Prévia do material em texto
2 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA Secretaria de Gestão e Ensino em Segurança Pública Diretoria de Ensino e Pesquisa COORDENAÇÃO GERAL DE ENSINO Coordenação de Ensino a Distância Conteudista André Santos Guimarães - PCDF Beatriz Marques de Jesus Figueiredo - PCDF Yume Lais Arashiro Assis – PCDF Revisão Pedagógica Vânia Cecília de Lima Andrade SETOR DE CRIAÇÃO E DESENVOLVIMENTO Programação e Edição Ozandia Castilho Martins Fagner Fernandes Douetts Designer Ozandia Castilho Martins Fagner Fernandes Douetts Designer Instrucional Anne Caroline Bogarin Manzolli 3 Sumário APRESENTAÇÃO DO CURSO ................................................................................... 6 OBJETIVOS ................................................................................................................ 6 ESTRUTURA DO CURSO .......................................................................................... 7 MÓDULO I – Por que um protocolo de investigação de feminicídios? ........................ 9 APRESENTAÇÃO .............................................................................................................. 9 OBJETIVOS ......................................................................................................................... 9 ESTRUTURA DO MÓDULO ............................................................................................ 9 AULA 1: O SURGIMENTO DO CRIME DE FEMINICÍDIO NO BRASIL .............. 10 AULA 2: O CRIME DE FEMINICÍDIO......................................................................... 15 AULA 3: OS PROTOCOLOS DE INVESTIGAÇÃO DE FEMINICÍDIOS ............... 19 3.1 O dever de devida diligência ............................................................................ 20 MÓDULO II – Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio (Diligências Investigativas) ..................................................................... 26 APRESENTAÇÃO ............................................................................................................ 26 OBJETIVOS ....................................................................................................................... 27 ESTRUTURA DO MÓDULO .......................................................................................... 27 AULA 1: REGISTRO DE OCORRÊNCIA .................................................................... 28 1.1 Falecimento de mulher sem identificação em unidades de saúde ou em unidades de internação ...................................................................................................... 32 AULA 2: INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR .................................................................. 34 2.1 Diligências da equipe de investigação no local de crime ................................ 35 2.2 Diligências específicas do delegado de polícia ................................................ 38 2.3 Diligências específicas no local de crime ......................................................... 41 2.4 Abandono do local de crime ............................................................................. 46 AULA 3: DILIGÊNCIAS GERAIS APLICÁVEIS À INVESTIGAÇÃO CRIMINAL ............................................................................................................................. ................ 49 3.1 Busca e apreensão no domicílio da vítima ...................................................... 53 4 3.2 Relatório final do inquérito policial ................................................................. 54 AULA 4: DESAPARECIMENTO DE MULHERES ..................................................... 57 MÓDULO III- Aspectos Procedimentais do Protocolo Nacional de Investigação e Perícia em Crimes de Feminicídio (Da Perícia Criminal) ........................................... 61 APRESENTAÇÃO ............................................................................................................ 61 OBJETIVO ......................................................................................................................... 62 ESTRUTURA DO MÓDULO .......................................................................................... 63 AULA 1: INTRODUÇÃO ................................................................................................. 64 AULA 2: CAMPO DE APLICAÇÃO .............................................................................. 67 2.1 Interface com o Direito ................................................................................................ 67 2.2 A Prova no Processo Penal .......................................................................................... 70 2.3 Base conceitual e arcabouço legal ............................................................................... 71 2.4 Casos aos quais se destina ........................................................................................... 89 AULA 3: PROCEDIMENTOS ......................................................................................... 94 3.1 Exame de local .............................................................................................................. 96 3.2 Perinecroscópico ........................................................................................................ 136 3.3 Coleta de vestígios ...................................................................................................... 162 3.4 Encaminhamento de vestígios ................................................................................... 206 AULA 4: INTERFACE COM A INVESTIGAÇÃO E DEMAIS INTERAÇÕES PROFISSIONAIS ............................................................................................................ 211 AULA 5: LAUDO ............................................................................................................ 214 Módulo IV – Medicina Legal: FEMINICÍDIO E PERÍCIA MÉDICO-LEGAL .............. 218 APRESENTAÇÃO .......................................................................................................... 218 OBJETIVO ....................................................................................................................... 218 ESTRUTURA DO MÓDULO ........................................................................................ 218 AULA 1: QUAL O PAPEL DO PERITO MÉDICO-LEGISTA NO FEMINICÍDIO? ............................................................................................................................. .............. 220 AULA 2: PERÍCIAS EM VÍTIMA VIVA ..................................................................... 223 2.1 Etapas do atendimento a vítimas sobreviventes de tentativa de feminicídio........ 224 5 2.2 Tipos de perícias médico-legais em vítima viva ...................................................... 227 AULA 3: PERÍCIAS EM AUTOR VIVO ..................................................................... 242 3.1 Exame de lesões corporais: o autor de violência física ........................................... 242 3.2 Exame sexológico: o autor de violência sexual ........................................................ 242 3.3 Exame psiquiátrico .................................................................................................... 243 3.4 Exames toxicológicos: ................................................................................................ 243 AULA 4: EXAME NECROSCÓPICO .......................................................................... 247 6 APRESENTAÇÃO DO CURSO Caro Aluno, Bem-vindo ao curso de Aspectos Procedimentais do Protocolo Nacional de Investigação e Perícia em Crimes de Feminicídio. O Brasil é um país com alta prevalência de violência contra a mulher,um verdadeiro problema de saúde pública e suas consequências refletem em desequilíbrio de todas as esferas da sociedade: familiar, econômica etc. Diante do atual cenário, este curso busca aplicar os procedimentos elencados no Protocolo Nacional de Investigação e Perícia em Crimes de Feminicídio, transmitindo conhecimentos para os profissionais que irão atuar na área. No desenvolver do curso, para melhor exemplificar, foram utilizadas imagens reais de cenas de crime, tais fotografia foram disponibilizadas conforme Termo de Anuência, documento SEI 13514734. Atenção! Algumas imagens podem conter cenas fortes. Bons estudos! OBJETIVOS O curso tem por objetivo trazer os procedimentos a serem adotados em uma investigação de crime de feminicídio, conforme preconiza o Protocolo Nacional de Investigação e Perícia em Crimes de Feminicídio, apontar os passos a serem seguidos, orientar quanto as diligências necessárias, capacitar e fornecer informações aos profissionais que irão dar atendimento em ocorrências dessa natureza. 7 Módulo I – Por que um protocolo de investigação de feminicídios? Módulo II – Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio (Diligências Investigativas) Módulo III- Aspectos Procedimentais do Protocolo Nacional de Investigação e Perícia em Crimes de Feminicídio- Da Perícia Criminal Módulo IV - Medicina Legal- Feminicídio e Perícia Médico-Legal ESTRUTURA DO CURSO AULA 1: O surgimento do crime de feminicídio no Brasil. AULA 2: O crime de feminicídio. AULA 3: Os protocolos de investigação de feminicídios. AULA 1: Registro de ocorrência. AULA 2: Investigação Preliminar. AULA 3: Diligências gerais aplicáveis à investigação criminal. AULA 4: Desaparecimento de mulheres. AULA 1: Introdução. AULA 2: Campo de aplicação. AULA 3: Procedimentos. AULA 4: Interface com a investigação e demais interações profissionais. AULA 5: Laudo. AULA 1: Qual o papel do perito médico-legista no feminicídio? AULA 2: Perícia em vítima viva. 8 AULA 3: Perícia em autor vivo. AULA 4: Exame necroscópico. 9 MÓDULO I – Por que um protocolo de investigação de feminicídios? APRESENTAÇÃO Caro Aluno, Neste módulo você irá estudar a origem do termo “feminicídio”, bem como seu significado. Estudará um pouco mais sobre o caso do “Campo Algodoneto”, o qual culminou, em 2009, com a condenação do Estado do México pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, e, ainda, sobre a importância da tipificação do crime de feminicídio, e a necessidade de um protocolo de investigação próprio. OBJETIVOS Ao final deste módulo você será capaz de: • Orientar-se sobre a origem do termo “feminicídio”, e o caso que deu vulto, na América Latina, a discussão acerca do feminicídio; • Identificar a importância de se tipificar o crime de feminicídio; e • Conhecer a legislação que introduziu o crime de feminicídio no ordenamento jurídico brasileiro; e • Conhecer a importância do dever da devida diligência. ESTRUTURA DO MÓDULO Este Módulo compreende as seguintes aulas: AULA 1: O Surgimento do Crime de Feminicídio no Brasil. AULA 2: O crime de feminicídio. AULA 3: Os protocolos de investigação de feminicídios. 10 Saiba Mais! Ciudad Juarez fica imediatamente na fronteira com os Estados Unidos, ao lado da cidade americana de El Paso (Texas). Com a assinatura do Acordo de Livre Comércio da América do Norte - NAFTA em 1994, diversas empresas americanas transferiram parte da produção para México, sendo que muitas delas se instalaram nas proximidades de Ciudad Juarez (Estado de Chiuahua), justamente porque se trata de uma cidade fronteiriça. São as chamadas Maquilladoras, empresas que usam mão de obra barata. Diante disso, AULA 1: O Surgimento do Crime de Feminicídio no Brasil O primeiro uso do termo “femicídio” é atribuído a Diana Russell, escritora feminista e ativista. Diana se valeu desse termo para se referir à morte de mulheres por homens pelo fato de serem mulheres. Contudo, em 1976, Jane Caputti, uma professora da Florida Atlantic University, e Diana Russel redefiniram o termo femicídio, com o fim de utilizá-lo em referência ao “fim extremo de um continuum de terror contra as mulheres”. Por fim, Marcela Lagarde, antropóloga e pesquisadora mexicana, partindo do termo “femicídio”, criou a denominação “feminicídio” para se referir às mortes de mulheres em um contexto de “responsabilidade do estado na produção das mortes de mulheres”. Embora, portanto, o fenômeno da morte de mulheres por homens pelo fato de serem mulheres tenha sido reconhecido pela academia há tempos, a abordagem estatal a esse fenômeno somente passou a ocorrer de forma mais relevante a partir da década de 90. De fato, a discussão acerca do feminicídio somente toma vulto na América Latina a partir dos sucessivos homicídios de mulheres em Ciudad Juarez, no Estado de Chihuahua, no México, a partir de 1993, o que culminou, em 2009, com a condenação do Estado do México pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Campo Algodonero”. 11 Isso criou um fenômeno de mulheres trabalhadoras móveis, independentes, mas vulneráveis a violência em Ciudad Juarez. Inclusive, muitas mulheres conseguiam empregos em maquilladoras com mais facilidade do que homens e isso levou a uma inversão de papeis tradicionais de gênero, o que gerou violência específica contra mulheres naquela região. Figura 1: Casos em Juares/ México. Fonte: SCD/EaD/Segen Nesse contexto, está inserido o “Caso Campo Algodonero”, ocorrido em 06 de novembro de 2001, em Ciudad Juarez, quando foram encontrados 8 corpos de mulheres em um campo de algodão. Entre eles os de Claudia Ivette González, Esmeralda Herrera Monreal e Laura Berenice Ramos Monárrez. Os corpos foram encontrados com sinais de estrangulamento e de violência sexual, sendo que alguns estavam seminus. No caso de Esmeralda Herrera Monreal e de Claudia Ivette González, os mamilos estavam mutilados. Em 2009 a Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH (Caso González y otras ou - “Campo Algodonero” - vs. México) condenou o México pelo caso Campo muitas mulheres migraram de áreas rurais mexicanas para Ciudad Juarez, para trabalhar nas Maquilladoras. 12 ATENÇÃO! A Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Campo Algodonero” condenou o México, entre outros, a criar uma política integral e coordenada, respaldada com recursos adequados, para garantir que os casos de violência contra as mulheres sejam adequadamente prevenidos, investigados, sancionados e suas vítimas sejam reparadas. Algodonero por ausência de devida diligência das autoridades mexicanas para começar as investigações e para conduzi-las. Em 2007, o Estado do México já havia adotado uma definição de “violência feminicida” que serviu de substrato para vários estados mexicanos tipificarem o crime de feminicídio. A partir daí, diversos países inseriram o delito de feminicídio em suas legislações, a saber: Figura 2: Países que inseriram o delito de feminicídio em suas legislações Fonte: SCD/EaD/Segen Paralelamente a esse gradual surgimento do crime de feminicídio nas legislações dos países, diversos documentos internacionais passaram a tentar sensibilizar os países a tipificarem o delito de feminicídio. 13 ATENÇÃO! A criação de um crime específico de feminicídio apresenta importância ímpar, conforme exposto no relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investigou a violência contra a mulher no Brasil. ATENÇÃO! E de fato, esse destaque da morte de mulheres torna-se um fato relevante quando se observa que, de 1980 a 2013, 106.093 mulheres Nesse sentido, pode-secitar, por exemplo, o Relatório sobre Violência contra Mulheres, suas Causas e Consequências e as Conclusões Acordadas da Comissão sobre o Status da Mulher da Organização das Nações Unidas - ONU, apresentado em sua 57ª Sessão em 15 de março de 2013. Conforme tal relatório, a importância de tipificar o feminicídio é reconhecer, na forma da lei, que mulheres estão sendo mortas pela razão de serem mulheres, expondo a desigualdade de gênero que persiste em nossa sociedade. A tipificação também é importante, ainda segundo o relatório, para evitar que feminicidas sejam beneficiados por interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis, como a de terem cometido “crime passional”. Ademais, para a referida CPMI, a existência de um crime de feminicídio envia uma mensagem positiva à sociedade de que o direito à vida é universal e de que não haverá impunidade, além de proteger a dignidade da vítima impedindo as estratégias que desqualificam a condição de mulheres brutalmente assassinadas, por exemplo, atribuindo a elas a responsabilidade pelo crime do qual foram vítimas. Observe-se que a criação do tipo penal de feminicídio não consiste em mera iniciativa de hipertrofia legislativa, mas sim de um aperfeiçoamento normativo que busca apartar, do conjunto de homicídios praticados no Brasil, aquelas mortes em que as vítimas são mulheres e a motivação decorre, justamente, da condição do sexo feminino. 14 Diante disso, a já citada CPMI para investigação da situação da violência contra a mulher no Brasil constituiu um Grupo de Trabalho sobre Legislação. Tal grupo, entre outras iniciativas, elaborou projeto de lei para alterar o Código Penal, inserindo o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Nesse sentido, a CPMI protocolou o Projeto de Lei do Senado (PLS) 292/2013. Um projeto substitutivo a ele foi proposto na Comissão de Constituição e Justiça, mas depois foi sucedido por outro substitutivo, dessa vez proposto pela Procuradoria da Mulher do Senado Federal, o qual foi aprovado e enviado à Câmara dos Deputados. Na Câmara dos Deputados, o referido Projeto de Lei (PL) tramitou como PL 8.305/2014, foi aprovado e resultou na Lei 13.104 de 09 de março de 2015. foram vítimas de homicídio. Portanto, a magnitude dessas cifras, aliada a um cenário de violência sistêmica contra as mulheres, subsidia a criação de um tipo penal próprio a fim de tutelar os atentados contra a vida dessa parcela da população. 15 Código Penal Brasileiro - CPB Art. 121 (...) Homicídio qualificado § 2° Se o homicídio é cometido: (...) VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: Pena - reclusão, de doze a trinta anos. AULA 2: O crime de feminicídio A Lei 13.104 de 09 de março de 2015, introduziu o crime de feminicídio no ordenamento jurídico brasileiro. Em especial, a referida lei inseriu no Código Penal Brasileiro o inciso VI do § 2° do Art. 121. Veja a redação do dispositivo: O primeiro comentário então é que, apesar de ser um crime que possui um nome próprio (feminicídio), trata-se, em verdade, de uma das modalidades de homicídio qualificado trazida pelo CPB. Portanto, pela lei brasileira o homicídio é qualificado e reconhecido como um feminicídio quando praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Observe-se que, antes da Lei 13.104/2015, o feminicídio, se não envolvesse outras agravantes ou qualificadoras trazidas pelo Código Penal, era punido genericamente como um homicídio simples do caput do art. 121. 16 Código Penal Brasileiro - CPB Art. 121 (...) Homicídio qualificado (...) § 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Quando o homicídio de uma mulher envolve violência doméstica, a lei considera, então, que se trata de “razões de condição do sexo feminino” e, portanto, que se trata de feminicídio. E para se determinar o que vem a ser “violência doméstica Violência doméstica e familiar Figura 3: Questionamento Fonte: SCD/EaD/Segen O legislador, mais adiante, acabou por esclarecer o que vem a ser o termo “razões da condição de sexo feminino”. Nesse sentido, o Código Penal Brasileiro, no § 2º-A do art. 121 (também acrescentado pela Lei 13.104/2015), esclarece o significado desse termo. Veja a redação do dispositivo. Portanto, o próprio legislador esclareceu que considera que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: 17 Quando o homicídio de uma mulher envolve violência doméstica, a lei considera, então, que se trata de “razões de condição do sexo feminino” e, portanto, que se trata de feminicídio. Diferentemente da hipótese anterior, não há um dispositivo legal indicando o que vem a ser “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. No caso específico da “discriminação”, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW, 1979), ratificada em 1984 pelo Brasil por meio do Decreto 1973, de 1º de agosto de 1996, apresenta, no Art. 1º, uma definição de discriminação contra a mulher: Menosprezo ou discriminação à condição de mulher “toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”. Quanto à natureza dessa qualificadora, deve-se recordar que as qualificadoras do homicídio podem ser objetivas (por exemplo, emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum) ou subjetiva (motivo fútil, por exemplo). e familiar” deve-se observar o art. 5º da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Veja a redação do dispositivo. Lei 11.340/2006 Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. 18 ENUNCIADOS FONAVID 39 – A qualificadora do feminicídio, nos termos do art. 121, §2ºA, I, do Código Penal, é objetiva, uma vez que o conceito de violência doméstica é aquele do art. 5º da Lei 11.340/06, prescindindo de qualquer valoração específica (Aprovado no VIII FONAVID-BH). No caso, a qualificadora feminicídio é de natureza objetiva, visto que está relacionada a um dado objetivo, qual seja, vítima mulher morta ou no contexto de violência doméstica ou por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Observe o enunciado do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher – FONAVID que considera que se trata de uma qualificadora objetiva. A Lei 13.104/2015 previu também três causas de aumento de pena para o feminicídio. Nesse sentido, conforme Código Penal Brasileiro em seu artigo 121, § 7º, incisos I, II e III, a pena do feminicídio é aumentada de 1/3 até a 1/2 se o crime for praticado: Figura 4: Aumento de penapara o feminicídio Fonte: SCD/EaD/Segen 19 Outra ação internacional recente e importante é a criação de um Protocolo para a Investigação de Assassinatos Violentos Relacionados a Gênero de Mulheres/Femicídio para a América Latina, com o apoio da ONU Mulheres, da Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, da Federação de Associações de Direitos Humanos e do Governo da Espanha. O objetivo do protocolo é criar diretrizes para a investigação efetiva de mortes de mulheres, usando o conceito de feminicídio, e garantir que os Estados cumpram seus deveres internacionais em relação à garantia do direito à vida e à dignidade humana para todas e todos, conforme expresso em múltiplos diplomas internacionais, dos quais o Brasil, felizmente, é parte. AULA 3: Os protocolos de investigação de feminicídios Conforme visto, em 2009, a Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH condenou o México pelo caso “Campo Algodonero” por ausência de devida diligência das autoridades mexicanas para começar as investigações e para conduzi-las. Uma das iniciativas que auxilia os estados nacionais a superar a ausência de devida diligência é justamente a criação de protocolos de investigação de feminicídios. No caso do Brasil, por exemplo, essa necessidade já havia sido apontada no relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Brasília: Investigação da situação da violência contra a mulher no Brasil: Nesse sentido, diversos protocolos de investigação têm sido desenvolvidos em âmbitos nacionais, regionais ou mesmo no âmbito internacional, a exemplo do Protocolo de Minnesota e do Protocolo de Istambul, respectivamente, protocolos para a investigação de execuções extrajudiciais e protocolo para a investigação de casos de tortura. Com a tipificação do delito de feminicídio em países da américa latina, vários protocolos de investigação desse crime foram desenvolvidos, como ocorreu no 20 ATENÇÃO! A condenação do México nesse caso é paradigmática, pois foi o primeiro caso de responsabilização internacional de um Estado latino-americano em virtude de feminicídios perpetrados em seu território. México, Peru e Chile, destacando-se, dentre todos, o Modelo de protocolo latinoamericano de investigación de las muertes violentas de mujeres por razones de género elaborado pela Oficina Regional para América Central do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OACNUDH). Tais protocolos derivam do dever de devida diligência imposto aos Estados signatários da Convenção de Belém do Pará, conforme delineado a seguir. 3.1 O dever de devida diligência A Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher), internalizada no Brasil por meio do Decreto 1.973 de 1º de agosto de 1996, no art. 7º, b, estabelece que os Estados signatários devem atuar com a devida diligência para prevenir, investigar e sancionar a violência contra a mulher. Quanto a esse dever de atuar com a devida diligência na investigação de feminicídios, deve-se recordar que, conforme exposto anteriormente, foi justamente a falta de devida diligência que levou à condenação do Estado México pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no caso “Campo Algodonero”. Essa sentença da CIDH, textualmente, cita a violação ao art. 7º, b, da Convenção de Belém do Pará. E mais, a sentença vai além e, na parte dispositiva das medidas de satisfação e garantia de não repetição, determina a padronização dos 21 12. […] ii) a investigação deve incluir uma perspectiva de gênero; desenvolver linhas de pesquisa específicas sobre violência sexual, nas quais devam estar envolvidas as linhas de pesquisa sobre os respectivos padrões na área; ser realizada de acordo com protocolos e manuais que atendam às diretrizes desta Sentença; fornecer regularmente informações às famílias das vítimas sobre o andamento da investigação e dar-lhes pleno acesso aos arquivos, e ser realizado por funcionários altamente treinados em casos semelhantes e no atendimento a vítimas de discriminação e violência de gênero; […] 18. O Estado deve, dentro de um prazo razoável, continuar com a padronização de todos os seus protocolos, manuais, critérios de investigação ministerial, serviços especializados e a administração da justiça, usados para investigar todos os crimes relacionados com desaparecimentos, violência sexual e homicídios de mulheres, de acordo com o Protocolo de Istambul, o Manual das Nações Unidas para a Prevenção e Investigação Efetiva de Execuções Extrajudiciais, Arbitrárias e Sumárias e as normas internacionais para a busca de pessoas desaparecidas, com base na perspectiva de gênero, de acordo com as disposições do parágrafos 497 a 502 desta Sentença. A este respeito, um relatório anual deve ser apresentado por três anos. (tradução livre feita pelo autor) protocolos, critérios de investigação, serviços periciais e de entrega de justiça para combater desaparecimentos e homicídios de mulheres e dos diferentes tipos de violência contra as mulheres. veja a redação de trecho da sentença. Diversos instrumentos internacionais trazem a necessidade de uma devida investigação do feminicídio. Por exemplo, o Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas e a ONU Mulheres têm estimulado a adoção de um Modelo de Protocolo latino-americano de investigação de mortes violentas de mulheres por razões de gênero, conforme será visto adiante. Portanto, a fim de conferir concretude ao dever de atuar com a devida diligência para prevenir, investigar e sancionar a violência contra a mulher é necessário que os países signatários da Convenção de Belém do Pará, entre eles o Brasil, desenvolvam protocolos de investigação de feminicídios. Embora já existam tais protocolos em quantidade razoável de países latino- americanos, a mera importação desses documentos para a atuação policial brasileira não é suficiente, pois peculiaridades no modelo policial brasileiro criam uma demanda específica para a elaboração de protocolos nacionais, conforme será exposto adiante. 22 Saiba Mais! No ano de 2020, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP), por meio da Portaria 340 de 22 de junho de 2020, criou o Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio, com a finalidade de subsidiar e contribuir para a padronização e uniformização dos procedimentos aplicados pelas polícias civis e pelos órgãos de perícia oficial de natureza criminal dos Estados e do Distrito Federal na elucidação dos crimes de feminicídio. A ausência de um protocolo nacional ou de protocolos estaduais de investigação de feminicídios, a depender do contexto, pode contribuir para a demonstração de falta de devida diligência na persecução penal de homicídios contra mulheres, tal qual se deu com o estado mexicano. Visando a suprir essa necessidade, em 2020, o Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil (CONCPC) aprovou a resolução que estabelece o Protocolo Nacional Integrado para Investigação Criminal das Mortes Violentas de Mulheres com Perspectiva de Gênero (Feminicídios). Ressalte-se que, muito embora iniciativas nacionais sejam salutares, considerando-se a extensa área territorial do Brasil, quando comparada a outros ATENÇÃO! Na presente data, no que tange aos Estados Brasileiros, somente o Distrito Federal (2017), o Piauí (2015), o Rio Grande do Sul (2018) e Pernambuco (2018) dispõem de protocolos de investigação de feminicídio. A par disso, o estado do Rio de Janeiro conta com uma adaptação da Portaria da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro - PCERJ 620 de 7 de março de 2013. 23 países, o recomendável é que, além de um protocolo nacional de feminicídio, sejam adotados protocolos estaduais.24 Finalizando.... Nesta aula você aprendeu que: • Marcela Lagarde, antropóloga e pesquisadora mexicana, partindo do termo “femicídio”, criou a denominação “feminicídio” para se referir às mortes de mulheres em um contexto de “responsabilidade do estado na produção das mortes de mulheres”. • A discussão acerca do feminicídio somente tomou vulto na América Latina a partir dos sucessivos homicídios de mulheres em Ciudad Juarez, no Estado de Chihuahua, no México, a partir de 1993, o que culminou, em 2009, com a condenação do Estado do México pela Corte Interamericana de Derechos Humanos no caso “Campo Algodonero”. • A partir do “Caso Algodonero”, e a condenação do México, diversos países inseriram o delito de feminicídio em suas legislações. • Paralelamente a esse gradual surgimento do crime de feminicídio nas legislações dos países, diversos documentos internacionais passaram a tentar sensibilizar os países a tipificarem o delito de feminicídio. • A Lei 13.104 de 09 de março de 2015, introduziu o crime de feminicídio no ordenamento jurídico brasileiro. • Pela lei brasileira o homicídio é qualificado e reconhecido como um feminicídio quando praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. • O próprio legislador esclareceu que se considera que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: Violência doméstica e familiar e Menosprezo ou discriminação à condição de mulher. • Quanto a investigação de feminicídios, diversos protocolos de investigação têm sido desenvolvidos em âmbitos nacionais, regionais ou mesmo no âmbito internacional, a exemplo do Protocolo de Minnesota e do Protocolo de Istambul, respectivamente, protocolos para a investigação de execuções extrajudiciais e protocolo para a investigação de casos de tortura. • O Ministério da Justiça e da Segurança Pública – MJSP, por meio da Portaria 340 de 22 de junho de 2020, criou o Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos 25 Crimes de Feminicídio, com a finalidade de subsidiar e contribuir para a padronização e uniformização dos procedimentos aplicados pelas polícias civis e pelos órgãos de perícia oficial de natureza criminal dos Estados e do Distrito Federal na elucidação dos crimes de feminicídio. 26 MÓDULO II – Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio (Diligências Investigativas) APRESENTAÇÃO Conforme explicado, no ano de 2020, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública – MJSP, por meio da Portaria 340 de 22 de junho de 2020, criou o Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio com a finalidade de subsidiar e contribuir para a padronização e uniformização dos procedimentos aplicados pelas polícias civis e pelos órgãos de perícia oficial de natureza criminal dos Estados e do Distrito Federal na elucidação dos crimes de feminicídio. O Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio é justamente o objeto deste curso e, a partir daqui, será detalhado. O Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio apresenta 7 capítulos: • Capítulo 1 – Diligências Investigativas; • Capítulo 2 – Exames periciais no local de crime; • Capítulo 3 – Coleta de amostras para exames genéticos; • Capítulo 4 – Perícias médico-legais nos casos de feminicídio; • Capítulo 5 – Perícias em Tanatologia Forense; • Capítulo 6 – Abordagem papiloscópica de locais de possível feminicídio; e • Capítulo 7 – Disposições Finais. Neste módulo 2 do curso, serão abordados tão somente aqueles aspectos do Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio relativos à investigação, a saber: Capítulo 1 – Diligências Investigativas e Capítulo 7 – Disposições Finais. Os demais tópicos, que são relativos aos exames periciais, serão objeto de capítulos específicos neste curso. 27 OBJETIVOS Ao final deste módulo você será capaz de: • Conhecer os procedimentos quanto ao registro de ocorrências, em casos de crimes suspeitos de feminicídios; • Conhecer as diligências da equipe de investigação no local do crime; • Conhecer as diligências específicas do delegado de polícia; • Conhecer as diligências quando ao local de crime; e • Conhecer os procedimentos quando dos desaparecimentos de mulheres. ESTRUTURA DO MÓDULO Este módulo compreende as seguintes aulas: AULA 1: Registro de ocorrência. AULA 3: Investigação Preliminar. AULA 3: Diligências gerais aplicáveis à investigação criminal. AULA 4: Desaparecimento de mulheres. 28 Trata-se, por assim dizer, da “porta de entrada” da investigação que subsequentemente ocorrerá nas Polícias Civis ou Polícia Federal. Assim, o registro da ocorrência policial no Brasil é, em regra, o primeiro contato do órgão de polícia judiciária com o feminicídio. Saiba Mais! Embora o protocolo não tenha se debruçado acerca do local onde deve ser confeccionado o boletim de ocorrência, é recomendável que, no caso de existir órgão da Polícia Civil especializado em violência de gênero (como é o caso das Delegacias AULA 1: Registro de ocorrência O primeiro objeto do Capítulo 1 – Diligências investigativas é o registro de ocorrência, conforme se observa no Art. 1º do protocolo. A ocorrência policial é o documento que consubstancia fatos que a vítima, o comunicante ou autoridades públicas desejam ver apurados criminalmente (investigados) pelas Polícias Civis ou Polícia Federal (polícias judiciárias). Nos casos de feminicídio, a primeira orientação do Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio é que, verificado que a morte de uma mulher tenha ocorrido no contexto de violência doméstica ou com discriminação ou menosprezo à condição de mulher, a natureza feminicídio deve constar expressamente como natureza da ocorrência (idem para os casos de modalidade tentada do delito). Trata-se de iniciativa importante, pois o uso de categorias inexatas ou genéricas para classificar os homicídios de mulheres leva à ocultação ou a uma subnotificação de feminicídios. Portanto, o registro da morte de mulheres como feminicídio, além da importância de desencadear o uso do protocolo de investigação, apresenta relevo para fins estatísticos. 29 A existência de órgãos especializados, isto é, a existência de órgãos especialmente dedicados à investigação de crimes relacionados à violência contra a mulher é pressuposto para a eficácia de protocolos de investigação de feminicídios. Algumas leis de feminicídio, como por exemplo, as da Guatemala e da Nicarágua, contém normas que determinam a criação de órgãos de investigação e de persecução especialmente dedicados para casos de feminicídio. Em relação a essa especialização das unidades de apuração, no Brasil, a CPMI que investigou a situação da violência contra a mulher identificou, nos Estados Brasileiros, a existência de apenas 415 Delegacias da Mulher (DEAM) e 103 Núcleos Especializados em Delegacias Comuns. Considerando-se os 5.570 municípios existentes no Brasil, tem-se, portanto, um baixíssimo número de órgãos especializados em violência de gênero. E, sendo a existência de tais órgãos é pressuposto para a implementação de protocolos de investigação de feminicídios, conclui-se que se tem aqui um fator limitante. Com relação ao conteúdo do registro da ocorrência, o protocolo, ainda no Art. 1º, determina que ele contemple o máximo de informações possíveis sobre: Figura 5: Informações a serem coletadas Fonte: SCD/EaD/Segen. Especiais de Atendimento à Mulher - DEAM), a ocorrência policial seja registrada em tal órgão. 30 A ocorrência policial deve, se disponível tal informação, indicar se o suspeito possui relação doméstica com a vítima, ou familiar, ou de trabalho, oude amizade etc. Círculo social em que o principal suspeito está envolvido No caso de relação íntima da vítima com o suspeito, deve-se indicar a natureza desse relacionamento (namoro, casamento, relação extraconjugal etc.) e o status atual (se residem juntos por exemplo). Notícias crimes prévias relacionadas a agressões em razão de gênero aparecem associadas ao feminicídio, principalmente quando há uma separação prévia entre agressor e vítima. Natureza do relacionamento do suspeito com a vítima O histórico deve trazer informações sobre filhos da vítima e do suspeito (quantidade, nomes e idades). Informações sobre filhos Devem ser listadas no histórico as ocorrências policiais anteriores relativas à violência doméstica das quais a vítima e/ou o suspeito constem como envolvidos, devendo constar inclusive, a existência de medidas protetivas de urgência eventualmente deferidas em favor da vítima. Trata-se de medida de suma importância, pois a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito - CPMI que, em 2013, investigou a situação da violência contra a mulher no Brasil indicou que o feminicídio é o fim trágico de um continuum de violência praticada contra a mulher e que a maioria das vítimas de feminicídio sofreu violência ou abuso anteriormente pelo autor do crime. Por isso, Histórico de violência doméstica Adicionalmente, o protocolo dedica-se ao histórico da ocorrência policial que, igualmente aos dados básicos dos envolvidos, deve ser o mais completo possível. Nesse sentido, o histórico da ocorrência policial deve conter: 31 As condições do local do feminicídio (consumado ou tentado) devem ser detalhadas, indicando se tratava de via pública, local fechado, local ermo etc. Características do local Independentemente da existência de auto específico, os objetos arrecadados no local do fato devem ser listados no histórico da ocorrência policial. Objetos arrecadados no local Figura 6: Por que uma riqueza em detalhes? Fonte: SCD/EaD/Segen O motivo para essa profundidade de detalhes, como será visto no item relativo à investigação, é que no que se refere à oitiva de testemunha em casos de feminicídio, os protocolos latino-americanos indicam que devem ser ouvidas não só as no caso de vítimas já identificadas quando da notícia-crime, deve-se promover um levantamento das ocorrências policiais anteriores. 32 ATENÇÃO! De acordo com o Protocolo, em caso de notícia de falecimento de mulher sem identificação em hospitais ou demais unidades de saúde, deverá ser registrado boletim de ocorrência policial pela delegacia de polícia que tomar conhecimento da morte. testemunhas diretas, mas também pessoas do entorno familiar, entorno laboral e entorno social. Ou seja, ainda que não sejam testemunhas diretas, o delegado de polícia, a fim de elucidar a presença ou não de razões de gênero na motivação da morte, deve ouvir, colegas de trabalho e pessoas inseridas nos círculos sociais da vítima, tais como colegas de escola, vizinhos, companheiros de entidade religiosa etc. E para viabilizar essa ampla gama de oitivas, a ocorrência policial deve listar detalhadamente todos os envolvidos com a maior quantidade possível de dados relativos a cada um deles. Por fim, embora o protocolo nacional não mencione, no caso de feminicídios perpetrados com armas de fogo, deve ser pesquisada a existência de registro de arma de fogo em nome daqueles que constarem como supostos autores nas ocorrências policiais levantadas. Tal diligência é importante, pois, conforme o já mencionado relatório da CPMI, para a investigação da situação da violência contra a mulher no Brasil, 49.2% das mortes de mulheres foram perpetradas com o uso com armas de fogo. 1.1 Falecimento de mulher sem identificação em unidades de saúde ou em unidades de internação Ainda dentro da temática “registro de ocorrência”, o Protocolo Nacional, em seus artigos 74 e 75, dedica-se ao registro de ocorrência no caso de falecimento de mulher sem identificação em unidades de saúde ou em unidades de internação. 33 Segundo o Protocolo Nacional, a mesma providência deverá ser adotada no caso de mulheres institucionalizadas que falecerem e não puderem ser identificadas. 34 Em linhas gerais, pode-se dizer que a investigação preliminar vai do recebimento da notícia do fato pelas Polícias Civis ou Polícia Federal até o encerramento das diligências no local de crime. Investigação Preliminar Em seguida, inicia-se a investigação de seguimento (“seguimento”, exatamente, pelo fato de vir em seguida à investigação preliminar), que corresponde aos procedimentos investigativos e cartoriais realizados pela polícia desde o encerramento dos trabalhos preliminares até a conclusão do inquérito. Investigação de Seguimento ATENÇÃO! Dito de outra forma, no caso de “morte violenta de mulher” o protocolo determina que o caso seja considerado um feminicídio até prova em contrário, devendo o protocolo ser aplicado de pronto. AULA 2: Investigação preliminar A investigação de um crime pode ser dividida em duas fases: investigação preliminar e investigação de seguimento. Pois bem, o protocolo dedica-se à investigação preliminar, nos artigos 2º a 6º (incluindo as diligências no local de crime) e, quanto a isso, inicialmente, estabelece que, na ocorrência de morte violenta de mulher, a investigação deverá adotar, desde as primeiras diligências, o protocolo de feminicídio, cabendo ao delegado de polícia confirmar ou excluir o caso como sendo um feminicídio. Nesse sentido, por exemplo, o protocolo latino-americano de investigação de feminicídios aconselha que as diretrizes do protocolo sejam aplicadas de maneira 35 sistemática a todos os casos de mortes violentas de mulheres, inclusive no caso de suicídios e mortes aparentemente acidentais. Assim, o delegado de polícia deve tratar toda a vítima mulher como vítima de feminicídio, até que surja algo que aponte o contrário. Ou seja, o protocolo adota uma hipótese inicial para a investigação (ocorrência de feminicídio tentado ou consumado) e que pode ser comprovada ou descartada de acordo com os resultados da investigação mais adiante. Com relação a esse tema, deve ser considerada também a questão das mulheres trans. Embora o Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes não tangencie a questão das mulheres trans, é recomendável que a morte de mulheres trans também seja registrada em ocorrências policiais e seja investigada como feminicídio, posto que elas, devida a condição do sexo feminino, estão sujeitas a serem vítimas de tal delito. 2.1 Diligências da equipe de investigação no local de crime No que tange aos atos de investigação em si no âmbito da investigação preliminar de feminicídios, o Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes determina, inicialmente, que a equipe de investigação da delegacia responsável, sob a coordenação de delegado de polícia, desloque-se ao local de crime e lá tome uma série de providências. Quanto a isso, o protocolo expressamente determina que, na impossibilidade de comparecimento pessoal do delegado de polícia, ele deverá designar um investigador para orientar os trabalhos da Polícia Civil ou da Polícia Federal no local do crime. Em seguida o protocolo determina que a equipe empreenda diligências para: 36 Figura 7: Diligências Fonte: SCD/EaD/Segen A identificação da vítima, talvez seja o passo mais importante da investigação de feminicídios, pois, como se trata de uma investigação intimamente dependente do conhecimento acerca do círculo social da vítima, do ambiente doméstico em que ela vivia e de seu histórico de relacionamentos com parceiros e ex-parceiros, sem a identificação da vítima,nenhuma dessas informações pode ser alcançada. Identificar elementos que denotem violência doméstica ou familiar e/ou menosprezo ou discriminação ao sexo feminino. Trata-se de demanda que advém do próprio tipo penal do feminicídio que, para incidir no caso concreto, depende de que seja demonstrado violência doméstica ou familiar e/ou menosprezo ou discriminação ao sexo feminino. Desvelar os motivos do crime e as demais circunstâncias a ele relacionadas, trata-se de iniciativa que, mais adiante, permitirá verificar se restou ou não demonstrado violência doméstica ou familiar e/ou menosprezo ou discriminação ao sexo feminino associados à morte investigada. Com relação aos objetivos que o Protocolo Nacional demanda que sejam cumpridos, deve-se adotar o conceito de “equipe de investigação” trazido pelas “Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de 37 NA PRÁTICA Imagine o exemplo hipotético em que agentes/investigadores e escrivães, dias após o delegados, feminicídio, conseguem encontrar um suposto objeto do crime que foi escondido em local distinto daquele em que foi encontrado o cadáver. Nesse caso, essa informação levantada por delegados, agentes/investigadores e escrivães, para ser confirmada, precisa ser objeto do trabalho de peritos criminais, que irão verificar a presença de sangue e DNA no objeto; papiloscopistas, que irão colher fragmentos de impressões papiloscópicas; e médicos-legistas, que irão cotejar o objeto com as lesões verificadas no cadáver. gênero as mortes violentas de mulheres (feminicídios)”. (disponível no material complementar) De acordo com o documento, o qual cita a publicação da SENASP (2014) “Investigação Criminal de Homicídios. Caderno Temático de Referência”, deve-se romper com a formação tradicional de delegados, agentes/investigadores e escrivães e, em termos ideais, uma equipe de investigação de crimes de homicídio deve envolver, além dos três atores mencionados, peritos criminais, papiloscopistas, médicos-legistas e agentes de inteligência/análise criminal. E de fato, cite-se como exemplo, a determinação do Protocolo Nacional de que seja identificado o instrumento ou meio utilizado para causar a morte. Em diversos casos, o cumprimento desse objetivo depende da atuação conjunta de delegados, agentes/investigadores e escrivães, peritos criminais, papiloscopistas, médicos- legistas e agentes de inteligência/análise criminal. Por fim, ainda em relação às diligências da equipe de investigação no local de crime, o protocolo determina que deverá ser consignado em relatório a impossibilidade ou prejuízo do trabalho pericial, o que ocorre, por vezes, quando há por exemplo, desfazimento do local de crime por supressão de vestígios (no caso de chuvas ou ação de populares, por exemplo). 38 Tal determinação, como se pode observar, parte do pressuposto de que um relatório irá consubstanciar as diligências empreendidas no local de crime, conforme será abordado no próximo item. 2.2 Diligências específicas do delegado de polícia O Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio traz disposições específicas dirigidas ao delegado de polícia em seu § 2º do Art. 3º e no Art. 71 do “Capítulo 7 – Disposições finais”. Inicialmente o relatório é taxativo ao incumbir o delegado de polícia da tarefa de requisitar as perícias necessárias. Depois, no Art. 71, o protocolo determina que o delegado de polícia deverá promover a instauração imediata de inquérito policial. Tal procedimento visa, antes de tudo, oficializar, por meio do inquérito policial, o início das investigações. O protocolo prevê também que o delegado de polícia providencie um “relatório parcial das investigações preliminares”, contendo: 39 Figura 8: Itens que deve conter no relatório parcial Fonte: SCD/EaD/Segen Referido relatório cumpre duas funções: Figura 9: Funções do relatório Fonte: SCD/EaD/Segen 40 Saiba Mais! O Protocolo de investigação e realização de perícias nos crimes de feminicídio no âmbito do Distrito Federal, elaborado pela Polícia Civil do Distrito Federal, determina que “após as primeiras 24 horas, o delegado de polícia responsável deverá providenciar o relatório parcial das investigações preliminares, contendo descrição das diligências realizadas e dos resultados obtidos, juntando também croqui ilustrativo do local do crime aos autos do inquérito policial”. Em resumo, o “relatório parcial das investigações preliminares” encerra a investigação preliminar e, por assim dizer, prepara o terreno para a investigação de seguimento. A partir dessas funções, é possível observar que se trata de peça importantíssima na persecução penal dos crimes de feminicídio e um grande avanço na metodologia de investigações de feminicídios. Embora o Protocolo Nacional não tenha feito menção a prazos, o “relatório parcial das investigações preliminares” deve ser confeccionado tão logo a investigação preliminar se encerre, o que, via de regra, se dá com o fim das diligências no local de crime. Veja um exemplo de “relatório parcial das investigações preliminares” referente a uma investigação de feminicídio tentado da Polícia Civil do Distrito Federal. (disponível no material complementar) 41 ATENÇÃO! Conforme explicam as “Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres (feminicídios)”, na abertura da investigação criminal, podem também participar as polícias militares, bombeiros, guardas municipais, profissionais da saúde, entre outros que podem ser chamados ao local – cena do crime. 2.3 Diligências específicas no local de crime Como visto, o Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes determina que a equipe de investigação da delegacia responsável, sob a coordenação de delegado de polícia, desloque-se ao local de crime e lá tome uma série de providências. Contudo, a ação do Estado diante de um feminicídio (tentado ou consumado) não se inicia com a atuação da equipe de investigação das Polícias Civis ou da Polícia Federal. Considerando-se isso, o artigo 73 do Protocolo Nacional, estabelece que a preservação do local de crime será coordenada pela polícia civil, em conjunto com as demais forças de segurança, de forma a garantir a integridade das provas. Em razão da multiplicidade de agentes estatais, o Protocolo Nacional, na Seção III do Capítulo I, apresenta ações que se destinam a todo e qualquer agente estatal que comparecer a locais de feminicídios (consumados ou tentados). Nesse sentido, o Protocolo determina que o primeiro agente estatal que chegar ao local do crime deverá adotar as seguintes providências: 42 Figura 10: Providências a serem adotadas pelo agente que chegar ao local Fonte: SCD/EaD/Segen Esse dispositivo do CPP citado, Art. 6º, é justamente o dispositivo que traz as diligências que devem ser empreendidas pelo delegado de polícia logo que tiver conhecimento da prática da infração penal. O Protocolo é claro ao estabelecer, no Art. 72, que suas providências serão aplicadas sem prejuízo, do art. 6º do CPP. Pois bem, com essas duas providências o Protocolo determina o isolamento e a preservação do local do crime. O Código de Processo Penal, Art. 6º, traz disposição semelhante e dispõe que: Figura 11: Conservação do local de crime Fonte: SCD/EaD/Segen 43 Prosseguindo nas diligências específicas no local do crime, o Protocolo Nacional estabelece “regras técnicas de conduta” a serem adotadas pelos agentes estatais no local de crime, quais sejam: • não tocar em nada que componha a cena do crime, bem como não retirar, inserir ou modificar as posições originais que a compõem,inclusive pertences pessoais de cadáver e armas de fogo, quando houver; • não falar próximo de cadáver, manchas ou gotejamentos de sangue, bem como de instrumentos ou objetos relacionados ao crime; • não fumar, comer ou beber na cena do crime; • não utilizar sanitário, lavatório ou aparelho telefônico existente no local; • em ambientes internos, manter portas, janelas, mobiliário, eletrodomésticos e utensílios tais como encontrados, salvo o estritamente necessário para conter risco eventualmente existente; • não permitir a aproximação de animais, notadamente quando houver cadáver, bem como de qualquer pessoa que não faça parte das equipes escaladas para (...) Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; (Redação dada pela Lei nº 8.862, de 28.3.1994) II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; (Redação dada pela Lei nº 8.862, de 28.3.1994) III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; IV - ouvir o ofendido; V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura; VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações; VII - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias; VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes; IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter. X - colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016) (...) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/1989_1994/L8862.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/1989_1994/L8862.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13257.htm 44 ATENÇÃO! Contudo, o Protocolo Nacional ressalva que, se houver necessidade de prestar socorro à pessoa ou preservar a prova, algumas dessas “regras técnicas de conduta” podem deixar de ser adotadas. • a equipe de investigação deve permanecer no local de crime durante os exames periciais e manter contato com os peritos a fim de coletar as primeiras informações decorrentes dos exames periciais realizados; • deve ser informado à equipe pericial possível alteração na cena do crime, a ser considerada na realização do exame; Portanto, se houver necessidade de prestar socorro à vítima, obviamente, os socorristas devem, dentro do que for necessário para o socorro, retirar, inserir ou modificar as posições originais de vestes ou pertences pessoais da vítima. Ou ainda, para preservar a prova diante de intempéries como uma tempestade, por exemplo, objetos podem eventualmente serem retirados do local para não correrem o risco de perecer. Prevendo isso ou mesmo violações indevidas das “regras técnicas de conduta”, o Protocolo Nacional preconiza, referente as diligências específicas no local de crime, que: • impedir, na medida do possível, que populares ou mesmo repórteres fotografem o corpo da vítima antes, durante e depois da realização da perícia, prevenindo que as imagens sejam reproduzidas, preservando, desta forma, a privacidade e o respeito à memória da vítima. preservação do local e realização dos exames periciais (o protocolo determina, inclusive, que devem ser retiradas todas as pessoas que não possuam autorização para permanecer no local do crime, não sendo permitido o acesso de pessoas não credenciadas ou não autorizadas); e 45 • no relatório deve conter a descrição das diligências realizadas e dos resultados obtidos, essas primeiras informações decorrentes dos exames periciais realizados também devem constar nesse relatório; • deve conter, se possível, os nomes das pessoas que estiveram no local do crime para prestar socorro e/ou qualquer outro tipo de apoio, inclusive policiais civis e/ou militares, tal anotação, implicitamente, faz parte das diligências específicas no local de crime; • o protocolo determina que os agentes estatais devem atentar quanto à presença de crianças, adolescentes, idosos e deficientes em situação de risco no local, solicitando apoio especializado para acolhimento ou de familiares; • estabelece que nos locais identificados como local mediato do crime, cujo acesso for negado à equipe policial, o delegado de polícia deverá representar imediatamente por mandado de busca e apreensão, de modo a assegurar a coleta satisfatória das provas necessárias à apuração dos fatos; • o modelo de protocolo latino-americano de investigação de feminicídios indica que é fundamental, nas primeiras atuações, que os investigadores possam recuperar toda a informação relacionada com os feitos que precederam ou foram concomitantes ao feminicídio, tais como eventuais gravações de câmeras de segurança da residência da vítima, da residência do possível autor, de parques, centros comerciais etc. Embora o Protocolo Nacional não mencione, para além de anotar nomes das pessoas que estiveram no local do crime para prestar socorro e/ou qualquer outro tipo de apoio, a autoridade policial deve, na medida do possível, identificar todas as pessoas que se acham no lugar do fato quando de sua chegada, visto que tais pessoas, por vezes, fazem referência a dados que podem ser de importância posterior para a investigação e que acabam não sendo mais encontradas pois não foram identificadas naquele momento inicial 46 Saiba Mais! No sistema brasileiro, a decisão de abandono do local de crime cabe ao delegado de polícia, visto que a ele cabe a gestão da cena após a liberação pelos peritos criminais. 2.4 Abandono do local de crime Por fim, no que se refere ao local de crime, o delegado de polícia deve deliberar acerca do abandono do local. A maioria das publicações que se dedicam ao tema do feminicídio considera que a atuação estatal no local de crime se finaliza com a coleta dos vestígios, sem considerar que o abandono do local do crime é o elo final dos procedimentos na cena. Por “abandono do local do crime” entende-se a decisão de encerramento das diligências específicas no local de crime e a retirada da equipe de investigação do local dos fatos. Nesse sentido, o abandono do local de crime deve ser balizado a partir de um exame crítico das medidas realizadas até então e daquelas que ainda devem ser realizadas. Em relação ao abandono do local do crime, o Protocolo Nacional determina que após liberados pela equipe pericial, ao término do exame de local ou quando não houver a necessidade de exames complementares para a determinação da dinâmica do local, objetos (inclusive pertences da vítima) que possam auxiliar na investigação, tais como roupas, agenda, anotações, diário, veículo, celular, computador, mídias e equipamentos eletrônicos, devem ser recolhidos pela equipe de investigação e apresentados à autoridade policial para apreensão, observando a imperiosa necessidade de preservação da cadeia de custódia. 47 “Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentosutilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte. § 1º O início da cadeia de custódia dá-se com a preservação do local de crime ou com procedimentos policiais ou periciais nos quais seja detectada a existência de vestígio. (...)” Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte. § 1º O início da cadeia de custódia dá-se com a preservação do local de crime ou com procedimentos policiais ou periciais nos quais seja detectada a existência de vestígio. § 2º O agente público que reconhecer um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial fica responsável por sua preservação. § 3º Vestígio é todo objeto ou material bruto, visível ou latente, constatado ou recolhido, que se relaciona à infração penal. Art. 158-F. Após a realização da perícia, o material deverá ser devolvido à central de custódia, devendo nela permanecer. Parágrafo único. Caso a central de custódia não possua espaço ou condições de armazenar determinado material, deverá a autoridade policial ou judiciária determinar as condições de depósito do referido material em local diverso, mediante requerimento do diretor do órgão central de perícia oficial de natureza criminal. Conforme o CPP (Art. 158-A): Com relação a esse tema, é recomendável a leitura dos artigos 158-A a 158-F do CPP, os quais foram adicionados ao Código de Processo Penal recentemente pela Lei 13.964, de 2019. Pois bem, com respeito a essa apreensão dos objetos arrecadados no local de crime, o Protocolo Nacional destaca que nos autos de apresentação e apreensão, deverá constar o histórico e as circunstâncias em que eventuais objetos e instrumentos do crime foram encontrados. Em que pese essas preconizações do Protocolo, adicionalmente, ao deliberar acerca do abandono do local de crime, o delegado de polícia deve assegurar-se de que: 48 Figura 12: Local do Crime – Abandono Fonte: SCD/EaD/Segen. 49 ATENÇÃO! No que que se refere à oitiva de testemunha em casos de feminicídio, os protocolos latino-americanos indicam que devem ser ouvidas não só as testemunhas diretas, mas também pessoas do entorno familiar, entorno laboral e entorno social. AULA 3: Diligências gerais aplicáveis à investigação criminal Tendo se debruçado sobre o registro de ocorrência, investigação preliminar e diligências específicas no local do crime, o Protocolo Nacional passa a abordar as diligências gerais aplicáveis à investigação criminal. Na seção em que trata das diligências gerais aplicáveis à investigação criminal (Seção IV do Capítulo I), em essência o Protocolo Nacional aborda a investigação de seguimento. Nesse sentido, o protocolo elenca as seguintes diligências gerais aplicáveis à investigação de seguimento: • Compreender os elementos materiais e imateriais que permitam visualizar a dinâmica do crime, incluindo o instrumento ou meio da ação, data, horário e local imediato; • Compreender a natureza e locais das lesões apresentadas, buscando-se verificar se há indicativos de confronto físico ou de condição precedente de redução da possibilidade de defesa; • Identificar e ouvir formalmente o comunicante do boletim de ocorrência; e • Identificar, qualificar e, se possível, ouvir formalmente testemunhas, familiares, amigos, colegas de trabalho e vizinhos da vítima. Ou seja, ainda que não sejam testemunhas diretas, o delegado de polícia, a fim de elucidar a presença ou não de razões de gênero na motivação da morte, deve 50 Saiba Mais! Isso porque uma das circunstâncias mais frequentes nos casos de feminicídio íntimo é a separação ou divórcio do agressor, especialmente, quando recente. O modelo de protocolo latino- americano de investigação de mortes violentas de mulheres por razões de gênero indica que Stout, K. (1993) chegou ao percentual de 52% de feminicídios praticados após a separação, Wallace, A. (1986) descobriu que 47% dos feminicídios deram-se nos primeiros dois meses pós-separação e que 91% ocorreram após o primeiro ano. ouvir, colegas de trabalho e pessoas inseridas nos círculos sociais da vítima, tais como colegas de escola, vizinhos, companheiros de entidade religiosa etc. A oitiva de pessoas dos círculos familiar, laboral e social é importante, ainda, naqueles casos em que a autoria não é conhecida, porque os casos de agressão cometidos por conhecidos, incluindo cônjuges e parentes, alcançam o percentual de 52,5% do total de casos. No que se refere à prova testemunhal, o delegado de polícia deve, de ofício, ouvir o cônjuge ou companheiro ou parceiro íntimo (ainda que eventual) ou aqueles que em época anterior apresentavam uma dessas qualidades. 51 ATENÇÃO! Por isso, a autoridade policial deve apreender aparelhos de telefonia celular, tablets e computadores da vítima de feminicídio (e do suposto autor, caso identificado) e encaminhá-los para o órgão pericial para a extração dos dados pertinentes. Medidas importante nas diligências de um feminicídio: Figura 13: Medidas importantes nas diligências de um feminicídio Fonte: SCD/EaD/Segen. Outro passo importante da colheita de provas na seara policial é a análise dos registros telefônicos e de dados da vítima. A análise das chamadas realizadas pelos celulares da vítima e dos possíveis autores permitem estabelecer uma linha temporal que pode, eventualmente, auxiliar na determinação de quando ocorreu o feminicídio. Mais ainda, a análise de mensagens postadas ou trocadas em redes sociais, mensagens e mídias contidas em aparelhos celulares, tablets e computadores, pode ajudar a elucidar a autoria ou motivo de um feminicídio. Aliado a isso, deve o delegado de polícia representar às empresas provedoras de serviço telefônico e de serviços de internet para que forneçam informações relativas aos registros telefônicos, registros de dados e dados de georreferenciamento da vítima e, quando identificado, do suposto autor. 52 Outras medidas também devem ser verificadas, vejamos: • Verificar se há a viabilidade de elaboração de retrato falado do suspeito, manualmente ou com o uso de soluções tecnológicas; • Analisar detalhadamente a vida da vítima, incluindo os últimos atos praticados, relacionamentos amorosos e familiares, amizades, inimizades, atividades profissionais e colegas de trabalho, vícios, hábitos, histórico familiar, registros médicos, policiais, criminais, dados financeiros e todas as demais informações relacionadas que possam indicar possível linha de investigação e indicar eventual suspeito; • Buscar evidências de eventuais prejuízos morais e patrimoniais causados à vítima; • Estabelecer contatos com hospitais e outros centros médicos a fim de identificar agressores lesionados em decorrência dos fatos, quando houver suspeita nesse sentido; • Informar às centrais de comunicação sobre a descrição do suspeito ou de veículo eventualmente utilizado no crime ou para empreender fuga; • Após identificado, empreender esforços para localizar e ouvir formalmente o suspeito; • Identificar, localizar e ouvir pessoas próximas ao suspeito ou por ele referidas, que possam confirmar ou infirmar eventuais álibis ou auxiliar na elucidação dos fatos; • Caso a vítima seja socorrida, integrantes da equipe de investigação deverá comparecer à unidade de saúde, buscando informações sobre o estado de saúde da vítima e a identificação de socorristas, familiares e pessoas próximas a ela, orientando os profissionaisde saúde sobre a necessidade de recolhimento de eventuais projéteis retirados da vítima, bem como de roupas e objetos pessoais que estavam em sua posse; • No caso de sobrevivência da vítima, esta deverá ser ouvida imediatamente, sempre que possível, ainda que em áudio ou vídeo. 53 Saiba Mais! Violência simbólica é aquela que não se direciona ao corpo da mulher, mas sim contra símbolos que são importantes para a mulher, causando danos morais e psicológicos. “conforme o Mapa da Violência, 41% das mortes de mulheres ocorreram dentro de casa e em 68,8% dos atendimentos a mulheres vítimas de violência, a agressão aconteceu na residência da vítima”. Quanto a isso, novamente, deve-se ter em tela a imperiosa necessidade de preservação da cadeia de custódia sendo, novamente, é recomendável a leitura dos Arts. 158-A a 158-F do CPP. Para além da verificação de eventuais prejuízos morais e patrimoniais, deve ser verificada a ocorrência de “violência simbólica” em desfavor da vítima. Além disso, a fim de elidir eventual cifra negra relacionada ao registro de ocorrências, devem ser pesquisados os prontuários hospitalares em nome da vítima, a fim de se identificar atendimentos hospitalares que porventura não deram origem a ocorrências policiais. 3.1 Busca e apreensão no domicílio da vítima Na investigação de seguimento, deve-se abordar também a questão do domicílio da vítima. Naqueles casos em que o feminicídio não se consumou na residência da mulher, tal local, ainda assim, deve ser objeto de busca pela autoridade. O fundamento para isso é que o citado relatório da CPMI indica que: 54 ATENÇÃO! Em face disso, considerando-se que, nem sempre o local de encontro do corpo corresponde ao local do feminicídio e que a constatação de violência simbólica é elemento probatório ímpar, nos casos em que o cadáver não é encontrado na residência, a autoridade policial deve, de ofício, representar pela busca e apreensão no domicílio da vítima. Dados ainda mais contundentes, apontam que, quando existe convivência, 80% dos feminicídios ocorrem no lar. Além disso, o domicílio da vítima ganha relevância no feminicídio, porque, não raro, pode apresentar sinais de violência simbólica, tais como quebramentos de objetos, mobílias, quadros etc. 3.2 Relatório final do inquérito policial As investigações de feminicídios podem resultar em conclusões que variam de um diagnóstico diferencial, efetivamente, de feminicídio até a conclusão de que a morte não guarda nenhuma relação aparente com feminicídio, passando por quadros intermediários em que há achados típicos de feminicídio, firme relação com um diagnóstico feminicida ou relação provável com feminicídio. Figura 14: Conclusões da investigação Fonte: SCD/EaD/Segen 55 Muito embora tal peça não seja objeto do Protocolo Nacional, algumas diretrizes em relação ao relatório final do inquérito policial devem ser aqui expostas. Primeiramente, deve ficar claro que, para se alcançar o diagnóstico diferencial de feminicídio no relatório do inquérito policial, a análise do conjunto probatório não deve ser feita tal qual em um homicídio comum. No feminicídio, a análise dos elementos organizados no inquérito não deve se limitar à tríade “materialidade-autoria-circunstâncias”. Mais do que isso, a análise técnico-jurídica do delegado de polícia em relação à prova, nos casos de feminicídio, deve ser feita sob a luz da perspectiva de gênero. Segundo o protocolo de investigação ministerial, policial e pericial, com perspectiva de gênero para o delito de feminicídio da Procuradoria Geral da República Mexicana, uma investigação orientada com a perspectiva de gênero, entre outras coisas, significa: • analisar os fatos como um crime de ódio, cujas raízes situam-se nas condições históricas da violência de gênero; • abordar a morte da mulher não como um acontecimento circunstancial ou isolado, mas sim como como um crime derivado do contexto sociocultural que considera que o sexo feminino é acessório que importa menos que os valores masculinos; • evitar juízos de valor sobre o comportamento da vítima, de forma a romper com a carga cultural e social que responsabiliza a vítima pela sua própria morte, ou seja, ao invés de se lançar perguntas tais como “ela que procurou esse resultado” ou “talvez ela o tenha provocado”, deve-se analisar se existem evidências de violência os maus tratos por parte do agressor, se o agressor foi alvo de medidas protetivas, se a vítima havia buscado auxílio psicológico ou jurídico etc.; e • não justificar a violência exercida sobre a vítima a partir de linhas simplificadas, como aquelas que explicam o crime considerando que o agressor estava acometido de ciúme ou alguma patologia. 56 Para concretizar essa perspectiva na análise das provas, o protocolo latino- americano indica que o diagnóstico diferencial de feminicídio é alcançado pela valoração geral e integral dos indícios reunidos. Nesse sentido, o referido protocolo indica as seguintes circunstâncias que, se presente, constituem indícios que se trata de feminicídio: Necrópsia Uso de violência excessiva, localização da maioria das lesões em áreas vitais, uso de mais de um meio para produzir a morte, uso das mãos como meio de produzir a morte e presença de lesões antigas ou presença de problemas de saúde decorrentes de violência de gênero. Local do crime Morte perpetrada no domicílio ou em locais de uso frequente da vítima, presença de vestígios de violência simbólica. Circunstâncias Existência de separação ou fim de relacionamento amoroso, existência de prévias ocorrências policiais de violência de gênero, problemas de custódia de filhas ou filhos e existência de problemas econômicos. Vítima Necrópsia psicológica indica violência de gênero, estado de saúde dos filhos denota existência de violência doméstica e alterações psicológicas causadas por violência de gênero. Autor Apresentação espontânea, suicídio ou tentativa de suicídio e presença de elementos identificados como fatores de risco de feminicídio. Em suma, ao relatar o inquérito policial o delegado de polícia deve analisar as peças produzidas com uma perspectiva de gênero, pois esse é ponto mais importante para se elucidar se a morte se deu ou não por razões da condição de sexo feminino ou por discriminação ou menosprezo à condição de mulher. 57 Saiba Mais! Ainda que o desaparecimento de mulheres não culmine, necessariamente, com feminicídios, feminicídios são, em alguma medida, o motivo subjacente a alguns desaparecimentos. ATENÇÃO! Para dirimir qualquer dúvida, portanto, o Protocolo Nacional, expressamente, estatui que o registro de ocorrência policial desaparecimento de mulheres não deverá ser condicionado a determinado período mínimo de tempo. AULA 4: Desaparecimento de mulheres O Protocolo Nacional, na Seção V do Capítulo 1, dedica-se também ao desaparecimento de mulheres. Por causa disso, o Protocolo Nacional dedica-se, nos Arts. 10 a 13, ao desaparecimento de mulheres. A primeira determinação do Protocolo Nacional é que o registro de desaparecimento de mulheres não deverá ser condicionado a determinado período mínimo de tempo, devendo ser confeccionado assim que informado pelo comunicante. De fato, o senso comum, por vezes gira em torno da informação de que seria necessário um período mínimo de 24h de desaparecimento de uma pessoa, para que tal desaparecimento pudesse ser objeto de registro de ocorrência policial. No ordenamento jurídico brasileiro, ao menos no plano legal, não há nenhuma norma condicionando o desaparecimento de pessoas ao período mínimo de 24 horas, para que tal desaparecimento possa ser comunicado às polícias. 58 Ainda com relação a esse tema,