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1
TÓPICO 1 -
O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO
ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA,
HEBREUS E EGITO)
1 INTRODUÇÃO
Ao longo da história, nas distintas etapas e diversas sociedades encontramos
formas de controle e proteção de valores que possibilitam a vida comum. Esses valores,
ou bens jurídicos, são amparados e garantidos por um conjunto de normas jurídicas
definidas conforme a ordem social, política e/ou econômica que se encontra em
contínua mudança, e por esta razão as normas jurídicas vão reconhecendo as
alterações de acordo com a época e as relações definidas no substrato social.
NOTA
A vida social é regida por diversas normas, preceitos, que definem condutas
(morais, religiosas, culturais etc.), dentre as quais as normas jurídicas.
Normas jurídicas são distintas das demais por dois fatores principais:
emanam de uma autoridade política competente e possuem poder
coercitivo. Em outras palavras, em primeiro lugar, as normas jurídicas
são estabelecidas por órgãos ou instituições legítimas politicamente,
portanto, distintas de normas morais. Como segundo fator, as normas
jurídicas são impostas, com uso da força se necessário for, de forma a
persuadir as pessoas a agirem de modo a atender às finalidades ou
objetivos estabelecidos pelos órgãos políticos definidos. Assim, as normas
jurídicas devem ser acatadas e colocadas à disposição dos indivíduos e
da coletividade para fazer valer interesses e necessidades, bem como
proteger seus bens de distintas naturezas e características.
Desde tal perspectiva, surgem algumas perguntas que devemos responder
inicialmente: é possível estudar esse conjunto de normas que vão definindo o direito?
Como estudar esse fenômeno social que chamamos de direito? Para que estudar
direito? As distintas respostas que podem ser dadas recaem em alguns pontos comuns:
a necessidade de conhecer o direito, de determiná-lo, estabelecer a relação com as
ideias e/ou valores e/ou interesses do grupo social em que se insere. Exatamente essa
é a função dos pesquisadores do direito, e desde as investigações vão sendo
redefinidos conceitos operacionais que são utilizados para definir e fundamentar a
norma jurídica adequada do caso concreto.
3
Dessa maneira, vai sendo definida a cultura jurídica de um determinado grupo
em um determinado tempo. Segundo Wolkmer (2007, p. 5), cultura jurídica pode ser
definida como “representações padronizadas da (i)legalidade na produção das ideias,
no comportamento prático e nas instituições de decisão judicial, transmitidas e
internalizadas no âmbito de determinada formação social”. Portanto, o conjunto de
normas e procedimentos, considerados justificáveis e apoiados ou não pela força
instituída, vão padronizando condutas e construindo a concepção de direito. Pode-se
compreender direito como fenômeno sociocultural produzido e reproduzido desde um
contexto histórico.
Pode-se conceituar a História do Direito como parte da História geral
que examina o Direito como fenômeno sociocultural, inserido num
contexto fático, produzido dialeticamente pela interação humana
através dos tempos, e materializado evolutivamente por fontes
históricas, documentos jurídicos, agentes operantes e instituições
legais reguladoras (WOLKMER, 2007, p. 5).
Vamos, então, percebendo que o campo do estudo da história do direito não
é o da dogmática jurídica, que delimita conceitos desde concepções indiscutíveis
e estáveis, mas um campo partilhado por outras disciplinas (teoria do direito, sociologia
jurídica, antropologia jurídica, ciência política etc.) que permite compreender o contexto
e as forças históricas, sociais, políticas, intelectuais, culturais etc., que definem as
normas jurídicas vigentes.
NOTA
Há autores que diferenciam dogmática de zetética jurídica. Dogmática
jurí-dica pode ser definida como campo de estudo acerca dos conceitos
ope-racionais do direito (“verdades” preestabelecidas) usados para solucionar
na prática controvérsias jurídicas, portanto, é um estudo limitado, a grosso
modo, à norma positivada. A zetética jurídica problematiza os dogmas e
verdades jurídicas, questionando as premissas que definem a dogmática.
Nessa perspectiva, a história do direito estaria no campo da zetética, uma vez
que não apenas problematiza a dogmática jurídica contemporânea, como
busca reconstruir as ideias e práticas jurídicas em determinado con-texto
histórico.
Em síntese, o objetivo da história do direito é compreender a construção do
direito atual, desde a articulação de fatores ao longo do tempo, reexaminando suas
fontes de produção, as concepções, técnicas e instituições que o foram elaborando e
legitimando. Assim, trata-se de um estudo essencialmente crítico que possibilita
interpretar o direito desde a identificação dos valores consolidados e reproduzidos
historicamente.
4
Considerando História não como narrativa de acontecimentos, mas expressão
de experiências humanas que definem mudanças estruturais coletivas que não tratam
simplesmente de investigação sobre personagens individuais, como os “heróis” ou
“personagens”, mas de como a trama da vida move os indivíduos comuns desde
desejos, necessidades, valores e interesses a criarem aspirações coletivas e romperem
com estruturas e modelos dominantes. Trata-se, assim, de romper com o conceito de
que História é uma mera narrativa de atos individuais, mas estudar História desde a
possibilidade de mudanças do presente. É um ato de recusa de verdades absolutas e
destinos imutáveis preestabelecidos, uma forma de adquirirmos a consciência das
forças que nos levam coletivamente a agir desde as experiências vivenciadas.
Mas por que e para quê filosofar sobre o direito e sua história?
Você deve estar se perguntando por que e para que estudar Filosofia, se seu
interesse é Direito? Filosofia não é perda de tempo ou coisa de gente que “viaja” e vive
nas nuvens?
É natural que você pense assim, aliás, muitos perguntam para que serve a
Filosofia. Estamos habituados a nos preocuparmos com o que nos traga recompensas
materiais ou financeiras, afinal, temos apelos todos os dias pela mídia, por exemplo, a
sermos utilitaristas e colocarmos nossa felicidade, bem como o sentido de nossa existência,
na quantidade de coisas e bens que podemos comprar e acumular. Através da Filosofia
aprendemos a conquistar uma felicidade muito particular: descobrir o sentido das coisas e
de nossa própria existência para sermos donos de nosso próprio destino.
A Filosofia está presente em nosso cotidiano mais do que pensamos e tem
influenciado ideias, discursos, ações políticas, conceitos de justiça, por exemplo, sem
percebermos que é a Filosofia que nos permite ter a capacidade de escolhermos e
valorarmos nosso agir, não apenas individualmente, mas com os demais com quem
convivemos. E é isso, afinal, que nos torna civilizados.
Iniciamos um estudo particular que nos vai ajudar a compreender que não
existe nada “natural” no mundo jurídico. Vamos aprender que, embora sendo difícil,
devemos conhecer a origem e a finalidade dos valores que regem o mundo do Direito
desde sua historicidade, para nos tornar menos ingênuos e com mais certezas.
2 OBJETIVOS DO ESTUDO DA HISTÓRIA E DA
FILOSOFIA DO DIREITO
O estudo da história do direito é a possibilidade de descobrir um fascinante
universo, descobrir caminhos que foram percorridos por distintas civilizações ao longo
do tempo e foram encontrando no direito o instrumento necessário para continuarem a
vida em comum. Sem dúvida, nossa formação acadêmica exige compreender o
5
presente desvelando os valores e as práticas jurídicas consolidadas ao longo do tempo,
ampliando, assim, nossa cultura jurídica, sendo o estudo histórico do direito um
importante elemento para o saber formativo e distinto do conjunto de disciplinas
dogmáticas que constituem o ensino jurídico.
O importante historiador do Direito, António Manuel Hespanha, destaca que
enquanto as disciplinas dogmáticas visam “criar as certezas acerca do direito vigente, a
missão da história do direito é problematizar o pressuposto implícito e acrítico das
disciplinasdogmáticas, ou seja, o de que o direito dos nossos dias é o racional, o
necessário, o definitivo” (HESPANHA, 2005, p. 21). A história do direito realiza sua função
ao contribuir para a elaboração de uma perspectiva que compreenda o fenômeno do direito
enquanto produto das relações e contextos sociais – econômicos, políticos etc. – localizados
temporalmente, e assim é assegurada a formação crítica dos juristas.
Em que pese a disciplina de História do Direito estar presente nos cursos de
Direito brasileiros em geral, talvez seja necessário ampliar sua função, sobretudo
quando se tem em conta a necessidade de servir de instrumento de revisão das fontes
legislativas e práticas das instituições jurídicas com vistas a alinhar o direito com as
necessidades e condições sociais.
Em suma, a finalidade essencial da História do Direito é a
interpretação crítico-dialética da formação e da evolução das fontes,
ideias norteadoras, formas técnicas e instituições jurídicas, primando
pela transformação presente do conteúdo legal instituído e buscando
nova compreensão historicista do Direito num sentido social e
humanizador (WOLKMER, 2007, p. 6).
Estudar História do Direito desde uma perspectiva não linear – a que não
concebe a história como acumulação progressiva de saber, mas como rupturas,
avanços e retrocessos –, além da importância para a formação acadêmica, permite
identificar forças e valores que vão conferindo legitimidade ao direito, e para tal tarefa é
necessário estabelecer estratégias e caminhos metodológicos adequados.
NOTA
A concepção linear da história do direito compreende o presente como
uma espécie de “celebração” do passado. O presente como única
possibilidade inevitável do passado, de uma espécie de “padrão”
universal de evolução. A “naturalização” e “sacralização” do presente é
uma deformação histórica, pois o presente não é uma imposição do
passado, mas o resultado de dinâmicas escolhas humanas.
A “neutralização” da história constrói para os juristas uma lógica de direito
abstrata e erudita sem preocupação com a finalidade maior do direito: a
concretização de necessidades e proteção de bens humanos concretos.
6
Em que pese a longa tradição da historiografia formalista nas faculdades de
Direito em fins da década de 60 e ao longo dos anos 70, foi sendo definido um novo
marco metodológico desde a criticidade e revisão dos modelos teóricos consolidados.
Trata-se da emergência de uma corrente mais questionadora dos historiadores,
problematizando a ingenuidade intelectual e a forma através da qual compreendem a
realidade desde modelos deformados meramente teóricos.
Este movimento, denominado Nova história, teve como “força” propulsora alguns
eventos, tais como a renovação do pensamento crítico – “nova teoria crítica” da Escola de
Frankfurt –, que problematizou a neutralidade ideológica, demonstrando que toda atividade
humana é sempre política; a metodologia inovadora da Escola Francesa dos “Annales” –
que contribuiu no campo do estudo do direito para uma visão interdisciplinar e relacional da
história, concebendo a história do direito como parte da história social. A emergência do
pensamento crítico latino-americano com pensadores como Paulo Freire, Franz
Hinkelammert, Enrique Dussel, Antonio Carlos Wolkmer, entre outros, que são considerados
matrizes de internalização da criticidade na cultura jurídica, representando uma espécie de
“via alternativa” mais próxima de nossa realidade. Muitos outros se somam para uma
mutação radical da historiografia em geral e jurídica, em particular, definindo, assim, uma
opção metodológica desmistificadora que inclui a complexidade e diversidade da vida social
no processo de edificação histórica do direito.
DICAS
“Escola de Frankfurt” é uma corrente de pensamento que emerge no contexto político e
histórico muito problemático. Em meio à ascensão do nazismo na Alemanha e ao
stalinismo na Rússia, um grupo de intelectuais vinculados ao Instituto de Pesquisa
Social da Universidade de Frankfurt, alinhados ao que foi se denominando Teoria
Crítica, passa a produzir obras, pesquisas e análises sociais entre os anos 1920 a 1970
desde um marxismo heterodoxo. Para conhecer melhor sobre a Escola de Frankfurt e A
Teoria Crítica, você pode consultar http://brasilescola.uol.com.br/
filosofia/a-escola-frankfurt-introducao-historica.htm.
7
NOTA
O nome Escola dos Annales se refere a um grupo de historiadores
liderados por Lucien Febvre e Marc Bloch, que se organizaram em
torno do periódico francês Annales d'histoire économique et sociale
(Anais de história econômica e social), no qual eram publicados
seus principais trabalhos. O principal objetivo desses historiadores
era a problematização do positivismo histórico dominante e o
desenvolvimento de um tipo de História que levasse em
consideração novas fontes para a pesquisa histórica, como a
sociologia, a economia, a semiologia etc., considerando a história
como a ciência do presente e não do passado, investigando as
transformações e rupturas sociais ao longo do tempo.
A nova concepção das fontes, funções e concepções de Direito conduz à
revisão crítica da análise e estudo do passado das instituições jurídicas e
das práticas de controle, problematizando o modelo contemporâneo.
Desde aí, o Direito Moderno é compreendido desde uma nova
perspectiva que permite identificar os fatores e elementos políticos,
sociais, econômicos e culturais subjacentes ao processo histórico
desenvolvido entre os séculos XVI a XIX na Europa que acabou por
definir a cultura jurídica dominante nos dias de hoje. Em síntese, o que
atualmente se compreende por Direito é resultado do contexto histórico
europeu moderno organizado desde a consolidação do capitalismo
liberal que foi definindo uma estrutura política e jurídica estatal
centralizada, modelo este que, por conta da expansão colonizadora, foi
colocado em marcha a partir do século XIV.
O fundamento nuclear do Direito Moderno é o individualismo liberal,
expressão maior do valor moral da sociedade burguesa emergente, que
coloca o homem como ser individual autônomo e formalmente livre.
Nessa dinâmica histórica, a ordem jurídica é instrumentalizada como
estatuto de uma sociedade que proclama a vontade individual,
priorizando formalmente a liberdade e a igualdade de seus atores
sociais (WOLKMER, 2007, p. 30).
ESTUDOS FUTUROS
Como adiante será melhor estudado, “Modernidade” é definida como
um modelo civilizatório construído desde a Europa entre os séculos XIV
a XIX, que veio a substituir o modo de vida medieval. Tem, como
características, o predomínio de concepções políticas e jurídicas
liberais individualistas.
8
Considerando a história do direito como campo de estudo que tem como objetivo a
compreensão do presente a partir da revisão crítica do passado, evidencia-se a finalidade
maior de nossos estudos: rever historicamente as experiências do direito com vistas a
adquirir uma consciência do Direito Moderno mais humanizadora e libertária.
Mas e a filosofia? Quais as suas importâncias no estudo do direito?
Vivemos um cotidiano marcado por discursos e práticas que costumamos
rotular de “justas/injustas” ou “certas/erradas”; e não raras vezes nos vemos exigindo “o
que nos é de Direito”. O que exatamente estamos colocando em questão? O que é o
justo e injusto em um mundo marcado por tão profundas contradições e aparente
desesperança?
Os últimos anos do século XX testemunharam grandes mudanças
em toda a face da Terra. O mundo torna-se unificado – em virtude
das novas condições técnicas, bases sólidas para uma ação humana
mundializada. Esta, entretanto, impõe-se à maior parte da
humanidade como uma globalização perversa.
Consideramos, em primeiro lugar, a emergência de uma dupla tirania, a
do dinheiro e a da informação, intimamente relacionadas. Ambas, juntas,
fornecem as bases do sistema ideológico que legitima as ações mais
características da época e, ao mesmo tempo, buscam conformar
segundo um novo ethos as relações sociais e interpessoais,
influenciando o caráter das pessoas. A competitividade,sugerida pela
produção e pelo consumo, é a fonte de novos totalitarismos, mais
facilmente aceitos graças à confusão dos espíritos que se instalam. Tem
as mesmas origens a produção, na base mesma da vida social, de uma
violência estrutural, facilmente visível nas formas de agir dos Estados,
das empresas e dos indivíduos. A perversidade sistêmica é um dos seus
corolários (SANTOS, 2011, p. 18).
Frases como “isso é uma verdade” já não são ditas com tanta facilidade. As
verdades parecem provisórias. É um tempo em que tudo parece se transformar com
rapidez alucinante. Mal temos tempo de compreender conceitos, valores, ideias ou
comportamentos que repentinamente já são ultrapassados. Como nós, que pensamos
o Direito, podemos lidar com esse aparente “pós tudo” sem cairmos na cilada do senso
comum, dos dogmas ou das verdades midiáticas criadas todos os dias?
NOTA
Dogma é uma “verdade a priori” aceita sem questionamentos. O
dogmatismo ao longo da história resultou em intolerância e opressão.
Em sentido contrário, o pensar crítico é uma postura que visa rever os
dogmas e os contextos teóricos, fáticos, ideológicos e culturais que os
sustentam e os legitimam.
9
Há uma realidade na qual estamos inseridos que exige uma explicação!
Diariamente fazemos escolhas e julgamentos de valores, pois somos movidos por
crenças, valores, preconceitos, enfim, um conjunto de idealizações e representações
tanto individuais como coletivas que nos permite viver em sociedade.
Como diz a filósofa Marilena Chauí (2000, p. 8):
Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças
silenciosas, da aceitação tácita de evidências que nunca
questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no
espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na
verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre
verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença
entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade,
do bem e do mal, da moral, da sociedade.
No esforço de ir além das “verdades postas” é preciso uma atitude reflexiva
metódica, ou seja, é necessário um “distanciamento” da realidade e dos fatos para que
possamos interrogar a nós mesmos e aos conceitos que parecem inquestionáveis.
Neste momento podemos sentir que nossas certezas são questionadas e tudo parece
possível de ser redefinido ou repensado.
É desde aí, desta “atitude reflexiva”, que falamos em “Filosofia”. Desde uma
atitude que permite discutir o que parece óbvio e natural. Claro que refletir sobre as
verdades e a realidade que nos cerca é uma dura escolha. Pode ser que sejamos mais
felizes ou mais otimistas com o superficial, afinal, ser inquieto é não se deixar levar tão
facilmente. É não aceitar passivamente o que nos é oferecido como “alternativa
possível”. Desde a atitude reflexiva descobrimos que não podemos ser felizes a vida
toda e todo o tempo. E essa é talvez a tarefa mais urgente de nosso tempo. Enfrentar o
medo das incertezas é o grande desafio que se coloca diante de nós quando decidimos
assumir uma atitude reflexiva. Devemos ter a coragem de sair do nosso “agradável e
confortável” senso comum. “Acontece que tendemos a descobrir algo agradavelmente
reconfortante quando ouvimos melodias que sabemos de cor” (BAUMAN, 2008, p. 29).
Esse distanciamento das “melodias que sabemos de cor”, das verdades
cotidianas, a fim de assumirmos uma atitude questionadora de si mesmo e desejar
conhecer por que e para que são nossas crenças e sentimentos é que podemos
chamar de atitude filosófica.
A atitude filosófica é o ato de reflexão questionadora própria do filósofo, daquele
que, tendo a consciência de que o saber é sempre provisório e também infinito, renova e
reinventa sempre as perguntas que formula. É assumir o risco de viver sem verdades.
10
Para o jusfilósofo brasileiro Miguel Reale (2002, p. 5-6):
Filósofo autêntico, e não o mero expositor de sistemas, é, como o
verdadeiro cientista, um pesquisador incansável, que procura
sempre renovar as perguntas que formula, no sentido de alcançar
respostas que sejam ‘condições’ das demais. A filosofia começa com
um estado de inquietação e de perplexidade, para culminar numa
atitude crítica diante do real e da vida.
E é aí que nasce a Filosofia. Um saber metódico e rigoroso que possibilita
chegar à raiz das coisas na interminável e incessante busca do sentido do “ser” e
universo existencial.
NOTA
• Atitude reflexiva: é o ato de pensar as crenças, verdades e sentimentos
de nosso cotidiano de forma profunda e com desejo de conhecer a
essência das coisas.
• Atitude filosófica: é a reflexão própria dos que não se cansam de admirar
as coisas, e são capazes de se distanciar do cotidiano e de si mesmos.
• Por que e para que a reflexão filosófica? Para um agir pessoal e social
intencional e consciente, sabendo o porquê, para que e como são as
coisas, crenças e sentimentos em sua essência.
• A finalidade da reflexão filosófica é permitir um pensar e crer de
forma crítica e livre de preconceitos.
• O filósofo é inimigo de fanatismos e dogmatismos.
É sobre os seguintes campos que se estende o saber filosófico:
• Ética: do grego “ethos” – bons costumes –, diz respeito a escolhas inevitáveis e
inadiáveis quando nos deparamos com condutas e hierarquia de valores que definem os
caminhos a serem seguidos e os que devem ser evitados, levando em conta os fins a
que se destina a justificativa do próprio agir. A Filosofia Ética tem como objeto de
problematização a atitude humana em relação ao coletivo e suas consequências
históricas, sociais e políticas. Em outras palavras, é um campo filosófico preocupado
com o valor do bem e do agir humano que o tem como finalidade última.
• Lógica: tem, como preocupação, as estruturas do pensamento e seus encadeamentos
racionais que permitem conhecer o ser humano e seu mundo circundante. Através da
lógica se discute se as inferências – deduções, as conclusões obtidas pela relação entre
uma coisa e outra – são verdadeiras ou falsas.
• Estética: do termo grego aisthetiké, significa “aquele que percebe”. É o campo da
filosofia que se dedica ao estudo do belo nas manifestações artísticas e naturais;
ao sentimento que desperta no indivíduo quando da sua contemplação.
11
• Epistemologia: termo de origem grega, “episteme”, relacionado com a natureza e
limites do conhecimento humano. Normalmente definida como “Teoria do
Conhecimento” ou “gnosiologia”, que no sentido mais restrito refere-se às condições
– metodológicas e técnicas – sob as quais se produz o conhecimento. Como campo
filosófico relaciona-se às possibilidades de alcançar a verdade no conhecimento.
• Metafísica: do grego “metà” – além de – e “physis” – natureza, física – é um campo
filosófico que discute questões para além do agir e conhecer, envolvendo
discussão acerca da natureza do que se conhece, sobre o que permite indagar
acerca da coisa em si. Metafísica indica o permanente esforço para atingir uma
causa válida e racional para o sentido da existencialidade humana, que tem como
ramo principal a ontologia – que investiga sobre as categorias ou essências do ser.
Agora que já conhecemos os conceitos básicos e essenciais iniciaremos nossa
viagem pela construção do direito ocidental.
3 OS PRIMEIROS NÚCLEOS HUMANOS
Desde estudos arqueológicos é possível afirmar que a última espécie humana
sobrevivente desde o Paleolítico Superior – em torno de 9 mil anos – encontrou nas
grandes planícies fluviais e nos sítios litorâneos o ambiente propício para o
desenvolvimento da agricultura e domesticação de animais. Pouco a pouco, as
relações, unidas por complexas redes de parentesco, tornam-se hierarquizadas e a
realização de tarefas cotidianas, como irrigação, cultivo e colheita, vai dando lugar a
formas de organização social com poderosos mecanismos unificadores de
comportamentos, que se transformam em normas de controle.
A partir do quarto milênio a.C. surgem no Oriente Próximo as primeiras civilizações:
Mesopotâmia, Egito, Palestina, Fenícia e Persa. Estas ocuparam uma regiãoque ficou
conhecida como Crescente Fértil, limitada entre os rios Tigre, Eufrates e Nilo.
12
FIGURA 1 – CRESCENTE FÉRTIL - BERÇO DA CIVILIZAÇÃO
FONTE: <http://www.infoescola.com/geografia/crescente-fertil/>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Além da estratégica passagem entre a África, Europa e Ásia, a região possuía
uma rica biodiversidade e a presença de rios que forneciam abundância de água para
irrigação, além de servir de meio de comunicação.
NOTA
Os estados que, atualmente, possuem terras localizadas no Crescente
Fértil, são: Iraque, Jordânia, Líbano, Síria, Egito, Israel e Palestina, além da
parte sul da Turquia e da área mais ocidental do território do Irã.
A sofisticação técnica, como a astronomia para estabelecer um calendário
preciso para controle da agricultura, matemática e hidráulica para as obras de irrigação
e construção torna-se patrimônio intelectual importante para a sobrevivência do grupo,
e concentra-se nas mãos de grupos ou castas privilegiadas (sacerdotais, guerreiras,
reais...), que terão grupos subalternos, em não raras vezes conquistados pela força
militar, encarregados da sobrevivência própria e dos “eminentes”.
O avanço da agricultura permite a produção de excedentes econômicos
permanentes, uma massa de trabalhadores subalternos produzindo e a dominação militar
assistindo, no interior e entre os grupos, conflitos que deveriam ser neutralizados.
13
A fim de conter ou mesmo neutralizar as forças desagregadoras que colocam em risco o
modo de organização e dominação social, são definidas forças neutralizadoras, dentre as
quais consta o direito. Entretanto, as formas de controle impostas não se originam somente
pela violência física, mas pela aceitação da dominação por conta da supremacia cultural,
pelo estágio organizativo e tecnológico materialmente mais avançado dos grupos
dominantes. Assim, vão se institucionalizando os modos de poder, dando origem às distintas
formas de ordem política e jurídica das antigas sociedades. O poder político e jurídico nas
primeiras civilizações vai assumindo as seguintes funções:
• Garantir a submissão e trabalho compulsório dos grupos subalternos.
• Difundir a ideologia da aceitação obtendo consenso e interiorização das relações
de poder.
• A manutenção do status quo dos grupos privilegiados.
A ideologia de aceitação é fundamental para reduzir, ou mesmo invisibilizar, a
violência coercitiva. Nesta etapa, as cosmogonias religiosas, os arquétipos, foram os meios
mais eficientes para os grupos religiosos desempenharem a função neutralizadora.
Seguramente, por esta razão o poder político e jurídico assume uma natureza sagrada,
mediadora entre as divindades e os humanos. Na clássica obra “A Cidade Antiga”, Fustel de
Coulanges demonstra que a origem do direito antigo está relacionada a rituais, crenças
religiosas e tradições que se impunham acima da vontade dos homens, e os deuses
estavam presentes na vida diária comandando a cidade. Diz Fustel:
A religião, que exercia tão grande império sobre a vida interior da
ci-dade, intervinha com igual autoridade em todas as relações que as
cidades tinham entre si. É o que se pode ver observando como os
homens daqueles tempos declaravam guerra, faziam as pazes e
ce-lebravam alianças. Duas cidades eram duas associações religiosas
que não tinham os mesmos deuses. Quando estavam em guerra, não
eram apenas os homens que combatiam; os deuses também toma-vam
parte na luta. E não se julgue que isso seja mera ficção poética. Houve
entre os antigos uma crença muito arraigada e viva, em vir-tude da qual
cada exército carregava consigo seus deuses. Estavam convencidos de
que eles combatiam com os soldados, que os de-fendiam, e eram por
eles protegidos (COULANGES, 2004, p. 181-182).
NOTA
Cosmogonia é especulação, idealização, sobre a origem do mundo
constituída por narrativas mitológicas que se aproximam de religião. Os
mitos, em geral, atribuem a divindades virtudes e poderes indiscutíveis.
Mitos – da palavra grega mytus – são narrativas de múltiplas versões
opostas ao real, mas mantidos vivos e perpetuados pelo grupo social.
14
DICA
Confia a obra A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, em http://
bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Fustel%20
de%20Coulanges-1.pdf.
Portanto, não é difícil compreender porque nos primórdios da humanidade a
na-tureza religiosa das formas de controle acaba por definir como intérpretes das leis os
sa-cerdotes. As manifestações do direito e as formas de sanção são marcadas por fortes
ritualismos e atos simbólicos que acabam confundindo justiça com magia, e desde aí as
práticas vão avançando de forma dinâmica até a identificação de direito com lei.
Em síntese, dos costumes, do poder doméstico e da religião daqueles
“primeiros tempos” foi se institucionalizando a sucessão hereditária das autoridades
reais e fortalecendo o poder das cidades sobre as aldeias.
Gilissen (2001) indica que as principais características do direito dos povos sem
escrita podem ser:
• A marca do direito dos povos antigos é a diversidade, uma vez que cada
comunidade possuía seus costumes próprios e o isolamento.
• A transmissão das regras de convivência pela tradição oral.
• A forte relação de justiça com religiosidade.
• Por não ser escrito, o direito antigo é bastante limitado quanto à abstração e
generalidade, sendo, em geral, reproduções de casos concretos.
• Identificação de direito com moral e religião.
• As fontes do direito relacionadas a costumes, práticas ancestrais, preceitos verbais etc.
4 O DIREITO DOS POVOS DA MESOPOTÂMIA,
HEBREUS E EGITO
A passagem das formas arcaicas de sociedade para as primeiras grandes
civilizações está relacionada como o surgimento das cidades, a invenção e domínio da
escrita, o advento do comércio e uso de moeda.
Os documentos escritos mais antigos começam a aparecer em torno de 3000
a.C. no Oriente Próximo, na Mesopotâmia e no Egito. Portanto, pouco a pouco a
transmissão oral, que acabou por preservar a memória cultural e identidade dos povos
antigos, adquire forma através da escrita.
15
A seguir consta um dos documentos jurídicos mais antigos escritos da
humanidade. Trata-se do Código de Ur-Nammu, criado por um rei sumério de mesmo
nome, escrito em torno de 2050 a.C., “ano em que Ur-Nammu fez justiça na terra”, que
incluía regras sobre impostos, procedimentos de tribunais e leis cerimoniais. Leis que
se aplicavam somente a mulheres escravas e castigos cruéis, como ter o insolente a
boca lavada com sal, aplicação de multas pecuniárias, embora limitadas e atualmente
absurdas, foram importantes avanços para o estabelecimento de limites ao poder real.
FIGURA 2 – FRAGMENTO DO CÓDIGO DE UR-NAMMU
FONTE: <https://hypescience.com/10-documentos-mais-antigos-do-seu-tipo/>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Observe bem o tipo de escrita. Trata-se do que se chama escrita cuneiforme,
em forma de cunha, criada pelos sumérios por volta do ano 3500 a.C. Juntamente com
a escrita egípcia, os hieróglifos formam as mais antigas inscrições escritas em tabuletas
de argila.
16
NOTA
Escrita cuneiforme é o nome dado a certos tipos de escritas feitas com auxílio de cunhas.
Inicialmente, eram marcas bastante simples, posteriormente se tornando mais abstratas
e mais sofisticadas, graças ao trabalho dos antigos escribas. Ajustando a posição relativa
da tabuleta ao estilete, o escriba poderia usar uma única ferramenta para fazer uma
grande variedade de signos.
ESCRITA CUNEIFORME
FONTE: <http://universodahistoria.blogspot.com.br/2010/07/escrita-cuneiforme.
html>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Dos povos do Oriente Próximo, destacam-se:
• Egito: embora não tenham transmitido propriamente códigos, os egípcios legaram
fontes indiretas nos textos sagrados e narrativas literárias e, ainda, foi a primeira
civilização a transmitir um sistema de normas individualistas.
• Mesopotâmia: a região compreendida entre os rios Tigre e Eufrates foi ocupada
sucessivamente por distintos povos, como os sumérios, acadianos, hititas e
assírios, que redigiram “códigos” com regrasde direito bastante sofisticadas e com
algum nível de abstração.
• Hebreus: povo antigo que legou nos Livros Sagrados preceitos jurídicos,
posteriormente perpetuados pela Bíblia cristã.
Brevemente, vamos a seguir destacar alguns aspectos dessas extraordinárias
culturas antigas.
17
A civilização egípcia foi uma das mais influentes na antiguidade. Ao longo do
Vale do Rio Nilo, considerado por Heródoto (484 a.C.- 425 a.C.), o “pai da história”,
como “dádiva dos deuses”, o Egito se edificou como extraordinário reino organizado em
pequenas províncias – nomos – e governado pelo faraó, um deus vivo. Além de
desenvolverem técnicas agrícolas eficazes, eram excelentes matemáticos, experientes
na área da medicina, na astronomia e, sobretudo, legaram para a posteridade
preciosas obras arquitetônicas e de engenharia.
Entretanto, o fato é que, apesar de toda essa grandiosidade e extraordinário
legado no campo do direito, os egípcios foram mais tímidos quando consideramos seus
“vizinhos” do Oriente Próximo, uma vez que o que se espera é que a condição de
domínio cultural e político fosse acompanhada de sofisticação jurídica.
Os poucos documentos propriamente jurídicos que restam, além da péssima
conservação ao longo do tempo, dificultam a reconstrução e sistematização do direito
egípcio antigo. Entretanto, resumidamente pode-se afirmar que a fonte principal do
direito era a vontade do faraó, que contava com um grupo de “conselheiros” presidido
pelo vizir, espécie de chanceler, que administravam um vasto e próspero império. Da
“boca” do faraó era pronunciada o Maat (direito), símbolo da justiça. Ao que parece, os
egípcios acreditavam em uma espécie de lei ou ordem universal eterna basilar do
próprio poder, de natureza divina a qual o faraó tinha o dever de velar. Segundo o
historiador de direito Jonh Gilissen (1995, p. 53):
Maat é o objetivo a prosseguir pelos reis, ao sabor das circunstâncias.
Tem por essência ser o equilíbrio, o ideal, a esse respeito, é por exemplo
fazer que as duas partes saiam do tribunal satisfeitas. Como é neste
preceito que reside a verdadeira justiça, Maat pode ser traduzido por
Verdade e Ordem, como Justiça propriamente dita.
FIGURA 3 – DEUSA MAAT
FONTE: <http://arturjotaef-numancia.blogspot.com.br/2013/08/maat-deusa-metis-dos-egipcios-por-artur.
html>. Acesso em: 11 abr. 2017.
18
A figura anterior é uma representação da deusa Maat. Observe que está com
as asas abertas, pronta para voar, como a alma dos mortos e acompanhar a barca
solar de seu irmão Rá. Esposa de Tot, possui na cabeça a pena da verdade, que
pesava sobre todos no momento do julgamento do morto quando ela colocava sua
pluma sobre um dos pratos da balança e no outro oposto o coração do falecido. Se os
pratos ficassem em equilíbrio, a alma seguia sua viagem. Se o coração fosse mais
pesado, era devolvido para Ammut (deusa do inferno, criatura parte hipopótamo, parte
leão e parte crocodilo) para ser devorado.
NOTA
Maat: termo de origem copta, que é um sistema de escrita originado no
século IV a.C. no Egito, que expressa uma espécie de idealização
filosófica de justiça relacionada com verdade e ordem, que deveria
orientar as decisões dos governantes.
FIGURA 4 – A PENA DE MAAT É O CONTRAPESO PARA O CORAÇÃO DO MORTO
FONTE: <http://arturjotaef-numancia.blogspot.com.br/2013/08/maat-deusa-metis-dos-egipcios-por-artur.
htm>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Há uma bela estória preservada por antigos papiros que serve como fonte de
compreensão para a prática da justiça egípcia. Trata-se do “Conto do Camponês
Eloquente”, datada de 2070 a.C., que mostra como as palavras sábias e justas
convencem e encantam e que a indignação com a injustiça e com a maldade humana é
própria da condição do homem ao longo da história.
19
NOTA
“Conto do Camponês Eloquente” se trata de um antigo conto que pode ser
sintetizado da seguinte maneira:
Um camponês andava pelo Egito com seu burrico vivendo de pequenos
serviços que prestava.
O camponês andava pelo Egito, com seu jegue, vivendo de pequenos serviços
que prestava nas fazendas, mas ao passar por uma certa propriedade, foi
surpreendido pelo administrador local que, por maldade, queria tomar o animal
do pobre homem. Para lograr êxito, o perverso homem jogou um longo tecido
no chão, forçando o camponês a desviar o caminho e
passar pela plantação, destruindo parte do que pertencia ao dono
da fazenda. O administrador puniu o camponês, retendo
seu animal e os poucos bens que o pobre possuía e o agrediu, certo de que
sairia impune da injustiça que cometera. Inconformado, o camponês foi até
a vila, onde vivia o proprietário da área; foi recebido e fez sua queixa.
O proprietário encantou-se com os argumentos do camponês. Pelo prazer de
ouvir tão bom orador, adiava a solução do caso para poder ouvir os belos
e bons argumentos. Até que, por fim, o camponês recorreu ao faraó, que
também encantado, ordenou que um escriba copiasse os argumentos do
camponês bem-falante.
O caso permanecia aberto. Irritado, o camponês deixou a cidade, desesperado
com a injustiça que sofria, e o dono das terras ordenou que se capturasse o
pobre homem. Para espanto do pobre homem, o proprietário-juiz atendeu sua
súplica, ordenando a devolução do seu animal e dos bens sequestrados pelo
injusto administrador. Determinou também que este último entregasse ao
camponês tudo o que possuía. O administrador
ficou pobre, como o camponês que um dia humilhou. Em recompensa, o
camponês passou a administrar a propriedade.
Em geral, os historiadores costumam considerar que o povo egípcio era adepto
de punições curiosas e cruéis, chegando a serem sádicas. A flagelação era adotada em
muitos casos, assim como o uso de varas para arrancar confissões. Abandono à
voracidade dos crocodilos, estrangulamento, decapitação, embalsamamento vivo e
empalhamento eram formas de execuções.
Muitos autores ressaltam importantes institutos jurídicos, como Família,
conside-rada a célula social por excelência, era restrita ao pai, mãe e filhos menores que
ganhavam emancipação após certa idade; o Testamento, que permitia total liberdade de
deixar a sal-vo a reserva hereditária dos filhos. Os bens móveis e imóveis eram passíveis de
alienação, havendo comum prática de comércio, evidenciando atividade contratual
frequente.
Em síntese, a sociedade egípcia dominada pelas castas sacerdotais foi
marcada por toda uma cultura desenvolvida a partir da profunda religiosidade dominada
por um poder teocrático cuja obrigação era preservar o princípio de Maat. Suas crenças
e cultos serviam de base para toda organização política e jurídica, bem como na
literatura, arte, medicina e astronomia.
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FIGURA 5 – GRAVURA NA PAREDE DO TEMPLO - OFERENDA À MAAT
FONTE: <https://www.projuris.com.br/como-era-o-direito-no-egito-antigo>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Nas paredes dos templos se poderia ver o faraó fazendo suas oferendas a
Maat e aceitando suas dádivas.
Chama-se direito hebraico (Mischpat Ibri) ao conjunto de regras dos antigos
israelitas, povo de origem semita, marcado por sua natureza e origem divina. Desde o
monoteísmo é uma lógica de direito que tem como núcleo a Torah (Pentateuco),
composta por cinco livros sagrados: Gênesis (BereshitI), Êxodo (Shemot), Levítico
(Va-yikra), Números (Ba-midbar) e Deuteronômio (Debarin). São no total 613 leis que
compõem a Torah, sendo 365 preceitos negativos e 248 positivos.
Segundo a tradição, Moisés é a figura-símbolo da nação israelita, escolhido por
Deus para receber a revelação do Decálogo – dez mandamentos –, que acabou se
tornando o grande princípio ético, jurídico e religioso desse povo e assumido pelo
cristianismo.
21
FIGURA 6 – MOISÉS COM AS LEIS - QUADRO DE REMBRANT (MUSEU DE BERLIM)
FONTE: <https://institutopoimenica.com/2012/09/17/moiss-e-as-tbuas-da-lei-rembrandt/>. Acesso em:
11 maio 2017.
Segundo as escrituras sagradas, todo fundamento de justiça é divino e somente em
Deus ela é perfeita e absoluta. Tendo como referência principal o amor ao próximo e a
caridade, o justo é aquele que dá omelhor de si para agir segundo as leis de Deus,
ajudando no progresso da humanidade sem medir esforços para ajudar ao próximo.
As leis hebraicas, assim como outros povos da antiguidade, de caráter civilista,
diziam respeito a negócios entre particulares, ao uso do penhor como garantia de
débito, não permitindo a exploração de seu próximo, razão pela qual alguns bens
imprescindíveis para a sobrevivência eram impenhoráveis, não podendo ser cobrada
dívida no ambiente doméstico para não humilhar a família.
“Se emprestares alguma coisa a teu próximo, não invadirás a casa para te
garantires com algum penhor. Ficarás do lado de fora, e o homem a quem emprestaste,
te trará fora o penhor” (Dt. 24:10-11). Na Torah, estão os principais institutos jurídicos
do povo hebreu, como:
• Família: de estrutura patriarcal, o pátrio poder era vitalício. As
filhas poderiam ser vendidas como escravas e havia a previsão
de servidão por dívida. A esposa poderia ser comprada e paga
com moedas ou serviços, podendo ser a mulher repudiada, o
que não ocorria com os homens, cuja punição apenas existia
em caso de adultério praticado com mulher casada.
• Sucessão: as mulheres não tinham direito sucessório e apenas
o primogênito tinha direito à herança.
22
• Penal: o conceito de crime e castigo era de natureza religiosa,
tendo como pena comum a morte por apedrejamento. São
considerados crimes graves os delitos contra a divindade –
como idolatria e blasfêmia –, contra seu semelhante – lesões
corporais, homicídio etc. –, delitos contra a propriedade – roubo,
falsificações, furto; os contra a honestidade – adultério, sedução
etc. –, e contra a honra – falso testemunho e calúnia.
• Penas: desde penas corporais, como pena de morte e flagelação,
até a excomunhão, além do uso da famosa pena de talião:
• Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho,
dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queima-dura,
ferimento por ferimento, golpe por golpe (Êx. 21.23-25).
Destaca-se que o direito talmúdico – doutrina, estudo e interpretação dos livros
sagrados – ainda é pouco estudado em nosso meio acadêmico, o que, por sua
complexidade, sem dúvida, constitui um imenso legado à modernidade, sobretudo pela
sua inserção no cristianismo ocidental, como adiante será estudado.
5 O CÓDIGO DE HAMURABI: UMA PRECIOSA
HERANÇA DA MESOPOTÂMIA
A região da Mesopotâmia é a região do Oriente Próximo que legou importantes
escritos com relatos dos povos que lá habitaram desde o IV milênio antes de nossa era.
Os sumérios foram os primeiros habitantes a terem a preocupação de desenvolverem
um sistema de escrita, e por esta razão é possível que eles tenham sido os criadores
dos primeiros códigos. O Código de Ur-Nammu, datado de aproximadamente 2040, é
importante documento histórico constituído de leis registradas em um maciço de pedra
– estela, palavra de origem grega (stela), que significa “pedra erguida” –, em monolitos
com esculturas e/ou textos em relevo.
FIGURA 7 – A ESTELA DE UR-NAMMU
FONTE: <https://br.pinterest.com/pin/446137906816601475/>. Acesso em: 11 abr. 2017.
23
Outros códigos foram encontrados na região, tais como as Leis de Eshnunna,
datado de cerca de 1939 a.C., encontrado no sítio arqueológico de Tell Harmal. Bem
como o Código de Lipit-Ishtar em língua suméria, com traços de escrita acádia, escrito
por volta do ano 1860 a.C. Contudo, estudiosos chamam a atenção para o fato de que
esses códigos, chamados de pré-hamurábicos, não formam propriamente um código no
sentido moderno do termo, uma vez que as leis das cidades não eram tratadas em tais
documentos. Além de que, a preocupação em sistematizar e organizar as leis em
códigos é um fenômeno próprio da modernidade, como adiante veremos.
De todos os antigos códigos da Mesopotâmia, sem dúvida, o mais destacado
é o Código de Hamurabi, encontrado em 1902 pelo arqueólogo francês Jacques
de Morgan no atual Irã e, atualmente, encontra-se no Museu do Louvre. Escrito em
letras cuneiformes em um monólito de pedra, é certo que se trata de um conjunto de
leis promulgadas pelo rei Hamurabi (1726 a.C. – 1686 a.C.), que governou a Babilônia
transformando-a em um grandioso império. No preâmbulo do Código, com 282 artigos,
se lê o seguinte texto:
Quando o alto Anu, Rei de Anunaki e Bel, Senhor da Terra e dos céus,
determinador dos destinos do mundo, entregou o governo de toda a
humanidade a Marduc; quando foi pronunciado o alto nome da Babilônia;
quando ele a fez famosa no mundo e nela estabeleceu um duradouro
reino cujos alicerces tinham a firmeza do céu e da terra, por esse tempo
Anu e Bel me chamaram, a mim Hamurabi, o excelso príncipe, o
adorador dos deuses, para implantar justiça na terra, para destruir os
maus e o mal, para prevenir a opressão do fraco pelo forte, para iluminar
o mundo e propiciar o bem-estar do povo. Hamurabi, governador
escolhido por Bel, sou eu; eu o que trouxe a abundância à terra; o que
fez obra completa para Nippur e Dirilu; o que deu vida à cidade de Uruk;
supriu água com abundância aos seus habitantes; o que tornou bela a
nossa cidade de Brasíppa; o que encelerou grãos para a poderosa
Urash; o que ajudou o povo em tempo de necessidade; o que
estabeleceu a segurança na Babilônia; o governador do povo, o servo
cujos feitos são agradáveis a Anuit.
A breve leitura nos permite compreender quem foi Hamurabi e suas virtudes
como “executor da justiça”, “escolhido pelos deuses”, de “sabedoria incomparável” e
tantos outros atributos que tornavam seu Código uma autêntica obra-prima para toda
posteridade.
24
FIGURA 8 – CÓDIGO DE HAMURABI
FONTE: <https://i.pinimg.com/564x/42/a1/25/42a125cc95523e92bb0c0dbcd278dbb6.jpg>. Acesso em:
11 abr. 2017.
Na parte superior, está o preâmbulo e a figura de Hamurabi diante do deus
sumé-rio Shamash recebendo o Código, representado por uma régua. A seguir estão
dispostos os artigos que evidenciam institutos jurídicos, como contratos, vendas,
arrendamentos, empréstimos a juros, adoção etc., sendo bastante conhecidas as penas
punitivas aplica-das, que variavam de mutilações à morte na fogueira, por enforcamento e
empalamento. De todos os artigos, o mais conhecido é o 196, que diz: “Se alguém vazou o
olho de um homem livre, ser-lhe-á vazado o seu também”. Repete a famosa lei de Talião,
que, como já vimos, era referência comum nos povos antigos para aplicação das penas.
DICAS
Sugerimos, a você, conhecer melhor todos artigos do Código de Hamurabi,
no site http://www.ebanataw.com.br/roberto/pericias/codigohamurabi. htm.
Você se surpreenderá com a riqueza jurídica desse documento.
Em síntese, estudando brevemente os povos antigos, não é difícil perceber que,
em diferentes momentos da história e sob distintas formas, vamos sempre encontrar um
conjunto de normas que espelham os valores, a cultura, as relações de poder e o modo
de vida da sociedade, e a esse instrumento magnificamente construído vamos chamar
de Direito e Justiça, e em seu nome continuamos a marcha da história e edificamos
nossas civilizações.
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RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
• O direito é um fenômeno cultural que surge na medida em que as relações
humanas se tornam mais complexas.
• Nos primórdios da civilização, não há separação entre direito, religião e moral, uma
vez que há uma mesma fonte de produção das normas de regulação social: o
sobrenatural.
• Com diversidade, é possível identificar elementos comuns entre as distintas formas
de direito nos povos antigos.
• Os povos da Mesopotâmia elaboraram os primeiros códigos da humanidade de que
se tem notícia.
• Os hebreus criaram seu direito com base em sua profunda fé e religiosidade e
legaram, através do cristianismo, princípios jurídicos relevantes à sociedade
contemporânea.
• Os egípcios, embora sem a mesma concepção de direito que os demais povos
antigos, possuíam regras de conduta relacionadas com a crença na vida pós-morte.
26
AUTOATIVIDADE
1 Os documentos escritos mais antigos começam a aparecer em torno de 3000 a.C. no
Oriente Próximo, na Mesopotâmiae no Egito. Portanto, pouco a pouco a transmissão
oral, que acabou por preservar a memória cultural e a identidade dos povos antigos,
adquire forma através da escrita. Assinale a alternativa CORRETA, que apresenta
alguns acontecimentos que, estão relacionados com a passagem das formas
arcaicas de sociedade das primeiras grandes civilizações:
a) ( ) Surgimento das cidades, a invenção e o domínio da escrita, o advento do
comércio e uso da moeda.
b) ( ) Por não ser escrito, o direito antigo é bastante limitado quanto à abstração e
generalidade, sendo em geral, reproduções de casos concretos.
c) ( ) Apenas a transmissão das regras de convivência pela tradição oral.
d) ( ) Apenas os costumes do poder doméstico e da religião.
2 Segundo o historiador do direito John Gilissen (2001), os povos sem escrita da
anti-guidade possuem algumas características comuns, como regras jurídicas abstratas,
poucas e limitadas, direito e religião umbilicalmente entrelaçados, dentre outras. So-bre
os povos antigos sem escrita, qual foi a região ocupada pelos que se destacaram?
FONTE: GILISSEN, J. Introdução histórica ao direito. 3. ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
a) ( ) O vale do chamado Crescente Fértil.
b) ( ) Os vales e montanhas do Rio Mekong.
c) ( ) O deserto do Saara.
d) ( ) As montanhas dos Andes.
3 A civilização egípcia herdou para a história notável conhecimento no campo da arte,
medicina, engenharia, matemática etc. Foi uma das mais avançadas e complexas
sociedades do mundo antigo. Entretanto, no campo jurídico, propriamente dito, o
legado egípcio foi tímido quando comparado aos povos da Mesopotâmia.
Considerando o aprendizado acerca da cultura egípcia, descreva o conceito de
justiça daquela civilização.
4 O monólito de pedra no qual foi esculpido o Código de Hamurabi foi encontrado no
ano de 1901, em uma expedição arqueológica comandada por Jacques de Morgan,
na atual região do Irã. O Código, entre outras significações que possui, representa
uma importante mudança para os povos da região. Sobre essa mudança, assinale a
alternativa CORRETA:
27
a) ( ) A mudança da tradição oral para a escrita.
b) ( ) A introdução da pena de prisão em substituição da pena de morte.
c) ( ) O fim da crença na origem divina das leis.
d) ( ) A criação do direito a partir do poder político.
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UNIDADE 1 TÓPICO 2 -
O MUNDO GRECO ROMANO E SEU LEGADO
1 INTRODUÇÃO
No mundo grego antigo, encontramos a semente das primeiras reflexões e
indagações de natureza filosófica, política e jurídica a partir da qual floresceu o pensamento
ocidental. Por exemplo, no campo da política, a cidade de Atenas legou ao mundo a ideia de
democracia. Grandes pensadores tornaram-se permanente fonte intelectual a todas as
gerações que os seguiram. O modo de vida, a cultura helênica corporificada nas majestosas
obras literárias e os princípios e valores éticos fazem do antigo mundo grego seguramente
um dos berços da humanidade. O mundo grego antigo, universo helênico, não era uma
unidade, mas sim um conjunto de pólis independentes.
FIGURA 9 – GRÉCIA NO SÉCULO V a.C.
FONTE: <http://www-storia.blogspot.com.br/2014/05/as-grandes-guerras-no-mundo-grego.html>. Acesso
em: 11 abr. 2017.
29
A concepção de vida cosmopolita grega, a vida na pólis, desenvolveu-se
lentamente a partir de um processo de sedentarização com a desagregação dos
primitivos clãs. A origem no Período Micênico (1500-1100 a.C.) confunde-se com
lendas e mitos que coincidem com a Idade do Bronze. Ao que se sabe, os antigos
habitantes da região foram os aqueus, cários, jônios e dórios, provavelmente originários
da Anatólia, com vínculos de parentesco que se espalharam após guerras locais. A
geografia da região, caracterizada por montanhas e terras de pouca fertilidade e
proximidade com o mar, fez com que esse povo se expandisse.
NOTA
A península da Anatólia, “terra do hitita”, também conhecida como Ásia
Menor, é banhada pelo mar Negro ao norte, o Mediterrâneo a oeste, o
mar de Mármara a noroeste.
Pode-se sintetizar a evolução histórica grega da seguinte forma:
QUADRO 1 – PERÍODOS DA HISTÓRIA GREGA
Período pré-homérico Período inicial de desenvolvimento cretense e minoico.
(1900-1100 a.C.) A sociedade grega como conhecemos ainda não havia surgido.
Este período é descrito pelo poeta Homero, que narra em
Período homérico suas histórias “Ilíada” e “Odisseia” a etapa fundacional do povo
(1100-700 a.C.) grego, em que mito, deuses e semideuses conviviam entre os
homens.
Período de Etapa sem a utilização da escrita, o que dificulta sua descrição
obscuridade
histórica.
(1150-800 a.C.)
Período arcaico Consolida-se o conceito político de pólis, ao mesmo tempo
em que é criado o alfabeto fonético e há o desenvolvimento
(800-500 a.C.)
urbano e econômico.
Período clássico Auge do Império Grego, destacando as cidades-estados de
Esparta e Atenas. Etapa marcada por dezenas de guerras
(500-338 a.C.)
internas (Guerra do Peloponeso) e externas (guerras médicas).
Período helenístico Período marcado pela grande expansão macedônica, fazendo
(338-146 a.C.) fundir-se a cultura grega com outras culturas orientais.
FONTE: A autora
30
Nas distintas pólis, mesmo nas grandes Atenas e Esparta, havia especificidades
quanto aos modelos políticos que vigoraram em inúmeras ocasiões, são eles:
• Tirania: Diferente do que entendemos hoje, a tirania caracterizava-se pela tomada do
poder por um indivíduo nobre que elaborava leis e projetos políticos, alguns para
diminuir as desigualdades sociais, como divisão igualitária da terra e perdão de dívidas.
• Democracia: Grande conceito político legado ao mundo ocidental que se exercia
através da eleição de seus membros sorteados ou escolhidos entre os cidadãos.
• Aristocracia ou oligarquia: Nesse modelo, o cargo de magistrado era hereditário
e predominava a decisão dos conselhos.
Ao longo da história grega floresceram como principais cidades:
• Atenas: Principal cidade com forte desenvolvimento econômico. Berço da
democracia e da filosofia, foi fundada pelo Jônios, liderou a liga das cidades
democráticas (liga de Delos).
• Esparta: Sua grande característica diz respeito à sua educação. Os meninos já eram
treinados e educados com um único propósito: servir Esparta. Quando a criança
completava sete anos de idade, a responsabilidade de orientá-lo não cabia mais
aos seus pais e sim ao Estado espartano.
FIGURA 10 – MENINO TRANSFORMADO EM SOLDADO
FONTE: <http://kid-bentinho.blogspot.com.br/2013/12/9-razoes-que-mostram-o-quao-dificil-era.html>.
Acesso em: 11 abr. 2017.
DICAS
No site a seguir, você encontrará interessantes informações do modo
de vida espartano e quão difícil era viver naquela cidade e naquela
época:
http://kid-bentinho.blogspot.com.br/2013/12/9-razoes-que-mostram-o-
quao-dificil-era.html.
31
Em particular, os atenienses consideravam a vida pública, a vida na pólis, a
forma mais perfeita de convivência humana que deveria ser aprimorada pelos homens.
No período áureo da democracia (entre os anos 580 a 338 a.C.), os cidadãos, homens
livres e iguais, deliberavam sobre seus destinos políticos. A concepção de cidadania
grega é muito distinta da atual. Apenas eram cidadãos os nascidos em Atenas, homens
e maiores de 20 anos, ficando excluídos os estrangeiros (metecos), as mulheres e a
grande massa de escravos.
Para os atenienses, o homem que não era político ou não se interessava pela
política era um inútil.
Reunidos na Ágora, espécie de praça pública, deliberavam com entusiasmo
sobre as grandes questões da pólis, desempenhando o mesmo papel que hoje é
reservado aos Parlamentos de Estado. Esse era o sentido de democracia: o cidadão
decidindo diretamente sobre seu destino. Porém, se compararmos aos dias atuais, o
procedimento não era democrático, uma vez que poucos participavam e decidiam.
Segundo os historiadores, Atenas, por volta do ano 480 a.C., contava com 30.000
cidadãos (homens livres e adultos), 90.000 mulheres e crianças, e mais a grande
massa de escravos e estrangeiros, somando um total de 150.000 habitantes.No auge
dessa civilização, em 430 a.C., Atenas chegou a ter 250.000 habitantes, sendo 40.000
cidadãos, 120.000 mulheres e crianças, 20.000 estrangeiros e 60.000 escravos.
FIGURA 11 – ÁGORA - SÍMBOLO DA DEMOCRACIA
FONTE: <http://pra-pensar.org/wp/blog/2014/04/16/a-democracia-nao-existe-viva-a-democracia/>. Aces-
so em: 11 abr. 2017.
32
Em Atenas, pelas constantes guerras e condições de saúde da época o índice de
mortalidade era muito alto e, consequentemente, a longevidade era baixa. A cada 100
adultos com 20 anos, 70 viviam até 30, 25 até os 60 e somente 7 vivam até os 80 anos. A
mortalidade era maior entre as mulheres porque a gestação e parto eram de alto risco.
Os homens casavam-se, em geral, após o serviço militar, após os 30/40 anos e
as mulheres perto dos 20.
Os escravos trabalhavam ao lado de seus senhores na agricultura, no serviço
doméstico e públicos, como burocratas, recebendo tratamento quase familiar, pouco se
distinguindo dos homens livres, seja pela vestimenta, seja pela cultura ou modos. Os
escravos eram prisioneiros de guerra e de pirataria, vendidos por mercadores
estrangeiros, possivelmente capturados nas guerras. O que chama a atenção de muitos
historiadores é que se tem poucas notícias de rebeliões de escravos, diferente de
Roma, como veremos a seguir.
Nas relações familiares se conhecia o divórcio recíproco, com iguais direitos para
homens e mulheres. Praticavam de maneira legal o abandono de crianças.
Diferenciavam-se na maneira de se vestir, tornando visível a diferença entre pobres e ricos,
uma vez que as roupas tendiam a ser semelhantes para as mesmas classes sociais. Talvez
por essa razão se considerava crime o furto de roupas no ginásio de esporte.
A religiosidade grega era constituída por festivais, rituais, divertimentos,
sacrifícios, oráculos etc. Era um tipo de religiosidade pouco dogmática e pouco
doutrinária. Nos diz Finley (1998, p. 10) que:
O que falta – exceto entre raros pensadores isolados, sem influência
sobre o povo, como por exemplo, Platão e Epicuro – era um conjunto
de doutrinas sistematicamente formulado, um dogma ou um credo.
Assim, podia também ocorrer blasfêmia ou sacrilégio – mau
procedimento para com os deuses, o que lhes provocaria a ira, se
não fosse punido – porém nem ortodoxia nem heresia.
Toda religiosidade grega era inerente ao politeísmo, que foi aumentando pelo
acréscimo ao longo dos séculos de seres sobrenaturais – deuses, semideuses, espíritos,
demônios, heróis etc. – com “personalidades” peculiares. Não era possível conhecer a
to-dos e muito menos descrevê-los. Somente na Teogonia de Hesíodo constam 350 nomes.
33
NOTA
“Teogonia” é um termo que vem do grego “teo” (deus) e “gonia” (nascimento). Poema
épico escrito provavelmente no séc. XIII a.C., possui 1.022 versos, estabelece uma ordem
cronológica e hierárquica entre os deuses e demais entes mitológicos que faziam parte
do imaginário grego da época. Trata-se de uma obra grandiosa, comparada às grandes
narrativas de Homero.
TEOGONIA
FONTE: <https://www.resumoescolar.com.br/historia/teogonia-de-hesiodo/>. Acesso
em: 11 abr. 2017.
Cada comunidade cultuava suas divindades ou deuses protetores, para os
quais havia cultos cívicos e cada família reconhecia a deusa Héstia, protetora do lar.
Obedeciam aos oráculos e participavam das festividades promovidas pelo Estado ao ar
livre. Faziam altares e muitos sacrifícios e nada se prendia a uma autoridade central.
Não havia “igrejas”. Portanto, não havia seres humanos com missão divina. Nos diz
Finley (1998, p. 13) que “a palavra grega hiereus (sacerdote) normalmente se refere a
um celebrante leigo encarregado da administração do culto público”. Em Atenas, o mais
importante celebrante era um Arconte, que recebia o nome de baliseus. Regras e
procedimentos lhe eram impostos e ocupava o cargo por um curto período de tempo.
34
NOTA
“Arconte” eram os antigos magistrados, cargo reservado somente aos
cidadãos e filhos da pólis.
Politicamente, inexistia uma autoridade grega central. As pólis surgiram no
período helênico, que foi a fase áurea. Antes disso, o mundo era constituído por
pequenas comunidades autônomas que se autodenominavam poleis. Ocasionalmente,
faziam alianças entre si para guerrearem entre si ou comercializarem, mas nunca a
ponto de impor seus costumes ou cultura. Portanto, não havia uma uniformidade ou
unidade entre os gregos antigos.
Entendem muitos historiadores que esta autonomia e ausência de autoridade
central contribuía para a preservação do modo de pensar e ser do povo grego, porque
não havia contradição entre o “império” e o “súdito”, o que não despertaria sentimento
ou necessidade de resistência.
Porém, foi a política – vida na pólis – que permitiu florescer a civilização grega
a partir do séc. VIII a.C. Após o longo período chamado de homérico, porque nos é
permitido conhecer através das narrativas épicas de Ilíada e Odisseia, a realeza entra
em crise, cedendo espaço à aristocracia, que se apropria progressivamente das
prerrogativas de poder. Nesta fase, o poder é repartido entre as elites, que o
desmembram em três funções: militar – exercida pelo Polemarco; administrativa –
exercida pelo Arconte e religiosa – exercida pelo Arconte Baliseus.
Neste primeiro momento, o poder começa a sair das mãos da aristocracia (esfera
privada) e vai sendo transferido para a ordem pública. Assim, o poder não é mais exercido
por uma pessoa. O poder – arché – passa a ser uma função cujo exercício é escolhido por
tempo determinado e começa a ser apropriado pelos que possuíam direito de cidadania. Ao
longo da história de Atenas, principalmente entre os séculos VIII e IV a.C., há uma
crescente expansão das prerrogativas políticas para os homens livres, que vai edificar o
grande legado daquela civilização: a democracia, chamada como isonomia – igualdade
perante a lei. Esse regime tornou-se complexo, caracterizado pela rotatividade de controle e
exercício de poder, assegurando a maior participação possível.
Esse regime teve como base as reformas políticas promovidas por Clístenes
(509-508 a.C.), que democratizou os mecanismos de participação, csegundo os quais
cada cidadão, em algum momento de sua vida, seria governante. Dessa maneira,
rompiam-se as barreiras entre governantes e governados e os cidadãos tornam-se
“senhores de seu destino”.
35
É a partir dessas bases que vamos compreender o direito grego, porque é o
direito que estará nas bases de sustentação desse regime.
2 A CONCEPÇÃO DE DIREITO E JUSTIÇA GREGA
É comum se dizer que os gregos, ao contrário dos romanos, na tradição
jurídica pouco legaram ao Ocidente. Essa é uma meia verdade!
Primeiramente, a filosofia grega teve papel relevante para a edificação do
pensamento jurídico moderno. Conforme o estudo da Filosofia do Direito, a concepção
de lei como expressão da vontade de uma coletividade e como regulação da vida
comum na cidade – na pólis – é que norteou a filosofia grega para pensar a ordenação
do mundo a partir da racionalidade. Os sofistas, com seus debates filosóficos,
contribuíram para se pensar sobre as grandes questões humanas, a liberdade e o
sentido da justiça. Como se faz a lei? A quem elas servem e para que servem? Essas
questões faziam com que os sofistas fossem malvistos. Talvez porque ensinavam o que
todos deveriam saber: o bem e o direito à liberdade.
Os debates filosóficos que se aprofundam e se reorientam com Sócrates,
Platão e Aristóteles, que foram além do senso comum, contribuíram para a criação de
um espaço público em que o discurso vai muito além do mito. Até então eram os
poetas-videntes que recebiam das deusas, ligadas à memória (deusa Mnemosyne),
uma iluminação, revelação sobrenatural, que dizia como os homens deveriam tomar
suas decisões segundo a vontade dos deuses. Com os filósofos surge a política e a
ideia de que os homens deveriam seguir as leis e a justiça segundo a vontade de cada
um, expressa publicamente, que deveria convencer aos demais. O diálogo, a palavra
partilhada, passa a conduzir a decisão racional. A políticavaloriza o humano, seu
pensamento e capacidade de persuasão.
A solidariedade cívica da vida na pólis exige regras universais e justas. Sobre o
assunto, Lima Lopes (2012, p. 22) traz que:
Talvez não seja por acaso que os estoicos no final do século IV a.C.
e nos séculos seguintes completem mais um salto qualitativo na
direção da universalidade. Se acima das solidariedades familiares é
possível construir uma solidariedade cívica, então é possível que
haja uma solidariedade ainda mais universal, cosmopolita. Num
mundo construído pelo império helenístico e depois pelo império
romano, num Mediterrâneo totalmente helenizado, os estoicos vão
pregar uma cidadania universal, um pertencimento ao gênero
humano. E os juristas romanos serão, a seu tempo e a seu modo,
influenciados pelas reflexões estoicas, para falarem de ius gentium.
Lima Lopes (2012) ainda nos esclarece muito bem como os debates filosóficos
acerca da pólis vão edificando uma civilização que será vista pelos estrangeiros e por si
mesmos como um modelo.
36
Compreender o direito e a justiça grega é compreender o próprio modo de vida
na cidade como resultado da superação dos antigos vínculos familiares, portanto,
deve-se estudar o direito grego desde a consolidação da política e da filosofia, uma vez
que as leis e seus fundamentos brotam das relações entre os cidadãos unidos pelo
sentimento de justiça.
Porém, estudar direito grego exige do pesquisador um grande esforço, uma vez
que há precariedade de suas fontes, mas quais são as fontes do direito grego? Para o
historiador Gilissen (1995, p. 11), são cinco as fontes do direito:
• As epopeias de Homero (Ilíada e Odisseia).
• Os discursos e obras literárias e filosóficas.
• As inscrições jurídicas encontradas nas obras arquitetônicas.
• Os fragmentos de leis.
DICAS
Pesquise a respeito da famosa Biblioteca de Alexandria, que reuniu as
maiores obras da antiga Grécia. Diziam que reunia os “livros de todos os
povos da Terra”, chegando a reunir milhares de antigos pergaminhos e
rolos de manuscritos. Diversas narrativas contam acerca da destruição.
Há um interessante filme que, certamente, você gostará, “Alexandria”,
em https://www.youtube.com/watch?v=6UURHhHiIc4.
Por exemplo, na conhecida e clássica obra de Sófocles Antígona, escrita no
século V a.C., Antígona era uma das filhas de Édipo, trágica figura masculina
amaldiçoada pelos deuses por ter assassinado seu pai e, por engano, casado com sua
mãe e ter assumido o trono do pai assassinado. Após a morte de Édipo, conta a
estória, irrompe uma guerra civil e trava-se uma batalha nas portas da cidade de Tebas.
Seus dois filhos comandam facções rivais e travam uma batalha e matam-se. O irmão
de Édipo, Creonte, tio de Antígona, era então senhor da cidade e resolve transformar a
morte de Policine, o irmão que havia lutado contra ele em escárnio, e determina que
seu corpo permaneça insepulto. A morte seria decretada ao que contrariasse tal ordem.
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FIGURA 12 – ANTÍGONA ENTERRA SEU IRMÃO
FONTE: <http://portfoliocursoevc.blogspot.com.br/2013/04/video-aula-1-contexto-historico-dos.html>.
Acesso em: 11 abr. 2017.
Antígona, perturbada pela morte dos irmãos, mas não aceitando que um fosse
sepultado com honras enquanto o outro servisse de comida para os abutres, decide
contrariar o rei. Ela se sente motivada pelo dever normativo que transcende sua
posição de súdita e, entre a obrigação imposta pelo rei e as leis divinas de sepultar seu
irmão, dá ao corpo de Polinice um fim honroso. Quando descoberta, é levada diante do
rei Creonte, que oferece a oportunidade de negar que tivesse conhecimento de sua lei,
sua determinação, a fim de salvá-la do triste fim. De forma corajosa, Antígona nega a
oferta do rei. Leia o belo diálogo:
Creonte: ô Antígona. Que parte da minha ordem “não pode enterrá-lo” você não
entendeu? Vai dizer que não sabia?
Antígona: Estaria mentindo se dissesse que não conhecia a ordem. Como poderia
ignorá-la? Ela era muito clara.
Creonte: Portanto, tu ousaste infringir a minha lei? Tá maluca?
Antígona: Descumpri mesmo. Quer saber por quê? Porque não foi Zeus que a
proclamou! Não foi a Justiça, sentada junto aos deuses inferiores; não, essas não são
as leis que os deuses tenham algum dia prescrito aos homens, e eu não imaginava
que as tuas proibições fossem assaz poderosas para permitir a um mortal descumprir
as outras leis, não escritas, inabaláveis, as leis divinas! Estas não datam nem de hoje
nem de ontem, e ninguém sabe o dia em que foram promulgadas. Poderia eu, por
temor de alguém, qualquer que ele fosse, expor-me à vingança de tais leis?
Esta magnífica obra nos traz muitas tensões, dentre as quais as “legais”, quais
sejam:
38
• A exigência do Direito Natural frente ao Direito Positivo.
• A imperatividade da norma jurídica.
• O primitivo e incipiente exemplo de desobediência civil.
• O dever do indivíduo para com sua família versus seu dever para com o Estado.
• A subjetividade individual frente às regras objetivas do corpo social.
O drama existencial de Antígona é muito pessoal e as regras do poder
instituído não lhe davam respostas! Será que nos dias de hoje dariam?
Antígona nos fala dos aspectos trágicos e contraditórios da existência humana,
talvez sem solução.
A obra nos serve de início ao estudo do direito grego. Nos ensina que quando
as instituições não oferecem possibilidade de debate e questionamentos, emergem
ambiguidades e abusos de poder.
As leis mais antigas que se conhece são as leis de Drácon, de 621 a.C.
Colocam fim à solidariedade familiar e tornam obrigatório o recurso aos tribunais para
os conflitos entre os clãs. Como já dito, o fim da solidariedade familiar cria as bases
para uma solidariedade cívica, para além do círculo familiar.
FIGURA 13 – DRACO - LEGISLADOR GREGO
FONTE: <http://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/draco-o-primeiro-dos-draconianos/#>.
Acesso em: 11 abr. 2017.
Conhecido pela severidade, lei draconiana passou a ser sinônimo de lei dura, o
primeiro código de Atenas introduziu importantes conceitos do direito penal, tais como:
a diferença entre homicídio voluntário, involuntário e legítima defesa.
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Posteriormente, já entre os anos de 594 e 593 a.C., Sólon cria um novo código de
leis, promovendo ampla reforma institucional, social e econômica. Na economia, além de
incentivar a cultura de oliveiras e vinhas, bem como a exportação de azeite, atraindo muitos
estrangeiros com a promessa de cidadania, obrigou os pais a ensinarem um ofício a seus
filhos, sob pena de ficarem desobrigados a ampará-los na velhice. Criou o Tribunal da
Heliaia, no qual qualquer pessoa poderia recorrer garantindo o princípio de que a lei está
acima de qualquer magistrado. Esse Tribunal julgava tanto causas públicas como privadas,
exceto os crimes de sangue. Seus membros eram os chamados heliastas e eram escolhidos
por sorteios anuais entre os cidadãos. Juridicamente, Sólon instituiu a igualdade civil e
suprimiu a propriedade coletiva dos clãs, além de acabar com servidão por dívida,
estabeleceu institutos importantes como a adoção, testamento etc.
A democracia é uma criação de Sólon. Através de assembleias, os cidadãos
tomavam a justiça em suas mãos e com isso promoviam o debate sobre a justiça e o ético.
Nesse modelo, a retórica era parte essencial para o convencimento daquilo que
cada cidadão defendia e acreditava. O objetivo era persuadir pela força dos argumentos.
Na prática da justiça ateniense não havia advogados, juízes, promotores
públicos; apenas os litigantes, os adversários, se dirigiam aos membros do Tribunal.
Pensar em prática de advocacia naquele tempo era impossível! Seria uma espécie de
cumplicidade para enganar e/ou fraudar. Mesmo assim, havia os chamados
“logógrafos”, que redigiam os discursos que a parte deveria fazer.
Para evitar a corrupção na prática da justiça, os gregos criaram a “delação
premiada”, mas acabou por existir a odiosa figura do falso delator, que recebia o nome
de sicofanta, adjetivo pejorativo e desonroso, que significa caluniador e mentirosointeresseiro!
Portanto, toda base do direito e da democracia ateniense era a soberania
popular, que era expressa na voz de seus cidadãos, no exercício de suas funções
públicas, no voto nos tribunais e na participação em assembleias e conselhos. Observe
a figura a seguir:
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FIGURA 14 – ANTIGA ATENAS
FONTE: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protagoras2/links/atenas.htm>.
Acesso em: 11 abr. 2017.
A figura é uma representação da antiga Atenas. Veja que a Ágora – praça
central da cidade – ocupa lugar de destaque. Aí ocorriam os grandes debates políticos.
A arquitetura da época nos diz muito sobre como era o cotidiano da cidade.
3 A ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E
JUDICIAL DE ATENAS
Como já dissemos, Atenas não somente era a mais importante cidade grega
antiga. Também foi o berço da erudição, da filosofia, do conhecimento, um centro
cosmopolita que alcançou grande desenvolvimento. Em suas ruas circulavam filósofos
e artistas atraídos pela valorização da cultura de seus habitantes.
Chamava a atenção a sofisticada organização judiciária em Atenas, que se
tornou clássica no Ocidente.
Em síntese, havia duas espécies de órgãos de jurisdição: para os crimes
públicos e para casos menos importantes. Estes últimos eram feitos por um magistrado
singular ou poderia ser pedido apelo para Assembleia propriamente (Heliastas), que
funcionava em grupos.
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Para os crimes públicos:
• Assembleia do Povo: composta por senadores e magistrados populares que
decidiam sobre crimes políticos graves.
• Aerópago: o mais antigo e célebre Tribunal. Julgava crimes apenados com a morte.
• Tribunal dos Efetas: composto por 51 juízes escolhidos pelo Senado, julgava
homicídios não premeditados.
• Tribunal da Heliaia: Assembleia que se reunia em praça pública julgando recursos.
Evidente que a ausência de juristas profissionais e a confusão de leis
acabavam tornando os Tribunais espaços de debates políticos.
Nos tribunais apenas se provava o direito, segundo a lei ou o costume, além dos
fatos. Também não havia uma execução judicial: o queixoso recebia o julgamento e se
encarregava de executá-lo. Não havia polícia judiciária como entendemos nos dias de hoje.
FIGURA 15 – ORATÓRIA - TRIBUNAL GREGO
FONTE: <https://salmopresente.wordpress.com/2014/05/07/a-teologia-dos-filosofos-gregos-e-a-teolo-
gia-crista/>. Acesso em: 11 abr. 2017.
42
Afinal, como funcionavam os tribunais?
Como já dissemos, era indigno e imoral receber dinheiro pela defesa de alguém e, por
essa razão, quando isso ocorria, era às escondidas! A ideia era a de que qualquer cidadão
po-deria se apresentar no tribunal perante juízes para receber uma resposta simples: sim ou não.
Foi imenso o legado grego ao direito contemporâneo, tanto nos universais
conceitos de justiça e democracia, como em algumas características essenciais de
nosso direito, tais como:
• A mediação e arbitragem.
• A retórica e eloquência jurídica.
• A transferência de propriedade somente por contrato.
• O julgamento de um cidadão por seus pares, por cidadãos comuns. Prática
essencial da democracia e inventada pelos atenienses.
• Publicidade dos atos processuais como procedimento democrático.
• Diferenciação entre homicídio voluntário, involuntário e legítima defesa.
Os vestígios da clássica Atenas – esculturas, arquitetura, escritos etc. – são
suficientes para nos mostrar o quão grandiosa foi aquela civilização. O “mundo grego”
antigo foi portador de profundas mudanças na visão de humanidade, de vida coletiva e
do ser humano sobre si mesmo.
Por evidente que o modo de vida grego não era perfeito! Todavia, não eram
mais selvagens ignorantes e escravos da força das circunstâncias.
O breve trecho transcrito da obra de Aristóteles, “Política”, é o melhor
testemunho e atestado autorizado do que entendiam os gregos por democracia, justiça
e liberdade, sem dúvida, essências da condição de humanidade:
O fundamento do regime democrático é a liberdade; (com efeito, costuma-se dizer que
somente sob esse regime há liberdade, pois esse é o fim para o qual se destina a
de-mocracia). Uma das características da liberdade é ser governado e governar por turnos,
pois a justiça democrática consiste em possuir todos o mesmo numericamente, e não
segundo os seus merecimentos; e isto é justo, forçosamente há de ser soberana a
multi-dão, e o que esta aprovar, por maioria, será justo [...] Outra característica é viver
como se quer, a qual resulta daquela liberdade. Esta é a segunda democracia: não ser
governado por ninguém, se isto for possível, ou se governado por turnos [...] Sendo estes
os funda-mentos da democracia, são procedimentos democráticos os seguintes: todas as
magis-traturas devem ser eleitas entre todos; que todos mandem sobre cada um, e cada
um a seu turno, sobre todos; que as magistraturas sejam providas por sorteio, ou, pelo
menos, aquelas que não requeiram experiência ou habilidades especiais; que não se
fundamen-tem na propriedade, ou na menor possível; que, em princípio, a mesma pessoa
exerça duas vezes alguma magistratura; que as magistraturas sejam de curta duração [...]
que a assembleia tenha soberania sobre todas as coisas [...] (Política, 8,2,1.317a e 1.317b)
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4 O HELENISMO
“Helenismo” é o nome dado ao período compreendido entre a morte de Alexandre,
o Grande, em 323 a.C., e a anexação da península grega e ilhas por Roma em 146 a.C.
Nesta etapa da história, há uma grande difusão da civilização grega numa vasta área: do
Mediterrâneo oriental à Ásia Central. Representou a concretização do ideal de Alexandre: o
de levar e difundir a cultura grega nos territórios que conquistava. Foi um período áureo
para as ciências. Tempo que marcou a transição para o domínio e apogeu de Roma.
No século IV a.C., após os conflitos causados pela Guerra do Peloponeso, as pólis
gregas sentem de perto o declínio de seu poder. Já não podendo mais garantir a autonomia
de seus territórios, tornaram-se “presa fácil” para povos estrangeiros. Ao norte da Grécia, a
civilização macedônica começava a empreender um projeto expansionista que, em pouco
tempo, foi capaz de assegurar o controle sobre o mundo grego. A partir desse processo de
dominação é que se iniciou o chamado Período Helenístico.
Em três séculos há um processo de transformação na vida dos povos
conquistados. Hábitos são modificados e em especial há o ideal de estabelecer uma
língua comum com a superação do ático puro antigo. Prosperam a filosofia, a arte,
filosofia, arquitetura, medicina etc.
São erguidas grandes cidades e sofisticando-se as já existentes. Tessalônica,
Corinto, Pérgamo, Éfeso, Rodes, entre outras, tornam-se as grandes capitais do mundo.
FIGURA 16 – COLOSSO DE RODES
FONTE: <http://www.jornalissimo.com/curiosidades/423-10-curiosidades-sobre-o-colosso-de-rodes>.
Acesso em: 11 abr. 2017.
44
NOTA
Colosso de Rodes – uma das sete maravilhas do mundo antigo.
• Enorme estátua revestida a bronze representava Hélios, o deus grego do Sol. Hélio
era adorado pela população da ilha situada no Mar Egeu, que o via como seu protetor.
• O colosso foi erguido para celebrar a vitória dos gregos contra os macedônios (o povo
que habitava a antiga Macedônia, no norte da Grécia, cujo rei mais célebre foi Alexandre, o
Grande), que tentaram invadir a ilha de Rodes em 305 a.C., liderados pelo rei Demétrio I.
• A construção do monumento seria iniciada menos de dez anos depois, em 294 a.C.
Durante muitos anos, pensou-se que cada pé da estátua ficava de um lado da entrada
do porto da ilha e que os barcos passavam por baixo, mas esta versão foi afastada mais
tarde por estudos arqueológicos, que garantiram que a estátua se situava no cimo de
uma colina.
• O custo do Colosso teria sido suportado pela venda do material de guerra abandonado
pelos macedônios.
• A medida da estátua seria equivalente à de um prédio de dez andares - perto de trinta
metros de altura. O seu peso é estimado em 70 toneladas.
• Calcula-se que tenham sido precisos doze anos para erguer o Colosso. Permaneceu
em pé pouco mais do que 50 anos.Em 225 a.C. um violento tremor de terra fê-lo ruir.
Mesmo em pedaços, o monumento continuou a atrair pessoas.
• O que restava do gigante ficou em Rodes até 654 d.C. Nesse ano, os árabes
invadiram a ilha e venderam as ruínas em bronze.
• Até hoje, o Colosso de Rodes continua envolto em um enorme mistério. Há quem
pense que se trata apenas de uma lenda contada pelo povo da ilha, que foi passando
de geração em geração.
FONTE: http://www.jornalissimo.com/curiosidades/423-10-curiosidades-sobre-o-co-
losso-de-rodes. Acesso em: 11 abr. 2017.
Alexandria passa a ser um grande centro cosmopolita de população heterogênea
com tradicionais famílias egípcias. De uma aldeia de mercenários rudes, Alexandria se
transforma em um grande centro de comércio e navegação. O esplendor de sua biblioteca
atraía um sem-número de jovens, pesquisadores, estudiosos e educadores.
O helenismo carrega em si um paradoxo: ao mesmo tempo em que se assiste
à decadência das cidades-estados, o espírito que dali partiu se expande e se
aprimora. Assim, o velho “mundo grego”, embora fragmentado e dividido pelos grandes
generais e conquistadores que sucederam a Alexandre, sobrevive.
No pensamento dos epicuristas e estoicos, supera-se a preocupação filosófica dos
clássicos pensadores políticos gregos. Na época helênica, os propósitos da reflexão se
dirigem à busca de regras universais capazes de conduzir os homens a uma nova
concepção de mundo e de vida. Busca-se uma “âncora” filosófica para a vida espiritual.
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Qualquer pessoa minimamente culta deveria adotar atitudes fundadas no culto à
amizade, amabilidade social, prudência, virtude e um modo inabalável e positivo de
seguir a vida.
Epicuro de Salmos e Zenão ensinavam que é necessário nos afastarmos das paixões e
buscar um ponto de equilíbrio para superar o desatino das emoções e o autocontrole excessivo:
o justo está no meio! A serenidade do espírito, diziam, conduz a uma vida feliz.
Séculos depois, essas doutrinas renascem em Roma através de Cícero e Sêneca.
No Ocidente, ao longo da história, nunca se deixou de admirar a extraordinária
e complexa cultura grega. Para nós, juristas, o legado grego, mantido e aprimorado por
Roma, é permanente fonte de compreensão de conceitos universais que se
imortalizaram. Ainda nos dias de hoje, passados muitos séculos, estamos buscando o
essencial e substancial na justiça, ética e direito. A história grega segue entre nós. No
entender do pensador Finley (1998, p. 345):
Quer tivessem uma visão original das coisas porque chegaram primeiro,
quer fosse por acaso que, chegando primeiro, reagissem à vida com
uma perspicácia sem paralelo, os gregos, de qualquer forma,
mantiveram um brilho perene, como se o mundo fosse iluminado por
aquela espécie de luminosidade das seis da manhã sobre o orvalho
indelével na grama. A cultura dos gregos permanece entre nós, porque
esse frescor puro torna-a nosso modelo como a própria juventude.
FIGURA 17 – ATENA - DEUSA DA SABEDORIA, PRUDÊNCIA, CAPACIDADE DE REFLEXÃO,
PODER MENTAL, AMANTE DA BELEZA E DA PERFEIÇÃO
FONTE: <http://www.infoescola.com/mitologia-grega/atena/>. Acesso em: 11 abr. 2017.
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5 O LEGADO ROMANO
O legado grego e o helenismo se expandiram e se perpetuaram graças ao
Império Romano a partir do século II a.C., quando Roma leva a cultura e civilização do
Mediterrâneo oriental para o Norte e Oeste europeu.
Roma foi uma das grandes, se não a maior, potência política da história. A
expansão imperial para inúmeros poderosos reinos e cidades, como Cartago e
Macedônia, além de prósperas cidades gregas derrotadas em guerra e que tiveram
seus territórios anexados, fez de Roma, em 150 a.C., “senhora do Mediterrâneo”.
Para os povos conquistados da Europa Central e Ocidental, a expansão
imperial romana trazia consigo, além da cultura, a dominação militar e econômica.
Todos sucumbiam. As cidades gregas que se alastravam pelas costas do Mediterrâneo,
as terras cartaginesas no norte da África e Ibéria ocidental, os territórios etruscos do
Norte da Itália foram dominados. No auge da conquista, mesmo com disputas e crises
políticas internas, os romanos se impunham aos “bárbaros”.
O comércio era intenso. Os mercadores romanos levavam vinho e artigos
diversos por um vasto território que alcançava o sul das ilhas britânicas, e traziam
metais, peles, mel, lã, azeite etc. e comercializavam escravos.
As conquistas eram movidas por ambição, pelas recompensas para os aliados
e pelo ganho financeiro. Na época de Augusto (27 a.C. – 14 a.C.) a tarefa mais urgente
era alimentar uma população de quase 1 milhão de pessoas que viviam em Roma. O
domínio era visto como necessidade de sobrevivência. Para que os imperadores e
senadores pudessem continuar no poder, distribuíam para o povo pão, vinho e os
grandes espetáculos no Coliseu, pois sabiam que a fome e a falta de atenção voltada
para a política trariam distúrbios indesejáveis.
O grande filósofo e orador Marcus Tullius Cicero (106 a.C. - 43 a.C.) afirmava que
Roma ia à guerra por seus mercadores, que muitas vezes eram os próprios membros do
Senado, ou seja, decidiam sobre a guerra porque lucravam com ela.
Observe no mapa a extensão que atingiu o Império Romano ao longo de sua
história de conquistas:
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FIGURA 18 – IMPÉRIO ROMANO
FONTE: <http://gabinetedehistoria.blogspot.com.br/2015/05/o-mundo-romano-parte-iii.html>.
Acesso em: 11 abr. 2017.
Roma legou uma imensa herança ao mundo e em particular ao direito
ocidental. Entre rupturas e reinvenções, o direito romano sobreviveu quando
redescoberto o Corpus Iuris Civili na Idade Média e renascido na doutrina jurídica do
século XIX. Estudando as instituições e institutos romanos, vemos que existem mais
diferenças que semelhanças. Foram cerca de 700 anos de legado! O direito romano, a
partir de um conjunto de normas esparsas que regiam os conflitos dos antigos
romanos, ao longo de mais de 12 séculos, foi sendo reelaborado e permanece nas
instituições liberais dos Estados contemporâneos.
José Cretela Júnior (1998, p. 9), grande estudioso do direito romano, chama
atenção para os diferentes significados da expressão “direito romano”:
A expressão direito romano é empregada ainda para designar as
regras jurídicas consubstanciadas no Corpus Juris Civilis, conjunto
ordenado de leis e princípios reduzidos a um único corpo,
sistemático, harmônico, mas formado de várias partes, planejado e
levado a efeito no século VI de nossa era por ordem do imperador
Justiniano, de Constantinopla, monumento jurídico da maior
importância, que atravessou séculos e chegou até nossos dias.
A divisão do Império Romano em 395, após a morte de Teodósio, entre Império
Romano do Ocidente e Oriente, e a posterior queda como resultado de uma soma de
fatores, tais como o enfraquecimento militar, crise do escravismo e expansão bárbara, não
foram suficientes para colocar fim à cultura e ao direito romano. O grande legado deve-se a
Flavius Petrus Sabbatius Iustinianus (483 – 565), conhecido como Justiniano I, imperador do
Império Romano do Oriente. De origem humilde, foi nomeado cônsul por seu tio que o fez
sucessor. De inteligência ímpar, tornou o Império Bizantino um esplendor.
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Seu grande mérito foi o de ter conservado, através do trabalho de
compiladores, as obras dos jurisconsultos romanos. Mesmo após o fim de Roma,
Justiniano, em 438, publica sua grande obra: Corpus Juris Civilis. O trabalho era
composto por quatro partes distintas:
• Codex: leis imperiais.
• Digesto (Pandectas): compilação dos mais de 1.500 livros escritos pelos
jurisconsultos, particularmente as obras de Ulpiano, Gaio, Papiniano, Paulo e
Modestino, que elaboravam pareceres e conceitos jurídicos.
• Institutas: espécie de manual para ensino do direito.
• Novelas (Novallae): espécie de constituições imperiais feitas pelo próprio
Justiniano depois da publicação do Codex.
FIGURA 19 – CORPUS JURIS CIVILIS
FONTE: <http://sala2epcd.blogspot.com.br/2014/10/progressao-parcial_23.html>. Acesso em: 11 abr. 2017.
FIGURA 20 – JUSTINIANO
FONTE: <http://sala2epcd.blogspot.com.br/2014/10/progressao-parcial_23.html>.Acesso em: 11 abr. 2017.
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Embora a expressão Corpus Juris Civilis não tenha sido criada por Justiniano,
mas possivelmente pelo romanista francês Denis Godefroid por volta do ano 1583, em
geral, traduz todo o trabalho composto pelas Institutas, Pandectas, Digesta e Codex.
Graças a esse enorme esforço é que o direito romano foi legado para a posteridade.
Além da lei das XII Tábuas, a Lex Licinia, de 357 a.C., foi feita para permitir o
casamento entre patrícios e plebeus. Para as hostes ou peregrinos (os “estrangeiros”)
eram concedidos alguns direitos – Ius gentium – que regulavam a convivência com os
patrícios. Os não romanos constituíam uma gama imensa de indivíduos, desde as
pessoas livres até os rendidos em guerras.
Em síntese, Roma era um universo fragmentado e complexo que se expressa
no direito. Como chama atenção Juan Ramón Capella (2002, p. 65-66):
O estatuto pessoal não coincidia exatamente com a riqueza: um ci-dadão
romano pobre podia ter em uma província do Império privilégio de que
careciam os ricos do lugar (Paulo de Tarso não deixou de invo-cá-los
quando lhe detiveram as autoridades provinciais judias). A si-tuação dos
escravos era desesperada: muito poucos podiam esperar passar a
serem livres – acaso a velhice, e isso se tratava de pessoas que
houvessem prestado serviços especiais a seus donos –; a mul-tidão de
escravos que se rebelou com Espártaco foi integralmente exterminada
depois da derrota militar (71 a.C.), única ocasião em que Roma realizou
uma guerra de extermínio, claramente “exemplar”.
A rebelião liderada por Espártaco, um valoroso combatente vencido em guerra
que se tornou gladiador e revolucionário, colocou literalmente Roma em colapso.
Chegou a reunir cerca de 90 mil combatentes e após muitas batalhas acabou morto em
combate, enquanto outros seis mil sobreviventes foram crucificados na Via Ápia –
caminho entre Roma e Cápua.
DICAS
Espártaco: a respeito do tema, existem filmes clássicos e alguns sites
interessantes, como http://bit.ly/3Oywak4. Acesse e confira.
Pode-se afirmar que, em linhas gerais, o antigo direito romano se caracterizava
por ser:
1. Parcialmente plural: porque conviviam distintas fontes de regulação para os
distintos indivíduos que habitavam ou circulavam no território romano.
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2. Formalista: desde sua origem os romanos exerciam rituais para dar efetividade e/
ou legitimidade aos atos judiciais.
3. Parcialmente não estatal: havia regulações, normas válidas, que nasciam dos
costumes e tradições dos povos submetidos ao poder imperial romano. Além disso,
era permitido que fossem criados acordos ou pactos entre particulares. Portanto, o
direito não nascia exatamente de uma autoridade, mas entre pactos e práticas
existentes que foram se justificando.
4. Tecnicista: ao longo do tempo, os pretores – magistrados que tratavam de
questões jurídicas, divididos entre urbanos (questões jurídicas da cidade) e
peregrinos (questões jurídicas em áreas rurais), exerciam o cargo por cinco anos –
publicavam Éditos que expressavam princípios, regras e fórmulas processuais que
utilizavam em suas decisões. Aos poucos os Éditos se transformaram em técnicas
que se institucionalizavam através das práticas dos tribunais.
FIGURA 21 – SENADO ROMANO
FONTE: <http://www.laifi.com/laifi.php?id_laifi=5285&idC=79256#>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Roma legou ao direito ocidental importantes institutos jurídicos, principalmente
no direito privado, criado para proteger os interesses dos patrícios. Os conceitos
jurídicos, a retórica e argumentação, bem como os institutos jurídicos constituíram uma
herança imensa e rica.
Embora sofrendo reinvenções de significados, destacam-se os seguintes
institutos jurídicos romanos herdados à contemporaneidade:
• Família: De forma muito distinta da atual, a família romana era o grupo submetido
ao poder do pater familias.
o O casamento tinha uma natureza social e jurídica. Era uma relação entre homem
e mulher sustentado pelo affectio maritalis e tinha a finalidade de gerar
descendentes.
51
o A mulher exercia papel social, mas estava vinculada ao marido por um poder
chamado manus, espécie de poder doméstico que conhecemos como poder
marital. O manus permitia ao homem castigar a mulher e repudiá-la. Com a Lei
das XII Tábuas criou-se uma exceção: o casamento sine manus. Porém, quase
que até recentemente na história, o casamento cum manus foi regra.
o Os romanos conheciam também o divórcio como instituto jurídico. O divórcio
colocava fim ao casamento. Nos tempos mais antigos, o divórcio apenas existia
na forma de repúdio, até que já na república poderia ocorrer por inciativa de
qualquer um dos cônjuges.
• Direitos Reais: O termo “reais” deriva da palavra “res”, que significa “coisa”. Coisa
é tudo aquilo que existe na natureza e pode ser incorporado ao patrimônio. Para os
romanos havia coisas corporais, individuais e autônomas.
Você notará ao estudar Direito Civil como esses conceitos são importantes!
Para os romanos havia três tipos de coisas: res divini iuris (propriedade dos
deuses); res communes omnium (coisas comuns como água e ar) e res publicae
(coisas de propriedade do Estado).
Ainda havia res mancipi (as que necessitam de ato solene para sua
transmissão) e res nec mancipi, móveis, imóveis, divisíveis e indivisíveis etc.
Ainda faziam a distinção entre os institutos da posse e propriedade. Posse é
derivada de uma condição jurídica, por exemplo, um contrato de arrendamento, era
uma condição originada de um fato. Já a propriedade era um poder absoluto sobre a
coisa, uma relação direta do proprietário com o bem. A propriedade derivava de um
direito. Não se tratava de um poder ilimitado, sendo restrito ao interesse de vizinhança,
por exemplo, a servidão, ou mesmo ao interesse público. Criaram os conceitos de
servidão, usufruto e enfiteuse como formas de limitação do direito de propriedade.
DICAS
Busque a diferenciação desses conceitos no direito civil. Há bons
dicionários jurídicos pela internet. Sugere-se https://dicionariojuridico.
online/.
Os romanos legaram os conceitos de Sucessão e Obrigações, que são
institutos jurídicos para regular as relações civis, como você verá ao estudar Direito
Civil Brasileiro.
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RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
• Os gregos antigos, particularmente, os atenienses, foram os que romperam com o
pensamento mítico.
• Os gregos elaboraram, desde uma cosmogonia, os grandes fundamentos éticos e
filosóficos do direito ocidental.
• Embora com distinções entre as pólis gregas, a relação entre direito, política e
cidadania é a essência do conceito de justiça naquela sociedade.
• O direito romano se constituiu desde relações sociais, políticas e econômicas da
antiga Roma.
• As profundas diferenças sociais entre patrícios e plebeus são as causas centrais da
criação do chamado direito civil romano, que era o direito dos patrícios.
• Os romanos foram “gigantes” na construção dos principais conceitos do direito civil
moderno.
• Há de se compreender o direito romano desde as distintas etapas históricas e
reinvenções pelas quais passou até chegar à modernidade.
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AUTOATIVIDADE
1 Uma das importantes fontes de estudo do antigo direito grego são as obras literárias,
dentre as quais a clássica obra de Sófocles "Antígona". Escrita no século V a.C., a
obra narra a trágica estória de Antígona que enfrenta um dilema legal após a morte
de seus dois irmãos, tendo que escolher entre o Direito Natural e o Direito Positivo.
Descreva a diferença para os antigos gregos entre Direito Natural e Direito Positivo.
2 O mundo grego antigo conheceu distintas formas de organização e instituições
políticas e jurídicas. Entretanto, de todas as pólis gregas, uma legou para a história
ocidental o modelo de democracia e direito. Sobre essa pólis, assinale a alternativa
CORRETA:
a) ( ) Esparta.
b) ( ) Éfeso.
c) ( ) Macedônia.
d) ( ) Atenas.
3 Os romanos, além de terem edificado um dos maiores impérios da história, legou ao
Direito os institutos do Direito Civil, que foram sistematizados no séculoV por
Justiniano na obra conhecida como Corpus Iuris Civili. Escreva uma redação com o
tema: O LEGADO DO DIREITO ROMANO PARA O DIREITO CIVIL MODERNO.
4 Na Idade Média, o Direito Romano era mantido pelos estudiosos, sobretudo nas
pri-meiras universidades, como é o caso da Universidade de Bolonha, na Itália e
Sala-manca, na Espanha. Sobre o direito na Idade Média, assinale a alternativa
CORRETA:
a) ( ) O Direito Romano na Idade Média era objeto de estudo dos glosadores e
comentadores.
b) ( ) O Direito Romano era estudado também fora das Universidades, uma vez que
naquela fase era muito grande o número de pessoas que dominavam o latim.
c) ( ) Os romanistas eram apenas os católicos e o estudo do Direito Romano
deveria ser autorizado pelo papa.
d) ( ) O Direito Romano foi mantido pelos árabes muçulmanos, que foram os
grandes estudiosos da filosofia helênica.
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UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
O DIREITO NO MUNDO MEDIEVAL
1 INTRODUÇÃO
A verdadeira desintegração do Império Romano, longo processo que se inicia
em torno do século V, marcado pela divisão do império em Oriente e Ocidente em 476,
a expansão dos reinos bárbaros e a ascensão do cristianismo são fatores que marcam
a entrada do mundo ocidental em um novo estágio civilizatório. A Idade Média será um
longo período histórico marcado pela hegemonia do poder da Igreja, herdeira do legado
filosófico da antiguidade, e relações socioeconômicas feudais. Será uma etapa em que
os valores culturais, ideológicos, políticos e filosóficos se assentarão nos valores
cristãos e pela centralização do poder eclesiástico.
Apesar do legado cultural da antiguidade, a fase medieval é marcada por
profundas diferenças.
Enquanto na Antiguidade os homens eram valorizados por suas
posses, qualidades e por seus feitos heroicos, excluindo os pobres,
mulheres e os escravos, na sociedade cristã ocidental se reconhece
o homem como unidade composta de matéria e espírito. A reviravolta
proporcionada pelo cristianismo ao afirmar que o bem maior não é o
Estado, mas o homem dentro da sociedade, possibilita a edificação
da concepção transcendental de dignidade das ‘modernas
declarações de direito’ (WOLKMER, 2006, p. 38).
FIGURA 22 – SOCIEDADE MEDIEVAL
FONTE: <http://sociedademedieval.weebly.com/>. Acesso em: 11 abr. 2016.
55
Marcada por relações sociais estamentais – ordens/grupos sociais divididos e
sem mobilidade –, a sociedade medieval era um universo profundamente
hierarquizado, no qual a nobreza e o clero detinham o poder, restando aos servos a
submissão aos senhores em troca de proteção e uso da terra para a sobrevivência.
A doutrina cristã vai se definir como o eixo central da moral, ética, leis e
fundamento das instituições políticas e jurídicas desta etapa. É das lições do
cristianismo e dos fundamentos bíblicos aliados à releitura da tradição grega e romana
que serão elaborados os preceitos de direito e justiça.
Durante a Idade Média, no mundo ocidental, predomina uma visão homogênea
de cristianismo fundada em verdades e dogmas difundidos pelos doutores da Igreja. A
filosofia e o direito se submetiam ao controle da teologia cristã e da doutrina da Igreja,
que irão dialogar com pensadores como Platão e Aristóteles.
Aliar fé (pístis) e razão (logos) será o grande esforço desta etapa, que pode ser
sintetizada pelos seguintes elementos caracterizadores:
• A hegemonia do monoteísmo cristão no mundo ocidental.
• A adoção da teoria criacionista – origem do mundo e controle do tempo por Deus.
• O antropocentrismo – assumindo o homem (ser criado à imagem e semelhança de
Deus) lugar privilegiado na história.
• Condição humana marcada pelo pecado cuja redenção depende do perdão divino
condicionado à adoção do modo de vida cristão.
• A incorporação na natureza humana dual platônica – corpo e alma racional – o
espírito (pneuma) que é o elo como o divino através do exercício da fé.
• O sentido do amor divino como único verdadeiro que conduz à redenção.
• Concepção linear e progressiva da história (anunciando o fim com o Juízo Final).
É na Alta Idade Média, entre os séculos V e IX, que serão elaborados os
fundamentos da chamada Patrística, pelos padres (pais) da Igreja, cujos fundamentos e
sistematizações tiveram como objetivo central a criação dos dogmas centrais da
religião cristã que acabarão por institucionalizar a própria fé e, a partir dos princípios
desta fé cristã, extraídos os conceitos de Direito e Justiça que irão nortear as práticas
de controle daquela sociedade.
2 A PATRÍSTICA E O PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO
Muitos serão os padres que irão assumir a tarefa de edificar os fundamentos da fé
cristã, sendo este período conhecido como Patrística (etapa que se estende entre os
séculos II ao VI). Destes pioneiros da filosofia e teologia cristã, podem ser elencados duas
grandes correntes: os “filiados” à tradição helênica, mais especulativos e de discussões
mais metafísicas da teologia, como São Irineu, São Basílio, Orígenes; e os latinos,
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de inclinação mais prática, como São Ambrósio, São Jerônimo e Santo Agostinho.
Entretanto, é em Santo Agostinho que a Patrística encontra o ponto de convergência e
maior complexidade.
FIGURA 23 – SANTO AGOSTINHO (354-430) - MUSEU FITZWILLIAM - CAMBRIDGE
FONTE: <http://religiao.culturamix.com/santos/santo-agostinho/>. Acesso em: 11 abr. 2016.
Santo Agostinho, ou Aurélio Agostinho, o Bispo de Hipona, é considerado o
grande conciliador entre a filosofia grega e o cristianismo. O conjunto de sua obra tem
como ponto de partida a defesa da revelação da palavra de Deus na Bíblia; desde aí,
produz uma vasta produção cujos trabalhos mais relevantes para o Direito são
Confissões e Cidade de Deus. Na primeira narra sua trajetória de vida, que até sua
conversão passa por inúmeras experiências, dentre as quais o maniqueísmo, que
estará presente em seu pensamento. Sua conversão em 386 representa a absoluta
adesão à filosofia enquanto instrumento de reflexão e compreensão racional da fé.
A concepção agostiniana acerca do justo e injusto pode ser compreendida a
partir da própria teologia aliada à metafísica platônica, tão bem evidenciada na obra
Cidade de Deus. “O tema em Agostinho remete ao estudo do problema da justiça
fundamentalmente à discussão da relação existente entre lei humana (lex temporalem)
e lei divina (lex aeterna), onde está compreendido o estudo das diferenças, influências,
relações etc. existentes entre ambas” (BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 173).
Sua concepção de justiça tem no platonismo a principal fonte de inspiração e
justificação. Defende que a justiça humana – falha, transitória, imperfeita e corrupta
– apenas será corrigida pela justiça divina – eterna, perfeita e incorruptível. As leis
humanas, que regulam a relação entre os homens, devem ser inspiradas em leis divinas
que têm como fonte o maior dos legisladores: Deus, que diferentemente dos homens é
57
ilimitado, tudo sabe e tudo vê. Assim, a justiça divina deve comandar e inspirar a justiça
humana, que tem sua origem na própria criação de Deus, mas que por imperfeições e
erros humanos acabou sendo desvirtuada.
Há que se lembrar que na lógica judaico-cristã o pecado original corrompeu o
homem e está na base de todo sofrimento humano. Por sua própria culpa o homem é
corrupto, pois se afastou de seu Criador.
E, nessa ordem de ideias, em que homens, instituições, governos,
julgamentos, ordenações, organizações, comportamentos são
corruptos, também leis são corruptas. Este é o estado de coisas
humano: esse é o estatuto da lei humana. A justiça, portanto, nessa
orientação, é viciada ab origine. A justiça, dentro dessa dimensão,
vem compreendida como algo profundamente marcado pelos
próprios defeitos humanos (BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 177).
Embora a preocupação de Agostinho não tenha sido o tema do Direito, o
conjunto de sua obra permite extrair importantes elementos para a compreensão da
política, dos fundamentos e relações entre Direito Natural (divino) e Direito Positivo
(humano), legitimidade do poder político e o sentido da justiça.
Para TruyolSerra (1982, p. 215), Agostinho é pessimista em relação aos homens
– a crença no pecado original que corrompeu sua natureza divina –, o que faz com que
seja necessária a submissão da lei humana à divina, tendo a mesma lógica em relação
ao poder político. Portanto, a verdadeira justiça só será efetiva se alicerçada no
cristianismo e na prática da fé.
Em síntese, pode-se afirmar que sua doutrina possui os seguintes traços
característicos:
• A razão deve ser aliada à fé a fim de que seja possível a iluminação interior.
• Redefine o platonismo – é forte em sua obra o dualismo platônico como corpo/
alma; terreno/divino; imperfeito/perfeito; mutável/imutável etc. – encontrando na
transcendência divina cristã a essência da verdade.
• Desenvolve os grandes dogmas da Igreja, tais como o da Santíssima Trindade,
além da tese do criacionismo.
• Conceito de “mal” como mero resultado degradante do afastamento de Deus pelo
próprio homem.
• Existência concomitante de dois poderes: o Divino – que governa a Cidade Celeste
cujos cidadãos participam e comungam do amor de Deus – e o Humano – onde
vivem os que se afastaram do verdadeiro amor e serão julgados no Juízo Final.
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ESTUDOS FUTUROS
Na próxima unidade você poderá perceber que são muitos os
elementos do pensamento moderno em que se encontram elementos
do pensamento agostiniano, tais como o conceito de Estado e
legitimidade de poder político.
DICAS
Em http://www.mundodosfilosofos.com.br/agostinho.htm, você poderá
encontrar a biografia de Santo Agostinho.
Verá como o pensamento deste importante filósofo reflete suas
inquietações pessoais e trajetória de vida que o levaram à conversão e
a assumir a tarefa de edificar o fundamento do cristianismo.
Ainda, em https://www.wdl.org/pt/item/11301/, é possível consultar as
obras de Santo Agostinho.
No início do século XII o cristianismo e o poder da Igreja já haviam se consolidado
na Europa, perdendo, assim, urgência, a necessidade de afirmação da teologia cristã e a
autoridade intelectual dos doutores da Igreja, que já estavam consolidadas, não havendo
mais ameaça de nenhuma outra cultura ou forma de paganismo para suas estruturas de
dominação. O clero prosperava e já então era possível dedicar-se mais à investigação de
novas culturas, particularmente as do Império Bizantino e do islamismo, que souberam
preservar os antigos manuscritos da cultura helênica.
Num contexto sem precedentes de aprendizado patrocinado pela
Igreja e sob a influência das forças maiores que animavam a
emergência cultural do Ocidente, estava preparado o cenário para a
mudança radical nos alicerces da concepção cristã: no ventre da
Igreja medieval, a filosofia cristã de negação do mundo elaborada
por Agostinho e baseada em Platão começou a dar lugar a uma
interpretação fundamentalmente diferente de existência, conforme os
escolásticos recapitulavam a evolução intelectual do movimento de
Platão a Aristóteles (TARNAS, 2011, p. 198).
As transformações são desencadeadas desde então, coincidindo com a
redescoberta ocidental de boa parte dos textos de Aristóteles, preservados pela cultura
árabe, e desde então traduzidos para o latim, e com eles também obras da ciência
grega, particularmente a de Ptolomeu.
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Este inédito episódio, que trouxe uma complexa cosmologia científica e a
sofisticação aristotélica desconhecida, atrai os pensadores da Igreja, em especial os
escolásticos.
A Escolástica é o último período do pensamento cristão medieval, que vai do
começo do século IX até o fim do século XVI, da constituição do sacro romano império
bárbaro, ao fim da Idade Média, que se assinala geralmente com a descoberta da
América (1492). O termo escolástica tem sua origem relacionada à filosofia ensinada
nas universidades, pelos mestres escolásticos. Esta é uma etapa de grande avanço do
ensino superior, as universidades se tornaram centros de discussão, o que chamou a
atenção dos eclesiásticos para o “perigo” das diversidades acerca da verdade cristã.
Até quando, por autorização papal, em 1215, a Universidade de Paris recebe o direito
de autonomia em relação à busca pelo conhecimento.
A preocupação inicial de “contágio” do paganismo filosófico de Aristóteles à fé
cristã acabou tendo efeito não desejado e cada vez mais os “livros proibidos” passavam
a ser objeto de curiosidade e investigação.
DICAS
O clássico filme O Nome da Rosa, baseado no romance homônimo de
Umberto Eco e dirigido por Jean-Jacques Annaud, é uma ficção que trata
exatamente de uma trama diabólica e violenta que se abate sobre um
mosteiro no século XIV, quando valores e dogmas tradicionais do
cristianismo são questionados.
Na biblioteca do mosteiro, são mantidas, às escondidas, obras da
filosofia grega antiga consideradas heréticas, portanto perigosas para a
fé cristã. Aos curiosos, que liam às escondidas, é reservado o pior dos
castigos: a morte por envenenamento.
Caso não tenha assistido, sugerimos que o faça.
É neste ambiente de tensão, entre Fé e Razão, que Tomás de Aquino e seus
discípulos enfrentam, magistralmente, o desafio e aparentes contradições da cultura
grega e o cristianismo, preparando o firme terreno por onde se edificaria a ciência
moderna. A ele foi legada a tarefa de integrar de forma coerente o legado grego à fé
cristã, e, atento às transformações de seu tempo, soube dar “de modo impressionante a
virada do pensamento ocidental sobre seu eixo na Alta Idade Média para uma nova
direção da qual a mente moderna seria herdeira e depositária” (TARNAS, 2011, p. 201).
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FIGURA 24 – SÃO TOMÁS DE AQUINO
FONTE: <http://religiao.culturamix.com/santos/santo-agostinho/>. Acesso em: 11 abr. 2016.
Diferentemente dos teólogos tradicionais, Aquino não se opunha às inovações
da ciência, uma vez que reconhecia na natureza a criatividade divina, e conhecê-la não
era nenhuma ousadia, pois Deus ainda permaneceria soberano, uma vez que a
racionalidade humana era dom divino e o exercício da liberdade era dádiva por Ele
concedida.
Estava convencido de que a Razão e a Liberdade tinham valor em si e o
objetivo de ambas era servir mais a Deus. As qualidades humanas eram expressões do
próprio Criador, uma vez que o homem era feito à sua imagem e semelhança.
A obra de Tomás de Aquino é imensa, mas, sem dúvida, a Summa Theologica
é a que expressa de forma sistemática o pensamento cristão e a relação deste
com inúmeras matérias, como antropologia, política, ética e direito. Na concepção
tomista, o homem é um ser naturalmente voltado para a felicidade e o pecado é um agir
em sentido inverso que, pela bondade divina, constitui uma escolha, uma vez que o
homem
é um ser livre. A liberdade é a precondição para qualquer ato ser considerado
moral, pois um ato só é humano se for livre, ensinava Aquino.
A liberdade tem, para o pensamento tomista, como pressuposto, o conhecimento de
todas as alternativas para que possa escolher de forma virtuosa. Sendo, portanto, a
obrigação moral de origem natural no ser humano, que deve praticar o bem e evitar o mal.
Os fatores e condições aceitos que se apresentam razoáveis aos homens são:
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• O homem tem o dever moral de proteger sua vida e sua saúde,
razão pela qual o suicídio e a negligência constituem um erro.
• A necessidade natural de propagar a espécie resulta na
necessidade fundamental de união de um homem e uma mulher.
• Tendo em vista que o homem busca a verdade, seu melhor meio
de consegui-lo consiste em viver em harmonia social com seus
concidadãos, que também estão engajados em tal busca. Para
assegurar uma sociedade ordenada e harmoniosa, as leis
humanas são moldadas de modo que sirvam de diretrizes para
o comportamento da comunidade (MORRISON, 2006, p. 78-79).
Desde aí podem ser compreendidos os princípios que devem reger as leis
humanas, que se originam do estado natural do homem, devendo a razão e a moral
orientarem-se por estas tendências e capacidades. Tais qualidades formam o Direito
Natural, um hábito interior, mas pela insuficiência e incompletude humana é necessário
o Direito Positivo, portanto, obrigaçãomoral imposta pela razão.
A lei nada mais é que um ordenamento da razão tendo em vista o bem comum
promulgado por aquele que tem o encargo de cuidar da comunidade (pergunta 90, r. 4)
(AQUINO, 2001).
Aquino (2001 apud MORRISON, 2006) define a lei na lógica tomista como:
• Lei Eterna: a lei é um ditame da razão prática que emana do governo que rege
uma comunidade perfeita. Portanto, a ideia mesma do governo das coisas em
Deus, o senhor do Universo, tem a natureza de uma lei. E, como a concepção das
coisas da razão divina não está sujeita ao tempo, mas é eterna, conclui-se que
essa espécie de lei deve ser chamada de eterna (pergunta 91, r. 1).
• Lei Natural: a lei natural é a parte da lei eterna que diz respeito especificamente ao ser
humano. Se o homem não pode conhecer a totalidade de Deus, a racionalidade
humana garante sua participação na razão eterna, através da qual ele identifica uma
tendência natural (normativa) à prática de atos e a fins adequados. A lei natural nada
mais é que a participação da criatura racional na lei eterna (pergunta 91, r. 2).
• Lei Humana: as leis escritas – leis humanas – devem derivar de preceitos gerais
da lei natural. Sendo, portanto, o direito um “ditame da razão prática”. A forma de
se extrair as conclusões da lei é semelhante ao que ocorre com a “razão
especulativa”. Da mesma forma que chegamos a conclusões distintas nas ciências,
do mesmo modo, a partir dos preceitos da lei natural, a razão humana deve atingir
determinações mais particulares de certas questões. O que confere à lei sua
legitimidade é sua dimensão moral originada do Direito Natural.
• Lei Divina: sua função é dirigir o homem a seu devido fim, que é revelado nas
Escrituras Sagradas como forma de graça divina para que o homem possa atingir
seus fins espirituais e naturais. A lei divina provém diretamente de Deus e é
conhecida pela fé, esperança e amor.
62
Em síntese, pode-se compreender a teoria em Tomás de Aquino como parte do
pressuposto de o homem, enquanto ser racional e livre, escolhe sua conduta e, por não
conhecer plenamente os desígnios de Deus, desvia-se do verdadeiro caminho
pecando. Portanto, a autodeterminação que é uma bênção também é motivo da
perdição e causa do mal (ausência do bem).
3 A CULTURA JURÍDICA MEDIEVAL
Desde os primórdios do que iria ser definido como cultura jurídica medieval e
superadas as questões intelectuais e políticas que envolveram a cristandade,
proble-mas específicos na esfera jurídica apenas surgem no século XI, quando o
ambiente econômico, político e urbano do norte da Itália exige uma nova compreensão
inte-lectual da matéria jurídica e da administração da justiça, impulsionando uma cultura
profana acerca do direito orientada não apenas para e pelas autoridades, mas para um
mundo autônomo.
Diante disso, a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma forma modelar e
intemporal da sua própria vida. Os textos da antiguidade eram, por isso, intocáveis no
seu valor, se bem que a sua utilização (aplicação) na vida medieval continuava a
constituir um problema que exigia um enorme e continuado esforço da razão cognitiva.
Neste contexto, a expressão máxima de valor textual era a Sagrada Escritura e os
demais de cunho teológico a ela relacionados. De forma correlata, na esfera jurídica, o
texto que gozava do mesmo status era o Corpus Iuris, que exercia sobre o pensamento
jurídico medieval a força de uma revelação do direito.
É neste ambiente que na primeira metade do século XII o monge Irnerius,
ao iniciar sua cátedra em Direito Justiniano em Bolonha, deu origem à escola dos
glosadores, trabalho posteriormente seguido em distintas partes da Itália e França.
Segundo António Manuel Hespanha (2005, p. 198), “as características mais
salientes e originárias do método bolonhês são a fidelidade ao texto do códex Justiniano e o
caráter analítico e, em geral, não sistemático”. A justificativa para o apego fiel ao texto
é por ser considerado de origem sagrada, por acreditar-se na época que
Justiniano fosse contemporâneo de Cristo, sendo, portanto, inadmissível outra
interpretação que não consistisse num ato de humilde esclarecimento do sentido das
palavras.
Assim, o trabalho dos glosadores na interpretação exegética do texto de
Justiniano ia paulatinamente se transformando numa dogmática, por criar uma
linguagem técnica acerca do direito, entretanto, sem a preocupação exclusivamente
prática, mas com objetivo teórico-dogmático, ou seja, de demonstrar a racionalidade de
textos jurídicos sagrados.
63
Este trabalho acabou por influenciar a cultura jurídica da época, em função da
autoridade intelectual destes juristas, que gozavam de um prestígio próximo ao sagrado,
além da exegese textual, um verdadeiro racionalismo contemplativo e puramente intelectual,
que serviu de legitimação do direito positivo moderno, quando é travestido em “vontade
política geral” da nação com finalidade prática sob o comando do Estado.
Na Idade Média, quanto mais prática necessitava ser a interpretação dos textos
jurídicos, mais ia se aproximando de técnicas suficientemente capazes de harmonizar,
construir regras e princípios do que foi sendo definido como dogmática jurídica.
Entretanto, a esta dogmática jurídica faltava o revestimento da “verdade” enquanto
categoria lógica e autônoma.
O avanço no sentido de edificar a moderna cultura jurídica será dado pelos
comentadores, como foram designados os novos “práticos” do direito pré-moderno, que
acabaram por transformar o Direito de Justiniano no direito comum da Europa
(HESPANHA, 2005).
O avanço urbano e mercantil europeu dos séculos XIII e XIV exigia maior
valorização do direito local em relação ao direito comum cultivado pelos letrados. Estes
pós-glosadores, “arquitetos da modernidade” ao lado de Dante, Giotto e Petrarca, foram os
responsáveis em estabelecer a relação entre o jus commune com o jus speciale local.
Este processo acabou por conduzir a uma unidade racional e lógica das distintas
concepções, mas com uma finalidade prática, o que vai ultrapassando os glosadores por
constituir-se numa interpretação menos comprometida com a “sacralidade” dos textos de
Justiniano, além de também fundada numa atitude mais racionalista no sentido de guiar o
pensamento por critérios lógicos tal como haviam sido herdados por Aristóteles.
Entretanto, o direito, tanto para os comentadores, como havia sido para os
glosadores, era considerado um repositório de experiências de natureza indiscutível,
mesmo quando contraditório. Por esta razão, todo trabalho de sistematização foi
realizado segundo uma ordem formalmente preestabelecida, porém, criando inovações
dogmáticas que se tornam permanentes na modernidade.
A inovação no plano interpretativo foi a oposição entre o texto de lei (verba) e
seu espírito (mens). Esta distinção era baseada no princípio medieval da linguagem
segundo o qual as palavras eram invenções humanas feitas para permitir exteriorizar
um pensamento, um espírito, sendo as palavras verdadeiras expressões da alma. O
espírito da lei enquanto valor encontrava apoio, por exemplo, no Digesto, scire leges
non est verba earum tenere sed vim ac potestate (saber as leis não é dominar a sua
letra, mas seu sentido e intenção). Para além desta tarefa era realizado um outro
trabalho, mais importante: a interpretação lógica dos preceitos jurídicos.
64
A interpretação lógica partia da concepção de que o texto era a expressão de
uma ideia geral (ratio) tal qual o autor expressou em cada parte, sendo assim, o texto
compreendido a partir da inter-relação do conjunto dos contextos, ou seja, cada
preceito jurídico isolado é compreendido a partir do texto normativo que o constitui – do
instituto jurídico – extraído das ideias formadoras iniciais – a dogmática. A ratio legis
era obtida através de um procedimento lógico dialético, segundo as regras aristotélicas,
que acabava se tornando um processo inovador e, portanto, criativo.
4 A HERANÇA CULTURAL PARA A MODERNIDADE
O saber jurídico edificado pelos comentadores acabou por colocar em marcha
umalógica que conduziu à unificação interna do ordenamento jurídico, chegando no
século XVI já pronta para sua cientifização. Como lembra Hespanha (2005), o paciente
trabalho dos comentadores tornava viável um movimento de síntese, pelo qual todo o
direito fosse reunido num sistema teórico orgânico submetido a axiomas e regras.
Enfim, estava pronto e logicamente fundamentado um sistema coerente que
poderia adquirir novo status independente da tradição romanística, já sendo possível
avançar no sentido de libertar-se da árdua e laboriosa interpretação dos textos da
antiguidade para sua fundamentação, abrindo-se, assim, o direito para uma perspectiva
racionalista, produto de princípios universais que designam as condições institucionais
de normatizar as relações sociais. Estava definitivamente superada a fase de
construção sistemática do direito.
É o ambiente filosófico do século XVII que vai fornecer elementos para
uma concepção de direito estável e previsível, como a própria razão cartesiana
dominante. Um projeto perseguido pelos juristas modernos que se distinguia do
idealizado pelos romanistas clássicos, para os quais o direito era uma arte orientada
por regras prováveis de estabelecer o justo que admitiam conflito de opiniões. Com a
secularização do conhecimento e a quebra de hegemonia religiosa provocada pela
Reforma Luterana, a validade do direito deveria ser buscada independente da crença
religiosa. Com esta laicização, o fundamento do direito se desloca para valores
referenciais laicos, comuns a todos e válidos pela evidência exclusivamente racional. É
assim que se vai firmando o jusnaturalismo moderno, que se aproxima
metodologicamente das ciências matemáticas, uma tendência de submeter o mundo
humano ao mundo da natureza. Todos os seres regidos pelas mesmas leis e
movimentos, enfim, a ordem e certeza do otimismo cartesiano.
65
LEITURA
COMPLEMENTAR
NOTAS PRELIMINARES DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA: POR UMA
TEORIA DA HISTÓRIA DO DIREITO NO BRASIL
Gustavo Silveira Siqueira
Segundo António Manuel Hespanha, existem quatro modos principais de
enten-der a História do Direito: História das “fontes do direito”, História da dogmática
“jurídica”, “História das instituições” e a influenciada pela “escola dos Annales”, que aqui
intitula-se História social. A “História das fontes” preocupa-se em estudar as normas
jurídicas pro-mulgadas por determinado Estado. A “História da dogmática” descreve as
ideias dos dou-trinadores, preocupando-se com o desenvolvimento dessas e dos
sistemas “de conceitos utilizados pelos juristas para expor o Direito por eles
considerados vigentes”.
Preocupando-se com as leis positivas de determinado Estado, “história das
fontes” é de fundamental importância para que o pesquisador do Direito possa
conhecer as leis que regeram seu país em determinado período histórico, mas, por
outro lado peca, ao se preocupar somente com elas. Não basta o mero conhecimento
das normas jurídicas em determinado período, é necessário conhecer como a
sociedade relacionava-se com essas normas. É necessário perceber a eficácia, a
legitimidade e, em especial, os fundamentos políticos, jurídicos, sociais e econômicos
que levaram à positivação daquelas regras.
A “História da dogmática” poderia tentar suprir essas lacunas, mas o estudo
apenas de conceitos jurídicos em determinados momentos não resolve os mais graves
problemas enfrentados pela “História das fontes”.
A “História da dogmática” pode ser uma história desconectada da realidade, ao se
pautar apenas em grandes homens ou grandes pensadores que analisam os grandes feitos,
e se esquecem dos “pequenos homens” e dos “pequenos feitos”. A grande falha é que
esses modos de entender a História do Direito partem do princípio “de que o modo de ser da
ordem jurídica está dependente da vontade do legislador ou das construções intelectuais
dos juristas, pouco ou nada tendo que ver com os restantes aspectos da vida social”. Elas
sonegam o “estudo social do direito”, sonegam os diversos fatores relacionados à norma
jurídica: em especial, as causas e efeitos das normas jurídicas. As
66
causas, os motivos, os fundamentos da positivação de determinada lei e os efeitos que
essa lei surtiu. Especialmente no Brasil, que vive um constante descompasso entre a
aplicação do Direito e sua positivação, assim como das “ideias jurídicas” e da realidade
social, impõe-se o questionamento desses modelos.
A chamada História das instituições pretende identificar o Direito “não como um
conjunto de normas alheias à realidade social concreta, mas antes com uma
regulamentação da vida”, que “combinando-se e inter-relacionando-se com outros sistemas
de valores (moral, etiqueta, religião) na função, comum a todos eles, de resolver os conflitos
sociais e de dar coesão ao todo social”. Nesse sentido, a História das instituições estuda o
Direito relacionando-o com os fatos sociais, verifica como esse Direito é encarado pela
sociedade e que se relaciona com outros sistemas normativos sociais.
História social pretende, basicamente, superar a História positivista, superar as
barreiras entre diversos setores da História, com a finalidade de estabelecer uma História
global e, em especial, encara “a História não como ciência do passado – como atividade
intelectual que se esgota na erudição ou na busca do exotismo histórico –, mas como
ciência do presente, na medida em que, em ligação com as ciências humanas, investiga as
leis de organização e transformação das sociedades humanas”. Um estudo de História do
Direito, que busca uma visão completa de determinado fenômeno jurídico, em determinado
período social ou que tenta compreender normas que atravessam a História do direito, não
pode deixar de perceber todas essas metodologias. Todas essas correntes, e outras, devem
incomodar o pesquisador da História do direito, para que ele encontre essas visões não
como barreiras, mas como metodologias a serem superadas. Uma História do Direito,
conectada com a realidade brasileira, deve conhecer as leis, deve conhecer o pensamento
jurídico de determinada época, mas deve também perceber como a sociedade se
relacionava com essas normas jurídicas. Sem compreender isso, não é possível fazer uma
História do Direito condizente com as características do Brasil.
Se a intenção é entender como a História do Direito tem reflexos contemporâneos,
é necessário entender quais foram os efeitos daquele direito, naquele tempo
histórico. Não basta citar os artigos das Constituições, sem verificar seu compasso com
a realidade, sua eficácia, sua legitimidade e o motivo da sua positivação.
Assim, a pesquisa da História do Direito torna-se uma pesquisa complexa, tão
complexa quanto é a sociedade humana, mas, principalmente, torna-se uma pesquisa
interdisciplinar. Só com a interdisciplinaridade é possível fomentar uma pesquisa
histórica consciente do direito. O abandono, em especial da sociologia e da
antropologia, pode levar a uma História que não condiz com a realidade e pobre de
subsídios, incapaz de ajudar a compreensão jurídica do presente.
67
Nesse patamar, em um país de contradição, desigualdade e descompasso das leis
e constituições com a realidade, é fundamental a soma de todas essas metodologias para
uma compreensão mais satisfatória da História e do Direito no Brasil,
é uma necessária metodologia consciente, interdisciplinar, crítica, que possa
melhor compreender a cultura jurídica brasileira. Uma cultura extremamente complexa,
com diversas narrativas e tradições que sempre precisam ser “escovadas a contrapelo”,
revisitadas. A percepção dos problemas patrimoniais, individualistas e patriarcalistas,
que só serão conhecidos com uma visão plural, social da cultura jurídica.
FONTE: http://150.162.138.7/documents/download/625;jsessionid=D241B462905014C6D8CD5CE-
D097A2B6F. Acesso em: 24 abr. 2017.
68
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
• Surgem fatores que explicam a predominância do cristianismo na Idade Média.
• Há a consolidação da sociedade medieval e dos elementos caracterizadores.• Existem características gerais do pensamento jurídico medieval.
69
AUTOATIVIDADE
1 A Idade Média é um longo período histórico que se estendeu entre os séculos V a
XV. Foi uma etapa na qual foram sendo construídos os elementos políticos e jurídicos
que irão predominar na Modernidade. Naquele momento, a ideologia cristã tornou-se
o centro nuclear do poder e da cultura. Entre os fatores relevantes que justificam a
predominância do cristianismo, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) O cristianismo acabou por tornar-se uma forte ideologia pela defesa da crença
pagã.
b) ( ) Com a decadência política e religiosa romana a partir dos anos 30 d.C. assiste-se
um afastamento dos grandes valores e ideais de virtude e fé das práticas religiosas,
representando o cristianismo uma forma de restauração da espiritualidade.
c) ( ) A crença cristã floresce porque possui os mesmos cultos de adoração a
divindades romanas.
d) ( ) O cristianismo torna-se uma crença dominante por pregar a concentração de
poder e de riquezas pelas elites religiosas.
2 Na Idade Média, o Direito Romano era mantido pelos estudiosos, sobretudo nas
pri-meiras universidades, como é o caso da Universidade de Bolonha, na Itália e
Sala-manca, na Espanha. Sobre o direito na Idade Média, assinale a alternativa
CORRETA:
a) ( ) O Direito Romano na Idade Média era objeto de estudo dos glosadores e
comentadores.
b) ( ) O Direito Romano era estudado também fora das Universidades, uma vez que
naquela fase era muito grande o número de pessoas que dominavam o latim.
c) ( ) Os romanistas eram apenas os católicos e o estudo do Direito Romano
deveria ser autorizado pelo papa.
d) ( ) O Direito Romano foi mantido pelos árabes muçulmanos, que foram os
grandes estudiosos da filosofia helênica.
3 A Idade Média é o período histórico compreendido entre os séculos V e XV, marcado
por profundas transformações no modo de vida da população europeia, que terá no
cristianismo um dos elementos centrais da cultura, política e ideologia. Disserte
acerca dos fatores que explicam a ascensão e a consolidação do cristianismo a partir
do século IV.
4 O trabalho dos glosadores foi uma das grandes contribuições dos pensadores
jurídicos medievais para o direito moderno, sobretudo a metodologia de estudo e
análise dos textos jurídicos, que acabou por se transformar no "ponto de partida" da
moderna ciência jurídica. Acerca do exposto, escreva uma redação com o tema O
LEGADO DOS GLOSADORES MEDIEVAIS PARA O DIREITO MODERNO.
70
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ZIZEK, S. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2012.
76
UNIDADE 2 —
O DIREITO MODERNO E
SEUS FUNDAMENTOS
HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
• identificar as características do direito medieval e seu legado para a modernidade;
• compreender as particularidades históricas de formação da modernidade;
• discutir os fundamentos do direito moderno;
• analisar bases teóricas, filosóficas e políticas sob as quais se edificou o Positivismo
Jurídico;
• entender a Teoria Kelseniana de Direito, como a bem-sucedida cientifização do
Direito Positivista, bem como os desafios e problemáticas legadas;
• identificar e discutir as bases da Teoria Crítica e da Crítica Jurídica – origens e
propostas.
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
TÓPICO 1 – O MEDIEVAL E O LEGADO PARA A MODERNIDADE
TÓPICO 2 – A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE TRANSFORMAÇÕES
TÓPICO 3 – O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO
TÓPICO 4 – OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO
JUSFILOSÓFICO MODERNO
CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
77
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!
Acesse o
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78
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
O MEDIEVAL E O LEGADO PARA A
MODERNIDADE
1 INTRODUÇÃO
“Direito Canônico” é uma expressão que designa um conjunto de normas
jurídicas cujo objetivo é o de reger o modo de vida dos cristãos. Em 313, quando
Constantino concedeu liberdade para que as autoridades cristãs – papa e bispos –
pudessem julgar seus adeptos, segundo seus preceitos religiosos, iniciou-se um
processo de autonomia que, no século V, ganha absoluta autonomia.
Com a queda do Império Romano e a multiplicidade de poderes medievais, a Igreja
vai assumindo relevância absoluta no exercício do poder político e jurídico. Com esse
aumento de poder e a sofisticação intelectual desenvolvida pelas universidades
recém-criadas, o direito canônico passa a intervir prioritariamente na sociedade como um
todo.
DICAS
Há um excelente artigo, que você pode ler acerca do tema, em http://
nemed.he.com.br/projetopandora/2016/10/15/o-
nascimento-das-universidades-medievais/, com o título O Nascimento das
Universidades Medievais: Aspectos sobre a Cultura de Saber na Baixa Idade Média
Ocidental. Leia, você verá como é interessante o funcionamento das
universidades na época e a maneira como influenciaram o pensamento
moderno!
A Igreja foi assumindo inúmeras funções até então reservadas ao antigo
Império Romano. Além ter adquirido grande força espiritual, ainda era o poder mais
organizado, através da imensa rede de adeptos.
79
FIGURA 1 – ENSINO MEDIEVAL
FONTE: <http://nemed.he.com.br/projetopandora/2016/10/15/o-nascimento-das-universidades-medie-
vais/>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Um dos mais importantes pensadores do direito, Franz Wieacker (1967, p. 67),
destaca: “A Igreja era a força espiritual de longe mais importante; era, ao mesmo tempo, a
mais coerente e a mais extensa organização social da Idade Média; finalmente, a sua ordem
jurídica interna era a mais poderosa da Idade Média, em termos gerais”.
Não há dúvida de que a Igreja e a cristandade têm relevância na formação do
direito medieval e com um grande legado à modernidade.
Como já considerado, o poder da Igreja se expande e se consolida também
porque sua forma de administração territorial foi muito particular, e serviu de modelo
para a organização dos Estados Modernos. Em cada província, por mais distante que
fosse, havia um bispo que mantinha sob seu controle o clero e a paróquia. Sua
competência era imensa e estabelecida a partir de uma rede articulada de padres e
laicos – aquele que não pertence à Igreja como clérigo –, diáconos etc.
A ética cristã, com grande influência do pensamento grego, foi a base do
pensamento jurídico de todo medievo, e sua influência segue até os dias atuais. O
direito canônico teve uma importância crucial na formação e consolidação das
instituições políticas e jurídicas que se sucedem no mundo ocidental. Como veremos, a
forma de organização dos tribunais e a jurisdição são concepções construídas pelo
poder papal e sistematizados pelo direito canônico.
80
Dentre os fatores que colocam em relevo o direito canônico, pode-se destacar:
• O caráter ecumênico da Igreja, que anuncia o cristianismo católico como universal.
• A dominação do direito canônico nas diversas esferas da vida privada, como o
instituto jurídico de família.
• O direito canônico, o objeto de doutrina, tornando-se uma ciência.
• Os canonistas – estudiosos do direito canônico –, uma classe de intelectuais que
criarão conceitos jurídicos absorvidos pelo direito leigo.
Todo direito canônico assenta-se no trabalho dos canonistas que vão aproximar
o direito da teologia cristã construída a partir do texto bíblico e, por esta razão,
elaboram técnicas interpretativas que fundam a modernahermenêutica jurídica.
NOTA
O termo “canônico” se origina da palavra “canon”, que significa “regra”
ou “régua”, medida. Portanto, direito canônico é composto por um
conjunto de regras de vida cristã.
A interpretação da Bíblia era, a princípio, literal, mas em casos de antinomia –
conflito de normas – eram usados os seguintes critérios:
• Ratione Significationis – sentido obtido a partir da fixação do bem jurídico em
questão.
• Ratione Temporis – lei posterior revoga anterior.
• Racione Loci – lei local revoga a lei geral.
• Rationi Dispensationis – lei especial revoga lei geral.
Note que esses critérios são usados pelos juristas atualmente!
Toda base do direito canônico é o Corpus Iuris Canonici – Código de Direito
Canônico –, que permaneceu em vigor até 1917. Foi elaborado ao longo dos séculos
XII ao XV identificando direito com teologia cristã. Diferente do direito comum, o direito
canônico tem como base a Sagrada Escritura, as decisões dos concílios e dos sínodos
– reuniões/assembleias das autoridades eclesiásticas –; as decisões papais e as leis
relativas à Igreja. Entretanto, há que se lembrar que sempre o direito canônico foi
resultado do trabalho intelectual dos doutores da Igreja, portanto, um trabalho científico.
81
FIGURA 2 – CORPUS IURIS CANONICI
FONTE: <http://legalissistemasjuridicos.blogspot.com.br/2012/09/cuestionario.html>.
Acesso em: 11 abr. 2017.
2 A REFORMA GREGORIANA: MARCO DO
DIREITO CANÔNICO
O evento que marca a construção do direito canônico e o poder da Igreja foi a
Reforma Gregoriana. Trata-se de uma grande transformação liderada por Gregório VII
(papa entre 1073 a 1085), cujo objetivo foi promover a absoluta autonomia do poder
papal, uma vez que até este momento a Igreja era uma comunidade espiritual de
natureza estritamente religiosa, mas não jurídica.
Com Gregório VII, cujo nome de origem era Hildebrando, há uma separação entre
sacramentos – preceitos religiosos – e leis, pois não se diferenciavam leis canônicas de rituais ou
liturgias. Além disso, havia uma certa subordinação do papado ao poder civil com a forte
ingerência dos nobres e reis, sobretudo das decisões acerca dos cargos eclesiásticos.
A luta de Gregório será de opor-se à simonia – venda de objetos e cargos
sagrados; ao nicolaísmo – casamento dos clérigos e à nomeação de leigos para altos
cargos da Igreja recebendo benefícios – rendas de terras, paróquias, mosteiros etc. No
ano de 1075 inicia a Reforma que vai se constituir na maior e mais importante
revolução da política da Idade Média, emitindo um documento papal – Dictatus Papae –
que pretendia garantir a liberdade e independência da Igreja.
Foram no total 27 determinações de Gregório, das quais se destacam:
• A Igreja Romana é fundada exclusivamente pelo Senhor.
• Só o bispo de Roma – papa – pode possuir direito universal e pode depor ou
nomear bispos.
82
• Somente o papa pode legislar de acordo com a necessidade do momento.
• Somente os pés do papa podem ser beijados pelos príncipes.
• Somente seu nome pode ser recitado nas igrejas.
• O papa pode depor imperadores.
• Não podem ser convocados concílios ou sínodos sem sua ordem.
• Nenhum capítulo ou livro pode ser chamado de canônico sem sua ordem.
• Nenhum de seus julgamentos pode ser revisto, mas ele pode rever julgamento de
todos.
• A ele, compete dissolver os laços de vassalagem.
Perceba que o documento ataca diretamente o poder dos nobres, que vão
reagir, iniciando uma longa fase de enfrentamento que será conhecida como Guerra
das Investiduras, cujo marco foi a carta redigida por Henrique IV, rei da Inglaterra, que
irá culminar com o rompimento do rei com o papa.
DICAS
Você pode pesquisar a respeito do tema e aprofundar o seu estudo.
Sugere-se:
http://adventmedidas.blogspot.com.br/2016/05/a-questao-das-investidu
ras.html.
Pode-se afirmar que o plano do Papa Gregório era abolir totalmente a
interferência dos leigos nos assuntos da Igreja e privar os soberanos do direito de
investidura – nomeação – de bispos, abades e do próprio papa, pois com a ordem
papal as nomeações passavam a ser feitas somente pelo papa. Entretanto, acabou por
tornar-se o maior e mais significativo conflito entre a Igreja e os Reinos Medievais.
Ora, na estrutura institucional anterior a Gregório VII alguns insistiam na
sacralidade dos reis. Os reis eram ungidos e se consideravam
au-toridades sacrais. A sagração do rei era uma cerimônia religiosa e
política, simbolicamente, a coroação ou sagração era quase que uma
ordenação religiosa. Sem questionar diretamente a função exercida pelo
rei, a Reforma Gregoriana, no entanto, colocava uma novidade: afirmava
que o rei (ou o imperador) estava dentro da igreja, não acima (imperator
in Ecclesiam, non super Ecclesian) e dentro da Igreja a autoridade maior
era o papa. Por outro lado, o Império na Idade Média era um poder, e
não um território. Era um poder como autoridade (imperium) e
capacidade de governar (jurisdictio), apoiado não pela submissão de um
povo em um território determinado, mas nas rela-ções interpessoais de
submissão e benefício com certos senhores menores. Era uma rede ou
uma cadeia de relações. Não havia buro-cracias racionalizadas,
organizadas propriamente em carreiras. Não havia cidade capital: esta
era onde o imperador ou rei assentasse sua corte, muitas vezes de
maneira provisória, pois os reis e imperadores viajavam constantemente
[...]. O Império era, pois, uma entidade mili-
83
tar/espiritual e não geográfica. Vigorava ainda muitas vezes o
princí-pio da personalidade (ou pessoalidade) das leis e, sobretudo,
a força dos costumes locais (LIMA LOPES, 2012, p. 73-74).
Note que com a Reforma Gregoriana há um desmonte do modelo até então
vigente do exercício de poder, razão pela qual é considerada a primeira revolução do
mundo ocidental. Com esta concepção começa a nascer o conceito de Estado, que
é um ente político que centraliza o poder de legislar e tem caráter universal.
Evidente que o objetivo era o de disciplinar o poder e centralizá-lo exatamente pela
dispersão existente na época.
As consequências foram também de natureza jurídica, uma vez que os juristas, na
época os canonistas, passaram a desempenhar um papel central no exercício do poder.
Desde a publicação do Dictatus Papae de Gregório VII, os canonistas começaram a criar
conceitos e princípios para o exercício e delimitação do poder. Lembre-se que na Idade
Média havia, ao lado do poder da Igreja, o poder dos nobres. Os canonistas criaram vários
conceitos políticos e jurídicos e, desde aí, constitui-se uma nova classe de sujei-tos: os
intelectuais e os burocratas da Igreja. Agora, a ascensão profissional não era mais pelo
nascimento ou merecimento, mas pelo cargo ou ofício que exercia como consequ-ência de
uma formação. O poder não era exercido mais de forma personalizada em um sistema
baseado em lealdade ou fidelidade, mas sim em competências definidas por lei.
FIGURA 3 – PAPA GREGÓRIO VII
FONTE: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/19399/hoje+na+historia+1077+-+impera-
dor+henri+iv+ajoelha-se+aos+pes+do+papa+gregorio+vii.shtml>. Acesso em: 11 abr. 2017.
3 OS CONCEITOS DE JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA
É no campo da jurisdição e processo que o direito canônico ganha grande
relevância, sem que se deixe de considerar sua importante contribuição no campo do
direito civil, por exemplo, quanto aos institutos do casamento, família, contrato, além da
formulação da teoria da personalidade jurídica. Como adiante veremos melhor, o
processo canônico legou à modernidade características muito particulares e essenciais,
84
tais como: 1. A condução do processo por profissionais do direito; 2. A uniformização
dos procedimentos; 3. A perspectiva investigativa – inquisitorial; 4. A predominância da
escrita sobre a oralidade com a criação dos “autos” processuais.
Com a Reforma Gregoriana, aos poucos a imposição de penitências impostas
aos fiéis vai se diferenciando das sanções legais como consequência de violação da lei.
As penitências ou revisão da consciênciado cristão são próprias do padre, do curador
da alma, e se originam de um foro de consciência. Já as sanções ou penas derivam
do foro judicial que detém o poder de aplicar a lei para normatizar as condutas dos
cristãos como um todo. Desta forma, a jurisdição ou foro judicial passa a ser matéria
comum entre os eclesiásticos e os nobres. Como distingui-las? Frente ao problema, os
canonistas criam a separação de jurisdição tendo como base critérios objetivos –
competência – conforme as pessoas envolvidas no processo e matéria disputada, e
desde tais critérios definia-se a jurisdição – distribuição de justiça.
Os critérios de jurisdição dos tribunais canônicos eram: em razão da pessoa
(ratione personarum) e em razão da matéria (ratione materiae).
• Ex ratione personarum: para os eclesiásticos havia o foro de privilégio absoluto, que
não eram somente os padres, mas todo aquele que exercia uma função eclesiástica. Os
professores e estudantes também eram considerados clérigos. Ainda aqueles que
estavam sob a “proteção da cruz” – os cruzados –, que eram os que lutavam sob a
proteção de Deus. Possuíam também privilégio de foro eclesiástico os miseráveis, que
pediam proteção da Igreja, atendidos por profissionais nomeados pelos bispos.
• Para alguns, o foro de privilégio absoluto – como era o caso dos eclesiásticos – e
para outros, relativo, podendo estes renunciar ao eclesiástico e pedir proteção à
jurisdição secular.
• Ex ratione materiae: algumas matérias deveriam ser tratadas somente em
tribunais eclesiásticos, como era o caso de casamento, por ser um sacramento da
Igreja. As matérias de testamento, ou últimas vontades, porque se acreditava que
havia algo relacionado à salvação da alma. Ainda, os benefícios patrimoniais da
Igreja e os pecados públicos como usura, heresia, adultério etc.
Porém, o grande destaque do direito canônico é no conceito inovador de
processo que, por sua complexidade, exige um estudo mais particular.
85
DICAS
Assista ao filme Em Nome de Deus em https://www.youtube.com/
watch?v=c20mqZUy2VA. Você se encantará com a história – verídica – de
Abelardo e Heloísa. Ele, um professor e intelectual da época medieval,
particularmente da Baixa Idade Média (séculos XI a XV); e ela uma mulher
extraordinária. Não perca!!!!
4 O PROCESSO INQUISITORIAL
Ao se consolidar uma classe de profissionais do direito, também se disseminou
uma forma de solucionar conflitos, uma prática processual cuja marca era a
racionalidade e a técnica. Além de ter introduzido o processo escrito – autos –, que
passou a exigir um corpo notarial, a escrita processual exige termos e fórmulas
específicas e, assim, a lógica de técnica vai assumindo relevância.
Além disso, as fases processuais são organizadas de maneira clara:
• Libellus: queixa apresentada pelo autor a uma autoridade oficial que lê na
presença do réu a acusação ou pedido.
• Exceções: na fase seguinte apresenta-se o que hoje chamamos de preliminares –
qualquer defesa que não seja o mérito propriamente dito – que seriam dilatatórias
ou peremptórias, que poderiam impedir o andamento do processo ou atingir o
próprio direito.
• Litis contestatio: contestação.
• Decisão: feita pelo magistrado resolvendo o mérito.
A nova racionalidade jurídica, introduzida pelo procedimento inquisitorial, tinha
como objetivo o combate ao sistema irracional de provas que predominavam no direito
medieval: os ordálios.
Ordálio, ou juízo de Deus, eram meios de provas em que se invocava a
intervenção divina, aplicando-se “provas” para provar inocência, como as “provas de
fogo” – andar sobre brasa, colocar a mão em óleo fervente etc. – e as comuns, como
afundamento na água fria, ser cortado e não sangrar etc. A partir do século XII ocorre
um abandono progressivo dos ordálios, mesmo pelo direito comum, e a predominância
do modelo inquisitorial. O ordálio era como um “detector de mentira” da época e aquele
que aceitava se submeter a tal prova aceitava suas consequências.
Os canonistas desenvolveram novas maneiras de aceitabilidade das provas:
probabilidade, relevância e materialidade, descartando as provas supérfluas (que já
es-tavam provadas no processo), as impertinentes (que não interessavam), obscuras
(que
86
não poderiam ser usadas com segurança), as inacreditáveis ou antinaturais (absurdas
e impossíveis de serem aceitas). Portanto, o sistema de provas assenta-se sobre o que
passou a se chamar prova legal, uma vez que sua apreciação dependia de regras
pre-viamente estabelecidas, como o famoso “código processual”, o Manual dos
Inquisidores criado por Nicolau Eymerich. Este Directorium Inquisitorum, de 1376, é
uma espécie de modelo fundacional do direito processual penal moderno que visava
perseguir e punir a todo aquele que representasse uma ameaça ou poder papal, o
herege.
FIGURA 4 – DIRECTORIUM INQUISITORUM
FONTE: <https://ativandoneuronios.files.wordpress.com/2011/07/directorium.jpg>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Segundo Eymerich, quem era o herege?
Veja o que diz o referido Manual:
Chamam-se hereges pertinazes e impenitentes aqueles que,
interpelados pelos juízes, convencidos de erro contra a fé, intimados
a confessar e abjurar, mesmo assim não querem aceitar e preferem
se agarrar obstinadamente aos seus erros. Estes devem ser
entregues ao braço secular para serem executados.
Chamam-se hereges penitentes os que, depois de aderirem intelectual e
efetivamente à heresia, caíram em si, tiveram piedade de si próprios,
ouviram a voz da sabedoria e abjurando dos seus erros e procedimento,
aceitaram as penas aplicadas pelo bispo ou pelo inquisidor.
Denominam-se hereges relapsos os que, abjurando da heresia e
tornando-se por isso penitentes, reincidem na heresia. Estes, a partir do
momento em que a recaída fica plena e claramente estabelecida, são
entregues ao braço secular para serem executados, sem novo
julgamento. Entretanto, se se arrependem e confessam a fé católica, a
Igreja lhes concede os sacramentos da penitência e da Eucaristia. […]
87
Os autores se perguntam sobre que tipo de execução que se deve
aplicar aos relapsos. Devem morrer pela espada ou pela fogueira? A
opinião geral, confirmada pela prática generalizada em todo mundo
cristão, é que devem morrer na fogueira, de acordo com a lei: “Que
os patarinos e todos os hereges, quaisquer que sejam os seus
no-mes, sejam condenados à morte. Serão queimados vivos em
praça pública, entregues em praça pública ao julgamento das
chamas”. (Determinação do imperador Federico e dos Papas
Inocêncio IV, Ale-xandre IV e Clemente IV. Na verdade, a prática
veio antes da própria codificação) É de fundamental importância
prender a língua deles ou amordaçá-los antes de acender o fogo,
porque, se têm possibilidade de falar, podem ferir, com suas
blasfêmias, a devoção de quem as-siste à execução. […]
Os inquisidores devem ser capazes de reconhecer as particularidades
rituais, de vestuário etc., dos diferentes grupos de hereges. […]
É herege quem disser coisas que se oponham às verdades
essenciais da fé.
Também é herege:
a) Quem pratica ações que justifiquem uma forte suspeita
(circuncidar-se, passar para o islamismo…);
b) Quem for citado pelo inquisidor para comparecer, e não
comparecer, recebendo a excomunhão por um ano inteiro;
c) Quem não cumprir a pena canônica, se foi condenado pelo inquisidor;
d) Quem recair numa determinada heresia da qual abjurou ou
em qualquer outra, desde que tenha abjurado;
e) Quem, doente mental ou saudável – pouco importa –, tiver
solicitado o “consolamento”.
Deve-se acrescentar a esses casos de ordem geral: quem sacrificar aos
ídolos, adorar ou venerar demônios, venerar o trovão, se relacio-nar com
hereges, judeus, sarracenos etc.; quem evitar o contato com fiéis, for
menos à missa do que o normal, não receber a eucaristia nem se
confessar nos períodos estabelecidos pela Igreja; quem, podendo
fazê-lo, não faz jejum nem observa a abstinência nos dias e períodos
determinados etc. […] Zombar dos religiosos e das instituições
eclesi-ásticas, em geral, é um indício de heresia. […] Existeindício
exterior de heresia toda vez que houver atitude ou palavra em desacordo
com os hábitos comuns dos católicos (EYMERICH, 1993, p. 39-52).
Portanto, o herege é aquele que se opõe às “verdades” da fé, cuja pena
imposta varia de acordo com o grau de heresia, que vai desde o cumprimento de
penitências, durante certo tempo, até a prisão perpétua ou a reincidência, aplicando-se
neste caso a execução pelo braço dos seculares.
Quem poderia ser testemunha? a) os excomungados; b) os cúmplices do
acusado; c) os infames e pessoas acusadas de quaisquer crimes; d) os hereges que
estiverem contra o acusado. Nunca a favor; e) qualquer infiel e até mesmo judeu; f) os
domésticos (mulher, filhos, parentes e servos) para o acusar, não para inocentar; g) a
testemunha falsa, querendo retratar-se para acusar.
Ao final, como terminava o processo? Quais as “soluções” possíveis?
1. Abjuração (renúncia à fé cristã através de palavras, atos ou mesmo pensamentos
contrários ao autorizado pela Igreja):
88
a) suspeita leve: encontram-se leves indícios de heresia. O abjurante pronuncia
determinada fórmula, em língua vulgar, na casa episcopal ou no convento.
b) suspeita grave: não se provou nada, mas há fortes indícios que levam a uma grave
suspeita. Normalmente cumprem alguma penitência ou são levados à prisão, nunca
perpétua.
c) suspeita violenta: também não há provas, nem documentais, nem pela análise dos fatos,
mas há indícios gravíssimos que levam a uma violenta suspeita (algo como heresia
presumida). Cumprem alguma penitência e podem ser levados à prisão perpétua.
2. Absolvição: Depois de responder ao processo e ouvidos os especialistas, o réu é
declarado livre do crime. Não há completa absolvição, apenas se declara que não há
provas suficientes para a condenação.
3. Expiação ou Purgação Canônica: Quando alguém tem fama pela prática de
heresia, mas não se prova nem com testemunhas, nem provas materiais, nem pela
confissão. Considera-se isso uma difamação. O acusado deverá comparecer em
determinada hora, em determinado local, acompanhado de coexpiadores que
atestarão sua boa conduta cristã. Se o difamado não puder cumprir a obrigação,
será excomungado, e poderá cumpri-la no prazo de um ano. Se não conseguir
número suficiente de coexpiadores, será considerado herege e condenado como tal.
A origem da mentalidade inquisitorial já foi objeto de estudo de inúmeros
historiadores e com conclusões não convergentes. A origem mais aceita da Inquisição
tem suas raízes no Império Romano com a cognitio extra ordinem e, posteriormente,
ainda no Direito romano antigo, com a expressão inquisitivo, que representava a
formulação de uma acusação pela autoridade judicial, quando não havia denúncias ou
acusações sustentadas por testemunhas.
A origem histórica está relacionada quando, de forma complementar às
Cruzadas, a partir de 1095, o Papa Urbano II inaugura uma “nova forma” para o
“domínio de Deus”, deflagrando-se, no final do século XII, a Inquisição Medieval.
Em síntese, tratava-se de um movimento político-religioso, em que a Igreja
Cristã arquitetou uma forma de reação à difusão de movimentos heréticos, como o
maniqueísmo, o valdismo e, mais tarde, o catarismo, com maior preocupação aos
cátaros, uma vez que, apesar de originalmente se concentrarem no sul da França, as
suas ideias começam a se espalhar nas regiões próximas e demonstraram uma
impressionante capacidade de influência.
DICAS
Acerca dos diferentes movimentos de resistência e da centralização
papal, sugere-se, como leitura, o conteúdo do seguinte link:
http://cleofas. com.br/primeiros-movimentos-hereticos-e-os-cataros/.
89
O combate aos cátaros, que foi bastante “eficaz”, permitiu que a Inquisição
assumisse uma natureza legal e jurídica, sendo a primeira forma concreta a partir de
sua codificação no decreto papal Ad abolendam, emanado pelo Papa Lúcio III no ano
1184, no qual se estabeleceu o primeiro delineamento do procedimento inquisitorial.
Após seguiram-se as bulas papais Licet ad capiendos (1233) e Ad Exstirpanda
(1252), ambas de autoria do Papa Gregório IX, e a bula Clementina Saepe (1306), de
autoria do Papa Clemente V, que ampliaram a perseguição aos hereges.
NOTA
A palavra heresia se origina do grego (αιρετικός), que significa escolha.
Com a autêntica manipulação imposta pela Inquisição, tornou-se um
termo genérico e depreciativo que inclui aleatoriamente qualquer
conduta considerada contrária, nova ou simplesmente diferente do
estabelecido pelo poder. O objetivo primordial não era a imposição da
sanção ao suposto infrator, mas era um instrumento que impunha,
através do medo generalizado, uma forma única de visão de mundo, de
estruturação dos poderes oficiais e de estratificação social, sustentada
pelos argumentos religiosos, criados pelos doutores da Igreja.
Até que, a partir do ano de 1438, com a descoberta de reuniões sabáticas na
região dos Alpes, inicia-se a implacável caça às feiticeiras. Sob o álibi de “combate ao
diabo” e suas diversas manifestações, a Igreja empreendeu uma das maiores e mais
cruéis expressões de intolerância, perseguindo intelectuais independentes, mulheres,
judeus, mouros ou qualquer outro “inconveniente” ao poder.
NOTA
Os sabás – sabbats – eram festas populares em que se comemoravam
as mudanças das estações do ano. Consistiam em antigos rituais de
celebração à natureza que eram vistos, aos olhos da Igreja, como
práticas demoníacas.
Em nome do combate ao diabo e às suas diversas manifes tações, a Igreja
operou um combate, uma batalha irrestrita e intolerante à diversidade de opiniões e de
crenças, enfim, às diferenças.
90
A visão de uma sociedade cristã unificada e ordenada era um ideal
para os líderes da Igreja. A cristandade era concebida como um todo
integrado e hierárquico. Qualquer pessoa ou grupo que levasse uma
vida religiosa fora da estrutura eclesiástica estabelecida era por
definição um herege e sujeito à disciplina punitiva das autoridades
seculares à qual a Igreja recorria. Falhas morais ou indiscrições
pessoais não eram consideradas como problemas religiosos de vulto
dentro dessa estrutura. A Igreja tinha um oportuno sistema de
absolvição, que era capaz de cuidar desses assuntos por parte do
clero e do laicato igualmente. O que era repreensível era a vida
religiosa praticada fora das ordens e da disciplina da Igreja (IRVIN;
SUNQUIST, 2004, p. 506).
A Inquisição medieval se instalou em vários reinos, mas foi na Espanha, em
1239, que deixou as maiores cicatrizes, como uma “obra” dos reis católicos Isabela de
Castilha e Fernando d’Aragão e teve como efeito a unificação dos reinos.
Os reis, Isabela e Ferdinando, iniciam a expulsão dos judeus e, em seguida, os
mulçumanos, que há séculos viviam na região, a fim de ser estabelecida a unidade nacional
do jovem Estado espanhol. “Preocupados” com a conversão dos judeus e temerosos com o
surgimento de uma classe média poderosa, intuíram um Tribunal do Santo Ofício, que
consistiu em instrumento eficaz na manutenção do controle social e na preservação da
hegemonia política recém-conquistada, sob o argumento de que os hereges representavam
um risco para o Estado Cristão Espanhol. Assim, por insistência dos reis espanhóis, em 1º
de novembro de 1478, a bula Exigit sinceras devotionis affectus, emanada do Papa Sisto IV,
concede aos reis católicos a prerrogativa de designar dois ou três bispos ou sacerdotes
seculares ou regulares, desde que maiores de 40 anos, de conduta irrepreensível e
detentores de títulos acadêmicos pertinentes, para desempenhar o papel de inquisidores
nas cidades e nas dioceses de seus reinos.
Após esse início, e ao que parece com medo de perder o apoio bélico da
Espanha, o Papa Sisto IV, já arrependido pelo poder que foi dado aos reis católicos,
tenta retroceder, mas já não era possível. Para a Igreja, a solução foi a nomeação do
frei dominicano Tomás de Torquemada como inquisidor-geral dos reinos de Castilha e
Aragão, em outubro de 1483. Toquemada foi o mais implacável e terrível dos
inquisidores e sua nomeação marca o início de umanova fase da Inquisição.
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FIGURA 5 – TOMÁS DE TORQUEMADA
FONTE: <https://www.biografiasyvidas.com/biografia/t/torquemada.htm>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Sem dúvida, a Inquisição foi um excelente braço do poder real, especialmente entre
os séculos XVI e XVII, quando serviu de principal instrumento para preservação do poder
dos soberanos e legitimar suas ações. Portanto, não resta dúvida de que religião, moral e
direito estavam visceralmente ligados, e por esta razão os dogmas divinos eram as matrizes
que acabam por estruturar a ordem jurídico-política do Estado.
A obsessão por absoluta e inquestionável homogenia religiosa é o que explica
esse fenômeno central na regulação da vida social, política e moral, e base do Estado,
permitindo uma manipulação ideológica e impondo um eficaz mecanismo de terror que
dominava as mentes e os corpos. Sem dúvida, acabou por ser uma das formas de
poder mais tenebrosas e nefastas que a humanidade assistiu.
5 A CRENÇA NA VERDADE REAL
A busca da verdade real era a finalidade do processo inquisitório e se constitui
em um dos pilares dogmáticos centrais. O termo “inquisição” – que significa “inquérito”,
investigação minuciosa – já nos permite compreender o que sustentava todo
procedimento, e assim, justifica-se a violação de direitos em prol da verdade.
Com a certeza da infalibilidade do processo e da verdade é possível compreender a
razão do uso de meios condenáveis, aos olhos da atualidade, para “revelar” o “oculto”, o
“não dito”. Integridade física, liberdade, dignidade, segurança jurídica etc., eram sem
importância ou bens menores quando comparados à necessidade de busca da verdade.
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Como consequência da certeza da existência da verdade real e ao sistema de
provas legais, a tortura ocupa um papel central no processo, pois a tortura era o meio
privilegiado de obtenção da verdade através da confissão, a rainha das provas.
A partir do século XIII, alguns reinos – Estados –, como Espanha e França,
adotam a prática dos tormentos. A expansão da tortura como método de apuração da
verdade acompanhou o movimento político de combate aos hereges. Inicialmente, o
primeiro decreto foi o Licet ad capiendos de Gregório IX (1233), e usado na Bula Ad
extirpanda (1252) de Inocêncio IV, para aplicação da tortura por juízes civis em todos
processos contra os suspeitos de heresia. Até que com a Bula Multorum querela de
Clemente V, a tortura também se instala nos tribunais do Santo Ofício.
Em 1487 é publicado o Malleus Malleficarum – Martelo das Feiticeiras –, de
autoria de dois monges dominicanos, Heinrich Kramer e James Sprenger, e
reconhecido pela bula papal Summis desiderantes affectibus, que consistia numa
espécie de “manual para diagnóstico de feitiçarias”, tendo minuciosas descrições dos
meios e modos de inflição dos suplícios aos acusados de bruxaria para obtenção da
verdade. Assim, as instruções de tortura, muito mais do que um conjunto de regras,
serviram como divulgação do método e estímulo para ação dos inquisidores, exaltando
o sucesso das técnicas de “apuração” da verdade. De certa forma, os inquisidores
passaram a acreditar em sua missão salvadora e de que o método era “abençoado” e,
portanto, infalível, até porque a “confissão brotava” dos lábios dos supliciados.
FIGURA 6 – MALLEUS MALLEFICARUM - MARTELO DAS FEITICEIRAS
FONTE: <http://www.espada.eti.br/n1676b.asp>. Acesso em: 11 abr. 2017.
93
Não havia limites para os tormentos! Ao contrário! O inquisidor não poderia ser
negligente na aferição da verdade!
O ponto culminante do processo era o Auto de Fé. Um autêntico espetáculo público
em que se reproduzia o juízo final com a execução do herege. Progressivamente, o Auto de
Fé tornou-se a maior demonstração de poder, quando o rei e os inquisidores ocupavam os
balcões centrais para desfrutarem da espetacular crueldade. No dia da execução o
penitente deveria usar um tipo de vestimenta – sambenito – com uma espécie de mitra de
papelão na cabeça, em geral com uma inscrição do crime cometido.
FIGURA 7 – PINTURA DE FRANCISCO RIZI - AUTO DE FÉ NA PRAÇA MAIOR
FONTE: <https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/auto-de-fe-en-la-plaza-mayor-de-madrid/
8d92af03-3183-473a-9997-d9cbf2557462>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Em síntese, a Inquisição foi e até certo ponto é uma mentalidade que permanece
viva, consistiu em um movimento político-religioso que em nome do combate ao demônio
promoveu a perseguição indiscriminada e intolerante à diversidade, seja de crença ou
opiniões. Sem dúvida, uma estrutura de poder mantida pelo terror.
Veja um trecho do prefácio da tradução do livro Manual do Inquisidor, feito pelo
importante teólogo brasileiro Leonardo Boff, que nos diz que a crença na verdade
absoluta nos leva à intolerância:
94
NOTA
A “Santa” Inquisição é expressão de um componente neurótico-obsessivo
do corpo clerical e cristaliza a dimensão de pecado que existe nas relações
internas da Igreja. Pois, a própria Igreja-comunidade de fiéis se confessa
santa e pecadora. Se assim é, então aqui é o pecado institucional que ganha
a cena e a ocupa durante séculos. Seu espírito vaga assustador até os
dias de hoje. E devemos nos precaver contra ele. Antes, ajudar a
própria instituição eclesial a ser fiel à sua utopia originária e a ser um lugar
de exercício de liberdade e de experimenta ção da graça humanitária de
Deus. E isso se fará na medida em
que os professantes da fé romano-católica se reapropriarem daquilo de
que foram historicamente despojados: sua capacidade de experimentar
o sonho de Jesus, de dizê-lo de forma criativa e responsável no interior
da comunidade, de confrontá-lo solidariamente com outras
experiências do evangelho de Deus na história e articulá-lo com o curso
do mundo, onde se revela também e principalmente o desígnio de
benquerença e de amor de Deus.
A comunidade cristã viveu séculos sem a Inquisição. Isso significa que
não precisou dela para viver e sobreviver. Portanto, ela é supérflua . Sua
existência mantém o mesmo escândalo, denota uma patologia e
concretiza um pecado. Nunca teve direito a existir. Não deve mais
existir. Por amor a Deus, por fidelidade a Jesus Cristo e por respeito às
opiniões religiosas diferentes nas sociedades humanas.
FONTE: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/inquisidor/prefa-
cio.htm. Acesso em: 11 abr. 2017 (grifos nosso).
Esse breve texto nos leva a pensar se nos dias de hoje não estamos também a
vivenciar uma perigosa escalada da intolerância, cujas consequências poderão ser um
retrocesso, não é?
6 O DIREITO COMUM MEDIEVAL
No período medieval, como já vimos, durante a Idade Média, os costumes
bárbaros, a legislação romana e os decretos papais conviviam de tal maneira que parecia
impossível a unificação do direito. Com o feudalismo se consolidando, o renascimento
cultural do século XII, a criação das universidades, a rearticulação do comércio, entre outros
fatores, permitem uma nova expressão da cultura jurídica que paulatinamente vai criando
uma unidade no pensamento jurídico que no século XVI permite o surgimento do jus
commune (direito comum) em toda Europa, não como conteúdos normativos iguais, mas
com características comuns no uso do direito que vai chegar até os três primeiros séculos
da modernidade. Portanto, é mais uma forma homogênea de se construir o conhecimento
jurídico do que semelhanças normativas e procedimentais.
95
O incipiente capitalismo mercantil nos séculos XIV e XV produziu a necessidade de
regulação dos interesses dos particulares e as leis vão ganhando reconhecimento como
direito em si e a definição de direito comum vai sendo referenciada como jus proprium. No
século XII, a realidade da cultura europeia se modifica completamente e, nesse contexto,
surge o interesse pelos clássicos, sobretudo pela forma de vida urbana que começa a surgir
e o contato com o mundo árabe, porque mais do que mercadorias, o mundo oriental havia
conservado e traduzido as obras de Aristóteles através dos filósofos árabes Averróis e
Avicena, produzindo-se, assim, uma espéciede sincretismo.
Neste mesmo período se fortalecem as universidades europeias, até porque
ensinar era uma das funções principais dos eclesiásticos. Ao lado do ensino primário e
secundário, são estabelecidas escolas superiores, cujo objetivo era o ensino
enciclopédico. Estas universidades se transformarão em autênticas corporações, até
que, em 1221, é usado o termo “universidade” em Paris para designar a comunidade de
mestres e de estudantes parisienses (universitas magistrorum et scholarium).
Em Bolonha – Itália – o estudo do direito se divide entre o direito canônico e o
civil. O direito canônico era estudado a partir do Decreto de Graciano, das Decretais de
Gregório IX, as Clementinas e as Extravagantes. Já no direito civil se estudava
essencialmente o Digesto, as Institutas e as Novelas do Código de Justiniano.
Este estudo do direito romano renascido vai se estender para as demais
universidades, que se diferenciam quanto aos métodos de estudo. Por exemplo, os
glosadores e comentadores no século XII e XIII, os pós-glosadores ou comentadores
nos séculos XIV e XV e os humanistas dos séculos XVI e XVII.
Portanto, nas universidades, o direito canônico era estudado juntamente com o
direito romano, com exceção da França, onde apenas se estudava direito canônico,
pois os reis franceses temiam que o estudo do direito romano pudesse significar uma
subordinação ao Sacro Império.
Nesta etapa destaca-se o trabalho dos glosadores, que formam a primeira classe
de estudiosos pré-modernos, que surgem com Irnério no século XII, em Bologna.
Dedicaram-se, sobretudo, ao estudo do direito romano através de uma metodologia que
tinha como principal objetivo preservar o texto ao explicitar o seu sentido.
A glosa (do grego palavra, voz) é uma observação, consideração simples sobre o
texto fiel a ele. O objetivo é comprovar que o texto jurídico é um instrumento da razão e
autoridade, sem que tivesse qualquer finalidade na vida prática. O elemento literal é o ponto
central do trabalho. Inicialmente, as glosas eram utilizadas para explicar uma palavra do
texto. Os glosadores estenderam sua função para explicar toda a frase. O trabalho, de toda
forma, como uma espécie de tradução literal. As glosas menores eram feitas nas entrelinhas
do texto e as maiores eram ao lado, à margem. A grande pretensão era tornar evidente a
verdade irrefutável da autoridade do texto através da razão.
96
FIGURA 8 – GLOSA MEDIEVAL
FONTE: <https://www.definicionabc.com/comunicacion/glosa.php>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Observe o trabalho dos glosadores demonstrado. A glosa é um breve
comentário que busca ser bem fiel ao texto.
A metodologia desenvolvida pelos glosadores acaba se transformando em um
marco inicial da ciência jurídica moderna.
A metodologia dos glosadores simboliza um marco no estudo do direito como
ciência, ao definir categorias, institutos, enfim, elevar o estudo do direito de simples
repetição ao status de ciência. Como se verá, o traço essencial do racionalismo jurídico
moderno foi a pretensão de elaborar uma teoria do direito, êxito alcançado a partir da
secularização da cultura medieval.
A concepção moderna de Direito, portanto, é resultado de sua desvinculação
do sagrado e do divino, que tratava de fundamentar a verdade. Sem dúvida, os
glosadores deram origem à classe dos juristas modernos: os conciliadores. Estes,
contemporâneos de grandes nomes do Renascimento, como Dante, Giotto e Petrarca,
foram os arquitetos da modernidade europeia, criando o Direito Comum na Europa e as
bases para o que viria a ser o Direito Moderno.
97
DICAS
A respeito do tema, para aprofundar os seus estudos, leia o interessante texto
Humanismo, Renascimento e Revolução Científica em http://educacao.globo.
com/historia/assunto/modernidade-na-europa/humanismo-renascimento-
e-revolucao-cientifica.htm. Você compreenderá o nascimento da ciência moderna.
Os juristas, por sua importância e influência como uma segunda classe de
intelectuais formada da Idade Média ao lado dos clérigos, impulsionados pelo humanismo,
que se coloca como uma nova experiência na qual o sentido humano é renovado, e em
meio à Reforma Luterana do século XV, que propõe uma forma de interpretação
independente das autoridades católicas, vivenciam uma “viragem” da ciência jurídica no
sentido da sistematicidade interna e construção de conceitos e princípios gerais.
Em meio ao ambiente cultural e filosófico da Baixa Idade Média, o ensino
jurídico sofre um novo redimensionamento. O objetivo passa a ser a demonstração da
validade e autoridade implícita nos textos jurídicos.
Os juristas medievais desta nova etapa, também influentes diplomatas e
administradores, não apenas foram os primeiros a reivindicar a soberania dos
príncipes, com base nas fontes do absolutismo, como também, a partir da técnica
jurídica formal, como análise lógica da realidade utilizada nas questões políticas,
fornecem um “instrumental racionalizado” para as formas de poder que vinham se
delineando com o surgimento do capitalismo burguês-mercantilista. Os juristas, por
serem os únicos a dominar as operações lógicas, foram os únicos capazes de criar
simultaneamente um direito de caráter universal, racional e objetivo baseado em
deduções comprováveis logicamente e conceitos políticos que acabaram por dissolver
as formas de poder da Idade Média.
Observe a gravura a seguir, feita a partir de um texto do século XV que
reproduz uma reunião de doutores da Universidade de Paris.
Veja como há uma forte presença da lógica da autoridade doutoral e a hierarquia!
98
FIGURA 9 – UNIVERSIDADE MEDIEVAL
FONTE: <http://medievalimago.org/2014/08/23/a-universidade-medieval-um-enorme-e-significativo-lega-
do/>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Apesar das reformas jurídicas levadas a cabo pelos glosadores e comentadores,
permanece a ideia de Direito como um conjunto de normas que o intérprete pouco pode
alterar. Por ser a ordem jurídica um dado indiscutível, fundada numa ordem prefixada
autoritariamente, a atualização e a sistematização do direito são tomadas como mera tarefa
técnico-interpretativa, orientada por instrumentos lógico-dogmáticos.
O trabalho de atualização e sistematização do Direito exigido pelo cenário
mercantilista, desenvolvido principalmente pelos comentadores sob a ótica
interpretativa do direito romano-justiniano, aliado ao avanço político que caminhava no
sentido da centralização do poder dos príncipes, o resultado foi a monopolização do
Direito pelo Estado. Nesta ótica, a ordem jurídica como conjunto normativo de origem
ligada à tradição dotada de autoridade deixava ao jurista apenas a tarefa de interpretar
esse conjunto normativo segundo a necessidade de atualização e sistematização.
O trabalho dos juristas da época consiste, basicamente, em interpretação
contrapondo o texto de lei (verba) a seu espírito (mens) – sentido oculto a ser “revelado”,
com base na concepção filosófica medieval em que a palavra “é a manifestação do
conhecimento humano” – encerram a verdade, o que está na alma do homem –. Por
99
conta disso, o domínio de técnicas interpretativas, como único meio de estabelecer o
“espírito” encerrado no texto normativo, possibilitava a rejeição de qualquer interesse
normativo oposto, a exemplo da interpretação restritiva utilizada em certos momentos para
as regras que não poderiam ser aceitas, por “excederem à vontade racional do legislador”, e
em outros, aceitas ampliativamente, de acordo com o interesse e utilidade.
É exatamente esse trabalho que irá desenvolver a sistematização do direito
moderno, particularmente a concepção de que direito é um sistema normativo legal que
pode ser compreendido cientificamente através de técnicas específicas. Os juristas
medievais desenvolveram um trabalho de sistematização, a partir da interpretação
lógica. Inicialmente, a lógica como procedimento interpretativo foi aplicada aos textos
bíblicos, considerando o texto como expressão de uma ideia geral (ratio) presente em
toda sua extensão, por isso, cada parte do texto é compreendida a partir desua
integração no conjunto, o que permite a “extração” dos preceitos isolados.
Entretanto, como veremos a seguir, apenas sob o paradigma da legalidade – a lei
como tecnologia disciplinar das relações sociais – estabelecido a partir dos séculos XVIII e
XIX, é que se coloca o direito enquanto modelo técnico-racional de orientação da prática
jurídica. Assim, o direito torna-se uma ciência objetiva cuja interpretação e aplicação devem
ser orientadas por critérios metodológicos específicos de cientificidade.
O processo de racionalização da prática jurídica moderna não pode ser
compre-endido isoladamente, mas como parte integrante de um amplo processo de
racionaliza-ção que se transformou na marca da sociedade ocidental a partir do século
XVIII.
Em síntese, é sob os fundamentos do direito comum, do ius commune, que se
perpetuarão as transformações políticas e jurídicas da modernidade. Tomando como base o
direito, cuja autoridade e universalidade encontravam respaldo na própria ideia de Im-pério,
irá ser esfacelada a unificação medieval da cristandade, abrindo caminho para a afirmação
do direito dos Estados cujo processo de consolidação passa a exigir gradual concentração
das funções administrativa, legislativa e judiciária, como veremos adiante.
100
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
• Há características e elementos que edificaram o Direito Canônico Medieval.
• Surgiu o legado do Direito Canônico para o pensamento jurídico moderno.
• Ocorreram origens políticas e ideológicas dos Tribunais Canônicos e o Processo
Inquisitorial.
101
AUTOATIVIDADE
1 O Direito Canônico é um conjunto de normas jurídicas que regulam o modo de vida cristã,
elaborado por um grupo de intelectuais - os canonistas - cujo papel é o de auxiliar o poder
papal a elaborar um sólido conjunto de legislações. Com Gregório VII, firma-se o poder
político da Igreja, levando a uma ampliação das antigas normas. Paulatinamente é
elaborado um importante Código que servirá de fundamento jurídico da Igreja até os dias
de hoje. Sobre esse código, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) Trata-se do Corpus Iuris Civile.
b) ( ) Trata-se do Código de Bartolomeu.
c) ( ) Trata-se do Corpus Iuris Canonici.
d) ( ) Trata-se do Corpus Iuris Papalis.
2 Direito Canônico é uma expressão que designa um conjunto de normas jurídicas cujo
objetivo é o de reger o modo de vida dos cristãos. Sobre os fatores que colocaram em
relevo o direito canônico, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:
( ) O caráter ecumênico da Igreja - que anuncia o cristianismo católico como universal.
( ) A dominação do direito canônico nas diversas esferas da vida privada - como o
instituto jurídico de família.
( ) O direito canônico foi objeto de doutrina e tornou-se uma ciência.
( ) A escrita cuneiforme foi muito usada nas escrituras
canônicas. Assinale a alternativa que apresenta a sequência
CORRETA:
a) ( ) V - F - V - F.
b) ( ) V - V - V - F.
c) ( ) V - V - F - V.
d) ( ) F - V - V - V.
3 Direito Canônico é uma expressão que nomina um conjunto de normas e procedimentos
jurídicos que possuem como objetivo reger o modo de vida cristão. A Igreja, inicialmente
restrita ao campo religioso, vai paulatinamente assumindo papel político e jurídico.
Dis-serte sobre os fatores que explicam a ascensão do poder político e jurídico papal.
4 O direito medieval tem como característica principal ser pluralista. Em outras palavras,
durante a Idade Média convivam distintos e complexos sistemas normativos, dentre os
quais destacaram-se o Direito Canônico e o Direito Bárbaro. O Direito Canônico, como
resultado da convergência de inúmeros fatores, acabou tornando-se um direito
hegemônico em relação aos demais. Escreva uma redação com o tema O DIREITO
CANÔNICO MEDIEVAL COMO EXPRESSÃO DO PODER POLÍTICO DA IGREJA.
102
UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE
TRANSFORMAÇÕES
1 INTRODUÇÃO
Antes de iniciarmos nosso estudo sobre o direito moderno, vamos começar
identificando o cenário, o contexto, a partir do qual se edifica toda lógica jurídica
predominante até os dias de hoje.
“Modernidade” é a designação genérica de um complexo conjunto de
transformações cujos efeitos acabaram colocando a Europa como centro de um projeto
civilizatório hegemônico. Trata-se de um processo paradigmático inédito que reorientou
as múltiplas relações da vida cotidiana e suas formas tradicionais de racionalização,
carregando consigo distintas faces.
Externamente, ou seja, para além da Europa, desde a América Latina e África,
a modernidade pode ser interpretada como construção do mito criado a partir do século
XV acerca da existência de um centro histórico mundial portador de uma concepção
política de ordem econômica, política e social civilizadora.
2 EXPLANAÇÃO
Como vimos, em momentos históricos anteriores os impérios ou sistemas
culturais coexistiam entre si, e apenas com a expansão europeia, que atinge a América
no século XV e o Oriente no XVI, é que o planeta se torna o “lugar” de uma “única”
história mundial (DUSSEL, 2000, p. 46). Na face interna, desde a Europa, modernidade
é uma forma de emancipação de racionalização civilizada da humanidade. Um
discurso que oculta a irracionalidade de dominação que justifica seu próprio mito.
A expansão colonizadora da Europa é uma das faces da modernidade, trata-se
de um processo de dominação cultural e política que edificou uma universalização do
direito europeu.
103
FIGURA 10 – TRATADO DE TORDESILHAS
FONTE: <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=897>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Para Dussel (2000), o mito da modernidade, uma prática irracional de violência,
é fundado nas seguintes crenças:
1. a civilização eurocêntrica moderna se autocompreende como a
mais desenvolvida e superior;
2. em troca desta superioridade lhe é imposta a exigência moral de
desenvolver os povos mais primitivos, rudes e bárbaros;
3. este processo de educação civilizadora deve ser conduzido pela
Europa;
4. como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, se necessário for
e em último caso, a violência pode ser utilizada em nome do
progresso (justificando-se, assim, a “guerra justa” colonial);
5. o processo civilizatório produz vítimas, mas como a violência é
inevitável há um heroísmo intrínseco neste sacrifício salvador;
6. portanto, o bárbaro não é vítima, mas sim o culpado dos
sacrifícios necessários, já que o “civilizado” é inocente por ser
nobre sua missão;
7. portanto, o processo civilizatório possui “custos” para os povos
atrasados (imaturos), para as raças escravizáveis e para todo
débil (DUSSEL, 2000, p. 49).
104
Em síntese, “modernidade” é um paradigma múltiplo, ambíguo e complexo que
enfeixa em si relações de dominação desenvolvidas mundialmente desde o século XV,
cujo impulso foi a autoelaboração europeia, a construção da concepção de Europa, de
um imaginário de “progresso” linear e universal.
Sem dúvida, a tirania de poder, com sua “missão civilizadora”, ocultada pelo
discurso justificador da modernidade, constituiu-se numa prática “racionalizadora” de
um mito alimentado interna e externamente pelo mundo europeu ao mesmo tempo em
que era definitivamente superado o passado medieval. Assim, “mundo moderno”
é produto da aproximação entre a burguesia secularizada europeia e as
necessidades do capitalismo que acabou por oferecer os contornos do padrão mundial
de poder que construiu o modelo civilizatório hegemônico.
A origem da palavra “moderno” é bastante esclarecedora. Modernus, derivado
de modo (recente, há pouco), é uma palavra tardia na língua latina. Foi utilizada em fins
do século V como antônimo de antiquus, criando termos como modernitas (tempos
modernos) e moderni (homens de nosso tempo) que passaram a ser comuns após o
século X (KUMAR, 1997).
Portanto, a palavra “modernidade” é uma criação cristã medieval. O sentido de
moderno medieval era daquilo que se opunha ao mundo antigo pagão imerso em trevas
e em uma concepção naturalista segundo a qual o tempo era cíclico e reprodutivo.A
noção de tempo humano, regular e repetitivo, compartilhava do caráter cíclico de toda
matéria criada. Era admitida mudança, mas não a novidade (KUMAR, 1997). A noção
de tempo na antiguidade é a própria eternidade imutável.
No entanto, “no Renascimento se inicia uma nova situação que supera o
tradicional desprezo do indivíduo enquanto ente visível da ação social começando a se
alterar, com a própria possibilidade da extroversão” (SCLIAR, 2003, p. 42).
No quadro emocional instável do homem do Renascimento combinam-se três
vertentes primordiais posteriormente acentuadas na via própria do processo de
construção da modernidade.
IMPORTANTE
É importante que haja a consciência de que o processo de construção da
modernidade é difuso, sendo caracterizado pelo seu caráter lento e
irregular de gestação que começa a ocorrer precursoramente nos séculos
XI e XII, caracterizado por um lento e irregular desenvolvimento do mercado
de trocas comerciais e a aceleração do processo de racionalização que até
então era muito lento (FONSECA, 2002).
105
Conjugam-se, respectivamente, a tendência à inovação, à aventura e à
descoberta. Nessa nova condição histórica, ainda não capitalista do Renascimento, a
característica acentuada é a mercantilização. Nesta lógica de mercantilização, sem
limites ou obstáculos que não sejam profanáveis pela acumulação, o sagrado se reifica,
se coisifica, se aliena e todo universo humano adquire valor de troca.
Nesse sentido, o sentimento do individualismo, a potencialização da
extroversão criativa e sua monetarização tornam-se correntes. Na arte e na literatura
surge, ao contrário da Antiguidade ou da Idade Média, um novo contexto no qual a
autoria não é mais ignorada ou mencionada como um rótulo sem maior significação.
Porém, a sociedade renascentista possui ainda um modelo incapaz de romper com o
legado clássico e reconstruí-lo rumo ao futuro.
A modelagem cultural renascentista imprime a forma de mercadoria com a
contraposição do produto do artesão oposto ao do gênio da obra de arte, agora
também integrado nos circuitos comerciais difundidos pelos mecenatos e diferenciado
pelo traço da sua condição individual como trabalhador.
Uma das questões essenciais desse período é o da formação do indivíduo
como um dos elementos vitais para a compreensão do homem fragmentado nas
relações sociais controladas pelo capital, com a consequente escalada do
individualismo que marcou o advento da modernidade.
Rompeu-se com a concepção do indivíduo visto de forma pejorativa ou
desnecessária em sociedades do passado, como a da Grécia antiga, caracterizada pelo
culto coletivista da pólis; na Idade Média tal conceituação também era dispensável
devido ao caráter da vida comunitária essencialmente provincial ou local.
Contudo há um sentido da Renascença que impulsiona a modernidade. As
experiências socialmente partilhadas pelo cotidiano, paulatinamente a partir dos
séculos XIV e XV, espelham a emergência de uma nova racionalidade.
Na Europa, vai sendo desenhado o cenário de um novo modo de vida no qual a
dimensão humana se descobre e, desafiando a ordem medieval, redefine seu
significado existencial, abandonando definitivamente a posição secundária em relação
ao poder divino e à natureza. O prodigioso esforço de superar a tradição medieval até
então dominante conduziu a uma nova concepção e valoração do humano,
inaugurando um novo momento histórico. Chama atenção Richard Tarnas (2000) que é
equivocado imaginar essa fase como produto tão somente de luz e esplendor, já que
vai sendo construída em meio a convulsões sociais e desastres fatais, como a Guerra
dos Cem Anos, que parecia interminável e destruidora, e a Peste Negra que, em
meados do século XIV, havia dizimado um terço da população europeia.
106
Se, de um lado, a coragem para divergir dos preconceitos dominantes ia
emancipando o espírito humano, de outro, o cotidiano parecia avassalador. Professores
eram perseguidos quando não professavam a mesma fé do monarca e o debate
teológico, com a Reforma, assume destaque no meio universitário. Institucionalmente,
perdem o papel de liderança intelectual para as academias, que passaram a ser o
centro de produção cultural a partir do século XVII. Nesse ambiente ainda as fogueiras
da Inquisição ardiam sem parar!
NOTA
As academias eram grupos de indivíduos já com conhecimento que se
reuniam para discutir sobre suas experiências, hipóteses e
conhecimentos, aproximando-se de um “clube de amadores” de um
certo tema, arte ou ciência. Esses indivíduos não pertenciam à academia
para obter um título, mas para livremente investigar e discutir, o que não
era possível no ambiente universitário.
Como parte desse ambiente, praticava-se como nunca magia negra e
flagelação grupal. A Igreja, pedra angular do modelo social, para muitos era mais um
centro de corrupção e decadência do que um exemplo de integridade moral. O cenário
era visto mais como apocalíptico do que inovador.
Nesse contexto, a recuperação do conhecimento e a revolução da cultura
co-meçam a ser considerados ponto de partida para a construção do novo espírito humano.
Um espírito que ia justificando e impulsionando o domínio econômico e político europeu
para além de suas fronteiras. As inovações técnicas se alastram e permitem a visuali-zação
de um novo horizonte existencial, por exemplo, a bússola magnética, a pólvora, o relógio
mecânico e a imprensa. Inovações que provocam a expansão do mundo conhe-cido, uma
nova relação com o tempo e a expansão da secularização do conhecimento.
Simultaneamente, se construía um novo ethos cultural para uma sociedade que
começa a conceber-se como definitivamente civilizada. Neste contexto, novos valores
são ressaltados, dentre os quais o individualismo assume relevância. Desaparecera o
ideal cristão medieval que dissolvia o indivíduo na coletividade. A figura do herói
santificado paulatinamente é trocada pela do aventureiro rebelde capaz de pensar
como gênio numa vida de serviço ao Estado, comércio e conhecimento. O desejo de
prosperidade econômica e social deixava de ser pecado, tornando-se virtude.
Esse é o ambiente de um novo ator social com mais confiança em sua própria
capacidade de discernimento do que nas autoridades. Orgulhoso de sua própria razão
e ciente de que seria capaz de compreender e controlar o mundo circundante sem
depender de nenhuma divindade onipotente.
107
FIGURA 11 – OS PRECURSORES DO ILUMINISMO - RENÉ DESCARTES, FRANCIS
BACON, JONH LOCKE E ISAAC NEWTONFO
FONTE: <http://historiadomundo.uol.com.br/idade-moderna/precursores-do-iluminismo.htm>. Acesso em:
11 abr. 2017.
A realidade parecia transformar-se num ritmo alucinante. Copérnico, no século
XVI, com a teoria heliocêntrica e a órbita planetária, havia iniciado um movimento
antidogmático seguido por Tycho Brahe, Kepler e Galileu, entre outros, que viria a
abalar o princípio de autoridade, até então, base do poder papal.
Isaac Newton, no século XVII, dá um passo definitivo para a criação de uma teoria
geral da dinâmica. Em meados do mesmo século, Huygens elaborou a teoria ondulatória da
luz. Em 1628, são publicadas as descobertas de Harvey sobre a circulação do sangue.
Robert Boyle, em 1661, supera definitivamente os alquimistas no campo da química e
retoma a teoria dos átomos de Demócrito. Giordano Bruno, em 1660, é queimado na
fogueira por divulgar a teoria heliocêntrica e por suas convicções teológicas serem
consideradas heréticas. Acreditava que a Sagrada Escritura deveria ser obedecida como
ensinamento moral e não como astronômico. A revolução da ciência abria possibilidade
para a certeza epistemológica e consenso objetivo e, ao mesmo tempo, a lógica da previsão
experimental e metodológica científica ia assumindo como redentora social.
No século XVII, na Inglaterra, Francis Bacon proclama a necessidade de um novo
método capaz de substituir o antigo silogismo, encontrando na indução uma resposta. Suas
ideias são explicitadas em 1620, com a publicação do Novum Organum, que, como
108
o nome sugere, vem a substituir o antigoOrganon aristotélico. Apesar dos equívocos
teóricos, defende o postulado de que um método adequado, o empírico, permitiria a
compreensão dos princípios e mecanismos que regem os fenômenos naturais, e
finalmente, a natureza poderia ser dominada.
Enquanto isso, na França, René Descartes, em meio à crise do ceticismo
filosófico francês e como fruto do racionalismo crítico, busca criar critérios irrefutáveis
para a certeza do conhecimento. Por ser um excelente matemático, acreditava que
apenas o rigor metodológico da geometria e aritmética poderia conduzir a um
conhecimento absoluto e verdadeiro no campo filosófico. Partindo da crença na
consciência individual e do comportamento metódico da dúvida, conclui que a única
certeza é a certeza da dúvida. O sujeito pensante existe – cogito, ergo sum – e tudo
demais pode ser questionado. Nesta ótica, o conhecimento seguro é o que pode ser
obtido a partir do princípio primeiro do cogito; usando a dúvida, o experimento e a
hipótese, a ciência avançaria. A razão humana torna-se a suprema autoridade e a única
capaz de obter uma compreensão racional do mundo circundante.
Descartes conferiu um novo sentido à palavra Método: passou a significar
proposta de verificação da verdade de uma proposição que exclui o erro. Méthode é um
conceito já conhecido, existente na cultura helênica, para a qual significava, segundo
Hans-Georg Gadamer, um caminho capaz de conduzir ao que se quer conhecer
(GADAMER, 1999).
IMPORTANTE
Defendendo a supremacia da racionalidade humana sobre a natureza, assim
escreve Bacon: Já é tempo de expor a arte de interpretar a natureza...
De fato, somos da opinião de que se os homens tivessem à mão uma adequada
história da natureza e da experiência, e a ela se dedicassem cuidadosamente, e se,
além disso, se impusessem duas precauções: uma, a de renunciar às opiniões e
noções recebidas; outra, a de coibir, até o momento exato, o ímpeto próprio da mente
para os princípios mais gerais e para aqueles que se acham próximos; e se assim
procedessem, acabariam, pela própria e genuína força de suas mentes, sem nenhum
artifício, por chegar à nossa forma de interpretação. A interpretação é, com efeito, a
obra verdadeira e natural da mente, depois de liberta de todos os obstáculos. Mas
com os nossos preceitos tudo será mais rápido.
FONTE: BACON, F. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da
interpretação da natureza. São Paulo: Abril, 1973. p. 95.
109
Na modernidade, Descartes estabeleceu a ideia de método unitário,
funcionan-do como paradigma de validade para todo conhecimento, de certificação
universal em razão das condições formais de procedimento. Criou o início de
intrincadas e indisso-lúveis questões que viriam a ser discutidas pelas gerações de
teóricos que o seguiram, produzindo, assim, uma pluralidade de problemas que
transcenderam a individualidade de qualquer pensador e acabaram por
entrelaçarem-se naquilo que se chamou de pen-samento científico moderno: a
combinação entre conhecimento técnico-científico e a forma de racionalizar o kosmos
circundante.
Assim, foi sendo definida uma nova cosmologia profana dentro da qual
simultaneamente o ser humano descobria o movimento planetário e mudava seu eixo
existencial: de um universo aristotélico-cristão hierárquico, finito e estático para um
cosmo de significados múltiplos e absolutamente novos (TARNAS, 2000). O mundo
tornara-se secular e mutante. Com a teoria darwiniana demonstrava-se que a
transformação era o estado permanente da natureza em luta para o desenvolvimento e
supremacia dos mais fortes e não fruto benevolente de um plano transcendental.
A ciência tornava a realidade neutra. Apenas as evidências empíricas e a
análise racional poderiam ser legítimas bases epistemológicas.
De forma definitiva eram rompidos os vínculos com o passado medieval e
inaugurada uma era em moldes absolutamente novos, anunciando o alvorecer de um
progresso humano infinito. O ingresso em um tempo futuro expandido de forma infinita, um
tempo para progressos sem precedentes na evolução da humanidade (TARNAS, 2000).
Nesses novos tempos, o passado não tinha mais sentido em ser revivido, apenas
compreendido como forma de perspectiva para o futuro. A autoridade da tradição é abolida.
O conceito de moderno inclui a independência e a inovação. Talvez, por esta razão, o
conceito de modernidade é de abertura; de contínua ideia de inovação.
Entre os séculos XVIII e XIX, na Europa, quando a ciência já havia assumido
uma instância superior, para além do bem e do mal (SOUZA SANTOS, 2006),
finalmente, os tempos modernos ganhavam vida (KUMAR, 1997) e o irreversível
processo de secularização tornou a ciência um novo meio de redenção social e político,
acreditando que ao transformar os problemas sociopolíticos em questões técnicas, as
soluções seriam mais eficientes.
O modelo de racionalidade sob o qual se edificou a ciência moderna,
essencialmente orientada pelos postulados das ciências naturais que se estendeu às
ciências sociais emergentes, no entender de Boaventura de Souza Santos (2006, p.
61), acabou por se constituir num modelo totalitário, universal, já que “nega o caráter
racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos princípios
110
epistemológicos e pelas suas regras metodológicas”. Essa é a característica essencial
e diferenciadora do modelo paradigmático de conhecimento que vem a substituir
hegemonicamente todos os que o antecederam.
A insurgente confiança epistemológica construía a crença na possibilidade da
unidade e verdade, e, simultaneamente, a definitiva superação do modo de vida medieval.
Nesse contexto, é edificado um modelo de racionalidade que rompe com o
senso comum, negando qualquer conhecimento fundado tão somente na prática.
Partindo da concepção de mundo-máquina, herança da física newtoniana, consolida-se
a concepção de dominação através do conhecimento como resultado da adoção de
critérios metodológicos adequados e precisos, tendo como pressuposto certeza da
existência da ordem, previsibilidade e estabilidade.
A explosão que estilhaçou a imagem medieval teológica e geocêntrica de
mundo, igualmente modificou o ideal de vida teórica, tornando a ciência uma grandeza
autônoma (GADAMER, 1999). A permanente autossuperação do conhecimento
produzido pela investigação faz da ciência um empreendimento desafiador e ilimitado
cujo caminho de investigação metódica é a própria certificação da razão (GADAMER,
1999). A partir de então, a tarefa dos diversos campos do conhecimento é colocar-se
nessa “trilha segura”, na qual o saber torna-se produto de uma teoria fundada em
rígidos critérios metodológicos.
Nesse contexto, a imagem de mundo, elaborada a partir da autoconsciência
humana, faz com que a própria interpretação da realidade adquira um sentido
pragmático. Em outras palavras, o agir, enquanto produto compreensivo, passa a
pressupor o uso adequado de uma operação técnica.
O modelo de racionalidade que foi sendo construída desde o Renascimento no
mundo europeu, a partir do século XIX adquire o status de modelo global de
racionalidade científica, alastrando-se para os diversos campos do conhecimento,
colonizando culturas e sociedades, sobretudo ocidentais. Tal modelo é representado
melhor pelo positivismo, em suas distintas vertentes, que, para Souza Santos (2006, p.
25), assenta-se nas seguintes ideias fundamentais:
[...] distinção entre sujeito e objeto e entre natureza e sociedade ou
cultura; redução da complexidade do mundo a leis simples susceptí-veis
de formulação matemática; uma concepção da realidade domina-da pelo
mecanicismo determinista e da verdade como representação
transparente da realidade; uma separação absoluta entre o
conhe-cimento científico – considerado o único válido e rigoroso – e
outras formas de conhecimento, como o senso comum ou estudos
humanís-ticos; privilegiamento da causalidade funcional, hostil à
investigação das “causas últimas”, consideradas metafísicas, e centrada
na mani-pulação e transformação da realidade estudada pela ciência.
111Toda reflexão epistemológica moderna assentou-se neste paradigma, que
demonstrava ser capaz de formular princípios organizativos da ordem natural e social.
Esse modelo de racionalidade deve ser compreendido como parte essencial do grande
projeto civilizatório da modernidade, que segundo Souza Santos (2006), é assentado
sobre dois pilares – o da regulação e da emancipação – cada um dos quais constituído
por três princípios ou lógicas.
O pilar da regulação, construído pela concepção de Estado – que encontra sua
justificativa nas concepções contratualistas –, o princípio de mercado – formulado
sobretudo pelas concepções capitalistas liberais, e o princípio da comunidade – tal
como concebido teoricamente por Rousseau. O pilar da emancipação assentado nas
lógicas de racionalidade tal como expressas por Max Weber: a estético-expressiva das
artes e literatura, a cognitiva instrumental da ciência e tecnologia e a racionalidade
moral-prática da ética e direito (SOUZA SANTOS, 2006).
O grande esforço, sobretudo ocidental, em edificar uma civilização
institucionalmente racionalizada e objetivamente avaliada transmuta-se num imenso e
ambicioso projeto social global que carregava consigo a promessa de um desenvolvimento
harmônico e recíproco entre os pilares da regulação e emancipação, capaz de racionalizar
completa e simultaneamente a vida coletiva e individual. À ciência coube o papel central de
controlar e administrar qualquer possibilidade de excessos, desvios ou défices,
considerados como situações passíveis de serem resolvidas de forma eficiente,
convertendo-se, assim, a ciência em força produtiva com critérios de eficácia e eficiência
que se tornaram hegemônicos, ao ponto de colonizarem gradualmente os critérios racionais
das outras lógicas emancipatórias (SOUZA SANTOS, 2006).
112
NOTA
O importante autor contemporâneo Boaventura de Sousa Santos escreve acerca dos
“sintomas” da crise do pensamento científico moderno. Perceba como o autor coloca a
impotência da ciência para os tempos que se vão anunciando.
Vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus
pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já
não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro
que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser. Quando,
ao procurarmos analisar a situação presente das ciências no seu conjunto,
olhamos para o passado, a primeira imagem é talvez a de que os progressos
científicos dos últimos trinta anos são de tal ordem dramáticos que os séculos
que nos precederam desde o século XVI, onde todos nós, cientistas modernos,
nascemos, até ao próprio século XIX, não são mais que uma pré-história
longínqua. Mas se fecharmos os olhos e os voltarmos a abrir, verificamos
com surpresa que os grandes cientistas que estabeleceram e
mapearam o campo teórico em que ainda hoje nos movemos viveram
ou trabalharam entre o século XVIII e os primeiros vinte anos
do século XX, de Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e Darwin, de Marx e Durkheim a Max
Weber e Pareto, de Humboldt e Planck a Poincaré e Einstein. E de tal modo é assim que
é possível dizer que em termos científicos vivemos ainda no século XIX e que o século XX
ainda não começou, nem talvez comece antes de terminar. E se, em vez de no passado,
centrarmos o nosso olhar no futuro, do mesmo modo duas imagens contraditórias nos
ocorrem alternadamente. Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos
conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de
comunicação e interativa libertada das carências e inseguranças que ainda hoje
compõem os dias de muitos de nós: o século XXI a começar antes de começar. Por
outro lado, uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico
combinada com os perigos cada vez mais verossímeis da catástrofe ecológica ou da
guerra nuclear fazem-nos temer que o século XXI termine antes de começar.
FONTE: http://bit.ly/3OEiGn4. Acesso em: 11 abr. 2017.
Lendo o trecho anterior, que você tem disponível na íntegra pela internet,
somos levados a pensar se, realmente, a ciência, enquanto conhecimento em si, é
capaz de solucionar os males do nosso tempo.
113
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
• A Modernidade é um contexto político, histórico e cultural no qual irá se edificar
uma nova racionalidade jurídica.
• Com o rompimento com o poder político papal e a emergência dos Estados
Modernos, há a secularização do conhecimento e a concepção de ciência
substituindo a ideologia cristã.
• Ocorrem a relevância e a contribuição dos distintos pensadores para a edificação
do saber moderno e a redefinição do Direito.
114
AUTOATIVIDADE
1 O advento da Modernidade modificou profundamente o modo de vida e os valores da
sociedade europeia a partir do século XIV. Sobre as transformações no campo
jurídico, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) A origem do Direito do Trabalho com a Revolução Industrial.
b) ( ) A elaboração do Direito Previdenciário com as Revoluções Burguesas.
c) ( ) O movimento pela codificação do direito.
d) ( ) A elaboração do Código de Justiniano.
2 O Estado Moderno é edificado como ente político e jurídico desde a fragmentação da
ordem medieval a partir do século XVI na Europa Ocidental. Foram inúmeras as
transformações que promoveram o crescimento das cidades, o fortalecimento da
burguesia e o avanço tecnológico. Acerca das características do Estado Moderno,
analise as sentenças a seguir:
I- Promove condições necessárias para o desenvolvimento e a manutenção das
relações públicas e privadas.
II- É capaz de manter a validade das normas jurídicas através da legitimidade política.
III- Produz uma aceitação do sistema sociopolítico liberal, capitalista e burguês.
IV- Desempenha uma função desintegradora da ordem social e política moderna.
Assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) As sentenças I e IV estão corretas.
b) ( ) As sentenças I, II e IV estão corretas.
c) ( ) Somente a afirmação II está correta.
d) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.
3 O modelo político liberal moderno é resultado histórico da formação de um tipo de
poder estruturado na Europa durante os séculos XV, XVI e XVII, trata-se de uma
forma política moldada dentro de um processo de centralização e concentração
ocorrido nesses séculos. Acerca das fases que se desdobraram nesse período,
assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) Absolutista, liberal e social.
b) ( ) Liberal, neoliberal e econômica.
c) ( ) Neoliberal, econômica e social.
d) ( ) Religiosa, liberal e social.
115
4 Considere a cena a seguir, do filme Tempos Modernos, de 1936, de Charles Chaplin:
FONTE: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-1832/fotos/detalhe/?cmediafile=20067818>.
Acesso em: 3 abr. 2018.
Pergunta-se: Considerando o estudo realizado acerca do pensamento moderno, o que
a figura anterior lhe sugere quanto à relação ser humano X tecnologia?
116
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO
JURÍDICO
1 INTRODUÇÃO
Para compreendermos o direito moderno como resultado de todo um processo
histórico e filosófico acumulado, há que se partir da compreensão da racionalização
jurídica moderna, o que pressupõe inseri-la no amplo processo ético-filosófico e
técnico-produtivo da ordem capitalista liberal que emergiu da sociedade ocidental
europeia no século XVIII, culminando na consolidação de uma nova ordem social,
econômica e política, fundada nos valores e interesses da classe burguesa.
2 EXPLANAÇÃO
Se inicialmente o liberalismo constituiu um instrumento revolucionário capaz de
enfrentar o Antigo Regime Absolutista, com o apoio das camadas populares que
acreditavam na possibilidade de construção de uma sociedade livre, justa e fraterna,
com a apropriação do poder político e econômico pela elite burguesa, os ideais
revolucionários são mantidos unicamente no plano formal, excluindo-se da prática
qualquer ação comprometida com a distribuição da riqueza e a democratização política.
AfirmaWolkmer (1994) que, das expressões valorativas, a que mais se
encontra integrada ao liberalismo é o individualismo. No modelo liberal, o individualismo
assume caráter diferenciado de outras experiências históricas, como o cristão,
naturalista, racionalista e anarquista, por estabelecê-lo não como um “valor em si”, mas
como “valor absoluto”, que concebe e prioriza o homem em sua absoluta autonomia
não apenas frente ao poder estatal, mas a qualquer forma de organização institucional.
Sob tal ótica, foi produzido um modelo político monopolizado capaz de assegurar e
reproduzir os interesses liberais individualistas do capitalismo burguês, aliado a um tipo
específico de instrumental jurídico capaz de garantir sua legitimidade e efetividade.
O modelo político liberal moderno é resultado histórico da formação de um tipo
de poder estruturado na Europa durante os séculos XV, XVI e XVII, que veio a suceder
o político-jurídico medieval. Trata-se de uma forma política moldada dentro de um
processo de centralização e concentração ocorrido nesses séculos, que se desdobrou
através de distintas fases: absolutista, liberal e social.
117
Entende Heller (s.d., p. 158) que “[...] é patente o fato de que durante meio
milênio, na Idade Média, não existiu o Estado no sentido de uma unidade de
dominação, independentemente no exterior e interior que atuara de modo contínuo com
meios de poder próprios, e claramente delimitada pessoal e territorialmente”.
Para o referido autor, o modelo de poder político da Idade Média é entendido
como “estamental” (as funções encontravam-se repartidas entre a Igreja, os nobres
proprietários de terra, os cavalheiros e outros privilegiados), sendo os reinos e
territórios da Idade Média, tanto no interior como no exterior, unidades de poder político
apenas excepcionalmente, já que o poder estava limitado em seu interior pelos
inúmeros depositários de poder feudal, e no exterior pela Igreja e Imperador.
Como já vimos, além de que, na fase medieval, era desconhecida a ideia de
uma pluralidade de Estados soberanos coexistindo com uma igual consideração
jurídica, não conhecendo o Estado feudal uma relação de súdito de caráter unitário,
como atualmente o compreendemos.
Portanto o Estado «moderno» se origina em um processo de alterações
que incluem a exaustão do sistema socioeconômico feudal e o advento
do capitalismo; incluem também o surgimento de uma nova vida urbana,
em contraste com a existência predominantemente rural do medievo e
em consonância com a ascensão de um novo tipo social que viria a ser
denominado burguesia (SALDANHA, 1987, p. 8).
A ordem política e social medieval, por sua descentralização e fragmentação,
permitiu a coexistência de distintas e complexas ordens jurídicas legítimas num mesmo
espaço social, o que será definitivamente abolido pelo Estado Moderno, que irá impor
uma ordem jurídica monista, considerando o Estado como a fonte monopolizadora de
produção do Direito, tendo as demais fontes apenas legitimidade derivada.
Há de salientar-se que, dentro dessa realidade jurídica pluralista, num plano
superior, colocou-se o Direito Canônico, por estar diretamente vinculado à autoridade
religiosa, critério último para a validação das demais ordens jurídicas, como consequência
do princípio agostiniano de subordinação da ordem terrena à ordem divina.
Paulatinamente, com o avanço da ordem mercantilista e a necessidade de
proteger juridicamente os interesses da burguesia comercial, associam-se as ideias
individualistas e capitalistas a partir do século XVI, abrindo caminho para um “novo”
estilo de vida que foi capaz de transformar a estrutura social, jurídica e econômica do
mundo medieval ocidental, delineando um novo homem com consciência do valor da
personalidade e da liberdade individual, rompendo-se com as regras morais e religiosas
da Idade Média. Assim, começa a entrar em colapso a antiga estrutura jurídica
descentralizada, passando a ser sucedida pela consolidação mais genérica, sistemática
e unitária de um Direito Mercantil (WOLKMER, 1994).
118
No plano político, o Estado Moderno, de forma oposta ao do poder medieval,
constitui-se de dois processos paralelos que paulatinamente o vão consolidando: O
pro-cesso de centralização, quando se passou do poder disperso e local para um
po-der situado em um foco central nas mãos do monarca; e a formação de uma nova
concepção política de que o poder deve ter legitimidade e representatividade.
Tal modelo político desenvolveu-se por conta da conjugação de fatores que se
desenvolveram historicamente através de estágios “demarcados por mutações
revolucionárias” fundamentais, que são: absolutista, liberal e social, sendo que cada
fase é caracterizada por um tipo, uma figura conceitual genérica provinda da unificação
de certos traços de um objeto.
DICAS
Para melhor compreender esta fase da história, procure ler a respeito
das Revoluções Burguesas. Há muito material disponível na internet.
FIGURA 12 – REVOLUÇÃO INGLESA
FONTE: <https://cafedahistoria.wordpress.com/2012/04/12/revolucoes-burguesas-a-revolucao-inglesa/>.
Acesso em: 11 abr. 2017.
119
O adjetivo liberal, tomado em sua concepção política, que vem a caracterizar o
modelo que sucede ao absolutista, deve ser compreendido a partir dos movimentos
político-sociais pré-napoleônicos do século XIX; apesar de antes ter a Inglaterra exemplos
de correntes e instituições tipicamente liberais, associado a um credo jusnaturalista,
diferencia-se substancialmente do antigo. Para o jusnaturalismo predominou uma
concepção objetiva – existência de leis eternas, correlatas de uma racionalidade inerente às
coisas e oriundas do domínio do nous e de sua obra, o cosmos.
Com o pensamento moderno emerge a noção de direito subjetivo (que
sobreveio já com o cristianismo), emergindo uma concepção plural e individual de
direitos naturais. Na versão liberal, o contratualismo representa um “legado”, um ponto
de partida para a ideia de necessário acordo de vontades para a legitimação de poder.
Somente um poder consentido seria legítimo – aqui sem
diferenciar-se legitimidade e validade – e tal consentimento deveria
provir de todos, ou seja, de cada um dos contratantes, cada qual
livre e racional em sua condição humana. Tal liberdade viria a ser
proclamada nas declarações constitucionais do liberalismo, dando
aval ao poder consentido e outorgado, e reconhecida e protegida
pelo Estado (SALDANHA, 1987, p. 29).
O paradigma legalista, enquanto legitimação de qualquer ação social, tanto no
individual quanto no plano político, a partir da previsão legal – conjunto normativo
escrito de caráter geral e abstrato – que obedece a um modelo técnico-racional e
produzida unicamente pelo Estado, traz como um de seus corolários o princípio do
primado da lei. Esta é uma invenção do século XIX que vem na esteira das revoluções
burguesas, que vincula a teoria da soberania popular e da representação parlamentar
como reação à concepção absolutista de Estado.
Para a burguesia em ascensão, a defesa de seus interesses – livre circulação
de bens, de pessoas, liberdade de comércio e direito de propriedade – passava pela
necessidade de impor ao Estado o primado da lei como garantia a violações a tais
direitos. Tal paradigma foi apropriado pelas distintas ordens jurídicas ocidentais de
maneira diferenciada, conferindo-lhe fisionomia própria. Assim, por exemplo, na França
a lei positivada é a condição de existência de direitos, enquanto que na Alemanha de
Weimar, sob o efeito do socialismo, se cria a ideia de que a lei escrita cria o perigo de
restringir direitos ao invés de garanti-los, preferindo-se operar a distinção entre lei
formal e lei material (AUER, s.d.).
O paradigma da legalidade, ao ser transformado em ideologia jurídica, se converte
num princípio hermenêutico moderno, pois cria a ficção da possibilidade de vincular o
abstrato ao concreto, o geral ao particular, reforçando a ideia de coerência da ordem
jurídica. Auer (s.d., p. 135), tomando ideologia no sentido gramsciano, a define como “[...]
um sistemalógico de ideias que circulam na sociedade e que constituem outras tantas
normas de comportamento difusas, parcialmente conscientes e parcialmente
120
inconfessas”. Tal ideologia jurídica, tendo por finalidade promover a coesão do grupo
social, organizando a consciência individual em função de padrões de universalidade,
justiça, equidade e previsibilidade, torna legítima a organização jurídica posta, criando
um “consenso” que permite um agir social.
A citação a seguir retratará o que é o paradigma da legalidade, que vem a ser o
conceito-chave do direito moderno.
O princípio da legalidade canaliza e estrutura a lei. A lei pode ser
vaga, imprecisa, fluida e indeterminada, pois o princípio da
legalidade consegue a proeza de fazer aparecer como conformes a
esta fluidez os mais diversos atos de aplicação individual e concreta.
Garantindo uma ligação tanto normativa como lógica entre o abstrato
e o concreto, entre o geral e o individual, a legalidade funda e reforça
a ideia de uma coerência da ordem jurídica. Ela pinta a imagem
reconfortante, porque previsível, de um mundo jurídico fechado e
ordenado, em que tudo está no seu lugar, em que a conclusão
decorre naturalmente do jogo das premissas maior e menor, em que
o geral e o abstrato antecipam um juízo hipotético sobre o concreto
que, por sua vez, os confirma etc. Em suma, a ideia de uma lógica
da ordem jurídica é essencialmente ideológica e esta ideia
alimenta-se, nomeadamente, do princípio da legalidade (AUER, s.d.,
p. 136).
Esse milagroso paradigma é legitimado pela crença positivista enquanto atitude
científica que “[...] encontra na observação científica dos fenômenos a explicação da
realidade, excluindo toda especulação metafísica. Esta observação é uma experiência
da realidade a partir da qual será dada a explicação (empirismo vem da experiência)”
(MIAILLE, 1989, p. 275).
Essa corrente de pensamento foi o resultado da incorporação do modelo
epistemológico adotado pelas ciências naturais às “ciências do espírito”, pressupondo
que todo saber, para ser válido, deveria se basear na observação direta da realidade
empírica, rejeitando qualquer especulação metafísica, substituindo a autoridade e a
especulação filosófica pela observação e pela experiência, pretendendo objetivar o
conhecimento.
Segundo Hespanha (1997), no plano jurídico, esse movimento vinha ao
encontro da pretensão de colocar fim tanto à incerteza e ao casuísmo do modelo
jurídico tradicional quanto à proliferação de sistemas especulativos sobre direito natural
que haviam surgido ao longo do século XVIII.
Ou seja, dirigia-se tanto contra a vinculação do direito à religião e
à moral, como contra a sua identificação com especulações
de tipo filosófico como as que eram correntes nas escolas jus
racionalistas. Contra uma coisa e contra a outra proclamava-se a
necessidade de um saber dirigido para coisas positivas
(HESPANHA, 1997, p. 174).
No pensamento jurídico fixaram-se duas correntes doutrinárias de matriz
positivista a partir do século XIX: o positivismo legalista, representado pela Escola
Exegética, e o positivismo formalista científico, cuja precursora foi a Escola Histórica.
121
O positivismo em sua vertente legalista, que acaba sendo dominante na prática
jurídica, reduz o direito à lei e admite como única fonte de direito o criado por um legislador
estatal. Já a segunda “[...] deduzia as normas jurídicas e sua aplicação a partir do sistema,
dos conceitos e dos princípios doutrinais da ciência jurídica, sem conceder a valores ou
objetivos extrajurídicos (por exemplo, religiosos, sociais ou científicos) a possibilidade de
confirmar ou infirmar as soluções jurídicas” (WIEACKER, s.d., p. 492).
Embora não possam as duas concepções ser confundidas por possuírem
diferentes matrizes filosóficas e políticas, ambas rejeitam qualquer fundamentação
metafísica do direito, conferindo-lhe o status de um saber científico especializado e
autônomo, que deve utilizar métodos objetivos e verificáveis à semelhança das ciências
naturais. A tal credo soma-se a pretensão de conferir a esse saber um caráter de
universalidade e de progressiva perfeição, já que esta fase coincide com o período
áureo da expansão colonialista europeia que difundia e impunha a cultura, e por via de
consequência, o modelo jurídico desenvolvido na Europa Ocidental às diferentes partes
do mundo, combatendo e dizimando, em nome do “progresso, modernidade e da
civilização”, todas as formas de organização social, política e jurídica dos povos
conquistados, convencida de sua supremacia.
A codificação representou a consolidação do positivismo jurídico como discurso
predominante no período de formação da ciência jurídica moderna. Esse movimento
inovador e revolucionário no plano jurídico-formal vem na esteira da ideologia liberal
burguesa e no triunfo dos princípios da Revolução Francesa, rompendo definitivamente
com a antiga ordem estamental sobre a qual se assentava o Antigo Regime.
FIGURA 13 – CÓDIGO CIVIL FRANCÊS
FONTE: <https://viajepordois.wordpress.com/2013/09/12/waterloo/>. Acesso em: 11 abr. 2017.
122
O princípio básico desse novo paradigma jurídico, coerente com a concepção
de que o estudo do Direito deve ser restringido à experiência constatada, consiste em
identificar e reconhecer apenas como Direito o produzido pelo Estado, o único com
existência objetiva – jus positum – que, com segurança, pode ser instrumento de
planificação e manutenção da sociedade.
O movimento da codificação, produto da simbiose do jus racionalismo com o
iluminismo, alastrou-se pela Europa Ocidental a partir do século XIX, e, apesar da
multiplicidade de circunstâncias que justificam sua ocorrência, possui, no dizer de
Wieacker (s.d., p. 366), “um idêntico perfil espiritual”.
Os códigos modernos pretenderam uma “planificação social” através da
reordenação sistemática da matéria jurídica, tendo como pressuposto a convicção
iluminista de que o estágio civilizatório da sociedade seria alcançado com uma forma
de governo fundada na razão e na “vontade geral”. O projeto geral para a edificação de
um modelo social fundado na ética natural vinha sendo delineado pelo Direito Natural,
que, a partir do século XVII, encontrou um ambiente filosófico para uma redefinição no
sentido de conceber o Direito Natural estável fundado na razão.
O pensamento dos juristas que buscavam um “direito certo e seguro” encontrou no
poder da razão individual a possibilidade de descoberta das regras do justo fundado numa
ordem racional, o que iria conduzir no sentido de tornar o direito positivo o “mais certo”.
A ideia do direito natural, neste novo sentido, vem a impor-se
decisivamente na cultura jurídica europeia do século XVII. De alguma
forma, o novo direito natural, fundado na razão, é o correspondente do
antigo direito natural, fundado na teologia. O pensamento social e
jurídico laicizara-se. O que não é estranho ao facto de, pela primeira vez,
se ter quebrado a unidade religiosa da Europa (com a Reforma) e de se
ter entrado em contato com povos totalmente alheios à tradição religiosa
europeia. E, com esta laicização, o fundamento do direito passara a
residir em valores laicos, comuns a todos os homens, como as
evidências racionais (HESPANHA, 1997, p. 150).
Esse novo conceito de Direito Natural, que passa a dominar o pensamento dos
juristas, traz como consequência a construção de sistemas jurídicos que têm como
ponto de partida os direitos inatos do indivíduo. A concepção individualista de homem,
apesar de remontar ao nominalismo, teve no cartesianismo e no empirismo um novo
impulso, onde os direitos individuais, imutáveis e necessários são definidos pela própria
natureza humana.
123
NOTA
A filosofia nominalista, ao contrário da tradição filosófica clássica que
conferia existência real ao homem como inserido em estruturas sociais,
considerava o homem enquanto um ser isolado, sem outros direitos e
deveres senão aqueles reclamados pela sua natureza individual ou pela
sua vontade.
Do cartesianismo é absorvida a ideia de o homem como ser que buscaa verdade
através da razão, detentor de dois direitos naturais inerentes: usar livremente a razão na
produção do conhecimento e de pautar sua ação em princípios ditados pela razão. O
em-pirismo transcende o cartesianismo ao idealizar o homem não apenas como um ser
racio-nal, mas comandado por instintos concretos (perpetuação, conservação...) que
deveriam ser garantidos e satisfeitos, já que constituíam um Direito Natural (HESPANHA,
1997).
É assim superada a concepção aristotélico-tomista de Direito Natural pela
convicção na natureza individual do homem e na observação dos impulsos que o levam
à ação, emergindo um novo conceito de sociedade e de ordem social.
[...] Perante a sua necessidade “natural” de agir racionalmente ou de agir
instintivamente, a sociedade aparecida até mesmo como um obs-táculo,
pois nela não era possível dar livre curso a estes impulsos sem chocar
com os desígnios de ação dos outros”. É exatamente esta a firme crença
dos pensadores jus racionalistas que defendem o Estado como forma de
organização social e de limite dos direitos naturais.
De facto, levado pela consideração dos interesses da vida em
comum, para a qual se sentiam inclinados (Grócio), ou pelo medo de
um estado de natureza em que a satisfação dos impulsos naturais
gerava contínuas lutas (Hobbes), os homens celebram entre si um
pacto, pelo qual limitam a sua liberdade natural, entregando na mão
dos governantes o poder de editar regras de convívio obrigatórias. É
o «contrato social», cujos germes já se encontram em Suarez, mas
cuja teoria é agora amplamente desenvolvida.
A teoria do «contrato social» não deu lugar somente às teorias
democráticas que tiveram seu epílogo na Revolução Francesa. Ele
foi igualmente adequado a fundamentar o «despotismo iluminado»,
típico das monarquias e principados europeus do século XVIII. Tudo
dependia, de facto, do conteúdo do contrato, pois os jus naturalistas
acabavam, como se vê, por depor todo direito positivo nas mãos dos
membros da coletividade. E então, é da vontade arbitrária destes
que a lei vem, em última análise, a depender. E bem pode acontecer
que, atentos aos perigos do estado de natureza, os homens decidam
depor todos os seus direitos na mão do príncipe, a fim de que este
zele, com o pulso livre, pelo bem comum e pela felicidade individual
(Hobbes) (HESPANHA, 1997, p. 151-152).
124
Com o jus racionalismo é aberta uma nova fase no pensamento jurídico. De um
lado, a nova convicção de “natureza humana” eterna e imutável confere valor universal
do Direito, o que explica a “exportação” dos códigos, notadamente o Código Civil
napoleônico como subsidiário ou principal, para regiões culturalmente distintas,
representando um verdadeiro movimento revolucionário. E de outro, o divórcio definitivo
entre Direito Natural e Direito Positivo, vindo este último a ser considerado como o
único Direito, sendo que, no dizer de Bobbio (1993, p. 23), “[...] a partir deste momento,
o acréscimo de adjetivo «positivo» ao termo «direito» torna-se um pleonasmo, mesmo
porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela
doutrina segundo a qual não existe outro direito se não o positivo”.
As codificações sistemáticas do Direito significaram o “triunfo da razão” que
pretenderam a positivação de um modelo de Direito ensinado nas universidades desde
o século XI, “o direito justo”, mostrando os juristas a disposição em admitirem a
inovação de ser o soberano competente para afirmar o Direito.
Na verdade, é reconhecido o poder do Estado para expor os princípios da lei
natural: trata-se, como diz Cambecérès – jurista francês do século XIX que elaborou o
Código Civil de 1804 –, de estabelecer um código de natureza sancionado pela razão e
garantido pela liberdade, poder este que, uma vez admitido, facilmente é afastado de
tal fim, já que o “legislador”, como personificação do Estado, servindo-se de tal poder,
independentemente de qualquer preocupação com “leis naturais”, serve-se da nova
mentalidade para ter na lei positivada um eficiente instrumento de controle social.
Na França revolucionária do século XIX, o movimento da codificação veio a
mudar radicalmente o conceito de Direito, fazendo verdadeira “tábula rasa” da ordem
jurídica anterior. Ao criar uma nova mentalidade que identifica Direito com os códigos,
os juristas desenvolvem um instrumental técnico de interpretação e aplicação do
Direito, seguindo uma orientação exegética.
No dizer de Bobbio (1993, p. 83), a técnica exegética consiste em “[...] assumir
pelo tratamento científico o mesmo sistema de distribuição da matéria seguido pelo
legislador e, sem mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo por artigo, do
próprio Código”. Portanto, a chamada Escola da Exegese pretendia reduzir o direito à
lei, levando a cabo os objetivos revolucionários burgueses.
Como disse o decano Aubry, em 1857, em um relatório oficial sobre
o espírito do ensino da Faculdade de Direito em Paris: Toda a lei,
tanto no espírito quanto na letra, com uma ampla aplicação de seus
princípios e o mais completo desenvolvimento das consequências
que dela decorrem, porém nada mais que a lei, tal a divisa dos
professores do Código de Napoleão (PERELMAN, 1998, p. 31).
125
Apesar de já ter a Assembleia Nacional Constituinte de 1790 concebido um projeto
de código que sintetizasse um novo direito revolucionário, apenas em 1804, com o
Consulado e sob a influência de Napoleão I, é que o Código Civil teve uma versão definitiva,
seguindo-se o Código de Processo Civil (1806), Código Comercial (1807), Código Penal
(1810), dentre outros. Essa fase de promulgação dos códigos inaugura a instauração da
Escola da Exegese, que, segundo Perelman (1998), vem seguida de duas outras fases
distintas: uma fase de apogeu até cerca de 1880, e uma de declínio, que termina em 1890
com a obra de Gény, anunciando o fim do pensamento exegético. Os códigos napoleônicos
consumaram definitivamente a doutrina jus racionalista ao “positivar a própria razão” e a
concretização legislativa da volonté générale.
A lei sistematizada nos códigos adquire o monopólio de manifestação do direito. Já
não havia lugar para outras fontes de direito. O direito doutrinal havia sido incorporado nos
códigos. A Revolução rompeu definitivamente com o passado, instituindo uma nova ordem
política e jurídica, desvinculando-se, assim, do Direito tradicional. A jurisprudência não tinha
mais sentido como fonte de Direito na medida em que aos juízes cabia apenas o poder de
aplicar a lei e não estabelecer o Direito (HESPANHA,1997). Esta compreensão jurídica,
predominante na França do século XIX, forjou juristas (Duranton, Demolombe, Troplong)
cujas obras doutrinárias se limitavam a expor e a interpretar os artigos dos códigos.
A Escola da Exegese estava intimamente ligada ao ambiente político
e jurídico francês, ou seja, a um Estado nacional revolucionário, em
corte com o passado, dotado de órgãos representativos e que tinha
empreendido uma importante tarefa de codificação. Isto determina a
disseminação dos princípios desta escola noutros países,
retardando-a, nomeadamente, nos casos em que estes requisitos
não estivessem realizados (HESPANHA, 1997, p. 178).
Tal saber jurídico que dominou a Europa na primeira metade do século XIX,
segundo Bobbio (1993, p. 84-89), possui como características fundamentais:
1. A inversão das relações tradicionais entre Direito Natural e Direito
Positivo.
2. O monismo jurídico.
3. A interpretação e aplicação da lei fundada na intenção do
legislador.
4. O culto à lei e o princípio da autoridade.
Até fins do século XVIII, predominava uma concepção dualista em que o Direito
era definido individualmente em duas esferas distintas: o Direito Natural e o Direito
Positivo, diferenciados quanto à gradação de superioridade ao longo da formação
histórica do pensamento jurídico.
Na Antiguidade Clássica, como vimos, o Direito Natural era considerado
hierarquicamente inferior ao Positivo, concebido como Direito comum (koinós nómos),
enquanto o Direito Positivo erao particular.
126
Já na Idade Média, o Direito Natural é visto como “a lei escrita por Deus
presente no coração dos homens”, como afirma São Paulo, na Sagrada Escritura, o
que gera a inversão da relação entre as duas espécies de Direito, tendência que
impregnou o pensamento jus naturalista de que considerou o Direito Natural superior ao
Positivo. Contudo, apesar de tais distinções, ambos eram considerados como legítimos.
Com o pensamento exegético, embora sem a coragem de negar
completamen-te, o Direito Natural passa a ser de menor importância e sem significado
prático. No dizer de Demolombe, um dos idealizadores do Positivismo Jurídico, o
Direito Natural só importa ao jurista quando é inserido na lei, fazendo, assim, uma
inversão própria do pensamento positivista, ao desconsiderar o Direito Natural como
referencial de validade ao Direito Positivo.
O jurisconsulto não deve se prender a um modelo mais ou menos
per-feito, a um tipo mais ou menos ideal; [...] o direito natural, para ele,
não é sempre o melhor, nem o mais excelente; mas o direito natural
possível, praticável, realizável é aquele, sobretudo, que se conforma e se
assimila melhor ao espírito, aos princípios e às tendências gerais da
legislação escrita; e eis por que penso que é sempre nessa mesma
legislação que é necessário atingir, diretamente ou indiretamente, to-das
as regras das soluções jurídicas (Bonnecase) (BOBBIO, 1993, p. 85).
Bobbio (1993) salienta que a Escola da Exegese eliminou a ideia de aplicação
subsidiária do Direito Natural no caso de lacuna do Direito Positivo, já que, apesar de o
Art. 4º, do Código de Napoleão, admitir a função subsidiária do Direito Natural, a
interpretação deste artigo é alterada. Partindo do princípio da completude do
ordenamento jurídico, o juiz não necessita de meio subsidiário para resolver conflitos:
“o juiz não pode legalmente pretender que a lei não lhe proporciona os meios para
resolver a causa que lhe é submetida” (Bonnecase), além de dever o juiz considerar
improcedente qualquer pedido que não “previsto em lei” (BOBBIO, 1993, p. 86)
Quanto à segunda característica apontada por Bobbio, o monismo jurídico, ou
princípio da onipotência do legislador, segundo Wolkmer (1994, p. 40), tal doutrina
resulta da inter-relação entre:
A suprema racionalização do poder do soberano e a positividade
formal do Direito [...], conferindo, ao Estado, o monopólio de
produção das normas jurídicas, transformando o Estado em único
agente legitimado capaz de criar legalidade para enquadrar as
formas de relações sociais que se vão impondo.
O Estado Liberal Moderno, conforme já considerado, é definido em função de
ser um modelo político ao mesmo tempo per leges (faz a lei) e sub leges (sob o
controle da lei), contorno que foi conferido pela congruência entre a legalidade estatal e
a centralização burocrática, que atribui a seus órgãos institucionais diferentes poderes
– legislar e julgar através de regras jurídicas abstratas e genéricas, sistematizadas no
Direito Positivo.
127
É exatamente com a Escola da Exegese que ocorre a mais íntima simbiose
entre o Direito e o Estado, não apenas no sentido de reconhecer como única fonte de
Direito o Estado, mas sobretudo, por admitir como o único verdadeiro o Direito Estatal.
Tendo presente a consolidação do modo de produção capitalista e a
definição da burguesia como segmento social hegemônico,
impõe-se, a partir de uma arquitetura lógico-formal unitária, o
princípio de que toda sociedade tem apenas em único Direito, e que
este «verdadeiro» Direito, instrumentalizado por regras
positivamente postas, só pode ser produzido através de órgãos e de
instituições reconhecidos e/ ou oficializados pelo Estado.
Constrói-se, assim, a segurança, a hierarquia e a certeza de um
arcabouço de normatividade dogmática fundado no plano lógico de
que só existe um Direito, o Direito Positivo do Estado (WOLKMER,
1994, p. 54).
A concepção estatal de Direito gera, necessariamente, o princípio da
onipotência do legislador, que não significa tão-somente a negação do Direito Natural,
mas também, no dizer de Bobbio (1993, p. 86), “a negação de todo tipo de direito
positivo diferente daquele posto pela lei, como o direito consuetudinário, o direito
judiciário e principalmente o direito científico”.
Dura lex, sed lex, um bom magistrado humilha sua razão diante da razão da lei
(Mourlon). Esta máxima do pensamento exegético deixa evidente que a interpretação e aplicação
da lei devem ser submetidas à razão expressa na lei, a razão de um Estado Legislador.
Como decorrência da sacralização do Direito Estatal fundado no princípio da
onipotência do legislador, vincula-se uma terceira crença, ou característica, do pensamento
exegético: a interpretação e aplicação da lei com base na intenção do legislador.
A ficção jurídica de um legislador onipotente e detentor de “uma vontade”
expressa no texto legal é fruto do pensar dogmático positivista, que compreende o texto
da lei como expressão da mens legislatoris (vontade do legislador). Pressupondo os
códigos como instrumento capaz de garantir a certeza das relações sociais e o Direito
como fato objetivado e delimitado nestes códigos, via de consequência, a interpretação
e aplicação do Direito deveria ser centralizada na determinação unívoca e precisa do
sentido expresso no texto legal, operando-se com a segurança e certeza como valores
prioritários desse modelo de cientificização.
Para dar conta da perspectiva formalista e lógica da ciência jurídica,
definitivamente o intérprete não pode operar senão o que lhe é dado, que são as
proposições normativas e sistematicamente organizadas nos códigos.
Esta preocupação cientificista, herdada pelos juristas do século XVIII, se
explica pelo conceito sistemático de Direito, que se resume em um conjunto de
elementos estruturados pelas regras da dedução.
128
Nesse sentido, interpretar significa, sob tal ótica, estabelecer o sentido
imanente da norma na totalidade do sistema tal qual foi previsto pelo legislador,
distinguindo-se a vontade real e vontade presumida.
Busca-se a vontade real do legislador no caso em que a lei disciplina
efetivamente uma dada relação, mas tal disciplinamento não fica claro a
partir do texto da lei (então se busca, mediante investigações de caráter
essencialmente histórico, o que o autor da lei pretendia efetivamente
dizer); busca-se, em contrapartida, a vontade presumida do legislador (o
que se resolve, em última análise, numa ficção jurídica), quando o
legislador se omitiu em regular uma dada relação (lacuna da lei). Então,
recorrendo à analogia e aos princípios gerais do direito, procura-se
estabelecer qual teria sido a vontade do legislador, se ele tivesse
previsto o caso em questão (BOBBIO, 1993, p. 87).
Finalmente, a última característica assinalada por Bobbio (1993), o culto à lei e
o princípio da autoridade ocorrem da identificação do Direito com a lei que submete o
intérprete, como “profissão de fé” (Demolombe), ao culto das disposições legais, a um
excessivo apego à lei e à vontade do legislador nela expressa, conferindo ao texto legal
um poder inerente – a fetichização.
É pressuposto do pensamento exegético a impossibilidade de colocar em
discussão a justeza “da palavra” do legislador expressa no texto legal. A Escola da
Exegese foi sustentada por seus expoentes, comentadores do Código, cujos
entendimentos serviram de dogma aos juristas.
As teorias jurídicas estruturadas na Europa durante o século XIX, apesar de
possuírem como vínculo comum o objetivo de viabilizar e consolidar o novo paradigma
político e social voltado para os interesses da burguesia triunfante, não constituíam
uma unidade de soluções metodológicas.
A Alemanha, em fins do século XVIII, que ocupava lugar de destaque no
cenário do pensamento jurídico europeu, além de não ter sido palco da experiência
revolucionária burguesa, não conhecia o modelo político do Estado Nacional. Na
Europa, a crença no racionalismo e no liberalismo revolucionário difundia a convicção
de que os Estados Modernos deveriamordenar sua ordem jurídica através de uma
codificação monopolizadora.
Nas raízes dos movimentos políticos contratualistas, o Estado (e o Direito
Codificado) era idealizado como fruto de um contrato social racional a-histórico,
portanto, como forma universal e a-cultural, indiferente às particularidades históricas e
culturais.
Era isto que uma cultura de raízes nacionais, ancorada nas
especifi-cidades culturais dos povos, não podia aceitar. Uma
organização po-lítica e jurídica indiferenciada, exportável,
universalizante, aparecia, quando confrontada com os
particularismos das tradições nacionais, como um artificialismo a
rejeitar (HESPANHA, 1997, p. 181).
129
É contra essa visão artificial e intemporal de Estado e Direito que pensadores,
como Gustav Hugo (1764-1844), Friedrich Carl V. Savigny (1779-1861) e G.F. Puchta
(1798-1846), buscam fontes não estaduais e não legislativas do direito, compreendendo a
sociedade como um organismo sujeito à evolução histórica, onde a tradição do passado
condiciona naturalmente o presente. Esta natural e peculiar evolução, sob tal ótica, possuiria
como elemento permanente e atuante o “espírito do povo” (Volksgeist), que daria sentido e
unidade a todas formas de manifestação cultural das diferentes nações.
FIGURA 14 – OS DOIS GRANDES NOMES DO POSITIVISMO JURÍDICO
FONTE: <http://www.duhaime.org/LawMuseum/LawArticle-1164/1814-The-Thibaut-Savigny-Controver-
sy-German-Codification-v-Common-Law.aspx>. Acesso em: 11 abr. 2017.
O processo de construção do positivismo na Alemanha, segundo Bobbio (1993), foi
precedido pela desagregação dos “mitos” jus naturalistas ligados à concepção filosófica
racionalista – a filosofia iluminista de matriz cartesiana, tarefa que coube ao historicismo na
primeira metade do século XIX –, que tem sua origem na Escola Histórica do Direito.
NOTA
O historicismo, como tendência de pensamento que se opõe ao raciocínio
puro e abstrato, dividiu-se em diversos ramos, designando várias reações
contra as doutrinas racionalistas. Pode-se distinguir três correntes: o
historicismo filosófico de Schelling e Hegel, o historicismo político dos
teóricos da restauração e o historicismo jurídico. Apesar de considerar as
importantes relações e interdependência entre as diferentes correntes,
há que se destacar o historicismo jurídico. A respeito do historicismo
alemão nas suas diferentes vertentes, leia DEL VECCHIO, G. Lições de
Filosofia. Coimbra: Arménio Amado
– Editor, 1979 e LARENZ, K. Metodologia da Ciência do Direito.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s.d.
130
Como decorrência das condições específicas do processo histórico e da
concepção predominante no pensamento jurídico alemão em rejeitar o Estado como
única fonte do direito e sua forma legislativa, é na filosofia da cultura organicista e
evolucionista somada ao ambiente cultural do romantismo alemão, que a Escola
Histórica vai buscar como pressuposto da ordem jurídica a ideia de que a sociedade,
assim como um ser vivo, é um todo orgânico submetido a um processo de evolução
histórica que é individualizado em cada povo.
Esse processo evolutivo histórico, neste entendimento, é movido por uma força, ou
um “espírito contínuo e atuante”: o espírito do povo (Vosksgeist), que confere unidade e
sentido a todas manifestações culturais de uma nação, sendo o direito uma dessas formas
de manifestação, e, portanto, é o resultado da ação deste agente nuclear.
A partir desse pressuposto, assiste-se à construção do pensamento jurídico
alemão positivista na primeira metade do século XIX, que, sob o ponto de vista
hermenêutico, servirá como base para a concepção formalista e organicista de
interpretação e aplicação do Direito.
O primeiro passo de desmistificação do jus naturalismo deu-se com Gustav
Hugo. Como sugere o título da sua obra Tratado do Direito Natural como Filosofia do
Direito Positivo, escrita em 1798, entende-se que o direito natural não pode ser mais
concebido como sistema normativo independente do direito positivo, mas como filosofia
do direito positivo. Com tal afirmação, reduzindo o direito natural e filosofia ao direito
positivo, efetua a passagem do jus naturalismo para o jus positivismo.
Na obra referida, quando se discutem as fontes do direito, ao colocar a questão
central do que é direito, o autor responde não acreditando na “sabedoria” jus
racionalista do legislador e sua “fábrica de leis”: Na crítica que Hugo lançou ao jus
racionalismo a-histórico e seus legisladores, buscou construir uma ciência jurídica
autônoma, empírica e filosófica, propondo uma sistematização interna da qual seria
possível a construção conceitual dos conteúdos do direito positivo, antecipando as
contribuições levadas pela Escola Histórica.
A reação ao movimento de codificação, considerado como fator de destruição e
não de construção do direito, conduzirá à valorização dos elementos consuetudinário e
doutrinal do direito e não ao direito legislado, como pretendia o pensamento
legalista-exegético, o que é evidenciado no debate travado entre Savigny e Antônio
Frederico Justo Thibaut (1772-1840). Thibaut, no ensaio Sobre a Necessidade de um
Direito Civil Geral para a Alemanha (Heidelberg, 1814), defende a necessidade da
codificação do direito com uma perfeição formal – normas jurídicas enunciadas de
maneira clara e precisa – e substancial – normas capazes de regular todas as relações
sociais – como forma de unificação da Alemanha e avanço no pensamento jurídico.
Bobbio (1993, p. 59) interpreta o estudo de Thibaut como:
131
[...] nos institutos fundamentais do direito se encontra uma disciplina
universal [...], e assim subverte a clássica argumentação da escola
histórica. Enquanto para esta a codificação [...] é algo artificial e
arbitrário, para Thibaut, ao contrário, as diversidades locais do direito
não têm nada de natural, sendo unicamente devidas ao arbítrio dos
vários príncipes de tais universidades.
A reação de Savigny, já conhecido como grande jurista, é manifestada no mesmo
ano com a publicação “Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência”,
quando declara não ser contrário à codificação, mas que as condições históricas e culturais
da Alemanha, que eram de decadência, inviabilizavam a construção de uma obra de tal
importância. Para Savigny, a maneira pela qual iria superar os entraves do pensamento
jurídico e político alemão não era a codificação, mas antes “promover vigorosamente o
renascimento e o desenvolvimento do direito científico, isto é, a elaboração do direito por
obra da ciência jurídica” (BOBBIO, 1993, p. 62).
Tal discussão evidencia o antilegalismo como característica central do
pensamento jurídico alemão, que prioriza os elementos consuetudinário e doutrinal
como referenciais na construção da ciência jurídica. O costume é valorizado
exatamente por ser manifestação natural e espontânea do direito e a doutrina pelo
entendimento da escola histórica que entendia serem os intelectuais capazes de revelar
de maneira sistemática e organizada “o espírito do povo”.
O idealismo científico formal serviu como fundamento da crença de que o direito, tal
qual as ciências naturais, é regido por princípios gerais apreendidos empiricamente. Por via
de consequência, torna-se insondável a justeza das decisões, na medida em que se trata de
uma operação mental lógica (apenas verdadeira ou falsa) independente da valoração do
conteúdo e da finalidade das decisões, já que a interpretação se limita
à correta subsunção através de um ato lógico. Com esta noção elimina-se do
sistema jurídico a possibilidade de lacunas, sendo que o trabalho do juiz em aparente
lacuna seria de “revelar” a solução já existente no próprio sistema.
Uma concepção objetivista de interpretação jurídica: se o direito se constitui
num sistema coerente de conceitos manifestados no direito positivado, o sentido das
normas seria conferido pelo próprio sistema. Portanto, o sentido da norma,
diferentemente do entendido pelo legalismo exegético, não seria obtido
estabelecendo-se a “vontade do legislador”, mas de suainserção no contexto
sistemático normativo, ou seja, um sentido objetivamente dado.
132
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
• O Direito Moderno se constrói, também, como um saber técnico-científico acerca da
norma.
• Positivismo Jurídico é a expressão que designa a concepção moderna de direito
segundo a qual o único direito válido é o direito estatal.
• O Positivismo Jurídico encontra, na codificação moderna, a maior expressão de
racionalidade e de previsibilidade.
• Para o Direito moderno, há uma aproximação entre Direito e Lei.
133
AUTOATIVIDADE
1 "Positivismo jurídico" é uma expressão que designa a moderna concepção de direito
segundo a qual o único direito legítimo é o direito positivo. Entende-se por Direito
Positivo o direito posto pelo poder político, que, na modernidade, é aquele produzido
pelo Estado. Acerca do positivismo jurídico, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) Para o positivismo jurídico, direito natural e direito positivo são sinônimos.
b) ( ) Para o positivismo jurídico, o direito natural possui uma função secundária e
subsidiária, servindo como fonte valorativa da norma jurídica.
c) ( ) No positivismo jurídico, predomina o monismo jurídico que é o
reconhecimento de uma única fonte de produção do direito legítimo.
d) ( ) Direito Positivo é uma expressão não utilizada pelo positivismo jurídico.
2 O positivismo jurídico é uma concepção de direito que pressupõe a aceitação da
fictícia figura do legislador. Trata-se de uma idealização que limita o uso arbitrário do
poder. Sobre essa idealização, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) Centraliza a criação da lei nas mãos do poder judiciário.
b) ( ) Pressupõe a concepção política de contratualismo ou vontade geral.
c) ( ) Funda-se no princípio da legalidade autorizada pelo judiciário.
d) ( ) O legislado é uma mera figura de retórica judicial e não existe politicamente.
3 A cultura jurídica nacional possui uma forte tradição monista. O monismo jurídico é
uma das faces visíveis do positivismo jurídico, elaborado a partir dos séculos XVIII e
XIX, sobretudo com a formação e consolidação dos Estados Nacionais. Acerca do
monismo jurídico, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) Apenas reconhece como direito a lei e não os princípios jurídicos.
b) ( ) Reconhece como fonte de direito somente o Estado.
c) ( ) Entende que os códigos são a única fonte de direito.
d) ( ) Apenas os juízes monocráticos podem promover a tutela jurisdicional.
4 A fim de fixar melhor o estudo realizado, considere a figura a seguir:
134
FONTE: <http://www.acarlosoliveira.com/2017/04/12/dura-lex-sedlex-a-lei-e-dura-mas-e-a-lei/>.
Acesso em: 11 abr. 2021.
A frase “a lei é dura, mas é a lei” constitui uma das máximas do positivismo jurídico.
Pergunta-se: qual a relação entre os fundamentos do positivismo jurídico e a referida frase?
135
136
UNIDADE 2 TÓPICO 4 -
OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO
PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO
1 INTRODUÇÃO
Por meio dos estudos já realizados compreendemos conceitos fundamentais de
história e filosofia do Direito; bem como a trajetória histórica do pensamento filosófico
pré-moderno. Este é o momento de nos aproximarmos da atualidade e refletirmos
acerca dos elementos, características e fundamentos da Filosofia Moderna do Direito
com vistas a compreendermos a legitimidade do Direito contemporâneo, discutindo os
desafios que se colocam ao jurista e visualizarmos formas de superação de
problemáticas que dificultam a efetividade da justiça.
A concepção moderna de Direito é o resultado de uma convergência de fatores
e elementos sociais, políticos, econômicos, históricos e culturais cuja maior expressão
é o liberalismo, que em sua vertente filosófica é, em síntese, uma concepção
doutrinária que, com base em ideias iluministas elaboradas entre os séculos XVII e
XVIII na Europa, defende a não intervenção do Estado no controle da economia e da
vida social.
Para Bobbio (2000, p. 17), “o liberalismo é uma concepção política segundo a
qual o Estado possui poderes e funções limitados, se contrapondo, portanto, ao Estado
Absolutista”. Entretanto, destaca Bobbio (2000), que o modelo liberal passou
historicamente por inúmeras transformações, havendo uma diferenciação entre as
distintas etapas do liberalismo, que foram desde a absoluta não intervenção estatal – na
sua versão clássica – até uma intervenção necessária a fim de impedir a dominação
dos mais fortes sobre os mais fracos – liberalismo social. Salienta ainda que o
pressuposto filosófico do liberalismo é a doutrina dos direitos do homem, segundo a
qual todos os homens, independentemente de sua condição ou origem, são portadores
de direitos essenciais, como a vida, liberdade, autodeterminação, segurança, felicidade,
entre outros. São esses os direitos que devem ser assegurados pelo Estado, sendo
este ente político o único poder legítimo de definir o que “é Direito” e “de direito”.
A lógica liberal, em suas múltiplas faces e versões, que vão desde o liberalismo
filosófico até o político e econômico, tornou-se o principal ideário do mundo moderno. Uma
análise histórica e política mais atenta permite compreender o liberalismo, defendido pelas
revoluções burguesas que destituíram a nobreza do poder e romperam com o poder político
papal desde os séculos XVII e XVIII, como defesa de valores individuais burgueses bastante
convenientes para os interesses da burguesia que emergia e se
137
consolidava naquele momento histórico. Sem dúvida, eram necessários meios de
legitimação das novas formas de aquisição e concentração de riquezas que iam sendo
elaboradas e uma justificação racional deste novo modelo de vida e de mundo que
estava nascendo.
Dentre os pensadores iluministas que elaboraram as bases do liberalismo
moderno podem ser destacados: John Locke (1632-1704), Voltaire (1694-1778),
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), David Hume (1711-1776), Adam Smith
(1723-1790), Immanuel Kant (1724-1804), dentre outros.
O Iluminismo, no qual o Direito Moderno é edificado, pode ser resumidamente
compreendido a partir das seguintes características:
• Valorização da razão acima da fé, devendo ser o conhecimento acerca da natureza, da
sociedade e da política, produto da investigação e experiência objetiva.
• Forte oposição ao absolutismo político e aos privilégios da nobreza e da Igreja.
• Defesa da liberdade na política, economia e escolha religiosa incluindo a igualdade
de todos perante a lei, uma vez que “Os homens nascem e são livres e iguais em
direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”. (Art.
1º, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789).
• Defesa dos interesses individuais, naturais e inerentes à condição humana.
Particularmente, para o Direito interessa também a forma e dinâmica de
estruturação de poder que foi elaborada e consolidada.
A organização centralizadora de poder que se institui sob a forma
secularizada monárquica de Estado absolutista transforma-se no
Estado nacional, liberal e representativo do século XVIII, gerenciador
das leis do livre mercado do liberalismo econômico e tutor das
relações de competição privada.
[...]
Neste novo cenário de rupturas e de gradual secularização está que a
nascente ciência jurídica moderna não só se revela como produção de
uma específica formação social e econômica, mas, principalmente,
consolida-se no processo de junção histórica entre a legalidade estatal e
a centralização burocrática. Trata-se da tendência, que acabaria sendo
predominante, do Direito identificado com a legislação posta pela
autoridade revestida de poder máximo e, ainda mais, o Direito como
criação do Estado (WOLKMER, 2006, p. 107-108).
É sob esta perspectiva que é elaborado o Direito Moderno e a lógica de saber
acerca do direito, como já anteriormente estudado, marcadamente centralizada no
positivismo jurídico.
138
NOTA
O positivismo jurídico acabou por eliminar todas as especulações
idealizadas e metafísicas acerca do direito, reduzindo Direito às
categorias de legalidadevigentes. Nesta ótica, a formalização do
positivismo jurídico encontra legitimidade na explicação da
objetividade coercitiva, na previsibilidade e segurança jurídica.
Conclui-se que:
• A concepção jurídica normativa moderna é elaborada desde a existência e forma
de organização do Estado.
• O positivismo jurídico foi a melhor e mais sofisticada elaboração concreta da lógica
de Direito Moderno.
• Tem, como grande característica, o formalismo legal.
• O processo de codificação do século XIX foi o mais eficiente instrumento de
legitimação e operacionalidade do Direito.
2 HANS KELSEN E A PURIFICAÇÃO DO DIREITO
Na perspectiva moderna, compreender o Direito se reduz à reprodução do texto
legal, tornando o trabalho do jurista uma mera exegese limitada à subsunção do texto
legal ao fato da vida social desde um raciocínio lógico dedutivo.
O paradigma da subsunção é o modelo de racionalidade jurídica que vai
dominar a prática do direito na perspectiva positivista. Trata-se de uma concepção que
entende que a aplicação do direito ao caso concreto é resultado de um pensamento
silogístico no qual o juiz fixa:
• o fato como premissa maior;
• o sistema normativo como premissa menor;
• o direito do caso concreto como conclusão necessária e inquestionável.
Esse modelo pressupõe:
• o direito sendo um sistema autossuficiente e coerente;
• o raciocínio lógico é a metodologia adequada para fixar o justo do caso concreto;
• há possibilidade de distinção entre fato (premissa maior) e direito (premissa menor);
• a decisão, justo do caso concreto, é resultado do necessário e inquestionável
“enquadramento” (subsunção), extraindo daí os efeitos legais e jurídicos para o
caso concreto.
139
Observe que a base e justificativa dessa ideia é que o direito posto (direito
positivo) tem a capacidade de resolver todos os casos concretos e a atividade jurídica
é um ato neutro (independente de valores morais e éticos) e imparcial.
Resume-se na famosa frase: “Dê-me o fato que te darei o direito”!
Ainda que se possa discutir se o Direito é uma ciência própria ou um saber da
prática, a verdade é que desde o início do século XX poucos foram os autores que
ousaram desafiar esse paradigma hegemônico, especialmente após o advento da obra
“Teoria Pura do Direito”, de Hans Kelsen, pensador que se esmerou em demonstrar
como a pureza metodológica do Direito é a principal característica de sua cientificidade.
Como veremos adiante, essa “pureza” é exatamente o objeto maior de crítica
do positivismo jurídico.
Afirma, Jesus Antonio de La Torre Rangel, que “[...] um dos maiores problemas
da ciência do Direito é a sua arbitrariedade, por ser constituída de leis arbitrárias que se
modificam com o tempo, pois uma mera palavra do legislador converte bibliotecas
inteiras em lixo” (2006, p. 32).
O direito, nessa perspectiva, é transformado em uma ciência dogmática estática,
reservando ao jurista o papel de reprodutor de códigos e leis, eliminando qualquer
discussão acerca dos valores, interesses e necessidades sociais que estão subjacentes
à norma jurídica e como isso, além de empobrecer o papel do direito, o
transforma em instrumento de reprodução de uma ordem política posta.
Antes de irmos adiante, vamos, brevemente, compreender o pensamento e a
importância de Hans Kelsen.
FIGURA 15 – HANS KELSEN
Hans Kelsen – jurista e filósofo nascido em 11 de
outubro de 1881, na cidade de Praga (Boêmia
austríaca), pertencente ao então Império
Austro-húngaro. Falecido em 19 de abril de 1973 em
Berkeley, Califórnia-EUA. Um dos mais importantes e
discutidos pensadores do direito contemporâneo.
FONTE: <http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/42/paginas-da-historia-hans-
-kelsen-158859-1.asp>. Acesso em: 11 abr. 2016.
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Em meio à profunda crise teórica em fins do século XIX e início do XX, Kelsen
é um marco divisório para o positivismo jurídico, inaugurando o chamado normativismo
positivista e superando a esgotada concepção exegética.
Com base na sólida e rigorosa metodologia científica e constitucionalista
– tendo redigido a Constituição da Áustria –, inaugura a técnica de controle de
constitucionalidade através de tribunal específico.
IMPORTANTE
Controle da constitucionalidade é um dos conceitos centrais para o direito contemporâneo.
Trata-se de técnica de verificação de adequação vertical que obrigatoriamente deve existir
entre as normas infraconstitucionais e a Constituição. É uma análise crítica comparativa entre o
ato legislativo/normativo e a Constituição, tendo como pressuposto que no Estado de Direito
nenhum desses atos pode ferir ou contrariar a Lei Fundamental.
A base política e jurídica do controle de constitucionalidade é o pressuposto de
supremacia da Constituição escrita, por tratar-se de norma fundamental que
se sobrepõe a todas as demais e ter seu procedimento de criação – o poder
constituinte originário é um ato político e não jurídico – distinto dos demais.
Em síntese, ao que está em desacordo com a Constituição, ponto máximo do
vértice do sistema normativo, deve ser declarada a não possuir validade
política e jurídica.
Os pressupostos para o controle da constitucionalidade são, basicamente: a
existência de uma Constituição rígida, escrita e que não pode ser modificada por
procedimentos infraconstitucionais; e a existência de um órgão/tribunal
que garanta a supremacia constitucional.
Kelsen contribui decisivamente para a autonomia científica do Direito,
sobretudo com a publicação da obra Teoria Pura do Direito, em 1934 – com segunda
edição em 1960 –, sendo esta a mais destacada produção do autor ao lado de “Teoria
Geral do Direito e do Estado” e “Teoria Geral das Normas” (obra póstuma).
A Teoria Pura do Direito é a obra pioneira que distingue duas esferas distintas:
o fenômeno jurídico – manifestação social e valorativa do Direito – e a ciência do Direito
– entendimento técnico procedimental científico desta manifestação. E é nesta distinção
que vamos encontrar a base da teoria kelseniana, qual seja: direito e moral.
Segundo tal perspectiva, o órgão julgador (Estado) não está legitimado a julgar
de acordo com convicções políticas/morais, mas sim de acordo com o sentido do fato
dado pelas normas estatais. É nesta dimensão que deve ser compreendida a famosa
dicotomia “ser”, mundo dos fatos/da vida social; e “dever ser”, direito positivado/o fato
como deve ser; ou seja, a preocupação de Kelsen é diferenciar o direito como é
(vigente) da valoração moral do conteúdo ou sentido normativo.
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ATENÇÃO
O “dever ser” é sempre produto de uma vontade política legítima e o “ser” é
produto da vontade politicamente sem legitimidade.
Alguém pode exigir que outro faça ou deixe de fazer algo por entender
moralmente justo (prescrever uma ação ou omissão), mas não pode obrigar ao sujeito
fazer ou deixar de fazer o que quer. Por quê? Exatamente porque não possui
legitimidade política para tal exigência. E a ciência do Direito permite a abstração do
direito do mundo dos fatos sociais.
A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito
positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do
Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou
internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação.
Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio
objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o
Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o
Direito, ou como deve ser feito. É ciência jurídica e não política do
Direito [...]. De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem
se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria
política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de
estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma
estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende
delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo
não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas
porque intentaevitar um sincretismo metodológico que obscurece a
essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos
pela natureza do seu objeto (KELSEN, 2006, p. 1).
Lendo atentamente as primeiras palavras da obra, não é difícil concluir que o
objetivo de Kelsen é depurar o Direito, entendido exclusivamente como Direito Positivo,
de outras formas de conhecimento, compreendendo-o como ciência em si mesma. Para
Bittar e Almeida (2001, p. 324):
Com os pilares teóricos fixados no método positivista é que Kelsen
(Teoria Pura do Direito) procurou delinear uma Ciência do Direito
desprovida de qualquer outra influência que lhe fosse externa.
Assim, alhear o fenômeno jurídico de contaminações exteriores
à sua ontologia seria conferir-lhe cientificidade. Nesse
sentido, o isolamento do método jurídico seria a chave para a
autonomia do Direito como ciência. Dessa forma, por meio das
ambições de sua teoria, ter-se-ia uma descrição do Direito que
correspondesse apenas a uma descrição pura do Direito.
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Fica evidente em Kelsen que a atividade do jurista é, a partir de um sistema
normativo previamente definido, chegar à norma do caso concreto, não cabendo nesta
análise os valores que antecedem a elaboração da norma. Exatamente por esta
concepção é que Direito e Estado seriam “duas faces” de uma mesma “moeda”.
Outro conceito-chave da teoria kelseniana é o conceito de validade da norma.
Validade deve ser compreendida como a qualidade e condição da norma
quando ela é emanada de um órgão político competente e se elaborada de acordo com
o procedimento, modo, hierarquia, estrutura e lógica prevista pelo ordenamento jurídico.
ATENÇÃO
Validade não significa que a norma é certa ou errada, justa ou injusta; mas
elaborada de acordo com os pressupostos estabelecidos de maneira
formal pelo sistema normativo.
A validade normativa deve ser compreendida a partir do fundamento de
validade de todo sistema normativo: a norma hipotética fundamental (Grundnorm). A
recíproca e hierárquica relação de validade entre as normas que compõem o sistema é
definida a partir do fundamento último de validade de todo ordenamento jurídico,
formando uma espécie de “pirâmide” cujo vértice é a norma fundamental.
Segundo uma teoria jurídica positivista, a validade do Direito positivo
se apoiar numa norma fundamental que não é uma norma posta mas
uma norma pressuposta e que, portanto, não é uma norma
pertencente ao Direito positivo cuja validade objetiva é por ela
fundamentada, e também no fato de, segundo uma teoria
jusnaturalista, a validade do Direito positivo se apoiar numa norma
que não é uma norma pertencente ao Direito positivo relativamente
ao qual ela funciona como critério ou medida de valor, podemos ver
um certo limite imposto ao princípio do positivismo jurídico (KELSEN,
2006, p. 238).
Há um pressuposto de validade de todo sistema, uma norma não jurídica, mas
política, que estabelece uma espécie de estrutura hierárquica de normas onde, em tal
escalonamento, no ápice, ponto mais alto da hierarquia, há uma última norma que não
é a norma constitucional de um Estado, mas um pressuposto inexistente
fisicamente, mas existente logicamente.
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Claro que esse conceito é um dos grandes problemas da teoria de Kelsen! Qual o
pressuposto de validade, norma hipotética fundamental, justo? Qualquer sistema que a
define é justo? Para Kelsen essa não é uma questão jurídica e sim política.
Todo sistema hierárquico requer um “ponto final” de referência para não
regressar ad infinitum, além de que, se não há um pressuposto de validade, pode ser
aceito qualquer um. O que se pode afirmar é que o limite de validade aceito pelo pacto
social são os valores que constituíram a ordem constitucional, e é a partir daí que deve
raciocinar o jurista, funcionando como um princípio/fundamento de legitimidade de todo
sistema.
Desde esse conceito de validade não é difícil compreender que Kelsen nos leva
a compreender que Direito é um sistema de normas hierarquicamente definidas desde
a ordem política e jurídica estabelecida segundo um pressuposto de validade, norma
hipotética fundamental, e que permite o controle de constitucionalidade das normas.
Para Fábio Ulhoa Coelho (2001, p. 43-44), a validade da norma, portanto, está
condicionada a três pressupostos:
• Competência da autoridade que a editou, derivada da norma
hipotética fundamental.
• Mínimo de eficácia, possibilidade de produzir os efeitos jurídicos
a que se destina, sendo irrelevante a sua inobservância
episódica ou temporária – porque as normas jurídicas não
perdem a validade por ‘desuso’.
• Eficácia global da ordem de que é componente.
Como se conclui, o método kelseniano tem que ser compreendido como a busca de
uma tentativa de autonomia da ciência do Direito, não como o estudo ou a teoria de uma
ordem jurídica particular, mas compreender as estruturas sobre as quais se constrói o
Direito Positivo e a universalização destas estruturas. Exclui-se qualquer preocupação
sociológica ou juízo acerca do justo, uma vez que o que importa para a Teoria Pura é
compreender os pressupostos de validade, vigência e eficácia da norma jurídica.
A ciência, para Kelsen, deve, por exemplo, diferenciar-se da política.
O político e o jurídico devem ser separados para que a ciência
jurídica não se contamine com elementos de natureza política,
correndo o risco de perder sua independência. A ciência não é
ciência de fatos, de dados concretos, de acontecimentos, de atos
sociais. A ciência, para Kelsen, é a ciência do dever-ser, ou seja, a
ciência que procura descrever o funcionamento e o maquinismo das
normas jurídicas (BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 330).
Isso significa que o objeto do Direito nessa concepção pode e deve ser estudado
como algo diverso/separado dos fenômenos sociais e estudar a ciência jurídica é
independente da realidade social. Esta é uma das grandes problemáticas do positivismo
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jurídico, devendo o jurista limitar-se ao Direito posto, estabelecido pelas relações de
poder, não observando as questões valorativas, éticas ou sociais que o conduziriam à
realidade social.
O Direito normativo/dogmático, e somente este, é seu objeto de
estudo. Diante disso, o jurista não precisa ficar indiferente no que diz
respeito a valores éticos, morais e sociais; ele pode criticar o Direito
positivo e esforçar-se para modificá-lo, alcançando assim sua
reforma e a estruturação de algumas normas quando julgar
necessário (LIXA; SPAREMBERGER, 2016, p. 36).
O postulado central do positivismo é a crença epistemológica de que o sentido
do justo está expresso na letra da lei. Como parte integrante da mesma crença, os
ideais de plenitude, coerência, universalidade e a temporalidade do sistema normativo
permitem, enquanto instância racional, a elaboração de ficções hermenêuticas, como a
“vontade do legislador” e “vontade da lei", de múltiplas funções práticas e ideológicas.
Inicialmente estes postulados justificam a atividade compreensiva do direito como ato
formal, excluindo qualquer possibilidade de criação por parte do intérprete e inferência
de elementos substanciais, em nome da igualmente ficção “segurança jurídica” (LIXA,
2013).
Em tal perspectiva, as aparentes ambiguidades, insuficiências, lacunas, ou até
mesmo contradições do sistema, poderiam ser solucionadas com critérios hermenêuticos
adequados e análise mais detalhada do significado do texto legal. Esta “flexibilidade
dogmática” seria necessária para resolver as dificuldades práticas, solucionadas com a
reportação do intérprete à mente do legislador, compreendendo o caso concreto tal qual
teria sido previsto ou poderia resolver o elaborador da lei (LIXA, 2013).
Enfim, o postulado da vontade do legislador permitiria ao intérprete superar os
silêncios, imprecisões e contradições do texto legal, mantendo as exigências
procedimentais do formalismo em sua aplicação.
Distintas teorias elaboradas sob o rótulo de “hermenêutica jurídica”, assim
como admitem a “vontade do Estado” como instância política legítima de produção do
direito, característicamaior do positivismo jurídico, identificam esta como instância
racional do direito, o “espírito da lei” ou “espírito do legislador”. Correntes que chegam a
soluções técnicas e conclusões normativas próximas, tratando a norma jurídica como
algo pensado e concebido fora do sujeito, cuja operacionalidade depende de um
processo racional formalista capaz de reproduzir a ordem jurídica-política instituída.
Assim, a operacionalidade técnica do sistema normativo acaba por identificar
metodologia da ciência jurídica com procedimento interpretativo, confundindo-se a esta
metodologia, e por vezes absorvendo, com o ato hermenêutico. Trata-se, sobretudo, de
145
uma racionalidade cognitiva-instrumental específica do direito moderno que pretende
solucionar o problema básico da atividade jurídica como a correta e segura
determinação do sentido prático da ordem normativa.
O desafio kelseniano de depurar a ciência jurídica acaba por deixar em aberto os
fundamentos da interpretação e aplicação normativa ao demonstrar que a interpretação
é um ato de decisão, de vontade ou mesmo de poder político. Esta afirmação
acaba por criar um vazio epistemológico para as tradicionais teses de segurança
jurídica, neutralidade, objetividade e previsibilidade penosamente mantidas desde o
século XIX e que serão revistas pelas correntes críticas do Direito (LIXA, 2013).
3 CRISE E CRÍTICA: OS LIMITES DA
RACIONALIDADE JURÍDICA MODERNA
A razão libertadora, um dos mais audaciosos projetos da Modernidade, foi
idealizada desde seu início para carregar em si um conjunto de representações e
perspectivas que pareciam representar a realização de um grande sonho da humanidade.
O projeto da modernidade foi construído graças a um enorme
esforço intelectual de pensadores iluministas que pretendiam
desenvolver uma ciência objetiva, uma moralidade e uma concepção
de lei que fossem universalmente válidas pela intrínseca lógica de
suas proposições gerada pelo acúmulo de conhecimento produzido
por sujeitos livres e criativos aliados pelo objetivo comum de buscar
emancipação e enriquecimento (HABERMAS, 1992, p. 109-110).
Esta racionalidade aplicada à organização social prometia como resultado a
certeza de uma sociedade estável, democrática e justa. Assim, a justificativa de
necessidade de submissão social e política à razão científica era a promessa de
segurança definitiva contra qualquer imprevisibilidade do mundo natural, e com tal
discurso justificador a ciência submeteu a natureza em toda sua dimensão (a humana e
não humana).
Entretanto, como pondera Harvey (1993, p. 23), “há uma suspeita de que o
projeto iluminista estava condenado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca
de emancipação num sistema universal de opressão em nome da liberdade humana, e
esta espécie de tragédia anunciada tornou-se realidade no início do século XX”.
O otimismo, em relação aos frutos da ciência, foi dolorosamente rompido pelos
eventos que marcaram o século XX. Sem dúvida, a maior catástrofe humana foi a Segunda
Guerra Mundial, cuja lembrança, com os episódios de Auschwitz e Hiroshima, tornou-
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se insuportável. Nos anos 50 a Europa, e com ela boa parte da humanidade, deixou de
acreditar no futuro e, como consequência, a ciência perde grande parte da autoridade
que até então possuía. Essa desilusão não pode ser dissociada das guerras mundiais.
A entrada para o século XX rapidamente tornou-se um desencanto, ficando
evidente que a Modernidade, com suas grandes promessas, havia se transformado em
um projeto fracassado.
Segundo dados oficiais, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918),
embora nem todos os continentes tenham sido palco dos conflitos, o número de mortos
atingiu a cifra de 15 a 65 milhões de pessoas. Nem todos foram mortos diretamente em
campos de batalha, mas com seus “efeitos colaterais”, como a “Gripe Espanhola” que
se alastrou pelo mundo.
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o número de mortos estimados
é de 40 a 72 milhões de pessoas, sendo 62% civis (alguns em campos de
concentração por sua etnia, condição física, sexualidade etc.; outras, vítimas de armas
de destruição em massa, como a bomba atômica). São por demais conhecidas as
imagens desoladoras dessa trágica fase da história.
Já no fim da Segunda Guerra Mundial, durante o conhecido Julgamento de
Nuremberg no dia 25 de novembro de 1945, oficiais nazistas foram levados a
julgamento por diferentes ações, como extermínio em massa, tortura, privação de
liberdade de civis, experimentos com seres humanos etc.
NOTA
Nuremberg é um momento histórico em que o positivismo jurídico é
colocado em questão. Os acusados alegavam, em sua defesa, que estavam
agindo sob a égide do Direito e proteção de um Estado Constitucional.
Vamos ler a transcrição de parte da sentença que reproduz a defesa dos
acusados:
[...] A defesa propõe a tese de que estes indivíduos cometeram atos que,
independentemente do valor ou desvalor moral, foram perfeitamente
legítimos de acordo com a ordem jurídica do tempo e local em que foram
realizados. Os acusados, segundo essa tese, eram funcionários públicos
estatais que agiram em plena conformidade com as normas jurídicas
vigentes, determinadas por órgãos legítimos do Estado nacional
socialista. Não só estavam autorizados a fazer o que fizeram, como
também, em alguns casos, eram legalmente obrigados a fazê-lo. A
defesa nos relembra um princípio elementar de justiça, que a civilização
que nós representamos aceitou há
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muito tempo e que o próprio regime nazista ignorou: esse princípio,
usualmente enunciado com a expressão latina ‘nullun crimen, nulla
poena sine lege pravia’, proíbe impor uma pena por um ato que não
era proibido pelo direito vigente no momento de seu cometimento
(SANTIAGO NINO, 2010, p. 20-21, grifos nosso).
A atrocidade e o extermínio de milhões de seres humanos foram feitos sob a
proteção da lei. Seriam então atos legais e justos? Esta era a discussão central! O
resultado você já sabe: todos foram condenados! E desde aí o positivismo jurídico não
mais encontra defensor.
Para compreender todo o julgamento também devemos ler parte da sentença
condenatória, que é uma das críticas mais contundentes ao positivismo jurídico:
O princípio moral de que as normas jurídicas vigentes devem ser
obedecidas e aplicadas é um princípio plausível, visto que está
vinculado a valores como segurança, ordem, coordenação de
atividades sociais etc., mas é absurdo pretender que ele seja o único
princípio moral válido. Há outros princípios igualmente válidos, como
os que consagram o direito à vida, à integridade física, à liberdade
etc. Em certas circunstâncias excepcionais, a violação desses
últimos princípios, em que se incorreria se fossem respeitadas as
regras jurídicas, seria tão drástica e grosseira que justificaria a
desobediência ao princípio moral que prescreve ater-se ao direito
vigente. Essas circunstâncias ocorreram durante o regime nazista, e
não se pode duvidar que os funcionários desse regime não podiam
justificar em termos morais as atrocidades que cometeram com base
no fato de estarem elas autorizadas ou prescritas pelo direito vigente
(SANTIAGO NINO, 2010, p. 29).
DICAS
Acerca da discussão a respeito dos atos de extermínio cometidos pelo
regime nazista serem ou não legítimos, há dois filmes excelentes que
recomendamos:
O Leitor, filme teuto-americano de 2008, dirigido por Stephen Daldry e
baseado no romance Der Vorleser, de 1995, do escritor alemão Bernhard
Schlink.
Hannah Arendt, filme de drama teuto-francês de 2012, uma obra
biográfica sobre a filósofa política alemã de origem judaica, Hannah
Arendt, envolvida em um dos grandes julgamentos de nazistas da
história e sobre o qual ela posicionou-se de maneira inesperada, mas
própria de um filósofo e cientista político.
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O positivismo jurídico, diante do desencanto com o projeto civilizatório da
Modernidade, perda de perspectiva, era previsível desde o início da modernidade,
implícito nas suas incompatíveis promessas anunciadas de controle, previsibilidade,
paz social,“ordem e progresso” sem fim etc.
A razão moderna embrionariamente carregava consigo a exigência de uma
crítica. Crítica que, como afirma Foucault (s.d., p. 35), é uma atitude própria da
civilização moderna, um movimento
[...] pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre
seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade;
pois bem, a crítica será a arte da inservidão voluntária, aquela da
indocilidade refletida. A crítica teria, essencialmente por função, o
desassujeitamento no jogo do que se poderia chamar, em uma
palavra, a política da verdade.
A razão herdada do século XIX que havia possibilitado uma ciência positiva
assentada numa lógica instrumental e a edificação do Estado como aparato legítimo de
racionalização da economia e da sociedade pode ser apontada como a causa do
surgimento de um movimento crítico na Alemanha da primeira metade do século XX,
que demonstrou os elos entre a ingenuidade do saber científico com as formas de
dominação construídas pela sociedade moderna. A empreitada da Escola de Frankfurt
de deslocar a crítica para a esfera do poder permitiu compreender a falsa ideia que o
saber possui de si mesmo e como a aproximação desmedida entre ambos – saber e
poder – produziu consequências desastrosas e irremediáveis.
A Teoria Crítica, como enfrentamento à lógica de ciência positiva, surge em um
momento histórico de otimismo na realização da revolução operária. A Revolução
Russa de 1917 e os levantes operários alemães de 1918 e 1923 davam mostras de que
a Revolução do Proletariado não era uma utopia, mas um projeto político e social
possível. O novo horizonte teórico construído a partir das obras de Lukács e Korsch,
importantes pensadores revolucionários, representava alternativa ao leninismo e sua
concepção naturalista da história. Na Alemanha, forças reacionárias organizam-se, em
1933, no Partido Nacional Socialista, permitindo que Hitler chegasse ao poder.
Instaura-se um período de perseguição e aniquilamento da organização operária.
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FIGURA 16 – THEODOR ADORNO E MAX HORKHEIMER
Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer
(1895-1973), dois grandes expoentes da Escola
de Frankfurt, com Walter Benjamin, Herbert
Marcuse, Jürgen Habermas e outros.
FONTE: <http://brasilescola.uol.com.br/cultura/industria-cultural.htm>. Acesso em: 11 abr. 2016.
A Teoria Crítica, que acabou por nominar o movimento dos intelectuais vinculados
à Escola de Frankfurt, tem sua origem em 1937, quando Max Horkheimer a utiliza
num escrito (Teoria Tradicional e Teoria Crítica) para indicar um ideário contraposto ao
paradigma cartesiano. Ao todo são cerca de 12 ensaios publicados entre os anos de
1933 e 1940, na maioria, escritos durante seu exílio em Nova York.
O projeto de aliar a teoria marxista com as distintas disciplinas da ciência social
através de uma metodologia fecunda e orientada filosoficamente representava, para
Max Horkheimer, um dos fundadores da Escola de Frankfurt, uma forma de mediação
necessária a partir do esgotamento no século XIX das premissas idealistas da filosofia
da história hegeliana, que, até então, representavam a tradição teórica capaz de aliar
análise empírica da realidade e reflexão filosófica, mas esvaziadas por terem sido
absorvidas pelo positivismo e a metafísica contemporânea.
A base da Teoria Crítica de pensar uma filosofia da história a partir da pesquisa
social, buscando meios cognitivos que possam mediar as relações sociais com uma
ideia transcendental de razão, conduziu a uma sistemática crítica ao positivismo como
tentativa metodológica de visualizar um conceito interdisciplinar de pesquisa.
O sistema ideal é o sistema unitário da ciência que, nesse sentido, é
todo-poderoso. E porque no objeto tudo se resolve em determinações
intelectuais, o resultado não representa nada consistente e material: a
função determinante, classificadora e doadora de unidade é a única que
fornece a base para tudo, e a única que todo esforço almeja. [...]
Segundo esta lógica, o progresso da consciência da liberdade consiste
propriamente em poder expressar cada vez melhor, na forma de
quociente diferencial, o aspecto do mundo miserável que se apresenta
aos olhos do cientista (HORKHEIMER, 1989, p. 38).
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A essa tradição, Horkheimer dá o nome de “Teoria Tradicional” ou
hipotético-dedutiva. A “Teoria Crítica” é crítica da “Teoria Tradicional” sob um ponto de
vista ético. Admitindo a impossibilidade de abandono absoluto com as realizações
teóricas passadas, diferencia ambas propostas quanto à atitude do sujeito, ou seja, na
relação do cientista para com a sociedade.
ATENÇÃO
A Teoria Crítica é uma concepção teórica que não perde de vista seu
contexto social de origem e sua possibilidade de aplicação prática,
pretendendo cumprir a tarefa de transformação radical da ordem social
existente.
FIGURA 17 – PENSADORES DA ESCOLA DE FRANKFURT E IDEALIZADORES DA TEORIA CRÍTICA
FONTE: <mosqueteirasliterarias.comunidades.net/a-escola-de-frankfurt>. Acesso em: 11 abr. 2016.
Tal proposta exigia uma permanente reflexão no sentido de esclarecer seu
papel no processo histórico, o que até então não era metodologicamente possível pela
rígida divisão entre filosofia e ciência.
A Teoria Crítica, buscando edificar o pensador social num agente de
transformação, parte da eliminação da natural separação entre indivíduo e sociedade
na medida em que, reconhecendo os limites de sua base social, busca um
comportamento orientado para uma emancipação do todo social. A intenção do
comportamento crítico é ultrapassar o da práxis social dominante.
151
O projeto da Teoria Crítica não desejava ser messiânico no sentido de propor um
novo modelo político, mas o de desalienação como possibilidade de emancipação. E é
exatamente aí que o conhecimento encontra seu lugar: o de admitir como pressuposto de
racionalidade a permanente dinâmica social, articulando, assim, a reflexão teórica com o
processo histórico-social. Em outras palavras, o objeto privilegiado da Teoria Crítica
é a investigação acerca da articulação dialética entre os processos de
conhecimento e transformação social. A pretensa isenção defendida pela Teoria
Tradicional se mostrava insustentável e deveria ser repudiada pelas consequências
contra os humilhados da história. Havia servido de perverso instrumento de legitimação
de formas alienantes e alienadas de formas de vida humana, legitimando racionalmente
o enigma da “servidão voluntária”.
Os desdobramentos da “Escola de Frankfurt” e da “Teoria Crítica” são tão vastos
que é uma tarefa quase impossível estabelecer uma unidade teórica. Talvez o mais
apropriado seja considerar as tendências progressivamente estabelecidas e mantidas
graças à perseverança do “espírito crítico” que ultrapassou distintos momentos do século
XX. O primeiro período encerra-se pelo confronto com o fascismo, quando o
Instituto é fechado, em março de 1933, por ser considerado responsável pelas
“tendências hostis” ao Estado nazista. Inicia-se um período histórico de ameaça não
apenas para os membros do Instituto, mas da própria civilização ocidental. A amarga
experiência psicológica e intelectual do exílio produziu um estado de espírito que é
espelhado nos escritos dos teóricos críticos que observam o mal desejando
compreender por que a humanidade mergulhava num novo tipo de barbárie ao invés de
chegar a um estágio mais humano.
Como nunca foi possível admitir-se uma unidade na Escola de Frankfurt,
sobretudo nos primeiros momentos, não se pode falar em seu declínio. Teoria Crítica e
Escola de Frankfurt em sentido mais amplo, independente de Adorno e Horkheimer,
foram símbolos institucionais de um pensamento dedicado à luta contra todas formas
de dominação, mantendo dentro da tradição marxista uma permanente abertura para
com múltiplos diálogos teóricos. O grande projeto de um conhecimento interdisciplinar
de uma sociedade emancipada. Seus elementos mais consistentes sempre foram a
firme posição ética, a angústia com o destino da humanidade e a preocupação
humanista com o futuro dacivilização ocidental, e, neste sentido, a Teoria Crítica
representou um ideário irradiador, serve como documento de constatação da
desintegração da sociedade liberal burguesa europeia moderna, escrito, em não raras
vezes, de maneira trágica por pensadores rebeldes desta mesma sociedade.
Em síntese, como produto do cenário filosófico de fins da primeira metade do
século XX, marcado pelo pessimismo e descrença do pós-guerra, tornou-se urgente a tarefa
de lançar um novo olhar sobre um mundo alienado, aniquilado e sem esperança
emancipatória. É neste contexto que deve ser compreendida a Escola de Frankfurt e a
Teoria Crítica, como defesa de uma insurgência contra o positivismo que pretende aliar o
conhecimento científico acerca dos fatos sociais à reflexão filosófica (FREITAG, 1986).
152
Esse é o ponto de partida para uma oposição às profundas contradições
sociais e as formas de pensamento que as legitimam, que foi assumido por Theodor
Adorno e Max Horkheimer, que defenderam a Teoria Crítica como alternativa e espécie
de libelo fundamental de oposição ao capitalismo através do qual assume-se o
compromisso com a construção de uma sociedade justa e livre.
Os defensores da Escola de Frankfurt fazem uma nítida separação entre teoria
científica e teoria crítica. Diferem quanto ao seu fim na medida em que as teorias
científicas têm o propósito de fazer “uso instrumental” do mundo exterior, capacitando
seus agentes para controlar e cumprir de forma eficaz os fins escolhidos, ao passo que
a Teoria Crítica pretende emancipação e esclarecimento, tomando a reflexão crítica
como forma de libertação das coações ocultas do saber hegemônico.
Ainda diferem quanto à estrutura cognitiva. As teorias científicas são
objetificantes por não serem em si parte do domínio que pretendem conhecer. Por outro
lado, a Teoria Crítica é autorreferente, na medida em que ela própria é objeto do que
descreve. Finalmente, diferem quanto à aceitabilidade cognitiva. As teorias científicas
requerem confirmação empírica através da observação e experimentação, enquanto a
Teoria Crítica é aceita reflexivamente.
Um traço marcante da Teoria Crítica é a oposição ao positivismo e ao
empirismo, destacando e denunciando a crescente racionalidade instrumental e
tecnológica que toma conta da sociedade ocidental como forma de dominação. A
observação de que o mundo é reduzido a objeto de exploração técnica é relacionada
pelos pensadores da Teoria Crítica ao método elegido pelas Ciências Sociais,
considerando a consciência científica a principal fonte de declínio cultural através do
qual a humanidade ingressou numa nova barbárie.
153
LEITURA
COMPLEMENTAR
O JUIZ E A JURISPRUDÊNCIA – UM DESABAFO CRÍTICO
Amílton Bueno de Carvalho
O novo juiz (é possível?)
Marcado pelo meu local de fala (daí porque suspeito), entendo que o papel do juiz
é muito forte como agente criador da jurisprudência, evidente que sem
descaracterizar a importância do provocador, detonador, balizador, de todo o processo
de onde emerge o ato decisório: o advogado e o promotor de justiça. Daí porque
pretendo demonstrar como vislumbro este pequeno burguês com sede de poder que
em determinado momento de sua vida ingressa na “casta da magistratura”.
Fique claro: as eventuais críticas à magistratura representam, antes de mais nada e
acima de tudo, profunda declaração de amor a ela: acredito que o juiz pode e deve ser
agente do processo de democratização da sociedade e com potencialidade muito maior do
que os próprios pensadores percebem. É amor e não ódio (ou “amoródio”, como diria um
psicanalista). É respeito e não desdém, é confiança na dignidade da função.
Tenho que para que o Juiz possa se completar tanto no plano individual, quanto
como agente social, há requisitos que me parecem indispensáveis e que têm sido
omitidos tanto por aqueles que olham a magistratura de fora, quanto por aqueles que
pretendem ver a magistratura a partir de seu próprio local de fala.
Os que miram desde fora – como regra – dão menor importância ao juiz. É tido
como mero aplicador da lei, ou instrumento do poder dos doutrinadores que necessitam,
para provar suas “verdades”, que os magistrados as cumpram, ou, finalmente (e agora
dentro do Poder Judiciário), como cumpridores de ordens do Tribunal, via jurisprudência.
Enfim, instrumento de ponta do dono da lei ou do dono do saber ou da hierarquia do Poder.
Por outro lado, os próprios críticos não têm dado real importância à atividade específica do
julgador: o juiz é conservador, não crítico, alienado.
Outrossim, e n’outra ponta, quando o julgador fala de si mesmo emerge discurso
efetivamente alienado dando a si próprio ares de divindade. O exemplo palmar desta ótica
(aqui manifestada com todo o respeito) é a “Prece de um Juiz”, do magistrado aposentado
João Alfredo Medeiros Vieira, vertido para quinze línguas. E assim começa a prece:
“Senhor! Eu sou o único ser na terra a quem tu deste uma parcela da tua
154
onipotência: o poder de condenar ou absolver meus semelhantes. Diante de mim as
pessoas se inclinam; à minha voz acorrem, à minha palavra obedecem, ao meu
mandado se entregam… Ao meu aceno as portas das prisões se fecham… Quão
pesado e terrível é o fardo que puseste em meus ombros!… E quando um dia,
finalmente, eu sucumbir e já então como réu comparecer à Tua Augusta Presença para
o último juízo, olha compassivo para mim. Dita, senhor, a tua sentença. Julga‑me como
um Deus. Eu julguei como homem”.
O texto se explica por si só. E o que é pior: nós (juízes e povo) acreditamos na ideia
do mito juiz‑divindade. Não nos ocorre sequer a possibilidade de não existir Deus (como
ficaria o sentido da prece?), ou de que o poder de condenar ou absolver passa muito mais
pelo que quer a autoridade policial; que as pessoas inclinam‑se perante o juiz por receio e
não por respeito (aliás, nós sabemos que nem o advogado gosta de juiz: lisonjeia‑o apenas
para aguçar sua onipotência); que as portas da prisão dependem mais da correlação de
forças que ocorre no presídio ou da boa ou má vontade do carcereiro; que o fardo é pesado
(?) mas nem tanto como o daquele que passa fome!
FONTE: https://ensaiosjuridicos.wordpress.com/2013/04/11/o-juiz-e-a-jurisprudencia-um-desabafo-criti-
co-amilton-bueno-de-carvalho/. Acesso em: 24 abr. 2016.
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RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico, você aprendeu:
• O positivismo jurídico é o resultado de uma convergência de fatores teóricos,
políticos e sociais cujo resultado foi a redução do Direito ao Direito Estatal, negando
as demais fontes produtoras da norma jurídica bem como produzindo uma
separação entre Direito e Moral.
• A Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, publicada nas primeiras décadas do
século XX, é um divisor de águas no Positivismo Jurídico e na racionalidade jurídica
moderna, inaugurando uma nova etapa – normativismo jurídico – bem como uma
nova concepção acerca do saber jurídico, a cientifização do direito.
• Os eventos que se seguiram a II Guerra Mundial – o holocausto e os regimes ditatoriais
– deixaram evidente a necessidade de rever a aproximação entre Direito e Moral e
desde aí passa a ser marcante uma concepção acerca do que se convencionou
chamar de Teoria Crítica do Direito.
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AUTOATIVIDADE
1 "Positivismo jurídico" é uma expressão que designa a concepção hegemônica de
Direito Moderno, elaborada desde o contexto europeu do século XIX e define o que é
Direito. Sobre o positivismo jurídico, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) 'Direito Positivo' é uma expressão que na atualidade significa 'Direito Posto'
pelo poder político, ou seja, pelo Estado.
b) ( ) A expressão 'positivismo jurídico' deriva da expressão de 'positivismo' em
sentido filosófico.
c) ( ) Trata-se de uma corrente doutrinária que deu origem ao que vai se denominar de
positivismo jurídico e sua principal característica é o distanciamento do legalismo.
d) ( ) Para uma melhor concepção acerca dos conceitos de positivismo jurídico, há
que se afastar dos referenciais teóricos de legalidade e moralidade.
2 A Idade Modernacompreendeu um período histórico de grandes transformações
sociais e políticas. O novo modelo social advindo deste processo trouxe consigo o
Direito Moderno, estruturado com base no positivismo jurídico e a predominância do
legalismo. Acerca do paradigma do Direito Moderno, analise as sentenças a seguir:
I- Direito Positivo, Positivismo Jurídico e Positivismo Filosófico são termos
semelhantes, genéricos, que se relacionam e complementam.
II- Positivismo jurídico é uma concepção teórica, política e filosófica de Direito
reducionista, que se tornou paradigma dominante do Direito.
III- O Direito Moderno é construído com base na racionalidade técnico-científico, como
um conjunto de normas objetivas, técnicas e legítimas, capazes de promover
segurança jurídica e previsibilidade nas relações humanas.
Assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) Somente a sentença I está correta.
b) ( ) Somente a sentença III está correta.
c) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
d) ( ) As sentenças II e III estão corretas.
3 A "Teoria Crítica" acabou por nominar o movimento dos intelectuais, que embora
distanciados em muitos aspectos, possuem como ponto de convergência o marxismo.
Entretanto, há um grupo de pensadores que na década de 11930 se reúne em torno do
Instituto de Pesquisa Social, cujos trabalhos são relacionados ao Direito com a razão
instrumental moderna injusta e repressora. Os trabalhos produzidos acabam por
identificar uma corrente de pensamento que acabou sendo conhecida como:
157
a) ( ) Escola de Frankfurt.
b) ( ) Escola Clássica.
c) ( ) Escola de Roma.
d) ( ) Escola de Firenze.
4 Após o estudo realizado sobre Positivismo Jurídico e o pensamento de Hans Kelsen,
abordado neste tópico, responda: Qual o sentido de “Pureza” do Direito defendido
por Kelsen?
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ZIZEK, S. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2012.
164
UNIDADE 3 —
A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
DO DIREITO BRASILEIRO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
• identificar a origem moderna do direito brasileiro como parte do processo de
expansão colonial europeia;
• particularizar as distintas etapas políticas e jurídicas do Brasil, identificando as
características e elementos identificadores;
• compreender a construção do direito brasileiro contemporâneo e suas funções
políticas e sociais;
• discutir os desafios do direito brasileiro contemporâneo frente à necessidade de
garantir a ordem constitucional democrática.
PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar
o conteúdo apresentado.
TÓPICO 1 – AS RAÍZES DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA
TÓPICO 2 – A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA
TÓPICO 3 – O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DO DIREITO
NACIONAL TÓPICO 4 – OS DESAFIOS DO DIREITO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
TÓPICO 5 – DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS
CHAMADA
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um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
165
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A TRILHA DA
UNIDADE 3!
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166
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
AS RAÍZES DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA
1 INTRODUÇÃO
Iniciaremos nosso estudo acerca do direito brasileiro buscando refletir acerca
da experiência histórica nacional, vivenciada a partir do século XVI, discutindo a
possiblidade de vislumbrar novas trajetórias, pactos e compromissos exatamente em
um momento em que se coloca a necessidade de repensar a cultura jurídica brasileira.
Nossa análise, desde um olhar decolonial, compreendendo a reflexão sobre a
experiência histórica do Brasil.
NOTA
Como veremos mais adiante nesta unidade, a palavra “decolonial” se
refere a uma corrente de pensamento crítico que nasceu em fins do
século XX e tem como característica central a busca de novos
paradigmas políticos e jurídicos construídos desde a realidade de
interesses locais, objetivando a construção de uma autonomia política e
intelectual. O termo “decolonial” é utilizado para designar estudos
acerca das raízes históricas e políticas das profundas desigualdades
sociais dos povos e nações periféricas que foram áreas de dominação e
exploração histórica desde os séculos XIV e XV.
2 EXPLANAÇÃO
A origem do que atualmente entendemos por direito é produto de um processo
histórico inicial de colonização que acabou por construir um modelo, um “padrão” de
poder político e jurídico que marcou profundamente a cultura e as relações de poderes
nacionais.
É na tentativa de visibilizar os elementos que construíram a cultura
jurídica nacional que se pretende retomar brevemente sua construção histórica,
lembrando, como diz Wolkmer (2007, p. 1), que as retomadas dos estudos históricos
ganham significado quando “[...] se tem em conta a necessidade de repensar e
reordenar uma tradição normativa, objetivando depurar criticamente determinadas
práticas sociais, fontes fundamentais e experiências pretéritas que poderão, no
presente, viabilizar o cenário para um processo de conscientização e emancipação”.
167
IMPORTANTE
Neste momento de estudo nossa pretensão é analisar a especificidade da
cultura jurídica no contexto histórico-político, delineado a partir da
invenção do Brasil no século XVI.
Para iniciar nosso estudo, vamos voltar ao ano de 2000, quando haviam sido
passados 500 anos do “descobrimento” do Brasil. Na época, a filósofa Marilena Chauí
(2001, p. 57) descontrói o “mito do descobrimento Brasil” afirmando que, assim como a
América não estava à espera de Colombo, o Brasil não estava, aqui, à espera de Cabral.
Antes de mais nada, “Brasil” é uma invenção histórica e cultural da metrópole
portuguesa e parte do projeto do capitalismo mercantil europeu, que simultaneamente
alargavam as fronteiras do visível, trazendo novas mercadorias, e as do invisível, novos
semióforos.
NOTA
O termo “semióforo” é utilizado por Marilena Chauí para designar uma
imagem que vincula o visível ao invisível – ao imaginado – que permanece e é
reproduzido pelas elites intelectuais para dar sentido e vínculo entre o real e
o imaginário. A invenção de uma nação, em geral, passa por um processo de
construção de semióforos, tais como “a vontade de Deus”, “missão
salvadora”, “obra de heróis” etc., e dessa forma a gênese histórica é negada e
esvaziada, tornando o irreal em real, nascendo o mito.
No caso do Brasil, o mito, o invisível, sempre foi o da “missão civilizadora
dos europeus”.
Portanto, não foi a “vontade de Deus” que conduziu os súditos de Dom Manuel
até as terras brasileiras, mas sim os interesses econômicos da classe de comerciantes
europeus da época.
As conquistas coloniais europeias do século XV aparecem como
desdobramento da expansão do capitalismo mercantil, constituindo o ponto de partida
para edificação do projeto da Modernidade.
Como já vimos na Unidade 2, “Modernidade” compreendida externamente,
desde o mundo não europeu, pode ser interpretada como construção do mito criado a
partir do século XV acerca da existência de um centro histórico mundial portador
168
de uma concepção política de ordem econômica, política e social civilizadora: A
Europa. Portanto, o projeto civilizador da modernidade trouxe consigo relações de
dominação desenvolvidas mundialmente desde o século XV, alimentadas por um falso
discurso legitimador de “progresso” linear e universal, que para os povos colonizados
significou dominação e extermínio.
Em síntese, a expansão colonialista europeia do século XV não resultou da
necessidade de ocupação de novos espaços por excesso populacional,mas foi
propositalmente provocada por uma burguesia comercial definida pelo importante
historiador Caio Prado Júnior (1975, p. 13) como “sedenta de lucros, e que não
encontrava em seu espaço pátrio satisfação à sua desmedida ambição”.
FIGURA 1 – INVASÃO DO NOVO MUNDO
FONTE: <https://acasadevidro.com/2012/09/25/a-america-nao-foi-descoberta-a-invasao-europeia-do-no-
vo-mundo-segundo-todorov>. Acesso em: 21 abr. 2017.
DICAS
Segue um site que trará um breve resumo da obra A Conquista da América
– A Questão do Outro, de Tzvetan Todorov, publicada pela Editora Martins
Fontes. Leia! Você terá uma visão do “descobrimento” sob o ponto de vista da
população dominada: https://acasadevidro.com/2012/09/25/
a-america-nao-foi-descoberta-a-invasao-europeia-do-novo-mundo-segun
do-todorov.
169
Os diversos fatores políticos que culminaram com a ascensão ao trono
português da Casa de Aviz no século XIV favoreceram o fortalecimento da burguesia
comercial lusitana, que logo tratou de iniciar um movimento de expansão externa,
iniciada com a tomada de Ceuta em 1415, e desde então, não mais parou.
Bosi (1993, p. 12) analisa a colonização brasileira distinguindo dois processos
colonizadores:
• Aquele relacionado com o mero povoamento e o que conduz à
exploração do solo, relacionado à expansão populacional,
entendido como “ato de habitar e o ato de cultivar”.
• E o processo iniciado a partir do século XVI no qual havia o
acrés-cimo de algo: um traço de dominação, de aventura, de
conquista.
Entretanto, nem sempre o colonizador concebendo a si mesmo como um
simples conquistador.
Em 1556, quando era difundida a Lenda Negra sobre a colonização ibérica na
América, a Espanha proibia o uso das palavras conquista ou conquistadores, impondo
a substituição por descobrimento ou colonizadores.
Portanto, o processo de ocupação, ironicamente chamado de descobrimento,
não ocorreu por expansão demográfica como na antiguidade havia ocorrido com os
gregos pelo Mediterrâneo entre os séculos VIII e VI a.C., “[...] ela é a resolução de
carências e conflitos de matriz e uma tentativa de retomar, sob novas condições, o
domínio sobre a natureza e o semelhante que tem acompanhado universalmente o
chamado processo civilizatório” (BOSI, 1993, p. 13).
Em tal processo era necessário cultivar não apenas a terra, mas “cultivar”
seres humanos, práticas, símbolos, valores capazes de garantir um estado de
coexistência social, enfim, uma cultura.
Sem dúvida, a produção da cultura colonialista exigiu o domínio de outros
humanos, de sujeitá-los a padrões de dominação. Talvez essa seja uma
possibilidade de se compreender por que a partir do século XVIII as noções de
cultura e progresso se confundem e se misturam. Assim, colonizar era cultivar a
terra e os seres humanos.
Nesse sentido, o processo de expansão comercial europeu, chamado de
“colonização”, se insere no momento de superação do modo de vida medieval, quando
um grupo ascendente e enriquecido – burguesia mercantil – orquestra as
transformações econômicas, sociais e políticas que culminam com a formação dos
Estados Modernos e consolidação do capitalismo.
Assim, os elementos essenciais para a compreensão da relação
colônia-metrópole, com a consequente criação de um aparato jurídico, são, entre
outros:
170
• A expansão da economia europeia mercantil.
• O esforço dos Estados Modernos metropolitanos em transformar as colônias em
instrumentos de expansão desse poder.
Na transformação dos antigos reinos medievais em Estados modernos,
unificados e centralizados, abrem-se os caminhos ultramarinos que permitem a
inserção desses Estados no processo de exploração, viabilizando a construção de seus
impérios coloniais.
Portanto, a “moldura do sistema” que explica a organização produtiva colonial e
suas implicações na vida social não se limita à atividade colonizadora, mas de ajustar a
colônia de forma especializada, “concentrando os fatores na produção de alguns
poucos produtos comerciáveis na Europa, as áreas coloniais se constituem ao mesmo
tempo em outros tantos centros consumidores dos produtos europeus” (NOVAIS, 1976,
p. 58). Com esta relação monopolizadora criam-se os mecanismos de apropriação e
concentração dos lucros. Assim, a invenção do Brasil teve um sentido. Brasil, no
entendimento de Schwartz (2000, p. 105):
[...] Desde sua origem, tem sido tanto uma ideia como um lugar.
Significou coisas diferentes para pessoas diferentes e o próprio termo
tem sido redefinido e reinterpretado para refletir as diferentes
discrepâncias entre pessoas de variadas extrações e posições sociais. O
Brasil, enquanto ideia, foi frequentemente mais um projeto do que uma
realidade, às vezes geográfica, às vezes nacionais ou até social.
O projeto do colonizador conferiu um sentido à invenção brasileira: tratava-se
de instalar uma produção semicapitalista, em larga escala.
A grande lavoura açucareira, pelo modo de exploração, nas palavras de Sérgio
Buarque de Holanda (2000, p. 49), “é de natureza perdulária e caracteriza o objetivo
metropolitano: servirem-se da terra ao máximo, mas sem muitos sacrifícios, como
usufrutuários”.
Embora Portugal, desde o século XVII, ter sido incorporado no sistema
capitalista como periférico, sem ter assumido lugar central, chegando ele próprio a ser
um país dependente – sobretudo da Inglaterra –, a subordinação colonial constitui-se
no elemento central de construção da identidade cultural brasileira, reproduzindo as
relações de poder de uma metrópole periférica e subalterna.
Por essa razão, pode-se afirmar que o colonialismo português foi diferenciando
e se caracteriza por ter sido manipulado segundo os desejos e necessidades de outras
metrópoles, sobretudo a inglesa.
Bosi (1993), na tentativa de mapeamento da formação econômica-social do
Brasil-Colônia, descreve como características fundamentais da ordem então
estabelecida os seguintes aspectos:
171
1. A predominância de uma camada de latifundiários com interesses atrelados a
grupos mercantis europeus, o que permitia dependência estrutural, impedindo a
dinamização de um capitalismo mais avançado internamente, reproduzindo-se um
modelo capitalista colonial específico, limitado a uma esfera mercantil dependente.
2. Como parte da lógica latifundiária vinculada aos interesses dos traficantes negreiros
africanos, a força de trabalho foi constituída essencialmente por escravos cuja única
alternativa não era a passagem para o trabalho assalariado, mas a fuga e resistência
nos quilombos, ou ainda, como parte de uma lógica perversa, a alforria, alternativa para
a resistência, representava o ingresso numa vida marginal ou de condição de
submissão como agregado. A condição foi sempre da dependência e exploração.
3. A estrutura política-jurídica vai sempre representar os interesses dos proprietários
locais, os homens bons, mas com poder limitado aos interesses reais. A competência
de nomear o governador geral com mandato de quatro anos era da coroa portuguesa,
sendo incluído no poder do governador a competência militar e administrativa segundo
critérios determinados pelos regimentos, cartas e ordens régias. O corpo burocrático de
funcionários reais – provedores, ouvidores, procuradores, intendentes... – tem a ação
controlada diretamente por Lisboa (a partir de 1642 pelo Conselho Ultramarino). Com o
avanço da estrutura colonial, vão sendo transferidos magistrados metropolitanos, juízes
de fora, que se sobrepunham aos eleitos nas vilas. A permanente tensão entre os
interesses locais e metropolitanos será o fator de crise instalada a partir do século XVIII,
que com a independência como tentativa de sua superação, servirá de fortalecimento
do mandonismo local legitimado pelos bacharéis que servirão de representantes dos
donos do poder.
4. O exercício de cidadania é limitado tanto pelo Estado Absolutista Metropolitano
como pelo poder interno, inexistindo qualquer representação ou mecanismo de
garantia para o conjunto da população, situação que pouco se altera com a
independência, pois o que se instala é um modelo políticocensitário e indireto.
5. A cultura eclesiástica, sobretudo a jesuíta empenhada numa prática missionária
supranacional, ganha espaço no início do processo de colonização, quando a
moeda corrente era a ideia do papel evangelizador da expansão metropolitana.
Posteriormente, de uma atividade marginal irá sucumbir sob a pressão do avanço
bandeirante e do exército metropolitano, restando, assim, a função educacional
junto aos filhos das elites locais.
6. A formação de uma cultura letrada estamental que não permitia a mobilidade
vertical, com raros casos de apadrinhamento, predominando, assim, uma massa
analfabeta caracterizando uma rígida linha divisória entre uma cultura oficial e uma
cultura popular.
A partir desse “mapeamento” é possível compreender as raízes da cultura
brasileira como resultado de uma lógica agrária, latifundiária e escravista, marcada por
uma imensa distância entre o que exigiam da terra e o que a ela davam em troca.
172
A ilimitada exploração interna como regra necessária para a submissão
externa. Portanto, a gestão da colônia deveria ser feita através da metrópole cujo
“norte” foi a efetivação dos princípios mercantilistas e o núcleo a formação e
manutenção de um sistema monopolista.
Como lembra Wolkmer (2007, p. 38), era a forma encontrada pela metrópole de
impedir que outras nações europeias “pusessem em risco, com a concorrência, aqueles
privilégios advindos da restrição comercial, tão lucrativas aos comerciantes
portugueses que não encontravam, no seu espaço, satisfação para sua ambição”.
Portanto, como parte integrante do universo colonial brasileiro formou-se um
tipo de poder político e jurídico destituído de qualquer identidade com os interesses
internos, já que se formou com a incorporação do aparato burocrático e profissional
lusitano. Por outras palavras, como extensão da coroa portuguesa constituiu-se uma
forma de poder legitimada pelos senhores da terra, os donos locais do poder.
173
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:
• As bases históricas do direito brasileiro foram definidas a partir do processo
moderno de colonização.
• A colonização brasileira teve, como sentido, promover a acumulação de lucros na
metrópole portuguesa, e por esta razão, a ordem política e jurídica nacional foi
elaborada a partir desse interesse externo.
• A implantação de um modelo de produção na colônia brasileira, a partir do século
XVI, foi sustentada por um modelo político e jurídico específico, inicialmente
chamado “direito brasileiro”.
174
AUTOATIVIDADE
1 Leia com atenção o texto a seguir e responda à questão proposta.
O eurocentrismo é a perspectiva de conhecimento que foi elaborada sistematicamente
a partir do século XVII na Europa, como expressão e como parte do processo de
eurocentralização do padrão de poder colonial/moderno/capitalista. Em outros termos,
como expressão das experiências de colonialismo e de colonialidade do poder, das
necessidades e experiências do capitalismo e da eurocentralização de tal padrão de
poder. Foi mundialmente imposta e admitida nos séculos seguintes, como a única
racionalidade legítima.
Em todo caso, como a racionalidade hegemônica, o modo dominante de produção de
conhecimento. Para o que interessa aqui, entre seus elementos principais é pertinente
destacar, sobretudo, o dualismo radical entre “razão” e “corpo” e entre “sujeito” e
“objeto” na produção do conhecimento; tal dualismo radical está associado à propensão
reducionista e homogeneizante de seu modo de definir e identificar, sobretudo na
percepção da experiência social, seja em sua versão a-histórica, que percebe isolados
ou separados os fenômenos ou os objetos e não requer por consequência nenhuma
ideia de totalidade, seja na que admite uma ideia de totalidade evolucionista, orgânica
ou sistêmica, inclusive a que pressupõe um macro sujeito histórico. Essa perspectiva
de conhecimento está, atualmente, em um de seus mais abertos períodos de crise,
como o está toda a versão eurocêntrica da modernidade.
FONTE: QUIJANO, A. Colonialidade, poder,
globalização e democracia. Revista Novos Rumos, v.
17, n. 37, p. 4-25, 2002.
Considerando o estudo realizado e a leitura do texto anterior, responda à seguinte
questão: É possível estabelecer alguma relação entre o processo de colonização
brasileiro do século XVI e a construção do conhecimento jurídico nacional?
Fundamente a sua resposta.
175
176
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA
1 INTRODUÇÃO
Como vimos, Portugal, no século XV, juntamente a demais países europeus,
como Espanha e Inglaterra, reuníram condições técnicas, bem como interesses
econômicos e políticos que permitiram o processo de expansão do domínio europeu.
É evidente que havia uma grande disputa entre os reinos metropolitanos da
época sobre as terras “descobertas” e as “a serem descobertas”, especialmente sobre as
riquezas que possuíam. Seguramente, por esta razão, as terras brasileiras já eram alvo de
interesse, sobretudo, de Espanha e Portugal, o que explica a existência de Tratados entre
tais países mesmo antes da “chegada” de Pedro Álvares Cabral, em 22 de abril de
1500. Destacam-se os seguintes Tratados:
1. Tratado de Toledo: celebrado em 6 de março de 1480, que dava a Portugal a
exclusividade sobre as terras e águas ao sul das Ilhas Canárias.
2. Bula Inter Coetera: de 4 de maio de 1493, expedida pelo Papa Alexandre VI que
conferia à Espanha o direito exclusivo sobre todas as terras que estivessem a oeste
de uma linha imaginária a 100 léguas de Açores e Cabo Verde.
3. Tratado de Tordesilhas: de 7 de junho de 1494, que estabeleceu um meridiano
divisório a 370 léguas a oeste das Ilhas de Cabo Verde, sendo a leste pertencente a
Portugal e oeste a Espanha.
FIGURA 2 – TRATADO DE TORDESILHAS
FONTE: <http://brasilescola.uol.com.br/historiab/tratado-de-tordesilhas.htm>. Acesso em: 11 abr. 2017.
177
Portanto, a “descoberta” do Brasil não foi “mero acaso”, mas parte de um
projeto de conquista. Porém, para os portugueses, ávidos por ouro, prata e mercadorias
que pudessem alimentar o comércio europeu, encontraram uma população dispersa
que vivia de caça e coleta.
NOTA
Na clássica obra O Povo Brasileiro, o antropólogo Darcy Ribeiro descreve o contato entre os
indígenas brasileiros e os portugueses:
Os
 índios
 perceberam
 a
 chegada
 do
 europeu
 como
 um acontecimento
 espanto-so,
só
assimilável
em
 sua
 visão
mítica
 do
mundo.
Seriam
gente
de
 seu deus
sol, o
cria-dor –
Maíra
–,
que
vinha
milagrosamente
sobre
as
ondas do mar grosso. Não havia como interpretar seus
desígnios, tanto podiam ser ferozes como pacíficos, espoliadores
ou da-dores.
Provavelmente,
seriam
 pessoas
 generosas,
 achavam
 os
 índios. Mesmo
porque no seu mundo, mais belo era dar
que
receber.
Ali,
ninguém
jamais
espoliara
 ninguém
e
a
 pessoa
alguma
 se
 negava
louvor
 por
 sua

bravura
e
 criatividade. Visivelmente,
 os
 recém--chegados,
 saídos
 do
 mar,
 eram feios,

fétidos
e
infectos.
Não
havia
como
negá-lo.
É
cer-to
que,
depois
do
banho
e
 da comida, melhoraram
 de

aspecto e
 de
 modos.
 Maiores te-rão
 sido,

provavelmente,
as
esperanças
do
que
os
temores
daqueles
primeiros
índios.

Tanto
assim
é
que
muitos
deles
embarcaram
confiantes
nas primeiras
naus, crendo
 que

seriam
levados
a
Terras
 sem
Males,
morada
 de
Maíra. Pouco
mais
tarde,
essa
visão
idílica
se
dissipa.
Nos
anos seguintes, se anula e reverte-se no
 seu
 contrário:
 os
 índios
 começam
 a
 ver
 a
 hecatombe

que
caíra sobre eles. Maíra, seu deus, estaria
 morto?
 Como
 explicar
 que
 seu
 povo
 predileto

sofresse tamanhas
 provações?
 Tão
 espantosas
 e
 terríveis

eram
elas,
que
para
muitos
índios
melhor
fora
morrer
do
que
viver.
Mais
tarde,
com
a
destruição
das
bases
da
vida
social
indígena,
a
nega - ção
de
todos os
 seus
 valores,

o
 despojo,
 o
 cativeiro,
 muitíssimos
 índios
 deitavam
em
suas
redes
e
se
deixavam morrer,
como
só
eles
têm
o
po- der
de fazer. Morriam
 de tristeza,
 certos
 de que
 todo
 o
 futuro
 possível

seria
 a
 negação
maishorrível
do
passado,
uma
vida
indigna de
ser
vivi- da
por
gente verdadeira.
FONTE: RIBEIRO, D. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. 2. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 42-43.
Nas palavras do referido autor, não é difícil perceber a razão da aparente fácil
dominação do invasor: os indígenas eram gentis, não viviam movidos pela cobiça e foram
facilmente atraídos pelos facões, espelhos e bugigangas com que eram enganados.
O resultado foi fatal! Nessa história, houve perdedores e não foram os
invasores portugueses.
Sem o menor pudor, os nativos foram considerados objetos desprovidos de
qualquer direito. As imensas massas de nações indígenas tiveram exterminadas suas
organizações sociais e os invasores impuseram seu sistema jurídico, pouco ou nada
restando, no caso do Brasil, dos costumes ancestrais de gestão de conflitos.
178
A enorme distância da metrópole, a falta de acesso e a absoluta falta de
estrutura administrativa eram fatores que iam fortalecendo o poder dos donos do poder
local. Seguramente é por esta razão que desde nossa origem não há uma clara
distinção entre o poder público e poder privado por parte das elites.
2 A ESTRUTURA JURÍDICA DO BRASIL COLÔNIA
No primeiro período da colonização, que vai até 1549, a preocupação central era a
de garantir a posse da terra, tendo sido adotado um arcaico sistema chamado de Capitanias
Hereditárias, constituído pela doação de extensas faixas de terra a nobres portugueses que
quiseram, por conta própria, explorar a terra e promover o povoamento. O sistema era
feudal e toda administração jurídica e política ficava sob a responsabilidade do donatário. Na
verdade, a “gestão da justiça” era marcada por abusos e arbitrariedades sem qualquer
burocratização de procedimentos, uma vez que, na prática, era o dono da terra que
legislava, julgava e aplicava as penas que bem entendesse.
Seguramente, esse ilimitado arbítrio e ausência de controle é um dos fatores
que explica o fracasso do sistema de capitanias, com exceção das de São Vicente e
Pernambuco.
Em 1549, na tentativa de resgatar o controle é instaurado pela coroa o Governo
Geral, que assume amplas responsabilidades burocráticas e fiscais, tendo no comando
o Governador Geral, possibilitando a formação de uma tímida justiça colonial
administrada por um pequeno grupo de burocratas que vieram a serviço do governador.
A instituição do sistema de Governo-Geral, como forma de centralizar o poder e
solucionar o problema do fracasso do sistema de capitanias e a invasão estrangeira,
aumenta a possibilidade de criação de um corpo burocrático, destacando-se o
Ouvidor-Geral como símbolo da justiça local.
Durante todo o período colonial vigorava o sistema jurídico metropolitano, ou
seja, as Ordenações Reais, compostas pelas seguintes Ordenações:
1. Ordenações Afonsinas: concluídas em 1446, foram elaboradas por ordem de D.
João I da Dinastia de Avis e eram divididas em cinco livros:
o Livro I: relativo aos regimentos dos cargos públicos (régios e municipais),
compreendendo governo, fazenda, justiça e exército.
o Livro II: Direito eclesiástico, jurisdição e privilégio dos donatários, prerrogativa da
nobreza e estatuto dos mouros e judeus.
o Livro III: Processo civil.
o Livro IV: Direito Civil.
o Livro V: Direito e Processo Penal.
179
2. Ordenações Manuelinas: concluídas em 1521, trataram de incorporar as
modifica-ções advindas do processo de expansão colonial e as novas leis que
continuaram a ser editadas. Também eram compostas por cinco Livros, tratando
mais diretamente de direito marítimo, contratos e mercadores, sem mudanças no
direito e sistema pe-nal, que permanecia um sistema de torturas e horrores
medievais, com aplicação de tortura e penas corporais como a pena de morte.
3. Ordenações Filipinas: de 1603, representa a unificação das Ordenações anteriores
com pequenas inclusões de leis extravagantes.
IMPORTANTE
Mudança significativa apenas ocorre na fase colonial em 1769, com as
reformas feitas por Marquês de Pombal – reformas pombalinas –, cujo
objetivo era o de estabelecer regras gerais para uniformizar a
interpretação e aplicação das leis em casos de omissão, lacunas ou
imprecisão nas leis reais. Chamada também de Lei da Boa Razão, a
finalidade era manter as diferenças entre Portugal e suas colônias.
A administração jurídica brasileira é marcada com a chegada do primeiro
Ouvidor-Geral, Pero Borges, em 1549. Nas palavras de Schwartz (1979), ao contrário
de criar uma administração centralizada, teve sua função sobreposta à estrutura
existente de magistrados e ouvidores designados pelos donatários. O resultado foi um
sistema de controle exercido pelo rei e pelo donatário, ao mesmo tempo, confuso e
muitas vezes inoperante.
ATENÇÃO
Há de se lembrar que, por orientação das Cartas de Doação, o cargo de
ouvidor, primeira autoridade da justiça colonial, era designado pelos
donatários das capitanias por um prazo renovável de três anos,
constituindo-se a administração da justiça como representação dos
donatários nas questões cíveis e criminais.
180
A justiça colonial encontrada pelo ouvidor-geral Pero Borges é descrita por
Schwartz (1979, p. 24) da seguinte maneira:
Grassavam o abuso administrativo e a incompetência. Por exemplo,
durante a ausência do donatário em Ilhéus, Francisco Romero, um
espanhol fazia as vezes de capitão e ouvidor. Embora fosse um bom
homem e soldado experiente, Romero era inadequado para o cargo
de juiz, pois é ignorante e muito pobre, o que muitas vezes faz crer
aos homens o que não devem. Borges recomendou insistentemente
que a Coroa forçasse os donatários a selecionar seus ouvidores
dentre homens treinados para servir à lei. Sublinhou que em Lisboa,
um magistrado treinado e com grande experiência presidia poucas
audiências, enquanto no Brasil, um analfabeto podia proferir muitas
sentenças, desrespeitando todos os princípios legais.
A incompetência e inoperância judicial colonial brasileira que contribuiu para a
prática de excessos e ilegalidades de toda espécie pode ser compreendida não apenas
pela permissividade metropolitana e local, mas também pela dificuldade de acesso às
áreas remotas, o que foi contribuindo para um mandonismo local, situação que
preocupava os missionários jesuítas, sobretudo a exploração das comunidades
indígenas.
Schwartz (1979) ainda chama a atenção para o fato de que a lei portuguesa vigente
no Brasil dizia respeito somente aos europeus, praticamente inexistindo proteção jurídica
para as relações entre os europeus e os indígenas. Tal situação é descrita pelo autor ao se
referir ao que o missionário jesuíta Manoel da Nóbrega descreve como punição imposta a
um índio que havia assassinado um português: foi colocado na boca de um canhão e
literalmente feito em pedaços. Assim era feita a justiça na colônia.
Rapidamente, os nativos perceberam para qual lado pendia a balança da
justiça, porque não havia limites para o abuso e arbítrio dos colonizadores, encontrando
apenas algum refúgio nas missões jesuítas.
Entretanto, apesar das profundas contradições na administração da justiça colonial,
já por volta de 1580 havia um sistema mais centralizado, o que pode ser compreendido
como reflexo do avanço da indústria açucareira em Pernambuco e Bahia.
Na medida em que se expandia a lavoura monocultora açucareira, cresciam a
população e os conflitos, o que vinha a exigir maior intervenção jurídica para a
manutenção da prosperidade local. O momento político que então se sucedeu com a
ascensão ao trono de Felipe II da Espanha (1580) é marcado por uma maior atenção
à justiça colonial, fruto, possivelmente, da personalidade burocrática e precisão
administrativa imperial, traço que transparece com a nova codificação empreendida, já
que a complexa legislação portuguesa era herdeira dos códigos romanos e visigodos.
Leis antigas e injustas que na prática eram desrespeitadas, o que permitia a
impunidade para os poderosos (SCHWARTZ, 1979).
181
FIGURA 3 – PELOURINHO - SÍMBOLO DA “JUSTIÇA” COLONIAL
FONTE: <http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/64/curta-essa-dica/escravos.jpg/image_view_fullscre-en>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Na lógica metropolitana, legislar era garantir a justiça através de prêmios ou
castigos, como atitude paternal do monarca em relação a seus súditos. A lei emanada
do pai – do Rei – é justa porque, mesmo dura, pretende corrigi-los e salvá-los. Contudo,
na distante colônia o “poder paternal” do monarca era exercido como força aliada à
autoridade delegada, o que produz um sistema de pouca efetividade, marcado pelo
desmando e corrupção local.
A importância da colônia sendo crescente e visível já no início do século XVII
explica a criação do Tribunal de Relação no Brasil, cuja primeira tarefa era a de
selecio-nar um grupo de magistrados treinados e dispostos a enfrentar as condições
adversas na colônia.
DICA
Sugere-se a “visita” ao site do Arquivo Nacional do Ministério da Justiça,
no qual você poderá encontrar a história do Judiciário no Brasil:
http://www. arquivonacional.gov.br/br.
182
A estrutura jurídica inicia no Brasil nas mãos dos capitães-donatários, que
recebiam amplos poderes para administrar a economia e organizar a vida civil na terra.
Com o fracasso do sistema de capitanias hereditárias é criado o sistema de
governo-geral, que incluía a figura do ouvidor-geral, que era o cargo mais elevado na
hierarquia judiciária da colônia, buscando-se, assim, diminuir o poder dos
capitães-donatários, até que, em 14 de abril de 1628, revoga-se, expressamente, o
privilégio dos capitães de fazerem justiça em suas terras. O ouvidor recebia recursos
vindos de ouvidores das comarcas, mais conhecida por ação nova, como jurisdição
originária, conflitos que se dessem a uma distância de dez léguas de sua sede ou
estrada. De suas decisões era possível recorrer à Casa de Suplicação em Lisboa.
Embora tenha sido criado pelo Regimento de 1587, apenas em março de 1609,
instalou-se, propriamente, um tribunal régio no Brasil: o Tribunal de Relação da Bahia,
que era constituído por dez desembargadores, todos letrados – um chanceler, três
desembargadores de agravos, um ouvidor-geral do cível e do crime, um juiz dos feitos
da coroa, fazenda e fisco, um provedor de defuntos e resíduos, dois desembargadores
extravagantes e o governador-geral, que teria assento como Governador da Relação.
Esses tribunais deram origem aos atuais Tribunais de Justiça dos Estados brasileiros.
FIGURA 4 – PAÇO DO TRIBUNAL DE RELAÇÃO DO RIO DE JANEIRO - 1751
FONTE: <http://linux.an.gov.br/mapa/?p=2776>. Acesso em: 11 abr. 2017.
O perfil era o de homens aptos e experientes que iriam presidir o Tribunal
brasileiro subordinado à Casa de Suplicação, desfrutando dos mesmos privilégios dos
desembargadores metropolitanos.
183
DICA
A Casa de Suplicação era o tribunal diretamente ligado ao poder real que
inicialmente incluía as atividades do Desembargo do Paço. Com a reforma das
Ordenações aprovadas em 1595, mas em vigor em 1603, atualmente,
conhecida como Ordenações Filipinas, a administração metropolitana era
regida pelo monarca que poderia ser substituído por uma junta de
governadores e contava com uma série de órgãos de apoio, a começar pelo
Conselho de Estado, que se reunia ocasionalmente pela convocação do rei
para assessorá-lo em questões complexas. O mais constante era o
Desembargo do Paço, que se reunia diariamente e às sextas despachavam
com o rei. Além de exercer funções consultivas, julgava as questões que, por
causa de foros especiais, superavam a alçada da Casa de Suplicação, os
recursos às decisões da mesma e os conflitos de jurisdição entre ela e a Casa
de Cível. Eram de competência exclusiva do Desembargo do Paço os pedidos
de legitimação, restituição de fama, findas, graças e perdões, emancipação de
menores etc. Junto
à Casa de Suplicação e ao Desembargo do Paço existia um
tribunal especial, com competência privativa em causas que
envolvessem a Igreja ou os membros das ordens militares-religiosas.
Era a Mesa da
Consciência e Ordens, que também assessorava o Rei.
Entretanto, conforme narra Wolkmer (2007), apesar do Tribunal de Relação ter sido
oficializado em 7 de março de 1609, com a invasão holandesa foi abolido em 1626, e
res-taurado posteriormente em 1652. A partir do século seguinte expandem-se os Tribunais
de Relação no Brasil – Rio de Janeiro em 1751, Maranhão em 1812, Pernambuco em 1821.
Nas palavras de Schwartz (1979, p. 58), “os burocratas que iriam constituir a
magistratura brasileira eram um grupo muito bem particularizado que representava a
espinha dorsal do governo real”.
Para serem nomeados a Desembargo do Paço, exigia-se o requisito de ser
formado em Direito por Coimbra e ter exercido a profissão por, no mínimo, dois anos.
Porém, para o ingresso na Universidade deveria ser o futuro bacharel de “raça pura” –
com limites de carreira para os que tivessem a “mancha” de serem “cristãos novos” –,
ortodoxos na sua religião e politicamente leais, originando a maioria da pequena
nobreza e da classe de burocratas.
A prova de conhecimento jurídico para a inscrição no quadro de magistrado era
precedida de inúmeras declarações testemunhais sobre a vida pregressa, atividades e
reputação do candidato, mais especificamente, buscava-se a garantia de que não havia
“contaminação de sangue de mouro, mulato, judeu ou qualquer outra raça infecta”
(SCHWARTZ, 1979, p. 58). Ainda a comprovação de que os pais e avós, no momento
da nomeação, não tivessem atividades manuais, artesanais e prática de comércio
varejista, exceto se houvessem pertencido ao senado da Câmara ou outro órgão de
privilégio especial no funcionalismo real.
184
Os magistrados coloniais, graças à política da coroa portuguesa, formavam no
século XVII um grupo de burocratas elitizado – fiéis servidores reais – movidos por
generosas promoções e interesses pessoais.
O cargo representava prestígio, dinheiro e status, o que acaba por construir a
magistratura como um ramo da burocracia real e ao mesmo tempo um grupo social
específico. Os juízes europeus, sob a proteção da coroa, emergiram como um grupo
que se viu com o direito de exigir privilégios e símbolos que até então pertenciam à
nobreza, chegando a criar justificativas para sua nobreza.
No século XVIII, na Europa Ocidental, os juristas argumentavam que o
conhecimento das leis literalmente enobrece o indivíduo e, portanto, deveriam ser
considerados iguais aos nobres, e a coroa, como detentora dos símbolos que
garantiam a ascensão social, para vincular os magistrados a seus interesses, fazia
concessões. Entretanto, no império português, chama atenção Schwartz (1979), a
magistratura não se tornou uma nobreza distinta por seu cargo ou função.
Individualmente, o magistrado poderia ascender à nobreza pelo casamento ou
por título conferido pela coroa, mas não chegando a competir com a aristocracia,
porque seus interesses eram ditados pelo rei, no entanto isso não impediu que na
colônia brasileira se formasse um grupo característico de burocratas da justiça que
souberam aliar as funções e fórmulas burocráticas às relações pessoais de parentesco.
É o abrasileiramento da burocracia, descrito como procedimentos pessoais e
profissionais que se confundem e se autossustentam.
Ao chegar na colônia, além de sua família, o juiz poderia agregar parentes,
afi-lhados, empregados, escravos; enfim, um grupo de pessoas que serviam como
inter-mediários entre o magistrado e as demais pessoas da sociedade, o que permitia uma
“facilitação de caminho” até o juiz. Por outro lado, ao estender sua proteção a um grupo
próximo, o magistrado também cumpria parte de seu papel profissional: protetor, padri-nho,
marido e pai. E, é claro, sem deixar de lado sua obrigação religiosa, o que lhe dava
vantagens sociais. Por essa razão, os magistrados tornavam-se benfeitores de igrejas,
conventos e ordens religiosas, e não raras vezes, na condição de ilustres funcionários reais,
assumiam papéis de liderança. Os pesados encargos financeiros de uma vida de
ostentação não podiam ser arcados com os já altos salários e gratificações recebidas.
Rapidamente, os juristas brasileiros perdiam interesse intelectual, apesarde
sua formação universitária. Não há entre os magistrados brasileiros da época colonial
autores cujos trabalhos são lembrados, apesar de estarem sempre presentes em
reuniões intelectuais.
Sem dúvida, a melhor leitura a respeito dos magistrados no Brasil Colonial é de
Gregório de Mattos, que com os seguintes versos descreve a justiça:
185
E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Valha-nos Deus, o que custa O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça Bastarda, vendida, injusta.
Seu interesse particular pela administração da justiça no Brasil é por ter sido
letrado em Coimbra e magistrado real em Portugal. Seus versos não mostram os juízes
como seres sem rosto, mas como pessoas em seu cotidiano, envolvidos
essencialmente em duas esferas: poder e corrupção. Seus versos renderam-lhe a
deportação para Angola, pois não poupava cáusticas palavras para descrever o sentido
do “abrasileiramento da magistratura real”.
Apesar dos versos do “Boca do Inferno”, como era chamado Gregório por seus
inimigos, não representarem perigo para a autoridade e o cargo exercido pelos juízes,
deixavam evidente o nível incontrolável de corrupção que havia atingido o exercício da
justiça no Brasil em fins do século XVII. Descrevia os burocratas judiciais – juízes,
escrivães, tabeliães etc. – como pedaços cortados de um mesmo tecido.
Apesar de serem sempre acusações pessoais e não ao sistema como um todo,
seus versos deixavam evidente o comprometimento no exercício da justiça.
Por essa razão, dizia que um magistrado recebia suborno tanto do acusado
como do acusador e por isso era mais fácil chegar o “juízo final do que a sentença”.
NOTA
Gregório de Mattos e Guerra, conhecido como “Boca do Inferno”, nasceu na Bahia em
23/12/1636 em uma família de proprietários rurais, empreiteiros de obras e funcionários
administrativos de ascendência portuguesa. Estudou no Colégio dos Jesuítas da Bahia até
1642, quando vai para a Universidade de Coimbra, onde se forma em Cânones em 1661.
Após atestar ser “puro de sangue” é nomeado juiz de fora em Alcácer do Sal, em
1663. Teve brilhante carreira como magistrado em Lisboa, reconhecido com sentenças
publicadas pelo jurisconsulto Emmanuel Alvarez Pegas. Retorna para o Brasil em 1683,
depois de 30 anos, para assumir o cargo de Desembargador da Relação Eclesiástica e,
mais tarde, tesoureiro-mor da Sé, um ano após ter tomado ordens menores. Entretanto, é
destituído do cargo por se recusar a usar batina e acatar ordens superiores. Começa
então a satirizar os costumes e as classes sociais baianas, as quais chamará de “canalha
infernal”. Escreve com letras corrosivas e eróticas. Por sua vida livre de “homem solto sem
modos cristãos” é denunciado à Inquisição em Lisboa em 1685 por falar mal de Jesus
Cristo e não tirar o barrete da cabeça quando passa uma procissão em sua frente, mas o
feito não tem prosseguimento. Por seus poemas e sátiras contra o governador Antonio
Luiz Gonçalves da Câmara Coutinho, a quem chamava de “fanchono beato”, é ameaçado
de morte. Até que um complô o prende e envia-o a Angola sem direito de voltar à Bahia.
Em Luanda, no ano de 1694, auxilia o governo local a combater uma conspiração militar e
em troca recebe a permissão para voltar ao Brasil, mas para Recife, devendo ficar longe
da Bahia e de seus desafetos. Morre em 1695 vítima de uma febre contraída em Angola.
186
FONTE: <http://www.academia.org.br/academicos/gregorio-de-matos/biografia>.
Acesso em: 11 abr. 2017.
Pelo relato da época, o exercício da justiça brasileira era venal e facilmente
subvertido. Os critérios de análise processual eram pessoais, econômicos e sociais,
sem que isso, entretanto, comprometesse os interesses reais, funcionando como uma
certa flexibilização frente à dureza da estrutura metropolitana.
Quanto mais se expandia a colônia, mais cresciam a burocratização e as
oportunidades de corrupção, o que não significava, necessariamente, ilegalidade, mas o
uso de artifícios jurídicos para benefício próprio ou de um apadrinhado, ou mesmo, o
uso do cargo para obter vantagens pessoais diretas ou indiretas.
Faoro (2000) demonstra que a minoria colonial, formada por um quadro
administrativo, e o estado-maior de domínio comandam, controlam e disciplinam a economia
e os núcleos humanos, tornando-se esses efetivamente os donos do poder. As formas
jurídicas vão servindo de freio à emancipação colonial. Os juristas, como uma espécie de
“aristocracia” local, comandavam a vida na colônia, fazendo de seus procedimentos
instrumentos eficientes de dominação e perpetuação da ordem exploradora.
Há que se reconhecer que o aparato jurídico-político colonial significou a
transposição da estrutura metropolitana para a colônia, porém, com traços muito
peculiares, a exemplo da justaposição da justiça-oficial e da privada exercida nos
sertões e nos latifúndios, cujo poder não era contestado. A justiça local, que servia de
fortalecimento do mandonismo, sempre foi reconhecida como uma espécie de
contrapeso à ineficiência da justiça real, à venalidade dos burocratas e à corrupção dos
magistrados.
187
Ainda cabe lembrar o papel desempenhado pela Igreja Católica na
administração da justiça com seu Tribunal do Santo Ofício. Nas palavras de Novinsky
(1983, p. 90), serviu, mais do que instrumento religioso:
como um sistema político de dominação e onde não havia lugar para
os judeus, cristãos novos, muçulmanos, negros, mulatos, ciganos,
heterodoxos ou contestadores de toda espécie. Através de seu
sistema de ameaças, [...] de perseguição, [...] de tortura, a Inquisição
garantiu a continuidade da estrutura social do antigo regime, e a
religião preencheu sua função político-ideológica.
Apesar de não ter havido um Tribunal Inquisitorial no Brasil, ele existia como
presença possível, pois sempre que necessário, os acusados brasileiros eram julgados
pelo Tribunal Inquisitorial em Lisboa.
As chamadas “Visitação do Santo Ofício” ocorreram na colônia brasileira,
sobretudo na fase de mineração de ouro, apesar do poder delegado ao Bispo da Bahia
pelo Santo Ofício em 1580, quando foram registradas inúmeras heresias, sadomias,
feitiçarias, bigamias, blasfêmias etc.
DICAS
Há, em http://bit.ly/3Xyk8LB, informações acerca da primeira visitação do
Santo Ofício no Brasil. É muito interessante e você poderá enriquecer a
sua cultura jurídica.
FIGURA 5 – CAPA DO DOCUMENTO PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO ÀS PARTES DO BRASIL
FONTE: <http://www.biblioteca.pe.gov.br/?pag=&cat=41&art=114>. Acesso em: 11 maio 2017.
188
Em síntese, é oportuno destacar o pensamento de Wolkmer (2007, p. 71),
quando afirma que “a especificidade da estrutura jurídica da colônia brasileira não
permitiu o exercício da cidadania e as práticas políticas descentralizadas”.
Forjada em meio a um passado latifundiário, patrimonialista, senhorial e
escravista, cuja dinâmica fez surgir uma cultura jurídica singular marcada por ideias e
práticas paradoxais.
Esse é o horizonte da cultura jurídica brasileira colonial dominante. Legítima
herdeira de um pensamento condicionado pelo mercantilismo e administração burocrática
centralizada, construída sob uma mentalidade escolástico-tomista e elitista. Uma
mentalidade condicionada a servir a Deus e ao rei, e, portanto, incapaz de ser
comprometida com qualquer nova ideia que viesse a representar o ideário renascentista
moderno, mais próximo do humanismo emergente, já que este significava a “expansão
protestante”, que teve como maior expressão de resistência na Europa a Península Ibérica.
Assim, longe do ideário iluminista moderno que veio a representar a possibilidade
de construção de uma lógica racional crítica ao obscurantismo medieval, a cultura jurídica
colonial brasileira definiu-se sacralizando a tradição e o servilismo, o que permitiu a
consolidação e reprodução das ideias e valores da elite mercantilista portuguesa.
Nesse sentido, assinala Alberto Venancio Filho (1982) que, por força da Companhia
de Jesus na Universidade de Coimbra, a cultura predominanteaté meados do século XVIII
se mantinha refratária às transformações reivindicadas pelo Renascimento, o que
é claramente evidenciado num edital do Colégio das Artes da Universidade de
Coimbra de 1746, que determinava:
[...] nos exames ou lições, conclusões públicas ou particulares se não
ensine defensão ou opiniões novas pouco recebidas, ou inúteis para os
estudos das ciências maiores, como são as de René Descartes,
Gassendi, Newton e outros, nomeadamente qualquer ciência que
defenda os átomos de Epicuro ou outras quaisquer conclusões opostas
ao sistema de Aristóteles [...] (VENANCIO FILHO, 1982, p. 5).
Tal panorama é alterado com a Reforma do Marquês de Pombal, como já
considerado, na segunda metade do século XVII, quando os jesuítas são expulsos da
metrópole e da colônia, e seus reflexos na tentativa de emergência de uma cultura
moderna, o que irá marcar a transição para o século XIX e a busca de superação da
herança colonial.
Em síntese, compreender o direito e a gestão da justiça no Brasil Colônia é a
possibilidade de compreender as origens de nossa profunda desigualdade social e
negação de cidadania que até os dias atuais procuramos nos livrar. Não é difícil
perceber as razões que fazem de nosso direito um instrumento elitizado e distante
ainda de interesses nacionais.
189
A intenção de Portugal era construir uma elite burocrática defensora dos
interesses reais que defendesse as leis metropolitanas. Desde aí foi sendo criado um
sistema de compadrio que aliava as elites metropolitanas às elites canavieiras. E assim,
a elite letrada e pseudoburocrática usufruía dos “benefícios” do poder em troca do
desrespeito à lei e à justiça.
190
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:
• A estrutura administrativa do Brasil Colônia teve, como característica, a criação de
um aparato político e jurídico capaz de garantir os interesses metropolitanos.
• As bases das instituições jurídicas brasileiras estão intimamente ligadas: a um
passado escravocrata e patrimonialista, marcado pela dominação de uma elite
agrária local e submissa aos interesses econômicos metropolitanos.
• O Direito brasileiro, na sua origem colonial, mais se aproxima de arbítrio e
favoritismo do que propriamente a realização de justiça.
191
AUTOATIVIDADE
1 Observe a gravura de Debret a seguir:
JEAN-BABTISTE DEBRET - UM JANTAR BRASILEIRO, 1827
FONTE: <http://historiaporimagem.blogspot.com.br/2011/10/jean-baptiste-debret-um-jantar.html>.
Acesso em: 11 abr. 2017.
A figura é uma das mais reproduzidas nos livros de história do Brasil, por caracterizar a
sociedade colonial brasileira, marcada por profundas desigualdades sociais. Após
detalhada observação na gravura e associando com o estudo realizado, faça uma
breve dissertação discutindo a relação entre as bases políticas e econômicas do Brasil
Colônia e a ordem jurídica.
192
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA E A
CONSTRUÇÃO DO DIREITO NACIONAL
1 INTRODUÇÃO
Mudanças sensíveis ocorrem na cultura jurídica brasileira no século XIX, que se
inicia sob o signo da modernidade. As revoluções burguesas e o absolutismo ilustrado, que
na Europa abriam as portas para compreender o humano como valor fundamental da
sociedade, encontravam um forte contraste com o sistema colonial brasileiro, cuja marca era
a violência imposta aos trabalhadores escravizados e a dinâmica contraditória da relação
metrópole-colônia, que acabou por definir um espaço subjugado.
Apesar disso e das resistências contra a centralização receberem golpes fatais,
quer pelas mãos diretas das milícias reais, quer de seus braços locais, o Brasil torna-se
independente em 1822.
Uma dispersa, desarticulada e fluida nação emerge entre conflitos e dilaceração
das antigas capitanias. O cuidado maior era o de manter a unidade política, que, como
destaca Faoro (2000, p. 315-316), “tratava-se de tarefa gigantesca e incerta diante dos
enormes obstáculos, não apenas geográficos, mas sobretudo políticos”.
É evidente que uma sequência de fatos – Abertura dos Portos (1808),
criação do Reino Unido do Brasil (1815) e, finalmente, a Revolução do Porto (1820) –
acelerou o processo que mobilizou as elites locais para a independência.
Para tal processo, tornou-se necessária a construção de uma cultura jurídica
nacional, que encontra no liberalismo uma proposta doutrinária a partir da qual foram
edificados os primeiros cursos jurídicos, uma elite jurídica e o edifício legal.
Assim, a tarefa primeira é compreender a natureza e especificidade desse
“liberalismo caboclo” presente como cimento da cultura jurídica em construção,
sobretudo para compreender a profunda distinção entre o revolucionário liberalismo
europeu e o brasileiro, e como este último serviu de suporte aos interesses das
oligarquias vinculadas à monarquia imperial.
A face “cabocla” do liberalismo brasileiro é muito bem conhecida. Por isso, com
razão comenta Wolkmer (2007, p. 76):
193
Eram profundamente contraditórias as aspirações de liberdade entre
diferentes setores da sociedade brasileira. Para a população
mestiça, negra, marginalizada e despossuída, o liberalismo,
simbolizado na Independência do país, significava a abolição dos
preconceitos de cor, bem como a efetivação da igualdade econômica
e a transformação da ordem social. Já para os estratos sociais que
participaram diretamente ao movimento de 1822, o liberalismo
representava instrumento de luta visando à eliminação dos vínculos
coloniais. Tais grupos, objetivando manter intactos seus interesses e
as relações de dominação interna, não chegaram a reformar a
estrutura de produção nem a estrutura da sociedade.
O liberalismo, como observa Macridis (1982, p. 38-41), nas suas diferentes
dimensões, ético-filosófica, econômica e política-jurídica, representou o ideário de cunho
individualista sustentado pela burguesia europeia contra o absolutismo monarquista, capaz
de reproduzir novas condições materiais, sociais e políticas que permitiam sua ascensão e
justificativa de poder. Entretanto, no Brasil, essa doutrina era conhecida por uma pequena
parcela de letrados inovadores, e até revolucionários, já que a maioria da população era de
analfabetos, escravos e uns poucos trabalhadores livres para os quais os “novos ventos da
liberdade europeia” não sopravam nem como “leve brisa”.
O liberalismo brasileiro serviu tão bem aos interesses das oligarquias locais
que pôde conviver com a institucionalização da escravidão, tornando-se uma aparente
ambiguidade, porém a marca da política brasileira: uma retórica liberal e uma prática
oligárquica, um conteúdo conservador e reacionário sob a aparência da democracia.
Costa (1985) identifica o liberalismo brasileiro como uma “ideologia de tantas
caras” que serviu em “momentos distintos diferentes grupos com intenções diversas”:
• A face heroica: própria dos movimentos que antecederam a independência, a
antidemocrática – dos revolucionários da primeira Constituinte.
• A face moderada: dos adeptos da monarquia constitucional, a radical – dos
reformistas da fase regencial.
• A face conservadora: que acabou por impor-se e defendida pela minoria
antidemocrática apegada às práticas do clientelismo e da patronagem.
Em síntese, o liberalismo no Brasil foi singular, pois apesar de defender a
democracia representativa, negava a participação popular, atribuindo aos poucos
letrados a tarefa de conduzir as instituições políticas e jurídicas. Enfim, um liberalismo
conservador, elitista, antidemocrático que nega na prática suas próprias convicções.
194
O processo de transição social produzido pela independência trará a
marca desta lógica liberal.
Apesar disso, salienta Fernandes (1974, p. 31) que a independência se constituiu
numa revolução social por ter produzido simultaneamente o fim da era colonial e o advento
da sociedade nacional. As relações de poder modificam-se na medida em que deixam de se
manifestar “[...] como imposição de fora para dentro, para organizar-se a partir de dentro,
malgrado as injunções e as contingências que iriam cercar a longafase do “predomínio
inglês” na vida econômica, política e diplomática da nação” (FERNANDES, 1974, p. 31-32).
Sem dúvida, os donos do poder não se insurgiram contra a estrutura da socieda-de
colonial, mas contra o limite imposto pelo sistema que acabava por neutralizar a
capa-cidade desta elite em dominar as diferentes esferas da ordem social, política e
econômica.
Essa é, segundo Florestan Fernandes (1974), a lógica que permite
compreender por que as elites nacionais, sem negar a ordem social dominante,
atuaram na esfera política, adaptando e integrando internamente a herança colonial
com os interesses impostos pela independência.
Portanto, o novo momento brasileiro irá se caracterizar como uma inovação aliada
ao poder por parte das oligarquias e a enorme marginalização da população livre.
A independência pode ser compreendida como mudança de status
político-jurídico sem mudança material e social, o que justifica a perpetuação das
relações sociais de dominação internas ao longo da construção da sociedade nacional.
FIGURA 6 – O GRITO DO IPIRANGA - PINTURA A ÓLEO DE PEDRO AMÉRICO - MUSEU DO IPIRANGA
FONTE: <http://www.mp.usp.br/museu-do-ipiranga>. Acesso em: 11 abr. 2017.
195
Para muitos historiadores, essa é uma das razões da defesa limitada, tosca e
egoísta, porém eficaz, dos ideais liberais por parte das elites nacionais, pois apenas era
defendido aquilo que, num jogo de probabilidades concretas, poderiam efetivamente
desfrutar, como o poder de igualdade e fraternidade dos interesses inerentes ao seu
papel definido da estrutura de poder dominante.
É evidente que o liberalismo, ao construir a base ideológica e política para a
transição colonial, tornou-se, ao mesmo tempo, o elemento mais destacado da cultura
brasileira durante a fase imperial e o ideário para a edificação do Estado nacional, para
a “ideia de Brasil”.
NOTA
O projeto liberal no Brasil, que norteou o processo de independência, não
significou uma única aspiração, mas sim o resultado de distintos segmentos,
radicais e moderados conservadores, que concordavam num aspecto: o
processo de independência e construção nacional se operaria com a
ausência de participação popular.
O resultado dos conflitos entre os diferentes segmentos liberais foi a vitória dos
conservadores, pensamento claramente explícito nas palavras de Evaristo da Veiga,
líder da independência, citado por Lopes (2012, p. 279): “Não temo que o Brasil se
despolitize, temo que se anarquize, temo mais hoje os cortesãos da gentalha que
aqueles que cheiram as capas do monarca”.
Os radicais “souberam aceitar” a monarquia como forma de sobrevivência. Este
fato demonstra a paradoxal conciliação resultante da estratégia liberal-conservadora
capaz de permitir o clientelismo e a cooptação aliada a uma cultura
jurídico-institucio-nal formalista, retórica e ornamental. Este “pacto conciliador” estará
presente na judi-cialização do processo de independência, sendo sua face visível o
bacharelismo liberal.
2 A CULTURA JURÍDICA NACIONAL: O BACHARELISMO
Com a independência política, a grande tarefa será a de construir autonomia
jurídica. Para tanto, serão usadas duas grandes estratégias: a elaboração de uma
legislação própria e a criação dos cursos de Direito.
Se, de um lado a primeira tarefa era a de construir o aparato legal institucional
da nação independente, de outro, era necessária a formação de uma elite jurídica
própria e afinada com os ideais da independência. A implantação dos cursos jurídicos
no Brasil era a alternativa possível frente à perda do único centro formador de juristas
196
de língua portuguesa, a Universidade de Coimbra, de um lado, e o desaparecimento
dos centros jesuíticos de ensino. Sem dúvida, o ponto de partida para a construção da
ordem político-jurídico nacional era a instauração dos cursos na medida em que este
era o curso fornecedor de importantes quadros para o Estado imperial, já que a grande
maioria de bacharéis era absorvida pelo serviço público, por serem mais raros os
cargos para magistrados e advogados.
A Carta de Lei de 11 de agosto de 1827, que implanta os primeiros cursos
jurídicos do Brasil de São Paulo e Recife, reflete, segundo Wolkmer (2007, p. 80), “a
exigência da elite que veio a suceder a dominação colonial preocupada com a estrutura
de poder e a preparação de uma camada burocrática administrativa capaz de assumir o
gerenciamento nacional”.
FIGURA 7 – FACULDADE DE DIREITO DO LARGO SÃO FRANCISCO
FONTE: <http://ead.stj.jus.br/ead/mod/page/view.php?id=3009>. Acesso em: 11 abr. 2017.
Tais centros servirão como reprodutores da legalidade oficial positiva, ou seja,
legitimadores dos interesses do poder, distantes de qualquer compromisso com
expectativas sociais. Deve-se lembrar que entre os ministros de Estado de 1831 a
1853, mais de 45% eram magistrados, que somando em certos períodos os advogados
que exerciam tais funções, chegava-se a 60%.
Assim, os cursos de Direito assumiram as funções de serem simultaneamente
defensores do ideário liberal e formadores da elite burocrática devidamente adestrada
para o exercício do poder.
Entretanto, ao buscar construir suas próprias escolas de Direito, o ensino
jurídico brasileiro reproduzia um modelo alienígena, cosmopolita, ilustrado e literário,
divorciado do quadro agrário rural predominante, e excluindo a grande massa popular
marginalizada.
197
Apesar de tais escolas tratarem de formar burocratas do poder dentro da lógica
do conservadorismo, é necessário que se assinale algumas tendências inovadoras. A
Faculdade de Direito de Pernambuco, apesar de comungar a tendência comum do
ensino jurídico brasileiro, vai ser o cenário da emergência de um movimento que
representará a possibilidade de novos horizontes mais afinados com as modernas
correntes de pensamento emergentes, o que poderia representar uma alternativa para
o mimetismo português e francês. Este movimento de forte influência germânica,
autodenominado Escola de Recife, será considerado o mais avançado de sua época, e
terá como expoente a figura de origem social humilde e mestiça: Tobias Barreto. Sobre
a importância deste movimento, destaca Filho (1982, p. 96):
O movimento da Escola do Recife representava, contudo, e talvez
pela primeira vez, a realização daquela grande tarefa a que se
tinham proposto as faculdades de Direito, de representarem grandes
centros de estudo das ciências sociais e filosóficas no Brasil, mas da
qual, via de regra, se vinham omitindo ou escapando, pois trazia o
movimento no seu bojo um problema de transformação de ideias no
campo da crítica literária.
A Escola de Recife entendia que para dotar o Brasil de um aparato jurídico era
necessário compreender a sociedade brasileira, sua natureza e construção. Defendia
que o jurista deveria ser algo mais que um rábula. A intenção era a de compreender o
fenômeno jurídico a partir de uma pluralidade de conhecimentos que resultavam
essencialmente do evolucionismo e do monismo. Sem dúvida, esses pensadores
jurídicos, mais distantes do centro do poder, viam-se como vanguarda.
Já São Paulo, centro privilegiado do bacharelismo liberal e da elite agrária,
orientou-se para a formação de burocratas e militantes políticos. No espaço do Largo
São Francisco foram intensas as defesas em favor dos direitos individuais e liberdades
políticas.
As lutas abolicionistas e republicanas eram parte da vivência acadêmica que
mais se caracterizava como autodidata, pois o ensino jurídico propriamente era de má
qualidade, permitindo que inúmeros acadêmicos aderissem à militância política, sem
que, entretanto, deixassem de ser cooptados pela burocracia estatal. O
comprometimento da qualidade do ensino era denunciado em 5 de agosto de 1831 pelo
aviso do Ministro do Império José Lino Coutinho, sobre o desleixo e negligência
escandalosa de professores do curso de Direito, que eram indiferentes à ausência dos
acadêmicos e aprovavam indiscriminadamente.
Comparativamente, enquanto a Escola de Recife imaginava produzir
pensadores da ciência do Direito, o Largo São Francisco de SãoPaulo era o celeiro de
políticos e burocratas do Estado Imperial.
Recife exaltava seu papel como núcleo intelectual e formador de ideias. São
Paulo, apesar da fragilidade intelectual, colocava-se como vanguarda política nacional
de onde partia o direcionamento político-jurídico brasileiro. Entretanto, seja como for,
198
em meio a um ensino de baixa qualidade, os juristas tornam-se quase autodidatas que
continuavam a reproduzir ideias tradicionalistas e formalistas de direito, mantendo
como espaço de discussão política não o espaço público, mas o privado: o interior do
Salão do Imperador e os espaços domésticos, fato característico de uma sociedade
aristocrática que foi capaz de construir um corpo normativo legal de fachada liberal que
pudesse conviver com o escravismo e religião de Estado.
Os juristas brasileiros que vão sendo forjados no Brasil independente
caracterizam-se pelo apego ao passado e a valorização de uma cultura retórica e vazia,
que não soube levar em conta a diversidade e especificidade brasileira.
Por essa razão, afirma Caio Prado (2012, p. 197) que o direito brasileiro era um
direito artificial e inaplicável que deixa de lado as particularidades nacionais, sendo um
exemplo significativo a questão da terra: “[...] num país agrícola e na maior parte ainda
deserto, e que apesar disto nunca foi devidamente tratado nas leis brasileiras. O que
sempre tivemos na matéria foi copiado de legislações europeias, onde naturalmente a
situação é inteiramente outra”.
Um exemplo disso é a codificação civil brasileira de 1916. Mais próxima do
conservadorismo do que da inovação, reproduziu mais valoração ao patrimônio privado
do que às pessoas. Fiel retrato do modelo social, político, ideológico e cultural de sua
época; muito do qual se perpetuou até o momento. Sem dúvida, trata-se da ritualização
e dogmatização das raízes que ordenavam, e de certa forma, ainda ordenam, as
relações materiais e pessoais brasileiras. O resultado desse passado, no tocante à
legislação civilista, é que permanecem irresolvidas questões sociais dramáticas, como
a concentração de riqueza, que foi funcionando historicamente como um perverso
mecanismo que nos dias de hoje segrega e estigmatiza milhões de brasileiros, pois,
sem dúvida, o modelo civil nacional foi idealizado para assegurar e perpetuar os
interesses e privilégios da oligarquia agrária.
Em síntese, a cultura jurídica do século XIX, que vai engendrar o direito do século
XX, vigente atualmente no Brasil, foi marcada por um forte individualismo e formalismo
legalista, projetando uma lógica singular, própria de uma nação que emergiu buscando aliar
os princípios individualistas liberais burgueses importados do modelo europeu, com o
legado colonial que instituiu práticas burocráticas-administrativas orientadas e ajustadas
para a garantia e a proteção dos bens patrimoniais, ignorando, na prática, os interesses e
necessidades da grande maioria que compõe o povo brasileiro. São oportunas as palavras
de Wolkmer (2007, p. 125) quando afirma que “[...] os limites, o artificialismo e a pouca
funcionalidade desse sistema de legalidade formalista e conservador propiciam as
condições favoráveis para a sequência de confrontos intermináveis e os horizontes de
ruptura com os procedimentos de justiça oficial e estatal”.
199
É exatamente sob a ótica desta cultura jurídica que vai ser construída toda
legislação nacional. Um saber técnico-normativo que vai, dentro de padrões rigorosos
de objetividade, pretender seguir um seguro caminho para a manutenção e reprodução
do modelo de direito legado por este passado marcado pela exclusão e dominação,
alheio a qualquer interesse e compromisso de emancipação.
DICAS
A fim de melhor compreender a evolução histórica da legislação nacional,
sugere-se a leitura do texto Brevíssimas Notas sobre a História do Direito e da
Justiça no Brasil, de Jefferson Carús Guedes: http://www.confluencias.uff.br/
index.php/confluencias/article/viewFile/303/228.
O colonialismo metropolitano imposto ao Brasil a partir do século XVI trouxe
como uma de suas faces a imposição do modelo epistemológico hegemônico na
Europa através da violência. Violência através da repressão de outras formas de saber
existentes na colônia e também pela assimilação de um saber que se anuncia como
universal e verdadeiro.
A cultura jurídica nacional desenvolveu-se numa matriz epistemológica que
muito bem cumpriu o papel de reprodução do direito hegemônico, tornando-se
instrumento de legitimação de um passado comprometido com a ausência de
compromissos de legítima emancipação nacional. Enfim, uma concepção vazia e
negadora de referenciais que possam definir um horizonte compreensivo legitimamente
justo para com o que secularmente foi excluído do direito brasileiro: valores e
necessidades capazes de promover a emancipação política e social dos empobrecidos,
dos ausentes e dos invisibilizados. Um “direito das ausências” responsável por ter a
“balança” da justiça pendido para “o lado” mais forte política e economicamente.
200
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:
• Com a independência política brasileira em 1822, o grande desafio foi a construção
da autonomia jurídica, daí a criação das primeiras Faculdades de Direito e
elaboração da legislação nacional.
• O liberalismo, apesar das contradições no Brasil, constituiu-se no grande ideário
norteador do processo de independência, servindo seus princípios de fundamento
da legislação nacional.
• A cultura jurídica brasileira deve ser compreendida a partir das grandes
contradições e paradoxos da sociedade nacional, que buscou conciliar os
interesses das elites locais e as necessidades sociais.
201
AUTOATIVIDADE
1 Considere o seguinte texto: Com a Independência do país, o liberalismo acabou
cons-tituindo-se na proposta de progresso e modernização superadora do colonialismo,
ainda que, contraditoriamente, admitisse a propriedade escrava e convivesse com a
estrutura patrimonialista de poder. Ao conferir as bases ideológicas para a transpo-sição
do status colonial, o liberalismo não só se tornou componente indispensável na vida
cultural brasileira durante o Império, como também na projeção das bases essenciais de
organização do Estado e de integração da sociedade nacional.
A partir do estudo realizado, por que o liberalismo brasileiro foi contraditório? Quais são
as contradições?
202
UNIDADE 3 TÓPICO 4 -
OS DESAFIOS DO DIREITO NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO
1 INTRODUÇÃO
A entrada no século XXI, embora não triunfal, nas terras brasileiras foi feita sob a
égide da democracia aliada à esperança – nunca perdida – de reafirmação de cidadania.
É nesse contexto que o sistema judiciário internamente assumiu o papel
inédito de assegurar não apenas o conjunto de direitos fundamentais duramente
conquistados, mas o de também manter a estabilidade política numa historicamente
frágil ordem democrática. Revisando a história do Direito brasileiro, não é difícil
perceber que esse protagonismo é muito diferente do tradicionalmente assumido de
servir de mero instrumento de conferir eficácia ao sistema normativo estabelecido por
um poder político raramente comprometido com interesses populares e fortemente
marcado pela herança colonial.
Na trajetória de construção do Estado brasileiro, o Judiciário esteve mais
ocupado em cumprir seu papel controlador e reprodutor dos interesses das elites e
organizar-se institucionalmente como aparato burocrático do poder. A bem da verdade,
o Judiciário não foi alvo de atenção nem das elites nem das forças progressistas, talvez
porque nunca representou obstáculo para aquelas, tampouco fonte de justiça social
para essas, mas acabou, em finais do século XX, assumindo um papel político do qual
não pode mais renunciar.
O novo sistema mundial neoliberal, adotado pelos países europeus, nos últimos
30 anos, encontrou o absoluto desmantelamento do Estado intervencionista – quer o
modelo desenvolvimentista das periferias e semiperferias mundiais, como Estado
Providência – e o fortalecimento do Estadode Bem-Estar Social relativamente
avançado nos países da Europa, marcado por fortes políticas sociais que aliam altos
níveis de competitividade com altos níveis de proteção social (SOUSA SANTOS, 2007).
A mudança política em tempos de neoliberalismo global, na leitura de
Boaven-tura de Sousa Santos, exige um Judiciário eficiente, rápido e independente
para asse-gurar o novo modelo de desenvolvimento que se assenta nas regras de
mercado e nos contratos privados, mas também, que responda às demandas sociais
causadas pela precarização dos direitos sociais e econômicos (2007).
203
Particularmente, no Brasil, sem que tenha um modelo de Estado forte em
políticas sociais, a redemocratização constitucional colocada em marcha com a
Constituição Federal de 1988 ampliou consideravelmente o leque de direitos, não
apenas em relação aos chamados direitos fundamentais, mas também aos novos
direitos, cujos titulares são sujeitos coletivamente identificados: consumidores, negros,
homossexuais, crianças e adolescentes, mulheres, indígenas, e tantos outros quantas
possibilidades de articulação social e política. Esse fato aumenta a expectativa social
de serem garantidos direitos anunciados constitucionalmente, mesmo com débeis
mecanismos de implementação, já que a nova ordem constitucional também prevê a
ampliação de estratégias e “instituições das quais se pode lançar mão para invocar os
tribunais, por exemplo, a ampliação da legitimidade para propositura de ações diretas
de inconstitucionalidade, possibilidade de as associações interporem ações em nome
de seus associados e a consagração da autonomia do Ministério Público” (SOUSA
SANTOS, 2007, p. 18).
O novo constitucionalismo e a redemocratização brasileira conferiram ao Judiciário
um papel relevante: não apenas é visto como instrumento de viabilização de direitos e
garantias, como também a reconstrução e manutenção da ordem democrática.
Entretanto, a redemocratização aliada ao constitucionalismo construído nas
matrizes europeias que consagram direitos fundamentais – conquistados ao longo de
um processo histórico específico –, em terras brasileiras tem sido uma proposta
desacompanhada de políticas públicas e sociais capazes de conferir eficácia e
efetividade à nova ordem, ainda com agravante de existirem fortes resistências entre
juristas herdeiros de uma lógica cartesiana ainda reféns do ultrapassado paradigma
formal legalista de direito.
Pode-se afirmar que aí está uma das razões centrais para compreender o
porquê de, passados quase 30 anos de Constituição Democrática, ainda o Brasil é um
país em que os princípios democráticos fazem parte de uma mera intencionalidade nem
sempre ou raramente contemplada. “Para se ter uma ideia, o princípio constitucional da
ampla defesa ficou quase 15 anos sem ser aplicado nos interrogatórios judiciais, sem
que a doutrina e a jurisprudência – com raríssimas exceções – tivessem reivindicado a
aplicação direta da Constituição” (STRECK, 2017, p. 155). Evidentemente, sem
esquecer que ainda o “peso da balança” pende para um “lado”.
Se no passado colonial a face visível da exploração era a do escravo, em
tempos de globalização o resultado da perversidade sistêmica, que nos lembra Milton
Santos, são as vítimas do fascismo social.
O fascismo social não é, como lembra Boaventura de Sousa Santos (2001),
aquele criado diretamente pelo Estado, mas o produto de um sistema em que o nível de
competitividade tem a guerra como norma, e acaba num individualismo arrebatador e
possessivo que tudo coisifica, inclusive seres humanos.
204
Um sistema “que comanda outros subsistemas da vida social, formando uma
constelação que tanto orienta e dirige a produção da economia como também a
pro-dução da vida” (SANTOS, 2001, p. 48). As fragmentações resultantes da lei de
mercado rompem a solidariedade social, fazendo com que novas formas de
perversidades sociais sejam criadas.
Como resultado da nova ordem mundial neoliberal, são profundas as
desigualdades sociais, vivendo-se um cotidiano de exclusão.
FIGURA 8 – EXCLUSÃO SOCIAL - UMA ESTRANHA CONVIVÊNCIA
FONTE: <http://profwladimir.blogspot.com.br/2012/05/dados-brasil-desigualdades-sociais.html>. Acesso
em: 11 abr. 2017.
DICAS
Para melhor compreensão do tema, sugere-se a leitura do livro
Constitucionalismo, Descolonización y Pluralismo en América Latina, de
Antonio Carlos Wolkmer e Ivone Fernandes M. Lixa, em
https://sociologiajuridica.
org/2015/04/19/livro-constitucionalismo-descolonizacion-y-pluralismo-juri
dico-en-america-latina/.
205
No Brasil, a desigualdade e seletividade, sobretudo no circuito da violência
penal, reproduz sistematicamente processos de exclusão e vitimização aos setores
populares, desonrando e desrespeitando grupos sociais que compõem as zonas de
selvageria, expondo sofrimento e intimidade de seres humanos, que perversamente
são transformados em “descartáveis” por “terem rompido o contrato social” e, por isso,
transformados em seres desprovidos de direitos.
A exceção se torna regra nas áreas de exclusão e justificável para a prática do
extermínio do “perigoso”.
DICAS
Em http://www.mapadaviolencia.org.br/, você encontrará dados acerca da
violência no Brasil. Analise os dados!!! Realmente, são grandes desafios para
o direito!
2 A DIFÍCIL CONQUISTA DE DIREITOS
Já aprendemos, e ainda estamos lamentavelmente aprendendo no Brasil, que
as barbaridades cometidas contra seres humanos não se fundam somente no ódio, na
cobiça ou na estupidez, mas sim na ausência de reflexão, no distanciamento e
estranhamento, para usar a linguagem filosófica que permite a abertura de lidar com o
invisível, com o não dito, com o silenciado e com o que está “fora de ordem”. Talvez em
tempos de fascismos tão declarados seja chegado o momento de nos educarmos como
forma de nos protegermos da banalidade do mal, talvez assim possam ser menos
favoráveis e tenham mais pudor falas intolerantes e assassinas.
Caminhando para a segunda metade da primeira década do século XXI não há
muitas razões para otimismo. Vivemos uma espécie de ausência de esperança e de
futuro. Estamos enfrentando tempos difíceis e de perversidades inéditas tornando
quase utopia falar em Direito, sobretudo em Direitos Humanos.
Uma breve análise nos permite afirmar que é necessário reinventar a política e
repolitizar o Direito desde a participação popular na política, criando mecanismos para
resolução de conflitos de forma a estabelecer no Estado um poder popular e pluralista
cuja prática destina-se a resgatar grupos que se encontram em situação de subjugação
ou exclusão sem que consigam, por si mesmos, atender às necessidades. Dessa
maneira, simultaneamente, se enriquece a democracia com mecanismos participativos
diretos, resgatando o “constitucionalismo primeiro” que está além do convencional e
dominante.
206
Trata-se de reconhecer as novas realidades constituintes cotidianas cujos atores,
como sujeitos históricos, são os que dinamizam, desde a estrutura social, política e
econômica, e carregam em si a potencialidade transformadora que vai reconfigurando a
ordem jurídica a partir de uma lógica plural e democrática capaz de ampliar o espaço
jurídico para além do estatal, articulando saberes, práticas e ações coletivas inovadoras até
então pouco reconhecidas. Uma prática cujo espaço de investigação é inesgotável, que
busca identificar os elementos corriqueiros nas traduções das múltiplas realidades – a
jurídica e a coletivamente criada – para encontrar o comum, o ponto inicial para a tradução,
para novas práticas que possam colocar em diálogo os espaços tradicionalmente
considerados “jurídicos e não jurídicos”.
DICAS
Sugerem-se, como leitura, dois textos básicos:
1. Brevíssimas Notas sobre a História do Direito e da Justiça no Brasil.
Autor: Jefferson Carús Guede. Disponível em:
http://www.confluencias.uff.br/index.php/confluen-cias/article/viewFil
e/303/228.
2. O capítulo III do livro de Antonio Carlos Wolkmer, História do Direito no
Brasil.
Disponível em:
file:///C:/Users/Usuario/Downloads/WOLKMER,%20Ant%-C3%B4nio%20Carlos.%20Hist%C3%B3ria%20do%20Direito%20no%20Bra-sil%20(1).pdf.
Ainda são recomendados alguns filmes disponíveis na Internet, como:
Xica da Silva. Direção de Carlos Diegues, 1976.
Brava Gente Brasileira. Direção de Lucia Murat, 2000.
Mauá: O Imperador do Brasil. Direção de Sérgio Resende, 1999.
Lembre-se: a cultura jurídica se adquire de várias formas! Leia bons
romances!
Veja bons filmes e documentários!
207
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico, você aprendeu:
• O passado histórico acabou por criar uma brutal realidade social no Brasil
contemporâneo, que tem exigido respostas nem sempre possíveis de serem dadas
com rapidez e eficiência.
• Mesmo com a ordem jurídica democrática implantada pela Constituição de 1988,
não conseguimos ser democráticos na prática, imperando um crescente e
aterrorizante fascismo social.
• Temos muitos desafios diante de nós e precisamos reinventar nossas práticas
jurídicas, buscando procedimentos mais eficientes e adequados a esse novo e
difícil tempo.
208
AUTOATIVIDADE
1 Considere a figura a seguir:
FONTE: <http://www.ncst.org.br/subpage.php?id=19708_24-04-2017_reforma-da-previd-ncia-agrava-de-
sigualdades-sociais-dizem-cnbb-oab-e-cofecon>. Acesso em: 11 abr. 2017.
O que lhe sugere? Há questões relativas ao Direito representadas? Comente.
209
210
UNIDADE 3 TÓPICO 5 -
DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E
DILEMAS
1 INTRODUÇÃO
Na entrada para o século XXI anuncia-se o esgotamento da modernidade. A
“liquificação” da modernidade, pergunta Zygmunt Bauman (2001, p. 9), “não foi um processo
que esteve desde o início presente no discurso moderno? Não foi o “derretimento dos
sólidos” seu maior passatempo e principal realização? Não foi a modernidade “líquida”
desde sua concepção?” Os “sólidos” destruídos pela modernidade, no final do século XX,
para Bauman, passaram a apresentar sinais de maior liquidez.
FIGURA 9 - PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA, DE SALVADOR DALI (1931) - MUSEU DE
ARTE MODERNA DE NOVA YORK
FONTE: <https://mestresdapintura.com.br/blog/os-relogio-derretidos-de-dali/>. Acesso em: 11 abr. 2016.
Os confrontos passaram a ser inevitáveis e os sintomas de mudança e
descrença vão rearticulando as condições sociais e políticas, parecendo indicar uma
nova condição humana e novas técnicas redefinem as relações de poder.
As instituições e convicções defendidas pela modernidade parecem debilitadas.
Os velhos e tradicionais partidos políticos e tradições ideológicas cedem espaço a
movimentos sociais inéditos que vão se identificando coletivamente. As “sólidas” redes
de interações sociais modernas cedem espaço ao multi (multiétnico e multicultural). Os
211
referenciais de identificação não são mais elementos de uma cidadania individualizada.
A fragmentação justifica a dominância do discurso do “mundo único”, e o global e local
tornam-se visceralmente associados sob o lema “pense global, haja local”.
Muitos pensadores, nas três últimas décadas do século XX, passaram a apontar
para o novo fenômeno multifacetado monoliticamente chamado de globalização. Ao que
parece, por força da tradição universalizante do ocidentalismo, há uma tendência dominante
de apresentar a globalização como linear e consensual, ocultando impactos e as interações
com o sistema mundial de dominação cujos efeitos agravam dramaticamente a exclusão e
as desigualdades econômicas, fragilizando o tradicional conceito de Estado-Nação, além de
promover migrações em massa, agravando e promovendo conflitos étnicos e políticos,
degradação ambiental, dentre outros.
“A pobreza produzida maciçamente torna-se banal ao lado de uma competitividade
que tem a guerra como norma, eliminando qualquer forma de compaixão” (SANTOS, 2011,
p. 46). O individualismo domina para além da vida econômica e invade a ordem política e os
espaços territoriais. “Vão sendo implantados novos valores aos objetos e aos seres
humanos que tomam como parâmetro uma suposta contabilidade global que mercantiliza
todos os subsistemas da vida social, rompendo solidariedades numa batalha sem quartel”
(SANTOS, 2011, p. 48). Por imposição do mercado, o consumismo move a vida pública e
privada. Um novo fundamentalismo que emagrece moral e intelectualmente as pessoas,
reduzindo a visão de mundo e fazendo esquecer qualquer relação entre o consumidor e o
ser humano.
Em finais do século XX a novidade é a sensação de naufrágio não apenas dos
projetos individuais, mas de incertezas acerca do futuro coletivo, da possibilidade de
uma forma correta de partilhar a existência e dos critérios de compreensão acerca dos
acertos e erros da experiência humana.
“O otimismo civilizatório, produto do esforço iluminista que abraçou a ideia de
progresso e foi capaz de romper com o passado através da secularização e
dessacralização do conhecimento” (HARVEY, 1993, p. 24).
O Iluminismo tomou o progresso como lema para a secularização e
dessacralização do conhecimento em nome da liberdade humana. A ciência prometia
emancipação e o otimismo era o estímulo para as novas doutrinas fundadas na razão
humana universal, mas as esperanças que tornavam suportáveis as perversidades
modernas em finais do século XX desaparecem e as contradições internas e
inconfessáveis do projeto iluminista evidenciam-se.
212
2 A NOVA CONDIÇÃO NO COTIDIANO
O empobrecimento globalizado e a desconstrução das instituições tradicionais
encontram no discurso da pós-modernidade uma justificação para a condição humana
em finais do século XX, como uma teoria que abarca o que não é homogêneo, flexível e
volátil. O ceticismo é a consequência do esfacelamento da noção de totalidade e
retiram-se de cenas as tradicionais formas de engajamento revolucionário.
Apenas as microrrevoluções passam a ser possíveis, já que as alternativas
abran-gentes e universais são condenadas ao fracasso, e o passado parece aprisionar o
presente.
É um novo palco da história, constituído por múltiplos momentos e
elementos que comportam inúmeras leituras. O “cenário” de confiança, estabilidade e
previsibili-dade, necessário à construção de uma identidade individual, arquitetado e
erigido co-letivamente, criou as estruturas fundamentais do imenso edifício do que veio
a ser a civilização moderna. Tais estruturas acabaram abaladas pela impossibilidade de
ajuste entre a volúvel escolha individual e os pré-requisitos funcionais do coletivamente.
As múltiplas compreensões acerca dos riscos e incertezas que afetam o
cotidiano do planeta, do fim da crença na certeza, previsibilidade e controle sob a qual
se forjou a civilização ocidental moderna vai construindo um movimento intelectual
complexo e ambíguo, estruturado de forma difusa e que vai sendo provisoriamente
rotulado de pós-modernidade.
Trata-se de um conjunto de atitudes abertas e indeterminadas, moldadas por
uma grande diversidade de correntes intelectuais e culturais: pragmatismo,
existencialismo, marxismo, psicanálise, feminismo, hermenêutica, desconstrução e
filosofia pós-empirista da ciência, além de outras. Estas são bases epistemológicas a
partir das quais confluem princípios compartilhados que conduzem essencialmente à
crença na falibilidade e relatividade do conhecimento subjetivamente determinado e
marcado indelevelmente pelo pluralismo de valores e escolhas. São tempos difíceis,
onde há tanto para transformar e repensar e, ao mesmo tempo, é um enorme desafio
construir ou reconstruir um pensamento crítico (TARNAS, 2011).
3 PALEOPOSITIVISMOS, JUSCONSTITUCIONALISMOS
E RENOVAÇÃO CRÍTICA NO BRASIL
Sem dúvida, uma das pautas centrais do Direito contemporâneo é a sua
constitucionalização e fundamentos legitimadores.
As velhas concepções assentadas no paradigma juspositivista legalista, chamado
por alguns de paleopositivismo, que tem como raciocínio acerca do Direito uma lógica
autossustentadora e autojustificadora, em fins do século XX são substituídas pelo que
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vai se autodenominando neopositivismo ou neojuspositivismo subordinando o Direito ao
sentido constitucional, que, embora redefinido pelo princípio da legalidade substancial que
vincula

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