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1 TÓPICO 1 - O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO) 1 INTRODUÇÃO Ao longo da história, nas distintas etapas e diversas sociedades encontramos formas de controle e proteção de valores que possibilitam a vida comum. Esses valores, ou bens jurídicos, são amparados e garantidos por um conjunto de normas jurídicas definidas conforme a ordem social, política e/ou econômica que se encontra em contínua mudança, e por esta razão as normas jurídicas vão reconhecendo as alterações de acordo com a época e as relações definidas no substrato social. NOTA A vida social é regida por diversas normas, preceitos, que definem condutas (morais, religiosas, culturais etc.), dentre as quais as normas jurídicas. Normas jurídicas são distintas das demais por dois fatores principais: emanam de uma autoridade política competente e possuem poder coercitivo. Em outras palavras, em primeiro lugar, as normas jurídicas são estabelecidas por órgãos ou instituições legítimas politicamente, portanto, distintas de normas morais. Como segundo fator, as normas jurídicas são impostas, com uso da força se necessário for, de forma a persuadir as pessoas a agirem de modo a atender às finalidades ou objetivos estabelecidos pelos órgãos políticos definidos. Assim, as normas jurídicas devem ser acatadas e colocadas à disposição dos indivíduos e da coletividade para fazer valer interesses e necessidades, bem como proteger seus bens de distintas naturezas e características. Desde tal perspectiva, surgem algumas perguntas que devemos responder inicialmente: é possível estudar esse conjunto de normas que vão definindo o direito? Como estudar esse fenômeno social que chamamos de direito? Para que estudar direito? As distintas respostas que podem ser dadas recaem em alguns pontos comuns: a necessidade de conhecer o direito, de determiná-lo, estabelecer a relação com as ideias e/ou valores e/ou interesses do grupo social em que se insere. Exatamente essa é a função dos pesquisadores do direito, e desde as investigações vão sendo redefinidos conceitos operacionais que são utilizados para definir e fundamentar a norma jurídica adequada do caso concreto. 3 Dessa maneira, vai sendo definida a cultura jurídica de um determinado grupo em um determinado tempo. Segundo Wolkmer (2007, p. 5), cultura jurídica pode ser definida como “representações padronizadas da (i)legalidade na produção das ideias, no comportamento prático e nas instituições de decisão judicial, transmitidas e internalizadas no âmbito de determinada formação social”. Portanto, o conjunto de normas e procedimentos, considerados justificáveis e apoiados ou não pela força instituída, vão padronizando condutas e construindo a concepção de direito. Pode-se compreender direito como fenômeno sociocultural produzido e reproduzido desde um contexto histórico. Pode-se conceituar a História do Direito como parte da História geral que examina o Direito como fenômeno sociocultural, inserido num contexto fático, produzido dialeticamente pela interação humana através dos tempos, e materializado evolutivamente por fontes históricas, documentos jurídicos, agentes operantes e instituições legais reguladoras (WOLKMER, 2007, p. 5). Vamos, então, percebendo que o campo do estudo da história do direito não é o da dogmática jurídica, que delimita conceitos desde concepções indiscutíveis e estáveis, mas um campo partilhado por outras disciplinas (teoria do direito, sociologia jurídica, antropologia jurídica, ciência política etc.) que permite compreender o contexto e as forças históricas, sociais, políticas, intelectuais, culturais etc., que definem as normas jurídicas vigentes. NOTA Há autores que diferenciam dogmática de zetética jurídica. Dogmática jurí-dica pode ser definida como campo de estudo acerca dos conceitos ope-racionais do direito (“verdades” preestabelecidas) usados para solucionar na prática controvérsias jurídicas, portanto, é um estudo limitado, a grosso modo, à norma positivada. A zetética jurídica problematiza os dogmas e verdades jurídicas, questionando as premissas que definem a dogmática. Nessa perspectiva, a história do direito estaria no campo da zetética, uma vez que não apenas problematiza a dogmática jurídica contemporânea, como busca reconstruir as ideias e práticas jurídicas em determinado con-texto histórico. Em síntese, o objetivo da história do direito é compreender a construção do direito atual, desde a articulação de fatores ao longo do tempo, reexaminando suas fontes de produção, as concepções, técnicas e instituições que o foram elaborando e legitimando. Assim, trata-se de um estudo essencialmente crítico que possibilita interpretar o direito desde a identificação dos valores consolidados e reproduzidos historicamente. 4 Considerando História não como narrativa de acontecimentos, mas expressão de experiências humanas que definem mudanças estruturais coletivas que não tratam simplesmente de investigação sobre personagens individuais, como os “heróis” ou “personagens”, mas de como a trama da vida move os indivíduos comuns desde desejos, necessidades, valores e interesses a criarem aspirações coletivas e romperem com estruturas e modelos dominantes. Trata-se, assim, de romper com o conceito de que História é uma mera narrativa de atos individuais, mas estudar História desde a possibilidade de mudanças do presente. É um ato de recusa de verdades absolutas e destinos imutáveis preestabelecidos, uma forma de adquirirmos a consciência das forças que nos levam coletivamente a agir desde as experiências vivenciadas. Mas por que e para quê filosofar sobre o direito e sua história? Você deve estar se perguntando por que e para que estudar Filosofia, se seu interesse é Direito? Filosofia não é perda de tempo ou coisa de gente que “viaja” e vive nas nuvens? É natural que você pense assim, aliás, muitos perguntam para que serve a Filosofia. Estamos habituados a nos preocuparmos com o que nos traga recompensas materiais ou financeiras, afinal, temos apelos todos os dias pela mídia, por exemplo, a sermos utilitaristas e colocarmos nossa felicidade, bem como o sentido de nossa existência, na quantidade de coisas e bens que podemos comprar e acumular. Através da Filosofia aprendemos a conquistar uma felicidade muito particular: descobrir o sentido das coisas e de nossa própria existência para sermos donos de nosso próprio destino. A Filosofia está presente em nosso cotidiano mais do que pensamos e tem influenciado ideias, discursos, ações políticas, conceitos de justiça, por exemplo, sem percebermos que é a Filosofia que nos permite ter a capacidade de escolhermos e valorarmos nosso agir, não apenas individualmente, mas com os demais com quem convivemos. E é isso, afinal, que nos torna civilizados. Iniciamos um estudo particular que nos vai ajudar a compreender que não existe nada “natural” no mundo jurídico. Vamos aprender que, embora sendo difícil, devemos conhecer a origem e a finalidade dos valores que regem o mundo do Direito desde sua historicidade, para nos tornar menos ingênuos e com mais certezas. 2 OBJETIVOS DO ESTUDO DA HISTÓRIA E DA FILOSOFIA DO DIREITO O estudo da história do direito é a possibilidade de descobrir um fascinante universo, descobrir caminhos que foram percorridos por distintas civilizações ao longo do tempo e foram encontrando no direito o instrumento necessário para continuarem a vida em comum. Sem dúvida, nossa formação acadêmica exige compreender o 5 presente desvelando os valores e as práticas jurídicas consolidadas ao longo do tempo, ampliando, assim, nossa cultura jurídica, sendo o estudo histórico do direito um importante elemento para o saber formativo e distinto do conjunto de disciplinas dogmáticas que constituem o ensino jurídico. O importante historiador do Direito, António Manuel Hespanha, destaca que enquanto as disciplinas dogmáticas visam “criar as certezas acerca do direito vigente, a missão da história do direito é problematizar o pressuposto implícito e acrítico das disciplinasdogmáticas, ou seja, o de que o direito dos nossos dias é o racional, o necessário, o definitivo” (HESPANHA, 2005, p. 21). A história do direito realiza sua função ao contribuir para a elaboração de uma perspectiva que compreenda o fenômeno do direito enquanto produto das relações e contextos sociais – econômicos, políticos etc. – localizados temporalmente, e assim é assegurada a formação crítica dos juristas. Em que pese a disciplina de História do Direito estar presente nos cursos de Direito brasileiros em geral, talvez seja necessário ampliar sua função, sobretudo quando se tem em conta a necessidade de servir de instrumento de revisão das fontes legislativas e práticas das instituições jurídicas com vistas a alinhar o direito com as necessidades e condições sociais. Em suma, a finalidade essencial da História do Direito é a interpretação crítico-dialética da formação e da evolução das fontes, ideias norteadoras, formas técnicas e instituições jurídicas, primando pela transformação presente do conteúdo legal instituído e buscando nova compreensão historicista do Direito num sentido social e humanizador (WOLKMER, 2007, p. 6). Estudar História do Direito desde uma perspectiva não linear – a que não concebe a história como acumulação progressiva de saber, mas como rupturas, avanços e retrocessos –, além da importância para a formação acadêmica, permite identificar forças e valores que vão conferindo legitimidade ao direito, e para tal tarefa é necessário estabelecer estratégias e caminhos metodológicos adequados. NOTA A concepção linear da história do direito compreende o presente como uma espécie de “celebração” do passado. O presente como única possibilidade inevitável do passado, de uma espécie de “padrão” universal de evolução. A “naturalização” e “sacralização” do presente é uma deformação histórica, pois o presente não é uma imposição do passado, mas o resultado de dinâmicas escolhas humanas. A “neutralização” da história constrói para os juristas uma lógica de direito abstrata e erudita sem preocupação com a finalidade maior do direito: a concretização de necessidades e proteção de bens humanos concretos. 6 Em que pese a longa tradição da historiografia formalista nas faculdades de Direito em fins da década de 60 e ao longo dos anos 70, foi sendo definido um novo marco metodológico desde a criticidade e revisão dos modelos teóricos consolidados. Trata-se da emergência de uma corrente mais questionadora dos historiadores, problematizando a ingenuidade intelectual e a forma através da qual compreendem a realidade desde modelos deformados meramente teóricos. Este movimento, denominado Nova história, teve como “força” propulsora alguns eventos, tais como a renovação do pensamento crítico – “nova teoria crítica” da Escola de Frankfurt –, que problematizou a neutralidade ideológica, demonstrando que toda atividade humana é sempre política; a metodologia inovadora da Escola Francesa dos “Annales” – que contribuiu no campo do estudo do direito para uma visão interdisciplinar e relacional da história, concebendo a história do direito como parte da história social. A emergência do pensamento crítico latino-americano com pensadores como Paulo Freire, Franz Hinkelammert, Enrique Dussel, Antonio Carlos Wolkmer, entre outros, que são considerados matrizes de internalização da criticidade na cultura jurídica, representando uma espécie de “via alternativa” mais próxima de nossa realidade. Muitos outros se somam para uma mutação radical da historiografia em geral e jurídica, em particular, definindo, assim, uma opção metodológica desmistificadora que inclui a complexidade e diversidade da vida social no processo de edificação histórica do direito. DICAS “Escola de Frankfurt” é uma corrente de pensamento que emerge no contexto político e histórico muito problemático. Em meio à ascensão do nazismo na Alemanha e ao stalinismo na Rússia, um grupo de intelectuais vinculados ao Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, alinhados ao que foi se denominando Teoria Crítica, passa a produzir obras, pesquisas e análises sociais entre os anos 1920 a 1970 desde um marxismo heterodoxo. Para conhecer melhor sobre a Escola de Frankfurt e A Teoria Crítica, você pode consultar http://brasilescola.uol.com.br/ filosofia/a-escola-frankfurt-introducao-historica.htm. 7 NOTA O nome Escola dos Annales se refere a um grupo de historiadores liderados por Lucien Febvre e Marc Bloch, que se organizaram em torno do periódico francês Annales d'histoire économique et sociale (Anais de história econômica e social), no qual eram publicados seus principais trabalhos. O principal objetivo desses historiadores era a problematização do positivismo histórico dominante e o desenvolvimento de um tipo de História que levasse em consideração novas fontes para a pesquisa histórica, como a sociologia, a economia, a semiologia etc., considerando a história como a ciência do presente e não do passado, investigando as transformações e rupturas sociais ao longo do tempo. A nova concepção das fontes, funções e concepções de Direito conduz à revisão crítica da análise e estudo do passado das instituições jurídicas e das práticas de controle, problematizando o modelo contemporâneo. Desde aí, o Direito Moderno é compreendido desde uma nova perspectiva que permite identificar os fatores e elementos políticos, sociais, econômicos e culturais subjacentes ao processo histórico desenvolvido entre os séculos XVI a XIX na Europa que acabou por definir a cultura jurídica dominante nos dias de hoje. Em síntese, o que atualmente se compreende por Direito é resultado do contexto histórico europeu moderno organizado desde a consolidação do capitalismo liberal que foi definindo uma estrutura política e jurídica estatal centralizada, modelo este que, por conta da expansão colonizadora, foi colocado em marcha a partir do século XIV. O fundamento nuclear do Direito Moderno é o individualismo liberal, expressão maior do valor moral da sociedade burguesa emergente, que coloca o homem como ser individual autônomo e formalmente livre. Nessa dinâmica histórica, a ordem jurídica é instrumentalizada como estatuto de uma sociedade que proclama a vontade individual, priorizando formalmente a liberdade e a igualdade de seus atores sociais (WOLKMER, 2007, p. 30). ESTUDOS FUTUROS Como adiante será melhor estudado, “Modernidade” é definida como um modelo civilizatório construído desde a Europa entre os séculos XIV a XIX, que veio a substituir o modo de vida medieval. Tem, como características, o predomínio de concepções políticas e jurídicas liberais individualistas. 8 Considerando a história do direito como campo de estudo que tem como objetivo a compreensão do presente a partir da revisão crítica do passado, evidencia-se a finalidade maior de nossos estudos: rever historicamente as experiências do direito com vistas a adquirir uma consciência do Direito Moderno mais humanizadora e libertária. Mas e a filosofia? Quais as suas importâncias no estudo do direito? Vivemos um cotidiano marcado por discursos e práticas que costumamos rotular de “justas/injustas” ou “certas/erradas”; e não raras vezes nos vemos exigindo “o que nos é de Direito”. O que exatamente estamos colocando em questão? O que é o justo e injusto em um mundo marcado por tão profundas contradições e aparente desesperança? Os últimos anos do século XX testemunharam grandes mudanças em toda a face da Terra. O mundo torna-se unificado – em virtude das novas condições técnicas, bases sólidas para uma ação humana mundializada. Esta, entretanto, impõe-se à maior parte da humanidade como uma globalização perversa. Consideramos, em primeiro lugar, a emergência de uma dupla tirania, a do dinheiro e a da informação, intimamente relacionadas. Ambas, juntas, fornecem as bases do sistema ideológico que legitima as ações mais características da época e, ao mesmo tempo, buscam conformar segundo um novo ethos as relações sociais e interpessoais, influenciando o caráter das pessoas. A competitividade,sugerida pela produção e pelo consumo, é a fonte de novos totalitarismos, mais facilmente aceitos graças à confusão dos espíritos que se instalam. Tem as mesmas origens a produção, na base mesma da vida social, de uma violência estrutural, facilmente visível nas formas de agir dos Estados, das empresas e dos indivíduos. A perversidade sistêmica é um dos seus corolários (SANTOS, 2011, p. 18). Frases como “isso é uma verdade” já não são ditas com tanta facilidade. As verdades parecem provisórias. É um tempo em que tudo parece se transformar com rapidez alucinante. Mal temos tempo de compreender conceitos, valores, ideias ou comportamentos que repentinamente já são ultrapassados. Como nós, que pensamos o Direito, podemos lidar com esse aparente “pós tudo” sem cairmos na cilada do senso comum, dos dogmas ou das verdades midiáticas criadas todos os dias? NOTA Dogma é uma “verdade a priori” aceita sem questionamentos. O dogmatismo ao longo da história resultou em intolerância e opressão. Em sentido contrário, o pensar crítico é uma postura que visa rever os dogmas e os contextos teóricos, fáticos, ideológicos e culturais que os sustentam e os legitimam. 9 Há uma realidade na qual estamos inseridos que exige uma explicação! Diariamente fazemos escolhas e julgamentos de valores, pois somos movidos por crenças, valores, preconceitos, enfim, um conjunto de idealizações e representações tanto individuais como coletivas que nos permite viver em sociedade. Como diz a filósofa Marilena Chauí (2000, p. 8): Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade. No esforço de ir além das “verdades postas” é preciso uma atitude reflexiva metódica, ou seja, é necessário um “distanciamento” da realidade e dos fatos para que possamos interrogar a nós mesmos e aos conceitos que parecem inquestionáveis. Neste momento podemos sentir que nossas certezas são questionadas e tudo parece possível de ser redefinido ou repensado. É desde aí, desta “atitude reflexiva”, que falamos em “Filosofia”. Desde uma atitude que permite discutir o que parece óbvio e natural. Claro que refletir sobre as verdades e a realidade que nos cerca é uma dura escolha. Pode ser que sejamos mais felizes ou mais otimistas com o superficial, afinal, ser inquieto é não se deixar levar tão facilmente. É não aceitar passivamente o que nos é oferecido como “alternativa possível”. Desde a atitude reflexiva descobrimos que não podemos ser felizes a vida toda e todo o tempo. E essa é talvez a tarefa mais urgente de nosso tempo. Enfrentar o medo das incertezas é o grande desafio que se coloca diante de nós quando decidimos assumir uma atitude reflexiva. Devemos ter a coragem de sair do nosso “agradável e confortável” senso comum. “Acontece que tendemos a descobrir algo agradavelmente reconfortante quando ouvimos melodias que sabemos de cor” (BAUMAN, 2008, p. 29). Esse distanciamento das “melodias que sabemos de cor”, das verdades cotidianas, a fim de assumirmos uma atitude questionadora de si mesmo e desejar conhecer por que e para que são nossas crenças e sentimentos é que podemos chamar de atitude filosófica. A atitude filosófica é o ato de reflexão questionadora própria do filósofo, daquele que, tendo a consciência de que o saber é sempre provisório e também infinito, renova e reinventa sempre as perguntas que formula. É assumir o risco de viver sem verdades. 10 Para o jusfilósofo brasileiro Miguel Reale (2002, p. 5-6): Filósofo autêntico, e não o mero expositor de sistemas, é, como o verdadeiro cientista, um pesquisador incansável, que procura sempre renovar as perguntas que formula, no sentido de alcançar respostas que sejam ‘condições’ das demais. A filosofia começa com um estado de inquietação e de perplexidade, para culminar numa atitude crítica diante do real e da vida. E é aí que nasce a Filosofia. Um saber metódico e rigoroso que possibilita chegar à raiz das coisas na interminável e incessante busca do sentido do “ser” e universo existencial. NOTA • Atitude reflexiva: é o ato de pensar as crenças, verdades e sentimentos de nosso cotidiano de forma profunda e com desejo de conhecer a essência das coisas. • Atitude filosófica: é a reflexão própria dos que não se cansam de admirar as coisas, e são capazes de se distanciar do cotidiano e de si mesmos. • Por que e para que a reflexão filosófica? Para um agir pessoal e social intencional e consciente, sabendo o porquê, para que e como são as coisas, crenças e sentimentos em sua essência. • A finalidade da reflexão filosófica é permitir um pensar e crer de forma crítica e livre de preconceitos. • O filósofo é inimigo de fanatismos e dogmatismos. É sobre os seguintes campos que se estende o saber filosófico: • Ética: do grego “ethos” – bons costumes –, diz respeito a escolhas inevitáveis e inadiáveis quando nos deparamos com condutas e hierarquia de valores que definem os caminhos a serem seguidos e os que devem ser evitados, levando em conta os fins a que se destina a justificativa do próprio agir. A Filosofia Ética tem como objeto de problematização a atitude humana em relação ao coletivo e suas consequências históricas, sociais e políticas. Em outras palavras, é um campo filosófico preocupado com o valor do bem e do agir humano que o tem como finalidade última. • Lógica: tem, como preocupação, as estruturas do pensamento e seus encadeamentos racionais que permitem conhecer o ser humano e seu mundo circundante. Através da lógica se discute se as inferências – deduções, as conclusões obtidas pela relação entre uma coisa e outra – são verdadeiras ou falsas. • Estética: do termo grego aisthetiké, significa “aquele que percebe”. É o campo da filosofia que se dedica ao estudo do belo nas manifestações artísticas e naturais; ao sentimento que desperta no indivíduo quando da sua contemplação. 11 • Epistemologia: termo de origem grega, “episteme”, relacionado com a natureza e limites do conhecimento humano. Normalmente definida como “Teoria do Conhecimento” ou “gnosiologia”, que no sentido mais restrito refere-se às condições – metodológicas e técnicas – sob as quais se produz o conhecimento. Como campo filosófico relaciona-se às possibilidades de alcançar a verdade no conhecimento. • Metafísica: do grego “metà” – além de – e “physis” – natureza, física – é um campo filosófico que discute questões para além do agir e conhecer, envolvendo discussão acerca da natureza do que se conhece, sobre o que permite indagar acerca da coisa em si. Metafísica indica o permanente esforço para atingir uma causa válida e racional para o sentido da existencialidade humana, que tem como ramo principal a ontologia – que investiga sobre as categorias ou essências do ser. Agora que já conhecemos os conceitos básicos e essenciais iniciaremos nossa viagem pela construção do direito ocidental. 3 OS PRIMEIROS NÚCLEOS HUMANOS Desde estudos arqueológicos é possível afirmar que a última espécie humana sobrevivente desde o Paleolítico Superior – em torno de 9 mil anos – encontrou nas grandes planícies fluviais e nos sítios litorâneos o ambiente propício para o desenvolvimento da agricultura e domesticação de animais. Pouco a pouco, as relações, unidas por complexas redes de parentesco, tornam-se hierarquizadas e a realização de tarefas cotidianas, como irrigação, cultivo e colheita, vai dando lugar a formas de organização social com poderosos mecanismos unificadores de comportamentos, que se transformam em normas de controle. A partir do quarto milênio a.C. surgem no Oriente Próximo as primeiras civilizações: Mesopotâmia, Egito, Palestina, Fenícia e Persa. Estas ocuparam uma regiãoque ficou conhecida como Crescente Fértil, limitada entre os rios Tigre, Eufrates e Nilo. 12 FIGURA 1 – CRESCENTE FÉRTIL - BERÇO DA CIVILIZAÇÃO FONTE: <http://www.infoescola.com/geografia/crescente-fertil/>. Acesso em: 11 abr. 2017. Além da estratégica passagem entre a África, Europa e Ásia, a região possuía uma rica biodiversidade e a presença de rios que forneciam abundância de água para irrigação, além de servir de meio de comunicação. NOTA Os estados que, atualmente, possuem terras localizadas no Crescente Fértil, são: Iraque, Jordânia, Líbano, Síria, Egito, Israel e Palestina, além da parte sul da Turquia e da área mais ocidental do território do Irã. A sofisticação técnica, como a astronomia para estabelecer um calendário preciso para controle da agricultura, matemática e hidráulica para as obras de irrigação e construção torna-se patrimônio intelectual importante para a sobrevivência do grupo, e concentra-se nas mãos de grupos ou castas privilegiadas (sacerdotais, guerreiras, reais...), que terão grupos subalternos, em não raras vezes conquistados pela força militar, encarregados da sobrevivência própria e dos “eminentes”. O avanço da agricultura permite a produção de excedentes econômicos permanentes, uma massa de trabalhadores subalternos produzindo e a dominação militar assistindo, no interior e entre os grupos, conflitos que deveriam ser neutralizados. 13 A fim de conter ou mesmo neutralizar as forças desagregadoras que colocam em risco o modo de organização e dominação social, são definidas forças neutralizadoras, dentre as quais consta o direito. Entretanto, as formas de controle impostas não se originam somente pela violência física, mas pela aceitação da dominação por conta da supremacia cultural, pelo estágio organizativo e tecnológico materialmente mais avançado dos grupos dominantes. Assim, vão se institucionalizando os modos de poder, dando origem às distintas formas de ordem política e jurídica das antigas sociedades. O poder político e jurídico nas primeiras civilizações vai assumindo as seguintes funções: • Garantir a submissão e trabalho compulsório dos grupos subalternos. • Difundir a ideologia da aceitação obtendo consenso e interiorização das relações de poder. • A manutenção do status quo dos grupos privilegiados. A ideologia de aceitação é fundamental para reduzir, ou mesmo invisibilizar, a violência coercitiva. Nesta etapa, as cosmogonias religiosas, os arquétipos, foram os meios mais eficientes para os grupos religiosos desempenharem a função neutralizadora. Seguramente, por esta razão o poder político e jurídico assume uma natureza sagrada, mediadora entre as divindades e os humanos. Na clássica obra “A Cidade Antiga”, Fustel de Coulanges demonstra que a origem do direito antigo está relacionada a rituais, crenças religiosas e tradições que se impunham acima da vontade dos homens, e os deuses estavam presentes na vida diária comandando a cidade. Diz Fustel: A religião, que exercia tão grande império sobre a vida interior da ci-dade, intervinha com igual autoridade em todas as relações que as cidades tinham entre si. É o que se pode ver observando como os homens daqueles tempos declaravam guerra, faziam as pazes e ce-lebravam alianças. Duas cidades eram duas associações religiosas que não tinham os mesmos deuses. Quando estavam em guerra, não eram apenas os homens que combatiam; os deuses também toma-vam parte na luta. E não se julgue que isso seja mera ficção poética. Houve entre os antigos uma crença muito arraigada e viva, em vir-tude da qual cada exército carregava consigo seus deuses. Estavam convencidos de que eles combatiam com os soldados, que os de-fendiam, e eram por eles protegidos (COULANGES, 2004, p. 181-182). NOTA Cosmogonia é especulação, idealização, sobre a origem do mundo constituída por narrativas mitológicas que se aproximam de religião. Os mitos, em geral, atribuem a divindades virtudes e poderes indiscutíveis. Mitos – da palavra grega mytus – são narrativas de múltiplas versões opostas ao real, mas mantidos vivos e perpetuados pelo grupo social. 14 DICA Confia a obra A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, em http:// bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Fustel%20 de%20Coulanges-1.pdf. Portanto, não é difícil compreender porque nos primórdios da humanidade a na-tureza religiosa das formas de controle acaba por definir como intérpretes das leis os sa-cerdotes. As manifestações do direito e as formas de sanção são marcadas por fortes ritualismos e atos simbólicos que acabam confundindo justiça com magia, e desde aí as práticas vão avançando de forma dinâmica até a identificação de direito com lei. Em síntese, dos costumes, do poder doméstico e da religião daqueles “primeiros tempos” foi se institucionalizando a sucessão hereditária das autoridades reais e fortalecendo o poder das cidades sobre as aldeias. Gilissen (2001) indica que as principais características do direito dos povos sem escrita podem ser: • A marca do direito dos povos antigos é a diversidade, uma vez que cada comunidade possuía seus costumes próprios e o isolamento. • A transmissão das regras de convivência pela tradição oral. • A forte relação de justiça com religiosidade. • Por não ser escrito, o direito antigo é bastante limitado quanto à abstração e generalidade, sendo, em geral, reproduções de casos concretos. • Identificação de direito com moral e religião. • As fontes do direito relacionadas a costumes, práticas ancestrais, preceitos verbais etc. 4 O DIREITO DOS POVOS DA MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO A passagem das formas arcaicas de sociedade para as primeiras grandes civilizações está relacionada como o surgimento das cidades, a invenção e domínio da escrita, o advento do comércio e uso de moeda. Os documentos escritos mais antigos começam a aparecer em torno de 3000 a.C. no Oriente Próximo, na Mesopotâmia e no Egito. Portanto, pouco a pouco a transmissão oral, que acabou por preservar a memória cultural e identidade dos povos antigos, adquire forma através da escrita. 15 A seguir consta um dos documentos jurídicos mais antigos escritos da humanidade. Trata-se do Código de Ur-Nammu, criado por um rei sumério de mesmo nome, escrito em torno de 2050 a.C., “ano em que Ur-Nammu fez justiça na terra”, que incluía regras sobre impostos, procedimentos de tribunais e leis cerimoniais. Leis que se aplicavam somente a mulheres escravas e castigos cruéis, como ter o insolente a boca lavada com sal, aplicação de multas pecuniárias, embora limitadas e atualmente absurdas, foram importantes avanços para o estabelecimento de limites ao poder real. FIGURA 2 – FRAGMENTO DO CÓDIGO DE UR-NAMMU FONTE: <https://hypescience.com/10-documentos-mais-antigos-do-seu-tipo/>. Acesso em: 11 abr. 2017. Observe bem o tipo de escrita. Trata-se do que se chama escrita cuneiforme, em forma de cunha, criada pelos sumérios por volta do ano 3500 a.C. Juntamente com a escrita egípcia, os hieróglifos formam as mais antigas inscrições escritas em tabuletas de argila. 16 NOTA Escrita cuneiforme é o nome dado a certos tipos de escritas feitas com auxílio de cunhas. Inicialmente, eram marcas bastante simples, posteriormente se tornando mais abstratas e mais sofisticadas, graças ao trabalho dos antigos escribas. Ajustando a posição relativa da tabuleta ao estilete, o escriba poderia usar uma única ferramenta para fazer uma grande variedade de signos. ESCRITA CUNEIFORME FONTE: <http://universodahistoria.blogspot.com.br/2010/07/escrita-cuneiforme. html>. Acesso em: 11 abr. 2017. Dos povos do Oriente Próximo, destacam-se: • Egito: embora não tenham transmitido propriamente códigos, os egípcios legaram fontes indiretas nos textos sagrados e narrativas literárias e, ainda, foi a primeira civilização a transmitir um sistema de normas individualistas. • Mesopotâmia: a região compreendida entre os rios Tigre e Eufrates foi ocupada sucessivamente por distintos povos, como os sumérios, acadianos, hititas e assírios, que redigiram “códigos” com regrasde direito bastante sofisticadas e com algum nível de abstração. • Hebreus: povo antigo que legou nos Livros Sagrados preceitos jurídicos, posteriormente perpetuados pela Bíblia cristã. Brevemente, vamos a seguir destacar alguns aspectos dessas extraordinárias culturas antigas. 17 A civilização egípcia foi uma das mais influentes na antiguidade. Ao longo do Vale do Rio Nilo, considerado por Heródoto (484 a.C.- 425 a.C.), o “pai da história”, como “dádiva dos deuses”, o Egito se edificou como extraordinário reino organizado em pequenas províncias – nomos – e governado pelo faraó, um deus vivo. Além de desenvolverem técnicas agrícolas eficazes, eram excelentes matemáticos, experientes na área da medicina, na astronomia e, sobretudo, legaram para a posteridade preciosas obras arquitetônicas e de engenharia. Entretanto, o fato é que, apesar de toda essa grandiosidade e extraordinário legado no campo do direito, os egípcios foram mais tímidos quando consideramos seus “vizinhos” do Oriente Próximo, uma vez que o que se espera é que a condição de domínio cultural e político fosse acompanhada de sofisticação jurídica. Os poucos documentos propriamente jurídicos que restam, além da péssima conservação ao longo do tempo, dificultam a reconstrução e sistematização do direito egípcio antigo. Entretanto, resumidamente pode-se afirmar que a fonte principal do direito era a vontade do faraó, que contava com um grupo de “conselheiros” presidido pelo vizir, espécie de chanceler, que administravam um vasto e próspero império. Da “boca” do faraó era pronunciada o Maat (direito), símbolo da justiça. Ao que parece, os egípcios acreditavam em uma espécie de lei ou ordem universal eterna basilar do próprio poder, de natureza divina a qual o faraó tinha o dever de velar. Segundo o historiador de direito Jonh Gilissen (1995, p. 53): Maat é o objetivo a prosseguir pelos reis, ao sabor das circunstâncias. Tem por essência ser o equilíbrio, o ideal, a esse respeito, é por exemplo fazer que as duas partes saiam do tribunal satisfeitas. Como é neste preceito que reside a verdadeira justiça, Maat pode ser traduzido por Verdade e Ordem, como Justiça propriamente dita. FIGURA 3 – DEUSA MAAT FONTE: <http://arturjotaef-numancia.blogspot.com.br/2013/08/maat-deusa-metis-dos-egipcios-por-artur. html>. Acesso em: 11 abr. 2017. 18 A figura anterior é uma representação da deusa Maat. Observe que está com as asas abertas, pronta para voar, como a alma dos mortos e acompanhar a barca solar de seu irmão Rá. Esposa de Tot, possui na cabeça a pena da verdade, que pesava sobre todos no momento do julgamento do morto quando ela colocava sua pluma sobre um dos pratos da balança e no outro oposto o coração do falecido. Se os pratos ficassem em equilíbrio, a alma seguia sua viagem. Se o coração fosse mais pesado, era devolvido para Ammut (deusa do inferno, criatura parte hipopótamo, parte leão e parte crocodilo) para ser devorado. NOTA Maat: termo de origem copta, que é um sistema de escrita originado no século IV a.C. no Egito, que expressa uma espécie de idealização filosófica de justiça relacionada com verdade e ordem, que deveria orientar as decisões dos governantes. FIGURA 4 – A PENA DE MAAT É O CONTRAPESO PARA O CORAÇÃO DO MORTO FONTE: <http://arturjotaef-numancia.blogspot.com.br/2013/08/maat-deusa-metis-dos-egipcios-por-artur. htm>. Acesso em: 11 abr. 2017. Há uma bela estória preservada por antigos papiros que serve como fonte de compreensão para a prática da justiça egípcia. Trata-se do “Conto do Camponês Eloquente”, datada de 2070 a.C., que mostra como as palavras sábias e justas convencem e encantam e que a indignação com a injustiça e com a maldade humana é própria da condição do homem ao longo da história. 19 NOTA “Conto do Camponês Eloquente” se trata de um antigo conto que pode ser sintetizado da seguinte maneira: Um camponês andava pelo Egito com seu burrico vivendo de pequenos serviços que prestava. O camponês andava pelo Egito, com seu jegue, vivendo de pequenos serviços que prestava nas fazendas, mas ao passar por uma certa propriedade, foi surpreendido pelo administrador local que, por maldade, queria tomar o animal do pobre homem. Para lograr êxito, o perverso homem jogou um longo tecido no chão, forçando o camponês a desviar o caminho e passar pela plantação, destruindo parte do que pertencia ao dono da fazenda. O administrador puniu o camponês, retendo seu animal e os poucos bens que o pobre possuía e o agrediu, certo de que sairia impune da injustiça que cometera. Inconformado, o camponês foi até a vila, onde vivia o proprietário da área; foi recebido e fez sua queixa. O proprietário encantou-se com os argumentos do camponês. Pelo prazer de ouvir tão bom orador, adiava a solução do caso para poder ouvir os belos e bons argumentos. Até que, por fim, o camponês recorreu ao faraó, que também encantado, ordenou que um escriba copiasse os argumentos do camponês bem-falante. O caso permanecia aberto. Irritado, o camponês deixou a cidade, desesperado com a injustiça que sofria, e o dono das terras ordenou que se capturasse o pobre homem. Para espanto do pobre homem, o proprietário-juiz atendeu sua súplica, ordenando a devolução do seu animal e dos bens sequestrados pelo injusto administrador. Determinou também que este último entregasse ao camponês tudo o que possuía. O administrador ficou pobre, como o camponês que um dia humilhou. Em recompensa, o camponês passou a administrar a propriedade. Em geral, os historiadores costumam considerar que o povo egípcio era adepto de punições curiosas e cruéis, chegando a serem sádicas. A flagelação era adotada em muitos casos, assim como o uso de varas para arrancar confissões. Abandono à voracidade dos crocodilos, estrangulamento, decapitação, embalsamamento vivo e empalhamento eram formas de execuções. Muitos autores ressaltam importantes institutos jurídicos, como Família, conside-rada a célula social por excelência, era restrita ao pai, mãe e filhos menores que ganhavam emancipação após certa idade; o Testamento, que permitia total liberdade de deixar a sal-vo a reserva hereditária dos filhos. Os bens móveis e imóveis eram passíveis de alienação, havendo comum prática de comércio, evidenciando atividade contratual frequente. Em síntese, a sociedade egípcia dominada pelas castas sacerdotais foi marcada por toda uma cultura desenvolvida a partir da profunda religiosidade dominada por um poder teocrático cuja obrigação era preservar o princípio de Maat. Suas crenças e cultos serviam de base para toda organização política e jurídica, bem como na literatura, arte, medicina e astronomia. 20 FIGURA 5 – GRAVURA NA PAREDE DO TEMPLO - OFERENDA À MAAT FONTE: <https://www.projuris.com.br/como-era-o-direito-no-egito-antigo>. Acesso em: 11 abr. 2017. Nas paredes dos templos se poderia ver o faraó fazendo suas oferendas a Maat e aceitando suas dádivas. Chama-se direito hebraico (Mischpat Ibri) ao conjunto de regras dos antigos israelitas, povo de origem semita, marcado por sua natureza e origem divina. Desde o monoteísmo é uma lógica de direito que tem como núcleo a Torah (Pentateuco), composta por cinco livros sagrados: Gênesis (BereshitI), Êxodo (Shemot), Levítico (Va-yikra), Números (Ba-midbar) e Deuteronômio (Debarin). São no total 613 leis que compõem a Torah, sendo 365 preceitos negativos e 248 positivos. Segundo a tradição, Moisés é a figura-símbolo da nação israelita, escolhido por Deus para receber a revelação do Decálogo – dez mandamentos –, que acabou se tornando o grande princípio ético, jurídico e religioso desse povo e assumido pelo cristianismo. 21 FIGURA 6 – MOISÉS COM AS LEIS - QUADRO DE REMBRANT (MUSEU DE BERLIM) FONTE: <https://institutopoimenica.com/2012/09/17/moiss-e-as-tbuas-da-lei-rembrandt/>. Acesso em: 11 maio 2017. Segundo as escrituras sagradas, todo fundamento de justiça é divino e somente em Deus ela é perfeita e absoluta. Tendo como referência principal o amor ao próximo e a caridade, o justo é aquele que dá omelhor de si para agir segundo as leis de Deus, ajudando no progresso da humanidade sem medir esforços para ajudar ao próximo. As leis hebraicas, assim como outros povos da antiguidade, de caráter civilista, diziam respeito a negócios entre particulares, ao uso do penhor como garantia de débito, não permitindo a exploração de seu próximo, razão pela qual alguns bens imprescindíveis para a sobrevivência eram impenhoráveis, não podendo ser cobrada dívida no ambiente doméstico para não humilhar a família. “Se emprestares alguma coisa a teu próximo, não invadirás a casa para te garantires com algum penhor. Ficarás do lado de fora, e o homem a quem emprestaste, te trará fora o penhor” (Dt. 24:10-11). Na Torah, estão os principais institutos jurídicos do povo hebreu, como: • Família: de estrutura patriarcal, o pátrio poder era vitalício. As filhas poderiam ser vendidas como escravas e havia a previsão de servidão por dívida. A esposa poderia ser comprada e paga com moedas ou serviços, podendo ser a mulher repudiada, o que não ocorria com os homens, cuja punição apenas existia em caso de adultério praticado com mulher casada. • Sucessão: as mulheres não tinham direito sucessório e apenas o primogênito tinha direito à herança. 22 • Penal: o conceito de crime e castigo era de natureza religiosa, tendo como pena comum a morte por apedrejamento. São considerados crimes graves os delitos contra a divindade – como idolatria e blasfêmia –, contra seu semelhante – lesões corporais, homicídio etc. –, delitos contra a propriedade – roubo, falsificações, furto; os contra a honestidade – adultério, sedução etc. –, e contra a honra – falso testemunho e calúnia. • Penas: desde penas corporais, como pena de morte e flagelação, até a excomunhão, além do uso da famosa pena de talião: • Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queima-dura, ferimento por ferimento, golpe por golpe (Êx. 21.23-25). Destaca-se que o direito talmúdico – doutrina, estudo e interpretação dos livros sagrados – ainda é pouco estudado em nosso meio acadêmico, o que, por sua complexidade, sem dúvida, constitui um imenso legado à modernidade, sobretudo pela sua inserção no cristianismo ocidental, como adiante será estudado. 5 O CÓDIGO DE HAMURABI: UMA PRECIOSA HERANÇA DA MESOPOTÂMIA A região da Mesopotâmia é a região do Oriente Próximo que legou importantes escritos com relatos dos povos que lá habitaram desde o IV milênio antes de nossa era. Os sumérios foram os primeiros habitantes a terem a preocupação de desenvolverem um sistema de escrita, e por esta razão é possível que eles tenham sido os criadores dos primeiros códigos. O Código de Ur-Nammu, datado de aproximadamente 2040, é importante documento histórico constituído de leis registradas em um maciço de pedra – estela, palavra de origem grega (stela), que significa “pedra erguida” –, em monolitos com esculturas e/ou textos em relevo. FIGURA 7 – A ESTELA DE UR-NAMMU FONTE: <https://br.pinterest.com/pin/446137906816601475/>. Acesso em: 11 abr. 2017. 23 Outros códigos foram encontrados na região, tais como as Leis de Eshnunna, datado de cerca de 1939 a.C., encontrado no sítio arqueológico de Tell Harmal. Bem como o Código de Lipit-Ishtar em língua suméria, com traços de escrita acádia, escrito por volta do ano 1860 a.C. Contudo, estudiosos chamam a atenção para o fato de que esses códigos, chamados de pré-hamurábicos, não formam propriamente um código no sentido moderno do termo, uma vez que as leis das cidades não eram tratadas em tais documentos. Além de que, a preocupação em sistematizar e organizar as leis em códigos é um fenômeno próprio da modernidade, como adiante veremos. De todos os antigos códigos da Mesopotâmia, sem dúvida, o mais destacado é o Código de Hamurabi, encontrado em 1902 pelo arqueólogo francês Jacques de Morgan no atual Irã e, atualmente, encontra-se no Museu do Louvre. Escrito em letras cuneiformes em um monólito de pedra, é certo que se trata de um conjunto de leis promulgadas pelo rei Hamurabi (1726 a.C. – 1686 a.C.), que governou a Babilônia transformando-a em um grandioso império. No preâmbulo do Código, com 282 artigos, se lê o seguinte texto: Quando o alto Anu, Rei de Anunaki e Bel, Senhor da Terra e dos céus, determinador dos destinos do mundo, entregou o governo de toda a humanidade a Marduc; quando foi pronunciado o alto nome da Babilônia; quando ele a fez famosa no mundo e nela estabeleceu um duradouro reino cujos alicerces tinham a firmeza do céu e da terra, por esse tempo Anu e Bel me chamaram, a mim Hamurabi, o excelso príncipe, o adorador dos deuses, para implantar justiça na terra, para destruir os maus e o mal, para prevenir a opressão do fraco pelo forte, para iluminar o mundo e propiciar o bem-estar do povo. Hamurabi, governador escolhido por Bel, sou eu; eu o que trouxe a abundância à terra; o que fez obra completa para Nippur e Dirilu; o que deu vida à cidade de Uruk; supriu água com abundância aos seus habitantes; o que tornou bela a nossa cidade de Brasíppa; o que encelerou grãos para a poderosa Urash; o que ajudou o povo em tempo de necessidade; o que estabeleceu a segurança na Babilônia; o governador do povo, o servo cujos feitos são agradáveis a Anuit. A breve leitura nos permite compreender quem foi Hamurabi e suas virtudes como “executor da justiça”, “escolhido pelos deuses”, de “sabedoria incomparável” e tantos outros atributos que tornavam seu Código uma autêntica obra-prima para toda posteridade. 24 FIGURA 8 – CÓDIGO DE HAMURABI FONTE: <https://i.pinimg.com/564x/42/a1/25/42a125cc95523e92bb0c0dbcd278dbb6.jpg>. Acesso em: 11 abr. 2017. Na parte superior, está o preâmbulo e a figura de Hamurabi diante do deus sumé-rio Shamash recebendo o Código, representado por uma régua. A seguir estão dispostos os artigos que evidenciam institutos jurídicos, como contratos, vendas, arrendamentos, empréstimos a juros, adoção etc., sendo bastante conhecidas as penas punitivas aplica-das, que variavam de mutilações à morte na fogueira, por enforcamento e empalamento. De todos os artigos, o mais conhecido é o 196, que diz: “Se alguém vazou o olho de um homem livre, ser-lhe-á vazado o seu também”. Repete a famosa lei de Talião, que, como já vimos, era referência comum nos povos antigos para aplicação das penas. DICAS Sugerimos, a você, conhecer melhor todos artigos do Código de Hamurabi, no site http://www.ebanataw.com.br/roberto/pericias/codigohamurabi. htm. Você se surpreenderá com a riqueza jurídica desse documento. Em síntese, estudando brevemente os povos antigos, não é difícil perceber que, em diferentes momentos da história e sob distintas formas, vamos sempre encontrar um conjunto de normas que espelham os valores, a cultura, as relações de poder e o modo de vida da sociedade, e a esse instrumento magnificamente construído vamos chamar de Direito e Justiça, e em seu nome continuamos a marcha da história e edificamos nossas civilizações. 25 RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você aprendeu: • O direito é um fenômeno cultural que surge na medida em que as relações humanas se tornam mais complexas. • Nos primórdios da civilização, não há separação entre direito, religião e moral, uma vez que há uma mesma fonte de produção das normas de regulação social: o sobrenatural. • Com diversidade, é possível identificar elementos comuns entre as distintas formas de direito nos povos antigos. • Os povos da Mesopotâmia elaboraram os primeiros códigos da humanidade de que se tem notícia. • Os hebreus criaram seu direito com base em sua profunda fé e religiosidade e legaram, através do cristianismo, princípios jurídicos relevantes à sociedade contemporânea. • Os egípcios, embora sem a mesma concepção de direito que os demais povos antigos, possuíam regras de conduta relacionadas com a crença na vida pós-morte. 26 AUTOATIVIDADE 1 Os documentos escritos mais antigos começam a aparecer em torno de 3000 a.C. no Oriente Próximo, na Mesopotâmiae no Egito. Portanto, pouco a pouco a transmissão oral, que acabou por preservar a memória cultural e a identidade dos povos antigos, adquire forma através da escrita. Assinale a alternativa CORRETA, que apresenta alguns acontecimentos que, estão relacionados com a passagem das formas arcaicas de sociedade das primeiras grandes civilizações: a) ( ) Surgimento das cidades, a invenção e o domínio da escrita, o advento do comércio e uso da moeda. b) ( ) Por não ser escrito, o direito antigo é bastante limitado quanto à abstração e generalidade, sendo em geral, reproduções de casos concretos. c) ( ) Apenas a transmissão das regras de convivência pela tradição oral. d) ( ) Apenas os costumes do poder doméstico e da religião. 2 Segundo o historiador do direito John Gilissen (2001), os povos sem escrita da anti-guidade possuem algumas características comuns, como regras jurídicas abstratas, poucas e limitadas, direito e religião umbilicalmente entrelaçados, dentre outras. So-bre os povos antigos sem escrita, qual foi a região ocupada pelos que se destacaram? FONTE: GILISSEN, J. Introdução histórica ao direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. a) ( ) O vale do chamado Crescente Fértil. b) ( ) Os vales e montanhas do Rio Mekong. c) ( ) O deserto do Saara. d) ( ) As montanhas dos Andes. 3 A civilização egípcia herdou para a história notável conhecimento no campo da arte, medicina, engenharia, matemática etc. Foi uma das mais avançadas e complexas sociedades do mundo antigo. Entretanto, no campo jurídico, propriamente dito, o legado egípcio foi tímido quando comparado aos povos da Mesopotâmia. Considerando o aprendizado acerca da cultura egípcia, descreva o conceito de justiça daquela civilização. 4 O monólito de pedra no qual foi esculpido o Código de Hamurabi foi encontrado no ano de 1901, em uma expedição arqueológica comandada por Jacques de Morgan, na atual região do Irã. O Código, entre outras significações que possui, representa uma importante mudança para os povos da região. Sobre essa mudança, assinale a alternativa CORRETA: 27 a) ( ) A mudança da tradição oral para a escrita. b) ( ) A introdução da pena de prisão em substituição da pena de morte. c) ( ) O fim da crença na origem divina das leis. d) ( ) A criação do direito a partir do poder político. 28 UNIDADE 1 TÓPICO 2 - O MUNDO GRECO ROMANO E SEU LEGADO 1 INTRODUÇÃO No mundo grego antigo, encontramos a semente das primeiras reflexões e indagações de natureza filosófica, política e jurídica a partir da qual floresceu o pensamento ocidental. Por exemplo, no campo da política, a cidade de Atenas legou ao mundo a ideia de democracia. Grandes pensadores tornaram-se permanente fonte intelectual a todas as gerações que os seguiram. O modo de vida, a cultura helênica corporificada nas majestosas obras literárias e os princípios e valores éticos fazem do antigo mundo grego seguramente um dos berços da humanidade. O mundo grego antigo, universo helênico, não era uma unidade, mas sim um conjunto de pólis independentes. FIGURA 9 – GRÉCIA NO SÉCULO V a.C. FONTE: <http://www-storia.blogspot.com.br/2014/05/as-grandes-guerras-no-mundo-grego.html>. Acesso em: 11 abr. 2017. 29 A concepção de vida cosmopolita grega, a vida na pólis, desenvolveu-se lentamente a partir de um processo de sedentarização com a desagregação dos primitivos clãs. A origem no Período Micênico (1500-1100 a.C.) confunde-se com lendas e mitos que coincidem com a Idade do Bronze. Ao que se sabe, os antigos habitantes da região foram os aqueus, cários, jônios e dórios, provavelmente originários da Anatólia, com vínculos de parentesco que se espalharam após guerras locais. A geografia da região, caracterizada por montanhas e terras de pouca fertilidade e proximidade com o mar, fez com que esse povo se expandisse. NOTA A península da Anatólia, “terra do hitita”, também conhecida como Ásia Menor, é banhada pelo mar Negro ao norte, o Mediterrâneo a oeste, o mar de Mármara a noroeste. Pode-se sintetizar a evolução histórica grega da seguinte forma: QUADRO 1 – PERÍODOS DA HISTÓRIA GREGA Período pré-homérico Período inicial de desenvolvimento cretense e minoico. (1900-1100 a.C.) A sociedade grega como conhecemos ainda não havia surgido. Este período é descrito pelo poeta Homero, que narra em Período homérico suas histórias “Ilíada” e “Odisseia” a etapa fundacional do povo (1100-700 a.C.) grego, em que mito, deuses e semideuses conviviam entre os homens. Período de Etapa sem a utilização da escrita, o que dificulta sua descrição obscuridade histórica. (1150-800 a.C.) Período arcaico Consolida-se o conceito político de pólis, ao mesmo tempo em que é criado o alfabeto fonético e há o desenvolvimento (800-500 a.C.) urbano e econômico. Período clássico Auge do Império Grego, destacando as cidades-estados de Esparta e Atenas. Etapa marcada por dezenas de guerras (500-338 a.C.) internas (Guerra do Peloponeso) e externas (guerras médicas). Período helenístico Período marcado pela grande expansão macedônica, fazendo (338-146 a.C.) fundir-se a cultura grega com outras culturas orientais. FONTE: A autora 30 Nas distintas pólis, mesmo nas grandes Atenas e Esparta, havia especificidades quanto aos modelos políticos que vigoraram em inúmeras ocasiões, são eles: • Tirania: Diferente do que entendemos hoje, a tirania caracterizava-se pela tomada do poder por um indivíduo nobre que elaborava leis e projetos políticos, alguns para diminuir as desigualdades sociais, como divisão igualitária da terra e perdão de dívidas. • Democracia: Grande conceito político legado ao mundo ocidental que se exercia através da eleição de seus membros sorteados ou escolhidos entre os cidadãos. • Aristocracia ou oligarquia: Nesse modelo, o cargo de magistrado era hereditário e predominava a decisão dos conselhos. Ao longo da história grega floresceram como principais cidades: • Atenas: Principal cidade com forte desenvolvimento econômico. Berço da democracia e da filosofia, foi fundada pelo Jônios, liderou a liga das cidades democráticas (liga de Delos). • Esparta: Sua grande característica diz respeito à sua educação. Os meninos já eram treinados e educados com um único propósito: servir Esparta. Quando a criança completava sete anos de idade, a responsabilidade de orientá-lo não cabia mais aos seus pais e sim ao Estado espartano. FIGURA 10 – MENINO TRANSFORMADO EM SOLDADO FONTE: <http://kid-bentinho.blogspot.com.br/2013/12/9-razoes-que-mostram-o-quao-dificil-era.html>. Acesso em: 11 abr. 2017. DICAS No site a seguir, você encontrará interessantes informações do modo de vida espartano e quão difícil era viver naquela cidade e naquela época: http://kid-bentinho.blogspot.com.br/2013/12/9-razoes-que-mostram-o- quao-dificil-era.html. 31 Em particular, os atenienses consideravam a vida pública, a vida na pólis, a forma mais perfeita de convivência humana que deveria ser aprimorada pelos homens. No período áureo da democracia (entre os anos 580 a 338 a.C.), os cidadãos, homens livres e iguais, deliberavam sobre seus destinos políticos. A concepção de cidadania grega é muito distinta da atual. Apenas eram cidadãos os nascidos em Atenas, homens e maiores de 20 anos, ficando excluídos os estrangeiros (metecos), as mulheres e a grande massa de escravos. Para os atenienses, o homem que não era político ou não se interessava pela política era um inútil. Reunidos na Ágora, espécie de praça pública, deliberavam com entusiasmo sobre as grandes questões da pólis, desempenhando o mesmo papel que hoje é reservado aos Parlamentos de Estado. Esse era o sentido de democracia: o cidadão decidindo diretamente sobre seu destino. Porém, se compararmos aos dias atuais, o procedimento não era democrático, uma vez que poucos participavam e decidiam. Segundo os historiadores, Atenas, por volta do ano 480 a.C., contava com 30.000 cidadãos (homens livres e adultos), 90.000 mulheres e crianças, e mais a grande massa de escravos e estrangeiros, somando um total de 150.000 habitantes.No auge dessa civilização, em 430 a.C., Atenas chegou a ter 250.000 habitantes, sendo 40.000 cidadãos, 120.000 mulheres e crianças, 20.000 estrangeiros e 60.000 escravos. FIGURA 11 – ÁGORA - SÍMBOLO DA DEMOCRACIA FONTE: <http://pra-pensar.org/wp/blog/2014/04/16/a-democracia-nao-existe-viva-a-democracia/>. Aces- so em: 11 abr. 2017. 32 Em Atenas, pelas constantes guerras e condições de saúde da época o índice de mortalidade era muito alto e, consequentemente, a longevidade era baixa. A cada 100 adultos com 20 anos, 70 viviam até 30, 25 até os 60 e somente 7 vivam até os 80 anos. A mortalidade era maior entre as mulheres porque a gestação e parto eram de alto risco. Os homens casavam-se, em geral, após o serviço militar, após os 30/40 anos e as mulheres perto dos 20. Os escravos trabalhavam ao lado de seus senhores na agricultura, no serviço doméstico e públicos, como burocratas, recebendo tratamento quase familiar, pouco se distinguindo dos homens livres, seja pela vestimenta, seja pela cultura ou modos. Os escravos eram prisioneiros de guerra e de pirataria, vendidos por mercadores estrangeiros, possivelmente capturados nas guerras. O que chama a atenção de muitos historiadores é que se tem poucas notícias de rebeliões de escravos, diferente de Roma, como veremos a seguir. Nas relações familiares se conhecia o divórcio recíproco, com iguais direitos para homens e mulheres. Praticavam de maneira legal o abandono de crianças. Diferenciavam-se na maneira de se vestir, tornando visível a diferença entre pobres e ricos, uma vez que as roupas tendiam a ser semelhantes para as mesmas classes sociais. Talvez por essa razão se considerava crime o furto de roupas no ginásio de esporte. A religiosidade grega era constituída por festivais, rituais, divertimentos, sacrifícios, oráculos etc. Era um tipo de religiosidade pouco dogmática e pouco doutrinária. Nos diz Finley (1998, p. 10) que: O que falta – exceto entre raros pensadores isolados, sem influência sobre o povo, como por exemplo, Platão e Epicuro – era um conjunto de doutrinas sistematicamente formulado, um dogma ou um credo. Assim, podia também ocorrer blasfêmia ou sacrilégio – mau procedimento para com os deuses, o que lhes provocaria a ira, se não fosse punido – porém nem ortodoxia nem heresia. Toda religiosidade grega era inerente ao politeísmo, que foi aumentando pelo acréscimo ao longo dos séculos de seres sobrenaturais – deuses, semideuses, espíritos, demônios, heróis etc. – com “personalidades” peculiares. Não era possível conhecer a to-dos e muito menos descrevê-los. Somente na Teogonia de Hesíodo constam 350 nomes. 33 NOTA “Teogonia” é um termo que vem do grego “teo” (deus) e “gonia” (nascimento). Poema épico escrito provavelmente no séc. XIII a.C., possui 1.022 versos, estabelece uma ordem cronológica e hierárquica entre os deuses e demais entes mitológicos que faziam parte do imaginário grego da época. Trata-se de uma obra grandiosa, comparada às grandes narrativas de Homero. TEOGONIA FONTE: <https://www.resumoescolar.com.br/historia/teogonia-de-hesiodo/>. Acesso em: 11 abr. 2017. Cada comunidade cultuava suas divindades ou deuses protetores, para os quais havia cultos cívicos e cada família reconhecia a deusa Héstia, protetora do lar. Obedeciam aos oráculos e participavam das festividades promovidas pelo Estado ao ar livre. Faziam altares e muitos sacrifícios e nada se prendia a uma autoridade central. Não havia “igrejas”. Portanto, não havia seres humanos com missão divina. Nos diz Finley (1998, p. 13) que “a palavra grega hiereus (sacerdote) normalmente se refere a um celebrante leigo encarregado da administração do culto público”. Em Atenas, o mais importante celebrante era um Arconte, que recebia o nome de baliseus. Regras e procedimentos lhe eram impostos e ocupava o cargo por um curto período de tempo. 34 NOTA “Arconte” eram os antigos magistrados, cargo reservado somente aos cidadãos e filhos da pólis. Politicamente, inexistia uma autoridade grega central. As pólis surgiram no período helênico, que foi a fase áurea. Antes disso, o mundo era constituído por pequenas comunidades autônomas que se autodenominavam poleis. Ocasionalmente, faziam alianças entre si para guerrearem entre si ou comercializarem, mas nunca a ponto de impor seus costumes ou cultura. Portanto, não havia uma uniformidade ou unidade entre os gregos antigos. Entendem muitos historiadores que esta autonomia e ausência de autoridade central contribuía para a preservação do modo de pensar e ser do povo grego, porque não havia contradição entre o “império” e o “súdito”, o que não despertaria sentimento ou necessidade de resistência. Porém, foi a política – vida na pólis – que permitiu florescer a civilização grega a partir do séc. VIII a.C. Após o longo período chamado de homérico, porque nos é permitido conhecer através das narrativas épicas de Ilíada e Odisseia, a realeza entra em crise, cedendo espaço à aristocracia, que se apropria progressivamente das prerrogativas de poder. Nesta fase, o poder é repartido entre as elites, que o desmembram em três funções: militar – exercida pelo Polemarco; administrativa – exercida pelo Arconte e religiosa – exercida pelo Arconte Baliseus. Neste primeiro momento, o poder começa a sair das mãos da aristocracia (esfera privada) e vai sendo transferido para a ordem pública. Assim, o poder não é mais exercido por uma pessoa. O poder – arché – passa a ser uma função cujo exercício é escolhido por tempo determinado e começa a ser apropriado pelos que possuíam direito de cidadania. Ao longo da história de Atenas, principalmente entre os séculos VIII e IV a.C., há uma crescente expansão das prerrogativas políticas para os homens livres, que vai edificar o grande legado daquela civilização: a democracia, chamada como isonomia – igualdade perante a lei. Esse regime tornou-se complexo, caracterizado pela rotatividade de controle e exercício de poder, assegurando a maior participação possível. Esse regime teve como base as reformas políticas promovidas por Clístenes (509-508 a.C.), que democratizou os mecanismos de participação, csegundo os quais cada cidadão, em algum momento de sua vida, seria governante. Dessa maneira, rompiam-se as barreiras entre governantes e governados e os cidadãos tornam-se “senhores de seu destino”. 35 É a partir dessas bases que vamos compreender o direito grego, porque é o direito que estará nas bases de sustentação desse regime. 2 A CONCEPÇÃO DE DIREITO E JUSTIÇA GREGA É comum se dizer que os gregos, ao contrário dos romanos, na tradição jurídica pouco legaram ao Ocidente. Essa é uma meia verdade! Primeiramente, a filosofia grega teve papel relevante para a edificação do pensamento jurídico moderno. Conforme o estudo da Filosofia do Direito, a concepção de lei como expressão da vontade de uma coletividade e como regulação da vida comum na cidade – na pólis – é que norteou a filosofia grega para pensar a ordenação do mundo a partir da racionalidade. Os sofistas, com seus debates filosóficos, contribuíram para se pensar sobre as grandes questões humanas, a liberdade e o sentido da justiça. Como se faz a lei? A quem elas servem e para que servem? Essas questões faziam com que os sofistas fossem malvistos. Talvez porque ensinavam o que todos deveriam saber: o bem e o direito à liberdade. Os debates filosóficos que se aprofundam e se reorientam com Sócrates, Platão e Aristóteles, que foram além do senso comum, contribuíram para a criação de um espaço público em que o discurso vai muito além do mito. Até então eram os poetas-videntes que recebiam das deusas, ligadas à memória (deusa Mnemosyne), uma iluminação, revelação sobrenatural, que dizia como os homens deveriam tomar suas decisões segundo a vontade dos deuses. Com os filósofos surge a política e a ideia de que os homens deveriam seguir as leis e a justiça segundo a vontade de cada um, expressa publicamente, que deveria convencer aos demais. O diálogo, a palavra partilhada, passa a conduzir a decisão racional. A políticavaloriza o humano, seu pensamento e capacidade de persuasão. A solidariedade cívica da vida na pólis exige regras universais e justas. Sobre o assunto, Lima Lopes (2012, p. 22) traz que: Talvez não seja por acaso que os estoicos no final do século IV a.C. e nos séculos seguintes completem mais um salto qualitativo na direção da universalidade. Se acima das solidariedades familiares é possível construir uma solidariedade cívica, então é possível que haja uma solidariedade ainda mais universal, cosmopolita. Num mundo construído pelo império helenístico e depois pelo império romano, num Mediterrâneo totalmente helenizado, os estoicos vão pregar uma cidadania universal, um pertencimento ao gênero humano. E os juristas romanos serão, a seu tempo e a seu modo, influenciados pelas reflexões estoicas, para falarem de ius gentium. Lima Lopes (2012) ainda nos esclarece muito bem como os debates filosóficos acerca da pólis vão edificando uma civilização que será vista pelos estrangeiros e por si mesmos como um modelo. 36 Compreender o direito e a justiça grega é compreender o próprio modo de vida na cidade como resultado da superação dos antigos vínculos familiares, portanto, deve-se estudar o direito grego desde a consolidação da política e da filosofia, uma vez que as leis e seus fundamentos brotam das relações entre os cidadãos unidos pelo sentimento de justiça. Porém, estudar direito grego exige do pesquisador um grande esforço, uma vez que há precariedade de suas fontes, mas quais são as fontes do direito grego? Para o historiador Gilissen (1995, p. 11), são cinco as fontes do direito: • As epopeias de Homero (Ilíada e Odisseia). • Os discursos e obras literárias e filosóficas. • As inscrições jurídicas encontradas nas obras arquitetônicas. • Os fragmentos de leis. DICAS Pesquise a respeito da famosa Biblioteca de Alexandria, que reuniu as maiores obras da antiga Grécia. Diziam que reunia os “livros de todos os povos da Terra”, chegando a reunir milhares de antigos pergaminhos e rolos de manuscritos. Diversas narrativas contam acerca da destruição. Há um interessante filme que, certamente, você gostará, “Alexandria”, em https://www.youtube.com/watch?v=6UURHhHiIc4. Por exemplo, na conhecida e clássica obra de Sófocles Antígona, escrita no século V a.C., Antígona era uma das filhas de Édipo, trágica figura masculina amaldiçoada pelos deuses por ter assassinado seu pai e, por engano, casado com sua mãe e ter assumido o trono do pai assassinado. Após a morte de Édipo, conta a estória, irrompe uma guerra civil e trava-se uma batalha nas portas da cidade de Tebas. Seus dois filhos comandam facções rivais e travam uma batalha e matam-se. O irmão de Édipo, Creonte, tio de Antígona, era então senhor da cidade e resolve transformar a morte de Policine, o irmão que havia lutado contra ele em escárnio, e determina que seu corpo permaneça insepulto. A morte seria decretada ao que contrariasse tal ordem. 37 FIGURA 12 – ANTÍGONA ENTERRA SEU IRMÃO FONTE: <http://portfoliocursoevc.blogspot.com.br/2013/04/video-aula-1-contexto-historico-dos.html>. Acesso em: 11 abr. 2017. Antígona, perturbada pela morte dos irmãos, mas não aceitando que um fosse sepultado com honras enquanto o outro servisse de comida para os abutres, decide contrariar o rei. Ela se sente motivada pelo dever normativo que transcende sua posição de súdita e, entre a obrigação imposta pelo rei e as leis divinas de sepultar seu irmão, dá ao corpo de Polinice um fim honroso. Quando descoberta, é levada diante do rei Creonte, que oferece a oportunidade de negar que tivesse conhecimento de sua lei, sua determinação, a fim de salvá-la do triste fim. De forma corajosa, Antígona nega a oferta do rei. Leia o belo diálogo: Creonte: ô Antígona. Que parte da minha ordem “não pode enterrá-lo” você não entendeu? Vai dizer que não sabia? Antígona: Estaria mentindo se dissesse que não conhecia a ordem. Como poderia ignorá-la? Ela era muito clara. Creonte: Portanto, tu ousaste infringir a minha lei? Tá maluca? Antígona: Descumpri mesmo. Quer saber por quê? Porque não foi Zeus que a proclamou! Não foi a Justiça, sentada junto aos deuses inferiores; não, essas não são as leis que os deuses tenham algum dia prescrito aos homens, e eu não imaginava que as tuas proibições fossem assaz poderosas para permitir a um mortal descumprir as outras leis, não escritas, inabaláveis, as leis divinas! Estas não datam nem de hoje nem de ontem, e ninguém sabe o dia em que foram promulgadas. Poderia eu, por temor de alguém, qualquer que ele fosse, expor-me à vingança de tais leis? Esta magnífica obra nos traz muitas tensões, dentre as quais as “legais”, quais sejam: 38 • A exigência do Direito Natural frente ao Direito Positivo. • A imperatividade da norma jurídica. • O primitivo e incipiente exemplo de desobediência civil. • O dever do indivíduo para com sua família versus seu dever para com o Estado. • A subjetividade individual frente às regras objetivas do corpo social. O drama existencial de Antígona é muito pessoal e as regras do poder instituído não lhe davam respostas! Será que nos dias de hoje dariam? Antígona nos fala dos aspectos trágicos e contraditórios da existência humana, talvez sem solução. A obra nos serve de início ao estudo do direito grego. Nos ensina que quando as instituições não oferecem possibilidade de debate e questionamentos, emergem ambiguidades e abusos de poder. As leis mais antigas que se conhece são as leis de Drácon, de 621 a.C. Colocam fim à solidariedade familiar e tornam obrigatório o recurso aos tribunais para os conflitos entre os clãs. Como já dito, o fim da solidariedade familiar cria as bases para uma solidariedade cívica, para além do círculo familiar. FIGURA 13 – DRACO - LEGISLADOR GREGO FONTE: <http://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/draco-o-primeiro-dos-draconianos/#>. Acesso em: 11 abr. 2017. Conhecido pela severidade, lei draconiana passou a ser sinônimo de lei dura, o primeiro código de Atenas introduziu importantes conceitos do direito penal, tais como: a diferença entre homicídio voluntário, involuntário e legítima defesa. 39 Posteriormente, já entre os anos de 594 e 593 a.C., Sólon cria um novo código de leis, promovendo ampla reforma institucional, social e econômica. Na economia, além de incentivar a cultura de oliveiras e vinhas, bem como a exportação de azeite, atraindo muitos estrangeiros com a promessa de cidadania, obrigou os pais a ensinarem um ofício a seus filhos, sob pena de ficarem desobrigados a ampará-los na velhice. Criou o Tribunal da Heliaia, no qual qualquer pessoa poderia recorrer garantindo o princípio de que a lei está acima de qualquer magistrado. Esse Tribunal julgava tanto causas públicas como privadas, exceto os crimes de sangue. Seus membros eram os chamados heliastas e eram escolhidos por sorteios anuais entre os cidadãos. Juridicamente, Sólon instituiu a igualdade civil e suprimiu a propriedade coletiva dos clãs, além de acabar com servidão por dívida, estabeleceu institutos importantes como a adoção, testamento etc. A democracia é uma criação de Sólon. Através de assembleias, os cidadãos tomavam a justiça em suas mãos e com isso promoviam o debate sobre a justiça e o ético. Nesse modelo, a retórica era parte essencial para o convencimento daquilo que cada cidadão defendia e acreditava. O objetivo era persuadir pela força dos argumentos. Na prática da justiça ateniense não havia advogados, juízes, promotores públicos; apenas os litigantes, os adversários, se dirigiam aos membros do Tribunal. Pensar em prática de advocacia naquele tempo era impossível! Seria uma espécie de cumplicidade para enganar e/ou fraudar. Mesmo assim, havia os chamados “logógrafos”, que redigiam os discursos que a parte deveria fazer. Para evitar a corrupção na prática da justiça, os gregos criaram a “delação premiada”, mas acabou por existir a odiosa figura do falso delator, que recebia o nome de sicofanta, adjetivo pejorativo e desonroso, que significa caluniador e mentirosointeresseiro! Portanto, toda base do direito e da democracia ateniense era a soberania popular, que era expressa na voz de seus cidadãos, no exercício de suas funções públicas, no voto nos tribunais e na participação em assembleias e conselhos. Observe a figura a seguir: 40 FIGURA 14 – ANTIGA ATENAS FONTE: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protagoras2/links/atenas.htm>. Acesso em: 11 abr. 2017. A figura é uma representação da antiga Atenas. Veja que a Ágora – praça central da cidade – ocupa lugar de destaque. Aí ocorriam os grandes debates políticos. A arquitetura da época nos diz muito sobre como era o cotidiano da cidade. 3 A ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E JUDICIAL DE ATENAS Como já dissemos, Atenas não somente era a mais importante cidade grega antiga. Também foi o berço da erudição, da filosofia, do conhecimento, um centro cosmopolita que alcançou grande desenvolvimento. Em suas ruas circulavam filósofos e artistas atraídos pela valorização da cultura de seus habitantes. Chamava a atenção a sofisticada organização judiciária em Atenas, que se tornou clássica no Ocidente. Em síntese, havia duas espécies de órgãos de jurisdição: para os crimes públicos e para casos menos importantes. Estes últimos eram feitos por um magistrado singular ou poderia ser pedido apelo para Assembleia propriamente (Heliastas), que funcionava em grupos. 41 Para os crimes públicos: • Assembleia do Povo: composta por senadores e magistrados populares que decidiam sobre crimes políticos graves. • Aerópago: o mais antigo e célebre Tribunal. Julgava crimes apenados com a morte. • Tribunal dos Efetas: composto por 51 juízes escolhidos pelo Senado, julgava homicídios não premeditados. • Tribunal da Heliaia: Assembleia que se reunia em praça pública julgando recursos. Evidente que a ausência de juristas profissionais e a confusão de leis acabavam tornando os Tribunais espaços de debates políticos. Nos tribunais apenas se provava o direito, segundo a lei ou o costume, além dos fatos. Também não havia uma execução judicial: o queixoso recebia o julgamento e se encarregava de executá-lo. Não havia polícia judiciária como entendemos nos dias de hoje. FIGURA 15 – ORATÓRIA - TRIBUNAL GREGO FONTE: <https://salmopresente.wordpress.com/2014/05/07/a-teologia-dos-filosofos-gregos-e-a-teolo- gia-crista/>. Acesso em: 11 abr. 2017. 42 Afinal, como funcionavam os tribunais? Como já dissemos, era indigno e imoral receber dinheiro pela defesa de alguém e, por essa razão, quando isso ocorria, era às escondidas! A ideia era a de que qualquer cidadão po-deria se apresentar no tribunal perante juízes para receber uma resposta simples: sim ou não. Foi imenso o legado grego ao direito contemporâneo, tanto nos universais conceitos de justiça e democracia, como em algumas características essenciais de nosso direito, tais como: • A mediação e arbitragem. • A retórica e eloquência jurídica. • A transferência de propriedade somente por contrato. • O julgamento de um cidadão por seus pares, por cidadãos comuns. Prática essencial da democracia e inventada pelos atenienses. • Publicidade dos atos processuais como procedimento democrático. • Diferenciação entre homicídio voluntário, involuntário e legítima defesa. Os vestígios da clássica Atenas – esculturas, arquitetura, escritos etc. – são suficientes para nos mostrar o quão grandiosa foi aquela civilização. O “mundo grego” antigo foi portador de profundas mudanças na visão de humanidade, de vida coletiva e do ser humano sobre si mesmo. Por evidente que o modo de vida grego não era perfeito! Todavia, não eram mais selvagens ignorantes e escravos da força das circunstâncias. O breve trecho transcrito da obra de Aristóteles, “Política”, é o melhor testemunho e atestado autorizado do que entendiam os gregos por democracia, justiça e liberdade, sem dúvida, essências da condição de humanidade: O fundamento do regime democrático é a liberdade; (com efeito, costuma-se dizer que somente sob esse regime há liberdade, pois esse é o fim para o qual se destina a de-mocracia). Uma das características da liberdade é ser governado e governar por turnos, pois a justiça democrática consiste em possuir todos o mesmo numericamente, e não segundo os seus merecimentos; e isto é justo, forçosamente há de ser soberana a multi-dão, e o que esta aprovar, por maioria, será justo [...] Outra característica é viver como se quer, a qual resulta daquela liberdade. Esta é a segunda democracia: não ser governado por ninguém, se isto for possível, ou se governado por turnos [...] Sendo estes os funda-mentos da democracia, são procedimentos democráticos os seguintes: todas as magis-traturas devem ser eleitas entre todos; que todos mandem sobre cada um, e cada um a seu turno, sobre todos; que as magistraturas sejam providas por sorteio, ou, pelo menos, aquelas que não requeiram experiência ou habilidades especiais; que não se fundamen-tem na propriedade, ou na menor possível; que, em princípio, a mesma pessoa exerça duas vezes alguma magistratura; que as magistraturas sejam de curta duração [...] que a assembleia tenha soberania sobre todas as coisas [...] (Política, 8,2,1.317a e 1.317b) 43 4 O HELENISMO “Helenismo” é o nome dado ao período compreendido entre a morte de Alexandre, o Grande, em 323 a.C., e a anexação da península grega e ilhas por Roma em 146 a.C. Nesta etapa da história, há uma grande difusão da civilização grega numa vasta área: do Mediterrâneo oriental à Ásia Central. Representou a concretização do ideal de Alexandre: o de levar e difundir a cultura grega nos territórios que conquistava. Foi um período áureo para as ciências. Tempo que marcou a transição para o domínio e apogeu de Roma. No século IV a.C., após os conflitos causados pela Guerra do Peloponeso, as pólis gregas sentem de perto o declínio de seu poder. Já não podendo mais garantir a autonomia de seus territórios, tornaram-se “presa fácil” para povos estrangeiros. Ao norte da Grécia, a civilização macedônica começava a empreender um projeto expansionista que, em pouco tempo, foi capaz de assegurar o controle sobre o mundo grego. A partir desse processo de dominação é que se iniciou o chamado Período Helenístico. Em três séculos há um processo de transformação na vida dos povos conquistados. Hábitos são modificados e em especial há o ideal de estabelecer uma língua comum com a superação do ático puro antigo. Prosperam a filosofia, a arte, filosofia, arquitetura, medicina etc. São erguidas grandes cidades e sofisticando-se as já existentes. Tessalônica, Corinto, Pérgamo, Éfeso, Rodes, entre outras, tornam-se as grandes capitais do mundo. FIGURA 16 – COLOSSO DE RODES FONTE: <http://www.jornalissimo.com/curiosidades/423-10-curiosidades-sobre-o-colosso-de-rodes>. Acesso em: 11 abr. 2017. 44 NOTA Colosso de Rodes – uma das sete maravilhas do mundo antigo. • Enorme estátua revestida a bronze representava Hélios, o deus grego do Sol. Hélio era adorado pela população da ilha situada no Mar Egeu, que o via como seu protetor. • O colosso foi erguido para celebrar a vitória dos gregos contra os macedônios (o povo que habitava a antiga Macedônia, no norte da Grécia, cujo rei mais célebre foi Alexandre, o Grande), que tentaram invadir a ilha de Rodes em 305 a.C., liderados pelo rei Demétrio I. • A construção do monumento seria iniciada menos de dez anos depois, em 294 a.C. Durante muitos anos, pensou-se que cada pé da estátua ficava de um lado da entrada do porto da ilha e que os barcos passavam por baixo, mas esta versão foi afastada mais tarde por estudos arqueológicos, que garantiram que a estátua se situava no cimo de uma colina. • O custo do Colosso teria sido suportado pela venda do material de guerra abandonado pelos macedônios. • A medida da estátua seria equivalente à de um prédio de dez andares - perto de trinta metros de altura. O seu peso é estimado em 70 toneladas. • Calcula-se que tenham sido precisos doze anos para erguer o Colosso. Permaneceu em pé pouco mais do que 50 anos.
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