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FISIOLOGIA MENSTRUAL Ana Carolina Japur de Sá Rosa e Silva Bruno Ramalho de Carvalho INTRODUÇÃO A fisiologia menstrual é determinada pela sincronia extremamente refinada entre hormônios secretados por diversos órgãos, com ação autócrina e parácrina, e também pela atividade de neurotransmissores que atuam como inibidores ou estimuladores dessa secreção de hormônios. Todos os mecanismos ocorrem em torno do eixo principal composto por hipotálamo, hipófise e ovários – o eixo hipotálamo-hipófise-ovariano (HHO) –, que recebe a interferência de áreas como córtex cerebral, adrenais e tireoide, e é modulado por hormônios secretados pelo hipotálamo (hormônio liberador de corticotropina – ACTH, do inglês, adrenocorticotropic hormone; hormônio liberador de tireotropina – TRH, do inglês, thyrotropin-releasing hormone; e dopamina), pela hipófise (prolactina e tireotropina – TSH, do inglês, thyrotropin-stimulating hormone) e pelo ovário (inibinas A e B, androgênios e hormônio antimülleriano – AMH, do inglês, anti-Müllerian hormone), além dos hormônios que compõem o próprio eixo. Sendo assim, alterações na secreção, no metabolismo ou na excreção desses hormônios ou de seus reguladores determinam o comportamento do ciclo ovulatório e interferem em sua regularidade, bem como no volume e na duração dos fluxos menstruais (Fritz e Speroff, 2011b). Este capítulo aborda a fisiologia do eixo HHO, bem como a resposta ovariana e uterina aos hormônios com ele envolvidos, que culminam com a extrusão de um óvulo maduro e o preparo do endométrio para a implantação embrionária, com o objetivo final de produzir elementos para a manutenção de uma gestação até o termo e o nascimento de uma criança saudável. O EIXO HIPOTÁLAMO-HIPÓFISE-OVARIANO (HHO) O eixo HHO é regulado por alguns hormônios essenciais para que ocorram o recrutamento, o desenvolvimento e a seleção dos folículos ovarianos, que culminam na extrusão de um óvulo maduro e saudável, e na a produção de hormônios esteroides sexuais femininos. A partir de comandos do córtex cerebral, o hipotálamo libera o hormônio secretor de gonadotrofinas (GnRH), do inglês, gonadotrophin releasing hormone, de maneira pulsátil. A pulsatilidade da secreção do GnRH é consequência da sua interação coordenada a outros neurormônios, gonadotropinas hipofisárias e esteroides gonadais, e regida por efeitos de retroalimentação que envolvem neurotransmissores excitatórios (glutamato, neuropeptídeo Y e norepinefrina) e inibitórios (endorfinas e dopamina). Também atuam nessa regulação fatores ambientais, tais como estresse, exercícios físicos e desnutrição, que podem atuar como inibidores. Além disso, o ambiente hormonal mais estrogênico ou progestagênico, dependendo da secreção ovariana, leva a alteração na amplitude e frequência desses pulsos, sendo, portanto, o comando central e periférico (Fritz e Speroff, 2011b) (Figura 3.1). Os hormônios hipotalâmicos atingem a hipófise trazidos pelo sistema porta-hipofisário, uma trama vascular que descende pela haste hipofisária e comunica esses dois compartimentos. A hipófise, então, em resposta à secreção de GnRH, produz duas gonadotrofinas: hormônio folículo-estimulante – FSH (do inglês, follicle-stimulating hormone) e hormônio luteinizante – LH (do inglês, luteinizing hormone). O primeiro, FSH, como o próprio nome diz, tem por função estimular o recrutamento e o crescimento dos folículos ovarianos e a seleção para dominância até que o óvulo esteja maduro para ser fecundado; o segundo, LH, tem como finalidade produzir a luteinização das células somáticas foliculares (teca e granulosa), completar a maturação do óvulo e promover a ovulação (Fritz e Speroff, 2011b). A secreção de gonadotrofinas pela hipófise em resposta aos pulsos de GnRH também sofre retrocontrole pelos esteroides ovarianos. O estradiol ovariano tem basicamente um papel estimulador na síntese e armazenamento das gonadotrofinas, sendo seu papel liberador bastante acanhado. Ao contrário, a progesterona tem papel ativo na liberação das gonadotrofinas pela hipófise previamente sensibilizada pela ação dos estrogênios (Fritz e Speroff, 2011b) (Figura 3.1). Figura 3.1. Eixo hipotálamo-hipófise-ovariano e seus principais reguladores. Finalmente, o ovário, em resposta aos comandos hipotálamo- hipofisários, produz os esteroides sexuais, sendo eles os estrogênios e a progesterona (Figura 3.1). Os esteroides sexuais são produzidos a partir da molécula de colesterol obtida na dieta ou pela molécula endógena, produzida principalmente no fígado. O colesterol circulante é captado no órgão onde a esteroidogênese ocorrerá (gônadas, adrenal, fígado, tecido adiposo, entre outros) e convertido inicialmente em progesterona. A cascata da esteroidogênese envolve inúmeras enzimas, porém, de maneira simplificada, caracteriza-se pela perda de carbonos agregados ao anel ciclopentanoperidrofenantreno, e leva o colesterol à conversão a progesterona (com 21 carbonos), a androgênio (com 19 carbonos) e, por fim, a estrogênio (com 18 carbonos) (Fritz e Speroff, 2011a) (Figura 3.2). Figura 3.2. O anel ciclopentanoperidrofenantreno e os esteroides derivados: progesterona, com 21 carbonos; testosterona, com 19 carbonos (androgênios); e estradiol, com 18 carbonos (estrogênios). A produção de esteroides sexuais pelo ovário envolve as populações de células da granulosa e da teca, por meio do “mecanismo das duas células”, o qual será discutido mais em seguida, neste capítulo. Importa aqui comentar que, para que haja síntese de qualquer esteroide, é necessário que a célula tenha acesso ao colesterol plasmático ou a algum hormônio precursor àquele que será sintetizado. A FORMAÇÃO DOS FOLÍCULOS OVARIANOS O folículo ovariano é composto por um óvulo central e duas outras populações de células somáticas que se dispõem em camadas: a granulosa, interna, e a teca, externa. Durante o período embrionário, as células precursoras das células germinativas migram para a região da crista gonadal, de forma que, por volta da quinta semana de desenvolvimento, o embrião terá o ovário formado (Palma et al., 2012). Essas células precursoras denominadas oogônias, ainda diploides, multiplicam-se a ponto de atingir uma população de 6 a 8 milhões de células, entre 16 e 20 semanas de gestação. Nessa fase, parte daquelas células inicia o processo de meiose para formar as células germinativas femininas e passa a ser denominada óvulos, mas agora com 23 cromossomos (22 somáticos e um sexual – X). Cerca de 75% dessas células entram em processo degenerativo e são perdidos ainda durante a vida intrauterina, de forma que, ao nascimento, a população de óvulos formados é reduzida a cerca de 2 milhões (Baker, 1963; Oktem e Urman, 2010) (Figura 3.3). Uma vez diferenciadas em óvulos, a camada de células estromais que os circundam transformam-se em células da granulosa inativas, com formato fusiforme, e, assim, dão origem aos folículos primordiais (Palma et al., 2012). Já a teca terá sua formação mais adiante, ao longo do desenvolvimento folicular. O processo de formação dos folículos primordiais completa-se até o sexto mês depois do nascimento (Oktem e Urman, 2010), mas a divisão celular do óvulo fica estacionada no diplóteno da primeira meiose e assim permanece durante o período da infância. Apesar do estado de quiescência em que se encontram durante a infância, o processo de atresia dos folículos primordiais continua a ocorrer, de maneira que grande parte da população de células germinativas não chega à fase adulta reprodutiva; quando a puberdade chega, aquela população já está reduzida a pouco mais de 400 mil folículos primordiais, destinados ao abastecimento de todo o período de vida fértil da mulher (Figura 3.3) (Baker, 1963; Oktem e Urman, 2010; Monniaux et al., 2014). Figura 3.3. População de células germinativas femininas desde a vida intrauterina até o fim do período reprodutivo. Adaptada de: Monniaux et al., 2014; Baker, 1963. FOLICULOGÊNESE E ESTEROIDOGÊNESE O ovário, em resposta à ação das gonadotrofinas, realiza basicamente doisprocessos: a esteroidogênese, ou produção de esteroides sexuais, e a foliculogênese, que é o recrutamento e o desenvolvimento dos folículos ovarianos. Esses dois processos, apesar de distintos, estão diretamente relacionados, uma vez que a produção de hormônios depende da proliferação e da atividade das células somáticas foliculares. O processo de foliculogênese tem início com o recrutamento folicular, durante o qual os folículos quiescentes tornam-se ativos e capazes de se desenvolver. O mecanismo de ativação folicular será discutido mais adiante neste capítulo. Uma vez ativado e recrutado o folículo, as células da granulosa que o compõem sofrem transformação morfológica e tornam-se cuboides. Nesse momento, o folículo passa a ser denominado folículo primário. O folículo primário inicia o seu crescimento multiplicando o número de camadas das células da granulosa ao redor do óvulo e é considerado folículo secundário ao completar duas camadas de células da granulosa. Aqui se inicia também a formação das células da teca, que se originam do estroma perifolicular. A partir desse estágio, secundário, o folículo passa a ser mais sensível à ação do FSH, o qual determina a proliferação de células da granulosa e leva o folículo ao estágio terciário, com três camadas. Finalmente, o folículo pré-antral multilamelar, com quatro ou mais camadas, torna- se claramente dependente do FSH – essa dependência do FSH inicia-se a partir do estágio secundário e, antes disso, outras moléculas são responsáveis pela progressão do folículo, tais como: ativinas, BMPs (do inglês, bone morphogenetic proteins) e GDF-9 (do inglês, growth-differentiation factor 9) (Fritz e Speroff, 2011c). Também compõem o folículo as células da teca, que se proliferam e passam a produzir androgênios pelo estímulo do LH. Apenas as células da teca, externas no folículo, são vascularizadas, de maneira que são as únicas com acesso ao colesterol plasmático e, portanto, as únicas com capacidade de produzir os primeiros esteroides da cascata. Sendo assim, cabe à teca produzir progesterona e androgênios, os quais entram nas células da granulosa por difusão e, por ação da enzima aromatase, se convertem em estradiol pela ação do FSH (Fritz e Speroff, 2011c). A granulosa avascular (Fraser e Lunn, 2001) converte apenas os precursores que lhe são oferecidos pela teca. A produção de estradiol pela granulosa é proporcional ao número de células da granulosa que se prolifera no folículo, tendo impacto sistêmico em diferentes órgãos, inclusive o útero. Tal interação entre as células da teca e da granulosa para a produção de esteroides sexuais ovarianos é chamada de “mecanismo das duas células” (Figura 3.4), em que cada célula tem seu papel bem definido, variável de acordo com a fase do ciclo (Fritz e Speroff, 2011c). Figura 3.4. Produção de esteroides sexuais pelo “mecanismo das duas células”. Quando o folículo atinge a condição multilamelar, as células da granulosa começam a secretar o fluido folicular, que se acumula entre as células e cria lacunas que se confluem e formam a cavidade folicular ou antral – define-se o estágio de folículo antral. O fluido tem função de facilitar a troca de substâncias entre as células da granulosa e óvulo no chamado crosstalk folicular e exerce regulação do processo de maturação do óvulo (Fortune et al., 2004; Bianchi et al., 2016). Além dessa função de mediador, o fluido folicular tem papel no processo de ovulação. O acúmulo do fluido no interior do folículo permite crescimento rápido, de maneira que o folículo cresce de 15 a 20 mm em cerca de 10 dias. O crescimento do volume de fluido folicular ocorre em direção à superfície do ovário, onde a resistência do tecido é menor, já que no estágio pré- ovulatório, quando o volume folicular é máximo, apenas uma camada de células do epitélio germinativo ovariano (camada que recobre o ovário) separa o folículo da cavidade peritoneal – é o chamado estigma ovulatório –, o que facilita a extrusão do óvulo para a cavidade pélvica (Fritz e Speroff, 2011c). A cavidade antral que se forma no folículo promove a diferenciação das células da granulosa em dois tipos com funções distintas: as células da granulosa do cumulus (CC), que são aquelas que permanecem aderidas ao óvulo, e as células da granulosa mural (CGM), que compõem a parede do folículo juntamente com a teca. As CCs têm função predominante de suporte ao crescimento e diferenciação do óvulo, além de produção do ácido hialurônico, que permite a expansão do cumulus para o êxito ovulatório; em contrapartida, as CGMs têm função endócrina mais proeminente, sendo a esteroidogênese nessas células francamente superior à das CCs. A proximidade ou não do óvulo tem papel fundamental na determinação das características específicas dessas duas populações celulares (Li, 2000). Também em decorrência da expansão do antro pelo aumento de fluido folicular, as células circunjacentes do estroma são comprimidas e definem a formação da camada mais externa da teca, denominada de teca externa. Sendo assim, na fase antral, o folículo possui, além do óvulo, quatro populações de células distintas: as células da granulosa mural, da granulosa do cumulus, da teca interna e da teca externa. A cada ciclo, cerca de mil folículos são recrutados, ou seja, saem do estado de quiescência para tornarem-se ativos. Esse processo de desenvolvimento inicial do folículo tem duração estimada de cerca de 175 dias, ou seja, o folículo selecionado para ovulação em um ciclo necessita de três a quatro meses de desenvolvimento a partir do recrutamento (Gougeon, 1986). Todos eles iniciam seu desenvolvimento, porém, ao longo do processo de foliculogênese, a grande maioria entra em processo de atresia (Matsuda et al., 2012); essa perda de folículos é mais significativa na passagem de primordial para primário e de primário para secundário, mas ocorre durante todas as fases de desenvolvimento folicular, de maneira que apenas alguns, cerca de 8 a 20, chegam ao estágio antral. São esses os folículos com verdadeiro potencial de completar o seu desenvolvimento e atingir o estágio de maturidade – os chamados folículos antrais iniciais –, que refletem o pool de reserva ovariana, uma vez que são proporcionais ao número de folículos primordiais presentes no ovário (Monniaux et al., 2014). No estágio antral inicial, os folículos têm cerca de 2 a 8 mm de diâmetro. Nessa fase são dependentes de FSH para o seu crescimento e, portanto, possuem receptores para esse hormônio, que são autorregulados positivamente, ou seja, quanto maior a ação do FSH, mais receptores surgem na superfície dessas células, aumentando a sensibilidade do folículo a esse hormônio. Sendo assim, quanto maior o folículo, maior a sensibilidade ao FSH. Por algum motivo ainda não conhecido, um dos folículos do pool se destaca e apresenta crescimento mais acelerado que os demais, o que faz com que ele se torne cada vez mais sensível e responsivo ao FSH do que seus pares em crescimento. Nessa fase, a produção de estradiol é máxima, o que promove feedback negativo sobre a hipófise, reduzindo parcialmente a liberação de FSH na circulação (Fritz e Speroff, 2011a). Para aquele folículo maior e mais sensível, essa pequena queda na liberação de FSH não interferirá em seu desenvolvimento, entretanto, para todos os demais, haverá a desaceleração do crescimento, a qual culminará na atresia do folículo. Estabelece-se, dessa maneira, a dominância folicular, em que apenas um completará seu desenvolvimento e será ovulado, enquanto os demais sofrerão atresia (Matsuda et al., 2012). Ao final da fase folicular, já como folículo pré-ovulatório, as células da granulosa passam a expressar também receptores para o LH, até então presentes apenas na teca. O aumento desses receptores na superfície das células granulosa, associado à redução dos receptores de FSH pelo mecanismo de autorregulação, leva à mudança no padrão de dependência do folículo do FSH para uma fase LH-dependente. A partir desse momento, a secreção de LH pela hipófise determinaráa transformação luteínica dessas células, juntamente com a teca, além de dar início ao preparo do folículo para o processo ovulatório. É também nessa fase que a secreção local de fator de crescimento endotelial vascular (VEGF – do inglês, vascular endothelial growth factor) estimulada pelo LH promove o aumento da vascularização local já na fase pré-ovulatória, mas de maneira mais significativa após a ovulação durante o desenvolvimento do corpo lúteo (Otani et al., 1999). Nesse momento, o folículo libera pequenas quantidades de progesterona (Guerrero et al., 1976), a qual atinge a hipófise previamente sensibilizada pelas altas concentrações de estradiol da fase final do crescimento folicular e promove a liberação das gonadotrofinas armazenadas, mais acentuadamente de LH (Couzinet et al., 1992). Esse pico de LH é fundamental para o término da maturação folicular e o desencadeamento da ovulação, que ocorrerá 36 horas após (Figuras 3.5 e 3.6) (Fritz e Speroff, 2011c). Figura 3.5. Regulação endócrina e parácrina da dinâmica folicular, desde o recrutamento do folículo primordial até a ovulação. Figura 3.6. Dinâmica hormonal do ciclo menstrual. Além de estimular a neovascularização local, o LH também tem papel na produção de substâncias proteolíticas e prostaglandinas. As primeiras serão responsáveis pela digestão da parede folicular, tornando-a mais fina e distensível. A segunda, a prostaglandina, agirá sobre as células de musculatura lisa que circundam o folículo, promovendo a contração delas e a ruptura do estigma ovulatório por conta da pressão sobre a superfície ovariana, liberando o óvulo, o fluido folicular e algumas células do cumulus oocitário na cavidade peritoneal. O complexo ovulado é, então, captado pelas fimbrias da tuba ovariana, onde inicia seu trajeto rumo ao útero. Além disso, o LH reativará a meiose do óvulo interrompida no diplóteno da segunda meiose. No momento da ovulação, o óvulo apresenta o primeiro corpúsculo polar estruído, porém a meiose somente se completará caso a fecundação ocorra (Fritz e Speroff, 2011c). As células da parede folicular que permanecem no ovário após a ovulação, composto por células da teca e por células da granulosa, ambas sensibilizadas para ação do LH, entram em processo de luteinização. A síntese de esteroides é direcionada para a produção de progesterona, a qual terá papel fundamental na transformação endometrial e nos estágios iniciais do desenvolvimento embrionário. O processo de implantação será abordado mais adiante. MECANISMO DE ATIVAÇÃO FOLICULAR E A RESERVA OVARIANA O mecanismo de manutenção do repouso ovariano ainda não está completamente estabelecido. Sabe-se que há participação importante de um hormônio secretado pelos folículos menores, principalmente folículos secundários e antrais iniciais, denominado AMH. Embora esse hormônio tenha sido descrito primariamente em homens com a função de impedir o desenvolvimento dos ductos de Müller durante o período embrionário, sua descoberta em tecido ovariano a partir das 36 semanas de gestação até a menopausa suscitou a ideia da sua participação na reprodução feminina. Vários estudos têm demonstrado que o AMH atuando de maneira parácrina dentro do próprio ovário reduz a sensibilidade dos folículos à ação do FSH, mantendo-os em repouso (Durlinger et al., 2002). O AMH faz parte da superfamília das TGF-β (transforming growth factor beta), juntamente com as inibinas, ativinas, as proteínas morfogenéticas ósseas (bone morphogenetic proteins – BMPs), os fatores de crescimento e diferenciação (growth and differentiation factors – GDFs) e o complexo Kit e Kit-Ligand; todos eles parecem estar envolvidos no processo de ativação de folículos primordiais ou na manutenção de sua quiescência (Durlinger et al., 2002). A comunicação bidirecional entre as células da granulosa e óvulo (crosstalk) é imprescindível para a progressão do desenvolvimento folicular (Eppig, 2001). Essas moléculas de sinalização extracelular citadas acima estão diretamente implicadas nesse diálogo, são expressas e secretadas pelos óvulos e agem na regulação do recrutamento dos folículos primordiais (Knight e Glister, 2006), apesar de também terem papel no desenvolvimento folicular antral (Kim, 2012). Outras vias de sinalização vêm sendo muito estudadas como responsáveis pela manutenção da quiescência folicular, tais como a via da fosfatidilinositol 3-quinase (PI3K). A ativação da PI3K é mantida por sinais extracelulares e parece ser responsável pela sobrevivência dos folículos primordiais (Liu et al., 2006). A comunicação entre os óvulos e as células da granulosa que os envolvem depende de suas sinalizações interativas, e o principal ligante-receptor é o receptor de proteína tirosina quinase (RPTK) ou Kit e seu ligante, Kit-ligante (KL), citados acima como membros da superfamília das TGF-β (Liu et al., 2006). O Kit encontra-se na superfície de todos os óvulos (em repouso e em crescimento) e o KL é também produzido pelas células da granulosa de todos os folículos (Gougeon, 2011). Nos estágios iniciais dos folículos, em que receptores de FSH ainda não são expressos, o crescimento folicular é dependente da sinalização do Kit com o KL (Albertini e Barrett, 2003), a qual ativa a via PI3K presente nos óvulos e conduz à ativação dos folículos em repouso (Gougeon, 2011). A via PI3K tem como inibidor o PTEN (homólogo da fosfatase e da tensina deletado no cromossomo 10), produzido no ovário como regulador de proliferação e sobrevivência celular (Kim, 2012). Esse mecanismo complexo de sinalizadores depende da manutenção da integridade ovariana e da unidade folicular, de maneira que o crosstalk esteja preservado. Habitualmente essa comunicação é feita através das gap junctions, que são canais de comunicação intercelulares (Li e Albertini, 2013). Folículos retirados do ambiente ovariano são rapidamente ativados e entram em processo de atresia (Durlinger et al., 2002; Sun et al., 2015). O ENDOMÉTRIO E A IMPLANTAÇÃO EMBRIONÁRIA O endométrio é composto de múltiplas camadas e pode ser dividido em duas porções distintas: a camada basal, responsável pelo processo de regeneração após a descamação menstrual, e a camada funcional, que se transforma de maneira mais ativa ao longo do ciclo e é descamada mensalmente na ausência de implantação embrionária (Fritz e Speroff, 2011d). As transformações endometriais que ocorrem em resposta a toda a produção hormonal ovariana têm como objetivo final o preparo do útero para a implantação do embrião formado. Nesse sentido, podemos dividir de maneira didática o ciclo menstrual em duas fases bastante distintas em termos de perfil hormonal. A fase de crescimento folicular, caracterizado pelo aumento das camadas de células da granulosa, crescimento do óvulo e produção predominante de estradiol, é denominada de fase folicular e ocorre na primeira metade do ciclo menstrual. Enquanto o período pós- ovulatório, caracterizado pelo desenvolvimento do corpo lúteo e a produção predominante de progesterona, é denominada fase secretora ou lútea e ocorre durante a segunda metade do ciclo menstrual. Um ciclo ovulatório normal dura em média de 24 a 38 dias (Munro, 2017); a duração do corpo lúteo saudável é sempre fixa, de 12 a 14 dias; sendo assim, o que varia entre diferentes indivíduos é a fase folicular, que pode ser maior ou menor dependendo do tempo que folículo leva para se desenvolver e ovular (Fritz e Speroff, 2011c). O início da fase folicular é marcado pela descamação menstrual de um endométrio preparado no ciclo precedente no qual a implantação não ocorreu, portanto o papel inicial do estradiol é o de cicatrizar o endométrio cruento após a descamação. O epitélio endometrial é colunar e glandular, repleto de receptores estrogênicos, e, em resposta ao estradiol produzido pelo folículo, prolifera, evidenciando a pseudoestratificação e proliferação glandular de maneira que essas últimas coalescem ao final da fase proliferativa. Esse período é histologicamente marcado por inúmeras figuras de mitose. O estroma se modificade denso a edemaciado e em seguida torna-se frouxo (Fritz e Speroff, 2011d). A irrigação endometrial é feita por ramos das artérias arqueadas, que descendem das ilíacas internas. Ao margear o útero, as artérias arqueadas projetam vários ramos menores que penetram o miométrio perpendicularmente à cavidade endometrial e se responsabilizam pela nutrição miometrial e endometrial; são as chamadas arteríolas espiraladas. Paralelamente ao crescimento epitelial e estromal, ocorre o desenvolvimento dessas arteríolas espiraladas, que se desenvolvem até próximo à superfície epitelial do endométrio; esse aumento da vascularização local permitirá uma adequada irrigação do tecido em expansão. Os receptores de estrogênios na superfície das células são autorregulados pelo próprio estradiol, portanto, ao longo do ciclo, a sensibilidade local à ação desse hormônio aumenta na mesma proporção de sua produção. Quando o endométrio atinge certa maturidade e já está proliferado, ele passa também a expressar receptores de progesterona que terão papel importante na próxima etapa do preparo endometrial, a diferenciação desse tecido durante a fase lútea (Fritz e Speroff, 2011d). A progesterona, em contrapartida, inibe os receptores estrogênicos, o que reduz seu efeito proliferativo. Após a ovulação, a progesterona passa a ser predominante, e o endométrio já sensibilizado pelo estrogênio desacelera a atividade proliferativa e inicia a diferenciação das glândulas do epitélio pseudoestratificado, tornando-as mais tortuosas e promovendo o acúmulo de glicogênio e glicoproteínas no citoplasma dessas células. Essas substâncias terão papel importante na nutrição do embrião nos estágios iniciais da implantação, enquanto o trofoblasto ainda não recebe aporte sanguíneo adequado (Burton et al., 2001). Além disso, as arteríolas espiraladas tornam-se mais enrodilhadas e sua parede, menos resistente, a fim de facilitar a implantação e a invasão do vaso pelo trofoblasto. Essa fase secretora é assim chamada porque inúmeras glicoproteínas e peptídeos são secretados na cavidade endometrial a partir do endométrio, tais como imunoglobulinas e proteínas ligadoras (Fritz e Speroff, 2011d). O pico da produção de progesterona pelo corpo lúteo ocorre sete dias após a ovulação, ou seja, no meio da fase lútea. Nessa etapa, a diferenciação endometrial é máxima e é quando se espera que o embrião, geralmente fecundado na trompa, estará chegando ao útero, ou seja, é o momento em que a chance de implantação é máxima. Esse período, chamado de “janela de oportunidade”, dura apenas alguns poucos dias, após os quais o endométrio se torna menos receptivo e as chances de gravidez diminuem (Diedrich et al., 2007). Ao adentrar a cavidade endometrial, dois a três dias após a ovulação, o trofoblasto embrionário inicia a produção de gonadotrofina coriônica humana – hCG (do inglês, human chorionic gonadotrophin), um hormônio com características moleculares muito semelhantes ao LH (Fritz e Speroff, 2011a). Por isso, o hCG se liga de maneira cruzada nos receptores de LH no ovário e mantém o estímulo sobre o corpo lúteo, o que manterá a produção de progesterona, capaz de estabilizar o endométrio enquanto a placenta em formação não se torna autossuficiente. É um processo simbiótico em que o hCG placentário (trofoblasto) mantém o corpo lúteo e a progesterona do corpo lúteo mantém o endométrio íntegro até que a placenta se desenvolva. Ao redor das 12 semanas de gestação, quando a primeira onda de invasão trofoblástica se completa, a produção de hCG pela placenta é reduzida e o corpo lúteo degenera gradualmente, mas agora a placenta já é autossuficiente na produção dos hormônios que manterão a gestação até o final (Atwood e Vadakkadath Meethal, 2016). Caso a implantação embrionária não ocorra, o corpo lúteo, que não receberá novos estímulos de LH, reduzirá a produção de progesterona, o que promove a liberação de enzimas líticas dos lisossomos e a liberação de prostaglandinas pelo endotélio dos vasos endometriais. Por ação das prostaglandinas, a musculatura lisa vascular sofre espasmos repetidos que levam à instabilidade do endométrio, isquemia do tecido em toda sua extensão e necrose. Todo esse processo culmina com a descamação de toda a camada funcional do endométrio, que, somando-se com um exsudato inflamatório, hemácias e enzimas proteolíticas, formará o fluxo menstrual, que marca o início de um novo ciclo. A eliminação do conteúdo uterino é facilitada pela ação de prostaglandinas no miométrio que induzem contração dele e pela presença de substâncias fibrinolíticas que liquefazem o tecido e a fibrina local (Fritz e Speroff, 2011d). O estancamento do sangramento menstrual será feito por uma combinação de vasoconstrição das espiraladas colapsadas, microtrombos que farão o tamponamento inicial dos vasos sangrantes e o efeito cicatricial do estrogênio, que será produzido a partir de uma nova onda de folículos em crescimento no novo ciclo que se inicia (Christiaens et al., 1982). Embora bastante complexo, o maquinário reprodutivo feminino funciona de maneira sinérgica entre as estruturas do eixo HHO e o útero (Figura 3.7). O equilíbrio desse sistema pode ser facilmente modificado e o ciclo ovulatório, interrompido por alterações em diversos outros órgãos e sistemas do organismo feminino, sejam elas orgânicas ou funcionais. Nesse sentido, o entendimento da fisiologia do ciclo menstrual é imprescindível para o adequado diagnóstico e tratamento das irregularidades menstruais, infertilidade e outras queixas associadas ao ciclo reprodutivo feminino. Figura 3.7. Modificações no sistema reprodutivo feminino ao longo do ciclo menstrual.
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