Buscar

As-Utopias-e-como-a-Sociedade-Ideal-nAúo-A-

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 39 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 39 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 39 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

As Utopias e como a Sociedade Ideal não é:
Um Estudo na Filosofia da Ação.
Luiz Henrique de Araújo Dutra
UFSC/UnB/CNPq
Se a melhor maneira de manter um povo obediente 
e também próspero é com severidade ou com a ten-
tação de vaidade, se com o poder supremo de um 
indivíduo ou com diversos líderes unidos, talvez 
mesmo apenas com uma aristocracia de mérito ou 
com o poder do próprio povo, isso é incerto. A his-
tória oferece exemplos do oposto com todos os ti-
pos de governo (com a única exceção daquele que é 
verdadeiramente republicano, o que, contudo, acon-
tece apenas com um político moral).1
– Immanuel Kant, 1795.
Qual é a sociedade de nossos sonhos? Se perguntarmos isso às mais diversas pessoas, certamente vamos ouvir em resposta que seria uma sociedade sem pobreza e sem 
crime, uma sociedade de oportunidade e liberdade para 
todos, de respeito etc. E, num nível mais detalhado, certamente 
também alguns dirão que gostariam de uma sociedade de políticos 
éticos e, para espanto geral, até mesmo notórios corruptos seriam 
capazes de – sem cinismo – dizer que gostariam de viver numa 
 Cf. KANT, 1996, p. 344 (Em direção à paz perpétua. Um projeto filosófi1 -
co). Embora as obras clássicas como esta e outras que citaremos na 
sequência possuam diversas edições e traduções, sempre indicaremos 
pelo menos uma delas.
1
sociedade sem corrupção. As utopias procuram reunir ideias desse 
tipo em modelos de estrutura social e convivência entre as pesso-
as, imaginando em quais condições isso seria realizável.
A literatura de utopia remonta à República, de Platão, até hoje 
o mais eminente texto no gênero, aquele cujo autor é o mais im-
portante entre todos aqueles filósofos e cientistas que se dedica-
ram ao tema. Não menos importantes, contudo, devemos salien2 -
tar, são algumas obras bem mais recentes da literatura de distopia, o 
subgênero contraponto das obras otimistas quanto à reforma da 
sociedade humana. Entre as obras distópicas destacam-se já no 
século XX o 1984, de George Orwell, e o Admirável mundo novo, 
de Aldous Huxley, autor que, por sua vez, também possui uma 
obra típica da literatura utópica, seu A ilha, que nunca teve a 
mesma repercussão da primeira aqui citada. No conjunto, as 3
obras otimistas e pessimistas – utópicas e distópicas – constituem 
um numeroso conjunto de reflexões sobre a natureza humana e 
sobre a sociedade. Teremos oportunidade adiante de comentar 
algumas delas na medida em que suas ideias vierem a ter relevân-
cia para nossas discussões. Não temos, contudo, a pretensão de 
fazer um inventário exaustivo e nem mesmo muito abrangente 
dessas obras, mas apenas de destacar as contribuições de algumas 
delas, como é o caso com as já mencionadas e outras que vamos 
citar. Nem vamos apresentar delas resumos, deixando para o leitor 
interessado o conhecimento direto de suas narrativas.
A filosofia da ação, que é o domínio em que pretendemos que 
nossas considerações se insiram, às vezes dá margem a que suas 
teorias e conceitos se estendam em direção à filosofia social e à 
filosofia política, por um lado, embora hoje a primeira tenha per-
dido muito do interesse que já teve para os filósofos profissionais, 
tendo muitos de seus temas sido transferidos para a segunda. Por 
outro lado, tais teorias e conceitos sobre a ação se estendem tam-
 Cf. PLATÃO, 2000. 2
 Cf., respectivamente, ORWELL, 2000, HUXLEY, 2006 e 2009. 3
2
bém em direção à filosofia da mente, à psicologia e à economia. 
Além disso, é claro, não menos importante é o fato de que os te-
mas da filosofia da ação podem nos dirigir para o domínio da filo-
sofia moral. E como, estritamente falando, a filosofia da ação é 
uma modalidade da filosofia aplicada, embora esse modo de consi-
derar as disciplinas filosóficas também tenda a cair em desuso, ela 
pressupõe considerações da filosofia da mente, da ontologia, da 
psicologia, da economia e das demais disciplinas citadas, entre 
outras. Tudo isso dizemos para destacar o fato de que estamos 
num domínio complexo e que pode ser vasto, embora os filósofos 
da ação mais eminentes, por exemplo Donald Davidson, tenham 
tendido a restringir suas considerações às zonas de confluência da 
filosofia da ação com a filosofia da mente e com a filosofia moral. 4
De nossa parte, o que pretendemos, de certa maneira, é fazer o 
caminho inverso, indo das ideias políticas e de organização da so-
ciedade – dramaticamente expressas nas obras da literatura de 
utopia e distopia – para as considerações mais abstratas da filoso-
fia da ação. A política é uma das formas mais importantes da ação 
coletiva que procura organizar a sociedade, obviamente, mas a 
organização da sociedade na forma de projetos da sociedade ideal 
pode se apresentar como um tipo de tecnologia social, ou engenharia 
social, tal como a ideia aparece em alguns filósofos, por exemplo, 
Karl Popper e Otto Neurath, tende a ir além da política, ou então, 
talvez melhor dizendo, tende a ficar aquém dela, como questão de 
planejamento meramente técnico, algo que transparece também 
em algumas das obras de utopia que, embora sejam de caráter 
sempre político, dissimulam isso em favor daquela noção de pla-
nejamento técnico. 5
 Cf. DAVIDSON, 2002. 4
 Cf., por exemplo, POPPER, 2013, especialmente cap. 9, NEURATH, 5
1973, cap. 5 (Utopia as a Social Engineer’s Construction, texto de 1919) e 
NEURATH, 1947 (o texto Unstable Uniformities and Social Enginee-
ring). Cf. ainda CUNHA, 2015 e 2018. 
3
Por outro lado, a ação humana não costuma ser pensada a par-
tir da ação coletiva, mas, ao contrário, é a ação coletiva que cos-
tuma ser pensada a partir da ação individual e esta, por sua vez, a 
partir do mentalismo humano. E essas são, por sua vez, ideias que 
também vão ao encontro daquela espécie de despolitização da 
organização da sociedade. Dados esses pontos, temos a seguinte 
ordem: as características da mente humana determinam o que os 
indivíduos fazem e o que eles fazem individualmente acarreta o 
que ocorre na ordem social. E por isso os projetos utópicos – seja 
na ficção, seja naquele domínio da tecnologia social – parecem ser 
pertinentes e poder atingir seus objetivos, isto é, apresentar mo-
delos de uma sociedade que possa funcionar satisfatoriamente 
para a maioria. Pois eles brotam na imaginação de alguns, sejam 
ficcionalistas, sejam engenheiros sociais. O que pretendemos é 
também inverter essa ordem, entendendo a ação individual e, em 
alguma medida, algumas características mentais nossas, a partir da 
ação coletiva. Por essa razão, essa espécie de planejamento social 
de cima para baixo dos modelos utópicos e dos modelos de tecnolo-
gia social não nos parece poder apresentar como uma sociedade 
ideal poderia ser.
A ideia de sociedade ideal é vaga, mas sabemos que ela envolve 
alguns elementos que todos considerariam indispensáveis, na di-
reção de nossos comentários iniciais. A sociedade ideal deve ser 
justa, deve promover o bem social da maioria e, no limite, prover 
a cada um segundo suas necessidades, deve admitir diferenças, 
mas deve possuir mecanismos sociais de resolução de possíveis 
conflitos. No limite, deve ser então uma sociedade sem crime, 
sem pobreza e sem injustiça, como já sugerimos. E podemos con-
tinuar a enumerar outros aspectos se quisermos; eles aparecem na 
literatura utópica e nos textos filosóficos já mencionados que tra-
tam da tecnologia social. 
Todavia, a sociedade ideal só pode existir na dependência das 
características dos indivíduos que a comporão, características 
mentais e morais, é claro, também cognitivas, mas igualmente de 
4
características do ambiente social no qual vai se dar o possível 
processo de encaminhar uma população para o ideal social, para 
aquela forma de convivência que contemple os quesitos acima 
mencionados e outros. Queremos também chamar a atenção para 
esse aspecto ambiental, de modoa considerarmos que qualquer 
ação social na direção da sociedade ideal, dadas as características 
da ação coletiva, o que envolve a política, não pode ser daquela 
forma imaginada pela literatura utópica e sua congênere técnica 
no domínio da engenharia social. 
Vamos começar analisando alguns aspectos mais salientes das 
sociedades idealizadas na literatura utópica. Em seguida, vamos 
tratar dos aspectos desconcertantes que são salientados pela lite-
ratura distópica. Depois, vamos tomar em consideração a relação 
entre política e moral, analisando a utopia de Edward Belamy, Lo-
oking Backward, e a posição também utopista de Kant em seu já 
citado texto sobre a paz perpétua. Por fim, vamos discutir o que 
seria o padrão da ação coletiva e com base nisso inferirmos o tipo 
de ideal social que seria sustentável. 
1 O isolamento das sociedades ideais
Para começarmos, voltemos à República de Platão. Além de ser 
um tratado de filosofia política, como sabemos, a obra é também 
um exemplo de tratado de engenharia social, contendo um mode-
lo de sociedade, modelo utopista, isto é, um modelo ideal de soci-
edade e de como administrá-la, algo que no juízo de Popper, por 
exemplo, em sua obra já citada, não pode ser bem sucedido. Ora, 6
os que conhecem a obra se lembram da ideia de Platão de que o 
governante ideal é o filósofo, pois é ele que está em melhor posi-
 Cf. POPPER, 2013, cap. 4 a 10. Como é bem conhecido, a principal 6
objeção de Popper a tal modelo de sociedade ideal é que se trata de uma 
sociedade fechada ou não democrática. 
5
ção cognitiva (e também moral) para organizar a vida em socieda-
de. Desde então, os filósofos políticos não se veem mais à altura 7
de tão nobre e desafiador papel social, exceção feita, por exemplo, 
a autores como Hegel e Marx, também duramente criticados por 
Popper, também eles defensores de sociedades fechadas na opi-
nião desse último. Os filósofos políticos modernos, especialmente 
os contratualistas, como Hobbes e Rousseau, optaram não por 
projetar a sociedade ideal, mas por explicar como a sociedade real 
se organiza.
Lembramos aqui essas críticas de Popper a Platão e aos outros 
mencionados pensadores também para indicarmos um contraste 
entre sua abordagem e aquela que pretendemos. A postura de 
Popper é, por assim dizer, pró-ativa, para utilizarmos uma expres-
são agora em uso. Ou seja, ao defender uma concepção de socie-
dade aberta ou democrática em contraposição àqueles modelos de 
sociedade fechada e defender conjuntamente que a tecnologia 
social deve ser elaborada em outras bases, Popper presume que a 
sociedade aberta, democrática e tolerante – mas capaz de coibir 
as iniciativas de intolerância e autoritarismo – é possível. Ela é 
possível, de sua perspectiva, pura e simplesmente em virtude de 
uma postura política condizente com os princípios da sociedade 
aberta. Isso deve estar presumido, sendo a base a partir da qual o 
planejador social vai trabalhar. Ora, em princípio, não há nada de 
errado nisso, muito ao contrário. Mas a questão é que isso, de 
fato, pode não bastar para alcançarmos o ideal de uma sociedade 
aberta. As condições objetivas – sociais em geral e especificamen-
te econômicas, políticas, ideológicas etc. – podem não promover 
nem permitir, mas, ao contrário, impedir o advento da sociedade 
aberta e os projetos de engenharia social voltados para o ideal de 
 É interessante então contrastar com isso o que Kant afirma: “Uma vez 7
que a posse do poder inevitavelmente corrompe o juízo da razão, não 
devemos esperar que os reis façam filosofia, nem que os filósofos se tor-
nem reis, tampouco devemos desejar isso.” (KANT, 1996, p. 338.)
6
sociedade aberta. Além disso, se é questão de tomarmos uma ati-
tude tolerante e de sermos democratas, como quer Popper, trata-
se também de um fenômeno que envolve ideologia, o confronto 
de ideologias e a conscientização dos atores políticos. Pois, afinal, 
é preciso que esses últimos estejam convencidos de que a socie-
dade aberta é a melhor opção para todos. E não é isso o que a his-
tória tem mostrado com dramáticos episódios de sociedades fe-
chadas. Mas se sua existência não é evidência de que a sociedade 
aberta não é possível, e apenas de que até hoje ela não foi possível 
plenamente (isto é, em larga escala no planeta todo), pode ser pelo 
menos sinal de que apenas uma postura democrata não é suficien-
te para que os projetos de planejamento para a sociedade aberta 
prosperem. 8
Criticar os modelos conhecidos de sociedade fechada, como 
Popper faz, é mais fácil certamente do que elaborar um programa 
em prol da sociedade aberta. E a postura deste filósofo não deixa 
então de ser também utopista, mesmo que não apresente como 
outros um modelo definido de sociedade. Outros modelos que a 
literatura de utopia apresenta procuram identificar os fatores am-
bientais que poderiam ser decisivos quanto à possibilidade ou im-
possibilidade da haver uma sociedade ideal. A própria tendência 
que há em muitos modelos, desde os mais antigos até outros re-
centes, de projetar uma sociedade menor e isolada do resto do 
mundo – da sociedade humana em geral – é indicativa da percep-
ção que os autores têm de que há fatores ambientais que se não 
impossibilitam a sociedade ideal, pelo menos dificultam muito sua 
realização. E, logo, os projetos concretos de organizar a sociedade 
em direção ao ideal social requerem condições sociais específicas 
que não se dão a todo momento e em toda parte. 
Nos modelos mais antigos, como os de Thomas More (Utopia, 
de 1516), de Tommaso Campanella (A cidade do sol, de 1623) e de 
 Ao contrário de Popper, que ficou apenas no plano teórico, Neurath se 8
envolveu em ações práticas nesta direção. Cf. CUNHA, 2015 e 2018. 
7
Francis Bacon (A Nova Atlântida, de 1627), há a fantasia de que 9
em um território isolado, como uma ilha desconhecida pelo res-
tante do mundo, um grupo menor de pessoas sob a liderança es-
clarecida de alguns sábios poderá alcançar o ideal de sociedade 
equilibrada, justa etc., embora nem sempre democrática ou pelo 
menos não exibindo um regime de democracia plena, como o de-
fensor da sociedade aberta – não apenas na forma desejada por 
Popper – gostaria de ver. Isso não significa que necessariamente 
os modelos como os citados acima, de More, Campanella e Ba-
con, defendam sociedades fechadas no sentido popperiano. Mas 
pode significar que, do ponto de vista de seus elaboradores, as 
condições ambientais não permitam uma democracia plena, ou 
então que ela não é necessária ou indispensável para haver uma 
sociedade mais justa e equilibrada em todos os aspectos. 
Modelos mais recentes na literatura utópica, como os de B. F. 
Skinner (Walden II, de 1948) e de Aldous Huxley (A ilha, de 
1962), partem do mesmo pressuposto de que a sociedade ideal é 10
possível quando há certo isolamento de uma comunidade guiada 
por princípios científicos, tal como Bacon também propugnava. O 
isolamento do resto do mundo é necessário para que tais princí-
pios científicos possam ser aplicados. No caso de Skinner – que, 
curiosamente ecoa em seu próprio título o Walden de Thoreau, 
defensor do isolamento, neste caso, do indivíduo e não de uma 
comunidade –, o isolamento do grupo em uma colônia, que é 11
parte de uma rede de colônias similares, tem por objetivo permitir 
a aplicação das técnicas de condicionamento operante, algo que 
sabidamente só funciona em contextos fechados. 
Os contextos nos quais os princípios da análise experimental 
do comportamento de Skinner foram empregados com sucesso na 
modelagem do comportamento, isto é, na implantação de com-
 Cf. MORE, 2002, CAMPANELLA, 2008 e BACON, 2009.9
 Cf. SKINNER, 2005 e HUXLEY, 2009. 10
 Cf. THOREAU, 2012. A primeira publicação é de 1854. 11
8
portamentos socialmente desejáveis e na extinção de comporta-
mentos socialmente indesejáveis, são contextos típicos de isola-
mento, como hospitais psiquiátricos, internatos escolares, prisões 
e algumasfábricas com linha de produção em moldes mais tradi-
cionais. Nesses casos como naquele da sociedade projetada no 
Walden II, o isolamento do grupo visa ao afastamento daquelas 
variáveis ambientais que escapam ao controle do controlador do 
comportamento. 12
É claro que há muitas críticas a esse tipo de modelagem do 
comportamento e elas se estendem também, portanto, à socieda-
de utópica imaginada por Skinner. Nem por isso Skinner abre 
mão da democracia e da sociedade aberta. Como ele defende em 
outra de suas obras que também trata de questões sociais, cujo 
título em português seria Para além da liberdade e da dignidade, de 
1972, a sociedade ideal seria aquela em que proliferam o que ele 13
denomina agências de contracontrole, que são aquelas instituições 
que podem contrabalançar o poder exercido pelas agências de 
controle social, estas sendo ordinariamente aquelas que fazem 
parte do Estado. Uma sociedade democrática e, portanto, aberta 
no sentido de Popper, é aquela em que há um equilíbrio entre as 
agências de controle (segundo Skinner, sempre necessárias) e as 
agências de contracontrole. 
As ideias dessa outra obra não conduzem o autor, contudo, a 
elaborar um modelo de sociedade. E, por sua vez, no modelo 
apresentado em Walden II, o controle é (mais) sutil do que esse 
exercido pelas agências estatais de controle social. A característica 
principal dessa sociedade ideal skinneriana é que o controle prati-
 Cf. SCHWARTZ; LACEY, 1982, que faz um detalhado exame da aná12 -
lise experimental do comportamento e das tentativas de aplicá-la nos 
referidos contextos fechados. Os contextos abertos, por sua vez, seriam 
justamente aqueles ambientes sociais ordinários nos quais há um grande 
e indefinido número de variáveis ambientais operando. Cf. também LA-
CEY, 2001. 
 Cf. SKINNER, 1990. 13
9
camente não seria necessário numa das colônias imaginadas por 
ele, já que ali seria possível aplicar (sutilmente) as técnicas de mo-
delagem do comportamento que conduziriam os indivíduos aos 
comportamentos mais desejáveis do ponto de vista social. A suti-
leza está exatamente na forma de organizar a vida do grupo na 
colônia, valendo-se de seu relativo isolamento. Basicamente, tra-
ta-se de levar as pessoas a exercerem aquelas atividades para as 
quais são predispostas ou propensas de tal modo que essas pesso-
as recebam um grande reforçamento positivo ao exercerem tais 
atividades.
Ora, isso é o mesmo que vemos também nas sociedades insula-
res imaginada por Huxley e, antes dele, por More e por Bacon. 
Em suma, a vida social em todos os seus aspectos deve ser organi-
zada segundo princípios científicos de maneira a induzir os indi-
víduos aos comportamentos socialmente mais desejáveis compatí-
veis com suas capacidades. Em tais sociedades ideais, as diferen-
ças de opinião e as diferentes necessidades dos indivíduos não 
conduzem a conflitos. Os potenciais conflitos são neutralizados 
na origem por meio de dispositivos sociais – políticos – adequa-
dos, nem sempre plenamente democráticos. Assim como na fic-
ção de Skinner, o resultado final nesses outros modelos é sempre 
haver indivíduos realizados, felizes e que se sentem livres. Eles 
sempre poderão deixar sua sociedade ideal, mas é claro que sem-
pre escolherão ficar, mesmo que não participem plenamente do 
poder. Eles decidem ali ficar porque é ali que recebem maior re-
forçamento positivo. Ora, isso é de qualquer forma um problema 
para o defensor da sociedade aberta, democrática e pluralista em 
todas as suas formas de ação, pois, apesar das boas intenções dos 
autores de tais modelos, o indivíduo ainda corre o risco de perder 
a liberdade.
O isolamento é o conceito-chave nesses modelos. Ao contrário 
de Skinner, que discute claramente as variáveis ambientais do 
comportamento, embora não explicitamente em sua obra de uto-
pia, os outros autores não empregam essa noção; mas é claro que 
10
ela está sempre implícita. O isolamento é necessário para afastar 
aquelas variáveis ambientais incontroláveis, como já sugerimos. 
Ele implica também certo número máximo de indivíduos por so-
ciedade individual, como no caso do Walden II de Skinner. Daí a 
ideia de haver uma rede de colônias para que em cada uma o nú-
mero de habitantes esteja próximo do ideal e, logo, abaixo do má-
ximo admissível. Isso está também implícito nos outros modelos 
utópicos que mencionamos. O isolamento insular de alguns dos 
mencionados modelos acarreta a mesma limitação de população. 
Portanto, o que faz diferença é, afinal, a dimensão da população 
de uma sociedade individual. Ora, em última instância, a nosso 
ver, isso significa que o que faz a diferença é o tipo de ação coleti-
va possível no seio de tal população de dimensão controlada de 
maneira a ficar no limite numérico ideal. 
Um tipo de problema que uma população muito grande pode 
gerar é de natureza econômica. A sociedade ideal deve prover a 
todos na medida de suas necessidades, ideia básica e geral que já 
mencionamos. E a sociedade humana em geral, pelo planeta afora 
nas mais diversas nações, não está nem um pouco próxima disso e 
nunca esteve em nenhum período da história (que saibamos). A 
sociedade ideal não é exatamente uma sociedade sem nenhum 
tipo de classe social, mas deve ser a sociedade na qual não haja in-
justiçados economicamente ou destituídos. Nela não pode haver 
pobreza. 
Todavia, não se trata apenas desse aspecto econômico. O con-
trole social é um aspecto mais geral e crucial nas mencionadas 
utopias, embora, como vimos, o tema do controle é explicitamen-
te discutido apenas por Skinner, ainda que não na mesma obra em 
que seu modelo de sociedade é apresentado. A sociedade ideal é 
uma sociedade controlada ou, mais precisamente, autocontrolada de 
maneira distribuída (exceção feita, como insistira Popper, à socie-
dade da República de Platão, que não é aberta). Ou seja, os diver-
sos segmentos sociais e os indivíduos se autorregulam sem a ne-
cessidade de um controle coercitivo centralizado, embora possa 
11
haver mecanismos que possam eventualmente exercê-lo. Mas na 
sociedade ideal esses mecanismos praticamente nunca precisarão 
ser acionados. O mais importante a nosso ver é que esse autocon-
trole não provém de características mentais ou morais dos indiví-
duos, em primeiro lugar, mas das condições ambientais em que 
eles vivem. Daí o isolamento ser essencial. As características men-
tais (cognitiva e morais) são produto da organização da sociedade 
segundo o modelo de isolamento. Fora dele, tais características 
mentais dos indivíduos vão escapar a qualquer controle; os indiví-
duos não vão exibir o desejado autocontrole. 
2 As distopias e o controle aversivo
Consideremos agora os aspectos mais marcantes das mais co-
nhecidas distopias da literatura disponível. As já mencionadas 
obras de Orwell e Huxley – 1984 e Admirável mundo novo, respec-
tivamente – se destacam a este respeito. As sociedades projeta14 -
das nessas distopias são sociedades tipicamente totalitárias nas 
quais há um intenso uso do controle aversivo na forma mesmo de 
controle coercitivo violento. Existem as formas mais sutis, diga-
mos, de controle, formas ligadas tipicamente à exploração de cer-
ta ideologia com ferramentas eficazes de propaganda estatal, mas 
tais formas mais sutis de controle falham repetidamente em seus 
objetivos, fazendo com que os detentores do poder estatal te-
nham que recorrer ao controle coercitivo e violento para manter a 
ordem, o que inclui mesmo operações de expurgo ou controle de 
população. O resultado de tal ordem social na visão dos autores 
dessas obras é que a individualidade deveria se perder, o que, nem 
sempre ocorre. A este respeito há uma diferença importante do 
Admirável mundo novo com relação ao 1984. No primeiro a indivi-
 Cf. ORWELL, 2000 (originalmente de 1948) e HUXLEY, 2006 (ori14 -
ginalmente de 1932).
12
dualidade ameaçada finalmentetriunfa, enquanto no segundo ela 
é esmagada definitivamente pela ordem social imposta. 
O controle aversivo que há nessas distopias – seja ele na moda-
lidade coercitiva e violenta, seja na modalidade ideológica, que já 
vamos comentar – conduz à massificação, à estandardização, à 
alienação etc., bem ao contrário do que as utopias já citadas entre 
outras produzem no plano individual. Esse tipo de controle pode 
chegar a sofisticações do tipo da Novilíngua (Newspeak) do 1984, a 
uma reforma da própria linguagem verbal e, logo, do pensamento, 
algo levado às últimas consequências, algumas das quais beiram ao 
ridículo, como aquele de reeditar anualmente o dicionário da No-
vilíngua, sempre expurgando os termos indesejáveis, aqueles que 
possam ter semântica subversiva. 
Outro aspecto essencial dessas distopias é, obviamente, a cen-
tralização do poder e a existência de elites dominantes, o que, 
mais uma vez, contrasta com as mencionadas utopias que, mesmo 
também possuindo elites ou lideranças, contam com elites esclare-
cidas, digamos assim, ou com lideranças benevolentes, moralmente 
superiores. Elas são elites guiadas cognitivamente pela ciência e 
moralmente pelos melhores sentimentos, pelo desejo de ver todos 
e cada um em plena realização. Nas distopias que estamos comen-
tando, ao contrário, as elites usam o poder para privilégio próprio, 
é claro, tal como se vê também nos casos reais de sociedades fe-
chadas. 15
A questão crucial aqui, em contraposição àquela visão das uto-
pias e suas lideranças benevolentes, é que, na visão dessas distopi-
as, a própria existência de alguma liderança pode conduzir à cris-
talização de uma classe dirigente e esta última sempre tende a 
 Vale lembrarmos algo bem sabido no caso do 1984 de Orwell, que é o 15
fato de visar a uma crítica radical dos regimes totalitários reais, especi-
almente aquele da União Soviética do período stalinista. Nesse aspecto é 
mais ilustrativa outra obra de Orwell, a saber, a Revolução do bichos; cf. 
ORWELL, 2011. A obra foi publicada pela primeira vez em 1945, portan-
to, antes do próprio 1984. 
13
usurpar o poder de maneira semelhante ao que Rousseau afirma 
em seu Contrato social a respeito dos governos, que sempre tendem 
a usurpar o poder do Estado que, em princípio e em virtude do 
contrato que lhe deu origem, é de todos. Deste modo, podemos 
tomar as mencionadas distopias como ilustrações do fatídico des-
tino que Rousseau preconizou para a sociedade civil, que deixou 
para trás o suposto estado de natureza. E, neste caso, devemos re16 -
conhecer, aquelas reflexões de Skinner acerca das agências de 
contracontrole se mostram bem pertinentes, uma vez que indica-
riam uma possibilidade de controle social democrático sobre o 
Estado e sobre o governo e aqueles que ocupam seus cargos, de 
maneira a impedir – ou pelo menor minimizar – a usurpação do 
poder e, em última instância, a impedir a consolidação de uma 
elite política dominante que venha a escravizar o restante da soci-
edade. 
O isolamento não é uma característica da distopia apresentada 
no 1984, mas está presente no Admirável mundo novo e é compre-
ensível que seja assim, dadas as características distintas das socie-
dades descritas em cada uma dessas obras. É claro que no 1984 há 
o controle coercitivo do território e dos movimentos das pessoas, 
mas no Admirável mundo novo há a delimitação de um espaço pri-
vilegiado – aquele no qual haveria uma suposta utopia – e é parte 
importante da narrativa a saída desse espaço reservado e a explo-
ração do que há fora dele, que é o que revela de maneira mais con-
tundente o caráter distópico daquele mundo. Pois todos os pro-
blemas do mundo real são potencializados e levados ao extremo 
fora do espaço utópico delimitado e defendido do mundo exterior 
 Cf. ROUSSEAU, 2002. Como sabemos, outro eminente contratualista 16
moderno, Hobbes, embora em outros termos, expressa a mesma ideia de 
concentração do poder soberano e com isso a possibilidade de que o 
indivíduo não veja contempladas suas necessidades e preservada sua li-
berdade – para os contratualistas – original. De qualquer maneira, Hob-
bes é menos pessimista que Rousseau a respeito da ação do Estado na 
sociedade. Cf. HOBBES, 1998. 
14
a ele. Esta é uma maneira utilizada pelo autor para mostrar que as 
utopias, onde elas possam ocorrer, o que fazem é abandonar o res-
tante do mundo a sua própria sorte e a um destino cruel. Portan-
to, o próprio projeto utópico é um projeto de selecionar uma es-
pécie de elite ou de população privilegiada e protegida dos vícios 
e injustiças do mundo em geral. Portanto, trata-se de tentar criar 
um pequeno mundo à parte – uma insularidade – que apenas fun-
ciona como fuga do mundo real e de como ele é. 
Quando comparamos o Admirável mundo novo – que também 
tem como um de seus aspectos essenciais o recurso à ciência para 
produzir seu mundo insulado e privilegiado – com as utopias tam-
bém baseadas nesse recurso, como A Nova Atlântida de Bacon, 
vemos também a crítica que é feita às utopias a este respeito. Pois 
na ficção de Huxley a ciência é utilizada até mesmo para criar ar-
tificialmente subpopulações ou classes distintas, verdadeiras cas-
tas, desde a própria produção artificial dos bebês em laboratórios. 
Este processo é manipulado de tal maneira a determinar as pró-
prias características biológicas e mentais dos indivíduos das dife-
rentes castas, Alfas, Betas etc., destinados a diferentes papéis so-
ciais. Isso significa levar o controle às últimas consequências ou, 
melhor dizendo, a tentativa de controle dos indivíduos, pois ape-
sar dos esforços do sistema, tal controle lhe escapa na narrativa, 
subvertendo-se a ordem social estabelecida. 
Essas distopias e outras procuram mostrar que o uso exagerado 
do controle produz resultados opostos aos pretendidos pelo sis-
tema. Ou, talvez melhor dizendo, em tom profético, essas disto-
pias proclamam que toda tentativa de controlar a sociedade em 
larga escala e moldá-la segundo determinados padrões previamen-
te escolhidos por alguns sempre será fadada ao insucesso. Contu-
do, o profetismo envolvido nessas obras distopias não é exclusivi-
dade sua. Ele aparece também em obras eminentemente utópicas 
e extremamente otimistas, como no Looking Backward, de Edward 
Bellamy, que comentaremos adiante e que é, sem dúvida alguma, 
uma das obras de maior sucesso no gênero utópico e de maior 
15
influência para além da literatura. Mas, como veremos, na narra17 -
tiva otimista de Bellamy, os mesmos mecanismos sociais de con-
trole tendem a levar a uma ordem social por todos apreciada, ape-
sar do afastamento dos princípios plenamente democráticos. 
3 Profetismo e otimismo moral
O Looking Backward de Bellamy faz parte daquele grupo de 
obras utópicas para as quais a idade de ouro ou o paraíso terreno não 
estão no passado remoto, nem em alguma terra distante e isolada, 
mas no futuro. A felicidade e realização das pessoas não estão na-
quele suposto estado de natureza anterior à sociedade civil orga-
nizada e ao Estado do qual falam tanto Rousseau como Hobbes, 
embora com ênfases muito distintas, como sabemos. Para o pri-
meiro, o que há de bom na natureza humana se manifestaria na-
quele estado primevo – porque todos os vícios (pelo menos os 
mais graves) provêm da sociedade civil –, para o segundo, ao con-
trário, aquele seria um estado de guerra de todos contra todos, na 
qual a vida humana é miserável em todos os aspectos. Para as 18
obras do tipo daquela de Bellamy, nem uma coisa, nem outra é o 
caso. Pois a sociedade civil e o Estado, por mais que possam re-
presentar uma perda da liberdade original – se ela existia –, repre-
sentam a transição para uma sociedade evoluída, com um modo 
de produção adequado para o bem da maioria e a realização de 
todos. Neste sentido é que há certo profetismo no Looking 
Backward, pois a obra não apenas projeta um futuro melhor, mas 
coloca em marcha ações para sua realização. 
 Cf.BELLAMY, 2003. A obra foi raduzida no Brasil com o título “Da17 -
qui a cem anos. Revendo o futuro”. A primeira edição do original é de 
1888.
 Cf. os já citados ROUSSEAU, 2002 e HOBBES, 1998. 18
16
Neste aspecto a obra de Bellamy tem sido comparada com o 
marxismo e com ela contrastada na forma de chegar à sociedade 
ideal, não pela ditadura do proletariado, mas pela educação moral 
e o aperfeiçoamento tanto do modo de produção, de maneira pla-
nejada e semelhante ao que há nos modelos apresentados pela 
tecnologia social, quanto das instituições voltadas para o aperfei-
çoamento moral. Quanto a este aspecto que o marxismo consi19 -
dera superestrutural, ele deve ser planejado e cuidado da mesma 
forma que a infraestrutura econômica, incluindo não apenas o 
desenvolvimento das artes e da literatura, mas sobretudo da reli-
gião. Isso pode explicar em parte a boa recepção que a obra de 
Bellamy teve mesmo entre o proletariado dos Estados Unidos, 
tanto na Nova Inglaterra como pelos estados do Meio Oeste e até 
mesmo na Costa Oeste. Pelo país afora proliferaram clubes bella-
mistas e o próprio Bellamy participou de dois deles. Explica tam-
bém por que a obra e seu autor estão ligados ao movimento naci-
onalista americano que floresceu nas últimas décadas do século 
XIX. 
A ficção do Looking Backward é vista então não apenas como 
profecia, como visão antecipada da evolução da sociedade rumo a 
um futuro dourado, mas como veículo de disseminação de um 
programa de reforma social. Esse reformismo, contudo, ia na 
mesma direção da concentração dos recursos produtivos dos 
grandes conglomerados econômicos que eram vistos pelo próprio 
autor como o que está na raiz das desigualdades sociais e da po-
breza da maior parte da população. A solução apontada por Bel-
lamy para isso é o que mais o aproxima do marxismo do qual ele 
se distingue no plano político e da ação política e ideológica. Pois 
o que ele profetiza e propõe é a estatização dos meios de produ-
ção e seu planejamento de cima para baixo, chegando ao extremo 
 Há, obviamente, muitos estudos sobre a obra e seus princípios, mas é 19
sucinta e bem informativa a apresentação feita por Alex MacDonald 
(2003) ao volume BELLAMY, 2003. 
17
de conceber a estrutura hierárquica dos meios de produção ao 
modelo das forças armadas. Trata-se de um verdadeiro exército in-
dustrial (expressão do próprio autor) ligado a um Estado extre-
mamente burocrático (na avaliação dos críticos). 
Um aspecto que salta ao olhos dos leitores mais críticos – e 
que foi enfatizado pelos comentadores que criticaram tanto o li-
vro como seu programa – é que a organização política de tal soci-
edade contém a mesma excepcionalidade política de não permitir 
que os soldados de tal exército industrial votem (para presidente, 
na ficção do livro). Esse seria um dos preços políticos a pagar para 
haver um sistema equilibrado. Mas o que os críticos aí veem é a 
possibilidade de abuso de poder por parte daqueles que detêm os 
plenos direitos políticos que, na verdade, a maioria da população 
não tem. Na sociedade do Looking Backward, apenas os dirigentes 
mais altos e os profissionais liberais são eleitores. Portanto, vol-
tando àquelas ideias de Popper que já comentamos de início, o 
que temos aqui é, afinal, outra sociedade fechada. Neste aspecto o 
Looking Backward se assemelha tanto à República, de Platão, quan-
to ao Leviatan, de Hobbes. 
Com isso o que a crítica mais severa conclui é que a era de 
ouro não estará no futuro profetizado por esta utopia, mas que o 
que lá vamos encontrar é mais uma vez a usurpação do poder por 
uma classe, uma casta ou uma elite. Assim, curiosamente, dado o 
caminho alternativo ao marxismo – e, logo, ao marxismo-leninis-
mo e ao stalinismo – que a obra de Bellamy propugna, a contra-
profecia que se lhe pode apresentar é que o resultado prático – se 
houver – será o mesmo, aquele de uma sociedade de burocracia 
ineficiente e de controle coercitivo violento do Estado sobre o 
indivíduo, tal como descreve a crítica de Orwell no 1984. Em 
suma, o crítico contraprofetiza que se trata de mais uma ilusão 
reformista, neste caso, mais uma vez, levando a uma sociedade 
fechada que só vai beneficiar a uma parcela privilegiada da popu-
lação. Por isso alguns comentadores veem certo distopismo na 
obra de Bellamy, apesar de seu utopismo oficial e aparente. 
18
Todavia, se o autor não era muito ingênuo – e nada em sua bi-
ografia leva a pensarmos que ele fosse tão ingênuo a ponto de não 
antever os perigos de seu projetado sistema –, o que se pode con-
cluir é que ele acreditava sinceramente na capacidade da educação 
e dos outros meios de lidar com a superestrutura ideológica de 
forma a conduzir a sociedade paulatinamente ao aperfeiçoamento 
moral com o qual os perigos políticos mais sérios seriam neutrali-
zados. Em última instância, abrir mão de alguma liberdade políti-
ca valeria a pena para ter uma vida muito melhor, como enfatizam 
Platão e Hobbes. E com isso até mesmo Rousseau concorda, em-
bora se preocupe com a criação de mecanismos constitucionais 
que garantam a liberdade individual. E este é o mesmo expediente 
defendido por Skinner com sua ideia de agências de contracon-
trole. Mas os expedientes de Rousseau e Skinner são, ao contrário 
dos demais citados, aqueles voltados para a sociedade aberta. E 
isso faz toda a diferença, afinal!
4 Modelos de sociedade
Nas seções precedentes, procuramos destacar dois dos aspec-
tos essenciais das utopias, a saber, o isolamento e o controle, e 
indicamos algumas das principais críticas de caráter político que 
as distopias fazem às sociedades imaginárias da literatura utópica. 
Os riscos principais das utopias são a usurpação do poder e a per-
da de liberdade dos indivíduos, mesmo quando o controle não é 
coercitivo ou muito aversivo. É claro que há diversas outras ra-
zões para que os projetos utópicos sejam criticados, razões ligadas 
a diferentes concepções da constituição mental e moral dos pró-
prios seres humanos ou das possibilidades de ação coletiva, daqui-
lo que realmente estaria ao alcance da sociedade real.
Da maneira mais geral possível, uma crítica radical seria aquela 
segundo a qual a própria ideia de elaborar modelos da sociedade 
ideal é tola, ingênua, algo que brota de nosso desejo de bem-estar 
19
e de nosso inconformismo com as situações reais nas quais vive-
mos. Não há nada de errado em desejar um mundo melhor, mas a 
crítica mais severa ao utopismo entende que é inútil expressar tal 
desejo na forma de modelos ideais da sociedade, sendo que os ins-
trumentos morais e políticos que estão ao alcance da sociedade 
real não podem conduzir a uma sociedade perfeita, uma vez que 
as variáveis são em número grande demais para que possamos 
abarcá-las todas em uma estrutura teórica ou numa ilustração 
dramatizada, que é o que são exatamente as peças de ficção utó-
pica. 
Como dissemos, o que elas apresentam são modelos de sociedade 
e os modelos em geral, seja os científicos e mais bem estrutura-
dos, seja os elaborados em outras atividades cognitivas, são sem-
pre situações específicas que instanciam determinados princípios 
e leis. Eles exemplificam também possibilidades de ação, de in20 -
terferência na ordem das coisas, tanto na ordem natural como na 
ordem social do mundo. Mas os modelos são sempre limitados, 
selecionando as variáveis que nos parecem mais importantes ou 
mais manipuláveis, restringindo-se a situações mais específicas. 
Eles são sempre estruturas parciais. Se se realizam no mundo, em 
determinadas condições, eles se concretizam em situações relati-
vamente insuladas, portanto. A compreensão disso está implícita 
naquelas utopias que insistem na ideia de isolamento, que já co-
mentamos. A compreensão de que podemos manipular apenas 
parte das variáveis envolvidas (tanto mentais dos indivíduos, 
quanto ambientais) leva certas utopias a insistirem na ideiade 
controle, de formas eficientes de controle para determinados fins. 
Deste ponto de vista, as utopias baseadas no insulamento, como 
as de More, Bacon e Huxley, por exemplo, são então menos criti-
cáveis que aquelas que visam à sociedade em geral, como aquela 
de Bellamy. Neste caso, tais utopias se aproximam muito das teo-
rias políticas ou, dito de outro modo, elas parecem ser claramente 
 Cf. a este respeito DUTRA, 2020. 20
20
apenas a dramatização de uma visão política geral, daí a seme-
lhança já apontada entre a utopia de Bellamy e o marxismo, daí 
também seu caráter profético ou programático muito mais defini-
do do que aquilo que pode haver nas utopias de insulamento.
Além do marxismo, modelos como aquele de Bellamy se apro-
ximam também de outras grandes teorias políticas e não apenas 
das grandes teorias econômicas. Eles se aproximam de teorias 
como as já mencionadas de Hobbes e Rousseau, entre outras. A 
diferença estaria apenas na forma de exposição dos princípios 
(quer os econômicos, quer os políticos). Mas as teorias eminen-
temente políticas, digamos assim, possuem instrumental concei-
tual mais potente para lidar com o problema ou, em outros ter-
mos, elas parecem ir mais fundo na identificação do que há de 
essencial na vida em sociedade. Elas possuem, portanto, um cará-
ter menos ideológico que projetos como aquele de Bellamy. Elas 
se prestam menos a orientar programas de reforma ou revolução 
social, exceção feita ao pensamento de Marx, razão pela qual são 
criticáveis as versões aplicativas ou programáticas mais específicas 
que ele recebeu, como no marxismo-leninismo e no stalinismo.
Isso nos leva a comentar outro aspecto já discutido antes, a 
saber, a questão do controle. As grandes teorias políticas, tal 
como aquelas dos grandes contratualistas já mencionados, mesmo 
que acarretem modelos de sociedade, conduzem a modelos de 
mais alto nível teórico e, logo, de menor possibilidade de aplica-
ção. Eles são modelos destinados mais a compreender o que há de 
essencial na sociedade e menos a ajudar a reformá-la, embora pos-
sam reconhecer a necessidade de fazer isso. Por exemplo, ao se 
dedicar ao trabalho de fazer recomendações para a constituição 
da Polônia, Rousseau se dedicou a isso, o que pode ser encarado 
como uma exceção louvável. Por outro lado, se lembrarmos a pos-
tura de Bacon de que as teorias devem poder nos conduzir a inter-
ferir na ordem do mundo, seria de esperar que as grandes teorias 
políticas, de fato, se prestassem pelo menos em parte a isso. E 
nesse caso, podemos encarar as utopias como uma espécie de ata-
21
lho que seus autores tomam na falta de caminhos mais bem pavi-
mentados pelas grandes teorias políticas e econômicas. 
Portanto, as utopias são estruturas parciais ideais de sociedade. 
Sendo modelos deste tipo, não podemos cobrar delas mais do que 
podem oferecer, isto é, soluções que sejam mais que pontuais ou 
localizadas. Por isso utopias como aquelas de More, Bacon e Hux-
ley seriam menos criticáveis que aquela de Bellamy. E a meio ca-
minho estaria aquela de Skinner. As soluções parciais, na medida 
em que for possível delimitar um território e organizar a vida de 
uma comunidade específica, parecem mais viáveis. Tais utopias 
parecem mais em posição de se tornarem realidade. Elas seriam 
mais realistas ou razoáveis que aquelas de escopo maior. Sendo viá-
veis, elas seriam criticáveis talvez apenas por não poderem se es-
tender para o restante do mundo. É claro que isso não é um pro-
blema menor. Mas talvez seja menor nelas o risco de descamba-
rem para sociedades (muito) fechadas. Elas são fechadas no senti-
do do isolamento, mas no sentido em que Popper emprega o ter-
mo com relação aos regimes políticos, elas são mais tolerantes e 
menos propensas às formas de controle coercitivo ou aversivo. 
De qualquer maneira, nossa crítica às utopias tem a ver menos 
com esses aspectos pontuais de um ou outro desses tipos de mo-
delos de sociedade e mais com as possibilidades reais de ação. 
5 Política e moral no utopismo kantiano
Mencionamos antes o otimismo moral de utopias como aquela 
de Bellamy, otimismo esse que não é exclusividade deste modelo 
de sociedade, mas que também está presente naquelas utopias 
insulares, como as de More, Bacon e Huxley, e mesmo naquela de 
Skinner. É claro que uma comunidade na qual as pessoas têm mais 
autocontrole é uma sociedade que, em princípio, deve funcionar 
melhor, uma vez que o autocontrole de cada um pode mitigar 
conflitos; mas pode também apenas adiar suas consequências. O 
22
autocontrole é de natureza também moral, é claro. Assim, se as 
pessoas possuírem princípios morais superiores, podemos talvez 
esperar que elas criem entre si um ambiente social menos disfun-
cional, menos sujeito a conflitos mais graves ou a consequências 
mais graves dos possíveis conflitos. 
Não é assim, contudo, que as grandes teorias políticas veem o 
funcionamento da sociedade. Deixados a si mesmos e na depen-
dência de suas capacidades pessoais, inclusive morais, os indiví-
duos não vão ser conduzidos a uma sociedades harmoniosas. Em-
bora haja, é claro, diversas visões a este respeito, apenas ilustrati-
vamente e em oposição ao otimismo moral das utopias, conside-
remos os já mencionados contratualistas, especialmente Hobbes e 
sua ideia de que, antes de entrarem na ordem imposta pelo Esta-
do, os indivíduos vivem naquela situação (pelo menos potencial) 
de guerra de todos contra todos, pois os interesses individuais não 
vão ceder ao interesse coletivo. Contrasta com essa visão aquela 
de Kant, que também preserva certo otimismo moral, tal como 
ele se expressa no texto Ideia para uma história universal com um 
objetivo cosmopolita (de 1784) e, depois, no Em direção à paz perpé-
tua (de 1795), textos nos quais há aquela ideia de um ardil da na21 -
tureza por meio do qual, ao perseguirem seus interesses individu-
ais, as pessoas terminam por contemplar o interesse coletivo. Va-
mos comentar adiante as ideias de Kant nessas duas obras, espe-
cialmente a relação sempre problemática entre moral e política, 
para a qual ele apresenta também uma solução. 
No caso de Hobbes e de outros teóricos políticos, como Rous-
seau também já mencionado, o Estado emerge como um grande 
mecanismo de manutenção da ordem, como a agência de controle 
por excelência. O autocontrole moral fica restrito à esfera pessoal 
e dele não depende a esfera pública. O Estado impõe aquela or-
dem que não pode existir se as relações entre os indivíduos de-
 Cf. KANT, 2007, p. 108–120; KANT, 1996, p. 317–351.21
23
penderem apenas de sua conformação moral, por melhor que pos-
sa ser. 
As agências de controle são dispositivos sociais – quer sejam 
elas estatais, quer não – para manter a ordem. É verdade que a 
moralidade é também uma agência de controle social. O ponto 
no qual as teorias políticas insistem, contudo, é que ela não é sufi-
ciente para que haja uma sociedade plenamente funcional. Mas as 
agências de controle, entre as quais está o governo em sua totali-
dade, instituição que, como nos lembra Rousseau, tende a usurpar 
o poder do Estado, devem ser também controladas, por sua vez, é 
claro. As já mencionadas agências de contracontrole existem para 
isso. Entre elas estão os mais diversos tipos de controladorias. 
Mas as controladorias são agências internas de contracontrole. 
Elas existem no interior das próprias instituições que devem con-
trolar. Sem agências externas de contracontrole, sua ação também 
pode ficar sob suspeição. Portanto, são as agências independentes de 
contracontrole – que é a ideia original de Skinner – que podem 
fazer alguma diferença para manter a sociedade funcional de ma-
neira que o abuso de poder seja minimizado, senão mesmo evita-
do.
É verdade que a sociedade precisa de ordem e controle – ou 
pelo menos assim pensa a maioria tanto de teóricos, quanto de 
pessoas comuns. Mas a questão que talvez as utopias e os progra-mas de reforma ou de revolução social não resolvem bem é aquela 
do tipo de controle eficiente, do controle que possa otimizar o 
bem comum e minimizar conflitos e eventuais consequências 
aversivas da convivência dos indivíduos. Vale lembrarmos aqui, 
então, aquela citação de Kant que abriu este texto. Logo, a socie-
dade ideal não é a sociedade das utopias, mas a sociedade aberta 
que permite haver as mais diversas formas de controle e contra-
controle independente. Isso pode incluir a moralidade como uma 
das agências de autocontrole, mas deve incluir muito mais. Na 
visão de Kant, que já vamos comentar, inclui também a ação do 
político moral. 
24
Aqui chegamos ao tema da ação coletiva e de sua relação com a 
ação individual, que é um problema colocado desde sempre para 
as teorias políticas e que Kant procura resolver em seus citados 
textos por meio de sua hipótese de um ardil da natureza. Segundo 
o filósofo em sua visão de uma inexorável marcha da humanidade 
conduzida pela própria natureza, por meio de conflitos e guerras, 
pois tanto os indivíduos como as nações procuram seu próprio 
bem exclusivamente, a sociedade acabará chegando a um estado 
ideal, racional, alcançando aquela racionalidade que Kant diz que 
se desenvolve plenamente apenas na espécie e não no indivíduo, 
isto é, o estado de paz perpétua. Há muito de utopismo nesses 
mencionados textos de Kant, obviamente. Além da teoria política 
e de como a política pode se tornar compatível com a moral, há o 
projeto de uma ordem cosmopolita, de uma liga das nações, asso-
ciação de Estados que, por sua vez, não deve ser um estado, para 
evitar o totalitarismo, para que no interior das próprias nações o 
ideal cosmopolita possa ser preservado e, com ele, a liberdade 
sem a qual não há moralidade que possa fazer diferença na ordem 
social, ficando apenas como realidade transcendental. 
No plano especificamente político, Kant insiste no republica-
nismo como princípio da separação dos três poderes e no regime 
democrático representativo, segundo ele aquele regime que pode 
estar em conformidade com o conceito de direito, aquilo que 
pode evitar o despotismo. Portanto, as questões políticas devem 
ser resolvidas em sua esfera própria, independente da moralidade, 
por mais que desejemos um ambiente político ético, com o que 
Kant concorda, mas não como a base da política. Ele afirma que 
não devemos esperar uma boa constituição do Estado da morali-
dade; mas, ao contrário, que a boa educação moral de um povo 
provenha de uma boa constituição do Estado. É desta maneira 
que a natureza atua sobre a sociedade, fazendo com que o direito 
triunfe mais cedo ou mais tarde. É neste contexto que o político 22
 Cf. KANT, 1996, p. 335s, e p. 340 para o próximo ponto. 22
25
moral vai aparecer, isto é, aquele que interpreta os princípios da 
prudência política em conformidade com a moral. E, de qualquer 
maneira, há um otimismo moral e político em Kant, pois, segundo 
ele, uma vez que uma nação possui políticos morais, há mais efici-
ência política. Ele diz:
A verdadeira política não pode, portanto, avançar sem já ter honrado 
a moral, e embora a própria política seja uma arte difícil, sua união 
com a moral não é questão de arte de forma alguma; pois, quando as 
duas entram em conflito uma com a outra, a moral corta o nó que a 
política não é capaz de desatar.23
O tom eminentemente utópico do texto de Kant se mostra 
claramente numa passagem que resume o que se pode esperar 
quando as nações se organizam internamente da forma adequada 
e quando elas convivem umas com as outras na forma daquela fe-
deração de nações livres, unindo, portanto, o melhor da ação cole-
tiva com o melhor da ação individual. Kant diz:
É desta maneira que a natureza garante a paz perpétua através do 
próprio mecanismo das inclinações humanas, com a certeza de que 
não é possível predizer o futuro (teoricamente), mas que isso é sufici-
ente para os propósitos práticos e impõe o dever de trabalhar para 
este fim (que não é meramente quimérico).24
Embora estejamos de acordo com a ideia de Kant de que não 
devemos esperar que a boa ordem política provenha de uma mo-
ralidade superior, mas, ao contrário, que é mais provável que a 
moralidade superior provenha de uma boa ordem política e 
econômica, é claro que não endossamos sua tese de que é a natu-
reza que nos conduz nesse processo triunfante do bem. Mesmo 
porque, como algumas das distopias e das outras teorias políticas 
(menos otimistas) enfatizam, nada nos garante que o bem esteja 
 KANT, 1996, p. 347. 23
 KANT, 1996, p. 337. 24
26
triunfando ou em posição de triunfar no futuro. Mesmo assim, a 
ideia kantiana de que os indivíduos não têm como não perseguir 
seus interesses pessoais em primeiro lugar pelo menos, mas que 
isso não necessariamente vai contra o bem comum, ainda pode ter 
apelo, desde que tomada sob outra luz. E a última passagem que 
desejamos citar de Kant aqui dá uma indicação interessante para 
o que vamos comentar na próxima seção. Ele diz:
O problema de estabelecer um Estado, por mais que pareça difícil, é 
solucionável mesmo para uma nação de demônios (se eles tiverem pelo 
menos entendimento) e se resolveria da seguinte maneira: “Dada uma 
multidão de seres racionais, cada um dos quais precisa de leis univer-
sais para sua preservação, mas cada um dos quais é inclinado de for-
ma encoberta a escapar delas, a maneira de organizar essa multidão e 
estabelecer sua constituição, embora em suas disposições privadas os 
indivíduos se oponham uns aos outros, é que, todavia, eles constran-
gem uns aos outros em sua conduta pública, sendo o resultado o 
mesmo que seria se eles não tivessem disposições ruins”.25
Os que conhecem o texto kantiano sabem que, logo em segui-
da, mais uma vez, ele diz que é a natureza que providencia esse 
processo pelo qual, opondo-se uns aos outros, os indivíduos aca-
bam criando um ambiente favorável ao bem comum. Mas, como 
já dissemos, esta não é a forma como encaramos a questão. De 
toda maneira, o que queremos é chamar a atenção para o fato de 
que Kant está ciente de que há uma diferença entre o comporta-
mento coletivo e o comportamento individual e de que nas ques-
tões políticas é o comportamento coletivo que mais importa. Na 
oposição dos indivíduos uns aos outros emerge uma ordem coleti-
va que acaba por interessar a todos, porque é o que, afinal, os ga-
rante, embora não seja isso o que eles buscariam por iniciativa 
própria. Portanto, Kant reconhece que há uma ordem social in-
dependente dos indivíduos, ou relativamente independente, já 
 KANT, 1996, p. 335. 25
27
que ela resulta do que eles fazem. Se afastarmos a ideia de que isso 
é obra da natureza e ficarmos apenas com o fenômeno social em 
si, teremos uma perspectiva mais promissora. 
6 Do que emerge a sociedade ideal?
Vimos a curiosa observação de Kant de que até mesmo os 
demônios seriam levados a constituir uma sociedade civil regrada 
e a viverem sob o império da lei. Podemos também dizer, ecoando 
sua ideia, que até mesmo uma sociedade de anjos teria a necessi-
dade de leis, de agências de controle e contracontrole etc. Por 
mais que cada um desses anjos fosse um agente perfeitamente 
moral, não teriam eles como impedir as consequências socialmen-
te indesejáveis ou aversivas de sua ação, de suas escolhas e, deste 
modo, também precisariam que suas perspectivas individuais fos-
sem harmonizadas, considerando que esses anjos teriam de ser, 
como nós, seres com consciência reflexiva, vontade e uma pers-
pectiva individual legítima, enfim, pessoas reais. Também esses 
possíveis anjos, assim como nós e os demônios, em suas relações, 
dariam ocasião de emergir uma ordem social que ultrapassa cada 
indivíduo.
Não há nada de misterioso nessa ordem social emergente. Ela 
não tem nada a ver com aquela natureza à qual Kant atribuía os 
efeitos benéficos de longo prazo da socialização, nada a ver com a 
antiga ideiade natureza humana, embora devamos reconhecer 
que algumas características nossas acarretem determinados efei-
tos no meio social, como vamos comentar logo adiante. Todavia, 
este filósofo tem razão em outro ponto: a identidade pessoal im-
plica uma sociabilidade associal, que para ele também faz parte de 
nossa natureza, isto é, a propensão para vivermos em sociedade, 
para buscarmos a companhia do outro – e, devemos acrescentar, 
não apenas por causa de nossas outras necessidades, mas pela pura 
necessidade do outro – e, ao mesmo tempo, uma resistência à 
28
perspectiva do outro. Por isso, tanto demônios e anjos, quanto 26
pessoas reais, todos os seres sociais, enfim, precisam se conformar 
a uma ordem superior. A questão na qual podemos acompanhar 
Kant, mesmo afastando sua ideia de ardil da natureza, é que tal 
ordem superior emerge no seio da sociedade pelo simples fato de 
as pessoas estabelecerem relações e, como diz o filósofo, cons-
trangerem a ação umas das outras. É essa ação coletiva em sua 
totalidade que faz emergirem as instituições mais simples e fun-
damentais, como mecanismos espontâneos de regulação social, 
como dispositivos espontâneos para evitar maiores conflitos. 
Embora, em última instância, isso não deixe de fazer parte da 
natureza das espécies sociais, voltando à ideia de Kant, não é preciso 
pensarmos em nenhum ardil, mas apenas no fato empírico de que 
as relações conflituosas entre os indivíduos não tendem a perdu-
rar para sempre e que, mais cedo ou mais tarde, eles serão levados 
ao equilíbrio da ação coletiva concertada. Ora, a perspectiva de 
contratualistas como Hobbes e Rousseau é, afinal, que a pressão 
social conduz os indivíduos a firmarem o acordo que dá origem ao 
Estado. Isso não tem a ver com a natureza da mente humana dire-
tamente, a não ser pelo fato de que somos propensos a regularmos 
nossa ação com base na ação do outro. Tem a ver, portanto, com a 
própria natureza da socialização, se podemos colocar assim. 
Essa natureza da socialização tem muito mais a ver com o que 
os estudiosos do comportamento coletivo chamam de comporta-
mento de massa, ou de manada, ou de multidão. O pioneiro nes-
sas pesquisas foi Gustave Le Bon, que elaborou o conceito de mul-
tidão psicológica ou multidão organizada. Não necessariamente uma 27
multidão psicológica implica que os indivíduos estejam reunidos 
no mesmo espaço, mas implica que eles influenciem o comporta-
mento uns dos outros por meio de fenômenos como a sugestão e 
o contágio, isto é, o fato de que tendemos a imitar os comporta-
 Cf. KANT, 2007, p. 111.26
 Cf. LE BON, 1895. 27
29
mentos uns dos outros em determinadas condições ambientais. 
Isso pode ter relação com a característica evolutivamente selecio-
nada dos primatas (e também de outras espécies) de imitarem o 
comportamento do outro; mas não é isso o que importa, quer a 
teoria esteja correta a este respeito, quer não. O que importa é 
que por meio da imitação, da sugestão (e devemos reconhecer que 
somos seres sugestionáveis) e, assim, do contágio, um grupo de 
pessoas pode ser levado a ações concertadas e, na verdade, distin-
tas daquelas que cada indivíduo isoladamente exibiria. 
Nas multidões psicológicas é frequente que os indivíduos fa-
çam coisas que isoladamente não fariam e que, na verdade, estão 
até em conflito com seus valores e princípios, com sua forma or-
dinária de agir. É como se as pessoas, por assim dizer, perdessem 
sua individualidade, seu juízo pessoal, e passassem a agir como 
autômatos. Mas este é o lado negativo do fenômeno. Há também 
o lado positivo, que tem a ver com o fato de que a ação coletiva de 
uma multidão psicológica pode alcançar resultados positivos para 
a coletividade, algo que cada indivíduo agindo isoladamente não 
conseguiria. Por exemplo, as ações (não apenas as violentas) que 
ocorrem durante uma revolução social são possíveis graças ao 
fenômeno da multidão psicológica e, quando tais revoluções são 
bem sucedidas no sentido de imporem uma nova ordem mais jus-
ta (vamos supor que isso realmente aconteça), esse resultado posi-
tivo se deve à ação coletiva e nunca poderia ser alcançado por 
ações isoladas dos indivíduos, simplesmente porque, como Kant 
nos lembraria, cada indivíduo não teria por que se consagrar a 
uma ação coletiva que diretamente não está voltada para seu pro-
veito individual. 
Todavia, não pensemos apenas no exemplo dramático de uma 
revolução social, mas nos inúmeros exemplos ordinários que há na 
sociedade comum, em sua vida diária, exemplos que exibem o 
mesmo padrão pelo qual, inserido no grupo, o indivíduo não tem 
como evitar comportamentos que não necessariamente o benefi-
ciam direta e pessoalmente, mas que são mais do interesse da co-
30
letividade. Vamos dar um exemplo interessante que também é um 
caso da emergência do comportamento de multidão psicológica 
tal como Le Bon a caracteriza. 
As pessoas que entram no frenesi de compras em uma superli-
quidação de uma loja de departamentos (um tipo de evento com o 
qual já nos acostumamos nos últimos anos na sociedade de con-
sumo) não podem evitar de se comportarem por imitação, não 
podem evitar o contágio e a sugestão nisso envolvidos. O resulta-
do é que muitas vezes elas compram a baixos preços itens dos 
quais não têm real necessidade. Assim, seu comportamento 
econômico pontual nem sempre é racional. Mas, no plano coleti-
vo, esse comportamento é perfeitamente racional – daquele tipo 
de racionalidade que só pode ser coletiva, como diz Kant, como 
vimos –, pois o efeito econômico geral do evento é positivo tanto 
para a média dos consumidores, que adquirem itens dos quais a 
população como um todo tem necessidade e a baixos preços, 
quanto para as empresas envolvidas no processo, que esvaziam 
seus estoques e fazem caixa. 
Por isso podemos dizer que nos contextos sociais sempre 
emergem padrões de conduta que os indivíduos não podem evitar, 
mas que evitariam se pudessem resistir aos efeitos da sociabilida-
de, da imitação, da sugestão e do contágio. E isso funciona tanto 
para o bem, quanto para o mal. A intuição de que os seres huma-
nos funcionam assim em sociedade pode estar na raiz dos projetos 
utópicos de insulamento que mencionamos antes, como tentativa 
de evitar os efeitos nocivos da socialização em larga escala. O 
problema com o qual essas utopias não podem lidar bem é que, na 
verdade, mesmo um pequeno grupo de pessoas pode exibir o 
comportamento de multidão psicológica. Não é preciso que haja 
uma grande manada para que o efeito de manada se apresente.
O comportamento de manada – que, aliás, está sempre associ-
ado à perda da individualidade – é também um padrão de conduta 
selecionado evolutivamente em muitas espécies, inclusive a nossa. 
Pela sugestão e pelo contágio do qual Le Bon fala, o grupo se pro-
31
tege, por exemplo, de um predador pelo simples fato de apenas 
um dos indivíduos o detectar e fugir, levando a manada toda a es-
tourar, como se diz, evitando o perigo iminente. A manada que 
estoura é uma multidão psicológica. O que ela tem em comum 
com diversos outros contextos sociais é o mesmo padrão de agir 
coletivamente no interesse do grupo, sem discernimento pessoal, 
mas de tal maneira que, na média e a médio e longo prazos, o re-
sultado é positivo também para o indivíduo.
É essa emergência do comportamento coletivo e seu padrão 
que pode estar na origem da sociedade ideal. E aqui é preciso que 
elaboremos esse ponto com cuidado para não voltarmos aos enga-
nos que há nos projetos utópicos, muitos deles denunciados pelas 
distopias, como vimos. 
A sociedade ideal não pode ser um lugar, nem propriamente 
um sistema ou regime político específico, embora devamos reco-
nhecer que alguns são mais adequados para uma convivência mais 
harmoniosa e justa dos indivíduos, como os sistemas que possuam 
aqueles aspectos enfatizados pelos autores acima mencionados, 
como o republicanismo, a democraciarepresentativa e mesmo o 
cosmopolitanismo de Kant, a sociedade aberta de Popper e as 
agências de contracontrole de que Skinner fala e que só podem 
proliferar na sociedade aberta e pluralista. Mas a sociedade ideal 
é, na verdade, um padrão de conduta, um padrão que possa no 
nível individual conciliar os interesses do grupo com os interesses 
de seus membros. E por isso é verdade que o discernimento que 
está envolvido nos juízos eminentemente morais é importante, 
embora devamos reconhecer com alguns autores, entre eles Kant 
mais uma vez, que a política não pode depender da moral.
A sociedade ideal emerge da ação coletiva na medida em que 
possa conduzir cada indivíduo a se aperfeiçoar como agente livre. 
Ela não pressupõe a democracia, a liberdade e a moralidade, mas 
emerge juntamente com elas. A sociedade ideal é aquela em que 
os indivíduos são capazes de reconhecer seus limites e se confor-
mar às leis não em virtude de alguma agência de controle coerciti-
32
vo, mas de agir como se pudessem escolher, mesmo que não esco-
lham. Não é preciso que cada um delibere e escolha o tempo 
todo, mas é preciso que, se esse for o caso, ele possa fazê-lo. Logo, 
a sociedade ideal é aquela que em cada indivíduo preserva o 
egoísmo e o altruísmo em uma combinação ótima, de tal maneira 
que nem a sociedade escravize o indivíduo, nem este tome aquela 
apenas como instrumento de sua própria satisfação. 
É claro que há certo utopismo no que acabamos de dizer. E 
como é que as pessoas devem agir para que isso não seja apenas 
mais uma fantasia filosófica? As utopias contêm receitas de bem 
viver ou, mais exatamente, aproximando-se daqueles já mencio-
nados projetos da tecnologia social, projetos de uma sociedade 
funcional. Mas, de fato, é como se o lema das utopias fosse: “Sal-
vemos alguns, já que não podemos salvar a todos”. E em contra-
partida, as distopias gritam: “Se não salvarmos a todos, não salva-
remos ninguém”. Isso não quer dizer que os projetos reais de re-
forma social pontual, mais ou menos abrangentes, como susten-
tam os defensores da tecnologia social, não possam ter bons efei-
tos sociais. Mas Kant nos diria mais uma vez: eles devem ser tam-
bém cosmopolitas. Eles não podem perder a perspectiva do todo 
da sociedade humana. Sociedades funcionais insuladas só são legí-
timas se forem projetos piloto voltados para um objetivo mais 
amplo e não fins em si mesmas. 
Nas utopias, nas filosofias políticas e morais e até mesmo nas 
distopias há boas ideias, algumas das quais já destacamos. E elas 
até podem se consolidar em projetos piloto de sociedades funcio-
nais. Mas essas últimas não são a realização da sociedade ideal. 
Pois ela é a sociedade que não pode deixar ninguém de fora. Não 
que a sociedade ideal vá ser uma sociedade sem desigualdades e 
sem crime. Seria muito ingênuo pensarmos isso, pois, como dis-
semos, se existissem, até os anjos brigariam e precisariam se ren-
der a um poder maior para haver paz entre eles. Mas, de fato, a 
sociedade ideal não pode conter pobreza e não pode permitir que 
iniciativas de ódio prosperem. Ela deve aceitar as diferenças, mas 
33
deve impedir que elas se cristalizem em injustiça, exploração e 
violência planejada. A sociedade ideal vai conter fatalmente algu-
ma violência, pois isso é inevitável aos animais. E, mais uma vez, 
os anjos só não serão também violentos se não forem animais. 
Mas a sociedade ideal é aquela em que seus membros – animais 
que são –, todavia, alcançam autocontrole em larga escala. Eles 
podem não evitar as explosões típicas da violência animal, mas 
podem impedir pela razão e pela moralidade que essa violência vá 
longe demais, que ela leve a programas orientados pelo ódio, pela 
intolerância e pela exclusão de uns em benefício de outros. 
Portanto, a sociedade ideal é um padrão de conduta que pode 
emergir dadas diversas condições ambientais e mentais dos indi-
víduos. Talvez o erro fundamental das utopias seja aquele de que-
rer começar tudo do zero, como se isso fosse possível em qualquer 
setor da vida humana e, na verdade, da própria natureza. Pois cada 
um de nós carrega dentro si a sociedade toda. A sociedade ideal só 
pode ser então um processo pelo qual o que foi alcançado de hu-
manista se consolida e produz novas realidades que vão ao encon-
tro ao mesmo tempo dos interesses individuais e coletivos. Embo-
ra não possam ser então princípios absolutos, coisas como a de-
mocracia, o cosmopolitanismo e as agências de contracontrole 
devem ser encaradas como aquisições que nos levam em direção à 
sociedade ideal, mas que ela é real apenas quando também faz 
parte da sociedade internalizada por cada um de seus membros. E 
por isso não há como não pensarmos também que a ética da vir-
tude, e não apenas a ética do dever, deva ser um desiderato social 
e pessoal de todos. 
7 Conclusão: cosmopolitanismo versus insulamento
Nas seções precedentes comentamos que os modelos de socie-
dade ideal apresentados pelas utopias se baseiam na maior parte 
das vezes naquele tipo de isolamento que denominamos insula-
34
mento, que consiste basicamente em delimitar ou um lugar, ou en-
tão certas atividades, ou ambas as coisas de maneira a deixar de 
fora do espaço utópico aquelas variáveis que, na sociedade em 
geral, são resistentes ao controle. Destacamos também os tipos de 
controle, entre eles aquelas formas que, nas distopias, degeneram 
para formas coercitivas, autoritárias e violentas. Comentamos que 
há um parentesco entre as utopias e a ideia de planejamento que 
orienta os projetos de tecnologia social, ainda que devamos reco-
nhecer que tais projetos podem ter efeitos benéficos localizados. 
Enfatizamos que a solução dos problemas políticos e econômicos 
não pode ficar na dependência do aperfeiçoamento moral que 
certas utopias pretendem promover, mas que, ao contrário, são as 
sociedades abertas, pluralistas e com certo equilíbrio entre agên-
cias de controle e contracontrole que podem criar o ambiente 
social no qual a moralidade superior pode florescer. E, por fim, 
procuramos indicar que a sociedade ideal não é um lugar, nem a 
forma de organizar a vida deste lugar, mas um padrão de ação que 
resulta das relações dos indivíduos à medida que determinadas 
instituições mais básicas emergem.
O fato de enfatizarmos que a sociedade ideal é um padrão de 
ação com as características positivas antes enumeradas implica 
que o verdadeiro utopismo – no sentido de idealizar uma forma 
equilibrada de convivência dos seres humanos – deve ser uma 
forma de humanismo. Isso implica também que não devemos 
pensar a sociedade ideal sem diferenças, como já enfatizamos, 
nem como uma sociedade onde o crime não vá ter lugar. Não é 
possível chegar a esse nível de controle nem sequer por meio de 
um alto grau de autocontrole da parte das pessoas. Portanto, a 
sociedade ideal é aquela em que os problemas de todos os tipos 
que fatalmente vão surgir entre os indivíduos, pois isso é inevitá-
vel quando cada um é uma individualidade com perspectiva e in-
teresses próprios, serão resolvidos por meio de formas as menos 
violentas ou menos agressivas que forem possíveis. Nossa pers-
35
pectiva deve ser então cosmopolita, como Kant insiste em seus 
textos já comentados.
O cosmopolitanismo de Kant está fundamentado no que ele 
denomina hospitalidade, que não é, diz o filósofo, uma cortesia, 
mas um direito. A hospitalidade deriva do direito que todos têm 28
à toda a superfície do planeta e consiste na acolhida do estrangei-
ro não para que ele tome o lugar de quem já estava em alguma 
parte, mas para que possa ter com os habitantes de um lugar rela-
ções pacíficas e produtivas, como o comércio. A hospitalidade 
como condição do cosmopolitanismo é, portanto, a não hostilida-
de de ambas as partes, de quem visita e de quem recebe o visitan-
te. E é claro que isso só é possível se o estrangeiro não for encara-
do como ameaça.O isolamento das sociedades de insularidade, como aquelas das 
utopias, via de regra, está fundamentado no princípio oposto de 
que o outro é ameaça ao modo de vida funcional que determinado 
grupo possa ter alcançado. O isolamento pode ser também, é cla-
ro, em sua forma mais primitiva, a institucionalização da proteção 
do grupo contra possíveis ameaças externas, algo que, mais uma 
vez, devemos reconhecer, provém de ter a sociedade humana 
emergido do reino animal e da luta das espécies pela sobrevivên-
cia. Mas a emergência das sofisticações da civilização, principal-
mente da moralidade e da ampliação da empatia, deve também 
conduzir as parcelas da sociedade que disso tomam consciência a 
produzir o efeito descendente de promover a hospitalidade, na 
medida do possível, não apenas entre os seres humanos, mas com 
o restante da natureza, que é o ideal ecológico no que ele tem de 
mais central, que envolve necessariamente também a defesa e a 
proteção das outra espécies animais.
No que diz respeito aos grupos humanos, isso não significa se 
colocar na posição de quem vai levar ao outro a civilização, pois 
quem adota essa postura ainda não compreendeu bem o que é a 
 Cf. KANT, 1996, p. 328s. 28
36
hospitalidade, que consiste em ver o outro como igual, apesar das 
diferenças aparentes. A hospitalidade e o cosmopolitanismo são, 
pois, exatamente o contrário do colonialismo e do imperialismo. 
Por isso a sociedade ideal não pode estar naquela situação em que 
um grupo humano alcançou uma forma de vida funcional e por 
isso imagina que seu sistema seja adequado para todos os outros 
grupos. O cosmopolitanismo é também, então, a tolerância com 
as diferenças culturais. É nisso apenas que pode estar a sociedade 
ideal por mais que tal ordem de coisas na sociedade humana possa 
nos parecer distante ou até mesmo inalcançável. Porque não é 
real, o ideal não deixa de ter valor. 
Referências bibliográficas
BACON, Francis. The New Atlantis. Auckland, N. Z.: The Floating 
Press, 2009.
BELLAMY, Edward. Looking Backward. 2000-1887. Toronto: Bro-
adview Press, 2003.
CAMPANELLA, Tommaso. The City of the Sun. Auckland, N. Z.: 
The Floating Press, 2008.
CUNHA, Ivan F. Utopias and Dystopias as Models of Social Te-
chnology. Principia, vol. 19, n. 3, p. 363–377, 2015. 
CUNHA, Ivan F. Construction Dystopian Experience: A Neu-
rath-Cartwrightian Approach to the Philosophy of Social Techno-
logy. Studies in History and Philosophy of Science, vol. 72, p. 41–48, 
2018. 
DAVIDSON, Donald. Essays on Actions and Events. Oxford: Cla-
rendon Press, 2002. 
37
DUTRA, Luiz H. de A. Pragmática de modelos. Natureza, estrutura 
e uso dos modelos científicos. 2a. ed. revista. Florianópolis: Edi-
ção do autor, 2020. 
HOBBES, Thomas. Leviathan. Oxford: Oxford University Press, 
1998. 
HUXLEY, Aldous. Brave New World. Nova York: Harper, 2006. 
HUXLEY, Aldous. Island. Nova York: Harper, 2009. 
KANT, Immanuel. Practical Philosophy. Cambridge: Cambridge 
University Press, 1996.
KANT, Immanuel. Anthropology, History, and Education. Cambrid-
ge: Cambridge University Press, 2007. 
LACEY, Hugh M. Psicologia experimental e natureza humana. Ensai-
os de filosofia da psicologia. Florianópolis: Núcleo de Epistemo-
logia e Lógica (UFSC), 2001. 
LE BON, Gustave. Psychologie des foules. Paris: Félix Alcan, 1895.
MACDONALD, Alex. Introduction. In BELLAMY, Edward, Lo-
oking Backward. Toronto: Broadview Press, p. 11–38, 2003.
MORE, Thomas. Utopia. Cambridge: Cambridge University 
Press, 2002. 
NEURATH, Otto. Foundations of the Social Sciences. (The Encycl-
pedia of Unified Science, vol. 2, n. 1.) Chicago: The University of 
Chicago Press, 1947.
NEURATH, Otto. Empiricism and Sociology. Dordrecht: Reidel, 
1973. 
ORWELL, George. 1984. Nova York: Penguim, 2000.
38
ORWELL, George. Animal Farm. A Fairy Story. Nova York: Har-
court, 2011. 
PLATÃO. The Republic. Cambridge: Cambridge University Press, 
2000. 
POPPER, Karl R. The Open Society and Its Enemies. Princeton, N. 
J.: Princeton University Press, 2013. 
ROUSSEAU, Jean-Jacques. The Social Contract (and The First and 
Second Discourses). New Haven e Londres: Yale University Press, 
2002. 
SCHWARTZ, Barry; LACEY, Hugh M. Behaviorism, Science, and 
Human Nature. Nova York: Norton, 1982.
SKINNER, Burrhus F. Beyond Freedom and Dignity. Nova York: 
Bantam Books, 1990. 
SKINNER, Burrhus F. Walden Two. Indianápolis: Hackett, 2005.
THOREAU, Henry D. Walden. Or Life in the Woods. Nova York: 
Penguim, 2012. 
39

Outros materiais