do contexto 
social, político, enfim, como um domínio autônomo em relação às demais práticas humanas. Uma 
conseqüência importante desse enfoque epistemológico é ele impor uma desqualificação daquilo 
que fica fora do domínio científico. Desse modo, há um resíduo - o contexto social, a política, a 
ação humana, no sentido de uma praxis - que é excluído do domínio da ciência e que, além disso, 
é destituído de qualquer poder de colocar em risco os enunciados científicos. O não-científico é 
da ordem da opinião e, como tal, é destituído do poder de interrogar a ciência quanto aos seus 
objetos e quanto à sua démarche. Em última instância, a discussão em torno da autonomia das 
ciências visa a garantir-lhes um espaço sem risco, sem instabilidades. Enquanto a noção de 
singularidade faz desse risco uma pedra de toque, a noção de autonomia tende a capturar numa 
norma qualquer contingência. Nesse caso, os enunciados científicos se tornam categorias de 
julgamento isoladas da rede de sua prática. Disso resulta que 
 
o fenômeno não é mais apenas um testemunho confiável, mas torna-se objeto no 
sentido forte, quer dizer, que as categorias experimentais perdem sua referência 
à cena experimental enquanto que prática, para tornar-se categorias de 
julgamento, válidos de direito, independentemente do laboratório onde elas 
poderiam ser colocadas à prova. (Stengers, 1993, p. 122). 
 
Um tipo assim de leitura das ciências acaba por fazer valer as categorias do verdadeiro para além 
dos limites da prática que as engendram. A ciência deixa então de ser uma potência de inovação 
para se tornar um modelo a ser reproduzido. Stengers afirma que os termos objetividade, 
neutralidade, racionalidade são de fato estranhos à prática da ciência (Chevalier, 1997, p.3). Isso 
não significa dizer que os enunciados de uma ciência, como a física, por exemplo, devem ser 
reduzidos a uma simples construção social. Antes, significa dizer que a existência de um fato 
experimental, o neutrino, para tomar um exemplo em física (ibid, p.5), responde aos critérios dos 
físicos, “critérios que, certamente, são altamente exigentes mas que não convêm forçosamente a 
todos os modos de existência por nós encontrados” (ibid). Considerá-los como modelos é o 
mesmo que propor que todas as demais práticas científicas deveriam se organizar de acordo com 
o estilo da física, de acordo com as suas categorias práticas, com os seus riscos. A ontologia em 
rede, ao contrário, permite afirmar, conforme indica Stengers, que “existir se diz em múltiplos 
sentidos” (ibid), logo, considerar as exigências de uma prática científica singular como um padrão 
a seguir é ignorar “a multiplicidade dos problemas que os humanos são capazes de levantar” 
(ibid). Nessa perspectiva, não há como supor as diversas ciências se dirigindo a objetivos 
comparáveis, o que resulta na impossibilidade de afirmar uma relação de hierarquia entre as 
ciências. As questões de uma ciência só valem para aqueles que se engajam em sua prática ou, 
dito de outra forma , para aqueles atores que são mobilizados pela sua rede de ação. Ao invés de 
falar de uma hierarquia das ciências, ao invés de considerar uma démarche científica como 
modelo e paradigma para qualquer outra ciência, cabe afirmar a singularidade de cada uma, as 
exigências e os riscos singulares de cada prática científica. 
 
Assim, parece-nos que entender as ciências por sua singularidade, como propõe Isabelle Stengers, 
implica afirmar a noção de rede, isto é, implica afirmar que as ciências são práticas que produzem 
efeitos na medida em que mobilizam aliados. Dito de outro modo, a noção de rede tal como 
definida por Latour (1994), isto é, como ontologia de geometria variável, pode ser considerada 
como ponto de partida a partir do qual se pode entender as ciências como singularidades. Tal 
análise engendra conseqüências estéticas, políticas e éticas. Estética no sentido de que uma 
prática científica faz existir seres até então inéditos e, mais do que isto, a prática científica produz, 
dentre os homens, aqueles que se engatam na sua prática. Desse modo, o efeito estético da 
singularidade das ciências diz respeito a um processo de dupla produção: de um lado, os artefatos 
e de outro, os cientistas. Nas palavras de Stengers, “estética designa de início uma produção de 
existência que releva da potência de sentir: potência de ser afetado pelo mundo sobre um modo 
que não é aquele de interação sofrida, mas de uma dupla criação de sentido, de si e do mundo” 
(op. cit., p. 167). 
 
Efeitos políticos: a ciência é considerada a partir de relações de interesse, de alianças 
performativas. O sentido de política remete, conforme dito anteriormente, às redes locais. Um 
fato científico é aberto, isto é, comporta um grau de indeterminação a ser preenchido de acordo 
com a rede da qual ele vai fazer parte. 
 
Efeitos éticos: está em jogo a construção de verdades locais, imanentes às suas redes de ação. A 
verdade científica é um efeito de uma ação díspar e paradoxal: a prática científica. Nesse sentido, 
ela é a posteriori, local, temporária, instável. Não há nenhuma ordem transcendente que, como 
um lei moral, garanta de antemão os critérios sobre a veracidade de um enunciado científico. 
 
Assim, do ponto de vista de sua singularidade, uma ciência é avaliada a partir dos riscos de suas 
práticas, os seus produtos são artefatos ou ficções, as suas práticas são sempre coletivas e delas 
resultam a invenção do sujeito e do objeto. Diferentemente disso, do ponto de vista de sua 
autonomia, as ciências são avaliadas por seus princípios que, grosso modo, podem ser descritos 
como palavras de ordem, os resultados de sua práticas funcionam como categorias de 
julgamento, sujeito e objeto são tomados como pólos constituídos, dados. 
 
A psicologia e a questão da singularidade da ciência 
 
A questão da singularidade da ciência toca em particular a psicologia. Porque, conforme indica 
Stengers (Chevalier, op. cit), a psicologia experimental é um ótimo exemplo dessas disciplinas 
que, para existir, têm necessidade da idéia de que um conhecimento objetivo se obtém 
suprimindo nos objetos aos quais elas se dirigem tudo aquilo que poderia colocá-los em risco. O 
problema do erro é um desses casos: importa encontrar leis gerais que permitam justificar porque 
o homem erra, seja na cognição, seja em suas práticas. A psicologia, desde o século passado, está 
às voltas com o problema de sua justificativa,de sua autonomia em relação, por um lado, às 
ciências naturais, por outro lado, em relação à filosofia. A polêmica em torno de sua 
cientificidade, de sua dispersão, dos seus métodos e objetos diz respeito a um certo modo de 
entender o que constitui uma prática científica. 
 
É possível dizer que os debates em torno da cientificidade da psicologia giram em torno de um 
estilo epistemológico de analisar as ciências. Um estilo caracterizado por: tomar como referência 
dada a dicotomia entre sujeito e objeto; situar o problema do conhecimento no âmbito da 
representação, isto é, das relações entre sujeito e objeto; por estabelecer princípios de 
demarcação entre ciência e não ciência, fazendo com que o não científico seja destituído do 
poder de questionar e interrogar os enunciados de uma ciência. 
 
A insistência do problema do erro no campo da psicologia assinala a insistência de seu campo 
problemático que, longe de ser corrigido ou justificado, deve ser tomado como a sua potência de 
inovação. Uma das condições de formulação de uma psicologia afinada com o nomadismo de seu 
campo problemático envolve a sua afirmação como uma ciência em rede, uma ciência híbrida. 
Nesse sentido, estamos diante de uma ciência que se define por suas relações com o político, que 
se singulariza como prática coletiva e que mantém relações de devir - e não de autonomia - com 
as demais práticas: antropologia, informática, ciências naturais. Não se trata de considerar 
quaisquer dessas práticas como modelos a serem seguidos, trata-se antes de “dar aos diferentes 
tipos de prática uma existência legítima, fora hierarquia” (ibid, p.07) - uma preocupação política. É 
certo que esse estilo de ciência acompanha a ontologia em rede do real. Assim, no caso da 
psicologia, não importa estudar a cognição como um atributo de um sujeito, ou estudar uma 
prática humana referida a um agente individual. A ontologia em rede engendra um deslocamento 
da noção de sujeito para subjetividade e da noção de objeto para coisa no sentido de sua 
variação. No que toca à cognição, a teoria ator-rede opera um deslocamento interessante: trata-
se de entender a cognição como uma dupla articulação entre humanos e não-humanos. Na 
perspectiva das redes, a cognição é distribuída a atores díspares, sejam eles humanos, sejam não-
humanos. Uma cognição delegada, distribuída e não referida a um agente cognitivo (Woolgar, 
1996). Entender a psicologia a partir da noção de rede comporta uma dupla exigência: uma 
redefinição do sentido de uma ciência psicológica e uma redefinição do seu campo de estudos. 
Ação e cognição não são no contexto das redes devidas a um agente individual, elas remetem 
antes a um campo de multiplicidades díspares e heterogêneas. Elas são práticas coletivas, práticas 
de hibridação na qual estão sempre articulados humanos e não-humanos. 
 
 
Notas 
 
[1] Para entender as distinções entre os dois dispositivos, ver Stengers, 1993, p. 116. 
 
[2] A noção de rede remete a fluxos, circulações, alianças, movimentos. A noção de rede de atores 
não é redutível a um ator sozinho nem a uma rede. Ela é composta de séries heterogêneas de 
elementos, animados e inanimados conectados, agenciados. Por um lado, a rede de atores deve 
ser diferenciada dos tradicionais atores da sociologia, uma categoria que exclui qualquer 
componente não-humano. Por outro lado, a rede também não pode ser confundida com um tipo 
de vínculo que liga de modo previsível elementos estáveis e perfeitamente definidos, porque as 
entidades da quais ela é composta, sejam elas naturais, sejam sociais, podem a qualquer 
momento redefinir sua identidade e suas mútuas relações, trazendo novos elementos para a 
rede. Neste sentido, uma rede de atores é simultaneamente um ator cuja atividade consiste em 
fazer alianças com novos elementos, e uma rede que é capaz de redefinir e transformar seus 
componentes. Cf. Callon, 1986, pp.83-103. 
 
*3+ Cf. Stengers 1993, p. 36. Ao tratar da epistemologia, a autora utiliza a expressão “tradition 
démarcationniste”. Optei por utilizar o termo no original por não encontrar em português um 
termo equivalente. 
 
 
 
Referências Bibliográficas: 
 
 
Buydens, M. (1990) Sahara. L’Eshetique de Gilles Deleuze. Paris, Vrin. 
 
Callon, M.( 1989) La Science et ses Réseaux. Paris, La Découverte. 
 
Callon, M. (1986) Society in the Making: The Study of Technology as a Tool for Sociological 
Analysis. In: Bijker, W.; Hughes, T.P. & Pinch, T. (eds) The Social Construction of Technological 
Systems. New Directions in the Sociology and History of Technology. Cambridge, Mass., The Mit 
Press, pp.83-103. 
 
Chevalier, G. Isabelle Stengers Inventer une Écologie des Pratiques. Propositions pour mettre fin à 
la guerre généralisée des savoirs. Disponível na Internet: 
http://www.larecherche.fr/ARCH/N9705/mai97-ent.html. Consulta efetuada em 1998. 
 
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