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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Índices para catálogo sistemático: 1. Análise de discurso crítica - 410 2. Meios auxiliares de ensino - gêneros - letramento - 371.3 3. Formação crítica de professores - 370.7 Barros, Solange Maria de. Realismo crítico e emancipação humana - contribuições ontológicas e epistemológicas para os estudos críticos do discurso / Solange Maria de Barros Coleção: Linguagem e Sociedade Vol. 11 Campinas, SP : Pontes Editores, 2015. Bibliografia. ISBN 978-85-7113-629-8 1. Análise de discurso crítica 2. Meios auxiliares de ensino - gêneros - letramento 3. Formação crítica de professores I. Título II. Coleção Todos os direitos desta edição reservados à Pontes Editores Ltda. Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia sem a autorização escrita da Editora. Os infratores estão sujeitos às penas da lei. Copyright © 2015 - Solange Maria de Barros Coordenação Editorial: Pontes Editores Editoração e capa: Eckel Wayne Revisão: Pontes Editores Coleção: Linguagem e Sociedade - Vol. 11 Coordenação da Coleção: Kleber Aparecido da Silva Conselho editorial: Adair Vieira Gonçalves (UFGD) Ana Maria Ferreira Barcelos (UFV) Carla Reichmann (UFPB) Clarissa Jordão (UFPR) Cláudia Hilsdorf Rocha (UNICAMP) Clecio dos Santos Bunzen Júnior (UFPE) Elaine Mateus (UEL) Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin (UFC) Fernanda Coelho Liberali (PUC-SP) Inês Miller (PUC-RJ) José Carlos Cunha (UFPA) Kleber Aparecido da Silva (UnB) Laura Stella Miccoli (UFMG) Leandra Inês Seganfredo Santos (UNEMAT) Mariney Pereira da Conceição (UnB) Myriam Crestian Cunha (UFPA) Rodrigo Aragão (UESC) Rosane Pessoa (UFG) Vânia Casseb-Galvão (UFG) Vilson Leffa (UCPEL) Viviane Resende (UnB) Wagner Silva (UFT) Walkyria Monte-Mór (USP) PONTES EDITORES Rua Francisco Otaviano, 789 - Jd. Chapadão Campinas - SP - 13070-056 Fone: 19 3252.6011 ponteseditores@ponteseditores.com.br www.ponteseditores.com.br Impresso no Brasil - 2015 Em memória do meu querido pai, Benedito Leite de Barros, pelo exemplo de solidariedade. Aos professores e alunos da Escola Estadual Meninos do Futuro, pela aprendizagem e experiências colaborativas. Duas coisas sempre me enchem a alma de crescente admi- ração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim. (Immanuel Kant) SUMáRIO APRESENTAçãO ................................................................................ 11 PARTE I - REALISMO CRÍTICO ALGUMAS TRADIçõES NA FILOSOFIA DA CIêNCIA ................ 17 REALISMO CRíTICO .......................................................................... 22 PRIMEIRA ONDA - REALISMO TRANSCENDENTAL ................. 25 NATURALISMO CRíTICO ................................................................. 37 CRíTICA ExPLANATóRIA ................................................................ 42 SEGUNDA ONDA - REALISMO CRíTICO DIALéTICO ............... 47 TERCEIRA ONDA - REALISMO CRíTICO TRANSCENDENTAL.. 48 METARREALIDADE ........................................................................... 51 PARTE II - ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO ACD E A ONTOLOGIA SOCIAL REALISTA ................................... 60 REALISMO CRíTICO E A NEGLIGêNCIA PARA COM A SEMIOSE: ALGUMAS IMPLICAçõES PARA A ACD ..................... 62 ESTRUTURAS SOCIAIS, PRáTICAS SOCIAIS E EVENTOS ........ 65 ELEMENTOS DAS PRáTICAS SOCIAIS: GêNERO, DISCURSO E ESTILO.......................................................................... 68 LINGUíSTICA SISTêMICO-FUNCIONAL (LSF) E ACD ................ 70 SIGNIFICADO ACIONAL: GêNEROS .............................................. 72 SIGNIFICADO REPRESENTACIONAL: DISCURSO ....................... 74 SIGNIFICADO IDENTIFICACIONAL: ESTILO ............................... 80 DISCURSO E IDEOLOGIA ................................................................. 86 DISCURSO E HEGEMONIA ............................................................... 91 MODELO TRANSFORMACIONAL DA ATIVIDADE TExTUAL (MTAT) ............................................................................... 94 PARTE III - ABORDAGEM DE PESQUISA ABORDAGEM qUALITATIVA .......................................................... 101 OBSERVAçãO PARTICIPANTE ......................................................... 103 ENTREVISTAS ..................................................................................... 103 NARRATIVAS DE VIDA ..................................................................... 104 ACD E A ABORDAGEM CRíTICO-REALISTA ................................ 106 PARTE IV - EXPERIÊNCIAS NA ESCOLA MENINOS DO FUTURO (CENTRO SOCIOEDUCATIVO DO POMERI) REFLExãO INTRODUTóRIA ............................................................ 115 TEORIA CRíTICA DA SOCIEDADE MODERNA ............................. 116 FORMAçãO CRíTICA DE EDUCADORES DE LíNGUAS ............ 119 A ESCOLA............................................................................................. 122 OS PROFESSORES E A FORMAçãO CONTINUADA ................... 123 SEMINáRIO DE LITERATURA ......................................................... 125 PROJETO SALA DO EDUCADOR ..................................................... 129 LETRAMENTO CRíTICO ................................................................... 134 OS ALUNOS ........................................................................................ 147 SóCRATES, PLATãO E ARISTóTELES............................................ 151 AINDA NãO é UM PONTO FINAL... ................................................ 167 CONSIDERAçõES FINAIS................................................................. 169 BIBLIOGRAFIA ................................................................................... 173 11 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso APRESENTAçãO A ideia de escrever este livro emergiu com os estudos de pós-doutoramento realizados no Instituto de Educação da Universidade de Londres, sob a orientação de Roy Bhaskar (2012-2013). Procurei associar a filosofia do realismo crítico (RC) e a abordagem teórico-metodológica da análise crítica do discurso (ACD), com o objetivo de apontar a relevância da ontologia e da epistemologia para os estudos críticos do discurso. As reflexões aqui desfiladas servem como subsídio para pesquisadores interessados em realizar estudos com base no RC e ACD. A abordagem realista, no entendimento embasado por Collier (1994), postula uma forma de realismo moral. A satisfa- ção, os desejos e as necessidades devem ser vistos como ques- tões prioritárias, não podendo ser apresentados apenas como fatos. Para esse autor, construir um projeto de transformação social impõe considerar a forma mais alternativa e transparente da vida em sociedade, visando a um futuro melhor. A abordagem da ACD está em consonância com o RC por entender o mundo social como um sistema aberto, em constantes transformações. A ACD se assenta numa ontologia social realista, uma vez que considera os eventos e as estruturas sociais como parte da realidade. A ACD propõe questionar a vida social em termos políticos e morais, isto é, à luz da justiça e do poder, buscando contribuir para a superação das desigual- dades e injustiças presentes na sociedade. O pesquisador, aqui, não é neutro; ao contrário, deve ser crítico e transformador. 12 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso A primeira parte do livro é dedicada ao RC. Inicialmen- te, teço breves considerações acerca das tradições existentes na filosofia da ciência. Em seguida, apresento o pensamento filosófico do RC formulado por Roy Bhaskar. Engloba três ondas. A mais densa está subdividida em 1) realismo trans- cendental;2) naturalismo crítico; e 3) crítica explanatória. A segunda onda, denominada realismo crítico dialético, expõe uma metacrítica das filosofias anteriores, seguindo os domínios do ontológico, do epistemológico e do ético. Finalmente, a terceira marca definitivamente o interesse do filósofo para as questões espirituais. A segunda parte destina-se à ACD. Primeiramente, em- preendo sucinta explanação sobre esta abordagem. Exponho algumas observações sobre a aproximação entre a ACD e RC, não sem destacar a negligência dos realistas críticos para com os estudos da semiose. Entreabro uma discussão teórica proposta por Fairclough (2003a) entre a ACD e a Linguística Sistêmico- Funcional (LSF). Esse autor propõe uma articulação entre as macrofunções de Halliday (1994) e os conceitos de gêneros, discursos e estilos, sugerindo, em substituição às macrofunções da linguagem de Halliday, os três tipos de significados: acional, representacional e identificacional. Exponho ainda o modelo transformacional da atividade textual (MTAT). A terceira parte é dedicada à abordagem qualitativa de pesquisa. Descortino algumas considerações relativas à pesquisa em ACD. Argumento que esse tipo de abordagem arquiva três conjuntos de decisões, relacionados com a on- tologia, a epistemologia e a metodologia. As pesquisas em ACD procuram desvelar problemas sociais materializados em textos orais ou escritos. O modelo de análise proposto por Chouliaraki e Fairclough (1999) e Fairclough (2010) é baseado na crítica explanatória de Bhaskar (1998), formulado em cinco estágios. Neste trabalho, apresento mais um estágio (Estagio 6). 13 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso A quarta e última se volta, em específico, às experiências realizadas, desde 2006, na escola Meninos do Futuro. Exponho algumas pesquisas efetuadas na escola. Elas me permitiram compreender o sentido primacial da formação continuada no próprio contexto da escola. PARTE I REALISMO CRÍTICO 17 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso ALGUMAS TRADIçõES NA FILOSOFIA DA CIêNCIA Desde os gregos, duas correntes filosóficas sempre es- tiveram no centro das discussões acerca do conhecimento: o racionalismo e o empirismo. O racionalismo dominou forte- mente a França e Alemanha. Na Inglaterra, o empirismo se tornou hegemônico. Para os racionalistas, a razão era fonte principal do conhecimento. René Descartes ([1596–1650] 2002) foi o fundador do racionalismo. Sempre convicto de que, através da razão, se chegava ao conhecimento, muito semelhante à matemática. Muitos anos depois, já na época de Kant, a me- cânica newtoniana, tida por grande avanço científico, passou a desconsiderar o racionalismo cartesiano. Já os empiristas, como o próprio nome diz, consideravam a “experiência” como a fonte segura de todo o conhecimento. Locke (1632–1704, apud PéREZ, 1988, p. 170) assegurou que a mente humana era uma “tábua limpa na qual nada está escrito”. é a partir da experiência que o sujeito começa a for- mar ideias mais simples e mais complexas. O método utilizado pelos empiristas era o indutivo, ou seja, as leis universais eram conseguidas com base em enunciados particulares – alguma observação/experimentação. O filósofo do pensamento empirista moderno foi, sem sombra de dúvida, David Hume ([1721-1776]1985, p. 24). Para ele, o conhecimento deveria partir dos sentidos, opondo- 18 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso se ao racionalismo cartesiano, que acreditava que o conheci- mento derivava da razão. Todo o conhecimento, portanto, se baseava na experiência. Tomemos um exemplo: um remédio x pode eliminar a dor de cabeça. Depois de ser experimentado por uma pessoa e obter resultado positivo, provavelmente a pessoa volta a sentir a mesma dor. Para os empiristas, o que mais rege o conhecimento é o costume ou hábito. O hábito, no pensamento de Hume, é o princípio em que uma simples constatação e sucessão entre dois fenômenos eram considerados “causa” e “efeito”. Ou seja, após a realização de determinada experiência, poderia retê-la na memória e, ao realizar ação semelhante, teria a capacidade de associá-la à primeira experiência. “Se pensarmos em uma ferida, dificilmente nos abstemos de refletir sobre a dor que se lhe segue” (HUME, 1985, p. 30). Para este filósofo, os objetos do conhecimento são even- tos atômicos, ou seja, os fatos e suas constantes conjunções de eventos sucedem de maneira constante e fragmentaria- mente. A ciência é apreendida como a sistematização rígida e metódica da experiência, uma vez que organiza, classifica, correlaciona os fatos, fornecendo ao pesquisador o “domí- nio” sobre o mundo. é vista, portanto, como uma espécie de resposta automática para estímulos de determinados fatos e suas conjunções. Nesse caso, a ciência torna-se uma espécie de “epifenômeno da natureza” (BHASKAR, 1998, p. 19). Kant, seguidor de Hume, embora comungasse das ideias do empirismo, acabou trilhando caminhos diferentes. Em sua obra intitulada Crítica da razão pura ([1781]1987), centrou seu interesse no conhecimento. Em suas palavras: que todo o nosso conhecimento começa com a experiência, não há dúvida alguma, pois, do contrário, por meio do que a faculdade de conhecimento deveria ser despertada para o 19 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso exercício senão através de objetos que tocam nossos sentidos e em parte produzem por si próprios representações, em parte põem em movimento a atividade do nosso entendimento para compará-las, conectá-las ou separá-las e, desse modo, assimilar a matéria bruta das impressões sensíveis a um conhecimento dos objetos que se chama experiência? Segundo o tempo, portanto, nenhum conhecimento em nós precede a experiência, e todo ele começa com ela. Mas embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência. Pois poderia bem acontecer que mesmo o nosso co- nhecimento de experiência seja um composto daquilo que recebemos por impressões e daquilo que a nossa própria faculdade de conhecimento (apenas provocada por impressões sensíveis) fornece de si mesma, cujo aditamento não distinguimos daquela matéria-prima antes que um longo exercício nos tenha tornado atentos a ele e nos tenha tornado aptos à sua abstração. (KANT, [1781] 1987, p. 1. Grifo no original) Mesmo se alinhando ao empiricismo de Hume e Locke, Kant assegurou que certas condições existem a priori para que as impressões sensíveis se convertam em conhecimento. Por conhecimentos a priori, Kant quer referir “não os que ocor- rem de modo independente desta ou daquela experiência, mas absolutamente independente de toda experiência” (KANT, [1781] 1987, p. 3. Grifo no original). Para ele, existe uma realidade externa independente do sujeito, denominando-a de coisas em si ou númeno (noumena)1. Embora tivesse ade- 1 Conforme Kant (1987, KrV, B 347), númeno (noumena) se refere ao “[...] objeto(s) de um conceito para o qual não se pode obter absolutamente nenhuma intuição cor- respondente é = nada, isto é, um conceito sem objeto, como os noumena, que não podem ser contados entre as possibilidades, embora nem por isso tenha que fazer-se passar por impossíveis (ens rationis) [...]”. São independentes da sua relação com a nossa sensibilidade. 20 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso rido à metafísica, Kant negou a possibilidade de conhecer as coisas em si. Ele chamou isso de filosofia transcendental. Conforme o autor: [...]denomino transcendental todo o conhecimento que em geral se ocupa não tantocom os objetos, mas com nosso modo de conhecimento de objetos na medida em que este deve ser possível a priori. Um sistema de tais conceitos denominar-se-ia filosofia transcendental [...]. (KANT, [1781] 1987, p. 26. Grifo no original) Para ele, as coisas em si permaneceriam em uma zona cognitiva e, mesmo assim, existiria conhecimento verdadeiro (intersubjetivamente) das coisas para nós. A Figura 1 abaixo, representa esquematicamente como a coisa em si se tornava em a coisa para nós, como o “númeno” incognoscível se transformava no fenômeno–o objeto do conhecimento. Fig.1- Do númeno incognoscível para o fenômeno (baseado em Kant ([1781] 1987) 21 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso Na visão de Kant, o espaço e o tempo não representavam propriedades das coisas em si, não dependiam do mundo externo. Eram o único modo como podíamos representar os fenômenos, constituindo-se nas condições necessárias e universais de qualquer percepção possível. Estava assim justificada a emissão de juízos sintéticos a priori sobre eles. “Logo, unicamente nossa explicação torna concebível a pos- sibilidade da Geometria como um conhecimento sintético a priori” (KANT, 1987, p. 42). Nesse sentido, a característica fundamental do pensa- mento de Kant é a negação de que apenas o conhecimen- to das conjunções de eventos possa esgotar tudo o que pertence ao mundo objetivo, na esteira do que defendia Hume. Na visão de Kant, os objetos de conhecimento são construtos artificiais da mente humana que se desenvolvem na consciência dos indivíduos. A ciência se torna possível porque a consciência individual encerra a função sintetiza- dora, portanto fornece as formas “a priori” da percepção sensível (espaço e tempo) e da compreensão (quantidade, qualidade, causalidade, etc.). Essas duas tradições filosóficas, explicitadas acima, acabaram sendo relegadas por acreditarem na identificação da realidade por meio da experiência positiva e superficial. A ciência é, portanto, uma sistematização metódica da expe- riência, cuja organização e classificação dos fatos fornecem um total domínio sobre o cosmo. Carrega sempre a fórmula “se...então...”. A corrente mais contemporânea e crítica das filosofias positivistas e pós-modernistas tem sido uma alternativa para as ciências naturais e sociais, privilegiando essencialmente a ontologia. 22 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso O realismo transcendental2, liderado pelo britânico Roy Bhaskar, em seu primeiro trabalho intitulado A Realist Theory of Sciense3 ([1975]1978), foi a pedra fundamental para as dis- cussões inerentes às ciências naturais e sociais, com destaque à ontologia. O filósofo rejeita a ciência como uma sucessiva conjunção de eventos. Os objetos de conhecimento não são meros eventos (empirismo), nem fenômenos compreendidos por meio de construções mentais (idealismo). A rejeição pela conjunção sucessiva de eventos não é mais relevante para a formulação de leis científicas universais. Ao contrário, elas passam a ser denominadas “tendências”, pois são elas que determinam como a realidade (fatos, acontecimentos) vai se comportar. A seguir, apresento o pensamento filosófico do realismo crítico formulado por Roy Bhaskar. Realismo crítico O RC tem como expoente o filósofo inglês Roy Bhaskar. Considerado movimento internacional na filosofia e nas ciên- cias humanas, sendo uma alternativa para as ciências naturais e sociais, sobrelevada a ontologia –questão do ser –, em que o real é mais denso, ou seja, consiste em um mundo objetivo que distingue uma superfície de algo ainda mais profundo. O realismo crítico advoga uma ontologia não empiricista, em que o mundo não é feito somente de acontecimentos, ou fatos. Conforme o sociólogo Vandenberghe (2010), o RC abriga caráter interdisciplinar, por considerar as reflexões sólidas concernentes à ontologia, tanto no domínio da filosofia quanto no das ciências humanas. 2 O termo transcendental alude a tudo que não pode ser compreendido. é parte do do- mínio dos conceitos considerados infinitos, ou seja, de se referir ao plano metafísico. 3 Uma teoria realista da ciência. 23 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso Na condição de filosofia de cunho emancipatório (BHASKAR, 1998), o realismo crítico tem servido de base para uma reflexão teórica e metodológica de muitos cientis- tas sociais, que buscam compreender as inter-relações entre indivíduos e sociedade. Bhaskar (1998) denomina de “falácia epistêmica” as pro- posições sobre o “ser”. Para ele, há um equívoco metafísico em querer adotar questões ontológicas como epistemológicas. Esse pensamento errôneo conduziu à dissolução da ontologia. Na visão do filósofo, os objetos de conhecimento não são os fatos ou eventos atômicos (empirismo), nem fenômenos apreendidos por meio de construções mentais (idealismo), “mas estruturas4 reais que operam e agem no mundo indepen- dentemente do nosso conhecimento, da nossa experiência” (BHASKAR, 1998, p. 19). Se o mundo é constituído de mecanismos, e não de eventos, então eles geram fluxos de eventos, formando, con- sequentemente, os acontecimentos do mundo a nosso redor. Conforme o autor, os mecanismos agem independentemente dos seres humanos (agentes causais). é por essa razão que ele assegura não sermos totalmente livres. “Essa é a árdua tarefa da ciência: a produção do conhecimento sobre aqueles mecanismos da natureza, duradouros e continuamente ativos, que produzem os fenômenos do nosso mundo” (BHASKAR, [1975]1978, p. 47). Fenômenos sociais são significativos e, portanto, devem ser compreendidos, e não medidos. Nesse sentido, é preciso entender que, no realismo crítico, qualquer tipo de significado vai exigir uma visão interpretativa da parte do pesquisador. Significa tam- 4 Por estruturas se entende qualquer rede de relações, a depender da posição que cada um ocupa nessa rede. As estruturas são sempre organizadas de acordo com os elemen- tos de cada sistema (sistema bancário, educacional, etc.). Elas têm potencialidades inerentes, as quais se manifestam por meio de mecanismos de causação, ou seja, poderes causais próprios. 24 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso bém dizer que o realismo crítico é parcialmente naturalista, pois, embora recorra aos mesmos métodos da ciência natural para a explicação causal, diverge no que se refere à visão interpretativa (SAYER, 2000). Da mesma forma, entende ser compatível a ado- ção ampla de métodos de pesquisa, como a etnografia, a análise de discurso, etc., pontuando que a definição por determinado método vai depender da natureza do objeto de estudo. O RC busca compreender as conexões entre os fenôme- nos, e não as regularidades entre eles. Reconhece a necessi- dade de interpretar significados, ainda que não seja uma saída única para as explicações causais, considerando que razões podem ser causas. é caracterizado também pela “emergência”, ou seja, quando duas ou mais características de determinado fenômeno dão origem a outros novos que emergem. Por exemplo, fenômenos sociais são emergentes de fenômenos biológicos que, de sua vez, são emergentes de estratos do físico e do químico (BHASKAR, 1998). Na visão de Outhwaite (1983, p. 322), o RC vê a ciência “como uma atividade humana que visa descobrir uma mistura de experimentação e razões teóricas, as entidades, estruturas e mecanismos (visíveis ou invisíveis) que existem e operam no mundo”. Nessa mesma esteira, Vanderberghe (2010) entende a ci- ência como um trabalhador das minas que está sempre cavando mais profundamente, movendo-se de um estrato da realidade para outro (dimensão vertical), descobrindoa cada estrato uma multiplicidade de mecanismos gerativos que explicam a relação entre os eventos (dimensão horizontal). Conforme esse autor, ao final de todo o processo de escavação, finalmente a ciência consegue descobrir a base de todos os seres, revelando o mistério do próprio ser. O RC, conforme disse antes, se apresenta em três ondas. A primeira, correspondente à mais densa, está subdividida 25 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso em 1) realismo transcendental; 2) naturalismo crítico; e 3) crítica explanatória. Primeira onda Realismo transcendental Para o realismo transcendental, qualquer teoria dizente do conhecimento pressupõe algo sobre o mundo e como este deve ser para que o conhecimento seja possível. Isso implica necessariamente alguma proposição sobre o ser, e não apenas o conhecimento sobre o ser, porquanto os objetos de inves- tigação científica existirão independentemente de qualquer atividade ou pensamento. O realismo transcendental se caracteriza por alguns princípios fundamentais, tais como: (1) objetividade – quando algo é real, mesmo não sendo conhecido; (2) falibilidade – as proposições se referem não a dados aparentes, infalíveis ou incorrigíveis, mas a alguma coisa que vai além; (3) transfe- nomenalidade – quando se ultrapassa as aparências, ou seja, o conhecimento pode não apresentar o que parece ser, pois as estruturas subjacentes perduram em relação às aparências; (4) contrafenomenalidade –quando o conhecimento da estrutura profunda pode também contradizer as aparências. Na compreensão de Bhaskar (1998), o realismo trans- cendental considera os objetos do conhecimento como es- trutura e mecanismos que geram fenômenos. Esses objetos não são fenômenos (empirismo), nem construções mentais impostas ao fenômeno (idealismo), mas estruturas reais que operam independente do nosso conhecimento. Segundo o filósofo, contra o empirismo, os objetos de conhecimento são estruturas e não uma conjunção constante de eventos. Em suas palavras: 26 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso A necessidade de distinções categóricas entre estru- turas e eventos, e entre sistema aberto e fechado são índices de estratificação e diferenciação do mundo, ou seja, da ontologia filosófica realista transcenden- tal. (BHASKAR, 1998, p. 22) Bhaskar sustenta que as práticas científicas devem ser estudadas transcendentalmente. Na linha do autor, toda e qual- quer prática científica pressupõe uma visão de mundo antes mesmo da investigação. A esse entendimento, ele formula a seguinte pergunta: “Como deve ser o mundo para que a ciência seja possível?” (BHASKAR, [1975] 1978, p. 36). A resposta para essa questão filosófica ele dá o nome de ontologia. Bhaskar desenvolve uma crítica às visões racionalistas e empiristas de ciência. O filósofo procura demonstrar que a teoria humiana de leis causais levou a uma deterioração da pró- pria teoria e, de consequência, da questão ontológica. Elabora uma nova alternativa de explicação da ciência, valorizando a “ontologia”, antes desprestigiada pelas correntes positivistas e empiristas. Seu pensamento no tocante ao realismo trans- cendental encarta como objetivo atingir as ciências naturais. A origem do termo realismo transcendental é explicado pelo autor. Denominei minha filosofia geral de ciência de “realismo transcendental” e minha filosofia especí- fica das ciências humanas de “naturalismo crítico”. Gradualmente, as pessoas começaram a misturar os dois e referir-se ao híbrido como “realismo crítico”. Ocorreu-me que havia boas razões para não objetar ao hibridismo. [...] de início, Kant designou seu idealismo transcendental de “filosofia crítica”. O realismo transcendental tinha o mesmo direito ao título de realismo crítico. Além disso, em minha definição de naturalismo equivalia ao realismo, de 27 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso modo que qualificá-lo compo realismo crítico fez tanto sentido quanto qualificá-lo como naturalismo crítico ( BHASKAR, 1998, p. 190). Ao defender a ontologia, Bhaskar argumenta que as práticas científicas devem ser estudadas transcendentalmente. A essa luz, toda e qualquer prática científica pressupõe uma visão de mundo antes mesmo da investigação. Com esse entendimento, ele formula a seguinte pergunta: “Como deve ser o mundo para que a ciência seja possível?” (BHASKAR, [1975] 1978, p. 36). A resposta para essa questão filosófica, confere o nome de ontologia5. A ciência deve servir para revelar algo que sirva para transformar a realidade social. Porém, a realidade adota dimen- sões profundas, as quais não são diretamente observáveis. é dizer sobre “algo que está abaixo da superfície”, ou seja, que existe alguma coisa mais profunda que não é possível desco- brir. é isso que interessa aos pesquisadores que comungam o pensamento do realismo crítico. O conhecimento precisa fazer sentido para que a realidade possa ser transformada. é preciso penetrar nas raízes dos problemas sociais, com suas estruturas, mecanismos e poderes, visualizando, assim, uma crítica explanatória6 que possa gerar argumentos críticos a favor da transformação social. 5 É um campo da filosofia que, tradicionalmente, trata de objetos do mundo real e suas estruturas, propriedades, poderes causais (Dictionary of critical realism, editado por Merving Hartwig, 2007). A aparição do termo data do século xVII, e corresponde a divisão que Christian Wolff realizou quanto a metafísica, seccionando-a em metafísica geral (ontologia) e as especiais (Cosmologia Racional, Psicologia Racional e Teo- logia Racional). Embora haja uma especificação quanto ao uso do termo, a filosofia contemporânea entende que Metafísica e Ontologia são, na maior parte das vezes, sinônimos, muito embora a metafísica seja o estudo do ser e dos seus princípios gerais e primeiros, sendo portanto, mais ampla que o escopo da ontologia (Wikipédia, 2014). qualquer prática humana pressupõe uma imagem de mundo. Negar a existência da ontologia é bloquear a possibilidade de conhecimento do mundo Real. 6 Conceito usado para enfatizar a estreita conexão lógica entre algumas formas de explicação do social e a adoção de um ponto de vista crítico em relação ao fenômeno explicado. solangem Realce 28 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso Em suas palavras, a ciência é, de fato, um processo contínuo, mas é um processo com um propósito central: aprofundar o conhecimento dos mecanismos transfactualmente ativos sempre mais profun- dos da natureza [e da sociedade]. (BHASKAR, 1986, p. 50). Bhaskar (1978) esclarece que o mundo é um sistema aber- to, cujos inúmeros fatores operam ao mesmo tempo. Conforme o filósofo, todas as ciências – naturais ou sociais– possuem uma dimensão intransitiva e uma transitiva. Os objetos de conhecimento – físicos ou sociais – formam a dimensão intransitiva da ciência. As teorias, discursos e recursos (mé- todos) da ciência são parte da dimensão transitiva. O objeto da dimensão transitiva é a causa material7. Nessa perspectiva, a construção do conhecimento traduz uma atividade transitiva, ou seja, depende de conhecimentos anteriores e da atividade do ser humano. Porém, há objetos intransitivos que existem anteriormente à pesquisa, cuja rea- lidade independe de nosso conhecimento. O quadro 1 ilustra as duas dimensões entreabertas por Bhaskar (1978). DIMENSÃO TRANSITIVA DIMENSÃO INTRANSITIVA Teorias científicas, discursos e métodos científicos. Objetos da ciência (físicos ou sociais) (tudo que estudamos/pesquisa- mos no mundo) Quadro 1 – Dimensões transitiva e intransitiva da ciência 7 Conforme o autor, inclui “[...]fatos, teorias, paradigmas, modelos e métodos de investigação previamente estabelecidos, disponíveis para uma corrente científica ou cientista em particular” (BHASKAR, 1978, p. 21). 29 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso Bhaskar denomina a existência dessas duas dimensões como “o paradoxo da ciência”. Para ele, a filosofia da ciência precisa saber lidar com este paradoxo: de um lado, o conheci- mento é produzido por seres humanos – sofás, livros, cadeiras, carros, computadores, etc. De outro, ele trata de coisas que independem da ação dos seres humanos, não são produzidos por eles. Ele assegura que, se os homens deixassem de existir, o som continuaria a se propagar e os corpos pesados continuariam a cair no chão exatamente da mesma maneira, embo- ra, por hipótese, não haveria ninguém para sabê-lo (BHASKAR, 1978. p. 21) Uma atividade de pesquisa experimental como a física, biologia, etc., pressupõe o caráter estruturado dos objetos in- vestigados, sob condições experimentais. Nos sistemas fecha- dos, as conjunções ou a sequência de eventos ocorrem e devem ser experimentalmente estabelecidas. Em suas palavras: a inteligibilidade de uma atividade experimental pressupõe independência categórica das leis causais, descobertas dos padrões de eventos produzidos. Ao repetir um experimento nós produzimos um padrão de eventos para identificar a lei causal, mas nós não produzimos a lei causal identificada. (BHASKAR, 1978, p. 34) O pesquisador é o agente causal de uma sequência de eventos, mas não da lei causal, em virtude de ter sido produ- zido sob condições experimentais. Conforme Sayer (2000, p. 15), no sistema aberto do mundo social, “o mesmo poder causal pode produzir diferen- tes resultados”. Por exemplo, a competição econômica pode levar as empresas a se reestruturar e a inovar, ou a se fechar. 30 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso Às vezes, diferentes mecanismos causais podem produzir o mesmo resultado. Alguém pode perder o emprego por uma variedade de razões. Os eventos não são predeterminados antes de acontecer, mas dependem de condições contingenciais. No sistema aberto, a conjunção ou a sequência de eventos é pre- visível. “Tem uma profundidade ontológica: eventos nascem de mecanismos os quais derivam de estruturas dos objetos, e eles ocorrem dentro de contextos geo-históricos” (SAYER, 2000, p. 15). Danemark, Ekstron, Jakobsen e Karlsson (2002) revelam um experimento feito pelo Dr. Otto Loewi, no qual é possível entender de que maneira e por que existem, a um só tempo, diferenças distintas entre ciência natural e ciência social – sistemas abertos e fechados. Conforme os autores, antes de Loewi realizar seu expe- rimento, o pesquisador acreditava que o centro nervoso das funções do organismo trabalhava diretamente na forma de impulsos elétricos. Porém, essa explanação era problemática, uma vez que os impulsos tinham efeitos em diferentes órgãos. Certas drogas eram conhecidas por possibilitar o mesmo efeito. Loewi imaginava que essas substâncias fossem talvez encontradas em nervos terminais. No caso do impulso elétrico, começaria uma reação química, afetando o músculo. Anos mais tarde, Loewi sonhou com seu experimento, resultando em uma grande descoberta científica. Foi até seu laboratório em plena noite, pegou dois corações de rãs, um deles perfeito, outro sem os nervos. Colocou o primeiro coração em uma solução com sal, a qual estimulou o nervo, obtendo uma diminuição no número de batidas do coração. Se sua hipótese estivesse correta, uma substância química teria sido liberada e estaria presente na solução, a qual seria capaz de afetar o outro coração, mesmo sem o nervo. 31 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso é possível imaginar, conforme Danemark, Ekstron, Jakobsen e Karlsson (2002), a emoção que Loewi sentiu ao aplicar a solução de sal no segundo coração? As batidas do coração seriam reduzidas ou não? Foi fácil imaginar a alegria da descoberta que Loewi sentiu quando o ritmo foi reduzido, como se o nervo não tivesse sido estimulado. Ele concluiu que a substância química operava através do músculo. Em seguida, variou o experimento ao estimular, em uma nova solução com sal, o nervo que teve um efeito rápido. Ao co- locar o coração sem os nervos na solução com sal, seu ritmo também aumentou. Loewi estava convicto de que o mecanismo ativo é a substância química iniciada pelo impulso nervoso, o qual atua no músculo. Os eventos do experimento de Loewi con- duziram a uma discussão, segundo os autores, sobre o papel do inconsciente no processo criativo. O que Loewi realmente fez? E por que foi tão difícil descobrir como desenvolver o experimento? Conforme Danemark, Ekstron, Jakobsen e Karlsson (2002, p. 20), o experimento pode ser descrito como uma inter- venção ativa na realidade. Ao realizar uma série de eventos, Loewi interferiu ele mesmo no curso da natureza. O propósito do experimento foi descobrir, detectar, revelar, procurar etc. alguma coisa sobre a realidade que ainda não era conhecida, algo que não poderia ser observado sem grande esforço. Para esses autores, a manipulação de eventos precisa acontecer. E, conforme a manipulação sistemática, a realida- de reage e fornece ao pesquisador algum resultado – no caso de Loewi –, levaram dezessete anos para descobrir como ele pôde realizar tal experimento. é a partir dos resultados que o 32 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso pesquisador consegue construir teorias científicas, sendo essas incluídas em nossa concepção de realidade. Alicerçado num experimento científico, é possível con- cluir, conforme esses pesquisadores que: (i) existe uma realida- de independente de nosso conhecimento; (ii) a maneira como essa realidade se comporta não é facilmente observada. Se tudo fosse transparente, não haveria, portanto, a necessidade da ciência. A realidade (Real) não é cristalina, esconde poderes e mecanismos que não podemos enxergar. Contudo, podemos, indiretamente, experienciar pela habilidade de “causalidade”8, ou seja, podemos fazer com que as coisas aconteçam a nosso redor. O que realmente ocorre no mundo não é o mesmo que está sendo observado. é impossível, então, pensar em uma ciência sem objetos transitivos e intransitivos. O estudo dos objetos intransitivos da ciência recebe o nome de “ontologia”. Conforme Bhaskar (1978, p. 13), a dimensão intransitiva implica três níveis de realidade, quais sejam: • o Real9 ou mecanismos causais, poderes, tendências, etc. é o que a ciência deve procurar descobrir; • o Realizado ou acontecimentos observáveis, sequência de eventos, pode ser produzido sob condições experimen- tais ou ocorrer em conjunturas mais complexas, fora do laboratório; • o Empírico (fatos ou eventos observados) deve ser somente um subconjunto de “b”. 8 Está basicamente relacionada ao poder do indivíduo para realizar alguma mudança. 9 No original: Real, Actual and Empirical. Opto pelos termos Real, Realizado e Empí- rico. Reconheço que os estratos do Realizado e Empírico também são “reais” porque estão relacionados aos poderes dos objetos sociais, bem como ativados em eventos. Potencialidades podem ou não ser exercitadas. solangem Realce 33 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso Enquanto o Realismo Empírico10 vê o mundo como objetos atomísticos, eventos e regularidades entre eles, como se não tivessem nenhuma estrutura e poderes, o Realismo Crítico, ao contrário, distingue não apenas o mundo e nossa experiência, mas também o Real, o Realizado e o Empírico (BHASKAR, 1978,p. 13). Na esteira desse filósofo, o domínio do Real pode ser en- tendido como tudo que existe na natureza, sejam eles objetos naturais – estruturas atômicas e estruturas químicas –, sejam sociais – ideias, relações sociais, modos de produção, etc. O Real é formado por estruturas, com poderes causais próprios. é apenas investigando determinado fenômeno que será possível distinguir estruturas (domínio do Real) de eventos (domínio do Realizado). Estruturas podem ser compreendidas como redes de relações, vinculadas a um conjunto de elementos, definidos pelas posições que ocupam nessas redes de relação. As estruturas têm potencialidades inerentes, que se manifestam através de mecanismos de causação. O domínio do Realizado consiste de eventos ou ativida- des que são realizados e, portanto, geram efeitos de poder, podendo ser observáveis ou não. Esse domínio ocorre quando os poderes são ativados. Se tomarmos como exemplo um trabalhador, sua força ou capacidade física de desempenhar determinado tipo de trabalho se concentra no nível do Real, ao passo que o exercício desse poder e seus efeitos pertencem ao domínio do Realizado. O domínio do Empírico–acontecimentos/fatos observá- veis – é entendido como o domínio da experiência. Na visão de Brown (2009), ao referir-se às crenças dos alunos sobre a aprendizagem, poder-se-ia dizer que as crenças dos alunos sobre a aprendizagem se concentram no domínio 10 Corrente filosófica defendida por Kant que trata da existência de uma realidade que, por ser exterior à consciência, seria impossível de conhecer. 34 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso do Real. Ao serem exercitadas por meio dos eventos (median- te comportamentos), elas passam a pertencer ao domínio do Realizado. A depender da habilidade do professor, os eventos podem ser notados ou experienciados por ele (domínio da experiência). Nesse contexto, é relevante que o professor esteja consciente acerca das crenças e das concepções que possam existir, uma vez que elas podem estar afetando a aprendizagem dos alunos. Ao considerar a estrutura da língua, poder-se-ia dizer também que, como geradora de uma gramática e de vocabu- lário, ela se concentra no nível do Real. Já a fala está centrada no nível do Realizado (SAYER, 2000). Ao fazer a distinção desses três domínios da realidade, Bhaskar (1978) propõe uma “ontologia estratificada” em oposição a outras ontologias “achatadas”, que reduzem em Realizado e Empírico, ficando de fora o domínio do Real (poderes). O filósofo entende que cada um desses domínios é “Real”. Para Benton e Craib (2001), há uma confusão terminológica com essa palavra, como se os outros níveis também não o fossem. A metáfora dos níveis implica que o realismo crítico é uma forma de “realismo profundo”. é importante destacar, à luz do entendimento de Flewtwood (2005), que muitas coisas no mundo são consi- deradas Reais, porém, apresentadas de maneiras diferentes. O autor explica que existem pelo menos quatro formas que realidade: (1) material – que se refere a entidades pura- mente materiais como a água, terra, fogo; (2) ideal – alude a entidades conceituais, como discurso, símbolos, os quais possuem poderes causais, podendo ser idealmente reais ou não; (3) artefactual – reporta-se a entidades físicas, tais como computadores, televisão, etc., as quais, no entanto, são entidades socialmente reais; (4) social – refere-se a 35 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso práticas, estados de coisas, estruturas sociais que constituem as relações humanas. O quadro 2, abaixo, ilustra os três domínios da realidade. Real Realizado Empírico Mecanismos Eventos Experiências Quadro 2 – Três domínios da realidade Bhaskar explica que as estruturas são reais e existem inde- pendentemente dos padrões de eventos. O filósofo assegura o caráter intransitivo do Real e vê esse domínio como esfera com- plexa formada por elementos diferenciados e estruturados. Nesse sentido, é fácil compreender que a ciência não é uma determinada constituição para o mundo, mas, em contrário, é o próprio mundo que fornece a matéria para que a ciência seja possível. Para estudar os objetos e suas estruturas, mecanismos e eventos, é preciso considerar a “causalidade”, entendida não como um relacionamento entre os eventos (causa e efeito), mas como “poderes causais”11, ou seja, “modos de agir” ou mecanismos. Na visão de Sayer (1984, p. 95), “pessoas têm poderes causais para serem capazes de trabalhar, falar, caminhar, reproduzir, etc.”. Conforme o autor, os “poderes causais” existem independentemente se são exercitados ou não. O relacionamento entre poderes causais ou mecanismos e seus efeitos não é fixo, mas contingencial. quando explicamos determinados fenômenos no mundo, raramente os mecanismos que estão subjacentes são observa- 11 Potencialidades que podem ou não ser exercitadas. 36 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso dos, uma vez que é preciso levar em conta os modos de opera- ção não manifestados e não realizados. Poderes e mecanismos podem estar presentes, mas não percebidos imediatamente. A Figura 2, abaixo, ilustra bem o que acabei de dizer. Figura 2 – Estruturas, mecanismos e eventos (baseado em SAYER, 1984, p. 107) Trata-se de conjunto de eventos, mecanismos e estrutu- ras, e como eles ocorrem de maneira complexa. quando os mecanismos são ativados, produzem determinados efeitos, dependendo de outros mecanismos que podem existir. Um mecanismo particular pode produzir diferentes ações em pe- ríodos de tempo diferentes. E, inversamente, o mesmo evento pode se revestir de diferentes causas. Ao conhecer determinados objetos sociais ou naturais, percebe-se que eles possuem poderes em virtude de suas es- truturas. Os mecanismos se originam de estruturas e existem em função delas. Ao analisar determinado objeto concreto, por exemplo, é preciso compreender como esse objeto está se apresentando. A abstração é uma maneira de fazer isso. Ao 37 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso fazer a abstração sobre determinado objeto, denotam-se suas estruturas, poderes e mecanismos. Porém, não basta organizar e explicar categorias apenas, é preciso procurar desvendar outros estratos da realidade. Os mecanismos pertencem a diferentes estratos da realidade – físico, químico, psicológi- co, biológico. Ao mover de um estrato para outro, poderes e mecanismos são desvelados do estrato subjacente. Esse estrato e seus novos objetos surgem com estruturas específicas, po- deres e mecanismos também. O início dessa nova ocorrência é denominado “emergência”. Nesse sentido, é possível dizer que determinado objeto tem “poderes emergentes”. Nas palavras de Collier (1994, p. 43): “as coisas têm os poderes que têm por causa de suas estruturas [...] Estruturas causam poderes para serem exercitados, dado algum insumo, alguma ‘causa eficiente’”. Nos objetos sociais, as estruturas não podem existir in- dependentemente das “ações” das pessoas. Conforme Sayer (1984), a relação proprietário– inquilino, por exemplo, pode estar, contingencialmente, relacionada com outras, como a religião, a atividade de recreação, etc. A relação ente ambos pressupõe a existência de propriedade privada, aluguel e outras mais. Juntos, formam uma estrutura. Dentro de uma estrutura social existem posições particulares, que estão associadas a certos papéis. Naturalismo Crítico Em seu segundo livro intitulado The possibility of natu- ralism12, Bhaskar ([1978] 1998) desenvolve um pensamento, explorando o naturalismo crítico como uma filosofia antipositi- vista, transpondo das ciências naturaispara as ciências sociais. 12 A possibilidade do naturalismo. 38 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso Naturalismo pode ser definido como a tese de que “existe (ou pode existir) uma unidade essencial de método entre as ciências naturais e sociais” (BHASKAR, 1998, p. 2). Trata- se de abordagem das ciências naturais que pode ser aplicada às ciências sociais, desde que seja uma abordagem realista. Nesse caso, a ontologia, bem como a estratificação da reali- dade, devem ser mantidas. Da mesma forma, os domínios do real, com seus poderes, estruturas de forças, e o domínio do empírico onde os fenômenos são percebidos. No naturalismo, não se permite reduzir o domínio do empírico ao domínio do real, bem como o real ser revelado diretamente pelo empírico. Conforme Bhaskar, a filosofia das ciências sociais encarta duas tradições distintas: a naturalista, que tem procurado rei- vindicar que “as ciências são (real ou idealmente) unificadas em sua concordância com princípios positivistas, baseados nas concepções humianas de lei” (BHASKAR, 1998, p. 2). E a tradição antinaturalista, que tem demonstrado uma ruptura metodológica entre ciências naturais e sociais, com base nas diferenças de seus objetos de estudo. Nesta última, “o obje- to das ciências sociais consiste essencialmente em objetos significativos, e seu objetivo é a elucidação do significado destes objetos” (Ibidem). O naturalismo também deve ser distinguido a partir de duas espécies: reducionismo – porque existe uma identidade real do objeto – e cientificismo – porque nega a diferença existente entre os métodos apropriados para estudar os objetos sociais e naturais. Na visão do filósofo, “é a natureza do objeto que vai determinar a possível forma de se fazer ciência” (BHASKAR, 1998, p. 3). A tradição positivista ressalta que existem leis causais, generalidades na vida social. A ciência, nesse caso, está deslocada da sociedade. A teoria de Hume sobre leis causais sustenta conjunções constantes de eventos ou estado de coisas. Essa concepção vê o homem como passivo, automatizado, com uma concepção de mundo constituída por dados e fatos 39 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso atomísticos (BHASKAR, 1998, p. 136). O positivismo é in- capaz de sustentar as noções de estratificação e diferenciação da realidade, bem como as distinções entre estruturas, eventos e sistemas abertos e fechados. O positivismo se vê obstinado por leis universais e generalizações, sendo incapaz de captar o que está “além” das aparências, permitindo que conheçamos os mecanismos gerativos dos fenômenos. Conforme Benton e Craib (2001), a posição advogada por Bhaskar sobre a abordagem “naturalista crítica” se assenta no modelo interpretativista, ou hermenêutica da versão positivista do “naturalismo”, que é de estudar objetos sociais seguindo o mesmo modelo da ciência natural. Embora existam diferenças entre os objetos naturais e sociais de conhecimento, ainda é possível, segundo esses autores, ter uma ciência da sociedade, seguindo o mesmo modelo que a ciência da natureza, mas não necessariamente da mesma maneira com o emprego dos mesmos métodos. Na tradição hermenêutica, a realidade é pré-interpetrada, trazida sob os conceitos dos atores para ser compreendida, ou seja, a sociedade passa a ser considerada um objeto científico, com conceitos de subjetividade, carregado de significados. No entendimento de Bhaskar (1998), a possibilidade do naturalismo nas ciências sociais constitui o principal problema da filosofia das ciências. Ao propor um naturalismo antiposi- tivista, baseado essencialmente na visão realista de ciência, o filósofo reivindica uma investigação ontológica do naturalis- mo nas ciências sociais. Ele faz o seguinte questionamento: que propriedades têm as sociedades que podem torná-las possíveis objetos de conhecimento para nós? Dito de outra maneira: de onde originam as propriedades que as sociedades possuem? Trata-se, aqui, de questão ontológica. E, ao indagar sobre “como as propriedades tornam as sociedades possíveis objetos de conhecimento para nós”, ele introduz outra questão 40 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso de caráter epistemológico. Em sua visão, a reflexão ontológica precede à epistemológica. Ao explicar sua concepção transformacional da socie- dade, Bhaskar (1998, p. 32) contraria os modelos propostos por Weber, Durkheim e Berger. No modelo 1 de Weber (vo- luntarismo), objetos sociais são resultado do comportamento intencional dos indivíduos. A sociedade é reduzida apenas às ações dos indivíduos. No modelo 2 de Durkheim – reificação ou coisificação –, objetos sociais são externos e exercem coer- ção sobre os indivíduos. Ou seja,a sociedade tem total poder, mas acaba alienando os indivíduos, tornando-os passivos. No modelo 3 de Berger – dialético –, a sociedade e os indivíduos são momentos de um mesmo processo, ou seja, a sociedade cria os indivíduos, que, por sua vez, criam a sociedade. Ao propor seu modelo acerca da relação sociedade/pes- soa, Bhaskar denomina-o de Modelo Transformacional da Atividade Social. Para ele, as pessoas não criam a sociedade, uma vez que a sociedade preexiste a elas. Em suas palavras: As pessoas não criam a sociedade. A sociedade sem- pre preexiste às pessoas e é uma condição necessária para sua atividade. Ao contrário, a sociedade deve ser encarada como um conjunto de estruturas, práti- cas e convenções que os indivíduos reproduzem ou transformam, mas que não existe independentemente da atividade humana (erro de reificação). Mas não é produto da atividade humana (erro de voluntarismo). [...] é importante salientar que a reprodução e/ou transformação da sociedade, embora na maioria dos casos seja inconscientemente alcançada, é, não obs- tante, uma realização competente de sujeitos ativos, e não uma consequência mecânica de condições ante- cedentes. (BHASKAR, 1998, p. 36). (Grifos meus). 41 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso O modelo de conexão sociedade/pessoa pode ser repre- sentado conforme a Figura 3, ilustrada a seguir. Figura 3 – Modelo Transformacional da Atividade Social (MTAS) Nesse modelo, a “sociedade fornece as condições ne- cessárias para a ação intencional, e a ação intencional é uma condição necessária para a sociedade” (BHASKAR, 1998, p. 36). Ou seja, os indivíduos devem não apenas produzir produtos sociais, mas realizar as condições de sua produção, reproduzindo ou transformando as estruturas que governam suas atividades de produção. Como as estruturas sociais são produtos sociais, elas são também possíveis objetos de trans- formação, sendo, portanto, relativamente duradouras. A sociedade é, conforme o autor, um conjunto articulado de tendências e poderes que, diferentemente dos objetos na- turais, existem somente na medida em que estão sendo exer- cidos, conforme a atividade intencional dos seres humanos. Nesse sentido, as estruturas sociais são ontologicamen- te diferentes das estruturas naturais. Diferenças essas que Bhaskar (1998, p. 38) assim as descreve: 42 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso • As estruturas sociais, diferentemente das estruturas natu- rais, não existem independentemente nas atividades que governam. • As estruturas sociais, diferentemente das estruturas natu- rais, não existem independentemente das concepções dos agentes acerca do que estejam realizando em sua atividade. • As estruturas sociais, diferentemente das estruturas natu- rais, podem ser apenas relativamente duradouras (de modo que as tendências sobre as quais se baseiam não podemser universais no sentido da invariância espaço-temporal. Vale ressaltar que, embora existam diferenças reais nos possíveis objetos de conhecimento das ciências sociais e naturais, em nenhum momento a sociedade é desconectada do natural. O que Bhaskar quer salientar é a estratificação ontológica. As estruturas sociais estão continuamente sendo reproduzidas ou transformadas, e elas só existem em virtude do agir humano. Para o autor, a sociedade, em razão do seu caráter aberto (sistema aberto), não é um objeto que podemos, então, prever de maneira dedutivamente justificada. Normalmente ocorrem desenvolvimentos qualitativos que a teoria científica social não pode antecipar. é sempre um caráter provisório. Crítica explanatória A crítica explanatória que Bhaskar propõe nada mais é do que uma contestação transcendental do positivismo nas ciências naturais, visto que todas as ciências possuem uma dimensão intransitiva e uma transitiva. O positivismo de Hume defende uma ontologia empiricista, totalmente contrária ao 43 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso posicionamento de Bhaskar. Como já mencionado, Hume entende que o conhecimento e suas conjunções de eventos ocorrem de maneira incessante e fragmentariamente. Ou seja, ele reduz as leis e sequência de eventos a experiências observá- veis, fornecendo ao pesquisador o “domínio” sobre o mundo. Bhaskar (1978) propõe uma alternativa abrangente para o positivismo, que desde a época de Hume tem assegurado uma imagem positivista de ciência sobre leis causais. Conforme o filósofo, uma conjunção constante de eventos não é condição necessária e suficiente para garantir uma lei científica. Ao con- trário, isso só deve ser demonstrado através de um argumento transcendental da natureza da atividade experimental. Os acontecimentos ocorrem independentemente de experiências que, muitas vezes, são identificadas de maneira equivocada. A crítica explanatória sustenta um conceito de que os objetos das ciências sociais, diferentemente das ciências na- turais, devem abranger crenças, incluindo julgamento de valor e ação. O estudo de determinada sociedade, em determinado momento histórico, acrescerá informações sobre a estrutura da sociedade desse período. Muitas pessoas, por exemplo, acredi- tam que a sociedade é uma sociedade sem classes, quando na verdade não é. As crenças podem ter efeitos sobre a estrutura, impedindo as pessoas de tentar alterá-las (BHASKAR, 1998). Isso abre a possibilidade de expandir o realismo crítico para o reino dos valores e da moralidade, encontrar uma dimensão intransitiva subjacente ao pensamento moral. Bhaskar assegura que as ciências sociais devem ser morais. O mundo é constituído não apenas de crenças, mas também de valores. Ao explicar uma crença como falsa, ou seja, como uma ideologia, é necessário fazer uma avaliação negativa do sistema que provocou essa falsa crença e, ao mesmo tempo, realizar uma avaliação positiva da ação trans- formadora visando modificar o sistema. solangem Realce 44 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso Na visão do filósofo, as ciências sociais não são neutras; em contrário, elas devem ser críticas, com possibilidades de intervenção prática na vida social. Para Bhaskar, os cientistas sociais precisam assumir uma posição sobre o que realmente nos interessa acerca do que fazer, dizer, sentir e pensar. Às vezes, implica juízos práticos de valor. A possibilidade da crítica científica desfila para as ciências humanas importante impulso emancipatório. As ciências sociais podem gerar impacto mais direto na esfera de valores, pois certos juízos de valor – de grande importância para os movimentos emancipatórios – podem ser aceitos nas ciências sociais, dado que envolve “desejo, vontade, sentimento, capacidades, facilidades, oportunidades e crenças” (BHASKAR, 1998, p. 411). Bhaskar (1998, p. 410) assegura que, embora o conheci- mento seja necessário, é insuficiente para a liberdade. Ser livre acarreta: (i) conhecer os reais interesses; (ii) possuir habilida- des, recursos e oportunidade para agir; (iii) estar disposto a agir. A política emancipatória deve estar, portanto, alicerçada em uma teoria científica e revolucionária. Nas palavras do autor: [...] Eu quero focalizar na estrutura lógica da crítica explanatória. A possibilidade de tal crítica constitui o núcleo do potencial emancipatório das ciências humanas; a possibilidade da efetividade de tal crítica na história da humanidade é, talvez, a única chance da não barbárie, ou seja, a sobrevivência da espécie humana [...] (BHASKAR, 1998, p. 417). O potencial emancipatório nasce, consequentemente, da capacidade da agência intencional e da prática reflexiva. Os indivíduos possuem poderes causais para reproduzir ou transformar as estruturas sociais. 45 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso A socióloga e realista crítica Margaret Archer (2000), em seu livro intitulado Being Human13, tem discutido a re- lação estrutura social e agência. Como conectá-las sem a necessidade de redução ou conflação? Em sua análise sobre a morfogênese da agência, a autora argumenta a necessidade de compreender as propriedades e os poderes dos seres hu- manos e como eles emergem através de nossas relações com o mundo, não podendo ser construídos apenas como “socie- dade”, “linguagem”, “discurso” e “diálogo”. Uma das mais importantes propriedades que nós temos é de nos conhecer, e isso depende da prática do diálogo na sociedade. Antenada com os princípios filosóficos do realismo crítico, Archer (2000) advoga que os poderes causais estão intimamente relacionados à agência, e não à sociedade. Ela considera que os indivíduos “têm poderes de monitoramento contínuo, tanto do self (eu), quanto da sociedade” (ARCHER, 2000, p. 74). Ou seja, os indivíduos possuem uma capacidade tanto para cuidar de suas próprias ações quanto das ações do meio em que vive. A autora assegura que o self emerge das práticas sociais, irredutíveis à sociedade. Cada indivíduo decide, através de “conversas internas”, como lidar com as implicações da realidade, seja na relação com ele mesmo, seja na relação com os outros. Tudo que assumimos como compromissos ou preocupações sempre estará sujeito a mo- dificação ou renovação, que estão embasadas nesse diálogo interior. As “conversas internas” são os poderes emergentes pessoais exercitados no mundo “natural, prático e social” (ARCHER, 2000, p. 317). Para Archer, cada um de nós precisa descobrir-se através de práticas do “diálogo interior”, distinguir o “eu” e a “diver- sidade”, o “sujeito” e “objeto”, antes de chegar à distinção entre o “eu” e “outras pessoas”. O “diálogo interior” não seria 13 Ser humano. 46 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso apenas uma janela sobre o mundo, e, sim, o que determina nosso “ser no mundo” (ARCHER, 2000, p. 318). O mais im- portante, na visão da autora, é conhecer-nos profundamente. Somos nós que determinamos nossas prioridades e de- finimos nossa identidade. Nada no mundo pode ditar como devemos listar nossas prioridades, embora existam forças externas nos induzindo a seguir outro caminho, principal- mente os poderes discursivos da ordem social. é através da informação externa e da deliberação interna que podemos alcançar a identidade pessoal, incluindo nossos valores. Archer assegura que o ser humano é altamente reflexivo e avaliativo. Ao abrirmos para as “conversas internas”, “nós descobriremos não apenas um rico campo de pesquisa, mas o encantamento de todo ser humano” (ARCHER, 2000). Nesse sentido, são os agentes sociais que delineiam as deliberações reflexivas, atravésdas “conversas internas”. O “eu” reflexivo constitui, portanto, um mecanismo capaz de conectar os poderes causais à agência. Nessa mesma esteira, Bhaskar (1998) consolida que todo o comportamento humano tem uma razão, e que, por isso, é intencional. O agente (e outros) pode ou não estar consciente das razões que causam seu comportamento intencional, por- quanto as ações humanas podem ter mecanismos psicológicos, indisponíveis à consciência. A capacidade para o automonito- ramento das intervenções causais no mundo, segundo o autor, está intimamente conectada com a linguagem, concebida como um sistema de signos aptos para a produção e a comunicação da informação. Nossa habilidade linguística de realizar algum comentário retrospectivo referente a nossas intervenções cau- sais no mundo é expressa por meio de sons e gestos. A discussão acerca da agência é relevante aqui, consi- derando nosso processo interno de construção de valores e identidade – social e pessoal –. Somos agentes reflexivos e 47 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso ocupamos determinada posição na sociedade. Pensamos e refletimos o nosso cotidiano e sobre o mundo ao nosso redor, com vista a transformá-lo. Só nos tornamos quem somos através do sentido que damos às reflexões que fazemos. Segunda onda Realismo Crítico Dialético O realismo crítico dialético tem como marco a obra inti- tulada Dialectic: The Pulse of Freedom14. O realismo crítico dialético elabora uma metacrítica das filosofias anteriores, nos domínios do ontológico, epistemológico e ético da realidade. Trata-se de uma teoria que aborda a dialética, tematizando conceitos acerca da não identidade, negatividade, totalidade e agência transformativa. Ao criticar a redução do domínio do Real ao domínio do Realizado, o autor situa a ausência como ponto fulcral. A bipolaridade do negativo (ausência) e do positivo (emergência) implica colocar a ausência no coração da po- sitividade. Central à dialética é o conceito de ausência, que deriva da crítica bhaskariana à monovalência, que engloba a redução do domínio do Real ao domínio do Realizado. Isto situa a ausência no cerne da positividade e, assim, o não-ser é a condição da possibilidade do ser, e a dialética é o processo de ausentar a ausência (BHASKAR, 1998). Em suas palavras: de maneira importante, se a ausência (negatividade) é um polo do positivo, então o positivo não pode ser positivizado de forma bem-sucedida [...] A dialética torna-se o “grande afrouxador” (“great loosener”), permitindo uma “textura aberta” do ponto de vista empírico, [...] a fluidez estrutural e a interconectivi- dade (BHASKAR, 1998, p. 564). 14 Dialética: o pulsar da liberdade. 48 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso Para o realismo crítico dialético, a emergência é uma ca- tegoria que envolve alguma coisa nova que surge de repente, ou seja, uma substância, entidade ou sistema que é dependente de sua existência de alguma outra substância, entidade, pro- priedade ou sistema. Bhaskar também postula a propósito do realismo crítico dialético em seu outro livro intitulado Plato, etc. Nesse tra- balho, o filósofo resume sua obra em sete teses: (1) A humanidade não é o centro do cosmo; (2) Existem realidades que não são atuais; (3) Não seres existem; (4) Entidades permeiam umas às outras; (5) A causalidade intencional existe; (6) Valores podem ser derivados de fatos; (7) A boa sociedade está implícita no desejo elementar (BHASKAR, 1994, p. 161). Bhaskar desenvolve um pensamento dialético que serve de transição para a terceira onda do realismo crítico, denomi- nado “realismo crítico transcendental”. Terceira onda Realismo crítico transcendental Esta terceira onda é fortemente marcada através das obras From East to West: the Odyssey of soul (2000)15, From Science to Emancipation16(2002) e Reflections on Metareality17(2002a; 2012). Nessa terceira fase de seu pensamento, Bhaskar se move para uma filosofia espiritual. “O realismo ontológico acerca de Deus na dimensão intransitiva é consistente com o relativismo epistêmico ou experiencial na dimensão transitiva” 15 Do Leste para o Oeste: a odisseia da alma. 16 Da ciência para a emancipação. 17 Reflexões sobre a metarrealidade. 49 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso (BHASKAR, 2002b, p. 146). O filósofo traz um fundamento acerca de Deus. Deus é o poder causal de todos os poderes causais. Bhaskar (2000, p. 238) questiona: “quem somos nós?”, “O que somos essencialmente? Ao apresentar essas indagações, ele quer mostrar o “ser o ser”, o tornar-se ser quando nos conectamos com uma realidade mais profunda até alcançarmos nosso verdadeiro Eu (self ). E esse self se encontra em seu “estado-base” (ground state) e, ao conectar com todos os seres, torna-se, então, conectado com tudo que existe no universo. No livro From east to west: the Odyssey of soul, o fi- lósofo desenvolve um pensamento acerca da reencarnação, apresentando uma narrativa sobre suas vidas passadas, ao incluir a autorrealização, denominada por ele de realismo crítico dialético transcendental. Trata-se de jornada acerca da transcendência da alma, numa sequência de experiências de várias reencarnações. Foi uma “virada espiritual” em que o filósofo passou a dar mais ênfase aos valores da alma. Essa obra e outras surgidas causaram uma situação de ruptura com o movimento do realismo crítico. Ele argumenta que a “estrutura básica do homem e do mundo – do qual o homem faz parte – é Deus” (BHASKAR, 2000, p. ix). Ou seja, Deus é o amor incondicional, uma paz infinita e plena de felicidade, e todos os seres humanos são essencialmente divinos. A postura mais correta e ética é a do amor pleno para todos os seres vivos. Nesse sentido, o livro constitui uma ampliação do realismo crítico dialético, atinente a um pensamento transcendental radical sobre transcendência e Deus, alicerçada em uma moralidade objetiva da natureza intrínseca do ´eu´. Em 2002, o filósofo publica o livro From Science to Emancipation, com interesse de expor suas conferências realizadas na Europa, ásia e América, de 1997 a 2002. 50 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso Nesse trabalho, Bhaskar dá mais visibilidade às questões espirituais e transcendentais. O capítulo 11, o mais rele- vante diga-se de passagem, é dedicado aos educadores. Bhaskar (2002a, p. 299) faz o mesmo questionamento que Marx fizera em sua terceira tese sobre Feuerbach: quem vai educar os educadores? Quem vai empoderá-los? Quem vai transformá-los? O filósofo busca responder essas questões, a partir da dialética da automudança, autotransformação. Em seu enten- dimento, a mudança deve ocorrer de dentro para fora. Nesse sentido, ele entende que não há contradição entre espiritua- lidade e mudança social, e que a educação tem, portanto, o compromisso com a transformação das estruturas sociais e a emancipação de todos. Em suas palavras: Emancipação não pode ser imposta de fora, a emancipação sempre vem de dentro [...] Como isso funciona exatamente? A partir de uma inspiração espiritual, você passa a ter uma experiência política, que o leve a um compromisso com a mudança social radical (BHASKAR, 2002a, p. 301-302). Nesse livro From Science to Emancipation, Bhaskar anun- cia sua posição acerca de seu novo trabalho que é a Metarreali- dade. Trata-se de uma filosofia que surge após o realismo crítico. Publica nesse mesmo ano de 2002 Reflection on Meta-Reality (BHASKAR, 2002a, 2012). Conforme o filósofo, Realismo Crítico Transcendental ou Metarrealidade se refere a um nível mais etéreo que transcende a realidade. Em suas palavras: “o realismo que toca à transcendêncialeva à própria transcendência do realismo” (BHASKAR, 2012, p. 16). 51 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso Metarrealidade Essa nova posição filosófica vai além do realismo crítico, uma vez que enxerga a realidade em estados de não dualidade e fases do ser, revelando todas as formas humanas, incluindo a vida, fenômenos ligados à totalidade do cosmo. Para entrar o mundo da Metarrealidade, é preciso compreender as limi- tações deste mundo de dualidade, ou seja, de infelicidade, opressão, conflitos. Na visão de Bhaskar (2012, p. 8), “ é um mundo em que nós estamos alienados de nós mesmos, uns aos outros”. O que o ser humano está fazendo atualmente tende a empurrá-lo para a autodestruição. A filosofia da Metarrealidade busca exatamente o crescimento do ser humano, sustentado pela energia do amor, em atividades não duais de nosso ser. Ao tornar-se consciente disso, o ser humano passa, então, a buscar sua transformação, derrubando as estruturas da opressão, alienação, miséria, etc. Nesse sentido, é preciso expandir, conforme Bhaskar, a zona de não dualidade, tornando-se seres não duais em um mundo de dualidade. A não dualidade é de suma importância não apenas para a ação e consciência, mas para o próprio ser. Bhaskar argumenta que a estrutura fundamental do homem e do mundo é Deus. Ou seja, Deus é o amor incon- dicional, uma paz infinita e plena de felicidade, e que todos os seres humanos são essencialmente divinos. A postura mais correta e ética é do amor pleno para todos os seres vivos. Nesse sentido, o livro “Reflexões sobre a metarrealidade” constitui uma ampliação do realismo crítico dialético, abarcando um pensamento transcendental radical sobre transcendência e Deus, alicerçada em uma moralidade objetiva da natureza intrínseca do “eu”. Para o filósofo, todos os projetos emancipatórios envol- vem pressupostos profundos acerca da natureza dos seres 52 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso humanos, seja o mundo social, seja o mundo natural. é im- portante para o realismo crítico pensar o ser processualmente, envolvendo “ausência” e “mudança”. Pensar o ser na qualida- de de agência transformadora e reflexividade. A reflexividade é importante porque contribui para monitorar as atitudes, bem como explicar cada situação vivida. Na visão de Bhaskar (2012), existem quatro dimensões para o ser pensante. A primeira dimensão, denominada por ele de “ontologia”, é o nível do ser como tal. A segunda se refere à negatividade ou ausência. A terceira é o ser como totalidade. A quarta envolve a intervenção humana transformadora como uma parte essencial do todo. A filosofia da Metarrealidade questiona uma ontologia que está além da ciência, enxergando o ser como reencantado. Nas palavras do autor: [...] Nesta concepção vastamente expandida do ser, e na própria ontologia expandida necessitada por esta concepção, vemos agora o ser como reencantado, isto é, valioso, sutil, misterioso e contendo qualidades e conexões invisíveis (mais frequentemente desco- nhecidas e até não manifestas), sutis, misteriosas e até mágicas que nossas ciências contemporâneas desconhecem completamente[...] (BHASKAR, 2012, p. 257). Bhaskar expõe uma filosofia inspiradora para a autorre- alização universal. Embora não tenha simpatia por nenhuma prática religiosa, o filósofo entende ser perfeitamente possível alguém sentir a necessidade disso. Ele não acredita que a cren- ça em Deus seja a condição necessária para que o ser humano seja bom. Há muitas pessoas más, por exemplo, que acreditam em Deus. Bhaskar acredita muito mais na essência divina, na espiritualidade da vida e na ação correta dos homens, do que na fé baseada em uma teologia. A essência de Deus está em 53 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso todos os seres, conectados no universo, o qual ele denomina de envelope cósmico, ou seja, o nível último do universo. Conforme o filósofo, o envelope cósmico seria uma es- pécie de “absoluto”, embora ele não afirme que este envelope cósmico seja Deus. Na verdade, o que Bhaskar quer defender é uma espiritualidade que está em consonância com todas as religiões e não religiões. Em suas palavras: [..] Do mesmo modo que tudo no universo está impli- citamente em mim, ou seja, todo objeto no universo está contido em minha consciência, copresente a mim [...] (BHASKAR, 2002a, p. 215) Ao tomar consciência de que todo o universo está conectado em cada um, em seu estado-base, de não dualidade, o ser humano passa, então, a sintonizar com o envelope cósmico, unindo toda a criação no universo em sua totalidade. Todos os seres humanos são corporificados porque têm uma mente racional, emoções, sentimentos e um corpo físico. Como ele mesmo diz: [...] De fato, é a natureza física da nossa corporifica- ção que define nossa separação e permite um grau de validade para o sentido do ego que todos nós temos, o qual é parte da lógica do capitalismo e da nossa sociedade (BHASKAR, 2000, p. 239). O “ego” é um “eu” separado que está em oposição a todos os outros “eus”. O ego é essencial para o discurso filosófico da modernidade, para o capitalismo e para muitas instituições sociais existentes. Muitas coisas em nossa sociedade, segundo o autor, pressupõem um sujeito isolado. Conforme o autor, as estruturas profundas de opressão e alienação, por exemplo, são estruturas de dualidade, fundadas 54 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso no princípio da não dualidade, as quais o realismo crítico tem teorizado. Essas estruturas dominam não apenas o mundo da dualidade, mas também a base não dual, que é o nosso estado- base ou estado-fundamental de ser. Bhaskar entende que uma sociedade livre só é possível se o ser humano se libertar das estruturas da opressão, alienação e exploração. A raiz de toda a alienação, segundo ele, é a auto- alienação, que é a alienação de nós mesmos. Como Kant, ele também assegura que, acima de nós, temos o céu estrelado, e dentro temos uma lei moral. Todo sofrimento tem como causa a alienação em nosso eu verdadeiro. A autorrealização individual é o único caminho para a autorrealização universal. Na visão do filósofo inglês, todo evento social envolve quatro dimensões no que ele chama de Quadri-Planar do Ser Social (BHASKAR, 2012, p. 150), a saber: 1. nossa transação material com a natureza; 2. nossa interação com os outros; 3. estrutura social; e 4. a estratificação de nossas personalidades corporificadas. Tudo o que fazemos envolve a transação com a natureza, ou seja, há sempre troca de energia com o mundo material. Ocorre também interação com as pessoas. Estamos sempre nos interagindo em qualquer evento social. Todo evento social precisa, então, ser compreendido em termos do relacionamento com as estruturas sociais – formas políticas, economia, lingua- gem, etc. A estrutura social está intimamente ligada à agência humana. Ela preexiste a agência, ou seja, nós não a criamos; porém, podemos reproduzir ou transformar. Há coisas que preexistem a nós, mas elas não existem independentemente da agência humana. Tudo que acontece 55 Realismo CRítiCo e emanCipação Humana ContRibuições ontológiCas e epistemológiCas paRa os estudos CRítiCos do disCuRso na sociedade, acontece em virtude da agência intencional. O que os agentes fazem é reproduzir ou transformar. Não conse- guiremos ser livres se existirem estruturas sociais opressivas em nosso redor. A estratificação de nossa personalidade, conforme Bhaskar (2012, p. 150), envolve as “estruturas internas” que existem em cada um de nós, como a raiva, a agressividade, o ciúme, o ódio ou o amor. Para o autor, somos profundamente
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