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As Utopias e como a Sociedade Ideal não é: Um Estudo na Filosofia da Ação. Luiz Henrique de Araújo Dutra UFSC/UnB/CNPq Se a melhor maneira de manter um povo obediente e também próspero é com severidade ou com a ten- tação de vaidade, se com o poder supremo de um indivíduo ou com diversos líderes unidos, talvez mesmo apenas com uma aristocracia de mérito ou com o poder do próprio povo, isso é incerto. A his- tória oferece exemplos do oposto com todos os ti- pos de governo (com a única exceção daquele que é verdadeiramente republicano, o que, contudo, acon- tece apenas com um político moral).1 – Immanuel Kant, 1795. Qual é a sociedade de nossos sonhos? Se perguntarmos isso às mais diversas pessoas, certamente vamos ouvir em resposta que seria uma sociedade sem pobreza e sem crime, uma sociedade de oportunidade e liberdade para todos, de respeito etc. E, num nível mais detalhado, certamente também alguns dirão que gostariam de uma sociedade de políticos éticos e, para espanto geral, até mesmo notórios corruptos seriam capazes de – sem cinismo – dizer que gostariam de viver numa Cf. KANT, 1996, p. 344 (Em direção à paz perpétua. Um projeto filosófi1 - co). Embora as obras clássicas como esta e outras que citaremos na sequência possuam diversas edições e traduções, sempre indicaremos pelo menos uma delas. 1 sociedade sem corrupção. As utopias procuram reunir ideias desse tipo em modelos de estrutura social e convivência entre as pesso- as, imaginando em quais condições isso seria realizável. A literatura de utopia remonta à República, de Platão, até hoje o mais eminente texto no gênero, aquele cujo autor é o mais im- portante entre todos aqueles filósofos e cientistas que se dedica- ram ao tema. Não menos importantes, contudo, devemos salien2 - tar, são algumas obras bem mais recentes da literatura de distopia, o subgênero contraponto das obras otimistas quanto à reforma da sociedade humana. Entre as obras distópicas destacam-se já no século XX o 1984, de George Orwell, e o Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, autor que, por sua vez, também possui uma obra típica da literatura utópica, seu A ilha, que nunca teve a mesma repercussão da primeira aqui citada. No conjunto, as 3 obras otimistas e pessimistas – utópicas e distópicas – constituem um numeroso conjunto de reflexões sobre a natureza humana e sobre a sociedade. Teremos oportunidade adiante de comentar algumas delas na medida em que suas ideias vierem a ter relevân- cia para nossas discussões. Não temos, contudo, a pretensão de fazer um inventário exaustivo e nem mesmo muito abrangente dessas obras, mas apenas de destacar as contribuições de algumas delas, como é o caso com as já mencionadas e outras que vamos citar. Nem vamos apresentar delas resumos, deixando para o leitor interessado o conhecimento direto de suas narrativas. A filosofia da ação, que é o domínio em que pretendemos que nossas considerações se insiram, às vezes dá margem a que suas teorias e conceitos se estendam em direção à filosofia social e à filosofia política, por um lado, embora hoje a primeira tenha per- dido muito do interesse que já teve para os filósofos profissionais, tendo muitos de seus temas sido transferidos para a segunda. Por outro lado, tais teorias e conceitos sobre a ação se estendem tam- Cf. PLATÃO, 2000. 2 Cf., respectivamente, ORWELL, 2000, HUXLEY, 2006 e 2009. 3 2 bém em direção à filosofia da mente, à psicologia e à economia. Além disso, é claro, não menos importante é o fato de que os te- mas da filosofia da ação podem nos dirigir para o domínio da filo- sofia moral. E como, estritamente falando, a filosofia da ação é uma modalidade da filosofia aplicada, embora esse modo de consi- derar as disciplinas filosóficas também tenda a cair em desuso, ela pressupõe considerações da filosofia da mente, da ontologia, da psicologia, da economia e das demais disciplinas citadas, entre outras. Tudo isso dizemos para destacar o fato de que estamos num domínio complexo e que pode ser vasto, embora os filósofos da ação mais eminentes, por exemplo Donald Davidson, tenham tendido a restringir suas considerações às zonas de confluência da filosofia da ação com a filosofia da mente e com a filosofia moral. 4 De nossa parte, o que pretendemos, de certa maneira, é fazer o caminho inverso, indo das ideias políticas e de organização da so- ciedade – dramaticamente expressas nas obras da literatura de utopia e distopia – para as considerações mais abstratas da filoso- fia da ação. A política é uma das formas mais importantes da ação coletiva que procura organizar a sociedade, obviamente, mas a organização da sociedade na forma de projetos da sociedade ideal pode se apresentar como um tipo de tecnologia social, ou engenharia social, tal como a ideia aparece em alguns filósofos, por exemplo, Karl Popper e Otto Neurath, tende a ir além da política, ou então, talvez melhor dizendo, tende a ficar aquém dela, como questão de planejamento meramente técnico, algo que transparece também em algumas das obras de utopia que, embora sejam de caráter sempre político, dissimulam isso em favor daquela noção de pla- nejamento técnico. 5 Cf. DAVIDSON, 2002. 4 Cf., por exemplo, POPPER, 2013, especialmente cap. 9, NEURATH, 5 1973, cap. 5 (Utopia as a Social Engineer’s Construction, texto de 1919) e NEURATH, 1947 (o texto Unstable Uniformities and Social Enginee- ring). Cf. ainda CUNHA, 2015 e 2018. 3 Por outro lado, a ação humana não costuma ser pensada a par- tir da ação coletiva, mas, ao contrário, é a ação coletiva que cos- tuma ser pensada a partir da ação individual e esta, por sua vez, a partir do mentalismo humano. E essas são, por sua vez, ideias que também vão ao encontro daquela espécie de despolitização da organização da sociedade. Dados esses pontos, temos a seguinte ordem: as características da mente humana determinam o que os indivíduos fazem e o que eles fazem individualmente acarreta o que ocorre na ordem social. E por isso os projetos utópicos – seja na ficção, seja naquele domínio da tecnologia social – parecem ser pertinentes e poder atingir seus objetivos, isto é, apresentar mo- delos de uma sociedade que possa funcionar satisfatoriamente para a maioria. Pois eles brotam na imaginação de alguns, sejam ficcionalistas, sejam engenheiros sociais. O que pretendemos é também inverter essa ordem, entendendo a ação individual e, em alguma medida, algumas características mentais nossas, a partir da ação coletiva. Por essa razão, essa espécie de planejamento social de cima para baixo dos modelos utópicos e dos modelos de tecnolo- gia social não nos parece poder apresentar como uma sociedade ideal poderia ser. A ideia de sociedade ideal é vaga, mas sabemos que ela envolve alguns elementos que todos considerariam indispensáveis, na di- reção de nossos comentários iniciais. A sociedade ideal deve ser justa, deve promover o bem social da maioria e, no limite, prover a cada um segundo suas necessidades, deve admitir diferenças, mas deve possuir mecanismos sociais de resolução de possíveis conflitos. No limite, deve ser então uma sociedade sem crime, sem pobreza e sem injustiça, como já sugerimos. E podemos con- tinuar a enumerar outros aspectos se quisermos; eles aparecem na literatura utópica e nos textos filosóficos já mencionados que tra- tam da tecnologia social. Todavia, a sociedade ideal só pode existir na dependência das características dos indivíduos que a comporão, características mentais e morais, é claro, também cognitivas, mas igualmente de 4 características do ambiente social no qual vai se dar o possível processo de encaminhar uma população para o ideal social, para aquela forma de convivência que contemple os quesitos acima mencionados e outros. Queremos também chamar a atenção para esse aspecto ambiental, de modoa considerarmos que qualquer ação social na direção da sociedade ideal, dadas as características da ação coletiva, o que envolve a política, não pode ser daquela forma imaginada pela literatura utópica e sua congênere técnica no domínio da engenharia social. Vamos começar analisando alguns aspectos mais salientes das sociedades idealizadas na literatura utópica. Em seguida, vamos tratar dos aspectos desconcertantes que são salientados pela lite- ratura distópica. Depois, vamos tomar em consideração a relação entre política e moral, analisando a utopia de Edward Belamy, Lo- oking Backward, e a posição também utopista de Kant em seu já citado texto sobre a paz perpétua. Por fim, vamos discutir o que seria o padrão da ação coletiva e com base nisso inferirmos o tipo de ideal social que seria sustentável. 1 O isolamento das sociedades ideais Para começarmos, voltemos à República de Platão. Além de ser um tratado de filosofia política, como sabemos, a obra é também um exemplo de tratado de engenharia social, contendo um mode- lo de sociedade, modelo utopista, isto é, um modelo ideal de soci- edade e de como administrá-la, algo que no juízo de Popper, por exemplo, em sua obra já citada, não pode ser bem sucedido. Ora, 6 os que conhecem a obra se lembram da ideia de Platão de que o governante ideal é o filósofo, pois é ele que está em melhor posi- Cf. POPPER, 2013, cap. 4 a 10. Como é bem conhecido, a principal 6 objeção de Popper a tal modelo de sociedade ideal é que se trata de uma sociedade fechada ou não democrática. 5 ção cognitiva (e também moral) para organizar a vida em socieda- de. Desde então, os filósofos políticos não se veem mais à altura 7 de tão nobre e desafiador papel social, exceção feita, por exemplo, a autores como Hegel e Marx, também duramente criticados por Popper, também eles defensores de sociedades fechadas na opi- nião desse último. Os filósofos políticos modernos, especialmente os contratualistas, como Hobbes e Rousseau, optaram não por projetar a sociedade ideal, mas por explicar como a sociedade real se organiza. Lembramos aqui essas críticas de Popper a Platão e aos outros mencionados pensadores também para indicarmos um contraste entre sua abordagem e aquela que pretendemos. A postura de Popper é, por assim dizer, pró-ativa, para utilizarmos uma expres- são agora em uso. Ou seja, ao defender uma concepção de socie- dade aberta ou democrática em contraposição àqueles modelos de sociedade fechada e defender conjuntamente que a tecnologia social deve ser elaborada em outras bases, Popper presume que a sociedade aberta, democrática e tolerante – mas capaz de coibir as iniciativas de intolerância e autoritarismo – é possível. Ela é possível, de sua perspectiva, pura e simplesmente em virtude de uma postura política condizente com os princípios da sociedade aberta. Isso deve estar presumido, sendo a base a partir da qual o planejador social vai trabalhar. Ora, em princípio, não há nada de errado nisso, muito ao contrário. Mas a questão é que isso, de fato, pode não bastar para alcançarmos o ideal de uma sociedade aberta. As condições objetivas – sociais em geral e especificamen- te econômicas, políticas, ideológicas etc. – podem não promover nem permitir, mas, ao contrário, impedir o advento da sociedade aberta e os projetos de engenharia social voltados para o ideal de É interessante então contrastar com isso o que Kant afirma: “Uma vez 7 que a posse do poder inevitavelmente corrompe o juízo da razão, não devemos esperar que os reis façam filosofia, nem que os filósofos se tor- nem reis, tampouco devemos desejar isso.” (KANT, 1996, p. 338.) 6 sociedade aberta. Além disso, se é questão de tomarmos uma ati- tude tolerante e de sermos democratas, como quer Popper, trata- se também de um fenômeno que envolve ideologia, o confronto de ideologias e a conscientização dos atores políticos. Pois, afinal, é preciso que esses últimos estejam convencidos de que a socie- dade aberta é a melhor opção para todos. E não é isso o que a his- tória tem mostrado com dramáticos episódios de sociedades fe- chadas. Mas se sua existência não é evidência de que a sociedade aberta não é possível, e apenas de que até hoje ela não foi possível plenamente (isto é, em larga escala no planeta todo), pode ser pelo menos sinal de que apenas uma postura democrata não é suficien- te para que os projetos de planejamento para a sociedade aberta prosperem. 8 Criticar os modelos conhecidos de sociedade fechada, como Popper faz, é mais fácil certamente do que elaborar um programa em prol da sociedade aberta. E a postura deste filósofo não deixa então de ser também utopista, mesmo que não apresente como outros um modelo definido de sociedade. Outros modelos que a literatura de utopia apresenta procuram identificar os fatores am- bientais que poderiam ser decisivos quanto à possibilidade ou im- possibilidade da haver uma sociedade ideal. A própria tendência que há em muitos modelos, desde os mais antigos até outros re- centes, de projetar uma sociedade menor e isolada do resto do mundo – da sociedade humana em geral – é indicativa da percep- ção que os autores têm de que há fatores ambientais que se não impossibilitam a sociedade ideal, pelo menos dificultam muito sua realização. E, logo, os projetos concretos de organizar a sociedade em direção ao ideal social requerem condições sociais específicas que não se dão a todo momento e em toda parte. Nos modelos mais antigos, como os de Thomas More (Utopia, de 1516), de Tommaso Campanella (A cidade do sol, de 1623) e de Ao contrário de Popper, que ficou apenas no plano teórico, Neurath se 8 envolveu em ações práticas nesta direção. Cf. CUNHA, 2015 e 2018. 7 Francis Bacon (A Nova Atlântida, de 1627), há a fantasia de que 9 em um território isolado, como uma ilha desconhecida pelo res- tante do mundo, um grupo menor de pessoas sob a liderança es- clarecida de alguns sábios poderá alcançar o ideal de sociedade equilibrada, justa etc., embora nem sempre democrática ou pelo menos não exibindo um regime de democracia plena, como o de- fensor da sociedade aberta – não apenas na forma desejada por Popper – gostaria de ver. Isso não significa que necessariamente os modelos como os citados acima, de More, Campanella e Ba- con, defendam sociedades fechadas no sentido popperiano. Mas pode significar que, do ponto de vista de seus elaboradores, as condições ambientais não permitam uma democracia plena, ou então que ela não é necessária ou indispensável para haver uma sociedade mais justa e equilibrada em todos os aspectos. Modelos mais recentes na literatura utópica, como os de B. F. Skinner (Walden II, de 1948) e de Aldous Huxley (A ilha, de 1962), partem do mesmo pressuposto de que a sociedade ideal é 10 possível quando há certo isolamento de uma comunidade guiada por princípios científicos, tal como Bacon também propugnava. O isolamento do resto do mundo é necessário para que tais princí- pios científicos possam ser aplicados. No caso de Skinner – que, curiosamente ecoa em seu próprio título o Walden de Thoreau, defensor do isolamento, neste caso, do indivíduo e não de uma comunidade –, o isolamento do grupo em uma colônia, que é 11 parte de uma rede de colônias similares, tem por objetivo permitir a aplicação das técnicas de condicionamento operante, algo que sabidamente só funciona em contextos fechados. Os contextos nos quais os princípios da análise experimental do comportamento de Skinner foram empregados com sucesso na modelagem do comportamento, isto é, na implantação de com- Cf. MORE, 2002, CAMPANELLA, 2008 e BACON, 2009.9 Cf. SKINNER, 2005 e HUXLEY, 2009. 10 Cf. THOREAU, 2012. A primeira publicação é de 1854. 11 8 portamentos socialmente desejáveis e na extinção de comporta- mentos socialmente indesejáveis, são contextos típicos de isola- mento, como hospitais psiquiátricos, internatos escolares, prisões e algumasfábricas com linha de produção em moldes mais tradi- cionais. Nesses casos como naquele da sociedade projetada no Walden II, o isolamento do grupo visa ao afastamento daquelas variáveis ambientais que escapam ao controle do controlador do comportamento. 12 É claro que há muitas críticas a esse tipo de modelagem do comportamento e elas se estendem também, portanto, à socieda- de utópica imaginada por Skinner. Nem por isso Skinner abre mão da democracia e da sociedade aberta. Como ele defende em outra de suas obras que também trata de questões sociais, cujo título em português seria Para além da liberdade e da dignidade, de 1972, a sociedade ideal seria aquela em que proliferam o que ele 13 denomina agências de contracontrole, que são aquelas instituições que podem contrabalançar o poder exercido pelas agências de controle social, estas sendo ordinariamente aquelas que fazem parte do Estado. Uma sociedade democrática e, portanto, aberta no sentido de Popper, é aquela em que há um equilíbrio entre as agências de controle (segundo Skinner, sempre necessárias) e as agências de contracontrole. As ideias dessa outra obra não conduzem o autor, contudo, a elaborar um modelo de sociedade. E, por sua vez, no modelo apresentado em Walden II, o controle é (mais) sutil do que esse exercido pelas agências estatais de controle social. A característica principal dessa sociedade ideal skinneriana é que o controle prati- Cf. SCHWARTZ; LACEY, 1982, que faz um detalhado exame da aná12 - lise experimental do comportamento e das tentativas de aplicá-la nos referidos contextos fechados. Os contextos abertos, por sua vez, seriam justamente aqueles ambientes sociais ordinários nos quais há um grande e indefinido número de variáveis ambientais operando. Cf. também LA- CEY, 2001. Cf. SKINNER, 1990. 13 9 camente não seria necessário numa das colônias imaginadas por ele, já que ali seria possível aplicar (sutilmente) as técnicas de mo- delagem do comportamento que conduziriam os indivíduos aos comportamentos mais desejáveis do ponto de vista social. A suti- leza está exatamente na forma de organizar a vida do grupo na colônia, valendo-se de seu relativo isolamento. Basicamente, tra- ta-se de levar as pessoas a exercerem aquelas atividades para as quais são predispostas ou propensas de tal modo que essas pesso- as recebam um grande reforçamento positivo ao exercerem tais atividades. Ora, isso é o mesmo que vemos também nas sociedades insula- res imaginada por Huxley e, antes dele, por More e por Bacon. Em suma, a vida social em todos os seus aspectos deve ser organi- zada segundo princípios científicos de maneira a induzir os indi- víduos aos comportamentos socialmente mais desejáveis compatí- veis com suas capacidades. Em tais sociedades ideais, as diferen- ças de opinião e as diferentes necessidades dos indivíduos não conduzem a conflitos. Os potenciais conflitos são neutralizados na origem por meio de dispositivos sociais – políticos – adequa- dos, nem sempre plenamente democráticos. Assim como na fic- ção de Skinner, o resultado final nesses outros modelos é sempre haver indivíduos realizados, felizes e que se sentem livres. Eles sempre poderão deixar sua sociedade ideal, mas é claro que sem- pre escolherão ficar, mesmo que não participem plenamente do poder. Eles decidem ali ficar porque é ali que recebem maior re- forçamento positivo. Ora, isso é de qualquer forma um problema para o defensor da sociedade aberta, democrática e pluralista em todas as suas formas de ação, pois, apesar das boas intenções dos autores de tais modelos, o indivíduo ainda corre o risco de perder a liberdade. O isolamento é o conceito-chave nesses modelos. Ao contrário de Skinner, que discute claramente as variáveis ambientais do comportamento, embora não explicitamente em sua obra de uto- pia, os outros autores não empregam essa noção; mas é claro que 10 ela está sempre implícita. O isolamento é necessário para afastar aquelas variáveis ambientais incontroláveis, como já sugerimos. Ele implica também certo número máximo de indivíduos por so- ciedade individual, como no caso do Walden II de Skinner. Daí a ideia de haver uma rede de colônias para que em cada uma o nú- mero de habitantes esteja próximo do ideal e, logo, abaixo do má- ximo admissível. Isso está também implícito nos outros modelos utópicos que mencionamos. O isolamento insular de alguns dos mencionados modelos acarreta a mesma limitação de população. Portanto, o que faz diferença é, afinal, a dimensão da população de uma sociedade individual. Ora, em última instância, a nosso ver, isso significa que o que faz a diferença é o tipo de ação coleti- va possível no seio de tal população de dimensão controlada de maneira a ficar no limite numérico ideal. Um tipo de problema que uma população muito grande pode gerar é de natureza econômica. A sociedade ideal deve prover a todos na medida de suas necessidades, ideia básica e geral que já mencionamos. E a sociedade humana em geral, pelo planeta afora nas mais diversas nações, não está nem um pouco próxima disso e nunca esteve em nenhum período da história (que saibamos). A sociedade ideal não é exatamente uma sociedade sem nenhum tipo de classe social, mas deve ser a sociedade na qual não haja in- justiçados economicamente ou destituídos. Nela não pode haver pobreza. Todavia, não se trata apenas desse aspecto econômico. O con- trole social é um aspecto mais geral e crucial nas mencionadas utopias, embora, como vimos, o tema do controle é explicitamen- te discutido apenas por Skinner, ainda que não na mesma obra em que seu modelo de sociedade é apresentado. A sociedade ideal é uma sociedade controlada ou, mais precisamente, autocontrolada de maneira distribuída (exceção feita, como insistira Popper, à socie- dade da República de Platão, que não é aberta). Ou seja, os diver- sos segmentos sociais e os indivíduos se autorregulam sem a ne- cessidade de um controle coercitivo centralizado, embora possa 11 haver mecanismos que possam eventualmente exercê-lo. Mas na sociedade ideal esses mecanismos praticamente nunca precisarão ser acionados. O mais importante a nosso ver é que esse autocon- trole não provém de características mentais ou morais dos indiví- duos, em primeiro lugar, mas das condições ambientais em que eles vivem. Daí o isolamento ser essencial. As características men- tais (cognitiva e morais) são produto da organização da sociedade segundo o modelo de isolamento. Fora dele, tais características mentais dos indivíduos vão escapar a qualquer controle; os indiví- duos não vão exibir o desejado autocontrole. 2 As distopias e o controle aversivo Consideremos agora os aspectos mais marcantes das mais co- nhecidas distopias da literatura disponível. As já mencionadas obras de Orwell e Huxley – 1984 e Admirável mundo novo, respec- tivamente – se destacam a este respeito. As sociedades projeta14 - das nessas distopias são sociedades tipicamente totalitárias nas quais há um intenso uso do controle aversivo na forma mesmo de controle coercitivo violento. Existem as formas mais sutis, diga- mos, de controle, formas ligadas tipicamente à exploração de cer- ta ideologia com ferramentas eficazes de propaganda estatal, mas tais formas mais sutis de controle falham repetidamente em seus objetivos, fazendo com que os detentores do poder estatal te- nham que recorrer ao controle coercitivo e violento para manter a ordem, o que inclui mesmo operações de expurgo ou controle de população. O resultado de tal ordem social na visão dos autores dessas obras é que a individualidade deveria se perder, o que, nem sempre ocorre. A este respeito há uma diferença importante do Admirável mundo novo com relação ao 1984. No primeiro a indivi- Cf. ORWELL, 2000 (originalmente de 1948) e HUXLEY, 2006 (ori14 - ginalmente de 1932). 12 dualidade ameaçada finalmentetriunfa, enquanto no segundo ela é esmagada definitivamente pela ordem social imposta. O controle aversivo que há nessas distopias – seja ele na moda- lidade coercitiva e violenta, seja na modalidade ideológica, que já vamos comentar – conduz à massificação, à estandardização, à alienação etc., bem ao contrário do que as utopias já citadas entre outras produzem no plano individual. Esse tipo de controle pode chegar a sofisticações do tipo da Novilíngua (Newspeak) do 1984, a uma reforma da própria linguagem verbal e, logo, do pensamento, algo levado às últimas consequências, algumas das quais beiram ao ridículo, como aquele de reeditar anualmente o dicionário da No- vilíngua, sempre expurgando os termos indesejáveis, aqueles que possam ter semântica subversiva. Outro aspecto essencial dessas distopias é, obviamente, a cen- tralização do poder e a existência de elites dominantes, o que, mais uma vez, contrasta com as mencionadas utopias que, mesmo também possuindo elites ou lideranças, contam com elites esclare- cidas, digamos assim, ou com lideranças benevolentes, moralmente superiores. Elas são elites guiadas cognitivamente pela ciência e moralmente pelos melhores sentimentos, pelo desejo de ver todos e cada um em plena realização. Nas distopias que estamos comen- tando, ao contrário, as elites usam o poder para privilégio próprio, é claro, tal como se vê também nos casos reais de sociedades fe- chadas. 15 A questão crucial aqui, em contraposição àquela visão das uto- pias e suas lideranças benevolentes, é que, na visão dessas distopi- as, a própria existência de alguma liderança pode conduzir à cris- talização de uma classe dirigente e esta última sempre tende a Vale lembrarmos algo bem sabido no caso do 1984 de Orwell, que é o 15 fato de visar a uma crítica radical dos regimes totalitários reais, especi- almente aquele da União Soviética do período stalinista. Nesse aspecto é mais ilustrativa outra obra de Orwell, a saber, a Revolução do bichos; cf. ORWELL, 2011. A obra foi publicada pela primeira vez em 1945, portan- to, antes do próprio 1984. 13 usurpar o poder de maneira semelhante ao que Rousseau afirma em seu Contrato social a respeito dos governos, que sempre tendem a usurpar o poder do Estado que, em princípio e em virtude do contrato que lhe deu origem, é de todos. Deste modo, podemos tomar as mencionadas distopias como ilustrações do fatídico des- tino que Rousseau preconizou para a sociedade civil, que deixou para trás o suposto estado de natureza. E, neste caso, devemos re16 - conhecer, aquelas reflexões de Skinner acerca das agências de contracontrole se mostram bem pertinentes, uma vez que indica- riam uma possibilidade de controle social democrático sobre o Estado e sobre o governo e aqueles que ocupam seus cargos, de maneira a impedir – ou pelo menor minimizar – a usurpação do poder e, em última instância, a impedir a consolidação de uma elite política dominante que venha a escravizar o restante da soci- edade. O isolamento não é uma característica da distopia apresentada no 1984, mas está presente no Admirável mundo novo e é compre- ensível que seja assim, dadas as características distintas das socie- dades descritas em cada uma dessas obras. É claro que no 1984 há o controle coercitivo do território e dos movimentos das pessoas, mas no Admirável mundo novo há a delimitação de um espaço pri- vilegiado – aquele no qual haveria uma suposta utopia – e é parte importante da narrativa a saída desse espaço reservado e a explo- ração do que há fora dele, que é o que revela de maneira mais con- tundente o caráter distópico daquele mundo. Pois todos os pro- blemas do mundo real são potencializados e levados ao extremo fora do espaço utópico delimitado e defendido do mundo exterior Cf. ROUSSEAU, 2002. Como sabemos, outro eminente contratualista 16 moderno, Hobbes, embora em outros termos, expressa a mesma ideia de concentração do poder soberano e com isso a possibilidade de que o indivíduo não veja contempladas suas necessidades e preservada sua li- berdade – para os contratualistas – original. De qualquer maneira, Hob- bes é menos pessimista que Rousseau a respeito da ação do Estado na sociedade. Cf. HOBBES, 1998. 14 a ele. Esta é uma maneira utilizada pelo autor para mostrar que as utopias, onde elas possam ocorrer, o que fazem é abandonar o res- tante do mundo a sua própria sorte e a um destino cruel. Portan- to, o próprio projeto utópico é um projeto de selecionar uma es- pécie de elite ou de população privilegiada e protegida dos vícios e injustiças do mundo em geral. Portanto, trata-se de tentar criar um pequeno mundo à parte – uma insularidade – que apenas fun- ciona como fuga do mundo real e de como ele é. Quando comparamos o Admirável mundo novo – que também tem como um de seus aspectos essenciais o recurso à ciência para produzir seu mundo insulado e privilegiado – com as utopias tam- bém baseadas nesse recurso, como A Nova Atlântida de Bacon, vemos também a crítica que é feita às utopias a este respeito. Pois na ficção de Huxley a ciência é utilizada até mesmo para criar ar- tificialmente subpopulações ou classes distintas, verdadeiras cas- tas, desde a própria produção artificial dos bebês em laboratórios. Este processo é manipulado de tal maneira a determinar as pró- prias características biológicas e mentais dos indivíduos das dife- rentes castas, Alfas, Betas etc., destinados a diferentes papéis so- ciais. Isso significa levar o controle às últimas consequências ou, melhor dizendo, a tentativa de controle dos indivíduos, pois ape- sar dos esforços do sistema, tal controle lhe escapa na narrativa, subvertendo-se a ordem social estabelecida. Essas distopias e outras procuram mostrar que o uso exagerado do controle produz resultados opostos aos pretendidos pelo sis- tema. Ou, talvez melhor dizendo, em tom profético, essas disto- pias proclamam que toda tentativa de controlar a sociedade em larga escala e moldá-la segundo determinados padrões previamen- te escolhidos por alguns sempre será fadada ao insucesso. Contu- do, o profetismo envolvido nessas obras distopias não é exclusivi- dade sua. Ele aparece também em obras eminentemente utópicas e extremamente otimistas, como no Looking Backward, de Edward Bellamy, que comentaremos adiante e que é, sem dúvida alguma, uma das obras de maior sucesso no gênero utópico e de maior 15 influência para além da literatura. Mas, como veremos, na narra17 - tiva otimista de Bellamy, os mesmos mecanismos sociais de con- trole tendem a levar a uma ordem social por todos apreciada, ape- sar do afastamento dos princípios plenamente democráticos. 3 Profetismo e otimismo moral O Looking Backward de Bellamy faz parte daquele grupo de obras utópicas para as quais a idade de ouro ou o paraíso terreno não estão no passado remoto, nem em alguma terra distante e isolada, mas no futuro. A felicidade e realização das pessoas não estão na- quele suposto estado de natureza anterior à sociedade civil orga- nizada e ao Estado do qual falam tanto Rousseau como Hobbes, embora com ênfases muito distintas, como sabemos. Para o pri- meiro, o que há de bom na natureza humana se manifestaria na- quele estado primevo – porque todos os vícios (pelo menos os mais graves) provêm da sociedade civil –, para o segundo, ao con- trário, aquele seria um estado de guerra de todos contra todos, na qual a vida humana é miserável em todos os aspectos. Para as 18 obras do tipo daquela de Bellamy, nem uma coisa, nem outra é o caso. Pois a sociedade civil e o Estado, por mais que possam re- presentar uma perda da liberdade original – se ela existia –, repre- sentam a transição para uma sociedade evoluída, com um modo de produção adequado para o bem da maioria e a realização de todos. Neste sentido é que há certo profetismo no Looking Backward, pois a obra não apenas projeta um futuro melhor, mas coloca em marcha ações para sua realização. Cf.BELLAMY, 2003. A obra foi raduzida no Brasil com o título “Da17 - qui a cem anos. Revendo o futuro”. A primeira edição do original é de 1888. Cf. os já citados ROUSSEAU, 2002 e HOBBES, 1998. 18 16 Neste aspecto a obra de Bellamy tem sido comparada com o marxismo e com ela contrastada na forma de chegar à sociedade ideal, não pela ditadura do proletariado, mas pela educação moral e o aperfeiçoamento tanto do modo de produção, de maneira pla- nejada e semelhante ao que há nos modelos apresentados pela tecnologia social, quanto das instituições voltadas para o aperfei- çoamento moral. Quanto a este aspecto que o marxismo consi19 - dera superestrutural, ele deve ser planejado e cuidado da mesma forma que a infraestrutura econômica, incluindo não apenas o desenvolvimento das artes e da literatura, mas sobretudo da reli- gião. Isso pode explicar em parte a boa recepção que a obra de Bellamy teve mesmo entre o proletariado dos Estados Unidos, tanto na Nova Inglaterra como pelos estados do Meio Oeste e até mesmo na Costa Oeste. Pelo país afora proliferaram clubes bella- mistas e o próprio Bellamy participou de dois deles. Explica tam- bém por que a obra e seu autor estão ligados ao movimento naci- onalista americano que floresceu nas últimas décadas do século XIX. A ficção do Looking Backward é vista então não apenas como profecia, como visão antecipada da evolução da sociedade rumo a um futuro dourado, mas como veículo de disseminação de um programa de reforma social. Esse reformismo, contudo, ia na mesma direção da concentração dos recursos produtivos dos grandes conglomerados econômicos que eram vistos pelo próprio autor como o que está na raiz das desigualdades sociais e da po- breza da maior parte da população. A solução apontada por Bel- lamy para isso é o que mais o aproxima do marxismo do qual ele se distingue no plano político e da ação política e ideológica. Pois o que ele profetiza e propõe é a estatização dos meios de produ- ção e seu planejamento de cima para baixo, chegando ao extremo Há, obviamente, muitos estudos sobre a obra e seus princípios, mas é 19 sucinta e bem informativa a apresentação feita por Alex MacDonald (2003) ao volume BELLAMY, 2003. 17 de conceber a estrutura hierárquica dos meios de produção ao modelo das forças armadas. Trata-se de um verdadeiro exército in- dustrial (expressão do próprio autor) ligado a um Estado extre- mamente burocrático (na avaliação dos críticos). Um aspecto que salta ao olhos dos leitores mais críticos – e que foi enfatizado pelos comentadores que criticaram tanto o li- vro como seu programa – é que a organização política de tal soci- edade contém a mesma excepcionalidade política de não permitir que os soldados de tal exército industrial votem (para presidente, na ficção do livro). Esse seria um dos preços políticos a pagar para haver um sistema equilibrado. Mas o que os críticos aí veem é a possibilidade de abuso de poder por parte daqueles que detêm os plenos direitos políticos que, na verdade, a maioria da população não tem. Na sociedade do Looking Backward, apenas os dirigentes mais altos e os profissionais liberais são eleitores. Portanto, vol- tando àquelas ideias de Popper que já comentamos de início, o que temos aqui é, afinal, outra sociedade fechada. Neste aspecto o Looking Backward se assemelha tanto à República, de Platão, quan- to ao Leviatan, de Hobbes. Com isso o que a crítica mais severa conclui é que a era de ouro não estará no futuro profetizado por esta utopia, mas que o que lá vamos encontrar é mais uma vez a usurpação do poder por uma classe, uma casta ou uma elite. Assim, curiosamente, dado o caminho alternativo ao marxismo – e, logo, ao marxismo-leninis- mo e ao stalinismo – que a obra de Bellamy propugna, a contra- profecia que se lhe pode apresentar é que o resultado prático – se houver – será o mesmo, aquele de uma sociedade de burocracia ineficiente e de controle coercitivo violento do Estado sobre o indivíduo, tal como descreve a crítica de Orwell no 1984. Em suma, o crítico contraprofetiza que se trata de mais uma ilusão reformista, neste caso, mais uma vez, levando a uma sociedade fechada que só vai beneficiar a uma parcela privilegiada da popu- lação. Por isso alguns comentadores veem certo distopismo na obra de Bellamy, apesar de seu utopismo oficial e aparente. 18 Todavia, se o autor não era muito ingênuo – e nada em sua bi- ografia leva a pensarmos que ele fosse tão ingênuo a ponto de não antever os perigos de seu projetado sistema –, o que se pode con- cluir é que ele acreditava sinceramente na capacidade da educação e dos outros meios de lidar com a superestrutura ideológica de forma a conduzir a sociedade paulatinamente ao aperfeiçoamento moral com o qual os perigos políticos mais sérios seriam neutrali- zados. Em última instância, abrir mão de alguma liberdade políti- ca valeria a pena para ter uma vida muito melhor, como enfatizam Platão e Hobbes. E com isso até mesmo Rousseau concorda, em- bora se preocupe com a criação de mecanismos constitucionais que garantam a liberdade individual. E este é o mesmo expediente defendido por Skinner com sua ideia de agências de contracon- trole. Mas os expedientes de Rousseau e Skinner são, ao contrário dos demais citados, aqueles voltados para a sociedade aberta. E isso faz toda a diferença, afinal! 4 Modelos de sociedade Nas seções precedentes, procuramos destacar dois dos aspec- tos essenciais das utopias, a saber, o isolamento e o controle, e indicamos algumas das principais críticas de caráter político que as distopias fazem às sociedades imaginárias da literatura utópica. Os riscos principais das utopias são a usurpação do poder e a per- da de liberdade dos indivíduos, mesmo quando o controle não é coercitivo ou muito aversivo. É claro que há diversas outras ra- zões para que os projetos utópicos sejam criticados, razões ligadas a diferentes concepções da constituição mental e moral dos pró- prios seres humanos ou das possibilidades de ação coletiva, daqui- lo que realmente estaria ao alcance da sociedade real. Da maneira mais geral possível, uma crítica radical seria aquela segundo a qual a própria ideia de elaborar modelos da sociedade ideal é tola, ingênua, algo que brota de nosso desejo de bem-estar 19 e de nosso inconformismo com as situações reais nas quais vive- mos. Não há nada de errado em desejar um mundo melhor, mas a crítica mais severa ao utopismo entende que é inútil expressar tal desejo na forma de modelos ideais da sociedade, sendo que os ins- trumentos morais e políticos que estão ao alcance da sociedade real não podem conduzir a uma sociedade perfeita, uma vez que as variáveis são em número grande demais para que possamos abarcá-las todas em uma estrutura teórica ou numa ilustração dramatizada, que é o que são exatamente as peças de ficção utó- pica. Como dissemos, o que elas apresentam são modelos de sociedade e os modelos em geral, seja os científicos e mais bem estrutura- dos, seja os elaborados em outras atividades cognitivas, são sem- pre situações específicas que instanciam determinados princípios e leis. Eles exemplificam também possibilidades de ação, de in20 - terferência na ordem das coisas, tanto na ordem natural como na ordem social do mundo. Mas os modelos são sempre limitados, selecionando as variáveis que nos parecem mais importantes ou mais manipuláveis, restringindo-se a situações mais específicas. Eles são sempre estruturas parciais. Se se realizam no mundo, em determinadas condições, eles se concretizam em situações relati- vamente insuladas, portanto. A compreensão disso está implícita naquelas utopias que insistem na ideia de isolamento, que já co- mentamos. A compreensão de que podemos manipular apenas parte das variáveis envolvidas (tanto mentais dos indivíduos, quanto ambientais) leva certas utopias a insistirem na ideiade controle, de formas eficientes de controle para determinados fins. Deste ponto de vista, as utopias baseadas no insulamento, como as de More, Bacon e Huxley, por exemplo, são então menos criti- cáveis que aquelas que visam à sociedade em geral, como aquela de Bellamy. Neste caso, tais utopias se aproximam muito das teo- rias políticas ou, dito de outro modo, elas parecem ser claramente Cf. a este respeito DUTRA, 2020. 20 20 apenas a dramatização de uma visão política geral, daí a seme- lhança já apontada entre a utopia de Bellamy e o marxismo, daí também seu caráter profético ou programático muito mais defini- do do que aquilo que pode haver nas utopias de insulamento. Além do marxismo, modelos como aquele de Bellamy se apro- ximam também de outras grandes teorias políticas e não apenas das grandes teorias econômicas. Eles se aproximam de teorias como as já mencionadas de Hobbes e Rousseau, entre outras. A diferença estaria apenas na forma de exposição dos princípios (quer os econômicos, quer os políticos). Mas as teorias eminen- temente políticas, digamos assim, possuem instrumental concei- tual mais potente para lidar com o problema ou, em outros ter- mos, elas parecem ir mais fundo na identificação do que há de essencial na vida em sociedade. Elas possuem, portanto, um cará- ter menos ideológico que projetos como aquele de Bellamy. Elas se prestam menos a orientar programas de reforma ou revolução social, exceção feita ao pensamento de Marx, razão pela qual são criticáveis as versões aplicativas ou programáticas mais específicas que ele recebeu, como no marxismo-leninismo e no stalinismo. Isso nos leva a comentar outro aspecto já discutido antes, a saber, a questão do controle. As grandes teorias políticas, tal como aquelas dos grandes contratualistas já mencionados, mesmo que acarretem modelos de sociedade, conduzem a modelos de mais alto nível teórico e, logo, de menor possibilidade de aplica- ção. Eles são modelos destinados mais a compreender o que há de essencial na sociedade e menos a ajudar a reformá-la, embora pos- sam reconhecer a necessidade de fazer isso. Por exemplo, ao se dedicar ao trabalho de fazer recomendações para a constituição da Polônia, Rousseau se dedicou a isso, o que pode ser encarado como uma exceção louvável. Por outro lado, se lembrarmos a pos- tura de Bacon de que as teorias devem poder nos conduzir a inter- ferir na ordem do mundo, seria de esperar que as grandes teorias políticas, de fato, se prestassem pelo menos em parte a isso. E nesse caso, podemos encarar as utopias como uma espécie de ata- 21 lho que seus autores tomam na falta de caminhos mais bem pavi- mentados pelas grandes teorias políticas e econômicas. Portanto, as utopias são estruturas parciais ideais de sociedade. Sendo modelos deste tipo, não podemos cobrar delas mais do que podem oferecer, isto é, soluções que sejam mais que pontuais ou localizadas. Por isso utopias como aquelas de More, Bacon e Hux- ley seriam menos criticáveis que aquela de Bellamy. E a meio ca- minho estaria aquela de Skinner. As soluções parciais, na medida em que for possível delimitar um território e organizar a vida de uma comunidade específica, parecem mais viáveis. Tais utopias parecem mais em posição de se tornarem realidade. Elas seriam mais realistas ou razoáveis que aquelas de escopo maior. Sendo viá- veis, elas seriam criticáveis talvez apenas por não poderem se es- tender para o restante do mundo. É claro que isso não é um pro- blema menor. Mas talvez seja menor nelas o risco de descamba- rem para sociedades (muito) fechadas. Elas são fechadas no senti- do do isolamento, mas no sentido em que Popper emprega o ter- mo com relação aos regimes políticos, elas são mais tolerantes e menos propensas às formas de controle coercitivo ou aversivo. De qualquer maneira, nossa crítica às utopias tem a ver menos com esses aspectos pontuais de um ou outro desses tipos de mo- delos de sociedade e mais com as possibilidades reais de ação. 5 Política e moral no utopismo kantiano Mencionamos antes o otimismo moral de utopias como aquela de Bellamy, otimismo esse que não é exclusividade deste modelo de sociedade, mas que também está presente naquelas utopias insulares, como as de More, Bacon e Huxley, e mesmo naquela de Skinner. É claro que uma comunidade na qual as pessoas têm mais autocontrole é uma sociedade que, em princípio, deve funcionar melhor, uma vez que o autocontrole de cada um pode mitigar conflitos; mas pode também apenas adiar suas consequências. O 22 autocontrole é de natureza também moral, é claro. Assim, se as pessoas possuírem princípios morais superiores, podemos talvez esperar que elas criem entre si um ambiente social menos disfun- cional, menos sujeito a conflitos mais graves ou a consequências mais graves dos possíveis conflitos. Não é assim, contudo, que as grandes teorias políticas veem o funcionamento da sociedade. Deixados a si mesmos e na depen- dência de suas capacidades pessoais, inclusive morais, os indiví- duos não vão ser conduzidos a uma sociedades harmoniosas. Em- bora haja, é claro, diversas visões a este respeito, apenas ilustrati- vamente e em oposição ao otimismo moral das utopias, conside- remos os já mencionados contratualistas, especialmente Hobbes e sua ideia de que, antes de entrarem na ordem imposta pelo Esta- do, os indivíduos vivem naquela situação (pelo menos potencial) de guerra de todos contra todos, pois os interesses individuais não vão ceder ao interesse coletivo. Contrasta com essa visão aquela de Kant, que também preserva certo otimismo moral, tal como ele se expressa no texto Ideia para uma história universal com um objetivo cosmopolita (de 1784) e, depois, no Em direção à paz perpé- tua (de 1795), textos nos quais há aquela ideia de um ardil da na21 - tureza por meio do qual, ao perseguirem seus interesses individu- ais, as pessoas terminam por contemplar o interesse coletivo. Va- mos comentar adiante as ideias de Kant nessas duas obras, espe- cialmente a relação sempre problemática entre moral e política, para a qual ele apresenta também uma solução. No caso de Hobbes e de outros teóricos políticos, como Rous- seau também já mencionado, o Estado emerge como um grande mecanismo de manutenção da ordem, como a agência de controle por excelência. O autocontrole moral fica restrito à esfera pessoal e dele não depende a esfera pública. O Estado impõe aquela or- dem que não pode existir se as relações entre os indivíduos de- Cf. KANT, 2007, p. 108–120; KANT, 1996, p. 317–351.21 23 penderem apenas de sua conformação moral, por melhor que pos- sa ser. As agências de controle são dispositivos sociais – quer sejam elas estatais, quer não – para manter a ordem. É verdade que a moralidade é também uma agência de controle social. O ponto no qual as teorias políticas insistem, contudo, é que ela não é sufi- ciente para que haja uma sociedade plenamente funcional. Mas as agências de controle, entre as quais está o governo em sua totali- dade, instituição que, como nos lembra Rousseau, tende a usurpar o poder do Estado, devem ser também controladas, por sua vez, é claro. As já mencionadas agências de contracontrole existem para isso. Entre elas estão os mais diversos tipos de controladorias. Mas as controladorias são agências internas de contracontrole. Elas existem no interior das próprias instituições que devem con- trolar. Sem agências externas de contracontrole, sua ação também pode ficar sob suspeição. Portanto, são as agências independentes de contracontrole – que é a ideia original de Skinner – que podem fazer alguma diferença para manter a sociedade funcional de ma- neira que o abuso de poder seja minimizado, senão mesmo evita- do. É verdade que a sociedade precisa de ordem e controle – ou pelo menos assim pensa a maioria tanto de teóricos, quanto de pessoas comuns. Mas a questão que talvez as utopias e os progra-mas de reforma ou de revolução social não resolvem bem é aquela do tipo de controle eficiente, do controle que possa otimizar o bem comum e minimizar conflitos e eventuais consequências aversivas da convivência dos indivíduos. Vale lembrarmos aqui, então, aquela citação de Kant que abriu este texto. Logo, a socie- dade ideal não é a sociedade das utopias, mas a sociedade aberta que permite haver as mais diversas formas de controle e contra- controle independente. Isso pode incluir a moralidade como uma das agências de autocontrole, mas deve incluir muito mais. Na visão de Kant, que já vamos comentar, inclui também a ação do político moral. 24 Aqui chegamos ao tema da ação coletiva e de sua relação com a ação individual, que é um problema colocado desde sempre para as teorias políticas e que Kant procura resolver em seus citados textos por meio de sua hipótese de um ardil da natureza. Segundo o filósofo em sua visão de uma inexorável marcha da humanidade conduzida pela própria natureza, por meio de conflitos e guerras, pois tanto os indivíduos como as nações procuram seu próprio bem exclusivamente, a sociedade acabará chegando a um estado ideal, racional, alcançando aquela racionalidade que Kant diz que se desenvolve plenamente apenas na espécie e não no indivíduo, isto é, o estado de paz perpétua. Há muito de utopismo nesses mencionados textos de Kant, obviamente. Além da teoria política e de como a política pode se tornar compatível com a moral, há o projeto de uma ordem cosmopolita, de uma liga das nações, asso- ciação de Estados que, por sua vez, não deve ser um estado, para evitar o totalitarismo, para que no interior das próprias nações o ideal cosmopolita possa ser preservado e, com ele, a liberdade sem a qual não há moralidade que possa fazer diferença na ordem social, ficando apenas como realidade transcendental. No plano especificamente político, Kant insiste no republica- nismo como princípio da separação dos três poderes e no regime democrático representativo, segundo ele aquele regime que pode estar em conformidade com o conceito de direito, aquilo que pode evitar o despotismo. Portanto, as questões políticas devem ser resolvidas em sua esfera própria, independente da moralidade, por mais que desejemos um ambiente político ético, com o que Kant concorda, mas não como a base da política. Ele afirma que não devemos esperar uma boa constituição do Estado da morali- dade; mas, ao contrário, que a boa educação moral de um povo provenha de uma boa constituição do Estado. É desta maneira que a natureza atua sobre a sociedade, fazendo com que o direito triunfe mais cedo ou mais tarde. É neste contexto que o político 22 Cf. KANT, 1996, p. 335s, e p. 340 para o próximo ponto. 22 25 moral vai aparecer, isto é, aquele que interpreta os princípios da prudência política em conformidade com a moral. E, de qualquer maneira, há um otimismo moral e político em Kant, pois, segundo ele, uma vez que uma nação possui políticos morais, há mais efici- ência política. Ele diz: A verdadeira política não pode, portanto, avançar sem já ter honrado a moral, e embora a própria política seja uma arte difícil, sua união com a moral não é questão de arte de forma alguma; pois, quando as duas entram em conflito uma com a outra, a moral corta o nó que a política não é capaz de desatar.23 O tom eminentemente utópico do texto de Kant se mostra claramente numa passagem que resume o que se pode esperar quando as nações se organizam internamente da forma adequada e quando elas convivem umas com as outras na forma daquela fe- deração de nações livres, unindo, portanto, o melhor da ação cole- tiva com o melhor da ação individual. Kant diz: É desta maneira que a natureza garante a paz perpétua através do próprio mecanismo das inclinações humanas, com a certeza de que não é possível predizer o futuro (teoricamente), mas que isso é sufici- ente para os propósitos práticos e impõe o dever de trabalhar para este fim (que não é meramente quimérico).24 Embora estejamos de acordo com a ideia de Kant de que não devemos esperar que a boa ordem política provenha de uma mo- ralidade superior, mas, ao contrário, que é mais provável que a moralidade superior provenha de uma boa ordem política e econômica, é claro que não endossamos sua tese de que é a natu- reza que nos conduz nesse processo triunfante do bem. Mesmo porque, como algumas das distopias e das outras teorias políticas (menos otimistas) enfatizam, nada nos garante que o bem esteja KANT, 1996, p. 347. 23 KANT, 1996, p. 337. 24 26 triunfando ou em posição de triunfar no futuro. Mesmo assim, a ideia kantiana de que os indivíduos não têm como não perseguir seus interesses pessoais em primeiro lugar pelo menos, mas que isso não necessariamente vai contra o bem comum, ainda pode ter apelo, desde que tomada sob outra luz. E a última passagem que desejamos citar de Kant aqui dá uma indicação interessante para o que vamos comentar na próxima seção. Ele diz: O problema de estabelecer um Estado, por mais que pareça difícil, é solucionável mesmo para uma nação de demônios (se eles tiverem pelo menos entendimento) e se resolveria da seguinte maneira: “Dada uma multidão de seres racionais, cada um dos quais precisa de leis univer- sais para sua preservação, mas cada um dos quais é inclinado de for- ma encoberta a escapar delas, a maneira de organizar essa multidão e estabelecer sua constituição, embora em suas disposições privadas os indivíduos se oponham uns aos outros, é que, todavia, eles constran- gem uns aos outros em sua conduta pública, sendo o resultado o mesmo que seria se eles não tivessem disposições ruins”.25 Os que conhecem o texto kantiano sabem que, logo em segui- da, mais uma vez, ele diz que é a natureza que providencia esse processo pelo qual, opondo-se uns aos outros, os indivíduos aca- bam criando um ambiente favorável ao bem comum. Mas, como já dissemos, esta não é a forma como encaramos a questão. De toda maneira, o que queremos é chamar a atenção para o fato de que Kant está ciente de que há uma diferença entre o comporta- mento coletivo e o comportamento individual e de que nas ques- tões políticas é o comportamento coletivo que mais importa. Na oposição dos indivíduos uns aos outros emerge uma ordem coleti- va que acaba por interessar a todos, porque é o que, afinal, os ga- rante, embora não seja isso o que eles buscariam por iniciativa própria. Portanto, Kant reconhece que há uma ordem social in- dependente dos indivíduos, ou relativamente independente, já KANT, 1996, p. 335. 25 27 que ela resulta do que eles fazem. Se afastarmos a ideia de que isso é obra da natureza e ficarmos apenas com o fenômeno social em si, teremos uma perspectiva mais promissora. 6 Do que emerge a sociedade ideal? Vimos a curiosa observação de Kant de que até mesmo os demônios seriam levados a constituir uma sociedade civil regrada e a viverem sob o império da lei. Podemos também dizer, ecoando sua ideia, que até mesmo uma sociedade de anjos teria a necessi- dade de leis, de agências de controle e contracontrole etc. Por mais que cada um desses anjos fosse um agente perfeitamente moral, não teriam eles como impedir as consequências socialmen- te indesejáveis ou aversivas de sua ação, de suas escolhas e, deste modo, também precisariam que suas perspectivas individuais fos- sem harmonizadas, considerando que esses anjos teriam de ser, como nós, seres com consciência reflexiva, vontade e uma pers- pectiva individual legítima, enfim, pessoas reais. Também esses possíveis anjos, assim como nós e os demônios, em suas relações, dariam ocasião de emergir uma ordem social que ultrapassa cada indivíduo. Não há nada de misterioso nessa ordem social emergente. Ela não tem nada a ver com aquela natureza à qual Kant atribuía os efeitos benéficos de longo prazo da socialização, nada a ver com a antiga ideiade natureza humana, embora devamos reconhecer que algumas características nossas acarretem determinados efei- tos no meio social, como vamos comentar logo adiante. Todavia, este filósofo tem razão em outro ponto: a identidade pessoal im- plica uma sociabilidade associal, que para ele também faz parte de nossa natureza, isto é, a propensão para vivermos em sociedade, para buscarmos a companhia do outro – e, devemos acrescentar, não apenas por causa de nossas outras necessidades, mas pela pura necessidade do outro – e, ao mesmo tempo, uma resistência à 28 perspectiva do outro. Por isso, tanto demônios e anjos, quanto 26 pessoas reais, todos os seres sociais, enfim, precisam se conformar a uma ordem superior. A questão na qual podemos acompanhar Kant, mesmo afastando sua ideia de ardil da natureza, é que tal ordem superior emerge no seio da sociedade pelo simples fato de as pessoas estabelecerem relações e, como diz o filósofo, cons- trangerem a ação umas das outras. É essa ação coletiva em sua totalidade que faz emergirem as instituições mais simples e fun- damentais, como mecanismos espontâneos de regulação social, como dispositivos espontâneos para evitar maiores conflitos. Embora, em última instância, isso não deixe de fazer parte da natureza das espécies sociais, voltando à ideia de Kant, não é preciso pensarmos em nenhum ardil, mas apenas no fato empírico de que as relações conflituosas entre os indivíduos não tendem a perdu- rar para sempre e que, mais cedo ou mais tarde, eles serão levados ao equilíbrio da ação coletiva concertada. Ora, a perspectiva de contratualistas como Hobbes e Rousseau é, afinal, que a pressão social conduz os indivíduos a firmarem o acordo que dá origem ao Estado. Isso não tem a ver com a natureza da mente humana dire- tamente, a não ser pelo fato de que somos propensos a regularmos nossa ação com base na ação do outro. Tem a ver, portanto, com a própria natureza da socialização, se podemos colocar assim. Essa natureza da socialização tem muito mais a ver com o que os estudiosos do comportamento coletivo chamam de comporta- mento de massa, ou de manada, ou de multidão. O pioneiro nes- sas pesquisas foi Gustave Le Bon, que elaborou o conceito de mul- tidão psicológica ou multidão organizada. Não necessariamente uma 27 multidão psicológica implica que os indivíduos estejam reunidos no mesmo espaço, mas implica que eles influenciem o comporta- mento uns dos outros por meio de fenômenos como a sugestão e o contágio, isto é, o fato de que tendemos a imitar os comporta- Cf. KANT, 2007, p. 111.26 Cf. LE BON, 1895. 27 29 mentos uns dos outros em determinadas condições ambientais. Isso pode ter relação com a característica evolutivamente selecio- nada dos primatas (e também de outras espécies) de imitarem o comportamento do outro; mas não é isso o que importa, quer a teoria esteja correta a este respeito, quer não. O que importa é que por meio da imitação, da sugestão (e devemos reconhecer que somos seres sugestionáveis) e, assim, do contágio, um grupo de pessoas pode ser levado a ações concertadas e, na verdade, distin- tas daquelas que cada indivíduo isoladamente exibiria. Nas multidões psicológicas é frequente que os indivíduos fa- çam coisas que isoladamente não fariam e que, na verdade, estão até em conflito com seus valores e princípios, com sua forma or- dinária de agir. É como se as pessoas, por assim dizer, perdessem sua individualidade, seu juízo pessoal, e passassem a agir como autômatos. Mas este é o lado negativo do fenômeno. Há também o lado positivo, que tem a ver com o fato de que a ação coletiva de uma multidão psicológica pode alcançar resultados positivos para a coletividade, algo que cada indivíduo agindo isoladamente não conseguiria. Por exemplo, as ações (não apenas as violentas) que ocorrem durante uma revolução social são possíveis graças ao fenômeno da multidão psicológica e, quando tais revoluções são bem sucedidas no sentido de imporem uma nova ordem mais jus- ta (vamos supor que isso realmente aconteça), esse resultado posi- tivo se deve à ação coletiva e nunca poderia ser alcançado por ações isoladas dos indivíduos, simplesmente porque, como Kant nos lembraria, cada indivíduo não teria por que se consagrar a uma ação coletiva que diretamente não está voltada para seu pro- veito individual. Todavia, não pensemos apenas no exemplo dramático de uma revolução social, mas nos inúmeros exemplos ordinários que há na sociedade comum, em sua vida diária, exemplos que exibem o mesmo padrão pelo qual, inserido no grupo, o indivíduo não tem como evitar comportamentos que não necessariamente o benefi- ciam direta e pessoalmente, mas que são mais do interesse da co- 30 letividade. Vamos dar um exemplo interessante que também é um caso da emergência do comportamento de multidão psicológica tal como Le Bon a caracteriza. As pessoas que entram no frenesi de compras em uma superli- quidação de uma loja de departamentos (um tipo de evento com o qual já nos acostumamos nos últimos anos na sociedade de con- sumo) não podem evitar de se comportarem por imitação, não podem evitar o contágio e a sugestão nisso envolvidos. O resulta- do é que muitas vezes elas compram a baixos preços itens dos quais não têm real necessidade. Assim, seu comportamento econômico pontual nem sempre é racional. Mas, no plano coleti- vo, esse comportamento é perfeitamente racional – daquele tipo de racionalidade que só pode ser coletiva, como diz Kant, como vimos –, pois o efeito econômico geral do evento é positivo tanto para a média dos consumidores, que adquirem itens dos quais a população como um todo tem necessidade e a baixos preços, quanto para as empresas envolvidas no processo, que esvaziam seus estoques e fazem caixa. Por isso podemos dizer que nos contextos sociais sempre emergem padrões de conduta que os indivíduos não podem evitar, mas que evitariam se pudessem resistir aos efeitos da sociabilida- de, da imitação, da sugestão e do contágio. E isso funciona tanto para o bem, quanto para o mal. A intuição de que os seres huma- nos funcionam assim em sociedade pode estar na raiz dos projetos utópicos de insulamento que mencionamos antes, como tentativa de evitar os efeitos nocivos da socialização em larga escala. O problema com o qual essas utopias não podem lidar bem é que, na verdade, mesmo um pequeno grupo de pessoas pode exibir o comportamento de multidão psicológica. Não é preciso que haja uma grande manada para que o efeito de manada se apresente. O comportamento de manada – que, aliás, está sempre associ- ado à perda da individualidade – é também um padrão de conduta selecionado evolutivamente em muitas espécies, inclusive a nossa. Pela sugestão e pelo contágio do qual Le Bon fala, o grupo se pro- 31 tege, por exemplo, de um predador pelo simples fato de apenas um dos indivíduos o detectar e fugir, levando a manada toda a es- tourar, como se diz, evitando o perigo iminente. A manada que estoura é uma multidão psicológica. O que ela tem em comum com diversos outros contextos sociais é o mesmo padrão de agir coletivamente no interesse do grupo, sem discernimento pessoal, mas de tal maneira que, na média e a médio e longo prazos, o re- sultado é positivo também para o indivíduo. É essa emergência do comportamento coletivo e seu padrão que pode estar na origem da sociedade ideal. E aqui é preciso que elaboremos esse ponto com cuidado para não voltarmos aos enga- nos que há nos projetos utópicos, muitos deles denunciados pelas distopias, como vimos. A sociedade ideal não pode ser um lugar, nem propriamente um sistema ou regime político específico, embora devamos reco- nhecer que alguns são mais adequados para uma convivência mais harmoniosa e justa dos indivíduos, como os sistemas que possuam aqueles aspectos enfatizados pelos autores acima mencionados, como o republicanismo, a democraciarepresentativa e mesmo o cosmopolitanismo de Kant, a sociedade aberta de Popper e as agências de contracontrole de que Skinner fala e que só podem proliferar na sociedade aberta e pluralista. Mas a sociedade ideal é, na verdade, um padrão de conduta, um padrão que possa no nível individual conciliar os interesses do grupo com os interesses de seus membros. E por isso é verdade que o discernimento que está envolvido nos juízos eminentemente morais é importante, embora devamos reconhecer com alguns autores, entre eles Kant mais uma vez, que a política não pode depender da moral. A sociedade ideal emerge da ação coletiva na medida em que possa conduzir cada indivíduo a se aperfeiçoar como agente livre. Ela não pressupõe a democracia, a liberdade e a moralidade, mas emerge juntamente com elas. A sociedade ideal é aquela em que os indivíduos são capazes de reconhecer seus limites e se confor- mar às leis não em virtude de alguma agência de controle coerciti- 32 vo, mas de agir como se pudessem escolher, mesmo que não esco- lham. Não é preciso que cada um delibere e escolha o tempo todo, mas é preciso que, se esse for o caso, ele possa fazê-lo. Logo, a sociedade ideal é aquela que em cada indivíduo preserva o egoísmo e o altruísmo em uma combinação ótima, de tal maneira que nem a sociedade escravize o indivíduo, nem este tome aquela apenas como instrumento de sua própria satisfação. É claro que há certo utopismo no que acabamos de dizer. E como é que as pessoas devem agir para que isso não seja apenas mais uma fantasia filosófica? As utopias contêm receitas de bem viver ou, mais exatamente, aproximando-se daqueles já mencio- nados projetos da tecnologia social, projetos de uma sociedade funcional. Mas, de fato, é como se o lema das utopias fosse: “Sal- vemos alguns, já que não podemos salvar a todos”. E em contra- partida, as distopias gritam: “Se não salvarmos a todos, não salva- remos ninguém”. Isso não quer dizer que os projetos reais de re- forma social pontual, mais ou menos abrangentes, como susten- tam os defensores da tecnologia social, não possam ter bons efei- tos sociais. Mas Kant nos diria mais uma vez: eles devem ser tam- bém cosmopolitas. Eles não podem perder a perspectiva do todo da sociedade humana. Sociedades funcionais insuladas só são legí- timas se forem projetos piloto voltados para um objetivo mais amplo e não fins em si mesmas. Nas utopias, nas filosofias políticas e morais e até mesmo nas distopias há boas ideias, algumas das quais já destacamos. E elas até podem se consolidar em projetos piloto de sociedades funcio- nais. Mas essas últimas não são a realização da sociedade ideal. Pois ela é a sociedade que não pode deixar ninguém de fora. Não que a sociedade ideal vá ser uma sociedade sem desigualdades e sem crime. Seria muito ingênuo pensarmos isso, pois, como dis- semos, se existissem, até os anjos brigariam e precisariam se ren- der a um poder maior para haver paz entre eles. Mas, de fato, a sociedade ideal não pode conter pobreza e não pode permitir que iniciativas de ódio prosperem. Ela deve aceitar as diferenças, mas 33 deve impedir que elas se cristalizem em injustiça, exploração e violência planejada. A sociedade ideal vai conter fatalmente algu- ma violência, pois isso é inevitável aos animais. E, mais uma vez, os anjos só não serão também violentos se não forem animais. Mas a sociedade ideal é aquela em que seus membros – animais que são –, todavia, alcançam autocontrole em larga escala. Eles podem não evitar as explosões típicas da violência animal, mas podem impedir pela razão e pela moralidade que essa violência vá longe demais, que ela leve a programas orientados pelo ódio, pela intolerância e pela exclusão de uns em benefício de outros. Portanto, a sociedade ideal é um padrão de conduta que pode emergir dadas diversas condições ambientais e mentais dos indi- víduos. Talvez o erro fundamental das utopias seja aquele de que- rer começar tudo do zero, como se isso fosse possível em qualquer setor da vida humana e, na verdade, da própria natureza. Pois cada um de nós carrega dentro si a sociedade toda. A sociedade ideal só pode ser então um processo pelo qual o que foi alcançado de hu- manista se consolida e produz novas realidades que vão ao encon- tro ao mesmo tempo dos interesses individuais e coletivos. Embo- ra não possam ser então princípios absolutos, coisas como a de- mocracia, o cosmopolitanismo e as agências de contracontrole devem ser encaradas como aquisições que nos levam em direção à sociedade ideal, mas que ela é real apenas quando também faz parte da sociedade internalizada por cada um de seus membros. E por isso não há como não pensarmos também que a ética da vir- tude, e não apenas a ética do dever, deva ser um desiderato social e pessoal de todos. 7 Conclusão: cosmopolitanismo versus insulamento Nas seções precedentes comentamos que os modelos de socie- dade ideal apresentados pelas utopias se baseiam na maior parte das vezes naquele tipo de isolamento que denominamos insula- 34 mento, que consiste basicamente em delimitar ou um lugar, ou en- tão certas atividades, ou ambas as coisas de maneira a deixar de fora do espaço utópico aquelas variáveis que, na sociedade em geral, são resistentes ao controle. Destacamos também os tipos de controle, entre eles aquelas formas que, nas distopias, degeneram para formas coercitivas, autoritárias e violentas. Comentamos que há um parentesco entre as utopias e a ideia de planejamento que orienta os projetos de tecnologia social, ainda que devamos reco- nhecer que tais projetos podem ter efeitos benéficos localizados. Enfatizamos que a solução dos problemas políticos e econômicos não pode ficar na dependência do aperfeiçoamento moral que certas utopias pretendem promover, mas que, ao contrário, são as sociedades abertas, pluralistas e com certo equilíbrio entre agên- cias de controle e contracontrole que podem criar o ambiente social no qual a moralidade superior pode florescer. E, por fim, procuramos indicar que a sociedade ideal não é um lugar, nem a forma de organizar a vida deste lugar, mas um padrão de ação que resulta das relações dos indivíduos à medida que determinadas instituições mais básicas emergem. O fato de enfatizarmos que a sociedade ideal é um padrão de ação com as características positivas antes enumeradas implica que o verdadeiro utopismo – no sentido de idealizar uma forma equilibrada de convivência dos seres humanos – deve ser uma forma de humanismo. Isso implica também que não devemos pensar a sociedade ideal sem diferenças, como já enfatizamos, nem como uma sociedade onde o crime não vá ter lugar. Não é possível chegar a esse nível de controle nem sequer por meio de um alto grau de autocontrole da parte das pessoas. Portanto, a sociedade ideal é aquela em que os problemas de todos os tipos que fatalmente vão surgir entre os indivíduos, pois isso é inevitá- vel quando cada um é uma individualidade com perspectiva e in- teresses próprios, serão resolvidos por meio de formas as menos violentas ou menos agressivas que forem possíveis. Nossa pers- 35 pectiva deve ser então cosmopolita, como Kant insiste em seus textos já comentados. O cosmopolitanismo de Kant está fundamentado no que ele denomina hospitalidade, que não é, diz o filósofo, uma cortesia, mas um direito. A hospitalidade deriva do direito que todos têm 28 à toda a superfície do planeta e consiste na acolhida do estrangei- ro não para que ele tome o lugar de quem já estava em alguma parte, mas para que possa ter com os habitantes de um lugar rela- ções pacíficas e produtivas, como o comércio. A hospitalidade como condição do cosmopolitanismo é, portanto, a não hostilida- de de ambas as partes, de quem visita e de quem recebe o visitan- te. E é claro que isso só é possível se o estrangeiro não for encara- do como ameaça.O isolamento das sociedades de insularidade, como aquelas das utopias, via de regra, está fundamentado no princípio oposto de que o outro é ameaça ao modo de vida funcional que determinado grupo possa ter alcançado. O isolamento pode ser também, é cla- ro, em sua forma mais primitiva, a institucionalização da proteção do grupo contra possíveis ameaças externas, algo que, mais uma vez, devemos reconhecer, provém de ter a sociedade humana emergido do reino animal e da luta das espécies pela sobrevivên- cia. Mas a emergência das sofisticações da civilização, principal- mente da moralidade e da ampliação da empatia, deve também conduzir as parcelas da sociedade que disso tomam consciência a produzir o efeito descendente de promover a hospitalidade, na medida do possível, não apenas entre os seres humanos, mas com o restante da natureza, que é o ideal ecológico no que ele tem de mais central, que envolve necessariamente também a defesa e a proteção das outra espécies animais. No que diz respeito aos grupos humanos, isso não significa se colocar na posição de quem vai levar ao outro a civilização, pois quem adota essa postura ainda não compreendeu bem o que é a Cf. KANT, 1996, p. 328s. 28 36 hospitalidade, que consiste em ver o outro como igual, apesar das diferenças aparentes. A hospitalidade e o cosmopolitanismo são, pois, exatamente o contrário do colonialismo e do imperialismo. Por isso a sociedade ideal não pode estar naquela situação em que um grupo humano alcançou uma forma de vida funcional e por isso imagina que seu sistema seja adequado para todos os outros grupos. O cosmopolitanismo é também, então, a tolerância com as diferenças culturais. É nisso apenas que pode estar a sociedade ideal por mais que tal ordem de coisas na sociedade humana possa nos parecer distante ou até mesmo inalcançável. Porque não é real, o ideal não deixa de ter valor. Referências bibliográficas BACON, Francis. The New Atlantis. Auckland, N. Z.: The Floating Press, 2009. BELLAMY, Edward. Looking Backward. 2000-1887. Toronto: Bro- adview Press, 2003. CAMPANELLA, Tommaso. The City of the Sun. Auckland, N. Z.: The Floating Press, 2008. CUNHA, Ivan F. 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