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APG – 27/04 – Doenças desmielinizantes Os distúrbios de mielina abrangem uma ampla faixa de doenças, nas quais não há produção dessa substância (hipomielinização), a mielina normal não está formada (doença dismielinizante) ou a mielina normalmente formada é destruída ou não mantida apropriadamente (doença desmielinizante e mielinólise). As doenças hipomielinizantes e dismielinizantes são raras e incluem uma série de leucodistrofias, que apresentam base genética e podem afetar a formação de mielina como um resultado primário ou secundário. As doenças desmielinizantes são muito mais comuns e incluem: esclerose múltipla (EM), que representa mais de 95% de todos os tipos de distúrbios de mielina do sistema nervoso central (SNC). Esclerose Múltipla (EM): é uma doença caracterizada por áreas multifocais de desmielinização no cérebro e na medula espinal, com infiltrados celulares inflamatórios associados, gliose reativa e degeneração axonal, que se manifesta tipicamente em adultos jovens com disfunção neurológica episódica. Embora a etiologia exata da EM permaneça enigmática, a evidência sugere que ela seja um ataque à mielina mediado pelo sistema imune, com perturbação secundária de axônios levando à incapacidade progressiva com o tempo, na maioria dos pacientes afligidos. Epidemiologia: A incidência anual de EM varia de acordo com o local entre 1,5 e 11 casos por 100 mil pessoas e fica atrás somente de traumatismo como causa mais comum de deficiência neurológica em adultos jovens. Estudos recentes sugerem que o índice de incidência aumentou, em parte em razão do reconhecimento de mais casos em estágio mais precoce, mas provavelmente, também, em razão de uma incidência realmente crescente, especialmente nas mulheres. A prevalência é estimada em 150 por 100.000 na população adulta dos EUA, o que se traduz em aproximadamente 400 mil casos naquele país e em mais de 2 milhões em termos globais, mas esses números podem ser subestimados em virtude do reconhecimento incompleto da doença, mesmo em países desenvolvidos, e à incidência aumentada desde quando essas estimativas foram calculadas. A EM ocorre 2 a 2,5 vezes mais frequentemente nas mulheres, uma predileção por sexo que é comum nas doenças autoimunes. A doença se manifesta, mais frequentemente, na terceira a quarta décadas de vida, mas com faixa de incidência por idade desde a adolescência até pessoas na casa dos 50 anos. Casos raros ocorrem em crianças ou em pacientes na faixa dos 60 anos, mas cuidado extremo se justifica nessas situações para excluir processos alternativos. Em muitos casos de EM de início tardio, os sintomas já existiam em anos anteriores e foram atribuídos a outras causas. A EM é mais comum em pessoas de ascendência norte-europeia. Em muitas regiões do mundo, a EM é mais prevalente em latitudes temperadas (chegando a 1 em cada 500 pessoas em alguns locais) e torna-se menos comum em direção ao equador (1 em 20.000 ou relatos de caso raros somente em alguns locais), talvez em razão, em parte, de padrões de migração de pessoas com a mesma informação genética. Entretanto, a ausência de penetrância genética completa em estudos com gêmeos monozigotos e aumentos recentes na incidência em populações geneticamente estáveis sugerem fortemente um componente ambiental para a doença. Na verdade, uma epidemia de EM foi documentada nas Ilhas Faroe após a Segunda Guerra Mundial e numerosos outros clusters foram informados, embora um único desencadeador ambiental não tenha sido identificado. Genética: O risco da doença durante a vida aumenta para 2 a 4% em indivíduos com um parente de primeiro grau com EM, comparado com o risco geral na população de 0,1%. Além disso, entre 10 e 20% dos pacientes com EM têm um parente de primeiro grau com outra doença autoimune, geralmente artrite reumatoide, lúpus eritematoso sistêmico ou doença autoimune da tireoide. A psoríase e a doença inflamatória intestinal também podem ser mais comuns em pacientes com EM. Os modelos genéticos da doença são um forte argumento contra um único gene de EM e sugerem que muitos genes diferentes predispõem à EM e respondem por seus muitos fenótipos e sua sobreposição com outras doenças autoimunes. Estudos de ligação e de associação identificaram os antígenos leucocitários humanos (HLA) ou a região principal do complexo de histocompatibilidade (MHC) no cromossomo 6p21 como um determinante genético para EM. A região do MHC classe II, envolvida na apresentação de antígeno para as células T CD4+, é o locus mais fortemente associado. O alelo HLA-DR2 e, mais especificamente, o alelo HLA-DRB*1501 do haplótipo molecular têm sido repetidamente implicados. Múltiplos polimorfismos de nucleotídio único (SNPs) no gene do receptor alfa da interleucina-2 (IL-2) e do gene do receptor alfa de IL- 7 também parecem estar associados a um risco mais alto de EM. Mais de 200 outros SNPs de genes foram identificados, a maioria dos quais relacionados à função imune. Embora padrões estejam surgindo para sugerir a desregulação de diferentes subconjuntos de células imunológicas, até hoje as associações não são suficientemente fortes para terem valor clínico para prognóstico. Patologia: A maioria dos casos caracteriza-se por áreas multifocais de desmielinização e cicatriz gliótica flagrante no cérebro e na medula espinal. As localizações clássicas dessas lesões, chamadas placas, são os nervos ópticos, a substância branca periventricular, a substância branca profunda, a substância branca justacortical, o corpo caloso, os pedúnculos cerebelares e a medula espinal dorsolateral. Na verdade, estudos patológicos mais recentes confirmaram desmielinização, dano neurítico e atrofia no córtex cerebral (superfície pial e intracortical ou justacortical) e em estruturas da substância cinzenta profunda, especialmente o tálamo. Em nível microscópico, é comum a observação de múltiplas áreas de infiltrados celulares inflamatórios perivenulares com extravasamento para os tecidos parenquimatosos ao redor. Na placa ativa aguda, células T auxiliares (TH) CD4 são proeminentes nas áreas perivenulares. Acredita-se que citocinas proinflamatórias liberadas de células TH1 (interferona-γ [IFN-γ]) e TH17 (IL-17, fator de necrose tumoral [TNF] e fator estimulador de colônias de granulócitos-macrófagos [GM-CSF]) sejam mediadoras do dano. Cada vez mais, grande quantidade de células T citotóxicas CD8 têm sido documentadas no tecido cerebral, especialmente no parênquima, e essas células podem mediar o dano direto aos axônios e aos oligodendrócitos por meio da liberação de proteases, como a granzima B. A maioria das células inflamatórias parenquimatosas, especialmente em placas crônicas, são macrófagos e CD68+ micróglia. Adicionalmente ao influxo de células imunes em circulação, a ativação astroglial proeminente e, em alguns casos, a diferenciação de células precursoras de oligodendrócitos ocorrem em resposta à lesão. Com o tempo, a inflamação torna-se menos proeminente no centro da placa, mas uma borda de inflamação crônica ativa com ativação microglial está presente em um bem demarcado limite entre mielina anormal e normal ilesa. Essa característica da EM é raramente observada em outros distúrbios da mielina. Embora os oligodendrócitos possam sobreviver, proliferar e resultar em remielinização parcial (placas sombras) em alguns casos precoces, esse processo quase nunca está completo na EM. Com o tempo, a remielinização é menos bem-sucedida, e células precursoras de oligodendrócitos parecem incapazes de se diferenciar em oligodendrócitos maduros com capacidade de produzir mielina. O número de axônios danificados se relaciona com a extensão da inflamação. Além disso, dano axonal e até apoptose e perda neuronal são observados no córtex e na retina. A atrofia tanto do cérebro quanto da medula espinal, que ocorre mais rapidamente na EM do que no processo normal de envelhecimento,reflete perda tanto de mielina quanto de axônios. Alguns patologistas acreditam que quatro subtipos distintos de EM possam ser discernidos, nos quais as características patológicas são semelhantes em todas as lesões, permitindo a classificação dos pacientes em categorias patológicas diferentes, em vez de apenas descrever a evolução das lesões com o tempo. As lesões do tipo I são caracterizadas por infiltrados inflamatórios perivenulares típicos consistindo, principalmente, em células T, com preservação de oligodendrócitos. As lesões do tipo II são similares às do tipo I, mas apresentam um componente humoral adicional com deposição de imunoglobulina G (IgG) e ativação do complemento. As lesões do tipo III são diferenciadas por não estarem baseadas ao redor de vênulas e por perda proeminente de glicoproteína associada à mielina e evidência de apoptose de oligodendrócitos. As lesões do tipo IV têm infiltrados inflamatórios mais similares àqueles nos tipos I e II, mas apresentam também a perda de oligodendrócitos como no tipo III. Essas variações no aspecto patológico podem começar a explicar os subtipos clínicos da doença. É possível que a hipótese autoimune esteja errada e que a inflamação observada na EM seja secundária a um processo degenerativo primário ainda não caracterizado. Os proponentes dessa teoria citam a evidência de aspectos patológicos de casos hiperagudos, nos quais os oligodendrócitos parecem morrer antes da ocorrência de qualquer resposta imune sistêmica, assim como dados recentes revelando morte neuronal e axonal ou desmielinização na ausência de inflamação. Macrófagos e micróglias, que constituem a maioria das células dentro do infiltrado parenquimatoso em placas de EM crônicas, são células apresentadoras de antígenos potentes e expressam HLA e moléculas coestimuladoras. Os macrófagos e a micróglia ativados também apresentam funções efetoras, incluindo a liberação de citocinas que são parcial (IL-6, TNF-α) ou completamente distintas das células T (IL-1β, IL-12 e IL-23). Em altas concentrações, essas citocinas podem danificar oligodendrócitos e neurônios e ativar células T. Manifestações clínicas: Na apresentação clássica, uma pessoa branca e jovem, mais frequentemente do sexo feminino, terá um surto agudo ou subagudo de visão ou sensibilidade prejudicada. Cansaço, depressão, urgência urinária, fraqueza, alteração do equilíbrio e coordenação prejudicada também são sintomas comuns. A natureza frequente e acentuadamente leve dos primeiros sintomas geralmente demove o paciente de buscar atenção médica ou não é suficientemente impressionante para estimular o médico a solicitar exames diagnósticos. Além disso, os pacientes podem, de início, apresentar poucos achados neurológicos objetivos, especialmente entre os surtos. Parestesias de um membro que se mostram circunferenciais e não acompanham um dermátomo sugerem lesão da medula espinal; esses sintomas sempre se manifestam distalmente e, então, ascendem para envolver partes mais proximais do membro, espalham-se para o membro contralateral ou progridem de uma perna para um braço. Da mesma forma, sensações doloridas como uma faixa ao redor de um membro ou torso também sugerem um processo mielopático. A mielite transversa incompleta é uma síndrome focal (parcial) da medula espinal que se mostra em geral inflamatória e que não acompanha territórios vasculares. Trata-se de uma apresentação comum de EM. O sinal de Lhermitte, uma sensação elétrica movendo-se em sentido descendente pela coluna e para os membros à flexão do pescoço, é característica de mielite cervical de qualquer causa, incluindo EM. A perda franca de sensibilidade é menos comum como sintoma ou sinal precoce, mas é observada em casos mais avançados. Sensações de queimação, elétricas ou de dor profunda também são comuns em EM. • Anormalidades sensoriais: No exame, os achados sensitivos mais comuns são a perda da percepção de vibração, mais proeminente nos pés, e nível medular incompleto de sensibilidade dolorosa ou vibratória, que são com frequência observadas em gradiente, em vez de em um nível sensitivo bem demarcado. O nível sensitivo pode ser assimétrico e diferir por modalidade sensitiva, devido à desmielinização isolada nas colunas dorsais, comparada aos tratos espinotalâmicos. Áreas irregulares e fragmentadas de prejuízo da sensibilidade, parecendo não anatômicas podem ocorrer, e alguns pacientes descrevem sensações bizarras como gotejamento de água ou insetos rastejando em uma área do corpo. • Sintomas visuais: A neurite óptica é uma síndrome de manifestação clássica, geralmente com sintomas visuais em um olho. Nesse quadro, os pacientes quase sempre se queixam de dor na região periorbitária, que piora com o movimento lateral do olho. O comprometimento visual pode ser descrito como olhar através de vidro fosco ou de um véu. O escotoma ou área da maior perda sempre pode ser mapeado em distribuição centrocecal (ponto focal central à mancha cega lateralmente), a qual, em casos leves, pode estar evidente somente como dessaturação à cor vermelha usando a cabeça de um alfinete. Casos mais graves podem resultar em perda total da percepção da luz. Na maioria dos casos de neurite óptica aguda, a inflamação é retrobulbar (atrás da papila), de modo que nenhuma alteração imediata é visível no disco óptico, daí levando ao aforismo de que “o paciente não enxerga e o médico não enxerga”. Entretanto, deverá haver um defeito papilar aferente relativo (pupila de Marcus-Gunn) com dilatação paradoxal do olho afetado ao estímulo luminoso direto, oscilando-se um flash de luz a partir do olho não afetado, no qual a constrição consensual foi induzida. Em casos de neurite óptica bilateral (nova ou antiga), essa anormalidade pode não ser visualizada. Geralmente, os pacientes recuperam substancialmente a visão, de maneira espontânea após semanas a meses. Mais tarde, o disco óptico pode se tornar pálido, especialmente na região temporal, um achado que reflete dano aos axônios após inflamação e desmielinização, mesmo com a recuperação da acuidade visual normal. Com frequência, os pacientes sofrem um prejuízo visual crônico mais sutil para cores, acuidade visual com baixo contraste e sensibilidade ao contraste. O exame oftalmológico usando tabelas de acuidade visual com baixo contraste geralmente revela perda visual importante após quadro de neurite óptica que se manifesta clinicamente como nictalopia (cegueira noturna). Os pacientes podem experimentar diplopia franca ou apenas visão turva, especialmente quando eles olham rapidamente para um lado, como olhar sobre os ombros de alguém enquanto dirigindo um veículo. O sinal neurológico desse problema é chamado de oftalmoplegia internuclear e manifesta-se como adução lenta ou ausente de um olho com nistagmo na abdução do outro olho. Ele pode ocorrer bilateralmente ou existir somente em formas mais leves, de modo que o atraso de adução é imperceptível ao observador humano. A visão turva devido ao dano cerebelar com nistagmo é muito comum em EM e geralmente pior na mirada lateral ou vertical extrema. Oscilopsia, a sensação de que o ambiente está se movendo, quando na verdade não está, é outro sintoma de coordenação cerebelar prejudicada dos olhos. Os movimentos oculares sacádicos ou a perda da perseguição suave são comuns em EM e podem ser observados em várias condições neurológicas ou com o envelhecimento. • Sintomas motores: Os sintomas motores mais comuns da EM são fraqueza e coordenação prejudicada em um membro inferior, com envolvimento ascendente de distal a proximal e habitualmente se disseminando para o membro inferior contralateral ou o membro superior ipsilateral. A lesão que causa esses sintomas fica, mais em geral, na medula espinal cervical em vez de na medula espinal torácica, mesmo quando o primeiro sinal é a queda parcial do pé. É provável que os axônios que têm que conduzirimpulsos para longas distâncias (toda a extensão da medula espinal) a partir de um sítio de desmielinização inflamatória tornem-se sintomáticos antes dos axônios que enviam sinais para sinapses mais próximas (células adjacentes ao corno anterior na medula espinal). Clinicamente, a fraqueza pode ser intensa e resultar em paralisia óbvia, ou ser tão sutil a ponto de não ser detectável. A fadiga e a fraqueza induzidas pelo calor, como demonstrado por sintomas focais (batida de um pé ou arrastando uma perna) ocorrendo depois de 15 a 20 minutos de exercício e resolvendo-se com o repouso são características de doença desmielinizante precoce. A ausência precoce de hiper-reflexia associada e de resposta plantar extensora (sinal de Babinski) podem dificultar a documentação do envolvimento do trato corticospinal. Mais tarde, com a EM mais estabelecida, sinais clássicos desse trato são, com frequência, evidentes e manifestam-se clinicamente como marcha espástica (hemiparética ou paraparética), cãibras musculares e clônus (alça reflexa sustentada), ocorrendo às vezes com alterações posicionais e confundidas com sinais de um tumor cerebelar. A ataxia pode ocorrer como resultado do envio prejudicado de informações sensitivas até a medula espinal ou da desmielinização de vias cerebelares no tronco encefálico ou cerebelo. Com frequência, essas duas situações estão misturadas e podem ser confundidas ainda mais por perda visual e habilidade de fixação compensatória do olhar no ambiente deficiente; essa combinação em geral causa tontura em multidões, nas quais a fixação pode ser mais obscurecida. A dismetria apendicular resultando em tremor para alcançar um objeto é causa comum de coordenação prejudicada e destreza. A ataxia de membro inferior e do tronco pode resultar em marcha de base alargada (como um embriagado). Outros transtornos do movimento, como tremor postural e titubeação (tremor da cabeça), são muito menos comuns na EM. A mioquimia (movimentos musculares involuntários vermiculares) sob a pele, especialmente ao redor da face, é, porém, razoavelmente comum. Pseudoatetose e parkinsonismo podem ser visualizados em casos graves. • Sintomas cognitivos e comportamentais: Mais de 50% dos pacientes com EM sofrem surtos de depressão de moderados a graves. Existe também incidência aumentada de doença bipolar, que pode se manifestar após o tratamento de depressão ou tratamento com corticosteroides. O afeto pseudobulbar, o riso ou choro patológico, é observado em pacientes com doença mais avançada. Vários sintomas cognitivos, incluindo a perda de memória recente, dificuldade de encontrar palavras, problemas com multitarefas e fadiga cognitiva podem ser confundidos com depressão, mas são sintomas primários bem reconhecidos da patologia da EM. A maioria dos pacientes não progride para a demência, mas prejuízos cognitivos e comportamentais são as principais causas da perda do emprego e das discordâncias conjugais. • Disfunção dos órgãos: Sintomas vesicais são extremamente comuns, mas com frequência não relatados, de modo que perguntas específicas devem ser feitas sobre frequência, urgência, incontinência ou retenção urinárias. A discriminação cuidadosa de uma bexiga espástica (espasmo do músculo detrusor) causando incontinência, de uma bexiga atônica ou de espasmo do esfíncter externo (os dois últimos causando retenção) levando à incontinência por transbordamento é crítico na preparação do tratamento. As infecções do trato urinário devido à disfunção da bexiga podem agravar os sintomas de EM. A disfunção intestinal manifesta-se, em geral, como constipação intestinal, que pode ser primária (relacionada ao envolvimento da medula espinal) ou secundária (relacionada à desidratação autoinduzida para manejar a frequência urinária ou os efeitos colaterais de medicamentos anticolinérgicos). A incontinência intestinal secundária a um esfíncter anal incompetente é menos comum e ocorre, com mais frequência, como um episódio de urgência fecal, às vezes relacionado a uma alteração na dieta ou doença diarreica, ou como sequela de compactação prolongada. A disfunção sexual é comum e pouco discutida na EM. Nos homens, a disfunção erétil é frequente. Em mulheres e homens, a perda de libido e a incapacidade em atingir o orgasmo pode ocorrer como resultado dos medicamentos, perda de sensibilidade, piora dos sintomas induzida pelo calor, barreiras físicas à relação sexual (umidade da mucosa prejudicada, espasticidade e dor), depressão ou transtornos da imagem corporal. • Sintomas sistêmicos: A fadiga é comum na EM, podendo estar ligada à depressão, mas que ocorre com frequência de maneira independente e pode ser o sintoma mais incapacitante da doença. A anamnese do sono é importante para excluir a fadiga diurna que resulta de sono interrompido secundário a episódios de dor, cãibras, polaciuria, apneia do sono, movimentos periódicos dos membros, depressão ou ciclos de sono-vigília interrompidos. A fadiga diurna, mesmo após uma boa noite de sono, pode ocorrer no meio da tarde e pode ser descrita como se sentindo “desligamento” ou exaustão total. Muitos pacientes obtêm benefícios de um breve cochilo diurno. A sensibilidade ao calor, que é um sintoma clássico de EM, ocorre só em alguns pacientes. Até elevações menores da temperatura corporal podem piorar dramaticamente os sintomas (fenômeno de Uhthoff). Alguns pacientes se queixam de piora dos sintomas no clima frio, provavelmente relacionada ao aumento da disfunção de músculos já rígidos ou bloqueio de sinal coerente com a fisiologia conhecida da condução nervosa, que tem uma curva em U invertido da temperatura versus a condução. • Gravidez: Mulheres com EM podem ter filhos, e a atividade da doença diminui durante a gestação, especialmente no terceiro trimestre, quando a frequência de exacerbações é reduzida em aproximadamente dois terços. Os surtos são mais frequentes nos primeiros 6 meses após o parto, mas não há evidência de que a gravidez altere a história natural da EM. Ainda não está claro se a amamentação altera ocurso da doença, mas ela é contraindicada para pacientes que reassumem medicamentos modificadores de doença após o parto. • Tipos de EM: Os três principais tipos clínicos de EM são: recorrente remitente, secundária progressiva e progressiva primária. Cerca de 85 a 90% dos pacientes apresentam-se com EM recorrente remitente, caracterizada por episódios agudos ou subagudos de sintomas neurológicos novos ou piora dos antigos que aumentam em gravidade, platô e, então, a remissão parcial ou completa. Os pacientes podem apresentar déficit residual não detectável, ou podem acumular deficiência permanente significativa a partir de um surto. A maioria dos pacientes com EM recorrente remitente convertem-se para a EM secundária progressiva após 20 a 40 anos. Esse estágio da doença, que se caracteriza por pelo menos 6 meses de piora progressiva sem evidência de surto, pode ser diagnosticado com confiança apenas de maneira retrospectiva. Alguns pacientes com EM secundária progressiva também apresentam surtos superpostos diferentes de seus períodos de piora progressiva, embora esses episódios tornem-se menos frequentes com o tempo. A EM progressiva primária, que se caracteriza por deterioração progressiva desde o início por pelo menos 1 ano sem história de surtos distintos, ocorre em cerca de 10 a 15% dos pacientes. Ela é mais comum em homens de meia-idade e tipicamente tem mais envolvimento da medula espinal e menos lesões cerebrais inflamatórias. A EM progressiva aguda (doença de Marburg) causa deterioração neurológica aguda ou subaguda, progressiva, levando à incapacidade grave em poucos dias a 1 mês em paciente sem história anterior de EM. Essa forma rara da doença pode progredir para um estado quadriplégico e embotado com óbito resultante de infecção intercorrente, aspiração ou falha respiratória em razãodo envolvimento do tronco encefálico. Diagnóstico: O diagnóstico de EM baseia-se na demonstração da presença de pelo menos duas lesões inflamatórias desmielinizantes referíveis a locais diferentes no SNC, ocorrendo em momentos distintos (geralmente ≥ 1 mês de diferença) e para as quais não existe explicação melhor. Os critérios diagnósticos permitem que o diagnóstico seja feito com base nos dados clínicos isolados, desde que testes de exclusão apropriados sejam realizados. A evidência clínica de uma lesão exige achados objetivos no exame neurológico, e não apenas um sintoma. Além disso, episódios repetidos de disfunção neurológica que poderiam ser explicadas com base em uma lesão (p. ex., uma lesão de junção cervicomedular causando disfunção do tronco encefálico e dos tratos cerebelar e corticospinal) não é evidência suficiente para diagnosticar EM. RM: Não existe teste de laboratório diagnóstico definitivo para EM, mas a ressonância magnética (RM) do cérebro é extremamente útil e deve ser realizada em todos os pacientes nos quais a EM seja uma consideração diagnóstica.4 Mais de 95% dos pacientes com EM clinicamente definida têm uma RM do cérebro anormal, e a presença de lesões brilhantes de sinal alto é tão característica da doença que uma RM do cérebro normal deverá sugerir um diagnóstico alternativo. A RM do cérebro é também útil em prognosticar um quadro futuro de EM à época de uma síndrome desmielinizante clinicamente isolada. LCR: O exame do LCR é útil em muitos casos, mas não obrigatório em pacientes com apresentação clínica típica e evidência por RM de doença disseminada. A avaliação do LCR inclui contagem de células, proteína total, glicose, índice de IgG e eletroforese para avaliar um padrão de bandas oligoclonais com uma amostra sérica pareada. A presença de proteína básica de mielina não é específica para EM porque ela pode ser elevada após qualquer ruptura de tecido no SNC. Testes de potencial evocado: Os potenciais evocados podem ser úteis em algumas situações para documentar a evidência objetiva de condução diminuída devido à desmielinização em locais diferentes daqueles reconhecidos clinicamente. Entretanto, potenciais evocados visuais (PEVs), potenciais evocados auditivos do tronco encefálico, e potenciais evocados somatossensoriais são menos sensíveis e menos específicos para EM que a RM de alta resolução. PEVs multifocais podem ser mais sensíveis que PEVs globais em revelar áreas focais de condução anormal ao longo do nervo óptico. Tomografia de coerência óptica: Esse exame é realizado com um dispositivo instalado no consultório que usa o reflexo da luz infravermelha (de fonte exógena direcionada através da pupila) na parte posterior do olho para quantificar a espessura dos tecidos da retina, incluindo a camada de fibras nervosas da retina peripapilar e as camadas da mácula. Neurite óptica aguda. Outras doenças: Neurite óptica: Trata-se de uma doença inflamatória que geralmente envolve a porção retrobulbar do nervo óptico e, às vezes, partes do quiasma óptico. Embora a neurite óptica esteja mais frequentemente associada à EM (50 a 75%), ela também é vista como um transtorno idiopático isolado (25 a 50%) como parte da neuromielite óptica (Doença de Devic), ou associado a outras doenças inflamatórias e infecciosas, como a neuropatia óptica inflamatória crônica recorrente, o lúpus eritematoso sistêmico, a síndrome de Sjögren, a sarcoidose, a doença de Lyme, a sífilis e a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana. Acredita-se que os aspectos biopatológicos sejam similares àqueles da EM e caracterizados por desmielinização inflamatória idiopática seguida de lesão axonal secundária. As neuropatias ópticas hereditárias podem se tornar aparentes durante períodos de estresse e manifestarem-se como perda visual monocular aguda. A apresentação clínica, que é tipicamente a perda visual monocular com dor periorbitária que piora com o movimento lateral do olho, é similar, independentemente de se manifestar como parte da EM ou não. O dano axonal e neuronal da retina se desenvolve rapidamente, após o início da neurite óptica aguda. Quando envolve a cabeça do nervo óptico, ela é chamada de papilite e, em casos bilaterais, pode ser impossível diferenciá-la do papiledema. A neuropatia óptica subclínica, na ausência de perda visual monocular dolorosa, pode resultar em afinamento, com o tempo, da camada de fibras nervosas da retina. Mielite transversa: A mielite transversa é um processo inflamatório monofásico raro (cerca de 1 em 100 mil pessoas) da medula espinal em geral distinta da EM, porque envolve toda a área transversal ou é longitudinalmente extensa ao longo de três segmentos de corpo vertebral em sentido rostrocaudal. A mielite transversa ou mielopatia pode ser idiopática ou associada a doenças inflamatórias (neuromielite óptica, lúpus eritematoso sistêmico, síndrome de Sjögren, vasculite ou EM), doenças infecciosas ou doenças vasculares (síndrome de anticorpos antifosfolipídes ou fístula venosa dural). Em sua forma fulminante, a mielite transversa causa perda completa das funções motora e sensitivas abaixo do nível afetado da medula e causa disfunção concomitante do intestino, da bexiga e sexual. A mielite transversa também pode se manifestar de maneira incompleta ou parcial, que é mais em geral associada à EM. Neuromielite óptica: Trata-se de uma doença hoje reconhecida como distinta da EM e que se caracteriza por um quadro de neurite óptica, geralmente bilateral e temporariamente associada a um quadro fulminante de mielite transversa de multiníveis. A IgG sérica específica (NMO-IgG) direcionada contra a aquaporina 4 prediz esse processo. Lesões cerebrais podem ser visualizadas na RM e têm predileção pelo tronco encefálico. A neuromielite óptica pode ser similar ao que chamamos de EM opticospinal no Japão, embora essa última se sobreponha com a EM. Encefalomielite disseminada aguda: Acredita-se que a encefalomielite disseminada aguda e sua forma hiperaguda, a encefalopatia hemorrágica necrosante, sejam formas de desmielinização inflamatória monofásica imunomediada. Elas diferem da EM pois são tipicamente monofásicas, enquanto a EM é, por definição, multifásica ou cronicamente progressiva. Entretanto, não há critérios clínicos ou patológicos confiáveis disponíveis para diferenciar os dois processos, que pode representar um continuum. Os pacientes podem apresentar febre, cefaleia, sinais meníngeos e alteração do nível de consciência, o que é excessivamente raro em EM. Não existe tratamento efetivo conhecido. Muitos pacientes, especialmente crianças, recuperam-se de maneira notável, mas a forma necrosante pode ser gravemente incapacitante ou fatal. As formas recorrentes da doença nas crianças têm mais probabilidade de se tornar EM. Leucodistrofias: Trata-se de várias doenças caracterizadas por degeneração da substância branca do SNC, hereditárias e progressivas, que se acredita estarem relacionadas à produção ou à manutenção anormal de mielina. Atualmente, muitas dessas doenças apresentam uma base bioquímica e genética definida, são causadas por doença primária em outros componentes do SNC (incluindo astrócitos, micróglia, axônios e vasos sanguíneos), e não são mais consideradas exclusivamente como sendo transtornos primários de mielina. Adrenoleucodistrofia e Adrenomieloneuropatia: Essas duas entidades, causadas por comprometimento da capacidade dos peroxissomos em metabolizar ácidos graxos de cadeia muito longa, representam fenótipos diferentes que resultam do mesmo defeito genético incompletamente recessivo e ligado ao X. A oxidação prejudicada desses ácidos graxos de cadeia muito longa resulta da função deficiente da enzima lignoceroil-coenzima A ligase. O gene defeituoso localiza-se no Xq28 e codifica uma proteína de membrana peroxissomal (ALDP), que é membro de uma grande família de proteínas referidas comotransportadores de cassetes de ligação da adenosina trifosfato (ABC), especificamente ABCD1. A adrenoleucodistrofia cerebral da infância, que é a forma mais comum do distúrbio, representa 45% de todos os casos e é observada somente em pacientes do sexo masculino, com início entre 4 e 11 anos. As formas cerebrais adolescente (5%) e adulta (3%) progridem em índices similares ou mais lentamente que a forma infantil. A adrenomieloneuropatia começa em homens jovens como paraparesia progressiva lenta com hipogonadismo, impotência, distúrbios esfincterianos, insuficiência suprarrenal variável e neuropatia axonal afetando principalmente os membros inferiores. Pode ocorrer uma forma inflamatória aguda rara, com progressão rápida e demência. Um distúrbio similar, embora em geral mais leve, pode ser observado em até 20% das mulheres que forem hemizigotas para a doença. Doença de Pelizaeus-Merzbacher: Essa doença é uma leucodistrofia familiar crônica rara, geralmente causada por um defeito genético no gene da proteína de proteolipídio da mielina ligado ao X (PLP). Na doença de Pelizaeus-Merzbacher clássica, a idade de início varia entre 3 meses e 9 anos, e a idade do óbito varia entre 6 e 25 anos. Entretanto, formas mais leves de paraplegia espástica 2 são hoje reconhecidas em adultos. A doença se manifesta como mielopatia lentamente progressiva, geralmente com envolvimento cerebelar e cognitivo, e o diagnóstico é estabelecido por análise genética para mutações no gene PLP. Vários tipos diferentes de mutações do PLP respondem pela variabilidade dos fenótipos clínicos. Uma doença recessiva autossômica denominada Pelizaeus-Merzbacher tipo 1 e a menos grave paraplegia espástica 44, causada por mutações do gene da proteína da gap-junction gama 2 (GJC2) são variantes reconhecidas. Não existe tratamento específico além da terapia de suporte. Leucodistrofia metacromática: Essa doença geralmente resulta de um defeito recessivamente herdado na enzima lisossomal arilsulfatase A. A ausência dessa enzima resulta no acúmulo de sulfatídeos tanto na mielina central quanto periférica e nas células formadoras de mielina; a instabilidade das membranas de mielina resulta na fragmentação da mielina. A leucodistrofia metacromática é geralmente dividida em quatro subtipos: congênita, infantil tardia (mais comum), juvenil e adulta. Ela aparece em todos os grupos étnicos e tem frequência geral de 1 em cada 40.000 pessoas. Doença de Canavan: Trata-se de uma leucodistrofia progressiva fatal, com herança recessiva autossômica, causada por mutações no gene para aspartoacilase, uma enzina que hidroliza o N- acetilaspartato em L-aspartato e acetato. A deficiência de aspartoacilase resulta em níveis elevados de sua molécula substrato, o N-acetilaspartato, edema cerebral e dismielinização. Clinicamente, a doença se manifesta com retardo mental, convulsões e degeneração difusa e simétrica da substância branca nas áreas subcorticais, com envolvimento do globo pálido na RM. Não existe tratamento disponível. Doença da substância branca evanescente: Trata-se de um distúrbio recessivo autossômico cada vez mais reconhecido, com faixa ampla de manifestações clínicas desde apresentações rapidamente progressivas em lactentes até doença lentamente progressiva em adultos. A doença é causada por mutações nos genes 1 a 5 do fator 2B (eIF2B) de iniciação da translação eucariótica, que codifica as proteínas envolvidas na resposta integrada ao estresse nas células. As características patológicas incluem mielina vacuolizada com aparência cística na RM. Não existe terapia específica conhecida, além de se evitar o estresse.