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PROFESSOR Dr. Éder Rodrigo Gimenes Políticas Públicas e Sociais ACESSE AQUI O SEU LIVRO NA VERSÃO DIGITAL! EXPEDIENTE Coordenador(a) de Conteúdo Maria Cristina Araujo de Brito Cunha Projeto Gráfico e Capa André Morais, Arthur Cantareli e Matheus Silva Editoração Piera Consalter Paoliello e Nivaldo Vilela Design Educacional Rossana Giani Curadoria Gisele da Silva Porto Revisão Textual Meyre Aparecida Barbosa da Silva Ilustração Andre Luis Azevedo da Silva, e Wellington Vainer Fotos Shutterstock NEAD - Núcleo de Educação a Distância Av. Guedner, 1610, Bloco 4 Jd. Aclimação - Cep 87050-900 | Maringá - Paraná www.unicesumar.edu.br | 0800 600 6360 Impresso por: Bibliotecário: João Vivaldo de Souza CRB- 9-1679 C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Distância. GIMENES, Éder Rodrigo. Políticas Públicas e Sociais. Éder Rodrigo Gimenes. Maringá - PR: Unicesumar, 2022. 240 p. ISBN 978-85-459-2336-7 “Graduação - EaD”. 1. Política 2. Ciências 3. Humanas. 4. EaD. I. Título. CDD - 22 ed. 320 FICHA CATALOGRÁFICA 02511331 Éder Rodrigo Gimenes Sempre gostei de estudar. Sou interessado por leitura e cresci sendo considerado um “menino perguntador”. A ideia de conhecer as razões pelas quais as pessoas se comportavam de determinada maneira, os motivos pe- los quais certas “verdades” populares eram tão repetidas, e como elementos, como o carnaval e o futebol, eram considerados representativos do povo brasileiro, intriga- vam-me. Contudo, podiam ser apenas curiosidades de uma criança. Cresci, estudei e segui questionador, com a necessida- de de compreender aspectos diversos do funcionamento de nossa sociedade. Procurei me especializar para conhe- cer alguns temas, como as políticas públicas, o social, o comportamento político e a participação. Estudei mais (fiz outra graduação, especializações, mestrado e doutorado) e, com as pesquisas que reali- zei, quis apresentar resultados daquilo que aprendia e “tomei gosto” por discutir e expor aquilo que analisava. A docência, antes, inimaginável, tornou-se meu objetivo profissional, a realização de um sonho. Hoje, contribuir com a formação de profissionais que são também “perguntadores” e, amanhã, serão os pró- ximos profissionais (e agentes de transformação social) me inspira! http://lattes.cnpq.br/1358973527170925 https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/15661 Olá! Você gosta de filmes ou séries? É daquele perfil de pessoas que espera até o último minuto para saber o que o conteúdo reserva ou busca trailers, spoilers e ferramentas para se informar o máximo possível antes de “embarcar”? Se você for alguém do primeiro perfil, significa que as próximas páginas de apre- sentação do livro didático da disciplina “Políticas públicas e sociais” serão rapidamente lidas, já que você está focado(a) e com tempo e disposição para realizar a leitura das unidades assim que concluir essa exposição. Se o seu perfil for o segundo, atente-se às informações sobre cada unidade. Perce- ba a potencialidade e eventual impacto sobre a sua formação, de maneira específica, mas também enquanto cidadão ou cidadã que tem contato com as políticas públicas e sociais diariamente. Aos spoilers, então: prepare-se para uma jornada em que você será constantemente provocado(a) a ter essa dupla visão sobre os temas abordados, como profissional e cidadã/cidadão. Você se deparará com questionamentos no início e ao longo de cada unidade. Muitos de nós sabem dizer algo sobre o Estado, o governo e as políticas públicas e sociais no campo da prática, das vivências, das análises e das percepções cotidianas. Contudo, você deve superar esse conhecimento prévio, afinal, tem potencial para atuar profissionalmente enquanto agente de transformação social no âmbito das políticas públicas e sociais! Prepare-se para responder às questões no início de cada unidade, pois é esperado que você seja protagonista desse processo de conformação do seu conhecimento sobre as políticas públicas e sociais. Experimente, ouse, anote, faça pesquisas prévias e se debruce sobre os temas. Reafirmando o verbo inicial do parágrafo acima: prepare-se! Mãos à obra, mão na massa! Reflita sobre as perguntas que estão nesta apresentação das nossas discussões. Busque respondê-las! POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIAIS A reflexão é essencial tanto a sua formação quanto ao desenvolvimento do seu olhar sobre as políticas públicas e sociais e os impactos delas sobre a vida de dife- rentes grupos sociais, incluindo coletividades específicas que demandam garantias e direitos sociais pontuais, além de ações, programas e projetos cujos efeitos podem ser potencializados à população de uma localidade ou esfera (município, estado ou União) como um todo. Para tanto, tome impulso para essa jornada repleta de conhecimentos, conceitos, provocações, explicações e desafios. Quanto às unidades que compõem este material didático, trataremos, primeiramente, dos conceitos e da organização do Estado e do governo, desde a clássica visão antiga até a contemporaneidade, desde o olhar mais abstrato até o caso nacional. Na sequência, exporemos os conceitos de políticas públicas, políticas sociais, políti- cas de Estado e de governo, e a interconexão delas com as agendas internacionais de entes paraestatais preocupados com o desenvolvimento das sociedades. Nas unidades três e quatro, o debate recai sobre a construção de uma política. Bus- caremos compreender como ela funciona, instrumentaliza e colabora para o resultado de uma política nas etapas de formação da agenda, de formulação de propostas, na tomada de decisão, na implementação, no monitoramento e na avaliação. Por fim, nós te provocaremos a pensar como os arranjos entre as esferas de go- verno e os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário atuam sobre o tema. O último ato desta obra didática é a apresentação da participação social como um conjunto de mecanismos relevantes ao desenvolvimento democrático do país, não apenas, mas também e especialmente, no âmbito das políticas públicas e sociais. Em cada unidade, em cada tema abordado, em cada questionamento, exemplo, provocação, podcast ou outro elemento, é importante que você se perceba não apenas nesta condição de estudante, mas também como sujeito(a) social que é impactado(a) e pode atuar (e até mesmo) operar políticas públicas e sociais. Mantenha-se atento(a) e em ação! Anote, rascunhe, questione e provoque! Busque o conhecimento! Permita-se aprender e a apreender a partir deste material didático! Quando você finalizar o estudo deste conteúdo, espero que a sensação seja a mes- ma de um filme ou série de que você gostou muito: sensação combinada entre “que pena que terminou” e “será que haverá outro volume ou temporada?”. No caso das políticas públicas e sociais, o spoiler é: esta disciplina se finda, mas o legado dela te acompanhará ao longo de sua formação e futura atuação profissional. Portanto, atente-se para outros materiais que podem dialogar com este. Perceba como o que tratamos aqui se materializa na sociedade! Lembre-se: o seu livro sempre esperará por uma nova leitura, uma nova interpre- tação sua sobre os conteúdos que aqui são sistematizados e expostos! Bons estudos! IMERSÃO RECURSOS DE Ao longo do livro, você será convida- do(a) a refletir, questionar e trans- formar. Aproveite este momento. PENSANDO JUNTOS NOVAS DESCOBERTAS Enquanto estuda, você pode aces- sar conteúdos online que amplia- ram a discussão sobre os assuntos de maneira interativa usando a tec- nologia a seu favor. Sempre que encontrar esse ícone, esteja conectado à internet e inicie o aplicativo Unicesumar Experien- ce. Aproxime seu dispositivo móvel da página indicada e veja os recur- sos em Realidade Aumentada. Ex- plore as ferramentas do App para saber das possibilidades de intera- ção de cada objeto. REALIDADE AUMENTADA Uma dose extra de conhecimento é semprebem-vinda. Posicionando seu leitor de QRCode sobre o códi- go, você terá acesso aos vídeos que complementam o assunto discutido. PÍLULA DE APRENDIZAGEM OLHAR CONCEITUAL Neste elemento, você encontrará di- versas informações que serão apre- sentadas na forma de infográficos, esquemas e fluxogramas os quais te ajudarão no entendimento do con- teúdo de forma rápida e clara Professores especialistas e convi- dados, ampliando as discussões sobre os temas. RODA DE CONVERSA EXPLORANDO IDEIAS Com este elemento, você terá a oportunidade de explorar termos e palavras-chave do assunto discu- tido, de forma mais objetiva. Quando identificar o ícone de QR-CODE, utilize o aplicativo Unicesumar Experience para ter acesso aos conteúdos on-line. O download do aplicativo está disponível nas plataformas: Google Play App Store https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/3881 APRENDIZAGEM CAMINHOS DE 1 2 3 4 5 ESTADO E GOVERNO 11 AS POLÍTICAS SOCIAIS NA CONTEMPORANEIDADE 53 93 A CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA 133 A AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIAIS 177 POLÍTICAS SOCIAIS APLICADAS 1 Estado e Governo Dr. Éder Rodrigo Gimenes Caro(a) aluno(a), para estudar políticas públicas e sociais, é imprescin- dível que se tenha algum conhecimento sobre o “espaço” e o principal ente responsável por sua consecução, de modo que esta unidade de estudos tem o objetivo de apresentar Estado e governo como elemen- tos-chave à compreensão sobre políticas públicas e sociais. Para tanto, nossa discussão perpassa o conceito de Estado sob as perspectivas de Estado de classe e de Bem-Estar Social, a definição e os aspectos estruturantes de um governo, de modo mais detalhado em termos conceituais e de funcionamento, a democracia e a caracterização de Estado e governo no Brasil. UNIDADE 1 12 O que significam Estado e governo? É um agente, e os termos são sinônimos, ou estamos tratando de elementos distintos? Definir Estado e governo importa para pen- sarmos as políticas públicas e sociais? E o que caracteriza Estado e governo no Brasil? São termos recorrentes, quase cotidianos, mas você já se perguntou o que significam ou como impactam a sua vida? Este é nosso ponto de partida nesta jornada de discussões sobre as políticas públicas e sociais. Vamos juntos? Talvez, caro(a) acadêmico(a), você pouco se lembre de ouvir os termos Estado e governo em sua vida cotidiana, mas, ao menos, durante algumas semanas, a cada dois anos, esses termos ganham destaque nos meios de co- municação, como TV, rádio, sites de notícias e redes sociais. Isso porque nos meses que antecedem e em que são realizadas as eleições, muito se mencio- na - mesmo que pouco ou nada se explique - termos como Estado, governo, democracia e políticas públicas. Esse período de ampla exposição dos indi- víduos a estes assuntos recebe até mesmo uma denominação no âmbito da Antropologia, é o “tempo da política” (KUSCHNIR, 2007). Este é nosso primeiro momento de provocações ao desenvolvimento do seu pensamento sobre o tema, então, todas as respostas possíveis são válidas, independentemente de estarem certas ou erradas, já que, ao longo desta e das próximas unidades de estudos, seu conhecimento sobre estas e outras ques- tões será conformado, e você perceberá - aos moldes da maneira como Freire (2014) define o conhecimento como tendo no cotidiano dos indivíduos uma fonte a ser considerada - que os temas que permeiam as políticas públicas e sociais estão, em alguma medida e em decorrência de distintas trajetórias e experiências pessoais e coletivas, relacionados ao nosso dia a dia. E se alguém lhe pedisse para responder às perguntas? Obviamente, estamos no momento inicial de seu contato com o conteúdo desta disciplina, e não é espe- 13 rado que você detenha conhecimento teórico para conceituar Estado e governo, saber se existem e quais as diferenças entre eles e como se organizam no Brasil. Neste momento, então, não exploraremos sua perspectiva profissional, mas enquanto indivíduo em uma sociedade política, ou seja, na condição de cidadão ou cidadã. Isso porque, mesmo que, minimamente, você tem contato com a política. Sendo assim, mão na massa! Tente responder às perguntas que abrem esta unidade de estudos a partir de sua perspectiva de cidadania, como usuário(a) de serviços públicos, como eleitor(a), como pessoa que paga impostos etc. Isso significa que suas respostas não serão erradas, então, não se prenda a julgamentos desta natureza. Reforço: é seu primeiro contato com esta dis- cussão em termos teóricos, científicos e voltados à formação profissional em nível superior, então, considere esta atividade como parte da aproximação à qual se refere a perspectiva freireana mencionada a pouco. Com suas respostas pessoais em mente, passemos ao segundo passo desta atividade. Agora, é tempo de escrever aquilo que pensou relacionando conceitos, como Estado, governo e política com seu cotidiano, suas experiências. Para tanto, considere este espaço como seu Diário de Bordo e lembre-se de retornar a ele ao fim desta unidade, afinal, esta retomada será um exercício comparativo do quanto você avançou em termos de conhecimento sobre o assunto. Para que essa retomada, ao final, seja mais profícua, não tenha pressa e seja detalhista em suas anotações neste momento, pois, conforme sua explanação for mais detalhada aqui, depois implicará maior percepção de seu avanço. DIÁRIO DE BORDO UNICESUMAR UNIDADE 1 14 O Estado – sempre utilizado com inicial maiúscula – é a entidade política má- xima a partir da qual pensamos a organização de um país e é parte da definição e constituição de um país ou nação (aqui, tomados de maneira simplista como sinônimos) junto com seu povo e seu território. Conforme Maquiavel (1976 [1512]), em sua clássica obra “O Príncipe”, o Esta- do seria o campo simbólico ou abstrato de disputa por poder, em que os interesses de grupos – posteriormente tratados por teóricos do elitismo como elites polí- ticas – encontram-se em disputa, sendo aquele (no singular, no caso específico do Príncipe, a quem Maquiavel escreveu seu tratado com conselhos) ou aqueles (pensando elites como conjunto relativamente homogêneos de indivíduos) que ocupa(m) o poder e fará(ão) o possível para manter sua condição e aqueles que estão à margem do poder, porém em condição de enfrentamento, ou tentativa de alcançá-lo farão também o possível para atingi-lo, independentemente, até mesmo, a depender de condições e/ou situações, de como esta busca venha a ferir preceitos, ou provocar efeitos negativos à sociedade. Nesta discussão que busca estabelecer interlocuções com o tema das polí- ticas públicas e sociais, interessa-nos, especialmente, olharmos para o Estado e sua composição a partir de elites políticas e econômicas, tanto porque, não raras vezes, ao longo da História – e, inclusive, na atualidade – é recorrente identificar- mos que as lideranças políticas, os políticos eleitos e aqueles que nomeiam para a gestão do Estado fazem parte de grupos econômicos abastados, quanto porque as políticas públicas, em geral, e também as políticas sociais, especificamente, são elaboradas tendo em vista impactos de natureza econômica – não apenas, mas também e com relativa expressividade e preponderância. 15 Isto posto, uma interpretação clássica acerca do conceito de Estado sob a perspec- tiva de elites político-econômicas encontra-se nos escritos de Marx em diferentes obras, como “O Manifesto Comunista” (1965 [1848]) escrito com Engels, “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” (1994 [1852]) e “Crítica da Economia Política” (1965 [1859]). Com distintas análises desenvolvidas especialmente nestas obras, mas também presentes em outros escritos e em textos de autores que, desde o século XIX, partem de sua teoria para compreender o Estado e sua relação com a socie- dade, Marx assume o pressuposto de que o Estado, desde que estabelecida uma sociedade de classes, não é um Estado voltado aos interessesde todos os grupos, mas um Estado de classe que serve a classe dominante. Sobre tal afirmação, cabem três considerações. Primeiro, ao falarmos sobre uma sociedade de classes a partir de Marx, precisamos compreender, caro(a) estudante, que o economista político clássico estabeleceu que, no Estado liberal – definido por características como pre- missa econômica do capitalismo pautado pela exploração de mão de obra com vistas ao lucro e redução do papel do Estado, para a menor interferência possível em questões com impacto sobre o funcionamento da economia – existem duas classes sociais, a burguesia e o proletariado. A burguesia compreende os detentores dos meios de produção, indivíduos com maior poder aquisitivo e que eram proprietários de máquinas e fábricas, ao passo que o proletariado correspondente aos trabalhadores, grande massa da população que não dispõe de recursos próprios suficientes para a garantia de manutenção financeira de suas necessidades e vende sua força de trabalho aos burgueses em troca de um pagamento. EXPLORANDO IDEIAS Esta relação entre burgueses detentores dos meios de produção que precisam de operários para a fabricação de bens e trabalhadores inseridos na indústria como insumo no processo produtivo foi estabelecida de maneira desigual e explora- dora, uma vez que os trabalhadores não recebem o valor equivalente à riqueza que ajudam a agregar àquilo que produzem, mas valores mínimos à garantia de sua subsistência. Isso faz com que os burgueses detenham cada vez mais recursos financeiros e condições de ampliar seus meios de produção e, em contrapartida, o proletariado mantenha sua condição de possuidor apenas de sua mão de obra. Eis aí, para o autor, o que demandaria a necessidade de organização dos traba- lhadores com vistas à modificação dessa condição, a luta de classes. UNICESUMAR UNIDADE 1 16 Em segundo lugar, tem-se que, historicamente, o poder políti- co estava concentrado entre os grupos com maiores recursos econômicos. Nos primórdios da organização política grega, por exemplo, as discussões e deliberações na Ágora eram realizadas por cidadãos que, entre outras características, eram letrados, de- tentores de posses e com tempo livre para participar dos debates. Esta condição foi teorizada pelos autores clássicos do elitismo Michels (1982), Mosca (1992 [1896]) e Pareto (1984), que, basi- camente, determinaram a existência de dois grupos com distintas nomenclaturas nas sociedades: as elites e a massa. As elites seriam formadas pelos governantes e aqueles que detinham condição econômica e social semelhante, sendo um grupo pequeno e relativamente que, ainda que disputasse os postos de poder, defendia valores que culminaram na manu- tenção da condição de disparidade com relação à massa. Por sua vez, a massa compreenderia os governados, dominados, política e economicamente, pelo outro grupo, que, dificilmen- te, ascenderam à condição de poder por se tratar de um grupo muito mais numeroso, com menor conhecimento e condições de organização diante das múltiplas necessidades e sua latên- cia, já que vivem em condição de subsistência. Ante a estes aspectos, a terceira consideração é de que o Es- tado Moderno seria um Estado de Classe que age conforme os interesses da classe dominante, ou seja, o Estado é um Estado de classe burguês. Esta máxima é tão expressiva que Codato e Peris- sinotto (2011) afirmam se tratar de uma súmula da teoria geral do Estado e do poder em Marx, ao que n’ “O Manifesto Comunista” é asseverado como o Estado sendo constituído como um poder político organizado por uma classe para a opressão de outra. Tal argumento é, por exemplo, uma importante base teórica a conformar o estabelecimento de uma profissão e de uma corrente interpretativa e de intervenção no campo das políticas públicas e sociais, quais sejam: assistentes sociais e o campo do conhecimento 17 em Serviço Social, respectivamente. Ainda que não seja nosso intuito neste material didático discutir os fundamentos da área, cabe sinalizar que se tem na contraposição entre capital e trabalho em decorrência da luta de classes o ponto de partida para o estabelecimento da assistência social e seus desdobramentos diante de inúmeras ex- pressões da questão social. Estas se materializaram e se manifestam a partir da contra- dição entre os interesses, as demandas, os esforços e os reconhecimentos relacionados à burguesia (os capitalistas) e ao proletariado (os trabalhadores ou operariado). Isto posto, Marx e Engels (1965) afirmaram que o Estado moderno seria um comitê voltado ao gerenciamento de negócios comuns à classe burguesa, no sen- tido de que se trataria de um Estado capitalista que administraria os interesses da burguesia por ser essa classe que controlaria o Estado. Para os autores, inclusive, a superação desse Estado burguês seria possível apenas por meio de uma revolução operária, que se expropria os meios de produção da burguesia em favor do coletivo, da sociedade como um todo, já que o interesse da classe burguesa, embora mani- festado como “interesse geral”, seria um interesse político na manutenção da ordem material de ocupação de condição privilegiada pela elite política e econômica. NOVAS DESCOBERTAS Título: Marxismo como ciência social Autores: Adriano Codato e Renato Perissinotto Editora: Universidade Federal do Paraná Sinopse: a compilação dos textos que compõem esta coletânea está bem longe da busca do marxismo puro e duro ou do “verdadeiro Marx”. Aqui se deixa de lado a política revolucionária e os pouquíssimos escritos que se incumbiram de falar do mundo pós-capitalista e da estratégia des- sa reengenharia social. Os ensaios reunidos nesta obra pretendem tomar o pensamento de Marx como uma ciência social normal. Tal postura implica numa compreensão diferente dos textos canônicos, mais interessada nas suas operações analíticas do que na monumental parafernália teórica so- bre a qual se apoiam. Além disso, assume, para todos os efeitos, que os postulados do marxismo devem ser entendidos como hipóteses, não como princípios. Só assim os estudos marxistas conseguirão deixar de ser o que frequentemente têm sido: ilustração de teoria. UNICESUMAR UNIDADE 1 18 Avançando nesta perspectiva interpretativa, exploramos as relações entre Estado e sociedade a partir do texto clássico de Joel Migdal, “The state in society: an approach to struggles for domination”, em que o analista político afirma que Estado e sociedade se constituem em diferentes forças sociais cujas interações conduzem a também diferentes padrões de dominação, de- terminados por meio das principais lutas propagadas pelas múltiplas arenas de dominação e de oposição existentes no ambiente social. Para o autor, diferentes respostas dentro do Estado indicam que não po- demos simplesmente supor que a sociedade, como um todo e de modo geral, age de maneira racional e coerente ou ainda que siga um conjunto determi- nado de interesses. Assim, a partir das diferentes relações estabelecidas entre Estado e sociedade por conta de necessidades, conflitos e acordos ocorrem interações entre as referidas forças sociais que, conforme Migdal (1994), aca- bam por remodelar tanto o Estado quanto a sociedade. Neste cenário, desde o fim da II Guerra Mundial, as estruturas estatais se tornaram o centro de uma intensa discórdia acerca da forma como as sociedades devem lidar com sua inserção e integração na economia mundial. Entretanto tais lutas não ocorrem apenas por conta da política econômica externa, mas tratam, 19 fundamentalmente, da essência de como tais sociedades são e da maneira como deveriam ser constituídas, ou seja, são discussões cuja pauta se compõem das normas, regras, regulamentos, leis, símbolos e valores dos Estados. Para o autor, o papel do Estado é, em si, objeto de luta, conforme evidenciado desde Marx até as discussões sobre modelos democráticos e seus desdobramentos em políticas públicas e sociais – temática que perpassa, portanto,todo este material didático. Na verdade, as definições formais do Estado tendem a enfatizar sua natureza institucional, suas funções e seus recursos à coerção. O centro de tais definições consiste na autoridade do território reclamado pelo Estado e do grau em que suas instituições são dominadas tanto pelas leis e regras quanto pela coerção, quando necessária. Em suma, segundo Migdal (1994), no mundo moderno o “Estado-nação” é a única forma de unidade política reconhecida e autorizada. Entretanto o Estado não se constitui em uma entidade fixa ideológica, uma vez que é dinâmico e formado por conjunto de metas constantemente alteradas por conta dos grupos e forças sociais envolvidos em sua constituição. O engajamento de tais grupos e forças sociais ocorre tanto por meio do contato direto com repre- sentantes formais, na maior parte das vezes os legisladores, quanto pela relação estabelecida entre partidos políticos e o próprio Estado. Assim, as alterações que fazem do Estado uma entidade ideologicamente dinâmica se dão por conta da resistência oferecida por outras forças sociais aos projetos propostos e implementados pelo poder estatal e pela incorporação de grupos no processo de organização do Estado, por meio da promoção de mu- danças em suas bases sociais e ideológicas. A formulação da política no âmbito estatal, na verdade, se constitui em resultado desse processo dinâmico, já que re- sulta das metas dos líderes superiores do poder estatal ou do processo legislativo cujos produtos dos trabalhos podem ser modificados por outras forças sociais alheias ao Estado, que não, raras vezes, influenciam até mesmo a agenda do Es- tado e podem alterar, inclusive, a própria natureza do Estado (MIGDAL, 1994). No século XX, a organização do Estado constituiu-se em fator-chave na luta pela dominação, uma vez que houve situações em que as iniciativas do Estado provocaram intensas lutas sociais, houve momentos em que o Estado defendeu o desenvolvimento econômico e a redistribuição dos recursos – o Welfare State, que abordaremos ainda nesta unidade de estudos – e, ainda, situações em que sua agenda teve como principal objetivo preservar os pa- drões existentes de dominação econômica. UNICESUMAR UNIDADE 1 20 Segundo Migdal (1994), a maioria dos líderes políticos têm defendido a pri- mazia do Estado, privilegiando grupos sociais poderosos cujos líderes estatais são aliados e as organizações dos grupos dominantes, como mercados e igre- jas. No entanto busca-se um papel de controle direto pelo Estado da totalida- de dos assuntos que dominam sua agenda para que possam ser impostos os sistemas próprios de identificação do Estado e os limites de comportamento corretamente aceitáveis aos cidadãos, abrangendo questões que tratam desde as relações trabalhistas até uniões sexuais. Migdal (1994, p. 16) aborda, ainda, por meio de uma Antropologia do Estado, uma estrutura de desagregação dele, dividindo-o em quatro níveis, diferentes entre si de maneira acentuada quanto aos tipos de pressões que en- frentam por parte de componentes de outros Estados e, também, de atores não-estatais. Numa classificação crescente em termos hierárquicos, o autor denomina tais níveis como: 1) the trenches; 2) the dispersed field offices; 3) the agency’s central offices; e 4) the commanding heights – que, em tradução livre, poderiam ser denominados como 1) as trincheiras, (2) os serviços dispersos de campo, (3) a agência central de serviços e (4) os altos postos de comando. Segundo tal classificação, as trincheiras são compostas pelo grupo de fun- cionários que executa as diretivas do Estado, como os cobradores de impostos, a polícia, os professores, os soldados e outros burocratas cuja missão é aplicar as regras e regulamentos determinados pelo Estado, tendo contato direto com os cidadãos aos quais as políticas públicas se destinam. Os supervisores tendem a estar distantes dos indivíduos que atuam nas trincheiras, uma vez que se encon- tram, geralmente, nas capitais ou áreas expoentes regionais. Os serviços dispersos de campo são órgãos regionais e locais que têm por função o retrabalho de organização das políticas públicas e das diretrizes estatais para o nível local e, ainda, são responsáveis pela formulação e implementação de políticas locais. Tal nível agrupa os gabinetes, os órgãos legislativos, os tribunais e as unidades militares e policiais que trabalham, exclusivamente, em territórios delimitados dentro do território maior reivindicado pelo Estado como um todo, cabendo-lhe importantes decisões acerca da apropriação local dos recursos ca- nalizados por meio dos ministérios nacionais e obtidos localmente. Desta forma, os serviços dispersos de campo sofrem maior propensão ao enfrentamento de forças sociais regionalmente organizadas com relação às trincheiras e sofrem intervenção direta do capital também em maior intensidade. 21 As agências centrais de serviços dizem respeito aos centros nervosos, “nerve centers” conforme Migdal (1994, p. 16), “onde são formuladas e promulgadas as políticas nacionais e onde os recursos para sua implementação são distribuídos”. Essas agências são compostas, tecnicamente, pelos principais líderes políticos, envolvidos, muitas vezes, em intensas negociações com outros líderes e alvos de influência de grandes grupos de interesse bem organizados em nível nacional. Por fim, os altos postos de comando encontram-se no topo da escala e repre- sentam as lideranças executivas. Conforme Migdal (1994), tais líderes dependem dos níveis mais baixos, hierarquicamente para a totalidade de suas atividades, desde a cobrança de impostos até a manutenção da ordem e se constituem em pontos de pressão diante do conjunto de grandes forças nacionais e internacionais capazes de influenciar lideranças de mesmos postos de comando. No âmbito da sociedade, as lutas têm ocorrido, muitas vezes, visando à defini- ção dos responsáveis pelo estabelecimento de procedimentos numa disputa para- lela à concorrência no espaço estatal pelo desenvolvimento de políticas públicas dentro da estrutura legítima da sociedade. Tal situação dá-se por conta do forta- lecimento da democracia e pela oportunidade de mobilização dela decorrente, que abriu caminho para novos grupos e forças sociais, especialmente aqueles advindos das camadas mais baixas e média-baixa da sociedade cuja participação no cenário político sofreu uma ampliação substancial. UNICESUMAR UNIDADE 1 22 Segundo Migdal (1994), o resultado deste processo é que em vez de proporcionar soluções de longo prazo para a gestão de conflitos, a democracia tem, cada vez mais, facilitado a criação de políticas públicas e sociais fragmentadas, contribuindo para o baixo crescimento dos quadros institucionais, nos quais a concorrência é crescente. Nesse sentido, as forças sociais se constituem em poderosos mecanismos para o comportamento associativo na sociedade e incluem as organizações formais e informais, bem como os movimentos sociais, incluídos aqueles que se mantêm unidos por conta de objetivos, motivações e ideias comuns. É necessário, entretanto, lembrarmo-nos de que as forças sociais não operam no vácuo social. Além da contestação sobre a política governamental, lutas, coligações e acomodações ocorrem e podem transformar, assim como reforçar, a capacidade de uma força social para atingir seus objetivos, já que a base social e ideológica de determinada força social pode sofrer alterações radicais em virtude dos recursos existentes e, ainda, como resultado de suas interações em uma arena social. Diante do exposto, Migdal (1994) afirma que há limites para a atuação do Estado, mas afirma também que seu poder e sua autonomia não devem ser su- perestimados, uma vez que o Estado tem necessidade de buscar a afirmação das regras e normas sociais por ele implementadas junto aos demais atores e forças sociais, bem como determinar a quem tais regras serão impostas, já que a domi- nação estatal não se dá apenaspor meio da coerção, mas também pela hegemonia exercida pelo Estado por conta das referidas regras estabelecidas. Nesse sentido, a implementação de políticas públicas e sociais resultaria do en- gajamento, ou por, não raras vezes, da disputa entre o Estado e os grupos e as for- ças sociais, de modo a promover transformações nas concepções, originalmente, determinadas pelo Estado, tornando tais políticas mais próximas às necessidades sociais dos grupos ou forças em questão e destoantes daquelas políticas definidas pelos tomadores de decisão dos altos postos de comando da classificação hierárquica em níveis descrita anteriormente. Esta perspectiva tem relação com o fato de o libera- lismo negar a política social cujo surgimento tem relação direta com as mobilizações da classe trabalhadora e culminou em outro modelo econômico para pensarmos e compreendermos o Estado, o Welfare State, ou Estado de bem-estar social, o qual é abordado neste material didático a partir dos escritos de Behring e Boschetti (2011). 23 Segundo as autoras, entre o fim do século XIX e meados do século XX, o libe- ralismo se estruturou baseado no princípio do trabalho como mercadoria e do mercado se autorregular, baseado na tese de que não seria necessária a interven- ção do Estado em questões econômicas, já que o próprio mercado maximizaria os benefícios aos homens - o que omitia do discurso o fato de que esses benefícios não se estenderiam a todos os homens, mas aos capitalistas, a burguesia. Isto pos- to, Behring e Boschetti (2011) apontam como elementos essenciais do liberalismo o predomínio do individualismo, que se maximiza frente ao bem-estar coletivo e adota a perspectiva de que as necessidades humanas básicas não precisam ser supridas a todos, e o predomínio da liberdade e competitividade, que naturaliza a miséria e defende o Estado mínimo com políticas sociais agindo enquanto paliativos, pois estimulariam o ócio e o desperdício. “ A mobilização e a organização da classe trabalhadora foram deter-minantes para a mudança da natureza do Estado liberal no final do século XIX e início do século XX. Pautada na luta pela emancipação humana, na socialização da riqueza e na instituição de uma socia- bilidade não capitalista, a classe trabalhadora conseguiu assegurar importantes conquistas na dimensão dos direitos políticos, como o direito ao voto, de organização em sindicatos e partidos, de livre ex- pressão e manifestação (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 63-64). Todas as conquistas sociais nesse sentido, que acabaram por se desenvolver, es- pecialmente após a Segunda Guerra Mundial, têm como base a organização e a luta social de movimentos de trabalhadores, que, posteriormente, se prolifera- ram e expandiram entre outros segmentos de movimentos sociais, sobre o que as autoras afirmam que a classe trabalhadora pode não ter conseguido instituir uma nova ordem social, mas sua luta contribuiu, expressivamente, à ampliação dos direitos sociais ao questionar e tencionar o papel do Estado. O contexto pós-guerra, de um mundo devastado e sociedades em reconstru- ção e/ou reordenação social e de valores, para além da questão política e econô- mica, favoreceu uma aliança entre as classes sociais, em que os burgueses acena- UNICESUMAR UNIDADE 1 24 ram com alguma abertura às políticas sociais e os trabalhadores amenizaram sua defesa pela socialização dos meios de produção, o que permitiu o estabelecimento de políticas sociais abrangentes e universalizadas, com base na cidadania e no direcionamento de recursos à expansão dos benefícios sociais. Eis a origem, sinte- ticamente falando, do Welfare State, que não surgiu na metade do século passado, mas alcançou destaque e disseminação das nações naquele período. Este Estado de bem-estar social caracterizou-se por alguns aspectos con- textuais, de modo que houve crescimento do investimento público em políticas sociais especialmente nos países europeus, combinado com alteração na compo- sição etária das populações, com efeito sobre a força produtiva e os gastos com aposentadorias e saúde. O desenvolvimento deste modelo de gestão econômica e social do Estado, portanto, contrapunha-se ao liberalismo por materializar a preocupação com a população a partir do investimento público em políticas sociais, como alimentação, saúde, educação e moradia, por exemplo. Esta contra- posição ao liberalismo e ao livre mercado impactava o acesso dos trabalhadores às políticas, por meio do acesso a direitos sociais. 25 Para tanto, devemos compreender a importância do governo ao funcionamento do Estado e, de maneira mais detalhado, o governo democrático, suas instituições e especificidades, afinal, vivemos sob tal regime e sua futura atuação, ao menos no que se refere às políticas públicas e sociais, demandará contato com agentes, organismos e burocracias atinentes à democracia. Segundo o verbete apresentado por Levi (2010, p. 553), no “Dicionário de Política”, considerando uma conceituação de linguagem corrente, “ [...] pode-se definir Governo como o conjunto de pessoas que exer-cem o poder político e que determinam a orientação política de uma determinada sociedade. É preciso, porém, acrescentar que o poder de Governo, sendo habitualmente institucionalizado, sobretudo na sociedade moderna, está normalmente associado à noção de Estado. Nesse sentido, caberia as definições de dois conjuntos de atores sociais rele- vantes: os governantes, aqueles que regem o funcionamento do Estado, e os governados, sujeitos ao poder instituído. Contudo o mesmo autor destaca haver uma segunda concepção, mais próxima à realidade dos Estados mo- dernos, a qual considera como governo não apenas o conjunto de atores que detêm o poder de dirigir o Estado, mas também o complexo de órgãos insti- tucionais onde o poder se desenvolve. Tais instituições podem configurar-se de maneiras distintas conforme o regime político instituído, de modo que tais aspectos serão abordados nas próximas seções deste estudo. O funcionamento do governo pode ocorrer de maneira mais ou menos autô- noma com relação aos indivíduos, os governados. Em outras palavras, significa que, conforme sua estrutura, um governo pode buscar aproximação ou distancia- mento com relação à população, bem como atender, ou ignorar suas necessidades e demandas, ou mesmo permitir, ou negar, a possibilidade de manifestação e par- ticipação política e social. Conforme compõem sua estrutura, é possível definir a origem da força de um governo (e, por conseguinte, de um Estado): o consenso e o apoio popular ou a imposição e a coerção sobre a população. Isso significa que um governo seria resultado da junção de, ao menos, três aspectos, quais sejam: a forma de sua constituição, o sistema ou regime de fun- cionamento e de instituições que correspondem à prática de governo. Passemos, então, caro(a) acadêmico(a), à compreensão de cada um desses três aspectos. Em UNICESUMAR UNIDADE 1 26 se tratando das formas de governo, estas remetem aos modelos institucionais pelos quais ocorre a administração política de um Estado e sua sociedade, mais especificamente com relação ao exercício da chefia do Estado. Assim sendo, os dois modelos mais recorrentes de formas de governo nas sociedades contempo- râneas são o republicanismo e a monarquia. Conforme Matteucci (2010), o termo república corresponde à forma de go- verno na qual o posto de chefe de Estado pode ser ocupado por um indivíduo ou por um conjunto, desde que eleito(s) pelo povo, seja de maneira direta (eleições com votos individuais) ou indireta (em assembleias primárias ou representati- vas). De modo geral, o objetivo de uma república é a gestão dos bens de interesse público com vistas ao bem-estar da população. Em termos práticos, tal forma de governo varia conforme sua combinação com o regime político em vigor, sendo que, de maneira sintética, é possível considerar três modelos de práticas governa- mentais associados a essa forma de governo, quais sejam: repúblicaaristocrática, república presidencialista e república parlamentarista. Ao analisarmos o desenvolvimento das repúblicas na atualidade, verificare- mos que, nos últimos séculos, diversos países alteraram sua forma de governo, como o próprio Brasil - sobre o que trataremos ainda nesta unidade de estudos - no fim do século XIX. Sobre as repúblicas presidencialistas, caso do Brasil, é importante identificar se podem ser caracterizadas como semipresidencialistas ou plenas, sendo que repúblicas semipresidencialistas são caracterizadas pela existência de presidentes e de primeiros-ministros, ainda que caiba ao primeiro a autoridade executiva genuína e repúblicas plenas são aquelas em que os pre- sidentes são chefes do Poder Executivo e também respondem pelo governo, ou seja, acumulam os cargos de chefe de Estado e de chefe. A outra forma de governo, a monarquia, caracteriza-se principalmente pelo fato de que seu chefe de Estado é um monarca, conhecido como imperador ou rei, que tem poderes absolutos e exerce o cargo de maneira vitalícia, ou seja, até sua morte ou sua abdicação. Em qualquer dos casos, seu sucessor advém de sua linhagem familiar direta por hereditariedade, de modo que não há realização de eleições para chefe de Estado. Nesse sentido, a forma de governo monárquica se caracteriza pelo poder absoluto do chefe de Estado sobre o povo e sobre o país e pela ausência de responsabilização política do monarca, que não necessita prestar esclarecimentos ao povo ou a qualquer instituição nacional sobre suas ações. Isso significa, também, que são governos em que se destaca a preparação do herdeiro 27 ao trono para ser rei, como noticiado por décadas, por exemplo, sobre a educação do príncipe William, no Reino Unido. Os governos monárquicos foram mais comuns ao longo da Idade Média (séculos V a XV) e da Idade Moderna (fim do século XV ao século XVIII), ca- racterizados pelo regime absolutista como modelo de gestão. Entretanto tais mo- narquias declinaram a partir da Revolução Francesa (1789), marco também da passagem da Idade Moderna à Contemporânea, de modo que “[...] na atualidade são poucos os países que ainda utilizam esta forma de governo, todavia, os que ainda a mantêm conferem poucos poderes ao monarca” (FARIA, 2017, p. 27). Ante ao exposto, cabe-nos destacar que a grande maioria dos Estados nacio- nais da atualidade adotam a república como forma de governo, sendo que apenas em torno de quatro dezenas de países podem ser classificados como monarquias ao redor do mundo. Avançando ao segundo aspecto sobre governos, temos os sistemas de governo, que dizem respeito às maneiras como o poder político é exercido no âmbito de um Estado, ou seja, como os governos se organizam. Em oposição, existem sistemas parlamentaristas e presidencialistas. O parlamentarismo é o sistema de governo no qual há distribuição de poder entre Executivo e Legislativo, cabendo ao segundo proporcionar a sustentação política do governo, seja de maneira direta seja indireta. Enquanto o chefe de Es- tado representa a sociedade, o Legislativo é composto por membros vencedores das eleições e, portanto, representantes do povo, sendo que o primeiro-ministro é escolhido entre os eleitos pelo partido que obteve o maior número de assentos. UNICESUMAR UNIDADE 1 28 O primeiro-ministro é considerado chefe de governo e, portanto, responsável pela gestão pública. São exemplos de países com diferentes formas de governo e que adotam o sistema parlamentarista, a República Federal da Alemanha e a monarquia no Reino Unido. De modo antagônico ao parlamentarismo, temos o presidencialismo, que, conforme o nome evidencia, é centrado na figura do presidente, o agente político que concentra as funções de chefe de Estado e de chefe de governo, o que realiza, por meio do comando do Poder Executivo, de modo que os Poderes Legislativo e Judiciário gozam de independência para suas atuações. Ao Executivo, cabe apli- car as leis aprovadas e gerenciar a máquina pública, para o que conta tanto com servidores e gestores públicos concursados quanto com ministros, secretários e outros ocupantes de cargos nomeados para contribuir à consecução do governo. Considerada a autonomia entre os Poderes, não é possível ao Legislativo demitir o presidente ao longo de seu mandato, salvo em condições de descum- primento de deveres ou incorrência de proibições estabelecidas em lei, sendo que a vontade da população, representada pelo resultado das eleições, deve ser soberana e legítima. Atualmente, a maioria dos países ao redor do mundo adota o presidencialismo como sistema de governo. NOVAS DESCOBERTAS Houve, no Brasil, em 1993, um plebiscito para que a população ex- pressasse suas preferências com relação à forma e ao sistema de go- verno, de modo que deveriam escolher entre monarquia ou república e entre presidencialismo ou parlamentarismo. Informações estão dis- poníveis no Qr Code oficial do Tribunal Superior Eleitoral. O terceiro aspecto sobre o governo a ser exposto diz respeito aos regimes políticos, que se caracterizam pelo conjunto de leis e instituições que conformam a organização dos Estados e a maneira como ocorre o exercício do poder com os cidadãos, ou seja, os regimes políticos determinam a relação entre governantes e governados. Nesse senti- do, os regimes políticos são definidores das maneiras como as formas e os sistemas de governo operam, uma vez que determinam aspectos como a centralização ou distribui- ção do poder, a repressão ou ampliação de liberdades individuais e políticas, a política interventora ou liberal do Estado na economia e a composição do arcabouço jurídico. https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/17283 29 “ Em linhas gerais, os regimes políticos expressam a complexidade existente nas instituições políticas dentro de uma determinada so-ciedade e/ou Estado, compondo-se por um ordenamento jurídico mediante a produção de princípios e normas que o institucionali- zam e que regulamentam o exercício do poder pelo Estado, bem como as relações jurídicas entre o Estado e seus cidadãos e entre o Estado e os Estados estrangeiros (FARIA, 2017, p. 9). Perceba, caro(a) estudante, que diferentes tipos de regimes políticos existiram no decorrer do tempo, sendo que os mais destacados são o absolutismo, o autorita- rismo, o totalitarismo, o regime ditatorial e a democracia. Regimes absolutistas existiram, especialmente, em países europeus, nos séculos XVI a XVIII, caracterizados pela concentração do poder atrelado ao Rei, de modo que se tratou de monarquias onde o Estado e o Rei eram tratados como uma simbiose, ou seja, sem uma separação do ente político-jurídico e a figura de seu governante. Por isso, foram governos repressivos e violentos, não abertos a questionamentos e contestações, porém altamente interventivos em questões em diferentes áreas, da política à economia e religião. No século XX, emergiram governos caracterizados pelo autoritarismo, to- talitarismo e ditaduras. Nos regimes autoritários, há combinação entre poder concentrado entre uma pequena elite política não eleita, com imposição de obediência às leis e consequentes apatia e despolitização dos cidadãos. Já o totali- tarismo é pautado pela concentração do poder em um indivíduo, o qual controla o Estado de maneira rígida e submete os cidadãos à condição de subordinação total, uma vez que o Estado goza de poder absoluto sobre os âmbitos da sociedade, até mesmo a individualidade do povo. Nesse regime, observa-se a existência de uma ideologia oficial, que é imposta à população e se torna coletiva, bem como a repres- são a organizações políticas e a permanência de partido único. Por fim, destaque-se a forte repressão que mantém a subordinação dos indivíduos ao governo. Ditaduras são regimes políticos em que ocorre a concentração do poder, seja na figura de um indivíduo ou de um grupo político, de modo a desconsiderar a divisão dos poderes e a exercer opressão às manifestações políticas que questionamou se opunham a esse poder político instituído, desde protestos de rua e publicações, até sindicatos e partidos políticos, considerado, também, o forte controle dos meios de comunicação. Ditaduras são regimes em que a manutenção da ordem ocorre pelo con- trole das Forças Armadas e os direitos civis e políticos dos indivíduos são suprimidos. UNICESUMAR UNIDADE 1 30 Ainda que tais regimes políticos apresentem conjuntos de características com alguma similaridade, há distinções entre as maneiras de exercício do poder e sua concentração, bem como nos níveis de censura e repressão da população e intervenção do Estado em campos, como a religião e a economia. Diante deste conjunto de modelos, é perceptível a distinção que cabe ao regime democrático. O termo democracia tem origem grega e significa go- verno do povo (demo = povo e cracia = governo), de modo que se constitui em um regime político no qual a soberania é exercida pela população, que elege representantes por meio de eleições. Assim, conforme Dahl (1997), um governo democrático seria aquele responsivo aos cidadãos, ou seja, que oferece respostas às necessidades e às demandas dos cidadãos, os quais de- vem ter oportunidades de formular e tornar públicas as suas perspectivas e opiniões tanto individual quanto coletivamente, além de alguma garantia de que o governo considere, mesmo que minimamente, essas percepções quando da elaboração de políticas públicas e sociais. Em momentos em que o regime democrático se encontra fragilizado por aspectos sociais, políticos ou econômicos, é recorrente que parcelas das populações se manifestem favo- ráveis à alteração do regime político. Contudo poucos conhecem os distintos regimes a ponto de diferenciá-los e compreender de que se trata e qual a possibilidade de sanarem o problema existente da democracia em vigor. PENSANDO JUNTOS 31 Bobbio (1998, p. 326) corrobora a concepção do autor anteriormente men- cionado ao postular a democracia como “um método ou um conjunto de regras de procedimento para a constituição de governo e para a formação das decisões políticas (ou seja, das decisões que abrangem toda a comunidade) mais do que de uma determinada ideologia”. NOVAS DESCOBERTAS Os cidadãos têm distintas visões sobre o que é a democracia. Alguns re- ferem-se à liberdade de expressão e outros ao voto, enquanto há aque- les que manifestam a questão da obrigatoriedade de participação e a necessidade de representação. Uma abordagem que dialoga com per- cepções individuais e o conceito de democracia, encontra-se no Qr Code. Assim, caro(a) estudante, cabe-nos analisar, de maneira mais específica, três dife- rentes aspectos relacionados ao governo democrático, quais sejam: as instituições políticas democráticas, o apoio dos cidadãos ao regime e a relação entre repre- sentação e a maneira como ela opera no regime democrático. Este detalhamento se justifica por duas razões: primeiro, pelo fato de que vivemos no Brasil sob o regime democrático, de modo que compreender esse regime político é mais relevante à sua futura atuação profissional (mas também enquanto cidadão ou cidadã) do que os demais regimes; e segundo, esse conhecimento sob o que é e como opera a democracia impacta na compreensão de conteúdos como o pró- prio conceito de políticas públicas e de políticas sociais e assuntos, como direitos humanos e multiculturalismo, com os quais você terá contato posteriormente. UNICESUMAR https://www.youtube.com/watch?v=MLQkIDxyCcQ UNIDADE 1 32 Ao tratarmos das principais instituições políticas democráticas temos como pon- to inicial os partidos políticos, a partir do qual as demais instituições se organi- zam nos sistemas partidário e eleitoral. Os partidos correspondem às principais instituições de uma democracia, e Schattschneider (1942) afirma que a demo- cracia é impensável sem partidos políticos, máxima que Baquero e Borba (2008) perceberam como sedimentada nos estudos sobre democracia. Basicamente, os partidos desempenham funções junto aos eleitores, enquanto organizações e com relação ao governo. Sobre a primeira função, Key (1964) destaca que os partidos agem na educação política dos eleitores por meio de sua mobilização à participação e pelo estabelecimento de símbolos que funcionam como atalhos cognitivos para simplificar o voto. Nesse sentido, o desenvolvi- mento da educação e da socialização política teria por finalidade a formação da opinião dos eleitores, por meio da apresentação de temas, agendas e perspectivas para as questões sociais, ou seja, fornecer recursos à estruturação do voto. No que tange à questão organizacional são funções dos partidos o recruta- mento de lideranças, o treinamento da elite política e, ainda, a articulação e a agregação dos interesses. Sobre tais funções, Mair (2003, p. 284) observa que o recrutamento, não apenas de líderes políticos, mas também de funcionários para cargos públicos, tem perdido importância à medida que os partidos “[...] parecem cada vez mais dispostos a transporem os seus limites organizacionais imediatos quando procuram candidatos adequados para determinados cargos e funções”. Ainda segundo o autor, as funções de articulação e agregação de interesses polí- ticos da sociedade têm sido, especialmente a partir das últimas décadas, cada vez mais partilhadas com associações e movimentos não partidários. Por fim, com relação ao seu papel governativo, os partidos devem organi- zar o governo, controlar o desempenho administrativo e buscar viabilizar a implementação de suas propostas de políticas públicas. Segundo Mair (2003), significa considerar tanto o papel do partido enquanto governo (situação) quanto sua atuação na condição de oposição, já que as pautas políticas podem - e na democracia devem - ser objeto de disputa. O conjunto de partidos políticos existentes e em funcionamento em um país conforma o sistema partidário, que se pauta pela interação horizontal e concor- rencial entre, no mínimo, dois partidos e, ainda, pela interação vertical entre eleitores, partidos, parlamentos e governos. Dessa maneira, a disputa entre os partidos políticos se desenvolve e produz consequências não apenas em seu âm- 33 bito, mas também nos outros planos com os quais tais instituições se relacionam. Essa multiplicidade de interações, não apenas referentes aos partidos, mas também as que envolvem as arenas eleitoral, par- lamentar e governamental, determinam a natureza e a qualidade de um sistema partidário (PASQUINO, 2010). Às democracias são possíveis sistemas bipar- tidários ou multipartidários. Já no que concerne aos sistemas eleitorais, es- tes compõem como estruturas paralelas aos siste- mas partidários, porém, em expressivo diálogo, por se constituírem como arcabouços jurídicos por meio dos quais os candidatos pertencentes aos partidos políticos são conduzidos ao governo. Nesse sentido, a organização do sistema eleitoral é mister à própria organização da democracia. Tendo em vista que um sistema eleitoral corres- ponde ao conjunto de mecanismos capazes de de- terminar regras e, por conseguinte, o resultado das eleições, é essa instituição que responde pela definição do corpo político de um governo. Dada a complexidade das relações entre insti- tuições políticas, Estado, governo e cultura políti- ca, a estrutura de competição eleitoral pode assu- mir diferentes modelos, de acordo com as regras jurídicas específicas de cada país. De modo geral, os sistemas eleitorais podem ser majoritários, pro- porcionais ou mistos. Como a denominação indi- ca, os sistemas eleitorais majoritários correspon- dem à legislação que determina que o candidato com maioria dos votos seja eleito. Contudo, apesar de parecer uma regra única, esta se desdobra em três possibilidades de funcionamento, de modo que tais sistemas podem ser simples, absolutos ou alternativos. UNICESUMAR UNIDADE 1 34 No sistema majoritário simples ou relativo, são eleitos os candidatos com maior quantidade de votos,independentemente de quão representativo seja tal número com relação ao total de eleitores ou total de votos. Na prática, isso significa que um candidato pode ser eleito ainda que atinja baixos percentuais de votação, mas desde que alcance mais votos dos que os demais. Já os sistemas majoritários absolutos são regidos pela necessidade de que o candidato eleito atinja a maioria efetiva dos votos válidos, ou seja, ao menos um voto a mais do que a metade daqueles apurados. Nesses casos, é prevista na lei a realização de segundo turno de eleições, a serem disputados apenas pelos dois candidatos que computaram mais votos no primeiro turno da disputa. Por fim, existem, ainda, sistemas majoritários alternativos, nos quais os eleitores podem estabelecer uma ordem de importância ou de preferência entre candida- tos, de modo que, caso seu candidato preferencial não atinja a votação necessá- ria para a eleição, o voto é computado ao próximo candidato da lista do eleitor. O segundo tipo de sistema eleitoral é denominado proporcional e tem a fi- nalidade de promover a maior pluralidade possível de representantes com dis- tintas pautas, ideologias, propostas e percepções políticas. Tal sistema assume a interpretação de que, em alguma medida, candidatos de mesmo partido estejam relacionados a conteúdos semelhantes, de modo que, caso um deles não alcance votação expressiva a ponto de ser eleito, os votos destinados a ele podem ser so- mados àqueles de outros candidatos da mesma legenda, o que garantiria, ainda que minimamente, a multiplicidade da representação, por conseguinte mais de- mocrática. Os sistemas proporcionais podem ser de voto único transferível ou de voto em lista. Voto único transferível significa que o eleitor escolhe um candidato e lista outros para os quais eventuais votos excedentes (além dos necessários à eleição) possam ser direcionados. Já o sistema proporcional de voto por listas se caracteriza pelo fato da esco- lha dos eleitores ser mediada por relações estipuladas pelos partidos políticos, havendo três distintas possibilidades: as listas fechadas, as listas abertas e o voto por listas flexíveis. O voto de lista fechada implica apresentação de listagens or- denadas pelos partidos, cabendo aos eleitores escolher pelo conjunto e respeitar o ordenamento estipulado pelas legendas partidárias. Por outro lado, o voto de lista aberta também parte de listagens oferecidas pelos partidos políticos com candidatos para escolha, mas a definição dos repre- sentantes é distinta, permeada por duas etapas: primeiro, a partir do volume de 35 votos de cada partido é determinado o número de representantes de que disporá; e segundo, no interior de cada lista, os candidatos mais votados são eleitos, res- peitada a quantidade de vagas determinada na etapa anterior. Os sistemas proporcionais de lista flexível são aqueles nos quais os partidos propõem listas ordenadas de candidatos, mas cabe ao eleitor definir se lhe agrada, ou não, tal ordenação. Em caso afirmativo, o eleitor pode dirigir seu voto à lista; em caso negativo, pode destinar seu voto a um candidato específico ou reordenar a lista conforme suas preferências. Por fim, sistemas eleitorais mistos são pautados pela utilização de regras dis- tintas em pleitos também diferentes. Na prática, isso significa que eleições para diferentes cargos podem utilizar-se de sistemas de votos majoritários ou propor- cionais, sem que haja conflito à manutenção do sistema e desde que a finalidade e justificativa para tanto sejam ambas de fortalecimento da democracia. Sobre o apoio dos cidadãos à democracia, os estudos da área de cultura polí- tica buscam identificar valores, comportamentos, atitudes, opiniões, percepções e crenças dos indivíduos com relação a objetos políticos, sendo que a pesquisa clássica e referencial desse campo buscou analisar a relação entre a cultura polí- tica de cidadãos de cinco países (Alemanha, Itália, México, Inglaterra e Estados Unidos) com relação ao regime democrático (ALMOND; VERBA, 1963). Considerando os trabalhos contemporâneos que tratam de temas relaciona- dos à cultura política, uma parcela se dedica à dimensão valorativa, de modo que, neste estudo, nos interessa aquele conjunto de textos que trata da manifestação de apoio ao regime democrático pelos indivíduos, tendo em vista que tal regime se caracteriza, para além das instituições anteriormente abordadas, também pela legitimidade e apoio popular. UNICESUMAR UNIDADE 1 36 Dentre tais trabalhos, destaca-se um artigo de David Easton, “A re-assessment of the concept of political support / Uma reavaliação do conceito de apoio político” (1975), no qual o autor distingue, claramente, duas dimensões da adesão valorativa dos indivíduos à democracia. O autor afirma que existem dois tipos de apoio, espe- cífico e difuso, distintos pelo fato de que há situações em que mesmo havendo um descontentamento generalizado com os governantes, percebe-se reduzida perda de confiança no regime, de modo que a expressão de opiniões desfavoráveis por meio de ações poderia conduzir à manutenção do sistema político, ou levar a mudanças. Nesse sentido, existiriam avaliações intimamente relacionadas às ações das autoridades políticas e à forma como tais ações são implementadas, além de ava- liações de aspectos básicos do sistema, que representam laços mais duradouros, tornando possível a oposição às autoridades políticas em paralelo ao apoio da manutenção do sistema. O apoio difuso, também denominado normativo, refe- re-se às avaliações do que um objeto é ou representa, ou seja, ao seu sentido na visão do indivíduo, sem considerar sua atuação. Assim, o apoio difuso consiste em um reservatório de atitudes favoráveis que auxiliam os cidadãos a aceitar ou tolerar ações às quais se opõem ou, ainda, efeitos que eles veem como prejudiciais aos seus desejos, sendo que uma das propriedades do apoio difuso é sua maior durabilidade em relação ao apoio específico. 37 Já o apoio específico tem relação com a avaliação e/ou satisfação dos cidadãos com o funcionamento da democracia, sendo mensurado tomando por base ana- lítica o desempenho das instituições democráticas (como funcionam e em que medida os cidadãos confiam) e a atuação dos agentes estatais (principalmente representantes do Poder Executivo - prefeitos, governadores e presidente). Para além das discussões acerca das dimensões por meio das quais seria pos- sível mensurar o apoio dispensado pelos indivíduos à democracia, um conjunto de pesquisas têm sido desenvolvidas nas últimas décadas em torno das relações estabelecidas pelos indivíduos com o regime a partir dos recursos que tais atores políticos utilizam para seu posicionamento frente ao funcionamento do sistema político. Dentre tais autores, destacam-se Norris (1999), Inglehart e Welzel (2009). Inglehart e Welzel (2009) relacionaram as mudanças na cultura política com a contínua alteração dos valores políticos dos indivíduos em nível mundial em decorrência, principalmente, dos processos de modernização econômica que se estende a amplo conjunto de países desde a segunda metade do século XX. Eis o argumento da teoria do desenvolvimento humano, segundo a qual, nas sociedades industriais avançadas, se desenvolveria cada vez mais uma cultura política diferenciada, denominada pós-materialismo, calcada na preocupação com aspectos e valores que superariam as condições materiais básicas (como alimentação, moradia, saúde e subsistência de modo geral) e remeteria a aspectos como a autonomia individual e os valores de autoexpressão. Dentre as atitudes e comportamentos políticos que se relacionam com tal síndrome, destacamos a emergência de opiniões, posicionamentos e ações de cunho crítico por parte dos indivíduos. Segundo Norris (1999), o de- senvolvimento de uma “cidadania crítica” estaria em curso nas sociedades industriais avançadas, em que os indivíduos contestaram o funcionamento das instituições políticas tradicionais,nas quais depositaram baixa confiança, participaram pouco de atividades políticas convencionais e buscam formas mais autônomas de se envolverem com a política tanto por meio de modali- dades de engajamento não convencionais quanto pela organização e articu- lação em coletivos, movimentos sociais, associações e grupos cívicos menos hierarquizados do que instituições tradicionais, como aquelas relacionadas aos poderes públicos, sindicatos e partidos políticos. Se, por um lado, a expectativa destes autores era de que cidadãos pós-ma- terialistas ou críticos concentrariam sua atuação política em ações diretas, sem UNICESUMAR UNIDADE 1 38 intermediação de representantes, os indivíduos que não desenvolvessem tais habilidades ou posicionamentos se manteriam vinculados às formas tradicionais de participação no regime democrático. A diferença entre tais conjuntos de indi- víduos consistiria, em alguma medida, nos recursos cognitivos que cada grupo mobilizou para a ação política. Avançando do apoio dos indivíduos ao regime para a maneira como, de fato, suas demandas, vontades e opiniões são consideradas, tratemos da representa- ção política e, mais detidamente, da congruência política. Um dos debates mais expressivos no campo da teoria política contemporânea trata da representação. Em “A democracia e seus críticos”, Dahl (2012) argumenta que tal sistema político surgiu em virtude da necessidade de Estados nacionais modernos desenvolverem os preceitos democráticos e conduzir à igualdade política. De modo geral, em se tratando da representação política, dois autores são ex- poentes dos debates: Pitkin (1967), defendeu em “The concept of representation” que os representantes deveriam agir de maneira substantiva ante ao eleitorado, com mandatos que respeitassem a cultura política da população e os eleitos agis- sem sempre em atenção às vontades populares; e Bernard Manin (1997) cuja obra “The principles of representative government” coloca que as modernas de- mocracias não são governos do povo, pois os eleitos têm autonomia para agir sem que haja um autogoverno das massas. Diante deste debate, o questionamento gira em torno de refletirmos no se- guinte sentido: O voto é suficiente para tomarmos governos como representa- tivos, ou a atuação dos governantes deve ser considerada? Quem advoga pelo entendimento de que a representação implica responsividade com relação às vontades da população se filia à discussão sobre congruência política cujo marco inicial ocorreu, nos Estados Unidos, com Miller e Stokes (1963) e avançou ao lon- go do tempo com relação ao uso recorrente de bases de dados tanto de pesquisas de opinião pública e discussões, quanto de decisões tomadas por representantes. Assim, autores como Page e Shapiro (1983) verificaram, para casos em que havia congruência, se a opinião dos representados sofreu alteração após a aprovação de determinada política, ou se os representantes deliberaram em conformidade com a posição expressa pela maioria do eleitorado. Carreirão (2015), primeiro pesquisador brasileiro a se destacar entre os estudiosos sobre congruência política, apontou, em importante balanço bi- bliográfico acerca do tema, que seria possível classificar tais estudos em duas 39 vertentes: a primeira seria pautada pela comparação entre opiniões e preferên- cias dos representados com as prefe- rências de seus representantes e as pro- postas de campanha de seus partidos; a segunda maneira seria a comparação as opiniões e preferências dos eleitores com relação às políticas efetivamente aprovadas por seus representantes. Contudo, devemos nos lembrar que, independentemente da vertente analíti- ca adotada e dos resultados que apontem congruência ou incongruência política entre representantes e representados, a representação é um processo, o que im- plica na necessidade de que sua avaliação seja realizada em perspectiva dinâmica, uma vez que a proximidade ou afasta- mento entre eleitores e representantes tendem a variar ao longo do tempo. Nesse sentido, os discursos e ideários que defendem a existência de uma crise de representação seriam mais expressivos em momentos ou situações onde seria possível verificar baixa congruência polí- tica, uma vez que, diante de discrepâncias entre opiniões e posicionamentos de re- presentantes (elites políticas) e represen- tados (massas), as eleições poderiam não contribuir efetivamente para a formação de Executivos e Legislativos que repre- sentassem seus eleitores. Para avançarmos à conclusão desta unidade de estudos nos cabe responder à última questão suscitada nas páginas UNICESUMAR UNIDADE 1 40 iniciais desta discussão, qual seja: O que caracteriza Estado e governo no Brasil? Para tanto, nas próximas páginas você tomará contato com elementos conforma- dores da política institucional no Brasil, em perspectiva histórica e na atualidade. Apresentada a discussão teórica sobre Estado e governo, a partir desta parte da unidade de estudos o foco desta exposição é o caso brasileiro, com vistas a fornecer embasamento para as unidades de estudos seguintes, quando serão abordados temas pertinentes ao desenvolvimento das políticas públicas e sociais no país nos dias atuais. Primeiro, o Estado. Com a instauração do Império no Brasil, por meio de sua independência com relação à então metrópole, Portugal inaugurou o Estado nacional, naquele momento constituído por uma monarquia parlamentarista e sob regime absolutista, de forma de Estado que vigorou no Brasil ao longo de todo o período Imperial (1822-1889): o Estado unitário, que, de acordo com Rabat (2002, p. 4), se “caracteriza pela concentração do poder com relação às atribui- ções administrativas, políticas e judiciais”, de modo que não havia no Brasil três poderes como conhecemos atualmente - Executivo, Legislativo e Judiciário - e esse Estado unitário continha um quarto e maior poder, segundo Liziero (2017), o Poder Moderador, exercido pelo Imperador Dom Pedro I, o que representou um anacronismo (quase um retrocesso) em comparação com os demais países que conquistaram sua independência na América. “ Os três poderes políticos, tais como os conhecemos até aqui – o poder executivo, o legislativo e o judiciário -, são três instâncias que devem cooperar, cada qual em sua parte, com o movimento geral. Mas quando essas engrenagens avariadas se cruzam, se en- trechocam e se bloqueiam, é necessária uma força para repô-la em seu lugar. Essa força não pode estar numa dessas engrenagens, pois senão ela lhe serviria para destruir as outras. Tem de estar fora, tem de ser de certo modo neutra, para que sua ação se aplique onde quer que seja necessário aplicá-la e para que ela seja preservada e reparadora sem ser hostil (CONSTANT, 2005, p. 203-204). O texto constitucional de 1824 é claro com relação ao Poder Moderador: 41 “ Art. 10. Os Poderes Políticos reconhecidos pela Constituição do Im-pério do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial. [...] Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organização Políti- ca, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos (BRASIL, 1824, on-line). Por conta de tais características e do momento histórico de fortalecimento de novos Estados nacionais, o Estado unitário brasileiro enfrentou resistência no campo político e jurídico, mas as relações entre poderes político e econômico se mantiveram fortes, em virtude, por exemplo, de que “o poder central não apenas apoiava as oligarquias locais quando confrontadas com eventuais rebeliões po- pulares como constituía uma forma de garantia, em última instância, do regime escravista” (RABAT, 2002, p. 8). Por outro lado, setores liberais da sociedade e aqueles insatisfeitos com a condição de miséria de parcela da população organizaramdiversos movimentos de insurgência no período Imperial, como a Cabanagem (1835-1840), no Pará; a Revolução Farroupilha (1835-1845), no Rio Grande do Sul; a Sabinada (1837- 1838), na Bahia; e a Balaiada (1838-1841), no Maranhão. O inconformismo po- pular e de setores da elite agravou-se ao longo das décadas, ao ponto de culminar no levante político-militar que findou o absolutismo monárquico-imperial e instaurou o governo republicano e federalista no Brasil, em 1889. UNICESUMAR https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/17285 UNIDADE 1 42 No novo período histórico, conhecido como República Velha, foi promulgada a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, em 1891, sendo que o termo “Estados Unidos” persistiu nas denominações dos textos constitucionais de 1934, 1937 e 1946. Apenas em 1967 foi promulgada uma Constituição da Repú- blica Federativa do Brasil, mesma denominação da Carta Magna atual, de 1988. É importante salientar que, após a Proclamação da República, em 1889, o país esteve exposto a distintos regimes políticos, mas conservou suas ca- racterísticas de governo republicano, com sistema presidencialista e Estado federativo. Nesta seção, cabem considerações acerca do Federalismo, vigente no país ao longo dos períodos da República Velha (1889-1937), do Estado Novo (1937-1945), do Populismo – nossa primeira experiência, de fato, de- mocrática – (1945-1964), da Ditadura Militar (1964-1985) e do atual período democrático, desde meados da década de 1980. Conforme explica Rabat (2002), o Estado federativo brasileiro caracteriza-se pelo exercício de competência de cada nível da federação com corpo administra- tivo próprio, sendo que as unidades federativas têm representação paritária em uma das casas legislativas (o Senado) e representação proporcional (respeitando limites mínimo e máximo de representantes) na outra casa legislativa (a Câmara dos Deputados) do Congresso Nacional e deve ser respeitada a tripartição dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Nesse sentido, o Estado federativo é pautado pela pactuação entre entes fe- derados, que se submetem a regras majoritárias, a um Legislativo comum e a Poderes Executivo e Judiciário federais. De acordo com Höffe (2005), o pacto 43 federativo consiste na união de entes federados que, dotados de autonomia, sub- metem-se ao poder central e soberano. Conforme Arretche (2002), autora de textos e pesquisas sobre o tema no Brasil, o federalismo implica reciprocidade e cooperação entre o governo central e os governos subnacionais, a fim de manter o equilíbrio determinado no texto constitucional com relação às suas autono- mias administrativa, política, tributária e financeira, especialmente com relação à distribuição de recursos tributários. Pensando a combinação entre Estado e governo, quando observamos a his- tória desses aspectos, no Brasil, verificamos que tal relação sofreu uma grande alteração estrutural quando da Proclamação da República, conforme evidenciado pelo quadro a seguir. Período Forma de governo Sistema de governo Regime político Império (1822-1889) Monarquia Parlamentarismo Absolutismo Repúbli- ca Velho (1889-1937) República Presidencialismo Democracia (restrita) Estado Novo (1937- 1945) República Presidencialismo Ditadura totalitária Populismo (1945-1964) República Presidencialismo Democracia Ditadura militar (1964-1985) República Presidencialismo Ditadura autoritária Democracia (1985-atual) República Presidencialismo Democracia Quadro 1 - Caracterização dos governos brasileiros / Fonte: o autor. Enquanto no período Imperial o Brasil era caracterizado por um Estado ab- solutista, com concentração de poder nas mãos do Imperador (que detinha o Poder Moderador, abordado na última seção da primeira unidade de estudo) e UNICESUMAR UNIDADE 1 44 se conformava como monarquia parlamentarista, o marco político de 15 de no- vembro de 1889 representou mais do que uma alteração de forma de governo. Em primeiro lugar, e de maneira preliminar aos aspectos governativos, é importante destacar que a República constituiu-se com três poderes definidos em termos de independência, competências e funções, o que persiste até à contemporaneidade. Vamos observar a Figura 1: DIVISÃO DOS TRÊS PODERES Poder Executivo cabe a condução da máquina pública e a execução das leis Poder Legislativo compete a discussão, a formulação e a aprovação de leis em acordo com as necessidades e demandas da população Poder Judiciário é responsável pelo julgamento de situações con�ituosas entre os demais poderes, o que deve ocorrer de maneira imparcial e pautada pelo cumprimento da legislação Figura 1 - Divisão dos três poderes no Brasil / Fonte: o autor. Descrição da Imagem: a figura apresenta um infográfico com a divisão dos três poderes no Brasil. Primeiro, do lado esquerdo para o direito, apresentamos o Poder Executivo a que cabe a condução da máquina pública e a execução das leis; logo em seguida, apresentamos o Poder Legislativo, a que com- pete a discussão, a formulação e a aprovação de leis em acordo com as necessidades e demandas da população; e, por último, o Poder Judiciário é responsável pelo julgamento de situações conflituosas entre os demais poderes, o que deve ocorrer de maneira imparcial e pautada pelo cumprimento da legislação. Considerando que o Estado brasileiro é composto pela tripartição há mais de um século, verificamos, no quadro anterior, que algumas características do governo também se perpetuaram desde 1889, quais sejam: forma e sistema de governo, república e presidencialismo, respectivamente. Contudo, há que se ressaltar que tal manutenção não se deu de maneira completamente harmônica, especialmente em dois momentos históricos. Em primeiro lugar, cabe destacar que, entre 1961 e o início de 1963, a substituição do presidencialismo pelo parlamentarismo ga- 45 rantiu a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, mas tal sistema de governo não encontrou apoio popular e foi rechaçado em consulta pública. Já entre as décadas de 1980 e 1990, no período de retomada do regime de- mocrático, dois eventos ocorreram de maneira relacionada. Na segunda metade da década de 1980, o então presidente José Sarney sofreu pressão para que as condições de forma e sistema de governo fossem alteradas ainda ao longo de seu mandato, o que poderia culminar na concretização da abertura política sob um governo monarquista e parlamentarista, mas foi contornado com o apoio das Forças Armadas (MOISÉS, 1995). Na década seguinte, ainda ao longo do primeiro mandato presidencial eleito pós-ditadura militar – de Itamar Franco, que substituiu Fernando Col- lor de Mello, cujo processo de impeachment conclui-se no penúltimo dia do ano de 1992 – realizou-se, em 21 de abril de 1993, um plebiscito (mecanismo de participação decorrente da Constituição de 1988) para que os brasileiros decidissem sobre quais formas e sistema de governo preferiam. O resultado reforçou as características vigentes, sendo que a república atingiu cerca de 87% dos votos válidos e o presidencialismo foi escolhido por, aproximada- mente, 69% dos eleitores que fizeram uma opção. Enquanto forma e sistema de governo gozam de certa estabilidade no governo brasileiro, o regime político foi alterado diversas vezes desde a inde- pendência, em 1822. Permeado por aspectos históricos que remetem àqueles regimes anteriormente descritos na primeira seção desta unidade de estudos, destacamos, neste momento, a configuração atual do regime político na- cional, o qual se constitui como democracia semidireta, aquela exposta por Bobbio (1998) como melhor modelo democrático. A democracia brasileira é, hoje, modelo de participação reconhecida em todo o mundo, especialmente por conta do desenvolvimento de mecanismos de engajamento políticos dos indivíduos nas discussões sobre recursos e políticas públicas, o que retomaremos na quinta unidade de estudos deste livro. Por ora,cabe destacar dois pontos: primeiro, que com a Constituição de 1988 atingiu-se o sufrágio universal pela primeira vez no Brasil, de modo que o voto tornou-se facultativo aos analfabetos, aos jovens com idade entre 16 e 17 anos e aos idosos com mais de 70 anos, ao passo que é compulsório aos alfabetizados com idade entre 18 e 70 anos; em segundo lugar, ressalte-se que a gama de possibilidades de envolvimento dos brasileiros com a política é ampla e multifacetada, sendo UNICESUMAR UNIDADE 1 46 possível a participação em atividades relacionadas às campanhas eleitorais, o associativismo e o engajamento em outras formas de ação coletiva, as atividades de protesto e por meio de instituições participativas. Tendo em vista as instituições democráticas destacadas na segunda seção de estudos desta unidade, verifica-se que o Brasil possui um sistema partidário com grande quantidade de legendas formalmente constituídas (mais de três dezenas) e o maior contingente de partidos com representação expressiva no Poder Le- gislativo Federal em todo o mundo (GALLAGHER, 2022), o que implica a difi- culdade de parcela significativa do eleitorado em diferenciar partidos (BORBA; GIMENES, RIBEIRO, 2015) e estabelecer vínculos com eles (GIMENES, 2017). Para além da persistência do modo de governo ao longo das primeiras três décadas pós-redemocratização, Limongi (2006) destaca que o governo de coa- lizão brasileiro não seria uma peculiaridade, uma vez que há diversos regimes parlamentaristas em que Executivo e Legislativo operam por meio de coalizões, nas quais “[...] os partidos organizam e garantem o apoio ao Executivo. Este não é prisioneiro ou refém da sua base. Negociações políticas garantem a aprovação da agenda legislativa definida pelo governo” (LIMONGI, 2006, p. 250). Em se tratando da outra característica institucional do governo democrático brasileiro, verifica-se que o sistema eleitoral é misto, uma vez que eleições aos car- gos executivos (prefeitos, governadores e presidente) são disputados pelo sistema absoluto (sendo que em municípios com mais de 200.000 eleitores, é possível a realização de segundo turno, assim como determinado para as escolhas aos exe- cutivos estaduais e federal) e os pleitos para os legislativos (vereadores, deputados estaduais e federais – excetuando-se, portanto, senadores) são pautados pelo sistema proporcional em lista aberta, sendo consideradas as coligações (pactos entre partidos para candidaturas conjuntas, que reflete no cômputo dos votos e distribuição das cadeiras aos representantes) como unidades de contagem dos votos. Para todos esses cargos, os mandatos têm duração de quatro anos. A eleição para o Senado se diferencia das demais, primeiramente pelo fato de que cada unidade da federação tem direito a três vagas, sendo disputadas uma ou duas cadeiras em pleitos alternados. Ademais, cada senador ocupa o cargo por oito anos, e sua escolha se dá por sistema absoluto, ou seja, pelo sis- tema majoritário que caracteriza as eleições ao Executivo. Sobre a composição do sistema eleitoral brasileiro, cabem, ainda, duas considerações. A primeira diz respeito à capacidade de representação das escolhas dos eleitores em com- 47 paração com os resultados finais das eleições. As eleições de 2014 suscitaram questionamentos sobre a representatividade dos deputados federais eleitos por conta do “efeito Tiririca”, denominação ao fenômeno do candidato “puxador de votos”. Os nomes, recorrentes no senso comum da opinião pública brasileira, dizem respeito ao quociente eleitoral, sistema por meio do qual o resultado decorre da proporção entre a quantidade total de votos válidos pelo número de cadeiras disponíveis, sendo que a contagem dos votos nas eleições proporcio- nais é realizada, primeiramente, por partidos ou coligações, e somente depois entre os candidatos mais votados dos partidos ou coligações. Considerando dados oficiais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) refe- rentes às duas últimas eleições legislativas municipais (2008 e 2012), estaduais (2010 e 2014) e federais (2010 e 2014), Carlomagno (2016, p. 6) verificou que “o sistema eleitoral brasileiro apresenta uma regularidade impressionante, com a porcentagem dos eleitos que não foram, respectivamente, os mais vo- tados dentro do número de vagas disponível, variando entre 8% e 13%”, sendo que mais de 99% dos eleitos em todos os pleitos analisados se concentraram em posições competitivas nos resultados finais, de modo que os eleitos que não figuraram entre aqueles com votação até o limite de vagas alcançaram posições até o dobro do número de vagas. UNICESUMAR UNIDADE 1 48 Por fim, o sistema eleitoral brasileiro apresenta, em sua legislação, uma con- troversa norma que, desde 1997, estabelece a necessidade dos partidos polí- ticos considerarem, em suas listas de candidaturas aos legislativos, ao menos 30% de nomes de um sexo, o que significaria, em sentido prático, que o má- ximo de candidatos ou candidatas que um partido apresentaria em eleições seria de 70% para qualquer um dos sexos. O que se vê, no entanto, é que parcela dos partidos não cumpre a lei de cotas, para a qual não há determinação de punições, e que entre a população e mesmo no meio político-partidário a legislação arraigou-se com a alcunha de lei de cotas femininas, imputando a condição de respeito a uma parcela mínima de candida- turas às mulheres, o que em nada contribui para a superação da sub-representação histórica da mulher na política nacional (AYRES; OLIVEIRA; GIMENES, 2017). Ademais, destaca-se que tal legislação não influenciou a composição dos Legislativos nacional e subnacionais, uma vez que em se tratando de resultados eleitorais, a relação entre vitórias de homens e mulheres para os cargos de depu- tados federais e estaduais, em 2006, 2010 e 2014, é estável, a despeito da elevação do número de candidaturas femininas no período: “ Em resumo, os resultados da política de cotas de gênero estabeleci-das na lista partidária foram verificados apenas no quantitativo de oferta de candidatas, que aumentou 175% para a Câmara dos De- putados, e 156% para as Assembleias Estaduais entre 2006 e 2014. Entretanto, nenhuma alteração substantiva ocorreu no número de mulheres eleitas (PEIXOTO; GOULART; SILVA, 2016, p. 134). Para além das instituições democráticas, destacou-se, na terceira seção desta unidade de estudos, a relevância da manifestação de adesão à democracia entre os cidadãos. Entre os pesquisadores que se dedicam a pesquisas sobre o tema no Brasil, verificamos nas últimas décadas estudos, que tratam de temas tanto sob a perspectiva e estoniana de divisão entre apoio normativo e específico quanto aqueles que adotam análises multidimensionais. 49 Considerando distintos períodos, bancos de dados, metodologias de pesquisas e perspectivas teórico-normativas para construção das análises, Baquero e Li- nhares (2010), Gimenes (2015), Fuks et al. (2016) e Ribeiro, Borba e Casalecchi (2018) verificaram, de modo geral, que os brasileiros confiam pouco nas institui- ções democráticas, e que a manifestação de apoio é, majoritariamente, abstrata, o que significa que, ao questionar-se os conteúdos da democracia, não se verifica homogeneidade ou consistência no apoio ao regime. Ademais, cabe destacar que apenas a parcela da população que dispõe de maiores recursos cognitivos e econômicos destoa do contingente majoritário. O Brasil não foi, sempre ao longo de sua história, uma república com poder polí- tico federativo e pacto caracterizado por uma Constituição Federal, assim como seus regimes políticos foram alterados em muitos períodos e vivenciamos, atualmente, o primeiro momento de um desses regimes por mais de três décadas. O conteúdo exposto nesta unidade de estudos ofereceu uma contextualização que é fundamental à compreensão do desenvolvimento das relações sociais, dos arranjos políticos e de como tais aspectos influenciam e definiram as políticas públicas e sociais no paísao longo do período republicano. Isto posto, encerramos esta discussão com as próximas páginas para avançarmos em nossa conformação do conhecimento. Quando se pensa em políticas públicas e sociais, são recorrentes as análises que discutem os processos ou as etapas do ciclo dessas políticas, especialmente seus im- pactos sobre a população e a participação social. Contudo, é salutar conhecer também uma interpretação que foca no impacto das instituições democráticas no referido ciclo. No Podcast desta unidade de estudos, abordamos o neo- institucionalismo histórico e sua relação com a análise de políticas públicas, por meio de excertos do artigo “Análise de políticas públicas e neoinstitucionalismo histórico”, escri- to pela professora Adelyne Maria Mendes Pereira, mestre e doutora em Saúde Pública e pesquisadora do Departamen- to de Administração e Planejamento em Saúde (DAPS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). UNICESUMAR https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/15656 UNIDADE 1 50 Fim desta primeira unidade de estudos, e a expectativa é de que você, caro(a) acadê- mico(a), tenha conseguido, por um lado, entender os conceitos de Estado e governo e, por outro lado, percebido sua relação com seu cotidiano e sua vivência cidadã. Assim, a fim de encaminharmos o encerramento desta unidade, convido você a refletir novamente sobre nossas questões iniciais para responder a perguntas mais diretas e que exigem capacidade de argumentação com conhecimento cien- tífico. Portanto, não é mais o momento de definir Estado e governo, mas pensar sobre como o segundo é uma parte do primeiro e em que medida a gestão pú- blica (governo) influencia e é influenciada pela maneira como o poder político e econômico é estruturado (Estado). Volte às suas respostas iniciais e as complemente com aquilo que aprendeu nesta unidade de estudos. E mais: avance em sua conformação de conhecimento e transforme suas respostas em um texto dissertativo, argumentando sobre o tema. Desafie-se! 51 1. A exposição teórica sobre o Estado, nesta unidade de estudos, baseou-se em alguns autores que trataram do tema, especialmente Marx e sua perspectiva do debate so- bre poder e classes sociais, Migdal e a relação entre Estado e sociedade, e Behring e Boschetti com a abordagem sobre o desenvolvimento do Estado de bem-estar social. Acerca desta temática, analise as características a seguir: I - Preocupação com os direitos sociais e as políticas sociais. II - Desigualdades sociais e exploração dos trabalhadores. III - Disputas pelo poder político e econômico entre elites. IV - Atenção ao investimento público em programas sociais. V - Discurso em defesa da autorregulação da economia. Correspondem ao Estado de bem-estar social apenas as características expostas em: a) I e II, apenas. b) II, III e IV, apenas. c) I e IV, apenas. d) I, II e IV, apenas. e) I, II, III e IV. 2. A caracterização dos governos é perpassada por um conjunto de características e seus respectivos tipos, referentes às diferentes formas e sistemas de governo e re- gimes políticos. Acerca do último aspecto, esta unidade de estudos conferiu especial atenção à democracia. Explique a razão deste enfoque. 3. Considerando os regimes democráticos em funcionamento ao redor do mundo, há autores que consideram o Brasil como uma “jovem democracia”. A partir do conteúdo desta unidade de estudos, explique a pertinência deste termo à realidade nacional. 2As Políticas Sociais na Contemporaneidade Dr. Éder Rodrigo Gimenes Caro(a) estudante, nesta unidade de estudos, nossa atenção se con- centra nos termos que compõem o título desta disciplina, as políticas públicas e sociais, com o objetivo de lhe proporcionar a compreensão das diferenças entre ambas e a relevância do segundo tipo para esta disciplina. Para tanto, a discussão é baseada em quatro diferentes as- pectos com vistas à conformação do seu conhecimento, quais sejam: o conceito amplo de políticas públicas, a definição específica de políticas sociais, a evolução dos direitos humanos em suas dimensões até os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e o multiculturalismo como perspectiva democrática vigente de atenção às políticas sociais. UNIDADE 2 54 O que são políticas públicas? É diferente falar so- bre políticas públicas e sobre políticas sociais? E sobre políticas de Estado e políticas de governo? Como estes conceitos se materializam na estru- tura estatal e entre os cidadãos? E qual o impacto sobre sua futura atuação profissional? Trata-se de temática importante em nosso contexto social específico ou de preocupação global? São muitas as perguntas que podemos nos fazer sobre o tema desta aula, que explica de maneira aprofundada, o que conforma as po- líticas públicas e sociais. Certamente, você já ouviu algo sobre esses termos, talvez, até mes- mo se reconheça como usuário(a) ou beneficiá- rio(a) de alguma política pública ou social. O fato é que este assunto permeia não apenas sua formação profissional, mas também a maneira como cada um de nós conforma sua visão sobre a sociedade e a política e, nesse sentido, como se percebe enquanto indivíduo político, ou seja, na sua condição de cidadania. Caso esteja pensando se você se enquadra, ou não, na condição de usuário(a) ou beneficiário(a) de alguma política pública ou social, que tal confe- rirmos significado empírico a esse questionamento a partir de exemplos? É praticamente impossível que algum cidadão brasileiro, nascido no país ou que aqui resida há algum tempo, não tenha utiliza- do algum recurso, equipamento ou serviço do Sis- tema Único de Saúde (SUS), especialmente o plano nacional de imunização que oferece um conjunto de vacinas gratuitas contra muitas doenças. Além disso, há diversas políticas nas três es- feras de poder – municípios, estados ou Distrito Federal e União – no âmbito da assistência social 55 para concessão de benefícios, desde percepções financeiras diretas (recebimen- to de dinheiro ou crédito) até auxílios específicos, como descontos em tarifas de pagamento por serviços de água tratada e energia elétrica e cestas básicas. Apenas para ilustrarmos estas situações com mais um tipo de política, avance- mos para nosso contexto de diálogo: a educação superior. São muitas as políticas desenvolvidas no âmbito do Ensino Superior no Brasil, desde a ampliação de uni- versidades públicas e expansão das instituições privadas até os programas para financiamento estudantil e crescimento da educação a distância para oferecer oportunidades mais amplas de capacitação. Perceba, caro(a) acadêmico(a), que as políticas públicas e sociais se mate- rializam em diferentes áreas e por ações com proporções e impactos variados. Um desafio é compreender sua classificação e seus arranjos, o que começa- remos a desenvolver nesta unidade de estudos. Tendo em vista os exemplos expostos anteriormente, você se percebeu como usuário(a) ou beneficiário(a) de alguma política pública ou social? Se sim, busque resgatar em sua mente quais serviços, equipamentos ou benefícios prestados ou oferecidos pela administração pública têm relação com seu cotidiano, já foram parte de sua vivência, ou são parte da realidade social de pessoas que você co- nhece ou com quem convive. E, para além de seu círculo de contatos, o que você sabe sobre políticas públicas? Se você costuma acessar sites de notícias, assistir a telejornais ou ouvir notícias no rádio, tem grande chance de ter contato com informações sobre o tema, ainda que não tenha percebido até este momento. Então, proponho a você um exercício: acesse grandes portais de notícias na internet, assista a telejornais (podem ser aqueles locais, regionais ou nacio- nais, de canais de TV abertos ou pagos) e acompanhe o programa de rádio “A voz do Brasil”, ao menos, parte de uma ou mais de suas edições. Podem pare- cer ações simples, que não gerarão impacto ou conhecimento, mas acredite: seunível de atenção e sua capacidade de apreensão sobre estas informações serão diferentes a partir deste momento, afinal, você, agora, experimentará outra maneira de perceber esses conteúdos. Convido você a uma breve reflexão sobre o que tratamos até aqui, de maneira introdutória, mas também imersiva com relação ao seu cotidiano próximo e ao que você tem acesso enquanto informações. Utilize o espaço de seu Diário de Bordo para anotar indagações, inquietações, ideias e demais apontamentos que o início desta unidade de estudos despertou em você. UNIDADE 2 UNIDADE 2 56 Este é um importante exercício que lhe permitirá, ao fim desta unidade, per- ceber o que desenvolvemos para responder às nossas questões iniciais. Assim, procure responder as questões que leu a pouco, no início da unidade, sem se preocupar com respostas certas ou erradas, mas em transpor para este espaço o conhecimento que já detém sobre o tema, pois é sobre esta base que dialogamos nas próximas páginas deste material didático. DIÁRIO DE BORDO 57 Tendo o Estado a finalidade de servir à população, cabe ao governo trabalhar de modo a atender às necessidades dos cidadãos, por meio de ações que visem otimizar a responsabilidade e a transparência dos atos públicos. Assim, a gestão pública está relacionada ao desenvolvimento político do Estado cujas alterações não têm, necessariamente, relação direta com seu desenvolvimento econômico, o que implica inferir que as reformas pelas quais o Estado moderno tem passado tendem a gerar muitos conflitos uma vez que confrontam a visão do Estado burocráti- co em contrapartida a inovações que podem contribuir para o desen- volvimento e o aprimoramento do processo de administração pública. Isto posto, quando Estado e governo se manifestam sob o regime democrático, é possível afirmar que o meio para a implementação das vontades e das necessidades da população e as demandas esta- tais correspondem às políticas públicas, que constituem mecanis- mos de efetivação das deliberações do poder público para com a população. Considerando sua amplitude em termos de áreas de ação e atuação bem como as distinções que pode assumir conforme os arranjos entre Estado e governo, não há um conceito único para tra- tar do tema (PINTO, 2017). Entretanto, conforme a cientista política Arretche (2003), uma das mais reconhecidas pesquisadoras sobre o tema das políticas públicas no Brasil, é possível afirmar que o objeto das políticas públicas é o “Estado em ação”, considerados programas governamentais, mecanismos de operação, potenciais impactos de natureza social e econômica e aspectos conjunturais. Para Souza (2006), as políticas públicas correspondem ao campo de conhecimento que tem como finalidade a realização efetiva das ações de governo bem como suas avaliações e, a depender dos resul- tados desta análise, também a proposição de mudanças com relação à execução das atividades. Já Rodrigues (2010) entende que políticas públicas é o conjunto de processos por meio dos quais diferentes grupos, com demandas e interesses distintos, debatem com vistas à tomada de decisões coletivas que direcionem caminhos ao desenvol- vimento de determinadas áreas em um âmbito da sociedade (muni- cipal, estadual ou federal). UNIDADE 2 UNIDADE 2 58 Amabile (2012), por sua vez, assevera que políticas públicas seriam decisões tomadas em decorrência de estratégias definidas para impactar a sociedade com vistas a sanar ou minimizar problemas e situações de ordem pública e abrangência sobre coletividades, representando processos complexos mate- rializados, por meio de ações governamentais. Por fim, há definições objeti- vas, como a definição dos governos sobre o que fazer, ou não (DYE, 1984), as ações do governo que produzem efeitos desejados sobre a vida dos indivíduos (LYNN, 1980; PETERS, 1986), o campo de atuação do governo sobre questões públicas (MEAD, 1995) e de que as políticas públicas constituem-se como “[…] o braço executivo de direitos expressos na Constituição” (KERSTE- NETZKY, 2015, p. 175). Conforme Brancaleon et al. (2015), considerando a multiplicidade de mode- los por meio dos quais podemos pensar classificações das políticas públicas, ne- nhuma divisão ou categorização será exata, mas ainda assim simplifica e esclarece o tema, além de possibilitar a identificação de aspectos relevantes e o direciona- mento de nosso olhar para melhor entendermos o campo das políticas públicas. Diante de tal argumento, os autores oferecem um modelo de classificação para diferenciarmos as políticas públicas, composto por quatro categorias, sendo: 59 a) Políticas Públicas distributivas - As chamadas políticas distributivas não consideram a limitação dos recursos públicos e buscam privile- giar não a sociedade como um todo, mas uma parcela da população. Um risco iminente advindo das políticas distributivas é a ocorrência do que conhecemos como clientelismo, assistencialismo etc.; b) Políticas Públicas redistributivas - Por meio destas é que se alo- cam bens ou serviços a segmentos específicos da sociedade median- te recursos que são extraídos de outros grupos específicos; c) Políticas Públicas regulatórias - São as mais facilmente iden- tificadas e envolvem prioritariamente os policymakers, a admi- nistração pública e a burocracia estatal, além de outros grupos de interesse. As políticas regulatórias conformam-se em ordens e proibições, decretos e portarias; d) Políticas Públicas constitutivas - São elas que estabelecem as ‘regras do jogo’, as normas e procedimentos a partir das quais devem ser formuladas e implementadas outras políticas (BRAN- CALEON et al., 2015, p. 2-3). UNIDADE 2 UNIDADE 2 60 Diante deste contexto, é consenso entre os autores dos campos da Ciência Política e da Administração Pública a responsabilidade do Estado para com a gestão de políticas públicas, sendo que existem políticas públicas de diversas naturezas ou áreas, como exposto na classificação elaborada por Kauchakje (2011), exposta a partir de grandes eixos de políticas públicas divididas entre ambientais, culturais, econômicas, de defesa de direitos, de infraestrutura, de uso e ocupação do solo e sociais. Acerca das áreas de atuação relacionadas a cada eixo, a autora aborda conjuntos de aspectos, quais sejam: • As políticas ambientais dizem respeito ao controle ambiental, de recursos hídricos e naturais, de parques, áreas verdes e áreas de proteção e de resíduos sólidos. • As políticas culturais tratam de artes plásticas, teatro, cinema, cin- ema, música e do patrimônio cultural, especialmente do folclore e de monumentos e equipamentos. • As políticas econômicas estão relacionadas a questões de trabalho, finanças públicas, desenvolvimento econômico local, arranjos pro- dutivos locais e aos setores de agricultura, indústria e comércio. • As políticas de defesa de direitos de grupos específicos tratam da busca por garantia de igualdade para aqueles que têm menor aces- so a direitos, como crianças, adolescentes e jovens, idosos, pessoas com deficiência e também consumidores e diante de questões de gênero e étnicas. • As políticas de infraestrutura tratam de temas macrossociais, como energia, transporte, telecomunicações e as redes de abastecimento de água e de coleta de esgoto. • As políticas de uso e de ocupação do solo são pertinentes à demar- cação de áreas verdes e de proteção das nascentes de água e de matas ciliares. • As políticas sociais referem-se às áreas de atuação que impactam mais diretamente os indivíduos em geral, correspondentes às de- nominadas políticas setoriais de assistência social, habitação, saúde, educação, segurança alimentar e trabalho, por exemplo. 61 A partir desta classificação, identificamos o segundo conceito que conforma o título desta disciplina, as polí- ticas sociais, que podem ser definidas, portanto, como um tipo de política pública cuja finalidade é direcionada às demandas dos indivíduos por direitos sociais previs- tos na Constituiçãofederal brasileira, que determina em seu artigo 6o que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o la- zer, a segurança, a previdência social, a proteção à ma- ternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988, on-line). Tendo em vista a relevância da discussão sobre este campo específico das políticas públicas, concen- tremo-nos em compreender o surgimento e a relevân- cia das políticas sociais enquanto área de políticas que dizem respeito ao atendimento dos cidadãos em go- vernos democráticos. Para tanto, destacamos a abor- dagem histórica de Behring e Boschetti (2011) sobre o assunto, na qual as autoras afirmam que o surgimento das políticas sociais reporta ao período das mudan- ças no contexto laboral pela Revolução Industrial, já que as primeiras conquistas cidadãs decorreriam da mobilização de operários por melhorias nas condi- ções de trabalho e em sua vida cotidiana. Assim, as autoras, em sua clássica obra da Biblioteca Básica do Serviço Social intitulada “Política social: fundamentos e história”, determinam que a análise das políticas so- ciais deve considerar que são múltiplas as suas causas, conexões, relações e dimensões cujas naturezas são históricas, econômicas, políticas e culturais. UNIDADE 2 UNIDADE 2 62 “ Do ponto de vista histórico, é preciso relacionar o surgimento da política social às expressões da questão social que possuem papel determinante em sua origem (e que, dialeticamente, também sofrem efeitos da política social). Do ponto de vista econômico, faz-se ne- cessário estabelecer relações da política social com as questões es- truturais da economia e seus efeitos para as condições de produção e reprodução da vida da classe trabalhadora. Dito de outra forma, relaciona as políticas sociais às determinações econômicas que, em cada momento histórico, atribuem um caráter específico ou uma dada configuração ao capitalismo e às políticas sociais, assumindo, assim, um caráter histórico-estrutural. Do ponto de vista político, preocupa-se em reconhecer e identificar as posições tomadas pelas forças políticas em confronto, desde o papel do Estado até a atuação de grupos que constituem as classes sociais e cuja ação é determina- da pelos interesses da classe em que se situam. […] Há também uma dimensão cultural, que está relacionada à política, considerando que os sujeitos políticos são portadores de valores e do ethos de seu tem- po (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 43-45). Ainda conforme as autoras, as políticas sociais são desenvolvidas pelo Estado por conta da existência de contradições na relação entre capital e trabalho, em que as elites políticas e econômicas empreendem estratégias de acumulação de recursos em detrimento das condições de subsistência dos trabalhado- res, de modo que as interpretações acerca do desenvolvimento de políticas sociais devem buscar a identificação de aspectos como a ênfase majoritária da administração pública a investimentos sociais ou políticas econômicas, a atuação (ou não) em favor do desenvolvimento e ampliação de direitos sociais, a autonomia e a abrangência de políticas sociais nacionais com relação a or- ganismos internacionais e, também, o papel da organização de forças políticas originadas na sociedade civil à conformação da política social. Sobre tais aspectos e em diálogo especialmente com a dimensão cultural – e, em alguma medida, política mencionada na citação anteriormente evidenciada – cabe destacar que, por conta de um conjunto de aspectos que perpassam o su- cateamento da máquina pública, a proliferação de práticas ilícitas e de corrupção, as crises econômicas e o desenvolvimento da globalização, não são raros os casos de entes públicos (prefeituras, governos estaduais ou mesmo governos federais) 63 que declaram dificuldades e assumem sua debilidade em arcar com as políticas públicas, sejam elas das mais diversas áreas, mas com destaque àquelas sociais. Como já há algumas décadas, tal situação tem se revelado não apenas possível, mas também tem se repetido, nacional e internacionalmente, em se tratando do desenvolvimento das ações de políticas sociais, tanto que Amabile (2012, p. 390) afirma que “[...] são de responsabilidade da autoridade formal legalmente consti- tuída para promovê-las, mas tal encargo vem sendo cada vez mais compartilhado com a sociedade civil por meio do desenvolvimento de variados mecanismos de participação no processo decisório”. Um dos caminhos por meio dos quais o compartilhamento da responsabilidade pelas políticas sociais tem se desenvolvido é a inclusão da população nas discussões e nas deliberações. Nas últimas décadas, com distintos mecanismos e desenhos institucionais, um conjunto de países distribuídos por todos os continentes têm buscado tal diálogo, sendo que, desde o fim da década de 1980, o Brasil é referência em termos de participação institucional por conta da criação, expansão e sofistica- ção de mecanismos, como os orçamentos participativos, os conselhos gestores, as conferências, as audiências públicas, as ouvidorias públicas etc. O segundo caminho para tal compartilhamento é o desenvolvimento de ações coletivas por parte da sociedade civil. Se por um lado a participação institucional decorre da oferta de mecanismos para debate por parte do Estado à população, as ações coletivas, por outro, respondem por articulações da sociedade organizada para encaminhar demandas, necessidades e interesses ao poder público. Você já ouviu destes termos? Faça uma pesquisa rápida e encontrará muitas reportagens sobre “políticas de Estado” e “políticas de governo”, que lhe permitirão vislumbrar o que são e como se diferenciam a partir de casos práticos. PENSANDO JUNTOS Em tal categoria, encontram-se as organizações da sociedade civil (OSCs, tam- bém conhecidas como Terceiro Setor), as mais diversas modalidades de associa- tivismo (como comunitário, sindical, patronal, religioso, desportivo, cultural, por direitos de minorias ou de grupos específicos etc.) e os movimentos sociais, desde que qualquer destas formas de ação coletiva tenha como finalidade algum objeto que remeta a uma coletividade sob a perspectiva do conceito de política pública. UNIDADE 2 UNIDADE 2 64 A terceira maneira de compartilhamento do processo de construção de políti- cas públicas pelo Estado com a sociedade é a responsabilidade social empresa- rial. Atualmente, as empresas privadas buscam diferenciais competitivos para se destacarem no mercado e tem desenvolvido projetos que geram impacto social e atendem objetivos de políticas públicas, sendo que, ao mesmo tempo em que realizam trabalhos sociais, as empresas ganham reconhecimento junto à população, vislumbrando a possibilidade de um aumento de seu número de consumidores (SILVA et al., 2004; FUCS, 2007). Tendo em vista nosso enfoque prioritário sobre as políticas sociais, a partir deste ponto do texto – e, por conseguinte, em todo o restante deste material di- dático - trataremos das discussões sobre políticas sociais de modo direto, mesmo reconhecendo que muitos argumentos teóricos e crítico-analíticos se apliquem ou possam ser constatados também para outras áreas de políticas públicas anterior- mente apresentadas. Uma vez expostas as definições de políticas públicas e políti- cas sociais, é pertinente destacar que todo tipo de políticas pode ser desenvolvido enquanto parte de programas estruturados e, longitudinalmente, constituídos ou de modo pontual e específico diante de alguma demanda ou necessidade que se coloca à gestão pública. Assim, cabe-nos tratar dos termos que diferenciam estas formas ou estratégias, as políticas de Estado e as políticas de governo. Para que possamos distinguir as políticas de Estado e as políticas de go- verno, cabe-nos retomar, brevemente, as distinções entre os termos que as diferenciam: Estado diz respeito à concentração ou dispersão do poder, en- quantogoverno se refere à forma, ao sistema e ao regime por meio dos quais o exercício do poder ocorre. Em termos práticos, seria como dizer que o Estado apresenta a definição de quantas pessoas comandam os processos políticos, enquanto o governo diz respeito a como a organização dos mandatários (os governantes) é exercida em termos de gestão pública. Retomados estes conceitos, em somatória com o conceito de políticas sociais como responsabilidade do poder público com coletividades que neces- sitam de serviços específicos, é importante entendermos como tais políticas são interpretadas a partir das definições como políticas de Estado ou políticas de governo. As políticas de Estado caracterizam-se pelo envolvimento com a es- trutura burocrática de funcionamento da máquina pública, como agências de Estado, instâncias de discussão e de deliberação, bem como estudos técnicos e até mesmo a realização de consultorias antes da entrada em pauta legislativa. 65 Neste processo, não raras vezes, dois conjuntos de atores para além daqueles pertencentes ao Poder Executivo se fazem relevantes. O primeiro grupo de influência na elaboração de políticas de Estado são os políticos, seja por meio de partidos e suas bancadas (de situação ou de oposição ao governo, conforme as coalizões) seja por meio de sua influência nos postos legisla- tivos e nas cadeiras de secretarias, ministérios ou cargos de alto escalão. O segundo grupo é composto por membros da sociedade civil, mobilizados com a finalidade de exercer pressão para que um projeto ou ação seja contemplado em pautas de deliberação de políticas, de conferir visibilidade a um tema, ou de coibir decisões políticas que desrespeitem a vontade de uma coletividade, seja ela ampla seja restri- ta. Tal grupo compreende atores individuais (por meio de manifestações online ou offline, de abaixo-assinados, de greves, de ocupações etc.) ou coletivos (movimentos sociais, associações, sindicatos, comunidades religiosas, organizações do Terceiro Setor, empresários etc.) que visam vocacionar suas demandas e opiniões. Conforme explica Almeida (2016, on-line): “ Políticas de Estado, por sua vez, são aquelas que envolvem as bu-rocracias de mais de uma agência do Estado, justamente, e acabam passando pelo Parlamento ou por instâncias diversas de discussão, depois que sua tramitação dentro de uma esfera (ou mais de uma) da máquina do Estado envolveu estudos técnicos, simulações, aná- lises de impacto horizontal e vertical, efeitos econômicos ou orça- mentários, quando não um cálculo de custo-benefício levando em conta a trajetória completa da política que se pretende implementar. UNIDADE 2 UNIDADE 2 66 Para além do reconhecimento de demandas populares ou de coletividades especí- ficas e da tensão entre atores políticos, uma política de Estado se caracteriza, ainda, pela necessidade de ampla discussão de ordem financeira acerca do impacto sobre o orçamento do ente estatal e sua relação custo-benefício em termos de despesas e resultados quantitativos e qualitativos. Dado que políticas de Estado são construí- das para se perpetuarem na estrutura de funcionamento da máquina pública, o processo de criação, alteração ou extinção de uma política de tal natureza é moroso. “ O trabalho da burocracia pode levar meses, bem como o eventual exame e discussão no Parlamento, pois políticas de Estado, que res-pondem efetivamente a essa designação, geralmente envolvem mu- danças de outras normas ou disposições pré-existentes, com incidên- cia em setores mais amplos da sociedade (ALMEIDA, 2016, on-line). Conforme Rubim (2011), estas políticas dependem da submissão de proposi- ções ao debate público – aos moldes da perspectiva de Habermas (1997), da esfera pública e dos processos de deliberação – com possibilidade de incorpo- ração de proposições e críticas dos cidadãos à proposta, o que significa que as políticas de Estado operam com reconhecimento dos interesses e da necessida- de de vocalização de diferentes grupos sociais no processo de sua estruturação, portanto, devem se configurar de maneira democrática. Assim, como sintetiza Oliveira (2011), as políticas de Estado envolvem mais de uma agência do Estado, em geral, são submetidas ao crivo do Poder Legislativo e/ou de instâncias diversas de discussão cujos resultados incidem em setores amplos da socieda- de. Tais políticas necessitam ter bases institucionais de controle definidas ou delimitadas. Em contrapartida, a elaboração de políticas de governo é mais simples e ágil, especialmente pelo fato de que são formuladas de maneira unilateral e têm alcance, na maioria das vezes, mais restrito do que aquele de políticas de Estado. “ Políticas de governo são aquelas que o Executivo decide num proces-so bem mais elementar de formulação e implementação de determi-nadas medidas para responder às demandas colocadas na própria agenda política interna – pela dinâmica econômica ou política-parla- mentar, por exemplo – ou vindos de fora, como resultado de eventos internacionais com impacto doméstico (ALMEIDA, 2016, on-line). 67 Nesse sentido, ainda que tratem de temáticas ou áreas de ação que possam vir a exigir deliberações complexas, os trâmites necessários à aprovação de políticas de governo são mais curtos e cabem, geralmente, ao plano administrativo específico ou a níveis de competência, como secretarias ou ministérios. Em consonância com tal definição, Oliveira (2011, p. 329) assevera: “considera-se que políticas de governo são aquelas que o Executivo decide num processo elementar de formula- ção e implementação de determinadas medidas e programas, visando responder às demandas da agenda política interna, ainda que envolvam escolhas complexas”. Por sua vez, Paulo Oliveira (2012) expõe que as políticas de governo refletem posições institucionais e simbólicas em torno de competições entre projetos polí- ticos que concorrem na sociedade, o que significa que essas políticas são pensadas para rápida implementação, muitas vezes, com vistas a “dar cara” de determinado partido ou coalizão ao município ou localidade onde tal política opera ou é desen- volvida. Diante de tais conceitos, percebemos que políticas de Estado e políticas de governo não são termos intercambiáveis, não são sinônimos e não refletem o mes- mo processo de deliberação. Isso significa, portanto, que não devemos confundir e não podemos tratá-las como se remetessem a situações, projetos ou ações similares. UNIDADE 2 UNIDADE 2 68 Isto posto, ainda que uma política definida por um governo possa atender, em alguma medida, o clamor popular, ou que determinada política de Estado seja definida, exclusivamente, pelo Poder Executivo diante de uma conjuntura específica, as diferenças persistem. Assim, para além da relação entre atendimento aos anseios da população ou de- cisão baseada em elites políticas ou burocráticas, é salutar ao analista ou profissional que opere a política – assistente social, gestor público, sociólogo, político, servidor público ou profissional que atue em setor de responsabilidade social empresarial, por exemplo – atentar-se para aspectos que nos permitem distinguir políticas de Estado e políticas de governo, tais como os grupos que protagonizaram as discus- sões até a aprovação de uma lei, seus impactos e eventuais condicionalidades e as implicações em termos de investimentos públicos. Lembre-se dessa constatação, pois ela tem relação com o ciclo de políticas públicas e suas múltiplas etapas. As políticas de Estado e de governo, na condição de políticas sociais, são parte de um processo histórico que tem se desenvolvido em torno da luta pela garantia de direitos, de modo que é pertinente discutirmos a conformação histórica dos direitos humanos e sua face ampliada no contexto global contemporâneo, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Iniciemos abordando as dimensões de direitos hu- manos desenvolvidas ao longo dos séculos. O debate sobre direitos humanos con- forma as sociedadesdesde muitos séculos, mas se tornou relevante, especialmente a partir do século XVII, pois até então a preocupação com direitos individuais encontrava pouca ressonância para além da Filosofia, de modo que somente no contexto de mudanças sócio-políticas, na Europa, começou a se discutir de modo político a existência, a necessidade e a amplitude de direitos humanos. Trata-se de um tema importante tanto para compreendermos como aspectos de ordem social, cultural e de valores éticos se arranjam nas sociedades ao longo do tempo quanto para dimensionarmos em que medida os regimes políticos contemporâneos se aproximam ou distanciam da perspectiva de direitos huma- nos globalmente pactuada. Nesses termos, adianto que países onde os direitos humanos são mais respeitados tendem a aproximar-se do modelo multicultura- lista de democracia, ao passo que nações em que os direitos humanos são menos evocados ou relegados a poucos grupos – e excluem parcelas da população – aproximam-se de governos que fazem uso da necropolítica como estratégia de controle do Estado, o que será retomado ainda nesta unidade de estudos. 69 De modo geral, os direitos humanos são definidos como direitos comuns a todos os indivíduos que se encontram inseridos em uma sociedade. Dado o caráter atual da vida social e dos Estados nacionais, significa dizer que os direitos humanos devem ser pactuados no âmbito de cada país e também assumem caráter global. Então, dizem respeito a aspectos que conformam a política, pensada especialmente sob a perspectiva de que é no espaço local, no dia-a- dia das municipalidades, que a política de fato se manifesta – positiva e/ou negativamente – na vida dos indivíduos (WAMPLER, 2010). Conforme autores como Bobbio (2004) e Hunt (2009), os direitos humanos se caracterizam por serem naturais, iguais e universais: naturais enquanto ine- rentes a todos os indivíduos, iguais por serem expansivos a todos e universais considerando que são aplicáveis a todos. Em outras palavras, os direitos humanos referem-se aos direitos fundamentais de todos os indivíduos, o que significa que se trata do conjunto de direitos sem os quais uma pessoa não poderia se desen- volver e participar da vida em sociedade. Sua materialização ocorre por meio de institucionalização de políticas sociais. Talvez, neste momento de leitura, você esteja se perguntando algo como: “se os direitos humanos são tão fundamentais assim, então, todos os temos, certo”? É um questionamento recorrente entre aqueles que ouvem sobre o assunto, mesmo em espaços distintos desta disciplina ou de uma formação superior, e a resposta é que não necessariamente todos têm acesso aos direitos humanos apesar de serem considera- dos fundamentais, pois mesmo o direito à vida só existe se reconhecido ou legitimado. UNIDADE 2 UNIDADE 2 70 De modo a adensar este argumento, remetemo-nos à análise de Priori e Kischener (2019), que afirmam que o direito à vida é considerado como primeiro direito huma- no, do qual decorrem todos os demais, relacionados a aspectos, como alimentação, saúde, moradia, educação, liberdade e dignidade, por exemplo. Contudo “para que esses direitos se tornem direitos fundamentais, eles devem ser reconhecidos como tais pelos Estados e no plano internacional” (PRIORI; KISCHENER, 2019, p. 10). Nesse sentido, é importante expor que, ao longo da história, houve distintas interpretações sobre o que são direitos humanos. A primeira menção ao termo encontra-se associada à Bill os Rights, uma declaração de direitos forjada na In- glaterra, no fim do século XVII, após a deposição do Rei Jaime II (católico) e com a ascensão do príncipe Guilherme de Orange e Maria de Stuart (protestantes) ao poder monárquico, no processo histórico que ficou conhecido como Revolução Gloriosa. Ainda que não houvesse naquele documento a preocupação ampla com direitos individuais, tratou-se de uma declaração de direitos que considerou a existência de direitos fundamentais. No século XVIII, antes mesmo das grandes revoluções, a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, a declaração de independência dos Estados Unidos da América expôs, em 1776, a consideração de que todos os homens são iguais e pos- suem como direitos inalienáveis a vida, a liberdade e ser felizes. Poucas décadas depois, no contexto da Revolução Francesa (1789), foi publicada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que se tornou uma referência ao delimitar em seu artigo primeiro que os homens nascem livres e devem assim permanecer, sendo todos iguais em direitos com relação à liberdade, à propriedade, à segu- rança e à resistência à opressão, “ a declaração instituiu o que no futuro conheceremos como Estado de di-reito, ou seja, uma organização política em que os governantes não criam o direito para justificar o seu poder, mas para submeter-se às normas e aos princípios editados por uma autoridade superior, geralmente, a Constitui- ção (PRIORI; KISCHENER, 2019, p. 12). Este período histórico de conformação do estabelecimento de direitos civis e políticos relacionados às liberdades (no plural) ficou conhecido como primeira geração de direitos humanos, depois redefinida como primeira dimensão dos direitos humanos - pensando que a ideia de “geração” implicaria evolução ou 71 substituição, ao passo que “dimensão” remete à possibilidade de multiplicidade de conteúdos ou formas, como, de fato, se tem em se tratando dos direitos humanos. Aqui, cabe uma ressalva à conjuntura histórica da Revolução Francesa: a De- claração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi amplamente criticada por Marx (1983), que entendia que a garantia da propriedade e da segurança eram direcionadas aos detentores de posses e à manutenção de sua condição, de modo que somente com a extirpação da propriedade privada seria possível garantir amplos direitos humanos com vistas à igualdade entre os indivíduos. Isso sig- nifica que, desde a conformação das bases da primeira geração/dimensão de direitos humanos, já havia distinção entre a elite política e econômica e a massa de trabalhadores que constituem a maior parcela das populações. Comparato (2015), diferentemente da interpretação clássica de Marx, destaca que a referida Declaração oportunizou a materialização de direitos por conta do ideário da Revolução Francesa. Conforme o autor recente, para além das discussões e da preocupação com liberdade e igualdade, a questão da fraternidade foi materia- lizada, por meio de ações de solidariedade, o que teria proporcionado conhecermos direitos humanos como direitos civis, os quais devem ser garantidos à população pelo Estado, com vistas à proteção social dos mais pobres em todo o mundo. Ainda que, em sentido prático, estes valores e a perspectiva de solidarieda- de como valor social não tenham dizimado as desigualdades sociais ao redor do mundo, trata-se de importante avanço à época, especialmente porque boa parte do que hoje são países da América, África e Oceania e também alguns asiáticos eram domínios europeus, portanto, sem condições de dignidade e acesso aos direitos humanos como conhecemos. A preocupação mais ampla com a ampliação efetiva dos direitos humanos a grandes contingentes da população só ocorreu após a Segunda Guerra Mun- dial, que deixou muitos países destruídos, povos assolados com a crueldade e as atrocidades do nazismo alemão, do fascismo italiano e, também, por outro lado, com o medo diante do impacto das bombas nucleares estadunidenses. Era ne- cessário pensar caminhos globais para garantir que uma nova catástrofe de pro- porção mundial não ocorresse, sendo o caminho estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) o diálogo entre os países a fim de conformarem um documento único em defesa dos direitos humanos. Assim, em 10 de dezembro de 1948, foi assinada por, praticamente, todos os países a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) – à exceção de União Soviética, Ucrânia, Tche- UNIDADE 2 UNIDADE 2 72 coslováquia,Polônia e Iugoslávia (países comunistas naquele período) e, também, Arábia Saudita e África do Sul. Em seu preâmbulo, a referida Declaração destacava a igualdade e a impos- sibilidade de alienação de direitos, como liberdade, justiça e paz. Já nos artigos iniciais, a DUDH destaca que todos os homens nascem livres e em igualdade em termos de direitos e de dignidade, independentemente de distinções, como raça, cor, sexo, língua, religião, origem, classe social, opinião ou outra condição. Assim, a segunda dimensão de direitos humanos ampliou os direitos civis, somando-os a direitos sociais, relacionados ao trabalho, à educação, à saúde, à habitação, à cultura, ao lazer e à segurança – ou seja, às políticas sociais. Apesar de ampla e construída em um momento delicado da relação entre os países, a DUDH não foi suficiente para que os direitos humanos passassem a ser respeitados, tanto que, em menos de duas décadas, a ONU buscou a aprovação de dois tratados com detalhamentos de aspectos constantes na Declaração. Assim, em 1966 foram assinados o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. “ A aprovação de dois pactos, ao invés de um amplo e geral, tem uma justificativa histórica. As grandes potências ocidentais defendiam apenas o reconhecimento das liberdades individuais clássicas, tais como a proteção da pessoa humana contra abusos e interferência do Estado na vida privada. Já os países socialistas e as jovens nações africanas defendiam que o foco deveria ser nos direitos sociais e econômicos, cujo objetivo era adotar políticas públicas de apoio aos grupos ou classes menos favorecidas. No entrecruzamento dessas divergências, os dois lados saíram vitoriosos com a publicação de dois pactos (PRIORI; KISCHENER, 2019, p. 16). Merece destaque o fato de que a ONU encampa a busca pela efetivação de di- reitos humanos desde a criação da DUDH, tanto que, ao longo dos anos, foram muitos os organismos internacionais e independentes que passaram a se dedicar a monitorar a implementação de mecanismos e dispositivos garantidores dos direitos humanos nos países, entre os quais se destacam o Comitê para Elimina- ção da Discriminação Racial (criado em 1965), o Comitê de Direitos Humanos 73 (em 1966), o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (também em 1966), o Comitê para Eliminação da Discriminação contra Mulheres (em 1979), o Comitê contra a Tortura (em 1984), o Comitê para os Direitos da Criança (em 1989), o Comitê para Trabalhadores Migrantes (1990) e o Comitê sobre os Di- reitos das Pessoas com Deficiência (em 2007). No fim do século passado, a ampliação das preocupações globais com temas para além de direitos civis e sociais levou ao surgimento de uma terceira dimen- são de direitos humanos, considerados direitos difusos por serem coletivos e também abstratos (em alguma medida), como a promoção da paz e do desen- volvimento em geral, a comunicação e a proteção ao meio ambiente, aos povos e aos patrimônios cultural e histórico da humanidade. E, ainda, no fim do século XX, estabeleceram-se os direitos humanos de quar- ta dimensão, em se enquadra a defesa de grupos historicamente inferiorizados em termos de direitos, as minorias. Em decorrência da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena (Áustria), em 1993, a ONU reafirmou direi- tos anteriormente consagrados e destacou o enfrentamento a problemas, como violência de gênero, preconceito contra etnias, deficientes, indígenas e migrantes (RABENHORST, 2016). Ademais, como destacam Priori e Kischener (2019), o documento de Viena destacou três temas fundamentais, especialmente aos mais vulneráveis: o investimento em políticas públicas para enfrentamento da pobreza e da exclusão social, o combate à tortura em suas múltiplas faces e a necessidade de incluir nos conteúdos escolares o debate sobre direitos humanos. NOVAS DESCOBERTAS “O Pacto Global advoga Dez Princípios universais, derivados da Decla- ração Universal de Direitos Humanos, da Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvol- vimento e da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção. As organizações que passam a fazer parte do Pacto Global comprome- tem-se a seguir esses princípios no dia a dia de suas operações”. UNIDADE 2 https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/15730 UNIDADE 2 74 E como essas dimensões de direitos humanos se configuraram no Brasil? Em nosso país, os direitos humanos se desenvolveram entre avanços e retrocessos. A Constituição do período monárquico (1824-1889) contemplou os direitos de liberda- de, segurança e proteção da propriedade privada, aos moldes da primeira dimensão de direitos humanos calcada na Revolução Francesa. Contudo, apesar de haver garantia de direitos a todos os cidadãos, a Constituição limitava tal categoria a homens, libertos e nascidos no Brasil ou naturalizados, sendo que mesmo entre esses o voto era ainda mais restritivo, pois havia critério de renda mínima para ser considerado eleitor. Após o Brasil tornar-se república, a Constituição promulgada em 1891 reduziu os direitos humanos por conta do impacto negativo da legislação sobre políticas sociais: a educação primária deixou de ser obrigação do Estado, a assistência social não deveria mais ser promovida e sobre a regulamentação do trabalho não caberia interferência do poder público. Com relação ao último aspecto, os movimentos operários enfrentaram fortemente o governo com relação à estipulação de direitos trabalhistas, especialmente nas duas primeiras décadas do século XX, com destaque às greves, em torno de 1910. Após o Brasil assinar o Tratado de Versalhes e ingressar na Organização Internacional do Trabalho (OIT), na virada para a década de 1920, houve algum avanço em termos de direitos trabalhistas, mas a pressão operária 75 continuou expressiva até a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) cujos direitos persistem, parcialmente, até os dias atuais, como a regu- lamentação de descanso semanal remunerado, décimo-terceiro salário, limite de carga horária de trabalho diário e outros aspectos. A CLT, contudo, foi, naquele período, uma política restritiva por dois as- pectos: um direto e outro indireto. De maneira direta, seus benefícios não con- templaram todos os trabalhadores, sendo que aqueles que atuavam na zona rural ou no âmbito doméstico não foram considerados. Já indiretamente, o reconhecimento profissional foi atrelado à cidadania para acesso a políticas sociais, o que ocorria por via sindical, sendo que o governo determinava quais sindicatos teriam suas profissões consideradas a partir da pressão (ou melhor, sua ausência) com relação às ações estatais. Em outras palavras, a cidadania foi regulada pelo interesse do governo em enfraquecer sindicatos para reduzir a pressão popular e a oposição à sua atuação (SANTOS, 1979). Foi o período militar, porém, que mais contribuiu, negativamente, aos direitos humanos, no Brasil. A partir da tomada do poder, em 1964, os direitos civis e políticos dos brasileiros foram reduzidos e se tornaram expressivas e recorrentes as ações ditatoriais, como o fechamento do Congresso Nacional, a repressão aos movimentos sociais, os exílios e os assassinatos de inimigos políticos e a extinção dos partidos políticos existentes até aquele momento. A repressão, no entanto, teve um efeito reverso entre a população: a mobilização social e fortalecimento de movimentos sociais pela redemocratização. Conforme Priori e Kischener (2019, p. 21), “a Constituição de 1988 é o documento mais importante e significativo existente no Brasil sobre direitos humanos”, pois trata dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade à segurança e à propriedade como inalie- náveis ou invioláveis. Ademais, o texto constitucional em vigor destaca a proibição da tortura e permite a liberdadede manifestação de pensamento, de expressão artística e cultural, de manifestação de religião, de organização pública e de circulação. Ademais, cabe salientar que, em 1996, foi lançado o Plano Nacional de Direi- tos Humanos (PNDH), que reconheceu os direitos dos indivíduos em situação de vulnerabilidade social e as mortes de desaparecidos durante a Ditadura Militar. Em 2002, foi publicado o PNDH II, que expandiu os direitos humanos amplos defendidos na Constituição a minorias, como mulheres, indígenas, negros, ho- mossexuais, refugiados, ciganos e deficientes, por exemplo. UNIDADE 2 UNIDADE 2 76 Tal plano foi ampliado, em 2010, quando o PNDH III fortaleceu os objetivos de atenção aos direitos humanos ao determinar os órgãos res- ponsáveis pela implementação de políticas sociais em atendimento às demandas no campo dos direitos humanos no Brasil. Assim, denota-se a expansão e o fortalecimento de direitos huma- nos, no Brasil especialmente nos últimos 100 anos, com consequente impacto sobre o desenvolvimento de políticas sociais. Mas é importante salientar que não somente a partir da conjuntura social e política nacio- nal os direitos humanos são ampliados, já que a importância da ONU persiste mesmo após mais de sete décadas da DUDH, agora, materiali- zada de maneira mais complexa e ampla. Considerando o avanço dos direitos humanos em suas dimensões e a con- juntura global que denota atenção à questão ambiental, na 70ª Sessão da As- sembleia Geral das Nações Unidas, realizada em 2015, reuniram-se chefes de Estado e de governo, representantes da própria ONU e da sociedade civil para discutir os avanços necessários e os entraves à DUDH, no sentido de identificar os pontos negativos e determinar estratégias para sua superação, com vistas a garantir que os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dos indivíduos sejam respeitados em todo o mundo. Isto posto, o resultado foi a proposição de um conjunto de indicadores e ações a serem adotados, mundialmente, para garantir, de modo amplo, a atenção aos direitos humanos de modo direto e indireto. Daí decorreu o estabelecimento de uma lista de compromissos que se configurou como uma agenda global de desenvolvimento de metas, a “Agenda 2030”. 77 Conforme o documento da ONU, há duas maneiras de classificar este conjunto de ODS: por dimensões e pela natureza dos direitos humanos a ser garantidos. Com relação às dimensões, a própria plataforma da “Agenda 2030” apresenta um esquema sobre a configuração dos objetivos distribuídos entre os eixos biosfera, sociedade e economia, conforme figura 17. Trata-se de uma distribuição dos ODS que permite verificar que a maioria dos objetivos estão vinculados à sociedade, o que decorre da preocupação direta desses objetivos com os direitos humanos, porém, é pertinente destacar que o desenvolvimento social deve ocorrer combinado com a preservação da natureza e com a preocupação com questões de natureza econômica – daí o eixo sociedade estar entre biosfera e economia, demonstrando a relação entre eles. Ademais, o tamanho conferido a cada eixo demonstra o quão grande e desafiador é tratar de cada temática, com destaque às questões de ordem ambiental. Por fim, ainda com relação à Figura 1, destaca-se o Objetivo 17, no topo e separado dos demais, uma vez que trata dos mecanismos para a consecução dos ODS em geral. O principal destaque da “Agenda 2030” são os Objetivos do Desenvolvi- mento Sustentável (ODS), dezessete indicadores norteadores das ações a serem implementadas, quais sejam: 1. Erradicação da pobreza 2. Fome zero e agricultura sustentável 3. Saúde e bem-estar 4. Educação de qualidade 5. Igualdade de gênero 6. Água potável e saneamento 7. Energia limpa e sustentável 8. Trabalho decente e crescimento econômico 9. Indústria, inovação e infraestrutura 10. Redução das desigualdades 11. Cidades e comunidades sustentáveis 12. Consumo e produção responsáveis 13. Ação contra a mudança global do clima 14. Vida na água 15. Vida terrestre 16. Paz, justiça e instituições eficazes 17. Parcerias e meios de implementação UNIDADE 2 UNIDADE 2 78 ECONOMIA SOCIEDADE BIOSFERA Descrição da Imagem: a imagem refere-se aos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável). Com- preende um esquema triangular sobreposto por três camadas circulares: Biosfera, Sociedade e Economia, e traspassado por uma seta vertical bidirecional que limita a ilustração em dois lados, esquerdo e direito. Na base do esquema triangular, está a camada Biosfera, representando quatro objetivos: Objetivo 15 (proteger a vida terrestre) e Objetivo 14 (proteger a vida marinha), ambos à esquerda do esquema; Obje- tivo 6 (água potável e saneamento) e Objetivo 13 (ação climática), ambos à direita do esquema. No meio do esquema triangular, está a camada Sociedade, representando oito objetivos: Objetivo 1 (erradicar a pobreza), Objetivo 11 (cidades e comunidades sustentáveis), Objetivo 16 (paz, justiça e instituições efica- zes) e Objetivo 7 (energias renováveis e acessíveis), todos à esquerda do esquema; Objetivo 3 (saúde de qualidade), Objetivo 4 (educação de qualidade), Objetivo 5 (igualdade de gênero) e Objetivo 2 (erradicar a fome), todos à direita do esquema. Na parte superior do esquema triangular, está a camada Economia, representando quatro objetivos: Objetivo 8 (trabalho digno e crescimento econômico) e Objetivo 9 (indús- tria, inovação e infraestruturas), ambos à esquerda do esquema; Objetivo 10 (reduzir as desigualdades) e Objetivo 12 (produção e costumes sustentáveis), ambos à direita do esquema. Por fim, no topo central do esquema triangular, está o Objetivo 17 (parcerias para a implementação dos objetivos). Figura 1 - Distribuição dos ODS por eixos / Fonte: adaptada de Villa Fohrde ([2022], on-line). 79 OLHAR CONCEITUAL O ODS 1 é “Erradicação da pobreza” e busca, de modo geral, acabar com a pobreza em todas as manifestações e em todo o planeta. Para tanto, há metas destinadas ao combate da pobreza extrema e ao estímulo aos governos nacionais para implementação de medidas e sistemas de proteção social por meio de garantia de acesso a serviços básicos e também da criação de marcos políticos que visem a destinação de investimentos públicos para a erradicação da pobreza nos níveis nacional, regional e internacional. O ODS 2, “Fome zero e agricultura sustentável”, é pautado por três preocupações, quais sejam: acabar com a fome, desenvolver a segurança alimentar com melhoria da nutrição e a promoção da agricultura sustentável. Para tanto, há metas voltadas ao enfrentamento da fome para extingui-la e também à desnutrição, bem como o foco em investimentos para aumento da produtividade agrícola e da renda dos pequenos produtores de alimentos com expansão de sistemas de produção de alimentos e de práticas agrícolas sustentáveis, para manutenção da diversidade genética de sementes e de animais de criação e domesticados e ainda para melhorias na infraestrutura rural e em pesquisas. Por fim, é preocupação da “Agenda 2030” a correção e prevenção de restrições ao comércio e de distorções no mercado agrícola mundial. O ODS 3 trata de “Saúde e bem-estar” e remete a dois focos: redução de mortes e cuidados com a vida. No primeiro foco encontram-se metas para mortalidade materna, mortes evitáveis de recém-nascidos e mortes prematuras por doenças não transmissíveis, bem como por acidentes em estradas e por produtos químicos ou contaminações. No segundo foco enquadram-se a ampliação dos serviços públicos de saúde, o enfrentamento a epidemias e ao abuso de substâncias, bem como o apoio à pesquisa e ao desenvolvimento de vacinas e medicamentos e, de modo específico, o acesso universal a serviços de saúde sexual e reprodutiva. O ODS 4, “Educação de qualidade”, é pautado pela preocupação com infraestrutura e formação educacional. Por um lado, há metas para construção e melhoria de instalações físicas para educação e qualificação de professores; por outro lado, visa-segarantir o fim do analfabetismo e o acesso e qualidade na primeira infância (educação pré-escolar), ensino primário e secundário e educação técnica e superior, com desenvolvimento de competências profissionais e do empreendedorismo e disponibilização de bolsas de estudos para países em desenvolvimento. Para atingir o ODS 5, que visa a “Igualdade de gênero”, deve-se buscar a eliminação de todas as formas de violência e discriminação contra as mulheres, inclusive com reconhecimento e valorização de atividades não remuneradas domésticas e de cuidado e por meio da garantia plena e efetiva de igualdade de oportunidades de liderança no âmbito empresarial, público e eletivo. Para tanto, é de responsabilidade dos governos nacionais a adoção e o fortalecimento de políticas públicas garantidoras de direitos e promotoras de empoderamento das mulheres. O acesso universal e equitativo à água potável, saneamento e higiene compõem o ODS 6, “Água potável e saneamento”, pautado pela redução da poluição combinada com proteção e restauração de ecossistemas relacionados à água, gestão de recursos hídricos com aumento da eficiência do uso da água e fortalecimento da participação de comunidades locais em ações. UNIDADE 2 UNIDADE 2 80 Já ODS 7, de “Energia acessível e limpa”, busca assegurar acesso universal e de qualidade a serviços de energia com preços acessíveis, bem como o investimento em infraestrutura para o desenvolvimento de serviços de energia modernos e sustentáveis e para pesquisas e implementação de tecnologias de energias limpas e renováveis, com vistas à melhoria da matriz energética global. O ODS 8 é “Trabalho decente e crescimento econômico” e se pauta pela preocupação com crescimento econômico atrelado à maior produtividade combinada com menor utilização de recursos naturais e respeito ao trabalhador por meio de emprego pleno e decente, da extinção do trabalho forçado ou escravo e da proteção dos direitos trabalhistas. Ademais, há metas para o estímulo ao turismo sustentável e de atenção à empregabilidade de jovens. Com relação à “Indústria, inovação e infraestrutura”, o ODS 9 se caracteriza por ações que visam a construção de infraestruturas resistentes que permitam a industrialização inclusiva e sustentável, bem como fomentem a inovação. Para tanto, deve haver investimento público em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias e atenção especial às pequenas indústrias de países em desenvolvimento. Em se tratando do ODS 11, “Cidades e comunidades sustentáveis”, a preocupação é tornar cidades e assentamentos mais seguros, inclusivos e sustentáveis. Para tanto, há metas que visam garantir acesso universal à habitação, sistema de transportes e espaços públicos, com segurança, acessibilidade e preços acessíveis (se pertinente), considerando a salvaguarda dos patrimônios cultural e natural, a redução do impacto ambiental e a atenção à urbanização de favelas e outros assentamentos humanos. O ODS 12 de “Consumo e produção responsáveis” busca assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis por meio de ações como redução do desperdício de alimentos, incentivo a práticas empresariais sustentáveis, manejo ambiental saudável de produtos químicos e resíduos e racionalização do uso de combustíveis fósseis. Para atingir a “Redução das desigualdades”, o ODS 10 estabeleceu como metas a busca por crescimento sustentável da renda da população mais pobre, o empoderamento e a inclusão social, econômica e política de todos, a extinção de leis, políticas e práticas discriminatórias e a adoção de políticas de proteção social ampla. Além disso, no âmbito internacional deve-se facilitar a migração e a mobilidade ordenada de indivíduos e garantir maior representação e voz aos países em desenvolvimentos nos fóruns e espaços de tomadas de decisão sobre políticas e instituições econômicas e financeiras globais. 81 De ordem ambiental, o ODS 13 visa a “Ação contra a mudança global do clima” e se pauta por metas relacionadas à educação e conscientização de indivíduos, organizações empresariais e instituições políticas sobre a necessidade de integração de planejamentos e medidas para combater a mudança climática e seus impactos, em caráter de urgência. Pautado pela “Vida na água”, o ODS 14 tem metas relacionadas à conservação e ao uso sustentável de oceanos, mares, costas e recursos marinhos, focado no desenvolvimento sustentável com preservação de ecossistemas, redução de poluição marinha, limites à pesca e busca por desenvolvimento de pesquisas e tecnologias concomitantemente ao respeito às normas de Direito Internacional. Por sua vez, o ODS 15 trata da “Vida terrestre” e remete a ações pertinentes à proteção, recuperação e uso sustentável de ecossistemas terrestres, de modo a cuidar de florestas e da biodiversidade e a combater a degradação da terra e sua desertificação. Para tanto, propõe-se ações de cunho político nacional e transnacional para conservação da natureza terrestre e combater a caça ilegal de espécies animais. O penúltimo objetivo, o ODS 16, remete à “Paz, justiça e instituições eficazes” e trata de metas referentes ao enfrentamento de todas as formas de violência (e consequentes taxas de mortalidade) e de corrupção, bem como do desenvolvimento de instituições eficazes e transparentes, que promovam o estado de Direito e a participação cidadã na tomada de decisões. Concluindo os objetivos da ONU, o ODS 17 de “Parcerias e meios de implementação” visa fortalecer os mecanismos para implementação e revitalização de parcerias em nível global, com vistas ao desenvolvimento sustentável. Para tanto, há metas que perpassam eixos de finanças, tecnologia, capacitação, comércio, questões sistêmicas, parcerias multissetoriais, monitoramento de dados e prestação de contas. De modo geral, a expectativa é de estímulo à cooperação entre países. Fonte: adaptado de https://portal.stf.jus.br/hotsites/agenda-2030/ UNIDADE 2 UNIDADE 2 82 A outra maneira de classificar os ODS é com relação à natureza dos direitos humanos contemplados ou nor- teadores de cada indicador. Nesse sentido, é possível delimitar quatro eixos de direitos humanos, nos quais se distribuem os dezesseis primeiros ODS, conforme segue: os objetivos 8, 10 e 16 dizem respeito aos direitos civis; (primeira dimensão) os ODS 1, 2, 3 e 4 referem- -se a direitos econômicos, sociais e culturais (segunda dimensão); os direitos de solidariedade estão expressos nos objetivos 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15 (terceira dimensão); e o ODS 5 trata de direitos políticos (quarta dimensão). Perceba-se que alguns ODS estão atrelados a mais de um direito, e a ausência de classificação do objetivo 17, por ser amplo e geral, de modo a não se relacionar, especificamente, a nenhum tipo de direito. Ainda que o ODS 17 não seja classificado junto aos demais objetivos, cabe destacar que consta a res- ponsabilização do poder público com relação aos in- dicadores propostos e, também, a sinalização de que é imprescindível o envolvimento das empresas (setor privado) e da sociedade para que o Brasil consiga atingir todos os objetivos propostos pela ONU e pac- tuados por nossos governantes – em que se dialoga com a observação anteriormente apresentada nesta unidade de estudos sobre as parcerias e pactuações do Estado com o Terceiro Setor e/ou empresas para o desenvolvimento de políticas sociais. Diante do conteúdo exposto até aqui, talvez, você esteja se perguntando como as políticas sociais se materializam, de fato, em direitos humanos e ODS na prática, ou seja, nos municípios, o “chão” da política. Nosso Podcast desta unidade de estudos busca responder a esta indagação, por meio da abordagem de excertos da pesquisa desenvolvida por Micaelli Lobo dos Santos, Ceyça Lia Palerosi Borges e Letícia da Costa e Silva, intitulada “Aplicação dos Objetivos do Desenvolvimen- to Sustentável (ODS) no plano de metas de Barueri/SP, publi- cada no primeiro semestre de 2022 na RevistaOrbis Latina. https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/14500 83 A preocupação com o desenvolvimento de políticas sociais que atendam às dife- rentes dimensões de direitos humanos e os ODS é uma característica relevante de regimes democráticos. Isto posto, é pertinente tratarmos – ainda nesta unidade de estudos – do multiculturalismo, corrente teórica, crítica e analítica das Ciências Sociais que perpassa suas três áreas: partindo da Antropologia e da Sociologia, o multiculturalismo diz respeito ao reconhecimento de variedades de culturas e ao pluralismo de culturas que se colocam em convivência nas sociedades contem- porâneas, ao passo que sob a perspectiva da Ciência Política, tomando os eixos clássicos a partir dos quais se interpretam os regimes democráticos – represen- tação, participação e deliberação – existem muitos caminhos analíticos, por meio dos quais se estabelecem teorias ou modelos explicativos sobre o funcionamento das democracias na atualidade e o multiculturalismo é uma explicação possível. Um relevante balanço sobre estas teorias foi organizado por Albrecht (2019), que atualizou e ampliou discussões anteriores de autores como Held (2006) e Miguel (2005). Conforme a autora, as vertentes teóricas contemporâneas julgam a democracia como positiva e como melhor forma de governo e tentam, subs- tancialmente, associá-la às noções de igualdade política e participação popular, sendo importante considerar que o que caracteriza a democracia não é uma es- colha excludente entre deliberação, participação e representação, mas como estas formulações são entendidas e atuam em relação à igualdade política. Isto posto, a autora apresenta sete teorias democráticas contemporâneas, quais sejam: liberal-pluralismo, pautada por garantias legais, possibilidade de participação e definição do governo pelo voto, porém com relativa autonomia; UNIDADE 2 UNIDADE 2 84 deliberacionismo, focada na deliberação por indivíduos racionais em fóruns de de- bate, considerando a importância do diálogo em esfera pública para a democracia; republicanismo, caracterizada por governo misto e com participação popular no controle e na ação política, porém limitada para não representar um risco ao regime; participacionismo, que busca a ampliação dos espaços e mecanismos de participação em combinação com a representação; feminismo, a qual busca romper com a dico- tomia público-privado em favor de uma sociedade mais justa e equânime em direi- tos e oportunidades para mulheres e homens; neo-marxismo, que defende a maior integração entre Estado e sociedade, com ampliação da possibilidade de destaque à classe operária e redução da condição de Estado de classe voltado aos interesses da burguesia e elite político-econômica; e multiculturalismo, que defende a necessidade de ampliação da prática democrática para atingir grupos marginalizados ou com menor acesso a espaços e vocalização de demandas políticas e sociais. Assim, o princípio do multiculturalismo está relacionado à existência de múl- tiplas identidades em cada indivíduo e em cada sociedade, as quais precisam ser consideradas de modo que não apenas os interesses do grupo que conforma a elite política e econômica sejam atendidos. A saber, significa uma democracia vol- tada não apenas aos interesses tidos como universais de pessoas que acumulam características, como ser homem, branco, de classe média-alta ou alta, heterosse- xual e com vínculos sociais influentes. Significa, também, que o multiculturalismo defende que a democracia considere e atenda às demandas e às necessidades de grupos que são minorias em termos de acesso a direitos, como mulheres, não brancos, com menor renda, LGBTI+, com deficiência, imigrantes etc. Portanto, trata-se de uma corrente interpretativa que se pauta pela defesa de grupos que têm acesso restrito a diversas esferas de reconhecimento, de modo que cabe destacar que a perspectiva multiculturalista é positiva no contexto de- mocrático por conta da possibilidade de valorização de grupos como agentes políticos, tendo em vista que se pautam pela manifestação de que direitos sociais lhes são devidos e carecem de atenção e atendimento. Isso significa que uma ma- nifestação de insatisfação de grupos deve fazer emergir a consideração em torno da necessidade de incluir políticas direcionadas a minorias, de caráter redistribu- tivo e voltadas àqueles que necessitam, especificamente, de determinado serviço ou recurso, o que reforça o caráter ético coletivo de busca pelo atendimento de necessidades de distintos grupos e expande a noção de cidadãos à totalidade da população, independentemente de características sociais específicas. 85 Ademais, o multiculturalismo estabelece uma crítica ao ideal de imparcialidade que vigora nos governos em que a elite política e econô- mica ocupa os postos de mando e trabalha para a manutenção de seu status quo, de modo que grupos menos favorecidos sequer têm voz, não raras vezes, e que toda oportunidade de vocalizar demandas e necessidades deve ser aproveitada. Conforme Miguel (2005), trata-se de uma maneira de pensar a sociedade em contraposi- ção ao liberalismo, que não negava a existência de interesses de grupos, mas excluía a possibi- lidade de “direitos de grupos”. Ao passo que o sujeito do liberalismo era o indivíduo, o multi- culturalismo inclui os grupos como agentes na reflexão política, já que tais coletividades são entendidas não como mera agregação de indiví- duos, mas como conjuntos de pessoas que com- partilham uma identidade e luta pela garantia de direitos sociais pertinentes a esta identidade. Nesse sentido, a força das ações coletivas no Brasil, crescente nas últimas décadas, en- contra-se em consonância com o multicultu- ralismo, uma vez que são cada vez mais recor- rentes movimentos sociais, associações e OSCs que se mobilizam por causas de direitos sociais e de minorias, atuando de maneira isolada ou coletivamente e, também, ocupando espaços de representação nas IPs mencionadas, os con- selhos e as conferências de políticas públicas. Estas articulações indicam a perspectiva de que existem pautas que mobilizam cada uma destas ações coletivas, individualmente, mas também outras que demandam sua união por se tratarem de pautas comuns. Alguns exem- UNIDADE 2 UNIDADE 2 86 plos de situações em que minorias podem se juntar para pleitear alterações da realidade social são as lutas coletivas de movimentos feministas e negros em torno da recorrência de casos de violência obstétrica contra mulheres negras, a articulação de grupos de mulheres, negros e LGBTI+ pela criação de conselhos voltados à políticas para a diversidade e de moradores de regiões periféricas dos municípios, de pessoas com deficiência, de trabalhadores e de setores envolvidos com esporte e cultura pelo direito à cidade, para que haja transporte coletivo adequado e em horários que permitam sua circulação pelo território municipal aos fins de semana e feriados. O multiculturalismo traz, assim, uma reflexão sobre o próprio significado de democracia: constantemente associada à maioria, a democracia, em defesa do multiculturalismo, passa a ser vista como um regime protetor de minorias, constituídas não pelo aspecto numérico, mas pela posição que ocupam na sociedade em uma perspectiva relacional quanto à sua cidadania e aos direi- tos sociais. Assim, o multiculturalismo opõe-se à ideia de que democracia é meramente um governo “do maior número”. Em se tratando dos principais marcadores sociais que marcam o contexto multiculturalista de enfrentamentos por direitos de minorias, Rifiotis (2012), destaca quatro aspectos ou temáticas, quais sejam: sexo, classe social, idade e geração e etnia. Trata-se de temas importantes e latentes ao desenvolvimento de políticas sociais, conforme evidenciamos a seguir. O sexo apresenta-se como um vetor biológico definidor, ainda que, parcial- mente, de modos de pensar, agir e sentir dentro da maioria das sociedades con-temporâneas, as quais, em alguma medida, refletem a diferenciação entre homens e mulheres e suas ocupações e limites nos âmbitos público e privado (RIFIOTIS, 2012). Nesse sentido, uma desconstrução latente a ser enfrentada pela noção de alteridade é a determinação dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres no cuidado com o lar e a família (no âmbito privado) e sua capacidade de atuação no mercado de trabalho em geral, em cargos e funções hierarquicamente elevados e nos espaços da política (no âmbito público). O segundo marcador social relevante no contexto multicultural atual é a questão de classe social, critério que assume características econômicas e cultu- rais, de maneira simultânea. Por um lado, remete à manutenção do domínio e da diferenciação social que perpetua uma elite política e econômica como ocupante do poder, ao mesmo tempo que, por outro lado, dialoga com um discurso de 87 meritocracia, pautado pelo argumento de que o esforço é a condição necessária para que todos alcancem seus objetivos. Tendo em vista o impacto da qualidade do ensino sobre a possibilidade de alteração de classe social dos indivíduos, é pertinente considerar que uma sociedade mais ética e com valores de cidadania seria aquela em que a democracia defende a melhoria da educação pública. Com relação ao terceiro marcador social, a relação entre idade e geração, cabe destacar que enquanto idade remete à mera contagem de anos de vida, o conceito de geração remete às experiências e às perspectivas que cada período da vida pode reservar aos indivíduos. Da mesma maneira, trata das necessidades individuais com as quais o Estado deve arcar para com o indivíduo. Isso signi- fica que os jovens, por exemplo, fazem maior uso de equipamentos públicos de educação e esportes bem como carecem de políticas de inserção no mercado de trabalho e de acesso ao Ensino Superior ou cursos técnicos para profissionali- zação. Por outro lado, àqueles em idade “produtiva” cabe a preocupação com a Previdência Social, e aos idosos cabe a maior utilização do Sistema Único de Saúde. Esta noção de geração, portanto, remete às experiências vivenciadas, de modo que as experiências que conformam as identidades dos indivíduos e sua relação com o caráter ético da vida em sociedade e sua cidadania diferem. Por fim, o quarto marcador social destacado por Rifiotis (2012) é a questão da etnia, indicador voltado à interpretação das relações existentes entre distintos grupos étnico-raciais, referentes aos quais é conhecida a diferenciação em termos de acesso a oportunidades e preconceitos, especialmente ao nos depararmos com a história do Brasil, após a abolição da escravatura (1888) e a Proclamação da Repú- blica (1889). Sobre tal marcador, o autor chama atenção com a seguinte exposição: “ A desigualdade social no Brasil passa com certeza pelo marcador étnico. Porém, a questão atual está em compreender como se dá o “preconceito à brasileira” e como ele opera no nosso cotidiano. Neste campo entre desigualdade social e preconceito, há muito para fazer e muitos aspectos para analisar. E não se iluda, porque o mais difícil de ver é o óbvio. De fato, a questão envolve múltiplos aspectos da vida social (RIFIOTIS, 2012, p. 99). Para além da consideração sobre cada marcador em separado, no entanto, é preciso ter em mente que se tratam de categorias analíticas, as quais podem UNIDADE 2 UNIDADE 2 88 apresentar-se isoladas ou de maneira conjunta na prática, uma vez que o multiculturalismo nos coloca o desafio de considerar a multiplicidade de aspectos conformadores das identidades individuais e pensarmos, de modo coletivo, sobre a prática ética e os direitos de cidadania. Assim, tem-se como desafios para pensar uma sociedade que seja, democraticamente, multicultural o enfrentamento de questões práticas palpáveis, como a violência doméstica e familiar contra a mulher, o rompimento com o conhecimento de senso comum de que a política e os cargos administrativos, hierarquicamente superiores, cabem aos homens, e não às mulheres, o ageismo, que denota pre- conceitos e determinações contra a faixa etária ou etapa de vida em que os cidadãos se encontram, os cuidados com a população com menor renda, em geral, com os que vivem em periferias, favelas e a população em situação de rua, melhorar a qualidade de atendimen- tos nas políticas setoriais de educação e saúde, desenvolver ações de reparação histórica em face de grupos étnicos desfavorecidos por meio de cotas e outras providências etc. Em suma, o multiculturalismo é uma teoria política que com- preende que a democracia deve atender às demandas de todos os grupos sociais, independentemente de quanto representem em termos numéricos na sociedade e se coloca como uma cor- rente do pensamento democrático atinente aos direitos sociais, políticas públicas e direitos humanos em geral. Entretanto, há inúmeros outros arranjos de governos e Estados que não pre- zam por tais valores, de modo que uma forma de “fazer político” expressamente contrário ao multiculturalismo é a necropolítica. Por conta da temática desta disciplina, cabe-nos, aqui, apenas sinalizar que se trata de uma estratégia de estruturação de governos pautados pela promoção da invisibilidade de grupos sociais mino- ritários em termos de direitos, sendo que, em condições extremas, a ausência de voz e vez gera a morte simbólica ou política dessas pessoas e, a depender dos impactos que a ausência de ação pública estatal produz sobre estes corpos pode conduzir – ou ao menos contribuir – para sua morte também física. 89 NOVAS DESCOBERTAS Título: Necropolítica Autor: Achille Mbembe Editora: N-1 Edições Sinopse: conforme as palavras do autor, neste ensaio, propus que as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropo- lítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror. Tentei demonstrar que a noção de biopoder é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. Além disso, propus a noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as ar- mas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos”. Sublinhei igualmente algumas das topografias recalcadas de crueldade (plantation e colônia, em particular) e sugeri que o necropoder embaralha as fronteiras entre “resistência e suicí- dio, sacrifício e redenção, mártir e liberdade”. Ao fim desta unidade de estudos, a expectativa é de que você, caro(a) estudante, seja capaz de responder as perguntas que iniciaram nossa discussão: O que são políticas públicas? É diferente falar sobre políticas públicas e sobre políticas so- ciais? E sobre políticas de Estado e políticas de governo? Como estes conceitos se materializam na estrutura estatal e entre os cidadãos? E qual o impacto sobre sua futura atuação profissional? Trata-se de temática importante em nosso contexto social específico ou de preocupação global? Neste momento, retome suas anotações em seu Diário de Bordo e suas im- pressões iniciais e recapitule o aprendizado sobre os conteúdos que tratamos. A partir destas informações, deve ser perceptível a você o adensamento de conheci- mentos prévios ou os novos horizontes sobre as políticas sociais experimentados a partir da discussão teórica desenvolvida até aqui. Como ação, proponho que escreva novas respostas e as compare com as anteriores iniciais a fim de identificar o que e o quanto aprendeu nesta unidade de estudos. Além disso, que tal anotar exemplos empíricos ou situações e casos sobre os quais pensou os temas das políticas públicas e sociais, de políticas de Estado e de governo, dos direitos humanos e ODS e do multiculturalismo enquanto tomavaconhecimento desse ente? UNIDADE 2 90 1. Considere o seguinte contexto hipotético: ao assumir a prefeitura de um município do interior, a nova prefeita se depara com duas situações, uma de determinação de encaminhamento de ofício ao Conselho Municipal de Assistência Social para discus- são sobre destinação de recursos oriundos de doações do Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas (IRPJ) e outra de proposta de descontinuidade de um projeto de desenvolvimento de atividades desportivas no contraturno escolar dos alunos do Ensino Fundamental, que poderá ser substituído por novo projeto, ainda a definir. Acerca de tais situações, analise as afirmativas a seguir: I - As políticas de educação e de assistência social são políticas públicas e sociais, concomitantemente. II - A situação relacionada ao Conselho Municipal de Assistência Social remete à política de Estado. III - A situação relacionada ao projeto também é uma política de Estado, pois trata de educação e cultura. IV - O fim do projeto é possível por se tratar de uma política de governo, facilmente substituível pela prefeita. É correto o que se afirma em: a) I e II. b) II, III e IV. c) I e IV. d) I, II e IV. e) I, II, III e IV. 91 2. O material didático apresenta as políticas públicas como um grande conjunto de programas, projetos, ações e estratégias de atuação atual por parte do Estado. É correto afirmar que as políticas públicas têm amplitude nacional, e as políticas sociais são locais ou municipais? Justifique. 3. O multiculturalismo é uma corrente teórica sobre o funcionamento das democracias na contemporaneidade, o qual dialoga com diferentes conceitos e formas “reais” de manifestação, ou seja, no dia a dia dos governos. Acerca da relação do multicultu- ralismo com os demais conceitos abordados nesta unidade de estudos, assinale a alternativa correta. a) Os direitos de primeira dimensão são precursores do multiculturalismo. b) O multiculturalismo é a teoria decorrente da realização de políticas sociais. c) No multiculturalismo, há preocupação com direitos de minorias. d) Os 17 ODS decorrem da abordagem social do multiculturalismo. e) Políticas de Estado são liberais, e políticas de governo são multiculturais. 3A Construção de uma Política Pública Dr. Éder Rodrigo Gimenes Caro(a) acadêmico(a), nesta unidade de estudos avançamos em nos- sa compreensão sobre as políticas públicas e sociais, considerada a abordagem de atividades relevantes à sua consecução. Nesse sentido, esta unidade de estudos tem como objetivo expor etapas importantes da construção de uma política pública, de modo que você conhecerá o que é o ciclo de políticas públicas e sociais e abordaremos quatro das cinco etapas que conformam esse ciclo, quais sejam: como um assunto passa a compor a pauta ou agenda de discussões, o processo de formulação de propostas e alternativas, a tomada de decisões a partir dessas possibilidades e a implementação das políticas definidas. UNIDADE 3 94 Como pensar uma política pública ou social? Qual a estruturação de uma política? É possível definir processos para compreendermos como uma política se conforma? São questionamentos que geralmente as pessoas não se fazem, mas diante do conhecimento acumulado ao longo desta trajetória de estudos é possível que você se pergunte e até mesmo comece a esboçar respostas a esses questionamentos. Quantas notícias lemos ou ouvimos diariamente sobre políticas públicas e sociais? Muitas, certamente! Basta acessar um portal de notícias ou assistir a um jornal para nos depararmos com informações sobre o andamento de propostas, a aprovação de projetos, alterações que impactam garantias e direitos sociais ou re- dimensionam políticas. Fato é que cada nova proposição ou modificação implica em diversas ações, afinal nenhuma política se efetiva a partir “do nada”. é preciso, então, compreender como os caminhos da construção de uma política operam. Ante a essas provocações iniciais, que tal um desafio? Vamos lá, mão na massa! Pense no que você entende que é importante no processo de construção de uma política pública. O que impacta, como se conforma, qual a expectativa, quem se envolve, que ações são pertinentes, como e em que tempo ocorrem etc. 95 Anote aquilo que lhe vier à mente nesse momento, faça isso agora, antes de avançar, ok? Para que você reflita sobre esses primeiros insights, lhe proponho uma ativi- dade diferente nesta início de unidade de estudos: ao invés de deixá-lo(a) “livre” para esboçar impressões, apenas, lhe adianto os elementos que discutiremos com relação à construção de uma política pública e desafio você a escrever o que sabe e/ou pensa sobre cada etapa: formação de agenda, formulação de propostas, tomada de decisões e implementação. Aproveite o espaço Diário de Bordo e a oportunidade de colocar no papel suas impressões sobre essas etapas. Se você não tiver ideia do que anotar, sem problema! É um momento de reflexão que lhe prepara para imergir no conteúdo didático, então registre o que tiver à sua disposição, ok? UNICESUMAR UNIDADE 3 96 Qualquer discussão sobre a construção de uma política pública é sempre parcial e determinista! Parece complexo ou impactante para você caro(a) acadêmico(a)? A ideia é esta! Para iniciarmos a discussão teórico-conceitual desta unidade de estudos parti- mos da perspectiva de que a sistematização da conformação de uma política sem- pre é perpassada por diferentes ações, planejamentos, enfrentamentos, decisões e execuções e tudo isso pode acontecer em diferentes intervalos de tempo e espaços. Assim, ao propor uma discussão sobre etapas por meio das quais podemos pensar um ciclo de políticas públicas e sociais, assume-se arbitrariamente uma composição organizada de elementos, que na prática podem se manifestar de maneira simultânea ou sequencial, com maior ou menor impacto de atores en- volvidos nas discussões, em uma única arena ou em diferentes locais e instâncias. Conforme argumentam Macedo et al. (2016), qualquer exposição de pro- dução de políticas públicas por meio de um ciclo ou sequência de etapas é uma simplificação voltada a fins pedagógicos, que visa especialmente possibilitar a quem toma contato com tal classificação que compreenda como funcionam essas etapas, tendo ciência daquilo que foi mencionado anteriormente - e que é recor- rentemente destacado na literatura sobre o tema por autores como Dye (2009), Baptista e Rezende (2011), Fonseca (2013) e Secchi (2013). Dias (2012) afirma que há um conjunto de modelos reconhecidos para com- preendermos as análises sobre políticas públicas, dentre os quais destacam aque- les relacionados: à tomada de decisões racionais absolutas, em que os responsá- veis pela construção da política disporiam de todas as informações necessárias à melhor alocação possível dos recursos disponíveis; à tomada de decisões racio- nais limitadas, quando as informações não são completas e as políticas são dire- cionadas conforme atendem ou satisfazem determinados interesses de grupos ou agentes; e à escolha pública, baseado em conformações de políticas públicas a partir da perspectiva de resultados combinada com a satisfação de demandas de agentes envolvidos no processo. A título de conhecimento - para que você saiba que existem diversos modelos teórico-analíticos que podem ser utilizados ou mobilizados em sua futura atuação relacionada à gestão de políticas públicas e sociais - apresentamos a seguir um quadro que expõe um conjunto de possibilidades de análises, extraído de Raeder (2014). 97 Autor(A) ou Referência (R) Modelo ou tipologia Estágio da política Foco Worthen et alii, 2004 (A) Abordagens de Avaliação avaliação questões a se- rem resolvidas e principais atores Bamgartner e Jones, 1983 (A) Punctuated Equili- brium (“equilíbrio interrompido”) formação de agen- da estabilidade e mudança de agenda Kindon, 1984 (A) Fluxos Múltiplos formação de agen- da atenção do governo aos problemas Sabatier,1988 (A) Advocacy coalitions (“coalizações de defesa”) formulação grupos de inte- resse Souza, 2007 (A) Arenas Sociais formulação grupos de inte- resse Dye, 2010 (R) Teoria da Elite formulação poder de elite Dye, 2010 (R) Teoria dos Grupos formulação grupos de inte- resse Cohen, March e Olsen, 1972 (A) Garbage Can (“lata do lixo”) formulação soluções procu- ram por proble- mas Etzioni, 1967 (A) Mixed Scanning (“sondagem mista”) formulação combina abor- dagem raciona- lista e incremen- talista Buchanan e Tul- lock, 1962 (A) Opção Pública formulação grupos de inte- resse Dye, 2010 (R) Teoria de Jogos formulação jogo racional Bozeman e Pan- dey, 2004 (A) Tipologia de Boze- man e Pandey formulação conflito entre conteúdos técni- co e político UNICESUMAR UNIDADE 3 98 Autor(A) ou Referência (R) Modelo ou tipologia Estágio da política Foco Lindblom, 1959 (A) Incremental formulação e im- plementação poucas propos- tas Tanza Börzel, 2008 (R) Rede de Políticas Públicas formulação e im- plementação relações não- -hierárquicas Dye, 2010 (R) Institucional formulação, imple- mentação instituições go- vernamentais Easton, 1965 (A) Sistêmico formulação, imple- mentação interações-com- plexas Gormley, 1986 (A) Tipologia de Gor- mley formulação, imple- mentação nível de saliência e de complexi- dade Gystafsson, 1983 (A) Tipologia de Gus- tafsson formulação, imple- mentação conhecimento e intenção do policymaker Simon, 1955 (A) Racional formulação, avalia- ção avaliação de propostas Wilson, 1983 (A) Tipologia de Wil- son formulação, imple- mentação, avalia- ção custos e bene- fícios na socie- dade Lowi, 1964 (A) Tipologia de Lowi implementação impacto na so- ciedade Lasswell, 1956 (A) Ciclo das Políticas política pública em 7 estágios tomada de de- cisão e política pública enquan- to processo Quadro 1 - Relação entre modelos de análise de políticas públicas e estágios do ciclo de políticas Fonte: Raeder (2014, p. 141). A despeito desse conjunto de possibilidades, a maneira mais didática de pen- sarmos, conhecermos e nos inteirarmos sobre o funcionamento de uma política pública ou social é pensá-la de maneira processual, ou seja, como um processo 99 em que diferentes etapas ocorrem. Nesse sentido, Dye (2009) afirma que esse tipo de abordagem baseia-se em ações ou padrões identificáveis. Isto posto, cabe destacar que durante muitas décadas, as políticas públicas fo- ram analisadas apenas como resultados de demandas e articulações de interesses de ordem política. Nesses termos, a ênfase das investigações e debates recai sobre o processo decisório no âmbito da gestão pública (FARIA, 2003). Apenas a partir da década de 1970, a atenção voltou-se ao contexto geral que culmina em uma política pública, de modo que a perspectiva de análise de trâmites foi substituída pela pluralização de objetos analisados, o que significou que o olhar científico e da Administração Pública voltou-se para as distintas etapas relacionadas às políticas públicas, desde o surgimento de demandas até a avaliação dos indicadores depois da política em prática ou em funcionamento. Esse conjunto de etapas corresponde ao ciclo político de uma política pública. Lembre-se, caro(a) estudante, que, conforme Amábile (2012), não há defini- ção única para o termo “políticas públicas”. De modo semelhante, também não há unanimidade com relação às etapas que compõem um ciclo político de políticas públicas. Autores como Trevisan e Van Bellen (2008), Chiari (2012), Azeredo, Luiza e Baptista (2012), Secchi (2012) e Brancaleon et al. (2015) apontam dis- tintos conjuntos de etapas analíticas. UNICESUMAR UNIDADE 3 100 Para Macedo et al. (2016), é pertinente considerarmos a existência de cinco eta- pas centrais no ciclo de uma política pública ou social, quais sejam: a identificação de um problema e sua institucionalização, a formulação de propostas de ações, a tomada de decisões, a implementação daquilo que foi decidido e a avaliação da política em sua completude e complexidade. Conforme exposto no quadro que segue, contudo, os mesmos autores des- tacam também que em cada etapa há diferentes agentes, grupos, instituições e/ ou atores coletivos envolvidos de maneira direta, o que salientam da seguinte maneira em Macedo et al. (2016, p. 597): “ Observa-se que todas as etapas são permeadas por diversos atores. Segundo Secchi (2013), os atores podem ser indivíduos ou institui-ções que influenciam os processos de políticas públicas: governa- mentais (burocratas, juízes, políticos e outros) e não governamentais (grupos de interesse, partidos políticos, meios de comunicação, des- tinatários das políticas, organizações do terceiro setor, organismos internacionais, pesquisadores, especialistas, associações de classe e outros). Adiante, a importância dos atores varia de acordo com a fase do ciclo de políticas públicas, podendo ocorrer expansões e afunilamentos de opções à ação dos atores. Assim, percebemos a riqueza de elementos envolvidos na conformação de uma políti- ca pública ou social, o que é importante para estabelecermos a continuidade de nossa discussão nesta unidade de estudos. Observe o quadro 2 de Marcelo et al. (2016): 101 Etapas Formulação Imple- mentação Avaliação Identificação e institucio- nalização do problema Formulação de soluções e ações Tomada de decisão Atividades Valores; acon- tecimentos; interesses; demandas e agenda públi- cas. Elaboração e avaliação de respostas. Seleção de critérios. Encontrar uma coali- zão majori- tária, legiti- mação. Execução, gestão, efeitos concre- tos. Reações, julgamento sobre os efeitos, medição, avaliação, propostas de reajus- te. Atores Partidos, movimen- tos sociais, associações, mídia, admi- nistração pú- blica, ONGs, etc. Parlamen- tos, asso- ciações, administra- ção pública, organiza- ções políti- cas e sociais, ONGs, etc. Parlamento, presidente, ministros, governado- res, prefei- tos, etc. Adminis- tração pública, ONGs, empresas privadas. Mídia, espe- cialistas, ad- ministração pública, res- ponsáveis políticos, or- ganizações políticas e sociais, associações, destinatá- rios, ONGs. Quadro 2 - Atividades e atores no ciclo de políticas públicas / Fonte: Macedo et al. (2016, p. 596). Assim como exposto no quadro 2, Brancaleon et al. (2015) propuseram o ciclo de políticas como um conjunto de cinco atividades, sendo que, ao final, haveria uma retroalimentação do sistema, conforme exposto na figura 1. UNICESUMAR UNIDADE 3 102 Dentre os diversos autores anteriormente mencionados, cabe destacar a você que são três as etapas recorrentemente reconhecidas como essenciais a um ciclo de políticas públicas: formulação, implementação e avaliação. Entretanto, pelo entendimento de que modelos analíticos com as cinco etapas expostas no qua- dro e na figura 1 que constam neste início de unidade, trataremos de todas essas etapas em nossa discussão. Porém - e aqui cabe uma ressalva que deve instruir sua leitura - nesta unidade de estudo abordaremos as etapas de formação da agenda, formulação de propostas, tomada de decisão e implementação, sendo que à avaliação caberá nossa próxima unidade de estudos, dada a complexidade e detalhamento pertinentes a tal etapa. Definição da Agenda Formulação de PolíticasAvaliação Tomada de DecisãoImplementação Descrição da Imagem: A imagem apresenta cinco retângulos azuis que representam as etapas concer- nentes a um ciclo de políticas públicas, sendo que no ponto mais alto consta o retângulo “Definição da agenda” e à sua direita uma seta direcionando o sentido do ciclo para a etapa de “Formulação de políticas”, à qual segue nota seta indicando a etapa de “Tomada de decisão” e sucessivamente a “Implementação” e a “Avaliação”, que também é seguida por uma seta direcionada à primeira etapa mencionada, de “De- finição da agenda”. Figura 1 - Esquema do ciclo de política pública / Fonte: Brancaleonet al. (2015, p. 3). 103 Para Raeder (2014), é importante conhecer e compreender cada etapa do ciclo, mas é ainda mais relevante que o agente profissional que lida com essas políticas - em nosso caso, um(a) futuro(a) agente profissional, em formação e que lidará com políticas públicas e sociais - tenha sempre em seu escopo que essas etapas ou fases são “separadas” para explicações como esta, didática e formativa. Na prática, as etapas podem se misturar, agentes individuais ou institucionais po- dem influenciar em diferentes momentos ou aspectos e até mesmo a conjuntura pode limitar, alterar, potencializar ou fragmentar uma etapa. “ Que problemas chegam às mãos dos políticos para decisão? Como chamam tais problemas a atenção dos políticos e motivam uma proposta política destinada à sua resolução? Por que razão deter- minados problemas entram na agenda política e outros não? Em que momento se constrói a agenda política em definitivo? O ciclo de políticas públicas é iniciado com a agenda e filtrado com a for- mulação? (BILHIM, 2016, p. 6). Passemos então às etapas do ciclo, iniciando pela definição da agenda de uma política pública ou social. Conforme Wu et al. (2014), esta primeira etapa diz respeito aos assuntos que comporão a pauta de discussões dos governos e tem como principal ponto de partida a definição de problemas que carecem de uma resposta pública, seja ela uma solução definitiva ou uma amenização (redução) do problema ou expressão da questão social. Assim, percebe desde já que a discussão sobre direitos e garantias é construí- da, ou seja, depende dessas demandas serem inseridas na agenda de temáticas dos governos, o que significa que nem todos os assuntos importantes são discutidos e que nem tudo o que se torna uma política pública ou social atende a contento o público que carece ou solicitou uma ação por parte do Estado. Conforme destacam Wu et al. (2014, p. 29): “ As razões pelas quais os governos muitas vezes não respondem a questões públicas para a satisfação de seus cidadãos, com frequên-cia, dizem respeito a dois defeitos fundamentais, os quais se origi- nam na definição de agenda: UNICESUMAR UNIDADE 3 104 1. muitos problemas públicos críticos não chegam às agendas de políticas oficiais, enquanto muitas preocupações relativamente me- nores chegam; e 2. o mau enquadramento dos problemas públicos leva à preocu- pação com soluções ineficazes e/ou inúteis, que impedem a con- sideração de soluções alternativas com potencial para resolver o problema. Para que não incorra em erros como esses defeitos, os governos precisam atentar- -se para reconhecerem problemas que se configuram como questões públicas que demandam atenção e compreender quais as necessidades, os recursos necessários e o tempo em que pode ocorrer essa intervenção, de modo a considerar aspectos como recursos (materiais, financeiros e de pessoal), urgência e capacidade de resolubilidade desde a entrada de um assunto na pauta de discussões. Nesse senti- do, Wu et al. (2014) afirmam que os assuntos que compõem uma agenda pública são múltiplos e diferem de maneira razoável conforme as circunstâncias sociais e econômicas em cada localidade ou esfera de governo, de como e/ou quando há mobilização social e quais os interesses e projeto político dos governantes. Ainda de acordo com os mesmos autores, existe uma perspectiva de senso comum de que a sociedade pauta a agenda das políticas públicas, ou seja, que os principais pontos de discussão sobre políticas públicas e sociais sejam levados ao poder público por organizações sociais, ações coletivas ou até por indivíduos. No entanto, a expressa maioria dos assuntos que passam a compor a agenda de discussões são interpostos por agentes de governo, o que denota a importância de políticos eleitos (para os cargos nos Poderes Executivo e Legislativo, ocupantes de cargos por indicações (ministros, secretários, assessores etc.) e servidores com atuação técnica (como assistentes sociais, gestores públicos, sociólogos, cientistas políticos, economistas e outros) tanto propõem pautas quanto observarem e dialogarem com a população para entenderem o que necessitam e como dirimir problemas ou minimizar mazelas sociais. Wu et al. (2014), em seu importante manual sobre o tema produzido pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), destacam ainda que a defini- ção da agenda pode parecer simples, como se bastasse solicitar a inclusão de um assunto em pauta, mas tem sua complexidade definida a partir de muitos aspectos, dentre os quais pode-se destacar os seguintes: 105 ■ [1] a entrada de itens na agenda não é linear, o que significa que um as- sunto pode rapidamente ser inserido e outros podem ser sucessivamente negados ou deixados à parte para inserção posterior; ■ [2] é um processo político e técnico, simultaneamente, afinal tanto inte- resses políticos quanto sociais ou de ordem burocrática podem influen- ciar a conformação de uma agenda; ■ [3] são múltiplos interesses, demandas e forças a considerar, que se con- figura enquanto uma rede de atores estatais e sociais; ■ [4] os interesses materiais desses diferentes atores pode ser determinante para uma decisão, então é importante conhecê-los; ■ [5] o arranjo institucional e o projeto político-ideológico do governante influencia a entrada de um assunto na pauta e seu desenrolar; e ■ [6] como lidam com questões públicas e sociais, é possível haver mudan- ças desde a sinalização da importância de um tema até sua inclusão numa agenda deliberativa. Pense agora, então, sobre os diferentes perfis de agentes que podem se envolver no processo de composição de agenda de políticas públicas e sociais e quais os seus interesses e potenciais impactos. Entre os eleitos, há (em alguma medida) preocupação em representar a população ou grupo(s) específico(s), burocratas de gestão pública e membros do Poder Judiciário são (em geral) indivíduos com maior perenidade no âmbito da atuação no setor público e que podem oferecer percepções específicas (com diferentes finalidades e interesses), no campo das instituições se destacam organizações religiosas, empresas, sindicatos e asso- ciações que possuem algum tipo de recurso de poder (dinheiro, informação, conhecimento), de modo que o povo (a população de modo amplo) desempenha um papel pequeno e indireto no ciclo de políticas públicas e sociais, até mesmo porque em democracias liberais modernas, como o Brasil, a tarefa de governar não cabe aos cidadãos, mas aos seus representantes. Conforme Bilhim (2016), são muitos os grupos e interesses que conformam a vida social e política, tanto que há diferentes visões de mundo, opiniões e pers- pectivas, de modo que ao invés de falarmos sobre “sociedade” poderíamos utilizar “sociedades”, no plural. UNICESUMAR UNIDADE 3 106 Além disso, há outra fonte influente na composição da agenda de políticas pú- blicas, destacada por Wu et al. (2014): a mídia. Conforme os autores, deve-se conferir atenção especial aos meios de comunicação e às tecnologias de informa- ção, que têm papel importante na percepção da população sobre diversos temas e influenciam a formação da opinião pública. Macedo et al. (2016) destacam a importância da mídia na realização das manifestações de rua em 2013 no Brasil, que ficaram conhecidas como Jornadas de Junho. A motivação inicial para aquela onda de protestos foi a discussão sobre o aumento da tarifa do bilhete de transporte coletivo em uma série de cidades, dentre as quais Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Por meio de articulações estabelecidas desde o ano de 2003, o Movimento Passe Livre (MPL) organizou manifestações nas ruas dessas cidades e, com o passar dos dias e o aumento do número de apoiadores, assistiu-se a uma explosão de manifestações pelo país, muitos deles em municípios nos quais não havia grupos articulados com o MPL, atingindo mais de cem localidades, entre capitais e cidades do in- terior (MPL-SP,2013). Carlos, Dowbor e Albuquerque (2021) analisaram os repertórios, as coalizões e as capa- cidades estatais de movimentos sociais entre as décadas de 1990 e 2010 no Brasil, to- mando como parâmetros seis campanhas relacionadas a direitos humanos (relação entre impunidade e corrupção e sobre violações no sistema prisional), a direitos da criança e do adolescente (sobre o Sistema Febem e a política socioeducativa em meio aberto) e à saú- de (referentes ao financiamento da saúde pública e aos recursos humanos para a área). EXPLORANDO IDEIAS 107 Com o desenvolver das manifestações, as reivindicações verificadas passaram a ser múltiplas, dentre as quais se destacaram a crítica a atuação da polícia nos protestos, o combate à corrupção, a melhoria da qualidade das políticas públicas e o repúdio aos grandes eventos esportivos a serem realizados no país, cujo fi- nanciamento se deu em grande parte pelo Estado (MARICATO, 2013; ROLNIK, 2013; SANTOS, 2013). Nesse período se tornaram recorrentes cartazes com a frase “Não é só por 20 centavos!” (VIANA, 2013). Em 20 de junho, cerca de três milhões de pessoas foram às ruas. Também nesse dia, ganhou força a ideia de expulsão de bandeiras partidárias das manifestações (SECCO, 2013; SAKAMO- TO, 2013; SANTOS, 2013). As redes sociais foram as grandes responsáveis pela expansão dessas mani- festações, especialmente o Facebook, e seus impactos foram e continuam sendo sentidos em diferentes esferas e de distintas maneiras, como na criação do Pro- grama mais Médicos (MACEDO et al., 2016), na visibilidade pública crescente de políticos conservadores e seu sucesso eleitoral (MACIEL; ALARCON; GI- MENES, 2018; PINA, 2021) e na expansão do engajamento de grupos ideolo- gicamente conservadores e economicamente neoliberais à direita nas ruas e em outras modalidades de participação (GIMENES, 2022). E quando um tema passa a ser parte da agenda de discussões de políticas públicas e sociais? A resposta varia conforme interesses, necessidades e urgências. Para Kingdon (2006), o tempo é um elemento crítico, essencial na definição da agenda pública, de modo que deve-se considerar que são diversas as situações possíveis, as quais configuram janelas de oportunidades, no sentido de identifi- carmos aberturas à inserção de temas na agenda. Conforme ensinam Wu et al. (2014), existem quatro tipos de janelas de políti- cas públicas, ou seja, quatro situações que devem ser percebidas como oportunida- des para que os assuntos ou temas sejam incorporados às discussões, quais sejam: UNICESUMAR UNIDADE 3 108 • janelas rotineiras: em que eventos processuais rotineiros, tais como ciclos orçamentários, ditam aberturas de janelas; • janelas discricionárias: em que o comportamento político indivi- dual por parte dos tomadores de decisão determina aberturas de janelas; • janelas aleatórias: quando acontecimentos imprevistos, como de- sastres ou escândalos, abrem janelas; • janelas induzidas: em que questões relacionadas são atraídas para as janelas já abertas em outros setores ou áreas de problemas, tal como quando surgem questões de segurança ferroviária devido ao aumento da atenção dada à companhia aérea, ou questões de se- gurança automobilística devido a alguma crise ou acidente (WU et al., 2014, p. 37). Àqueles que trabalham com políticas públicas e sociais ou são agentes sociais que pleiteiam que temáticas passem a compor a agenda pública, é importante compreender essas oportunidades para identificá-las quando ocorrerem, especialmente porque Kingdon (2006) destaca que essas janelas de oportunida- des são raras e persistem por curtos períodos de tempo, de modo que cada chance de inserir uma pauta deve ser aproveitada da maneira mais objetiva possível. E se você está pensando que a etapa de composição da agenda é simples e não demanda muita atenção, cuidado! Para Wu et al. (2003), não raras vezes essa é a etapa mais crítica de todo o ciclo de uma política pública ou social, tanto porque há diversos interesses em jogo quanto porque as oportunidades são pontuais e mesmo a inserção do tema na pauta de discussões não garante que haverá tra- mitação nas demais etapas. Os autores sinalizam alguns desafios que devemos considerar. Primeiro, o fato de que muitas políticas decorrem de crises ou demandas urgentes, de modo que as ações são definidas conforme as possibilidades imediatas e, sem planejamento adequado, podem conduzir a resultados ruins. Segundo, quando o problema público de crise se trata de algo que poderia ter sido anteriormente discutido e abordado, é perceptível o uso inadequado de recursos públicos, no sentido de que ações preventivas ou planejadas com mais tempo poderiam implicar em menor investimento e - talvez até mesmo - melhores resultados. Terceiro, um risco em democracias eleitorais é a composição da agenda ser utilizada como material político por candidatos e eleitos mais interessados em seu desempenho eleitoral do que com a solução de questões públicas. E, por 109 fim, a recorrente e equivocada tentativa dos governos de dispensarem o menor esforço possível à solução de problemas públicos, de modo que sua atuação acaba remediando um problema, mas não oferecendo condições de resolvê-lo. A segunda etapa do ciclo de políticas públicas e sociais é a formulação de propostas, que consiste no processo de elaboração de propostas plausíveis para solucionar um problema ou atender a uma demanda pública estabelecida na agenda. Para tanto, a etapa de formulação implica em duas grandes atividades: a proposição de diferentes alternativas que respondam ao solicitado e uma avalia- ção preliminar da viabilidade de cada um dessas alternativas. Conforme Macedo et al. (2016, p. 597), “[...] este processo, até chegar ao momento da agenda política, diz respeito à escolha de diversos instrumentos políticos, tais como os baseados nas informações, na autoridade, na organização e na viabilidade técnica e política”. Nesta etapa, novamente há muitos agentes e atores coletivos envolvidos e interessados, de modo que Wu et al. (2014) estabelecem um conjunto de con- siderações sobre o tema. Primeiramente, destacam os autores que a percepção pública é de que a formulação de políticas públicas e sociais é uma atividade de alto nível realizada apenas por dirigentes nomeados ou eleitos, como ministros, secretários e ocupantes de cargos com mandatos eleitorais nos Poderes Executivo e Legislativo, mas a principal consideração sobre esse grupo é que sua atuação é limitada apenas à expectativas decorrentes da representação. “ Enquanto coletivamente eles são restringidos pela expectativa de que eles representem as preferências de seu eleitorado e do públi-co, individualmente eles também são restringidos pelas posições políticas do seu partido e suas próprias ambições políticas pessoais (WU et al., 2014, p. 53). Em segundo lugar, temos os profissionais técnicos envolvidos com as políticas, especialmente gestores públicos, assistentes sociais e profissionais que atuam em funções de administração ou execução dessas políticas públicas e sociais. Sobre tais agentes, os autores anteriormente mencionados ponderam que, por um lado, trata-se de agentes que podem acumular experiências, percepções e conhecimen- to sobre os assuntos ao longo do tempo, de modo que podem contribuir para solucionar problemas, o que seria um trunfo à gestão pública. Por outro lado, se UNICESUMAR UNIDADE 3 110 a experiência limitar a atuação desses agentes ou impedi-los de “pensar fora da caixa”, tem-se um efeito negativo, contrário, pois esses agentes do governo “[...] podem ter dificuldade em adotar uma visão holística que transcenda suas tarefas rotineiras [...] e podem não ser entusiastas com relação a alternativas de políticas que envolvam mudanças significativas no status quo” (WU et al., 2014, p. 53-54). Em terceiro lugar, grupos de interesses - assim como na etapa de composição da agenda - são importantes à formulação de políticas públicase sociais, porém têm atuação mais restrita pelo fato de que suas percepções e propostas são ma- joritariamente direcionadas aos próprios problemas, sendo ausente a visão de problemas sociais, coletivos. NOVAS DESCOBERTAS Título: Formulação de Políticas Públicas Autora: Ana Cláudia Niedhardt Capella Editora: Escola Nacional de Administração Pública Sinopse: O objetivo do livro consiste em oferecer teorias e concei- tos introdutórios sobre o processo de formulação e apresentar reflexões direcionadas aos interessados em promover intervenções em políticas pú- blicas. Uma das maiores contribuições da literatura produzida no campo de políticas públicas consiste em produzir estudos com esse duplo objetivo: proporcionar uma visão abrangente do processo de produção de políticas, por meio de subsídios teóricos para sua compreensão e, paralelamente, de- senvolver estudos para o processo de produção de políticas, envolvendo o emprego de técnicas de análise específicas. Fato é, caro(a) estudante, que caso não haja entendimento comum sobre como postular o mínimo possível de alternativas viáveis e adequadas para solução de problemas, maior será a dificuldade para a próxima etapa, de tomada de deci- sões. Assim, uma habilidade importante aos gestores públicos e profissionais que atuam no campo social, por exemplo, é saber valer-se de análises de conjuntura e de prospeção. Mas o que são conjuntura e prospecção? Por que aquele que lida com polí- ticas públicas e sociais deve conhecer tais conceitos? Respondamos inversamente as questões, demonstrando primeiramente a relevância desses conceitos e depois suas definições. 111 A otimização da distribuição de recursos de fundos específicos entre as áreas de gestão pública, a alocação ou realocação de servidores nas diferentes unidades administrativas, o conhecimento acerca das articulações do mercado (entidades privadas), das organizações da sociedade civil e as possibilidades de estabeleci- mento de parcerias relacionadas à responsabilidade social ou gestão social para consecução dos direitos sociais e o planejamento com vistas a ter em mãos dados e relatórios estruturados para eventuais consultas ou disponibilização de recursos por outros órgãos nacionais e internacionais, estatais, paraestatais, privados ou sociais sem fins lucrativos são de suma importância à gestão pública, assim como é essencial o planejamento e a proposição de políticas públicas e sociais. Diante de tais exemplos, destaco a discussão teórica empreendida por Chir- nev (2018) acerca da realização de análises de conjuntura e de prospecção. Ainda que a autora tenha voltado seu olhar ao campo de gestão das organizações do Terceiro Setor, os conceitos explorados também podem ser apropriados pelos gestores públicos. O conceito de conjuntura diz respeito ao conjunto de elementos verificáveis em um mesmo tempo e espaço sob diversas perspectivas, como social, econô- mica, política, cultural, religiosa, ambiental e tecnológica, por exemplo. Assim, uma análise de conjuntura diz respeito à maneira como, baseados nos elemen- tos e perspectivas possíveis, conseguimos compreender uma realidade e pensar eventos a partir de informações e/ou fenômenos passados. “A análise de conjuntura é um instrumento metodológico da Ciência Política que serve para interpretar os eventos, os quais surgem da ação de atores em con- textos específicos” (OLIVEIRA, 2014, p. 25). Tal análise é realizada a partir de da- dos retrospectivos e visa o conhecimento sobre a maneira como um conjunto de fenômenos ou eventos ocorreu, a fim de identificar a direção dos acontecimentos, ou seja, compreender como determinados eventos ou fatos influenciaram outros. Nesse sentido, a realização de análises de conjuntura se revela complexa, pois “[...] exige também um tipo de capacidade de perceber, compreender, descobrir sentidos, relações, tendências a partir dos dados e das informações” (SOUZA, 2005, p. 8). Em se tratando de tal complexidade, Chirnev (2018) destaca que um fato que dificulta a realização de análises de conjuntura é sua persistência cons- tante, ou seja, a ausência de estagnação dos eventos e fenômenos. No caso da formulação de propostas a políticas públicas e sociais, a análise de conjuntura é o primeiro passo para estruturarmos alternativas que possam, UNICESUMAR UNIDADE 3 112 ao mesmo tempo, atender demandas, sanar problemas, oti- mizar a utilização de recursos e gerar resultados positivos. Isto posto, considerando que desde o fim do século passa- do o princípio da eficiência tem sido referenciado como balizador da prestação de serviços públicos, cabe aos di- versos profissionais que atuam em políticas públicas e so- ciais manterem-se atualizados para o desenvolvimento de análises de conjuntura que forneçam subsídios, a partir da interpretação de fatos, eventos e fenômenos passados, para projetarem soluções às eventuais necessidades e ações pú- blicas a ser tomadas. Essa projeção diz respeito ao processo denominado prospecção. “ A prospecção é uma ferramenta de pesquisa e planejamento que auxilia o gestor nas de-cisões de médio e longo prazo. A prospecção é a ação de prospectar, pesquisar, ou mesmo pode ser definido como um conjunto de téc- nicas relativas à pesquisa, oferecendo sub- sídios mais consistentes para decisões mais assertivas (CHIRNEV, 2018, p. 69). As análises de prospecção são consideradas mecanismos relevantes de suporte à Administração Pública para a to- mada de decisões de curto, médio e longo prazos, o que significa que se trata de importantes intervenções na gestão de municípios, estados e da União. Quando consideradas de maneira conjunta, análises de conjuntura e de prospecção - ou seja, de aspectos passados e de projeções para o futuro - podem contribuir para que os gestores públicos e profissionais que operam políticas públi- cas e sociais deliberem de maneira eficaz acerca da destinação de recursos públicos, a fim de otimizar mudanças sociais de ordem social, cultural, política e econômica, por exemplo. 113 “ Na prospecção, podem ser combinados nos estudos prospectivos tanto técnicas quanti-tativas como qualitativas, ou ambas. [...] De acordo com especialistas, o ideal para a rea- lização de estudos prospectivos é recorrer a mais de um método, ferramenta ou técnica, em razão de nenhum desses artifícios atender sozinho a todas as demandas de uma mesma pesquisa (CHIRNEV, 2018, p. 72; 77). Perceba, então, que a elaboração de propostas que possam subsidiar discussões no âmbito da formulação de alternati- vas às políticas públicas e sociais deve possuir embasamento adequado, o que implica atenção, comprometimento e co- nhecimento amplo por parte dos envolvidos nesta etapa do ciclo de políticas. Entretanto, para além desse conhecimento é preciso sempre atentarmo-nos para o fato de que os diferentes inte- resses de atores individuais e coletivos podem influenciar a formulação dessas alternativas, como demonstram Ataide et al. (2016) em sua investigação sobre a análise da influência das redes sociais na formulação de políticas públicas. E aqui - cuidado! - ao tratarmos de redes sociais estamos nos refe- rindo às redes em que as sociabilidades (as relações sociais) se constituem, portanto não confunda com aplicativos ou ferramentas tecnológicas para estabelecimento de contatos virtuais! Conforme os referidos autores, as redes sociais são rele- vantes em diversos espaços e tipos de negócios na atualidade, assim como impactam a gestão pública, com destaque à for- mulação de propostas de políticas públicas e sociais, em que a colaboração, o diálogo e a participação de distintos atores sociais pode produzir arranjos mais ou menos inclusivos, com visões mais ou menos abrangentes e voltados desde a perspec- tiva no liberalismo até aquela do Estado de bem-estar social. UNICESUMAR UNIDADE 3 114 Conforme Ataíde et al. (2016), existem atores centrais e atores periféricos nas re- des sociais que atuam na formulaçãode políticas públicas, sendo que o elemento definidor dessa posição é a quantidade de conexões estabelecidas com os demais agentes envolvidos na etapa, o que significa que a capacidade de se articular com diferentes atores é importante à atuação mais efetiva na formulação de políticas, garantindo sua efetividade (ou não) no processo. De modo direto, caro(a) acadêmico(a), é preciso que você compreenda que os arranjos de redes sociais para a formulação de políticas públicas e sociais as- sumem duas possibilidades de arranjos. A primeira destacada por Ataíde et al. (2016) é baseada na centralidade de atores, o que pode gerar um viés autocrático Ataíde et al. (2016, p. 105-106) afirmam que há aspectos específicos a serem considerados quando da composição de cada indicador de rede no contexto da análise de redes sociais, quais sejam: a) Densidade: este indicador revela o nível de conectividade da rede como um todo. Para calculá-lo deve-se dividir o número de relacionamentos estabelecidos entre os atores da rede pelo total de relacionamentos possíveis, encontrando, por fim, o resultado em forma de percentual. b) Grau de Centralidade: este indicador identifica o número de nós ao qual um determinado ator está relacionado. Para isto, deve-se levantar o grau de entrada – número de interações que outros atores mantêm com um determinado ator, e o grau de saída – número de interações que um ator mantém com outros atores. c) Índice de Centralização: este indicador revela quando um determinado ator as- sume uma posição claramente central em uma rede social. Para isto, recorre-se aos Índice de centralidade. A centralização pode revelar uma anatomia de rede que vai do tipo estrela (100% de centralização) ao pulverizada (0% de centraliza- ção). d) Grau de Intermediação: este indicador representa o quanto um ator exerce o controle da comunicação na rede social. O grau de intermediação significa a quan- tidade de vezes que um determinado nó aparece nos caminhos geodésicos, ou seja, nos caminhos que interligam todos os pares de integrantes daquela rede. Os atores com maior grau de intermediação são chamados de atores pontuados. e) Grau de Proximidade: este método demonstra a capacidade de um nó se conec- tar a todos os atores que compõem a rede. Para calcular o grau de proximidade é necessário contabilizar as distâncias geodésicas de um ator em relação aos demais e somá-las. EXPLORANDO IDEIAS 115 no estabelecimento de propostas pelo fato de que quem tem mais conexões e, consequentemente, poder de fala e capacidade de convencimento, pode direcio- nar as alternativas conforme seus interesses. Conforme os autores, trata-se de um arranjo de rede antidemocrático, nesse sentido de suprimir determinados grupos ou atores, como ilustrado na figura 2 a seguir, onde a centralidade estaria no Poder Executivo. Poder Executivo Sociedade Sindicatos Líderes Setoriais Academia EmpresasONGs Poder JudiciárioPoder LegislativoÓrgãos de Controle Externo Descrição da Imagem: No centro da imagem consta o “Poder Executivo”, ao qual são direcionadas setas que apontam a partir dos seguintes elementos/atores: sociedade, sindicatos, empresas, academia, líderes sindicais, ONGs, órgãos de controle externo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. Figura 2 - Rede de políticas públicas com alto grau de centralização / Fonte: Ataíde et al. (2016, p. 111). UNICESUMAR UNIDADE 3 116 Em situações antidemocráticas ou pouco democráticas como essa ilustração, um caminho necessário é a arti- culação dos demais atores no sentido de desenvolverem relações e diálogos que lhes permitam ganhar força para potencializar suas demandas e, em alguma medida, te- rem suas percepções consideradas no processo de for- mulação de propostas. Conforme explicitam os autores, “redes organizacionais com baixa densidade têm como característica a ausência de sinergia entre os atores e a ausência de blocos ou arranjos institucionais de interes- ses comuns” (ATAIDE et al., 2016, p. 111-112). Situações assim podem ocorrer no âmbito público, especialmente no caso de políticas de governo, que tratamos na unidade anterior de estudos. Por outro lado, um modelo democrático de redes so- ciais pertinentes à formulação de propostas de políticas públicas deve ser aquele em que haja trânsitos e conexões estabelecidos entre o maior número de atores possíveis, o que significaria uma rede social complexa e multifacetada na qual diferentes diálogos possam ser estabelecidos e haja possibilidade de compartilhamento de ideias, expe- riências, demandas e também discussões sobre formas de alocar recursos. A próxima imagem (figura 3) é uma ilustração de uma rede social democrática, um modelo que deve ser tomado como desejado para a formulação de propos- tas de políticas de Estado - aos moldes da discussão que realizamos na unidade de estudos anterior. Perceba na ilustração que o Poder Executivo continua na posição central do processo, porém há articulação entre os di- ferentes segmentos que conformam a rede social, com destaque ao papel do Poder Legislativo na elaboração de propostas e suas interfaces com os demais segmentos da sociedade envolvidos. 117 Por fim, ainda em se tratando da formulação de políticas públicas e sociais, nesta etapa do ciclo são elaboradas propostas que serão posteriormente apreciadas, portanto não é obrigatório que todos os elementos pertinentes a uma política estejam detalhados e “fechados” (determinados de maneira incisiva) neste mo- mento, já que tanto haverá também interesses envolvidos no processo de tomada de decisões quanto podem haver intercorrências ou necessidades de ajustes na etapa de implementação (RAEDER, 2014). Avancemos então à terceira etapa do ciclo, mencionada no parágrafo ante- rior, a tomada de decisão. Com conceito relativamente mais simples do que as demais etapas, trata-se do momento em que as propostas de políticas públicas e Poder Executivo Sociedade Sindicatos Líderes Setoriais Academia EmpresasONGs Poder JudiciárioPoder LegislativoÓrgãos de Controle Externo Descrição da Imagem: Os múltiplos agentes estão todos interligados a partir de relações estabelecidas. Assim, por exemplo, há setas duplas que partem da sociedade em direção ao Poder Executivo, sindicatos, empresas, academia, líderes sindicais, ONGs, órgãos de controle externo, Poder Legislativo e Poder Judi- ciário e também desses agentes para a sociedade. O mesmo se repete para todos os agentes. Figura 3 - Rede de políticas públicas com alto grau de densidade Fonte: adaptado Ataide et al. (2016, p. 112). UNICESUMAR UNIDADE 3 118 sociais são colocadas em discussão para decidir-se o curso de ação com relação a problemas públicos. Conforme Wu et al. (2014), gestores públicos tendem a entender que a to- mada de decisões é um processo exclusivo da alta administração e de agentes eleitos, contudo se trata de um processo mais técnico e menos político, no sentido de que diferentes demandas estão em discussão e interesses e preocupação com garantias e direitos sociais constitucionalmente determinados devem “entrar na conta” para que uma decisão seja definida. “ Em primeiro lugar, as decisões de política pública podem ser atos, leis, orientações regulamentares e/ou medidas processuais, e muitas delas podem ser decididas em diferentes níveis de órgãos governa- mentais para que a “decisão” final da elite seja apenas aprovar uma espécie de miscelânea de escolhas anteriores e subcoordenadas [...] (WU et al., 2014, p. 79). Isso significa, caro(a) estudante, que a tomada de decisão é uma etapa que de- pende daquilo que foi anteriormente elaborado e, não raras vezes, para além das propostas formuladas, quem decide solicita também informações conjunturais e prospecções sobre o problema a ser enfrentado, a fim de compreender o processo de elaboração das alternativas apresentadas e ter mais elementos que subsidiem uma melhor tomada de decisão. Dentre essas informações - fornecidas a partirda etapa anterior ou construídas no momento de discussões para aprovação de uma política pública ou social - podemos exemplificar os relatórios técnicos sobre eficácia e viabilidade administrativa e relatórios de impacto social e econômico. Desde Kingdon (2006), a dinâmica da tomada de decisões sobre políticas públicas e sociais pode ser interpretada a partir de três modelos principais, con- forme o grau de conhecimento sobre informações que baseiam a escolha e os resultados esperados, quais sejam: o modelo de decisão racional, o modelo de decisão incremental e o modelo da “lata do lixo”. Em se tratando do modelo de decisão racional (já mencionado anterior- mente no início desta unidade de estudos), trata-se do processo de escolha em que os tomadores de decisão optam pela alternativa que maximiza o alcance de seus objetivos, valores e também metas e interesses individuais, de modo que a racionalidade está contida na preocupação em atingir da maneira mais eficiente 119 os objetivos de políticas públicas. Esse modelo deveria ser o mais recorrente na gestão de políticas públicas e sociais, capaz de oferecer soluções efetivas aos problemas de diferentes áreas. Contudo, nem sempre há informações suficientes ou tempo hábil para es- tudar, pensar, dialogar e buscar consensos sobre políticas a serem aprovadas, de modo que essas “[...] limitações do modelo de decisão racional levaram ao desenvolvimento de estruturas de decisão alternativas, destinadas a modelar os resultados quando as circunstâncias não são ideais” (WU et al., 2014, p. 81). O modelo de decisão incremental é uma alternativa ao racional, em que a tomada de decisão pública ante dificuldades ou restrições com relação a tempo e informação impõem conflitos e necessidade de negociações e estabelecimento de compromissos entre os tomadores de decisão com interesses específicos. Com menos conhecimento e tempo, são tomadas decisões politicamente viáveis, as quais podem ter que ser repensadas, revisadas ou extintas em curto ou médio prazo, quando houver mais informações e o “incêndio” (no sentido de problema latente, que exige resposta imediata) estiver contido ou minimizado. O outro modelo de decisão alternativo ao racional é o garbage can, de decisão da “lata de lixo”, que é adotado quando há expressivas incertezas sobre as causas dos problemas e eventuais soluções possíveis, o que denota, mais uma vez, a importância do conhecimento sobre conjuntura e prospecção. “ Nesse modelo, as ideias de maximização, encontradas no modelo racional, ou de otimização, encontradas no modelo incremental, são em grande parte abandonadas. Em vez disso, argumenta-se que há uma propensão ao surgimento de um princípio de satisfação, em que a tomada de decisão envolve simplesmente satisfazer quaisquer padrões ou metas que foram definidos por um grupo de decisores de políticas no momento da decisão (WU et al., 2014, p. 82). Assim, trata-se de um modelo em que a tomada de decisão parte de condições mínimas, um conjunto limitado de informações (conhecimento) e interlocuções entre os agentes envolvidos no processo de formulação de propostas e assume-se que qualquer resultado minimamente aceitável é melhor do que nenhum resul- tado. Isso significa que decisões decorrentes desse procedimento certamente precisam ser revistas à luz de mais informações, que podem vir exatamente das UNICESUMAR UNIDADE 3 120 etapas posteriores do ciclo de uma política definida por decisão de “lata de lixo” - a implementação e a avaliação dessa decisão. Em suma, Macedo et al. (2016) afirmam que as políticas públicas correspon- dem às ações de governo decorrentes de questões técnicas e políticas que subsi- diam a tomada de decisões, então deve-se considerar que nesta etapa do ciclo a importância em decidir sobre o que será colocado à população implica reduzir o número de agentes envolvidos - ao contrário da composição da agenda e da formulação de alternativas, em que quanto mais atores envolvidos, maior a gama de perspectivas - e limitá-los àqueles com capacidade técnica e/ou legitimidade democrática, ou seja, agentes do setor público e eleitos, respectivamente. Por fim, tratemos da última etapa abordada nesta unidade de estudos, a im- plementação de políticas públicas e sociais. De modo objetivo, a implemen- tação é, como etapa posterior à tomada de decisão, a ação de efetivar, em sentido prático, aquilo que foi asseverado em instrumento legal (norma, regulamento, portaria, decreto ou lei, por exemplo). 121 Se, a princípio, pode nos parecer uma etapa fácil por corresponder a aplicar uma decisão, trata-se de uma das etapas mais complexas e difíceis de todo o ciclo, talvez a mais dificultosa, pois é o momento de “fazer as coisas acontecerem”, quando deve-se implementar aquilo que anteriormente foi estudado, discutido e definido (WU et al., 2014). Ademais, Bilhim (2016) afirma que quando chega a etapa de implementação é recorrente que se entenda que o trabalho principal já foi executado e que não há mais “nada de político”. Um dos desafios da implementação é o fato de que não necessariamente esta etapa ocorre de maneira linear, mas por meio de um processo dinâmico, especialmente quando se trata de ações políticas que se somam as políticas pú- blicas e sociais já em funcionamento ou quando estamos diante de uma política transversal, que implica em ações em diferentes áreas. Além disso, outro desafio da implementação de políticas públicas é que esta etapa implica a delimitação de poder político, pensando a partir da distribuição de recursos, da concentração da capacidade de gestão da política e da circulação de recursos múltiplos envolvidos. Assim, não se trata apenas de efetivar uma decisão, mas de considerar que “diferentes órgãos burocráticos, em diferentes níveis de governo (nacional, estadual ou provincial, e local), estão envolvidos na implementação de uma política pública, cada um com seus próprios interesses, ambições e tradições” (WU et al., 2014, p. 100). Sobre a maneira como a implementação ocorre, para cada política ou pro- posta há especificidades (MACEDO et al., 2016). Por exemplo: um projeto no âmbito da saúde deve ser integrado ao Sistema Único de Saúde, responsável por determinar normativamente como será a inclusão desse incremento; uma proposta para a educação básica demanda instruções do Ministério da Educa- ção para compreensão de como se insere na Base Nacional Comum Curricular (BNCC); a definição de um serviço no âmbito da política de assistência social implica compreendermos qual esfera, equipamento e demandas profissionais são pertinentes com base nas normas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), como a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) e a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Mas qual o principal desafio de colocar em prática uma política pública ou social? Segundo Wu et al. (2014), não raras vezes a implementação é negligenciada ao longo das etapas de formulação de propostas e tomada de decisões, o que signi- fica que pode ocorrer de pouco ou nada se discutir sobre como uma determinação UNICESUMAR UNIDADE 3 122 será efetivada. Trata-se de uma estratégia para “facilitar”, em alguma medida, o andamento das discussões, pois cada pormenor pode implicar em aumento de tempo de discussões, negociações e conflitos, mas essa celeridade pode gerar efei- tos negativos posteriores, que recaem sobre agentes executores da política, os quais nem sempre estão envolvidos nas etapas posteriores - mas deveriam! Para que você tenha uma noção sobre as múltiplas dificuldades no processo de implementação de uma política pública ou social, expomos neste material di- dático uma sistematização de condições que podem obstruir esta etapa, divididas em três conjuntos de barreiras: de ordem política, de competência analítica e de capacidade operacional. Problema Descrição Barreiras políticas (de suporte e autorização) Autorização lenta Planos e mobilização de recursosavançam muito lentamente, devido à existência de múltiplos pontos de veto entre os stakeholders em uma rede, tornando o progresso difícil. Fraco apoio político Os planos podem progredir e até mesmo atingir níveis moderados de sucesso na fase de projeto-piloto, enquanto “voam sob o radar” de políticos importantes com interesses opostos, até que o programa come- ce a ser “ampliado”. Oposição burocrática Figuras fundamentais na rede de órgãos encarregadas de implemen- tar uma política pública retardam ou sabotam a implementação, devido à baixa prioridade do projeto, falta de incentivos e/ou interesses conflitan- tes. 123 Fracos incentivos ao implementador Os implementadores locais (execu- tivos de coordenação do governo local ou o pessoal de linha de frente de órgãos), que não foram consul- tados durante a fase de tomada de decisão, não tem adesão ou incen- tivos adequados para cumprir com as diretivas a partir de seu nível de atuação. Barreiras de competência analítica Missões vagas ou múltiplas A natureza intersetorial dos planos e da implementação leva ao acoberta- mento dos objetivos conflitantes ou à não especificação clara das permu- tas em termos operacionais. Mudanças de prioridades Trocas feitas durante a tomada de decisão da política pública - por exemplo, entre as dimensões am- bientais e econômicas de um proble- ma - poderão ter de ser reconside- radas em função de mudanças nas condições econômicas e políticas. Má concepção Programas sociais ou ambientais que provavelmente não vão funcionar como o esperado, devido a diversos obstáculos deixados sem solução na concepção do programa; a falha está mais do que determinada - ou seja, ela vai ocorrer se qualquer das barreiras for ignorada. Viabilidade desigual Diferentes componentes dos planos integrados podem estar operacional- mente ligados - um só pode avan- çar se todos estiverem juntamente presentes -, sujeitando as operações ao “elo mais fraco”. UNICESUMAR UNIDADE 3 124 Barreiras de capacidade operacional Limitações de fundos O envio dos fundos necessário para a implementação dos planos aprova- dos demora para ser concretizado, impedindo o progresso, enquanto os elementos-chave da situação mu- dam na prática e/ou os apoiadores iniciais desanimam e abandonam os esforços. Má estrutura de gestão ou capacida- de de coordenação de rede Precedentes de coordenação defi- cientes entre os principais órgãos - exacerbados no caso de parcerias intersetoriais - tornam as decisões de rotina lentas e a implementação disfuncional. Falta de clareza nos planos opera- cionais Planos aprovados e financiados são mal administrados devido à má especificação de papéis, responsabilidades e prestação de contas. O problema é muitas vezes agravado por sistemas de supervisão e informação deficientes. Quadro 3 - Barreiras de implementação típicas / Fonte: Wu et al. (2014, p. 109). Perceba, caro(a) estudante e futuro(a) agente profissional que pode vir a lidar com processos burocráticos de implementação de políticas públicas e sociais, que são diversas as dificuldades que podem se impor no cotidiano de quem exe- cuta essas políticas, de modo que o processo de gestão e execução implica ações para além da própria implementação, como, por exemplo, identificar agentes com capacidade técnica para atuar nas atividades inerentes à implementação e operacionalizar os objetivos (macro) da política em ações menores e específicas (micro) para execução de tarefas com possibilidade de acompanhamento do avanço em cada atividade (WU et al., 2014). Conforme ensina Raeder (2016), é importante que tenhamos sempre a noção de que a implementação de políticas públicas e sociais, portanto, não é apenas uma questão técnica, mas um complexo emaranhado de elementos políticos que precisam ser colocados em prática de maneira ordenada, organizada, planejada. 125 Um último aspecto a considerar sobre a implementação de uma política pública ou social é o fato de que a imple- mentação implica no monitoramento dessa política, uma vez que o momento em que as intenções construídas na fase de formulação da política se convertem em ações, ou a fase em que se implantam intenções para se obter impactos e conse- quências (AZEREDO; LUIZA; BAPTISTA, 2012, p. 9), ne- cessita de acompanhamento dessa conversão da legislação em prática, da efetivação da política. O monitoramento implica em verificar todos os passos e atividades que concernem à destinação de recursos públicos (humanos, materiais e financeiros, se/quando pertinentes) para garantir sua melhor utilização, de maneira otimizada. Conforme Trevisan e Van Bellen (2008), o monitoramento das ações é importante diante de eventualidades ou da verifi- cação de falhas de planejamento, o que pode fazer necessária a alteração do curso da política em favor da melhor gestão dos recursos e dos interesses públicos. E como monitorar a implementação de uma política pú- blica ou social? São diversas as respostas possíveis e muitas delas estão atreladas à própria avaliação dessas políticas, por- tanto serão tratadas em unidade de estudos especificamente destinada a esse fim. Como proposta, neste momento, desta- co a possibilidade de utilização de uma técnica denominada matriz SWOT. A matriz SWOT deriva das iniciais dos quatro aspectos considerados em sua análise: strenghts, weaknesses, opportu- nities and threats, que traduzindo para o português signifi- cam: forças, fraquezas, oportunidades e ameaças. Essa estra- tégia, decorrente dos estudos em Administração, para coleta e análise de dados, permite a identificação de aspectos posi- tivos e negativos relacionados ao funcionamento da organi- zação (ambiente interno) e de elementos que se configurem em oportunidades ou em ameaças percebidas no contexto onde a organização opera (ambiente externo). Aplicada ao UNICESUMAR UNIDADE 3 126 monitoramento de políticas públicas, significa considerar elementos relacionados à própria implementação (ambiente interno) e outros fatores que estão além da efetivação da legislação (ambiente externo). FATORES POSITIVOS Auxiliam o Ambiente Estratégico FATORES NEGATIVOS Atrapalham o Ambiente Estratégico A M BI EN TE IN TE RN O Ca ra ct er ís tic as da s In st itu iç õe s A M BI EN TE E XT ER N O Ca ra ct er ís tic as do M er ca do FORÇAS OPORTUNIDADES FRAQUEZAS AMEAÇAS Quadro 4 – Matriz SWOT (modelo) / Fonte: o autor. Ainda que Santos et al. (2004) e Sertek, Guindani e Martins (2012) destaquem sua aplicação no meio empresarial, autores como Chirnev (2020), Cazumbá (2014) e Nakagawa (2020) afirmam que a SWOT é indicada à gestão social – no caso desses autores pensando as OSCs, mas cuja analogia é possível também ao âmbito da gestão pública de políticas - por possibilitar a compreensão de pontos de atenção e/ou a desenvolver e estimular no âmbito da organização (do Terceiro Setor, setor público em geral, secretaria ou um programa, projeto ou política pública ou social) e em seu meio de atuação, já que se pauta pela coleta de dados conjunturais e primários com vistas à compreensão da conjuntura e à prospecção de caminhos de ação. Em se tratando da construção do instrumento para coleta de dados, é ade- quado considerar as especificidades do público alvo, ou seja, não há um conjunto único e determinado de questões a ser realizadas, pois a matriz SWOT é uma ferramenta de análise adaptável às demandas, mas um aspecto relevante é pensar 127 em elaborar questões simples, de fácil entendimento, que possam ser respondidas por diferentes agentes envolvidos no processo de implementação da política. Ainda assim, destaco a proposta de Certo et al. (2010), que elencam um con- junto de perguntas para cada elemento da matriz SWOT. Conforme os autores, é pertinente elaborar questões diretas, que permitam respostas descritivas. A título de exemplo, destaco uma proposta de aplicação de matriz SWOT desenvolvida pelo autor deste materialdidático junto a organizações da socie- dade civil e iniciativas sociais com vistas à sua capacitação para formalizar seu funcionamento e/ou ingressar em conselhos de políticas públicas, o que ocorreu através de um projeto de extensão intitulado “Gestão Social” (GIMENES, 2021). Tendo em vista os componentes da matriz SWOT, foram definidas como questões que tratam das forças aquelas que buscam identificar o público atendi- do, as atividades desenvolvidas, os recursos disponíveis e a maior vantagem da ação da entidade, movimento ou projeto. Já em se tratando de fraquezas, foram considerados relevantes dados sobre a formalização da OSC, a capacitação do pessoal, a estrutura física, a administração e o conhecimento sobre a política que rege o campo de política pública no qual a ação da entidade se insere. Já no ambiente externo à organização, revelou-se imperioso compreender quais as oportunidades vislumbradas pelas entidades com relação ao direciona- mento de ações a conselhos ou órgãos públicos, bem como potenciais contatos com empresas privadas. Por fim, no que tange às ameaças, questionou-se sobre a percepção com relação às políticas ou tratativas que podem afetar a atuação da organização e às ameaças que podem impactar negativamente o funcionamento da entidade, projeto ou movimento social. No caso do monitoramento da implementação de uma política pública ou social, deve-se buscar coletar dados junto o maior número possível de envolvi- dos nessa etapa, a fim de reunir elementos que permitam analisar de maneira aprofundada e detalhada a aplicação dos recursos e a efetividade daquilo que se está colocando em prática. De modo didático, o quadro a seguir apresenta as questões básicas oferecidas aos participantes do projeto. UNICESUMAR UNIDADE 3 128 Quadro 5 - Questionário-base de Matriz SWOT para o projeto de extensão “Gesta Social” Fonte: Gimenes (2021). Uma informação valiosa para quem pretende trabalhar com a matriz SWOT: com relação à aplicação do questionário do “Gesta Social”, a experiência permitiu identificar que deve-se oferecer condições às respostas, como local adequado para acomodação, materiais e disponibilidade de tempo e atenção para sanar eventuais dúvidas e aguardar que os indivíduos reflitam e informem o que foi solicitado conforme seus limites ou dificuldades (GIMENES, 2021). A partir da alocação das respostas em cada campo da matriz SWOT, tem-se a possibilidade de realizar análises que permitam o estabelecimento de um re- trato mais assertivo do objeto investigado, consideradas três etapas pertinentes à análise dos dados, quais sejam: ■ [1] considerar as respostas a cada pergunta de maneira específica para todo o contingente de questionários; ■ [2] estabelecer as sínteses das questões de cada elemento (forças, fraque- zas, oportunidades e ameaças) para analisá-lo em sua totalidade; e ■ [3] considerar as interlocuções entre os campos presentes na matriz para compreender sua conjuntura de operação e prospectar atividades e es- tratégias da gestão social. FATORES POSITIVOS Auxiliam o Ambiente Estratégico FATORES NEGATIVOS Atrapalham o Ambiente Estratégico A M BI EN TE IN TE RN O Ca ra ct er ís tic as da s In st itu iç õe s A M BI EN TE E XT ER N O Ca ra ct er ís tic as do M er ca do FORÇAS OPORTUNIDADES FRAQUEZAS AMEAÇAS • Qual o público alvo do atendimento da organização? • Que atividades são desenvolvidas na organização? • Quais são os recursos materiais, financeiros e de pessoal disponíveis? • Quais a maior vantagem ou diferencial da organização? • A organização tem registro de pessoa jurídica (CNPJ)? • Existem ações para capacitação dos contratados e/ou dos voluntários? • O que precisa ser melhorado na estrutra física da organização? • Como é realizada gestão da organização? • O que você conhece sobre a política pública e a legislação relacionadas à organização? • Que ações porem direncionadas à política e os conselhos para melhorar a atuação da organização? • É possível buscar contribuições de órgãos públicos? • Há possibilidade de parceriais com empresas privadas? • Que contratos anteriormente podem ser retomados? • Qual o nível de influência ou participação da organização da definição da política pública? • Como a organização lida com a burocracia? • Há ameaças percebidas que podem dificultar a continuidade do atendimento? 129 Assim, a primeira etapa da análise consiste na verificação descritiva dos conteú- dos das respostas para identificar recorrências e especificidades, ao passo que a segunda etapa diz respeito à análise conjunta das respostas a cada questão de um mesmo elemento da matriz. Com relação à terceira etapa, trata-se daquela mais complexa e completa da análise, uma vez que, conforme proposta analítica de Sertek, Guindani e Martins (2012), a expectativa é de estabelecer interlocuções entre forças e oportunida- des, fraquezas e oportunidades, forças e ameaças e fraquezas e ameaças, com vistas à geração de informações à tomada de decisões. A interlocução entre forças e oportunidades oferece um retrato do atendi- mento da organização e seu destaque junto à comunidade onde atua, ao passo que a combinação de dados sobre fraquezas e oportunidades aponta aspectos a serem melhorados na gestão para potencializar seu impacto. Por outro lado, quando analisados conjuntamente as forças da OSC e as ameaças externas, têm-se pontos de atenção que devem ser monitorados, pois não representam problemas momentâneos mas carecem de cuidado para não prejudicar o funcionamento da política. Por fim, a interlocução de fraquezas e ameaças oferece informações sobre tudo o que deve ser superado ou eliminado para que os resultados da ava- liação da política sejam otimizados. Ao fim desta unidade de estudos, é importante que você, futuro(a) agente profissional cuja formação oferece a possibilidade de se envolver com políticas públicas e sociais, perceba que são múltiplas as etapas pertinentes à consecução de uma política, muitas vezes quase imperceptíveis aos olhos da população, mas cujos impactos são sentidos por todos. Faz sentido falarmos sobre direitos de minorias quando nos referimos a questões etárias? São necessárias políticas públicas específicas conforme a idade dos indivíduos? No podcast desta unidade de estudos, a expectativa é que você se sinta provocado(a) a refletir sobre um tema que perpassa todos nós ao longo de nossa vida: os anos de idade e sua relação com as políticas públicas! Vamos conhecer um pouco sobre três diferentes leis federais que tratam dessa temática: o Estatuto da Criança e do Adoles- cente, o Estatuto da Juventude e o Estatuto do Idoso. UNICESUMAR https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/15658 UNIDADE 3 130 Ao fim desta unidade de estudos, deve ter percebido que lhe-foi disponibili- zado um conjunto de informações, conceitos, explicações e exemplos sobre a construção de uma política pública - seja social ou de outra natureza - a partir da proposta de ciclo de políticas, reconhecidos os limites da abordagem e a ex- planação de quatro etapas. Você se lembra do exercício de reflexão proposto no início desta unidade? Nas páginas iniciais desta discussão, te provoquei a escrever o que você sabia ou pensava sobre as quatro etapas que abordaremos neste conteúdo, quais sejam: for- mação de agenda, formulação de propostas, tomada de decisões e implementação. A fim de avaliar o quanto você avançou na busca por ser um excelente futuro profissional, em se tratando do que conhece sobre essas etapas, retome as ano- tações que você realizou naquele momento, complemente-as conceitualmente e, depois, avalie sua capacidade de decodificação desse conteúdo em termos práticos. Para tanto, exemplifica cada etapa sobre a qual escreveu, buscando em seu cotidiano da comunidade ou em notícias aspectos que digam respeito a cada etapa estudada nesta unidade. 131 1. Nesta unidade de estudos, consideramos o ciclo de políticas públicascomo ponto de partida e estruturação da discussão sobre a construção de uma política. Nesse sentido, a abordagem tratou tanto do conceito do próprio ciclo quanto de algumas de suas etapas de consecução. Considerando tal conteúdo, a ordem definida pela literatura para pensarmos conceitualmente a organização do ciclo de políticas pú- blicas e sociais é: a) Discussão de propostas, tomada de decisão e implementação. b) Tomada de decisão, implementação, monitoramento e avaliação. c) Formação de agenda, tomada de decisão, implementação e avaliação. d) Avaliação, tomada de decisão e implementação. e) Formação de agenda, discussão de propostas, tomada de decisão, implementa- ção e avaliação. 2. Um dos pilares da conformação de um ciclo de política pública, especialmente de uma política social, é sua perspectiva democrática e inclusiva de proposição de par- ticipação ampliada, ainda que esta ocorra de maneira diferenciada conforme a etapa do ciclo. Diante da explanação sobre o assunto nesta unidade de estudos, analise as afirmações a seguir, bem como a relação proposta entre elas: I - Diferentes agentes e atores individuais e coletivos possuem “pesos” distintos conforme as etapas, sendo que a sociedade civil, organizada especialmente por meio de organizações do Terceiro Setor, tem papel relevante. PORQUE II - As organizações da sociedade civil representam o povo, que é ator central em todas as etapas de construção de políticas públicas e sociais. É correto afirmar que: a) A afirmação I é verdadeira e a afirmação II é falsa. b) A afirmação I é falsa e a afirmação II é verdadeira. c) Ambas as afirmações são verdadeiras e a II justifica a I. d) Ambas as afirmações são verdadeiras, mas a II não justifica a I. e) Ambas as afirmações são falsas. 132 3. Considerando que a construção de uma política social é permeada por múltiplas atividades, diálogos, interlocuções e perspectivas, é correto afirmar que o processo de conformação de políticas públicas e sociais é plenamente democrático? Justifique sua resposta. 4A Avaliação de Políticas Públicas e Sociais Dr. Éder Rodrigo Gimenes Nesta unidade de estudos, avançamos em nosso diálogo enfocando elementos relacionados à avaliação daqueles projetos, atividades ou programas já implementados. Nosso objetivo é lhe proporcionar a compreensão ampla e detalhada dos elementos que conformam esta etapa na qual diferentes agentes profissionais atuam – como assisten- tes sociais, gestores públicos e outros com formações especificamente relacionadas às áreas de políticas, por exemplo – sozinhos ou coletiva- mente, cuja ação impacta de modo relevante o cotidiano da população. A discussão expõe três temáticas: a conceituação e as especificidades da avaliação de políticas públicas e sociais, métodos e técnicas para sua consecução e criação e utilização de indicadores sociais. UNIDADE 4 134 A implementação de um projeto sempre levanta (e assim deve ser) alguns questionamentos importantes, tais como: surtiu o efeito desejado? A expectativa inicial com relação a um programa social foi atendida? Houve impacto social positivo em decorrência de determinada atividade de política pública ou social? Como identifi- car, mensurar e analisar resultados? E como expor esses resultados de maneira concisa, objetiva e também eluci- dativa do cumprimento do ciclo de política pública ao qual a avaliação se refere? Perceba, caro(a) acadêmico(a), que, novamente, nos deparamos com diversos questionamentos que são per- tinentes à temática desta aula. Em alguma medida, e se espera que você tenha essa percepção, talvez algumas possibilidades de respostas ou “pistas” tenham lhe vindo à mente quando leu essas perguntas, o que pode de- correr do seu conhecimento acumulado até o momento sobre o ciclo de políticas públicas e sociais. Nesta aula, espera-se que você elabore respostas aos questionamentos que acabou de ler, mas mais do que isso, que se perceba, enquanto profissional em forma- ção, com responsabilidade sobre as políticas públicas e sociais, independentemente do espaço onde atuar, pro- fissionalmente, e da função que exercer, afinal, o conhe- cimento sobre a qualidade de políticas públicas e sociais tem relação não apenas com relatórios de avaliação, mas também com o uso adequado de recursos públicos, por- tanto, de todos os cidadãos, inclusive, você. Voltando às questões que iniciaram esta unidade de estudos, muito provavelmente, você concorda que é importante a avaliação das políticas públicas e sociais implementadas, mas, talvez, não se lhe venham à mente exemplos de como estes resultados são sistematizados ou mesmo de onde ser encontrados. Por fim, caso você conheça relatórios de resultados, é grande a possibili- 135 dade de que tenha se deparado com uso de gráficos e termos técnicos, o que dificulta, sobremaneira, a leitura e interpretação pelos usuários dessas políticas, que são também seus financiadores, ainda que não exclusivamente. Isso significa que, desta unidade de estudos, é preciso que você aprenda, e apreenda não apenas os aspectos técnicos da elaboração de uma avaliação de políticas públicas e sociais, mas também reflita sobre como comunicar estes re- sultados a diferentes perfis de atores impactados por essa política, sejam agentes políticos, usuários da política, profissionais que executam aquilo que foi definido, a comunidade onde foi implementada a decisão etc. Novamente, lembre-se de que a exposição conceitual e de exemplos é ilustra- tiva e dialógica, portanto, sem intenção de mitigar os limites dos usos e poten- cialidades das avaliações, até mesmo porque as políticas públicas e sociais são desenvolvidas em diferentes áreas e em todas as esferas de atuação do governo, portanto, cada situação exposta nesta unidade de estudos deve ser pensada como uma perspectiva a ser ressignificada conforme a demanda prática sob investiga- ção ou avaliação. Assim, caro(a) acadêmico(a), como as políticas públicas e sociais se mate- rializam em diferentes áreas e por ações com proporções e impactos variados, após superados os desafios de compreender sua classificação, arranjos e etapas até a implementação, avancemos à imersão sobre como avaliar essas políticas. E que tal parar por alguns minutos esta leitura para um exercício rápido e relativamente simples? A proposta é colocar a mão na massa, o que, pedagogica- mente, é entendido com experimentação, ou seja, um exercício prático para que você tenha contato (uma experiência), a partir de elementos do cotidiano, com o tema que desenvolveremos nesta unidade de estudos. Vamos lá?! O exercício é: pesquise informações sobre resultados de políticas públicas. Busque por notícias e entrevistas na mídia (considerando fontes confiáveis, veí- culos de imprensa, preferencialmente, na TV, impressos ou online), por publica- ções em espaços oficiais do seu município (ou unidade da federação, até mesmo do Governo Federal, se preferir) em sites, redes sociais ou mesmo editais “físicos” em prédios públicos e, também, em portais com dados de transparência sobre gestão dos recursos públicos. Perceba que, recorrentemente, as ações de experimentação propostas neste material didático remetem a dados com ampla circulação pública, isso porque em se tratando de políticas públicas e sociais é importante lembrar sempre do públi- UNIDADE 4 UNIDADE 4 136 co-alvo das propostas, mas também que, de diferentes maneiras e em múltiplas situações, essas políticas afetam a população com um todo, seja como usuária ou apenas contribuinte que recolhe impostos. Salve alguns arquivos que localizar em sua busca, copie informações, anote fontes. E, além disso, perceba em sua rápida pesquisa também eventuais contra- tempos ou dificuldades, como a ausência de informações em algum site oficial, a falta de transparência na divulgação de avaliações, a maneira como as notícias são divulgadas com relação à temporalidade, abordagem e autonomia do veículo de imprensa etc. Podemparecer ações simples, mas que gerarão impacto na conformação de seu conhecimento ao longo desta unidade de estudos. Para estimular sua reflexão acerca daquilo que coletou em seu momento Mão na Massa, utilize o espaço de seu Diário de Bordo para anotar informações sobre sua experiência recente: as dificuldades (ou não) para localizar avaliações de políticas públicas e sociais, o nível de detalhamento e a linguagem utilizada, se são apenas notícias ou também há fontes oficiais públicas, se há evidências técnicas (metodológicas) sobre o modo como esses resultados foram analisados e, logicamente, impactos mencionados que lhe chamaram a atenção. 137 Este é um exercício importante, pois a sistematização daquilo que buscou anteriormente na experimentação é uma maneira de organizar seu conhecimento sobre o assunto, o que pode lhe ajudar a sedimentar com maior detalhamento a discussão teórico-analítica que segue nesta unidade de estudos. Portanto, pare a leitura neste momento, respire, reflita e foque em preencher seu Diário de Bordo, pois ele pode ser um material de apoio ou mesmo seu guia ao longo da trajetória de exposição que segue. A avaliação parte do entendimento de que uma política é composta por ações que ocorrem entre uma situação atual e uma nova, provocando mudanças. Seus objetivos podem estar ligados ao incremento no conhecimento, levantamento de informações causais e lógicas sobre eficácia de métodos e sobre a operação da política e seus impactos, entre outros (AZEREDO; LUIZA; BAPTISTA, 2012). UNIDADE 4 UNIDADE 4 138 Sobre a avaliação de políticas públicas, Trevisan e Van Bellen (2008) e Chiari (2012) afirmam que, assim como o conceito de políticas públicas não é consensual, sua avaliação assume diversas possibilidades de definição, pois decorre de distintos conhecimentos científicos, atores e instituições políticas, demandas e contextos. Isso significa, caro(a) estudante, que a depender da formação de um profis- sional, do local onde trabalhe ou de sua perspectiva enquanto usuário de uma política pública ou social será diferente a sua forma de considerar elementos para uma avaliação; isso se aplica aos pesquisadores sobre o tema desta unidade de estudos. E por quê? Por uma razão direta e complexa, ao mesmo tempo: como as políticas públicas e sociais são multifacetadas em termos de áreas, abrangência das ações, usuários impactados e esferas de governo, a depender da perspectiva a partir da qual se “olhe” uma política pode-se pensar diferentes estratégias para sua avaliação e demandas, o que impacta, em última instância, a própria concei- tualização desta etapa do ciclo de políticas públicas e sociais. De maneira simples, a etapa compreende a avaliação dos resultados de um programa, uma ação, um projeto ou uma legislação, sempre tendo como princí- pio da análise os objetivos propostos quando da formulação da política. Nesse sentido, cabe destacar pontos positivos e negativos desta etapa do ciclo, conforme expostos a seguir: a) É positiva a possibilidade de identificação do impacto das políticas pú- blicas sobre a população a ser atendida e as melhorias dos processos de gestão, de prestação de contas e de tomada de decisões sobre recursos públicos (TREVISAN; VAN BELLEN, 2008). b) Resultados negativos podem promover constrangimentos aos gover- nantes, uma vez que sua utilização pela população, por adversários polí- ticos e/ou pela imprensa é passível de tom crítico. Em contrapartida, re- sultados positivos tendem a ser amplamente divulgados, o que contribui para uma boa avaliação do governo (TREVISAN; VAN BELLEN, 2008). c) É negativo também o risco de que fatores externos às próprias políticas possam interferir na utilização dos resultados de sua avaliação, como a existência de conflitos de interesses entre órgãos envolvidos na execução da política, mudanças no pessoal encarregado pela execução ou mesmo de gestão (Poder Executivo) e cortes orçamentários decorrentes de alte- rações no ambiente político (FARIA, 2005). 139 Assim, esta última etapa do ciclo de políticas públicas e sociais carece de maior aprofundamento do que as etapas anteriores, especialmente porque, após a avalia- ção de uma política, é possível a produção de um feedback que contenha informa- ções analíticas acerca do desempenho daquele programa, projeto, daquela ação ou da atividade, de modo a retroalimentar o ciclo com novos dados para que a agenda seja retomada, ou o foco seja direcionado a outro problema ou outra questão. Nesse sentido, nesta primeira parte expositiva desta unidade de estudos, nós nos dedicamos a compreender, de maneira aprofundada, os elementos dos relató- rios de avaliação – como suas finalidades e seus usuários aos quais se destina – e aspectos técnicos à sua elaboração, para somente depois abordarmos algumas ferramentas para coleta, sistematização e análise de dados e informações que permitam a realização de avaliações assertivas sob as perspectivas dos métodos quantitativo e qualitativo. Um ponto de atenção com relação a esta escolha de exposição do conteúdo: a princípio, pode parecer contraintuitivo ou estranho falarmos sobre a construção de um relatório antes de tratarmos das técnicas para a coleta dos dados. Con- tudo, tendo em mente as informações a serem consideradas para a elaboração do relatório, você conferirá maior foco às técnicas para coleta de dados, pois já terá compreendido para que esses dados são importantes e o que materializarão. Isto posto, é preciso salientar que relatórios de avaliação de políticas pú- blicas e sociais podem ser utilizados para diversas finalidades, desde aquela mais geral e ampla até outras mais específicas e, detalhadamente, direcionadas. Nesse sentido, Trevisan e Van Bellen (2008), em um texto que se tornou clássico nas discussões sobre o tema desta unidade de estudos, apresentam cinco diferentes finalidades para relatórios de avaliação de políticas públicas e sociais, quais sejam: geral, instrumental, conceitual, de persuasão e de esclarecimento. Caso a finalidade do relatório seja geral, decorre do fato de que “[...] os relató- rios das avaliações podem servir tanto para divulgação, quanto para fomento do debate público em torno das alternativas de intervenção governamental em uma dada realidade social” (TREVISAN; VAN BELLEN, 2008, p. 540), portanto, po- dem ter linguagem para simples entendimento e informações pouco detalhadas. UNIDADE 4 UNIDADE 4 140 Um relatório cuja finalidade é instrumental deve conter informações de boa qualidade, com divulgação dos resultados de maneira clara e com recomendações factíveis, o que significa que deve haver objetividade naquilo que é exposto. Aqui, cabe uma observação relevante: um relatório com escrita direta o objetiva deve ser conciso, apresentar, de maneira breve, os principais resultados, mas isso não significa que é um relatório mais rápido para ser elaborado ou de fácil execução; ao contrário, para uma exposição que seja considerada simples e direta exige-se muito dos responsáveis pela avaliação, afinal, implica o cuidado com a síntese de informações e a seleção daquilo que será apresentado. Um relatório conceitual de avaliação de políticas públicas e sociais tem um público específico ao qual se direciona, que são os agentes, atores e/ou técnicos envolvidos nos ciclos de políticas públicas e sociais, sendo que sua finalidade é de promoção da reflexão fundamentada (em informações) sobre a natureza, a opera- cionalização e os impactos dos programas e das ações que foram implementados. Por sua vez, um relatório cuja finalidade seja de persuasão deve ser elabo- rado com vistas à adesão ou ao apoio à posição dos gestores sobre as alterações necessárias à determinada política pública, ou seja, é um relatório voltado ao con- vencimento daqueles que serão impactados por suas informações e, geralmente, são utilizados em situações em que entes do poder público – não somente, mas mais recorrentemente – buscam alterar as opiniõese as percepções de outros atores sociais para coincidirem com as expectativas, o discurso ou as propostas do gestor. A última finalidade destacada pelos referidos autores para a elaboração de um relatório de avaliação de políticas públicas e sociais é o esclarecimento. Trata-se de um tipo de relatório que interfere na própria forma de ação de governos e na agenda do Estado, relacionado a avaliações de técnicos e profissionais, formado- res de opinião e membros do próprio Estado, não raras vezes, se caracterizando pela ênfase na opinião de especialistas. Sobre os usuários a quem se destinam tais relatórios, é importante destacar, inicialmente, que, por se tratar de avaliações de políticas que visam atender a necessidades ou demandas de coletividades e por utilizarem recursos públicos para sua consecução, as avaliações de políticas públicas e sociais devem ser publicizadas aos diversos atores sociais para conhe- cimento, sujeitas, inclusive, a eventuais questionamentos. Nesse sentido, a gama de usuários dos relatórios de avaliação é ampla e abran- ge, por exemplo, gestores públicos, outros agentes governamentais de mesmo 141 âmbito ou de esfera administrativa ou de poder distinta, pesquisadores que se interes- sem pela temática para fins acadêmicos, movimentos sociais e outros grupos de ações coletivas organizados, cidadãos “comuns”, os veículos de comunicação e a sociedade civil de maneira ampliada, que constitui, de fato, o público-alvo das políticas. Portanto, mesmo que, inicialmente, possa haver um público específico para o direcionamento de um relatório, o que pode definir sua construção conforme a finalidade, os profissionais responsáveis pela elaboração devem considerar que outros grupos podem solicitar acesso às informações ou tomar contato por conta da transparência relacionada à gestão de recursos públicos. Você buscou informações sobre avaliação de políticas públicas e sociais conforme suge- rido como experiência no início desta unidade de estudos? Se sim, retome o resultado de sua pesquisa agora; caso ainda não tenha pesquisado, procure na página oficial da prefeitura do seu município por relatórios de avaliação de políticas públicas ou relatórios de gestão (gerais), nos quais aspectos pertinentes a políticas públicas e sociais devem ser abordados. Com esses relatórios em mãos, você consegue identificar algum público-alvo ou a finalidade do relatório? PENSANDO JUNTOS Ainda, conforme o importante artigo produzido por Trevisan e Van Bellen (2008), a metodologia de avaliação de políticas públicas deve considerar, basicamente, três aspectos técnicos que são direcionadores da coleta, da sistematização, da análise e da exposição dos resultados, que são: o timing de realização, a posição do avaliador e a modalidade de avaliação. O timing diz respeito ao tempo ou período de avaliação, que pode ocorrer antes, durante ou após a implementação de uma atividade, um projeto ou um programa vinculado a uma política pública ou social. Antes da implementação da política, pode ser realizada uma avaliação conjuntural que permita analisar a relação custo-benefício, o custo-efetividade e o retorno econômico sobre o investimento dos recursos públicos, ou seja, o potencial “tamanho” do efeito ou impacto social daquela política. A avaliação pode – diria até mesmo, mais enfaticamente, que deve – ser reali- zada ao longo da implementação de uma atividade, um projeto ou um programa vinculado a uma política pública ou social para que haja acompanhamento da execução e da utilização dos recursos empregados nessa política, sendo, aqui, UNIDADE 4 UNIDADE 4 142 tratados como recursos aqueles de ordem financeira, de tempo hábil e humanos e materiais. Nesse momento, “durante”, a avaliação busca conhecimento sobre tal processo, seu desenvolvimento e sua gestão. Após a implementação de uma ati- vidade, um projeto ou um programa vinculado a uma política pública ou social, sua avaliação torna-se imprescindível, portanto, obrigatória, afinal, é pertinente a prestação de contas acerca da utilização dos recursos públicos. Nesse momen- to, então, a avaliação é realizada com vistas a julgar os resultados, de fato, seus impactos e processos. Cabe destacar, contudo, que o timing da avaliação não significa que estes momentos são isolados e desconectados. O contrário é a maneira correta de interpretar este aspecto: ainda que somente a avaliação ocorrida após a implementação e uma atividade, um projeto ou um programa vinculado a uma política pública ou social seja compulsória, não raras vezes os ges- tores – cientes desta obrigatoriedade posterior, especialmente conforme acumulam experiência nesta função ou atuação – iniciam a coleta de dados e informações ainda na etapa de formulação da política (timing anterior, portanto) e seguem com sua coleta nas etapas de tomada de decisão, im- plementação e monitoramento (timing durante) para chegarem à última etapa do ciclo com uma base de dados consistente. Sobre o segundo aspecto mencionado por Trevisan e Van Bellen (2008), no que tange à posição do avaliador em relação ao objeto avaliado, o ideal é que seja externo ou independente, para garantir (ao máximo) a neutralidade na análise, uma vez que, quando o próprio ente público avalia a política pública ou imple- mentou, a tendência é de analisar de maneira positiva ou de minimizar os fra- cassos (vide formas negativas de uso dos relatórios). Além disso, a avaliação deve ser um processo transparente, ao qual o público tenha acesso, o que significa que deve ser um instrumento de controle da ação do Estado pela população (TREVI- SAN; VAN BELLEN, 2008). Assim, respeitado o limite da confidencialidade de alguns dados por demandas legais e respeitado o interesse público, é pertinente que a população acompanhe as avaliações. Por fim, o terceiro aspecto técnico a ser considerado quando da elaboração da avaliação de uma atividade, um projeto ou um programa vinculado a uma política pública ou social é a modalidade da avaliação, ou seja, que perspectiva 143 objetiva direciona a avaliação, ao que Trevisan e Van Bellen (2008) destacam as avaliações de metas, de processos e de impactos. Um relatório de avaliação de metas mensura o grau de êxito que uma política pública ou social atinge a partir do atendimento de metas estipuladas quando de sua formulação, como o número de pessoas atendidas em centros de saúde, o número de horas de aula, o número de leitos hospitalares, a melhoria qualitativa da satisfação de usuários de um programa, a ampliação do espaço geográfico coberto por equipamentos públicos etc. Assim, pode ser realizado – ou seja, ter seu timing definido – antes, durante e após a implementação da política. O relatório de avaliação de processos visa identificar e corrigir defeitos ou problemas e promover melhorias na implementação da política para otimizar seu funcionamento, sendo que tais alterações podem ocorrer ainda ao longo do processo de implementação, conforme indicações do monitoramento da política. Por ter como objetivo a correção ou melhorias ao longo da implementação de uma atividade, projeto ou programa vinculado a uma política pública ou social, é uma avaliação de timing “durante” a implementação, em seu monitoramento. Já a avaliação de impacto focaliza efeitos ou impactos sociais da política, ou seja, visa identificar as mudanças ocorridas, sua abrangência e seu alcance, não apenas restrita aos beneficiários e considerando a multiplicidade de efeitos pos- síveis, sejam eles quantificáveis, ou não. Entre esses efeitos, por exemplo, têm-se a elevação da autoestima dos cidadãos, a redução da distância até os equipamentos sociais, a melhoria na possibilidade de deslocamentos dos indivíduos por conta de horários de ônibus mais flexíveis, a segurança no trânsito em virtude de pa- vimentação asfáltica e muitos outros. Após a avaliação da política pública, é importante que os relatórios sejam uti- lizados pela gestão pública como fonte deinformações para a tomada de decisões de natureza gerencial e burocrática, uma vez que os resultados são feedbacks úteis à análise das condições de determinadas áreas de políticas públicas e do acesso de coletividades aos espaços e serviços que devem ser oferecidos pelo Estado. Ademais, cabe destacar que é responsabilidade dos entes públicos a prestação de contas sobre suas ações e sobre as maneiras como utilizam recursos públicos. Ante estas considerações sobre os relatórios, você é capaz de perceber como a coleta de dados deve ser o mais precisa possível com relação ao que se espera? Pensemos juntos – e agora ficará mais tangível porque foi invertida a ordem de expor primeiros os relatórios e somente agora como coletar informações para UNIDADE 4 UNIDADE 4 144 tais relatórios: para realizar uma coleta adequada de dados, é necessário um pla- nejamento que considere o timing da coleta, a independência (ou não) daqueles que atuam nessa coleta e o que será avaliado: as metas, os processos, os impactos ou todos estes elementos. Existem questões que assumem perspectivas específicas em termos de gru- po ou casos a serem analisados, de modo que constituem situações em que, ao pesquisador, é relevante conhecer técnicas para abordar problemas com tal configuração. Nesse sentido, discorremos a partir deste ponto sobre técnicas qualitativas para coleta e análise de dados. De maneira específica, trataremos do conceito sobre o método qualitativo de pesquisa, bem como apresentaremos informações e definições relevantes às investigações de tal natureza, pertinentes tanto à coleta quanto à análise dos dados coletados. O método qualitativo é caracterizado pela investigação aprofundada a res- peito de determinado fenômeno, podendo ele ser uma tradição, um valor com- partilhado entre um grupo, uma percepção com relação à determinada política pública ou a maneira como um grupo específico lida com espaços, hierarquias ou atividades, por exemplo. Tais pesquisas têm como preocupação compreender os processos por meio dos quais os valores, a cultura, as instituições e as relações sociais se conformam. Para tanto, utilizam-se de amostras não probabilísticas e não representativas, compostas por pequenos contingentes de casos a serem investigados, uma vez que quanto maior o número de casos, maior a dificuldade em realizar análises detalhadas. Por conta de tal característica, as pesquisas de natureza qualita- tiva não buscam nem permi- tem que seus resultados sejam generalizados, o que significa que a análise de determinado fenômeno entre certo grupo não pode ser utilizada para explicar um fenômeno, ainda que semelhan- te, entre outro grupo (KOTLER; AR- MSTRONG, 2007). De acordo com 145 Alonso (2016), as pesquisas qualitativas consideram que é impossível isolar um fenômeno social do meio no qual está inserido, de modo que a melhor maneira de investigá-lo seria conhecer tanto a ele quanto aos aspectos que o tangenciam, ou seja, aquilo que o circula e com o que está relacionado. De modo geral, as pesquisas qualitativas são utilizadas para compreendermos a ordem social e os processos que promoveram ou promovem suas alterações, de modo que a opção por determinada técnica de pesquisa implica necessariamente em focar menos esforços em outro aspecto. Enquanto as análises sobre os pro- cessos sociais buscam estudar os objetos e as questões em perspectiva temporal, as investigações sobre instituições ou estruturas fundamentam suas análises no espaço, com vistas a compreender os arranjos sociais em dado momento. Alonso (2016) destaca que a escolha entre as técnicas depende da pergunta formulada pelo pesquisador, de modo que não se deve considerar métodos e técnicas a partir de uma escala de relevância ou superioridade, mas de pensá-las em conformidade com a adequação ou encaixe entre a pergunta que se busca responder e as possibilidades metodológicas a serem empreendidas. Em se tra- tando de técnicas de pesquisa qualitativa, são múltiplas as maneiras de abordar os problemas ou as questões e os casos selecionados para a amostragem. Nesta unidade de estudos, não há intenção de esgotar tais abordagens, mas o intuito é apresentar um rol de instrumentos que permitam a realização de pesquisas qualitativas. Nesse sentido, cabe uma exposição sobre as seguintes quatro técni- cas qualitativas de coleta de dados: observação participante, entrevistas, grupos focais e pesquisa documental. A análise realizada com o objetivo de compreender como as normas, os hábi- tos e os padrões sociais são vivenciados pelos indivíduos em sociedade compõe a técnica de observação participante. De acordo com Alonso (2016, p. 10), tal téc- nica “é um estudo das rotinas sociais, do que parece trivial e óbvio, mas que, por ser muito disseminado, estrutura as relações sociais”. A observação participante pode ocorrer de duas maneiras. Na primeira, o observador atua como outsider, ou seja, observa os indivíduos e conversa com os mesmos acerca do fenômeno que está pesquisando, colhe relatos e toma notas daquilo que ouve e vê, sendo conhecida sua posição de pesquisador. Nessas situações, desvelar os processos depende do estabelecimento de relações de empatia com os membros do grupo. Na segunda maneira, o observador atua como insider e opera, incognitamen- te, no interior de um grupo, de modo a partilhar suas normas, hábitos e padrões UNIDADE 4 UNIDADE 4 146 sociais sem revelar-se um pesquisador. Se, por um lado, tal maneira permite a maior participação do pesquisador nos processos que estuda, por outro lado, apresenta um problema sob o ponto de vista ético, pois o pesquisador, oculta do grupo sua condição com relação aos demais. Como principal ponto positivo da observação participante, Alonso (2016) destaca a possibilidade de acompanhar a consecução de hábitos e práticas, em vez de apenas colher relatos sobre como ocorrem, o que pode diminuir a distorção da pesquisa com relação à realidade vivenciada pelo grupo. Em contrapartida, são negativos os fatos de que a obser- vação participante tem mais qualidade conforme o tempo que o pesquisador permanece no campo, mas, em conflito com tal necessidade, é necessário cuidado para não desenvolver simpatia pelos observados, a ponto de contaminar o olhar e análise empreendidos. Pensando especialmente nas políticas sociais, a observação participante pode ser utilizada ante a necessidade de compreender o nível de satisfação e os princi- pais problemas percebidos pelos usuários dessas políticas, que, provavelmente, se sentirão desconfortáveis ou desconfiados em criticar a política a um agente público – por receio de penalização, boicote ou exclusão do programa, por exem- plo – e, por outro lado, conversariam mais livremente com “outro usuário” que vivencia ou experimenta as mesmas situações, no caso de um observador oculto. Em segundo lugar, têm-se as entrevistas, que correspondem à técnica de cole- ta de dados cujo nome traz mais familiaridade aos leitores. Quem nunca assistiu a um programa ou leu uma reportagem cujo conteúdo era uma entrevista? De modo geral, as entrevistas buscam captar as percepções dos indivíduos com re- lação a determinado tema: o problema ou questão que suscitou a necessidade de realização da pesquisa. Segundo Alonso (2016), as entrevistas visam recolher da- dos sobre valores, opiniões, sentimentos, experiências e mecanismos por meios dos quais os indivíduos interpretam e agem em determinado contexto social. São muitas as modalidades de entrevistas, sendo que as mais recorrentes são abertas — pautadas em histórias de vida — e aquelas semiestruturadas ou estru- turadas. As entrevistas abertas ou não estruturadas dizem respeito ao estabeleci- mento de conversas específicas nas quais o pesquisador informa o entrevistado sobre o tema da pesquisa e lhe permite discorrer sobre o assunto (LIMA, 2016). As entrevistas pautadas em histórias de vida permitem aos entrevistados expor 147 relatos que retomem suas vivênciasde maneira retrospectiva (BONI; QUARES- MA, 2005). Na prática, não haveria questões prévias, apenas um tema, de modo que as questões emergiriam conforme o entrevistado construísse seu depoimento. As entrevistas semiestruturadas são aqueles em que há um questionário pre- viamente definido, com perguntas a serem, obrigatoriamente, realizadas a todos os respondentes, mas também a possibilidade de realização de outras perguntas, conforme o andamento da conversa e o conteúdo das respostas. Portanto, há uma estrutura básica como roteiro, mas também flexibilidade para novos ques- tionamentos. Por fim, o último tipo é a entrevista estruturada, realizada quando o pes- quisador tem clareza sobre os assuntos que deseja interpretar e é caracterizada pela existência de um questionário com perguntas definidas, sem possibilidade de flexibilização ou inserção de novos questionamentos. Também nesse caso, e com mais rigor, todas as perguntas devem ser realizadas a todos os entrevistados com um mesmo perfil. Em uma avaliação de uma atividade, um projeto ou um programa vinculado a uma política pública ou social, por meio de entrevistas, é possível combinar diferentes tipos de entrevistas com sujeitos distintos. Por exemplo: histórias de vida de lideranças comunitárias, entrevistas semiestruturadas com usuários dos equipamentos de saúde e educação e entrevistas estruturadas com gestores ou agentes públicos que trabalham em tais equipamentos. UNIDADE 4 UNIDADE 4 148 De acordo com Alonso (2016) e Lima (2016), definidos os casos a serem investi- gados e realizadas as entrevistas, os pesquisadores devem observar com atenção os relatos a fim de identificar a existência de elementos complicadores ou mesmo dissonantes com relação à realidade social, como a manifestação de respostas que o respondente esperava que satisfizesse a quem o entrevistou, o anacronismo na narrativa de fatos que ocorreram (em ordem ou períodos distintos daqueles apontados como cronológicos pelo entrevistado) e a própria memória dos en- trevistados, sujeita a esquecimentos, omissões e confusões. A terceira técnica qualitativa é denominada como grupos focais, que cor- respondem a entrevistas coletivas, nas quais os indivíduos selecionados ocupam um mesmo espaço e discorrem sobre suas opiniões, hábitos, valores e percepções sobre padrões sociais não apenas ao pesquisador, mas ao conjunto dos presentes. Assim, não se trata de simples coleta de dados a partir da fala do respondente, mas também da interação entre os respondentes com o grupo e, em alguma medida, com o mediador (GONDIM, 2003; WELLER, 2006; TEIXEIRA; ZAMBERLAN; RASIA, 2008). De acordo com Veiga e Gondim (2001), os grupos focais consti- tuem um recurso para a compreensão dos processos de conformação de repre- sentações sociais, em que podem, a depender de sua condução, contribuir para que os indivíduos revelem aspectos que não abordariam em uma entrevista, por exemplo, pois a interação com os demais pode estimulá-los a manifestar-se, ou reduzir a sensação de sentir-se avaliado. De acordo com Kind (2004, p. 125), já que “os dados obtidos, então, levam em conta o processo do grupo, tomados como maior do que a soma das opi- niões, sentimentos e pontos de vista individuais em jogo”, a interação grupal é o principal trunfo dos grupos focais para a produção de dados e insights que, dificilmente, seriam coletados em abordagens individuais. Conforme Gondim (2003), Kind (2004), Teixeira, Zamberlan e Rasia (2008) e Almeida (2016), tra- ta-se de uma técnica complexa, que deve considerar elementos, como perfil dos participantes, roteiro para funcionamento do grupo (dinâmica), tamanho, ho- rário, local e tempo de duração do grupo, recorrência do grupo com os mesmos participantes e o papel do moderador. 149 OLHAR CONCEITUAL A composição dos elementos do grupo é relevante, uma vez que a simples reunião de indivíduos não garante a qualidade de conteúdo de suas manifestações e interações. Assim, é preciso re�etir sobre características que potencializam a participação e optar entre escolher pessoas com muitas similaridades e algo diferente ou entre indivíduos muito diferentes, mas com alguma similaridade. Tal opção está relacionada ao objetivo da pesquisa: O roteiro para estruturação do funcionamento do grupo deve ser �exível, a partir de um conjunto de temas e questões a serem oferecidas à discussão, mas sem limitar o debate ao roteiro. Essa �exibilidade permite a emergência de opiniões divergentes sobre determinado assunto, bem como contribui para reduzir a inibição dos participantes; Com relação ao tamanho do grupo, a quantidade de participantes varia, sendo que a maioria dos autores mencionados anteriormente aponta que o ideal seria reunir entre quatro e dez indivíduos. Tal decisão deve considerar, contudo, o nível de envolvimento ou de conhecimento dos participantes com relação ao tema pesquisado ou se o assunto abordado é polêmico, já que, em ambas as situações, os participantes podem ter muito a manifestar e duas consequências negativas podem advir de tal situação: a perda de controle do funcionamento do grupo pelo moderador e a polarização da discussão entre participantes de modo a gerar con�itos; Em se tratando do número de grupos, é preciso considerar o quanto cada grupo contribui para a compreensão de uma questão a partir dos per�s selecionados para participação. Há autores, os quais mencionam que, no mínimo, dois grupos focais seriam necessários para produzir dados, enquanto que há consenso de que o limite máximo de grupos decorreria da saturação das alternativas de respostas, ou seja, da veri�cação de que as interações nos grupos não são capazes de produzir novos argumentos; O moderador tem papel central na condução dos grupos, pois deve, ao mesmo tempo, conduzir a discussão por meio da introdução de assuntos de maneira pertinente e limitar suas intervenções ao mínimo possível, de modo a permitir a �uidez do debate. Uma das principais habilidades esperadas de um moderador é de que seja capaz de perceber o conteúdo da discussão a �m de, ainda durante o processo de coleta, estabelecer algumas análises preliminares, que direcionam sua interpretação posterior; Há tempo pré-estabelecido para a duração do grupo focal, tanto porque o recrutamento de participantes implica em informar qual a duração da atividade quanto para que o mediador tenha condições de organizar a exposição ou inserção de temáticas com cuidado. Nesse sentido, autores como Almeida (2016) apontam o período entre 60 e 150 minutos como ideal, ao passo que Kind (2004) estabelece entre 90 e 120 minutos. Cabe ao pesquisador re�etir sobre o tempo de duração tendo em vista que períodos curtos podem não ser su�cientes para que os participantes percam a inibição e se manifestem ou para que todos os assuntos de�nidos sejam abordados, ao passo que grupos com maior duração podem implicar em dispersão com relação ao tema, redução do estímulo à interação e mesmo a di�culdade em recrutar participantes; O local para a realização do grupo focal deve possuir uma mesa grande ou possibilitar a disposição dos indivíduos de modo que todos possam sentar-se de frente com os demais. É interessante que cada um tenha exposta uma identi�cação (como seu primeiro nome) para facilitar as menções e interações e, dentro das possibilidades, que seja realizado com auxílio de recursos audiovisuais, como gravadores de voz e câmeras, desde que consentidos por todos os participantes do grupo. A organização de grupos focais exige atenção ao detalhamento pertinente a cada aspecto e/ou etapa, sendo que a qualidade dos resultados de sua aplicação de- pende do atendimento de todas as observações que seguem: Fonte: adaptado de Gimenes (2019). UNIDADE 4 UNIDADE 4 150 As técnicas de observação participante, entrevistas e grupos focais exigem o exer- cício da empatia. Em outras palavras, quem coleta os dados deve tentar colocar-se no lugar do outro ao longo do processo deobservação, de questionamento ou de abordagem/intervenção. A atuação empática pode ser determinante para a qualidade dos resultados. Por outro lado, a quarta técnica qualitativa exposta nesta unidade de estudos é caracterizada pela impessoalidade. Trata-se de uma pesquisa documental. De acordo com Kripka, Scheller e Bonotto (2015), tal técnica de pesquisa consiste em amplo e intenso exame de documentos, com a finalidade de produzir novos conhecimentos, de estabelecer novas maneiras para compreendermos os fenô- menos e de conhecer como se desenvolvem ao longo do tempo. Nesse sentido, os dados são coletados junto a quaisquer fontes escritas de informações, como leis, regulamentos, cartas, memorandos, diários pessoais, autobiografias, reportagens de jornais e revistas, discursos, livros etc. Também são considerados como docu- mentos outros registros passíveis de análise, como retratos (fotografias), vídeos (documentários, registros pessoais, filmes e outros) e também áudios (decorren- tes de conversas, entrevistas, discursos, ligações, programas etc.). De acordo com Marconi e Lakatos (2007), as fontes de documentos podem ser arquivos públicos, particulares ou de dados estatísticos. São exemplos de arquivos públicos os documentos oficiais, as publicações parlamentares e os documentos jurídicos. Já arquivos particulares remetem àqueles escritos para fins privados, sem pretensão de exposição ao público. Por fim, fontes estatísti- cas são aquelas que permitem ao pesquisador identificar aspectos relacionados à caracterização geral da população, como sua distribuição no território, taxa de crescimento, perfil sociodemográfico, condições de moradia e utilização de serviços públicos. Um passo importante à pesquisa documental é a escolha dos documentos que serão analisados, os quais comporão o universo ou a amostra da pesquisa. Tal escolha deve decorrer dos objetivos e das hipóteses construídos com aporte teórico, de modo que as questões formuladas pelo pesquisador são tão impor- tantes quanto os documentos que analisará, pois são os questionamentos que direcionam a maneira como olhamos para o objeto da investigação (MAY, 2004; CELLARD, 2008; KRIPKA; SCHELLER; BONOTTO, 2015). Em outras palavras, conforme o timing da avaliação e seu objetivo e finalidade deve ser definido o conjunto de documentos a ser analisado. 151 Como principais vantagens da utilização de tal técnica, Kripka, Scheller e Bo- notto (2015) destacam, primeiramente, o fato de constituírem uma fonte estável de informações, não reativa, ou seja, que não sofre interferências de eventos ou fenômenos externos, por se tratar de registros escritos, majoritariamente, de períodos anteriores ao da coleta de dados. Por exemplo, podemos mencionar a análise histórica da conformação de uma política social ou da força e pressão da participação social à criação de um conselho municipal de determinada política pública e/ou social. Como aspectos dificultadores à utilização de tal técnica destacam-se o longo tempo necessário para leitura e interpretação dos documentos, em muitos casos, dificultada por conta da linguagem, grafia, efeito danoso do tempo sobre os pa- péis e registros audiovisuais ou mesmo pelo volume de dados a analisar. Ademais, a pesquisa documental pode não remeter a informações reais, mas a elaborações decorrentes de necessidades, obrigações ou intenções dos formuladores dos do- cumentos à época de sua produção. UNIDADE 4 UNIDADE 4 152 E como analisar os dados coletados por meio de técnicas qualitativas? A análise de dados qualitativos é realizada desde o momento em que sua coleta ocorre. Nesse sentido, ao longo da pesquisa de campo, é possível construir insights ou pequenas interpretações, a serem mais bem exploradas na etapa da escrita, no “gabinete”, como menciona Oliveira (2000). “ As pesquisas de natureza qualitativa geram um extenso volume de dados que precisam ser organizados e compreendidos, requerendo assim um processo continuado em que se procura identificar dimen- sões, categorias, tendências, padrões, relações, desvendando-lhes o significado (TEIXEIRA; ZAMBERLAN; RASIA, 2008, p. 110). Portanto, é preciso considerar diversos aspectos na realização da análise dos dados coletados, de modo a produzir resultados claros, objetivos e estruturados, de forma que as modalidades mais recorrentes são as análises documentais, de conteúdo e de discurso. Sobre as análises documentais, a maneira como os ana- listas devem conduzir esta etapa gira em torno de sistematizar os dados coletados, sendo que tal técnica consiste em uma “operação ou um conjunto de operações visando representar o conteúdo de um documento sob uma forma diferente da original, a fim de facilitar, num estado ulterior, a sua consulta e referenciação” NOVAS DESCOBERTAS Em sua pesquisa de mestrado intitulada “Impactos recíprocos entre políticas públicas e sociedade civil: o caso da assistência social no âm- bito local”, Souza (2019) realizou uma investigação qualitativa que teve na pesquisa documental um importante pilar. Seu principal achado foi que, historicamente, a política de assistência social foi sendo con- formada por diálogos e enfrentamentos entre a estruturação do Sis- tema Único de Assistência Social e a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, por um lado, e as articulações e mobilizações de organizações da sociedade civil (OSCs) de maneira ampla e também direcionadas ao conselho municipal de assistência social. https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/17397 153 (BARDIN, 2008, p. 47). O mesmo vale para transcrições de entrevistas e de gru- pos focais e para os relatórios de observação participante. A análise de conteúdo trata da interpretação pelos pesquisadores daquilo que foi descrito ou apresentado na realização da observação participante ou de entrevista (BARDIN, 2008). Já a análise de discurso remete à interpretação dos sentidos daquilo que foi dito ou observado, com foco na construção da argumen- tação, da subjetivação e da maneira como os indivíduos interpretam e constroem suas interpretações da realidade (ORLANDI, 2003). Sobre a interpretação dos dados, Gondim (2003) destaca a necessidade de tomarmos cuidado com o “peso” que cada aspecto recolhido do campo assumirá em nossa análise. Conforme a autora, em discussão sobre grupos focais cujo conteúdo também pode ser esten- dido às observações e entrevistas, é necessário que, enquanto analistas, saibamos diferenciar o que é importante e o que é interessante, uma vez que nossos entre- vistados podem achar algo muito interessante, mas este aspecto não ser relevante à pesquisa ou, ao contrário, pouco nos informar sobre algo que é importante para a pesquisa, mas desperta, limitadamente, o interesse de nosso objeto. Já Lima (2016) afirma haver uma questão crucial na análise de entrevistas, que também considero relevante às observações e aos grupos focais: é importante que os pesquisadores não cedam à tentação de buscar a quantificação e a gene- ralização dos resultados. Lembre-se: pesquisas que se baseiam em técnicas qualitativas geram resultados especificamente referentes àqueles objetos (indivíduos, grupos ou materiais audiovisuais) junto aos quais foram co- letados dados. Com relação aos softwares, algumas ferramentas de apoio à realização das aná- lises de dados qualitativos são Atlas.ti 6, MAXQDA 2007, NVivo 8, QDA Miner 3.2 e Iramuteq. Em geral, os passos para a análise passam pela transcrição daquilo que foi observado, das entrevistas, dos grupos focais ou dos documentos, para, na sequência, ser iniciado o processo de codificação do material, tendo em vista o aporte teórico e/ou técnico que fundamentaram a avaliação, que podem ser rela- tórios tomados como base para inserção da discussão na agenda pública e objetivo da avaliação, por exemplo. Essa codificação diz respeito à identificação de termos, categorias, atores ou aspectos que se destaquem dentre o material analisado. UNIDADE 4 UNIDADE 4 154Para além das técnicas qualitativas, em se tratando dos dados que compõem uma avaliação de políticas públicas e sociais, é importante considerar que existem questões que assumem perspectivas maiores do que casos ou grupos, de modo que se faz imperioso conhecer técnicas para abordar problemas com tal confi- guração. Nesse sentido, cabe abordarmos também a metodologia quantitativa para coleta e análise de dados, considerados seu conceito e especificidades. As pesquisas quantitativas têm como principal característica a preocupa- ção com a quantificação de fenômenos, de modo que as técnicas de coleta e de análise de dados são baseadas em dois aspectos: a perspectiva de comparação e a possibilidade de tratamento estatístico. Nesse sentido, o método quantitativo implica amostras representativas com grande número de casos e coleta de dados estruturados. Em geral, as unidades de mensuração (os casos, como exposto anteriormente), são indivíduos, mas podem também ser instituições, empresas, municípios etc., sendo que “o que é crucial para a pesquisa quantitativa é que tais unidades sejam comparáveis”, de acordo com Lima (2016, p. 16). Com relação à possibilidade de tratamento estatístico, autores, como Barbetta (2011) e Kellstedt e Whitten (2015) destacam que, a depender do desenho amos- tral da pesquisa, é possível realizar testes que indiquem a capacidade de predição de determinada relação, ou seja, a chance de que algo que foi identificado na amostra seja replicado em escala populacional, conforme o erro tolerável envol- vido na investigação. A coleta de dados estruturada implica construir ferramentas que definam com a maior exatidão possível quais dados e informações serão captados pelo pesquisador, indicando que, antes de iniciar a etapa de coleta, é necessário que haja clareza sobre o problema, a maneira como o pesquisador pre- tende abordá-lo e quais informações pretende reunir para solucionar o problema. NOVAS DESCOBERTAS Uma maneira didática de apresentar conteúdos de análises qualita- tivas é a apresentação de nuvens de palavras, com os termos mais recorrentemente identificados nos relatos de observação, na transcri- ção de entrevistas ou grupos ou nos documentos. Tal representação visual é de simples execução, como explicado no Qr Code. https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/17396 155 Nesse sentido, Lima (2016, p. 20) afirma que são de grande relevância a de- finição da unidade de análise (caso) e dos atributos que se pretende mensurar (variáveis). Sobre o primeiro aspecto, a autora ilustra: “ A unidade de análise corresponde ao que o pesquisador quer obser-var. Por exemplo, no questionário da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD), o Instituto Brasileiro de Geografia e Esta- tística (IBGE) coleta dados sobre os domicílios e sobre as pessoas que neles residem. São, portanto, duas unidades de análise distintas: características da unidade do domicílio (características do domi- cílio, acesso a serviços de saneamento básico) e características dos moradores (condição na família, cor/raça etc.). Com relação às variáveis, “[...] são as características que podem ser observa- das (ou medidas) em cada elemento da população, sob as mesmas condições” (BARBETTA, 2011, p. 29). Nesse sentido, trata-se de atributos que procuramos identificar em um questionário ou levantamento de dados, de modo que cada resposta corresponde à manifestação de um caso com relação a uma variável. Um caminho relevante às avaliações quantitativas, especialmente quando empregadas nas etapas iniciais do ciclo de políticas públicas e sociais é a utili- zação de dados oficiais disponíveis em plataformas de instituições públicas ou institutos de pesquisa. Como exemplos dessas instituições, podemos mencionar o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com suas pesquisas Censo e amostral (PNAD) e também a Pesquisa dos Estados Brasileiros (ESTADIC) e a Pesquisa dos Municípios Brasileiros (MUNIC), os bancos de dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e específicos para áreas de políticas estruturadas, como o DataSUS e o CensoSUAS, nos casos do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), respectivamen- te. Há, ainda, órgãos nas esferas estadual/distrital e municipal. Como exemplo, menciono o caso paranaense, por meio do Instituto Paranaense de Desenvolvi- mento Econômico e Social (IPARDES) e da organização regional da saúde de um conjunto de municípios do mesmo estado, o Consórcio Público Intermunicipal de Saúde do Setentrião Paranaense (CISAMUSEP). UNIDADE 4 UNIDADE 4 156 E quando não é pertinente analisar dados existentes ou no momento de promover avaliações, como coletar dados sob a metodologia quantitativa? A realização de uma pesquisa quantitativa perpassa a definição de como os dados serão coletados. Esse “como” diz respeito à escolha do veículo para realização da coleta, se presencial, por telefone ou por intermédio de meios virtuais. Autores, como Teixeira, Zamberlan e Rasia (2008), Barbetta (2011), Kellstedt e Whitten (2015), Lima (2016) e Torini (2016) destacam que a realização de coletas de dados quantitativos pode ocorrer com a utilização de questionários autoaplicáveis de maneira presencial ou virtual ou aplicados por pesquisadores presencialmente ou por telefone. Com relação aos meios virtuais, os veículos para solicitação da participação podem ser e-mails (com direcionamento específico), notícias ou mensagens com ampla divulgação (e, portanto, sem direcionamento ou com capacidade de especificidade limitada). Sendo assim, cabem considerações sobre questionários autoaplicáveis e aplicados. Os questionários autoaplicáveis são instrumentos de coleta de dados, por meio dos quais os próprios respondentes preenchem os formulários. Podem ser realizados de maneira presencial (física) ou virtual (online) e exigem sensibili- dade e conhecimento do pesquisador/analista com relação ao seu público-alvo, uma vez que as questões precisam ser claras e permitir ao respondente que as interprete e tenha condições de respondê-las. Os questionários autoaplicáveis podem ser úteis para abordar temas polê- micos sobre os quais os indivíduos podem se sentir constrangidos ou mesmo julgados pelos pesquisadores ao responder as perguntas. Questões relacionadas ao consumo de substâncias ilícitas (drogas) e ao respeito aos direitos de grupos minorizados (mulheres, negros, indígenas e população LGBT, por exemplo) se enquadram em tal situação. 157 Com relação aos custos, questionários online envolvem menos recursos do que aqueles aplicados pessoalmente, e os questionários autoaplicáveis de maneira física são também menos custosos do que aqueles aplicados. Por um lado, os questionários online têm custos relacionados a tempo, pessoal e recursos finan- ceiros, especialmente em sua elaboração, pois, depois, basta disparar os e-mails ou outros materiais para divulgação e aguardar as respostas para as quais há, atualmente, muitas ferramentas também online que tabulam os dados e ofere- cem, até mesmo, representações gráficas dos resultados. Em se tratando de meios físicos, um questionário autoaplicável é entregue ao respondente, e este tem autonomia para preenchê-lo, enquanto o aplicador pode entregar outros formulários, de modo que a pesquisa pode, até mesmo, ser realizada com centenas de pessoas ao mesmo tempo, em locais, como salas ou auditórios, que permitam aplicar o controle para recebimento dos questionários respondidos antes que os respondentes se dispersem do local. Há pontos negativos, entretanto, a serem considerados em ambos os casos. Teixeira, Zamberlan e Rasia (2008, p. 77) destacam que, na aplicação de ques- tionários presencialmente, o ambiente pode influenciar o processo de coleta de dados, por meio de fatores, como “estado de espírito do respondente e do en- trevistador, lugar e ocasião da entrevista etc.” Em se tratando de questionários eletrônicos, os mesmos autores destacamo baixo índice de retorno. A tal ponto negativo, Torini (2016, p. 65) acrescenta que “em muitas situações, não é possível sequer comprovar se realmente o questionário foi respondido pela pessoa a quem era direcionado”. Por fim, destaco outros dois pontos a serem observados na aplicação de ques- tionários online, os quais decorrem da possibilidade de viés do conjunto de res- postas. A primeira situação diz respeito à população que tem acesso aos meios digitais no Brasil, pois, de acordo com dados oficiais da Pesquisa Brasileira de Mídia, parcela minoritária dos brasileiros acessa a internet com regularidade e, portanto, a população com condições mais frágeis de sobrevivência – e em con- dições de maior vulnerabilidade e demanda por políticas públicas e sociais – seria a que menos teria condições de responder aos questionários. A segunda situação, em alguma medida relacionada à primeira, remete ao fato de que, em face dos interesses de grupos envolvidos com a temática do ques- tionário, pode haver sub-representação ou sobrerrepresentação de resultados UNIDADE 4 UNIDADE 4 158 com relação à população, pois grupos vulneráveis ou desarticulados podem par- ticipar de maneira pouco expressiva de coletas de dados, ao passo que grupos organizados e indivíduos com melhores condições de recursos econômicos e cognitivos têm maior possibilidade de participação. Da mesma maneira, grupos com alto interesse em determinado resultado ou no direcionamento de uma ação podem se mobilizar de maneira expressiva para responder massivamente o instrumento, “inflando” um segmento de respostas. Quanto à aplicação de questionários, esta pode ocorrer de maneira física (presencial), por telefone e pela internet, mas são, ainda, pouco usuais as cole- tas de dados quantitativos realizadas ao vivo por meio virtual. Os questionários aplicados dependem da disponibilidade do respondente em participar da pes- quisa, mas têm menor exigência de ação por parte de quem responde, já que há um interlocutor que se responsabiliza por realizar as perguntas. É como uma entrevista, porém mais estruturada porque, além das perguntas, o entrevistador também lê as opções de respostas. O questionário preparado para aplicação pode conter enunciados que reme- tem ao diálogo e estimulem o envolvimento do respondente, sendo que questio- nários aplicados têm maior chance de sucesso em sua conclusão do que aqueles autoaplicados, muito por conta do contato direto entre entrevistador e entre- vistado. Seus rendimentos e limitações são, contudo, diferenciados entre si. De acordo com Teixeira, Zamberlan e Rasia (2008, p. 77), questionários aplicados presencialmente correspondem à forma mais onerosa e demorada de coletar dados, mas representam, por outro lado, “possibilidade de coletar grande quan- tidade de dados”. Os questionários aplicados por telefone, nos quais existe apenas contato verbal, apresentam custo menor do que aqueles aplicados fisicamente e têm dados coletados em ambiente com menor influência de fatores ambientais e externos, mas, por outro lado, são dificultosos no sentido de recrutar respon- dentes disponíveis à participação e, por conta disso, correspondem geralmente, à baixa quantidade de dados coletados. E como analisar grandes volumes de dados para construir avaliações? A análise de dados quantitativos implica a utilização de técnicas estatísticas e/ou de softwa- res que permitam a avaliação coletiva de conjuntos de dados agregados. Atenção, pois, diferentemente das técnicas qualitativas em que é possível analisar os dados coletados “à mão”, nas pesquisas quantitativas o uso de tecnologia é imprescindível. 159 Com relação às análises, não é objetivo deste material didático explicar, deta- lhadamente, aspectos estatísticos pertinentes à natureza dos testes, mas expor possibilidades de tratamento de dados sobre as quais cada um pode se aprofundar caso tenha interesse, disponibilidade ou se encontre em situação passível de uso de técnicas quantitativas para avaliação de políticas públicas e sociais. Uma pesquisa sobre satisfação com políticas públicas em um município de médio porte é composta por 100 questões, aplicadas a uma amostra de 750 habitantes. Isso significaria um volume de 75.000 dados inicialmente, que podem se desdobrar e ser ampliados a depender do tratamento utilizado. Daí esta necessidade de utilizar softwares para siste- matização dos dados e cálculos.. PENSANDO JUNTOS NOVAS DESCOBERTAS Título: Estatística aplicada às Ciências Sociais Autor: Pedro Alberto Barbetta Editora: Universidade Federal de Santa Catarina Sinopse: esta obra surgiu de vários anos de experiência com a ativi- dade de ministrar aulas de Estatística para cursos das áreas de Ciências So- ciais e Humanas. Um novo enfoque é aqui desenvolvido, diferenciando este de outros livros didáticos, ao motivar o aprendizado de técnicas estatísticas a partir de situações práticas e desenvolver a capacidade criativa dos alunos com diversos exemplos e exercícios que já apresentam a análise estatística pronta, deixando ao aluno a tarefa de interpretar os resultados. Tudo isso é feito com centenas de figuras, proporcionando um aprendizado mais rápido e agradável. Comentário: a obra, escrita com exemplos e situações no âmbito das Ciên- cias Sociais, aborda elementos e aspectos que tangenciam as políticas pú- blicas e sociais e pode ser utilizada para diálogos com profissões no campo das Ciências Sociais Aplicadas, como o Serviço Social, Administração Pública e Demografia, por exemplo. UNIDADE 4 UNIDADE 4 160 Isto posto, são expostos, aqui, conceitos básicos referentes aos tópicos sobre esta- tística descritiva, bivariada e multivariada, baseados em obras de Babbie (1999), Barbetta (2011) e Wooldridge (2017), e sobre análise hierárquica (CARVALHO; MINGOTI, 2005) e geoprocessamento (SILVA, 2005), conforme segue: A estatística descritiva diz respeito às análises mais simples que podem ser realizadas a partir de conjuntos de dados. A despeito de sua simplicidade, porém, são análises de grande relevância e, por vezes, até mesmo suficientes para lidar com determinados problemas, uma vez que consistem em descrições das características de um conjunto de observações (casos), em termos numéri- cos ou percentuais. Nesse sentido, podemos interpretar a estatística descritiva como a primeira tarefa de um pesquisador, o qual deve, diante de uma coleção de dados, determinar quantas respostas ocorreram em cada categoria constante no questionário. A estatística bivariada diz respeito às análises que são realizadas, consi- derando as relações estabelecidas entre duas variáveis, ou seja, são testes cujos resultados apontam a maneira como dois atributos estão relacionados. 161 As análises estatísticas multivariadas são aquelas realizadas com o intuito de identificar a existência de efeitos entre conjuntos de três ou mais variáveis. Os tes- tes multivariados mais comuns são as análises fatoriais e os modelos de regressão. A análise hierárquica consiste na realização de modelos de regressão cuja finalidade é analisar dados referentes a dois ou mais espectros populacionais distintos, os quais podem incluir indivíduos, bairros, municípios, unidades da federação ou mesmo países, por exemplo. Esses espectros distintos são denomi- nados níveis, de modo que os modelos de regressão hierárquicos também são denominados modelos de regressão multinível. Considerando que sua utilização envolve a combinação entre atributos de naturezas populacionais diferentes. O primeiro passo para a realização de tais modelos é identificar sua pertinência, ou seja, se e em que medida determinado fenômeno (variável dependente) é in- fluenciado por atributos (variáveis independentes) de mais de uma ordem (nível). O geoprocessamento diz respeito às técnicas que permitem a análise de dados de diferentes naturezas, tendo como um ponto específico ao processamento dos resultados a perspectiva de construção de resultados visualizáveis,por meio da configuração do espaço físico. A pesquisa quantitativa pode ser fracionada entre profissionais que dominem distintas expertises, o que significa que aqueles que realizam a avaliação das políticas públicas e sociais podem valer-se de dados estatisticamente tratados, sem a necessidade de realiza- ção de testes. Trabalhar em equipes multidisciplinares implica somar forças, conhecimen- tos, habilidades e competências. PENSANDO JUNTOS Considerando que não é exigido o domínio da complexidade da estatística a to- dos os profissionais, há muitos softwares que permitem a realização das análises anteriormente descritas sem que aquele que manuseia o programa tenha domínio sobre cálculos e fórmulas. O que se espera, e é imprescindível, é que o analista que faz uso e/ou a interpretação a partir dos resultados dos testes produzidos por meio do software tenha noções básicas sobre a natureza das variáveis e dos tes- tes, de modo a evitar, por exemplo, a inclusão de variáveis discretas em testes de correlação, que, conforme descritos anteriormente, são utilizados para variáveis UNIDADE 4 UNIDADE 4 162 mensuradas de maneira numérica ou contínua. Em outras palavras, a realização desses testes demanda algum conhecimento estatístico para evitar a ocorrência de erros grosseiros e interpretações espúrias, sem sentido ou validade. Em se tratando de análises quantitativas, são muitas as opções, de modo que há, no mercado, dezenas de softwares, desde aqueles com poucos recursos até outros mais completos, bem como programas gratuitos e outros pagos. Dentre tais softwares, o mais “amigável”, por ter uma interface semelhante à de planilhas é o Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), mas também se destacam o Stata e SAS para Windows e o PSPP, versão gratuita para o sistema operacional Linux, com interface e recursos semelhantes ao SPSS. Um software livre que permite a utilização tanto em ambiente Windows como Linux é o R cujo fun- cionamento se dá, majoritariamente, por linhas de comando. Com relação às análises hierárquicas, entre os softwares disponíveis há o MINITAB, o S-plus for Windows e o HLM, sendo que o último pode ser uti- lizado tanto em ambiente Windows quanto em Linux. Por fim, em se tratando de geoprocessamento, há muitos softwares livres que podem ser encontrados na internet com facilidade, assim como manuais e tutoriais relacionados à sua uti- lização. A título de exemplo, destaco publicação oficial na página do Ministério do Meio Ambiente, em são elencados mais de uma dezena de softwares, bem como expostas informações sobre sua descrição, pontos positivos e restrições e ainda o link para download do conteúdo. Para concluir a discussão teórico-metodológica desta aula, perceba o quanto o método quantitativo pode ser útil à análise de dados que propiciem uma ava- liação assertiva de políticas públicas e sociais e a tomada de decisões adequada com relação aos caminhos que os diferentes usuários podem percorrer a partir daquilo que foi interpretado. Ante a estas informações sobre diferentes técnicas para coleta e análise de dados a serem utilizadas para avaliação de políticas pú- blicas e sociais, é pertinente, ainda, mencionarmos a importância da criação de indicadores sociais, que são úteis não apenas para uma análise, mas também para comparações ao longo do tempo, se pertinente. Os indicadores quantificam a situação de determinado programa, avaliando se as ações implementadas contribuíram para a consecução do objetivo pro- posto, ou seja, a medição ocorre somente por intermédio de indicadores. Para Jannuzzi (2005), o desenvolvimento de indicadores está intimamente ligado à consolidação das atividades de planejamento do Governo. O termo indicador 163 origina-se do latim indicare, que significa apontar, porém, na Língua Portuguesa frequente, está asso- ciado a revelar, propor, sugerir, expor etc. De modo geral, indicadores são abstrações, simplificações da realidade, configuram-se a análise de determinado objeto de estudo. Breitenbach, Alves e Diehl (2010) enfatizam que os indicadores possibilitam a obten- ção de informações período a período, auxiliando o gestor público na tomada de decisão. Elaborar um indicador corresponde a construir uma medida que reflita a realidade social ou as mu- danças socioeconômicas de determinada coletivi- dade. Indicadores são instrumentos que permitem identificar e medir aspectos relacionados a determi- nado conceito, fenômeno, problema ou resultado de uma intervenção na realidade. Por sua vez, indicadores sociais são estatísticas sobre aspectos da vida de uma nação que, em conjun- to, retratam o estado social desta nação e permitem conhecer o seu nível de desenvolvimento social. Os Indicadores Sociais constituem um sistema, isto é, para que tenham sentido, é preciso que sejam vis- tos uns em relação aos outros, como elementos de um mesmo conjunto (IBGE, 2012). Os indicadores sociais, quando relacionados às políticas públicas, trazem sentidos figurados ou associados aos pro- gramas a serem realizados em suas avaliações, além de traduzir em condições táticas as características sociais atrativas para as políticas programáticas ou argumentos teóricos. Auxiliam no planejamento pú- blico e na construção de políticas sociais, orientando no controle da vida social da população, como saúde e bem-estar, na qual estão inseridos os indicadores educacionais (JANNUZZI, 2005). UNIDADE 4 UNIDADE 4 164 No Brasil, a utilização de indicadores, de modo geral, ganhou ênfase com a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Porém com a Constituição Federal de 1988 e o seu arcabouço institucional que permitia a cria- ção de um sistema social de proteção bastante abrangente, os indicadores sociais passaram a ser utilizados com mais frequência. A ideia era avaliar serviços, como saúde, educação, previdência e assistência social. Enfim, o indicador é um elemento fundamental para a execução do moni- toramento e avaliação de políticas públicas. É por meio de indicadores que, de fato, está se traduzindo em números determinada realidade. Com a apresentação de indicadores, busca-se demonstrar, de forma mais palatável, ou seja, de forma simplificada e de fácil compreensão, determinada atuação do gestor público. Sem o indicador, seria um tanto quanto complicado, para não dizer intangível, a ob- servação desta mesma atuação em um emaranhado de números e classificações, que estão presentes no orçamento público. Ou seja, com o indicador, estamos traduzindo determinado registro em algo mais operacional, prontamente dis- ponível; estamos transformando informações acerca da atuação pública em algo observável para a população em geral. Mas não podemos nos esquecer de que o indicador é uma “ferramenta”, e não um fim em si. Por exemplo, no painel de um automóvel, você tem uma série de indicadores, mas o foco do motorista está sempre no caminho a ser seguido. Quando julgar necessário, ele pode prontamente consultar seus indicadores, verificar se é necessário abastecer, reduzir a velocidade, consultar a temperatura do motor etc. Este exemplo ilustra a função de apoio dos indicadores. E quais são as características dos indicadores? Podemos classificar os indi- cadores a partir de diferentes aspectos, sendo que uma desagregação pertinente é a partir de sua função, que pode ser descritiva ou valorativa. A função descritiva consiste no levantamento de informações para descre- ver determinada realidade empírica. A função valorativa, também conhecida como função avaliativa, debruça-se sobre a avaliação, o juízo de valor de determi- nada situação (BRASIL, 2010, on-line). Além de diferenciar um indicador pelas suas características descritivas ou valorativas, é necessário verificar se ele tem algumas propriedades, tidas como importantes. Nesse sentido, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) elaborou uma lista de propriedades desejáveis em um indicador, conformeexplicita o quadro a seguir. 165 Quadro 1 - Requisitos necessários para um indicador / Fonte: OCDE (2002 apud BRASIL, 2010, on-line). De acordo com o quadro, a representatividade está associada à capacidade que o indicador tem de exprimir certa realidade. A simplicidade está associada à possibilidade de fácil obtenção, construção e manutenção do indicador (BRASIL, 2010 on-line). A sensibilidade retrata a capacidade que um indicador possui de refletir, tempestivamente, as mudanças decorrentes das intervenções realizadas. A desagregabilidade representa a capacidade de apresentar de forma desagrega- da, regionalizada, determinada informação (TCE-PR, 2011). Outras propriedades desejáveis são a estabilidade, possibilidade de constru- ção e manutenção de séries históricas, a mensurabilidade, capacidade de alcance e mensuração quando necessário (JANNUZZI, 2005). A economicidade, em que o indicador deve ser obtido com baixo custo; auditabilidade, as regras de uso de indicador devem ser facilmente auditadas, avaliadas. Também é necessário PROPRIEDADE REQUISITOS Relevância para formulação de políticas Representatividade Simplicidade Possibilita comparações em nível internacional Possui escopo abrangente Possui valores de referência Adequação à análise Fundamentado cientificamente Baseado em Padrões internacio- nais e possui consenso sobre a sua validade Utilizável em modelos econômicos, de previsão e em sistemas de infor- mação Mensurabilidade Viável em termos de tempo e recur- sos Adequadamente documentado Atualizado periodicamente UNIDADE 4 UNIDADE 4 166 que os indicadores tenham publicidade, ou seja, sejam amplamente acessíveis, e temporalidade, ou seja, retratar determinada situação ou ações em determinado período (FERREIRA, CASSIOLATO, GONZALEZ, 2007). A taxonomia existente na literatura, ou seja, a classificação em grupos com características comuns é muita vasta. Desse modo, o próximo quadro apresen- ta a classificação adotada no Guia Metodológico do Ministério de Orçamento, Planejamento e Gestão (BRASIL, 2010, on-line). NATUREZA DO INDICADOR ECÔNOMICOS, SOCIAIS E AMBIENTAIS Área Temática Educação, saúde, assistência social etc Complexidade Analíticos ou sintéticos Objetividade Objetivos ou subjetivos Indicador de gestão do fluxo de implementação do programa Insumo, processo, produto, resultado ou impacto Indicador de avaliação de desem- penho Economicidade, eficiência, eficácia e efetividade. Quadro 2 - Taxonomia dos indicadores, com o resumo dos principais grupos de análise Fonte: adaptado de Brasil (2010, on-line). A natureza do indicador reflete de forma mais ampla o fenômeno que está sen- do estudado. Podemos ter indicadores que refletem o comportamento da eco- nomia de determinado país (PIB, exportações, inflação etc.), ou que retratam características sociais da população desse país (IDH, PIB per capita, renda etc.), ou, ainda, mudanças no ambiente de análise ao qual o indicador está inserido (crescimento sustentável, progresso técnico, capacidade inovativa etc.). Por sua vez, a área temática divide os indicadores em grandes áreas de atuação do gestor público, como saúde, educação, segurança, saneamento básico, previdência etc. Quando se avalia a complexidade de um indicador, conforme exposto por Jannuzzi (2005), busca-se avaliar se o indicador consiste na simples apresentação de um dado (indicador analítico) ou na ponderação ou agregação de diversas informações para retratar determinada realidade (indicador sintético). Madeira (2012) acrescenta que nos indicadores analíticos, é necessário dividir o indica- dor simples, que representa um valor numérico, do indicador composto, que 167 representa a relação entre duas ou mais variáveis, sendo que essa relação pode ser: proporção, porcentagem, razão ou taxa. O próximo passo é avaliar a subjetividade dos indicadores. Para Jannuzzi (2005), os indicadores objetivos referem-se a ocorrências concretas, ao estudo empírico da realidade social, sendo que esses indicadores são construídos a partir das estatísticas públicas disponíveis, enquanto os indicadores subjetivos partem da avaliação dos indivíduos em relação a diversos aspectos de determinado ob- jeto de estudo. Outra classificação bastante comum é quanto ao fluxo de implementação do programa cuja classificação permite ao gestor ou formulador de políticas públicas separar os indicadores por etapa ou fases do ciclo de gestão. O quadro a seguir apresenta as classificações dos indicadores quanto ao fluxo. UNIDADE 4 UNIDADE 4 168 Quadro 3 - Classificação dos indicadores quanto ao luxo de implementação de programas Fonte: adaptado de Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão (BRASIL, 2010, on-line). Por fim, os indicadores são categorizados quanto ao desempenho. Segundo esta ótica, o Tribunal de Contas da União (TCU, 2011) apresenta as características básicas de cada classificação: CLASSIFICAÇÃO CARACTERÍSTICA INSUMO Indicadores que apresentam uma estreita relação com os recursos a serem alocados, refletem a dispo- nibilidade de recursos financeiros, humanos, físicos e etc. Exemplo: número de leitos hospitalares por mil habitantes, número de professor por quantidade de aluno. PROCESSO Indicadores que medem o esforço empreendido para obtenção dos re- sultados informam o nível de utiliza- ção dos insumos. Exemplo: número de matrículas nos anos iniciais da educação fundamental. PRODUTO Indicadores que medem o alcance das metas físicas, expressam a entre- ga dos serviços públicos. Exemplo: número de crianças vacinadas. RESULTADO Indicadores que refletem os benefí- cios advindos de uma determinada política pública. Exemplo: redução da taxa de mortalidade, redução da taxa de analfabetismo. IMPACTO Indicadores que medem o efeito das estratégias governamentais no médio e longo prazo. Exemplo: Au- mento do IDH, ou redução do índice de Gini. 169 ■ Economicidade: medem os gastos envolvidos na obtenção dos insumos, com o intuito de reduzir os custos sem reduzir a qualidade dos serviços. ■ Eficiência: determinado serviço público será eficiente na medida em que mais produtos forem entregues com a mesma quantidade de insumos, ou seja, a preocupação aqui é com a produtividade do serviço público. ■ Eficácia: a partir do momento que um grupo de objetivos ou metas foi previamente definido, o indicador demonstrará se esses objetivos foram alcançados. O programa será eficaz se cumprir as metas, ou seja, a preo- cupação aqui é com o resultado do programa. ■ Efetividade: a partir desses resultados obtidos, houve mudanças socioe- conômicas, esses resultados contribuíram para resolver o problema que motivou a formulação do programa. Enfim, os indicadores, independentemente de sua classificação, são de funda- mental importância para o acompanhamento da execução das atividades pú- blicas. Somente com a visualização dos andamentos e execução de uma série de programas do governo, por meio de indicadores, é possível, de fato, exercer o controle social, que nada mais é do que a ativa participação da sociedade, exigindo a prestação de serviços de qualidade e em diálogo com a participação social para monitorar constantemente as ações da administração pública e sua aplicação de recursos. Chegamos ao último aspecto a ser abordado nesta unidade de estudos e acre- dito que, mesmo que por apenas um momento, ao longo dessa leitura e suas anotações passou-lhe pela mente uma indagação do tipo: “E como isso acontece na prática?”. Então, finalizaremos esta unidade com um exemplo de avaliação de políticas sociais na prática. Para tanto, selecionei o Programa Bolsa Família (PBF). Em vigor desde 2003 até o fim de 2021, que foi responsável pela maior mudança dos indicadores sociais e econômicos da história política do país. Por conta de sua relevância, do longo período de funcionamento e da existência de muitas análises e avaliações sobre seus resultados, seguem expostos excertos de pesquisase relatórios que evidenciaram os impactos desse programa. UNIDADE 4 UNIDADE 4 170 Cabe destacar, inicialmente, que programas de transferência condicionada de renda existem na América Latina desde 1990, de modo que, no início de 2010, ha- via políticas públicas desta natureza em 20 países na região, os quais consomem, em conjunto, cerca de 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB) latino-americano. Tal percentual demonstra que o impacto econômico de programas dessa natureza é pequeno, ainda mais quando comparados com seus reflexos nas condições de subsistência dos beneficiários (CECHINNI, 2013). No caso brasileiro, a criação do PBF, no início do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, pelo Partido dos Trabalhadores (PT), não se constituiu em total inovação, uma vez que essa política foi resultado da reunião e da expansão de programas sociais anteriormente implementados por seu antecessor, Fer- nando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Contudo destaque-se que o PBF possibilitou o crescimento do número de be- neficiários e promoveu a já mencionada transversalidade entre políticas sociais, em que consistem suas maiores inovações. NOVAS DESCOBERTAS Em 2013, o PBF completou a primeira década de existência e foi or- ganizada uma importante obra com diagnósticos e análises acerca de sua implementação, resultados e prospecções cujo título é indicativo do que pode ser seu efeito mais efetivo: “Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania”. https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/17398 171 Em se tratando do perfil dos beneficiários do PBF, 50,2% residiam na região Nordeste e outros 25,4% no Sudeste, sendo que, aproximadamente, um quarto dos beneficiários encontrava-se distribuído entre Centro-Oeste, Norte e Sul do país. Dados oficiais informam que seriam cerca de 14 milhões de famílias que corresponderiam a, aproximadamente, 26% da população nacional, conforme dados do Censo 2010, sendo que, entre essas famílias, 72,4% viveriam em si- tuação de extrema pobreza, com renda per capita de R$70,00, e receberiam, em média, R$149,71 de benefício. A análise de Camargo, Curralero e Licio (2013) aponta, ainda, que tal público é majoritariamente composto por indivíduos par- dos, jovens e com baixa escolaridade ou analfabetos, sendo que condições mí- nimas de estrutura – como saneamento básico, energia elétrica e abastecimento de água – estão presentes em 48,9% dos domicílios urbanos e em apenas 5,2% dos domicílios rurais dessas famílias. Com relação às condicionalidades para recebimento do benefício, estas se relacionavam ao acompanhamento de educação e saúde de crianças e adoles- centes. Nesse sentido, a despeito do senso comum e/ou de afirmações sem fun- damentação, é importante destacar que a criação do PBF não influenciou no aumento do número de filhos por famílias com baixa renda, mas, ao contrário, o estudo de Alves e Cavenaghi (2013) demonstra que a taxa de fecundidade foi decrescente no país, de modo geral, e, também, considerando categorias como unidades da federação, faixas etárias das mães e critérios de renda, o que significa que a redução do tamanho das famílias atingiu beneficiários do PBF, assim como o restante da população. Em se tratando da educação, Craveiro e Ximenes (2013) destacam que a fre- quência às aulas era critério para percepção financeira do benefício, sendo que crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos deveriam manter taxa de presença de, ao menos, 85%, e adolescentes entre 16 e 17 anos precisavam comprovar, ao menos, 75% de frequência às aulas. Os principais resultados decorrentes de tal condicio- nalidade foram a redução do número de crianças e de adolescentes fora da escola e/ou com baixa escolarização e o indicador que apontou menor taxa de abandono escolar entre beneficiários, quando comparados com não beneficiários. Já no que tange à saúde, o foco principal do PBF era gestantes, lactantes e crianças com até sete anos de idade. O acompanhamento deste público trouxe uma série de resultados positivos, conforme destacam Magalhães Júnior, Jaime e Lima (2013): aumento do acompanhamento pré-natal, redução da mortalida- UNIDADE 4 UNIDADE 4 172 de e da desnutrição infantil, elevação do percentual de crianças amamentadas, exclusivamente, com leite materno nos primeiros seis meses de vida (quando comparados filhos de beneficiárias e de não beneficiárias) e crescimento do per- centual de crianças vacinadas. Este conjunto de resultados, bem como a maior parte dos demais apresen- tados na obra organizada por Campello e Neri (2013), trataram de dados esta- tísticos e/ou realizaram análises quantitativas acerca dos efeitos do PBF sobre a vida dos beneficiários. Em sentido distinto, Rêgo e Pinzani (2013a) produziram uma pesquisa qualitativa, que resultou em um capítulo na mencionada coletânea e no premiado livro “Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania” (RÊGO; PINZANI, 2013b). Em decorrência de 150 entrevistas realizadas ao longo de cinco anos, em regiões que configuram bolsões de pobreza em diferentes regiões do Brasil, os autores identificaram uma série de percepções de beneficiários acerca de efeitos do PBF para além da questão financeira e daquilo que dados estatísticos capta- ram, entre os quais destacam-se a ausência de percepção de que o recebimento do benefício estaria atrelado a um direito social, constitucionalmente determi- nado, sendo que foi recorrente a afirmação de que o benefício seria um favor do governo e/ou que decorreria da trajetória do presidente que o criou por ter tido uma vida humilde e infância pobre. Além disso, os resultados apontaram aquilo que as análises quantitativas destacaram – a perspectiva de melhoria efetiva das condições de sobrevivência da população beneficiária –, mas, e principalmente, a possibilidade de garantia mínima de autonomia para as mulheres, especialmente em localidades onde o patriarcado é mais forte, e a visão de pertencimento ao Estado, ainda que com visão distorcida acerca de seu papel cidadão, seja a vivência da cidadania (RÊGO; PINZANI, 2013a; 2013b). Assim, finalizamos esta unidade de estudos com a compreensão de que a avaliação de políticas públicas é uma etapa repleta de peculiaridades que pre- cisam ser consideradas com relação às finalidades, aos usuários, ao timing, ao perfil do avaliador e ao que será analisado, como será realizada essa análise e sua publicação em relatório. 173 Chegamos ao fim de mais uma unidade de estudos, e a expectativa é de que você, caro(a) acadêmico(a), seja capaz de responder as perguntas que iniciaram nossa discussão, quais sejam: A implementação de um projeto surtiu o efeito desejado? A expectativa inicial com relação a um programa social foi atendida? Houve im- pacto social positivo em decorrência de determinada atividade de política pública ou social? Como identificar, mensurar e analisar resultados? E como expor esses resultados de maneira concisa, objetiva e, também, elucidativa do cumprimento do ciclo de política pública ao qual a avaliação se refere? Neste momento de encerramento, retome os relatórios e demais informações que coletou no momento de experimentação, suas anotações e reflexão em seu Diário de Bordo e suas impressões ao longo dos estudos deste conteúdo. Reca- pitule o aprendizado sobre os conteúdos que tratamos e, a partir deste conjunto de elementos, busque respostas às questões. Como ação, proponho que procure em cada material anteriormente pesqui- sado por você, respostas para, ao menos, um dos três primeiros questionamentos, que se referem ao conteúdo informado sobre a avaliação de um programa, um projeto ou uma atividade decorrente ou relacionado a uma política pública ou social. A partir de seu olhar e seu conhecimento, agora mais adensados, procure analisar, criticamente, os materiais e tente responder as duas últimas questões, no sentido de constatar elementos informativos sobre metodologia da avaliação e qualidadeda exposição desses resultados. O livro “Vozes do Bolsa Família” foi reconhecido e premiado pela avaliação qualitativa aprofundada produzida acerca de resultados do PBF e seus impactos na vida das beneficiárias e de suas famílias. Nosso Podcast desta unidade de estudos é baseado na descrição analítica dessa importante obra e discorre sobre o detalhamento do desenho da pesquisa/ avaliação e a importância e intensidade de relatos dos pesquisadores e das beneficiárias entrevistadas e/ou acom- panhadas em alguns momentos ou períodos de sua rotina. Clique no QR Code e venha participar dessa conversa. UNIDADE 4 https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/15659 174 1. Quando se trata da avaliação de resultados de um programa, um projeto ou uma atividade decorrente ou relacionado a uma política pública ou social, são múltiplos os aspectos a serem considerados pelos profissionais envolvidos em tal ação, como gestores públicos e assistentes sociais. Em se tratando do conceito desta etapa do ciclo de políticas públicas e sociais, tratado nesta unidade de estudos, há, também, diversas especificidades a serem consideradas. Acerca desta temática, analise as afirmações a seguir: I - São diversas as possibilidades conceituais e interpretativas sobre a avaliação pela variedade de políticas a analisar. II - A avaliação consolida-se após a implementação de uma política, mas pode ser iniciada ainda em sua elaboração. III - Por ser a última etapa do ciclo de políticas públicas e sociais, a avaliação corres- ponde ao encerramento dele. IV - Um objetivo da avaliação é tornar público o resultado da implementação de uma política pública ou social. É correto o que se afirma em: a) I e II. b) II, III e IV. c) I e IV. d) I, II e IV. e) I, II, III e IV. 175 2. Profissionais envolvidos com a avaliação de resultados de um programa, um projeto ou uma atividade decorrente ou relacionado a uma política pública ou social devem dispor de algum conhecimento sobre métodos e técnicas para coleta, sistematização e análise de dados, uma vez que a produção de relatórios demanda manuseio de informações e interpretação de conteúdos que expressem resultados. Acerca destas ferramentas metodológicas, assinale a alternativa correta. a) É importante que cada profissional aprenda uma técnica e sempre replique sua aplicação. b) Para cada avaliação, deve-se coletar novos dados, específicos para o relatório em elaboração. c) Uma avaliação demanda conhecimento sobre as etapas anteriores do ciclo da política. d) A única diferença entre técnicas qualitativas e quantitativas é o uso da estatística na análise. e) Em cada avaliação deve ser determinada uma técnica exclusiva para investigação. 3. Nesta unidade, tratamos da relevância e dos caminhos para procedermos à avaliação de uma política pública ou social a partir da análise de programas, projetos, ações ou atividades. Acerca deste conteúdo e de seu conhecimento conformado até aqui, você entende ser correto afirmar que um profissional qualificado deve ser capaz de realizar sozinho uma avaliação? Justifique. 5Políticas Sociais Aplicadas Dr. Éder Rodrigo Gimenes Caro(a) acadêmico(a), o fim de sua jornada de conformação do conhe- cimento sobre políticas públicas e sociais implica analisarmos como essas políticas operam em sentido prático, ou seja, pensando-as para além de conceitos e tipologias. Nesse sentido, esta unidade de estudos tem como objetivo relacionar conceitos sobre Estado, governo, políticas públicas e sociais e suas etapas com a maneira como operam na política nacional. Para tanto, você tomará contato com os seguintes assuntos nas próximas páginas: funções e estrutura de organização do poder pú- blico e articulação entre as esferas de poder para a consecução de polí- ticas públicas e sociais; projetos políticos e presidencialismo de coalizão; judicialização como mecanismo contemporâneo de estabelecimento de políticas (para além do ciclo de políticas públicas e sociais); e, por fim, a importância da participação às políticas públicas e sociais no Brasil. UNIDADE 5 178 Para onde caminha a gestão de políticas públicas e sociais no Brasil? Talvez, essa seja a grande questão que permeou toda a sua leitura e contato com os conteúdos desta disciplina e, independentemente de quantas vezes e diante de quais temáticas ou situações você possa ter se questionado, é uma pergunta que permite múltiplas respostas, tão cheia de multifacetas que é impossível uma única resposta quanto aos conceitos de políticas públicas e à determinação exata de seu ciclo de conse- cução, por exemplo, como discutimos anteriormente. Contudo, se são múltiplas as possibilidades de respostas, são também diversos os caminhos para tanto! Isso significa, caro(a) acadêmico(a), que este material didático lhe oferece sub- sídios para elaborar suas próprias respostas à questão com a qual você acabou de se deparar, de modo que cada caminho possível ao desenvolvimento de políticas públicas e sociais é, por si, determinado pela maneira como observamos essas po- líticas. As demandas sociais e políticas e os interesses que permeiam cada decisão pública são variáveis, assim como as técnicas selecionadas para estruturação das propostas e seu monitoramento e avaliação e, logicamente, o perfil do(s) profis- sional(is) que analisam o conteúdo. Em outras palavras, significa considerar que sua análise e eventual resposta sobre para onde caminha a gestão de políticas públicas e sociais no Brasil decorrem de sua perspectiva de formação profissional e, posteriormente – após sua conclusão do curso e/ou de acordo com sua atuação no mercado de trabalho –, serão influenciadas ou impactadas por outros aspectos. Como chegamos à última unidade de estudos do seu material didático, neste momento, você deve ter condições de oferecer uma resposta à pergunta. Então, a proposta para que você se coloque à prova, experimente-se enquanto futuro(a) profissional, é olhar para toda a nossa discussão até aqui a partir do perfil do egresso de seu curso. “Como assim?”, talvez, você tenha se perguntado. Assisten- tes sociais, gestores públicos, economistas, sociólogos e aqueles que trabalham em setores ou segmentos específicos — como organizações do Terceiro Setor, com responsabilidade social empresarial ou em áreas estatais, como Saúde Pú- blica ou Segurança Pública — estabelecem, ao longo de sua formação, diálogos com perspectivas teóricas, analíticas, metodológicas e práticas (experiências) es- pecíficas, certo? Isto posto, é importante que você se perceba enquanto futuro(a) profissional cuja atuação acontecerá em um contexto múltiplo, já que nenhum(a) agente que opera ou tem contato com as políticas públicas e sociais desenvolve sua atuação de maneira isolada. 179 Consideremos que você realizou o exercício de se colocar como futuro(a) profissional que é (ou será) capaz de responder para onde caminha a gestão de políticas públicas e sociais no Brasil. Que tal reservar alguns minutos de sua lei- tura para uma reflexão? Pare, pense, pesquise e escreva em seu Diário de Bordo, como um(a) profissional de sua área de formação que atua com relação às políticas públicas e sociais. Esse exercício é importante para que você se aproxime daquilo que discutiremos nesta unidade de estudos ou, como diriam alguns grupos em linguagem de senso comum ou gíria, “entrar no clima” da exposição que segue sobre como se materializam as políticas públicas e sociais no cotidiano brasileiro. Novamente, lembre-se de algo que já leu como sugestão — ou, até mesmo, como instrução — em unidades de estudos anteriores deste material didático: realize essa tarefa proposta com atenção, cuidado e detalhamento, afinal, após a conclusão da explanação do conteúdo, essas anotações serão retomadas e consi- deradas, para que, mais uma vez, você possa perceber sua apreensão do debate estabelecido nesta unidade e, em alguma medida, em todo o livro, afinal, estamos caminhando para seu encerramento.UNICESUMAR UNIDADE 5 180 Iniciamos este livro didático com a apresentação do que são e quais as dife- renças entre Estado e governo, sendo o segundo uma parte do primeiro que é responsável pela gestão estatal. Nesta última unidade, iniciamos nossa aborda- gem teórico-empírica a partir da exposição de como funciona a organização dessa gestão ou administração pública, ou seja, tratando do setor público. São diversos os caminhos analíticos possíveis para falarmos sobre o setor público, já que se refere a um objeto ou tema que é importante para diversas áreas de for- mação e/ou conhecimento e suas respectivas profissões, como o Serviço Social, a Administração/Gestão Pública, as Ciências Econômicas, o Direito, a Ciência Política, a Sociologia, as Ciências Contábeis, a Filosofia etc. E por que é relevante destacar essa gama de possibilidades? Pelo fato de que o que se esboça aqui é “uma” abordagem, e não “a” abordagem, já que o assunto não se esgota a partir da interpretação de alguns autores, teorias ou áreas. Isto posto, segundo Eulálio (2010), essa discussão implica considerarmos as noções do público e do privado, que constituem uma abordagem bastante rica e com alguns contrapontos, especialmente se tomados como parâmetros os autores Jean Jacques Rousseau (1712–1778) e Jurgen Habermas (1929). Con- forme o autor mais recente, para Rousseau, o setor público ou a coisa pública deve representar o interesse do povo, da coletividade, e o Estado é só uma das manifestações da coletividade, cuja tarefa deve ser a de intermediar os diferentes interesses entre público e privado, de que o filósofo clássico preconizaria que a esfera pública precisa de todo o aparato que conhecemos, ou seja, “requer um corpo político, institucionalizado juridicamente” (EULÁLIO, 2010, p. 47). 181 Já para Habermas, a existência dos políticos seria de suma importância para tentar realizar a intermediação entre os diferentes interesses públicos e privados, de modo que: “ A esfera pública se configura como o lugar de deliberação e me-diação entre a sociedade civil e o Poder Público”. Além disso, no setor privado, também está abrangida a noção de “esfera pública”, pois ela é uma esfera pública de pessoas privadas. A esfera privada compreende a sociedade civil e o Estado o “poder público”. Daí o público ser sinônimo de estatal. O Estado deve o atributo de ser público à sua tarefa de promover o bem público, o bem comum a todos os cidadãos (EULÁLIO, 2010, p. 47). Em comum, esses importantes autores convergiram, sobretudo, no argumento de que caberia ao setor público mediar os interesses públicos e privados, lembrando que um Estado que se pretenda democrático e adote o multiculturalismo como forma de pensar o referido regime político deve pautar-se por políticas públicas e sociais que atendam a todas as coletividades existentes em suas necessidades e demandas, desde que isso não implique suplantar direitos de outros grupos ou prejudicar segmentos sociais. Então, o setor público é uma parte do Estado que se materializa nas institui- ções controladas pelo poder político, incluindo as administrações públicas e as empresas públicas. Em outras palavras, o setor público engloba a administração direta, que são os órgãos ligados diretamente ao Estado, as autarquias, que são órgãos que englobam a administração pública indireta, bem como as agências reguladoras e as fundações, nas esferas federal, estadual e municipal, além de empresas estatais. E qual é o papel do setor público na economia brasileira e na vida dos cida- dãos? Você, caro(a) acadêmico(a), saberia responder a esta pergunta? A discussão sobre o papel do setor público é complexa e longa, pois são diversas as suas fun- ções, e algumas delas se misturam ao papel do governo na economia, mas todas estão ligadas ao desenvolvimento do país e à geração de bem-estar social. Assim, as funções do setor público variam de acordo com cada sistema econômico e, também, com o regime político em vigência no país em determinado período. UNICESUMAR UNIDADE 5 182 Rangel (1988) observa que, nos países socialistas, o Estado atua diretamente na economia, tendo, como funções, o controle dos fatores de produção e a de- terminação sobre as atividades econômicas. Já em sistemas capitalistas, como o nosso brasileiro, as funções do governo não estão ligadas à definição dos fato- res de produção, pois isto é feito diretamente pelo setor privado, de modo que as funções do setor público, atualmente, são relacionadas ao desenvolvimento econômico do Brasil e à geração de bem-estar social. Entretanto é importante destacar que o setor público, por meio do Estado, alterou-se conforme o passar dos anos, e suas funções acompanharam esta evolução. Até o século XIX, o ca- pitalismo competitivo existente no Estado dominava, ou seja, o Estado passou a ser liberal, o que significa que, naquele período, era defendida uma intervenção mínima do setor público na economia. Ainda que durante o período de governo dos presidentes Michel Temer (2016–2018) e Jair Bolsonaro (2019–2022) tenha havido retração em termos de políticas públicas e sociais, se considerarmos o atual período democrático brasileiro — com destaque aos governos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso (1995–2002), Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2010) e Dilma Rousseff (2011–2016) —, vivenciamos uma organização social, política e econômica do setor público que remete a um Estado regulador, que interfere na economia para definir parâmetros e limites, sem, necessariamente, intervir diretamente nas de- cisões dos agentes econômicos. Ante ao exposto, perceba que a noção de setor público se alterou ao longo do tempo, o que influencia, em alguma medida, as funções que tal ente público desempenha. Em linhas gerais, é possível afirmar, com base nas observações de Tanzi (2003), que o papel atual e ideal do setor público seria conformado pelo desempenho das seguintes funções de ordem econômica: a) Criar regras e instituições para assegurar o cumprimento dos contratos e proteger o direito de propriedade, contribuindo para a expansão do papel do mercado, além de criar regras e instituições para gerir a arrecadação e o uso da receita fiscal. b) Estabelecer um quadro jurídico e regulatório que reduza os custos de transação e seja capaz de promover a eficiência do mercado, intervindo para corrigir suas eventuais falhas. c) Ofertar bens públicos que o setor privado não tem interesse e não são essenciais, como segurança pública e vias urbanas, e resolver o problema 183 de externalidade, quando não for possível negociação entre os agentes envolvidos. d) Estabilizar a economia. e) Distribuir renda e proteger a camada da população que corre o risco de ficar abaixo da linha da pobreza oficial. Diante do exposto até aqui, você deve ter percebido, caro(a) estudante, que o setor público remete a um objeto dinâmico, e não estático, cujo papel, além de variar de país para país, pode alterar-se ao longo do tempo para uma “mesma” sociedade. Aqui, colocando o termo mesma entre aspas pelo fato de que, com o passar do tempo, as demandas, necessidades, prioridades e percepções de uma sociedade se modificam. Então, ao observamos a população nacional (por exemplo), em dois momentos diferentes da história, tendemos a identificar duas culturas políticas distintas, daí a noção de que não seria uma mesma sociedade, pela maneira como esses indivíduos se comportam, posicionam e participam da política e pelo modo como carecem de políticas públicas e sociais. UNICESUMAR UNIDADE 5 184 Por outro lado, espera-se que haja perenidade na organização do setor público, pois “O Estado desempenha seu papel mediante um conjunto de regras, leis e instituições que orientam e conformam o setor público. Quanto maior a quali- dade desse setor, mais fácil para o Estado promover seu papel” (TANZI, 2003, p. 8). E qual o tamanho do setor público? Discutir a respeito da evolução do setor público passa, necessariamente,por uma grande questão, que é o tamanho do Estado. É interessante que esse Estado seja grande ou pequeno? Repensando a redação dessa questão: o Estado deve ter grande participação na economia ou deve ter sua participação reduzida? Para se discutir o tamanho do Estado, é imprescindível que se abordem os recursos financeiros, como eles são adquiridos e aplicados. De acordo com Vieira (2009), uma referência clássica desse debate é Musgrave, um grande teórico que discutiu o papel do setor público e sua dimensão. Conforme a interpretação do autor mais recente, a análise do tamanho do setor público pode se dar por meio de duas vias. A primeira considera o cidadão acima do Estado, o que significa que, nesse caso, os indivíduos demandam serviços e bens públicos e o governo os atende. A segunda é a maneira inversa, que considera o Estado acima do ci- dadão em que, portanto, o Estado se desenvolve baseado na falta de eficiência ao atendimento de preceitos democráticos multiculturais. Assim, a vertente que considera o cidadão acima do Estado é aquela que, pensando, especificamente, a partir da nossa realidade brasileira, incentivaria a criação e o desenvolvimento de políticas no âmbito da assistência social, como foi o Programa Bolsa Família e outros programas sociais desenvolvidos em nosso país. De acordo com Bonelli (2009), existe uma notável contradição na interpre- tação econômica do desenvolvimento do setor público, pois a tendência é que o tamanho do Estado aumente conforme a economia se desenvolve, mas, por outro lado, um Estado muito grande não é bom para o crescimento econômico, pois subtrai, do setor privado, recursos que seriam investidos na economia. Conforme explica o autor, um aspecto importante a enfatizar é que a estrutura das despesas do governo, entre gastos correntes e com investimentos em infraestrutura, tem a capacidade de afetar a trajetória de crescimento da economia. Assim, pode-se afirmar que, se os gastos do setor público forem destinados à construção de estradas, portos, aeroportos e outras grandes obras de infraes- trutura poderão contribuir para o crescimento econômico, porém, se forem de- masiadamente destinados/atribuídos (os gastos) à manutenção da máquina, não 185 terão esse efeito positivo sobre o crescimento. Daí uma crítica ao tamanho do setor público pensando-o também a partir dos recursos humanos contratados, especialmente. Complementando essa relação de funções de natureza econômica do setor público, estabelecemos um diálogo com Rezende (2006), que entende que um ponto importante em uma análise como esta é identificar quais são as funções do Estado a partir das necessidades que devem ser atendidas pelo setor público. Nesse sentido, o autor destaca que as funções do governo se expandiram, consideravelmente, ao longo do século passado. Explica o mesmo autor que, no início do século passado, a abordagem clássica reconhecia uma atuação modesta do setor público, já que cabia ao Estado o for- necimento da justiça e segurança. Contudo essa visão foi paulatinamente sendo superada, reconhecendo-se, ao longo do tempo, diversos fatores que justificariam maior atuação do Estado, com destaque, especialmente, nas décadas após a Se- gunda Guerra Mundial e diante da conformação do modelo econômico do Wel- fare State em diversos setores de intervenção do setor público, como a promoção do bem-estar social com distribuição de renda mais equitativa, a ampliação das atividades previdenciárias e de assistência social e a produção de bens públicos. Giambiagi e Alem (2008) complementam tal argumentação ao elencar um conjunto de fatores que contribuíram para a maior atuação do setor público ao longo dos anos, como a existência de falhas de mercado, a organização de mo- nopólios, as assimetrias de informação, os mercados incompletos, a ocorrência de desemprego e os índices de inflação. Matias-Pereira (2012) salienta, ainda, que os múltiplos aspectos inerentes ao processo de globalização — em âmbito econômico, tecnológico, social, cultural, trabalhista, entre outros — contribuem para maior atuação do Estado na economia e, consequentemente, para a de- terminação do funcionamento do setor público. Ademais, deve-se considerar que o surgimento de novas tecnologias, as mudanças demográficas e a maior longevidade da população são alguns dos aspectos que também contribuíram para a modificação da estrutura e das funções que permeiam a atuação do setor público na economia. Tratando-se da organização política do setor público, pensando seu funcio- namento na prática, devemos também direcionar nosso olhar crítico e analítico, caro(a) estudante, à estrutura do setor público no Brasil. A Constituição de 1988, segundo Peppe et al. (1997), trouxe avanços em relação ao grau de autonomia de cada esfera governamental, no entanto manteve uma característica histórica UNICESUMAR UNIDADE 5 186 do Brasil: uma gama expressiva de competências concentradas na esfera federal, ou seja, a União ainda permaneceu com muitas competências, em detrimento das esferas estadual e municipal. Sob tal perspectiva, é adequado afirmar que o Brasil tem como característica de estruturação de seu setor público ser um país centralizador, o que pode ter consequências negativas ao estabelecimento de políticas públicas e sociais — área de gestão que nos importa, sobremaneira, nesta disciplina. Você faz ideia de como ou por que essa atuação centralizadora poderia ser negativa? Há dois aspectos importantes para respondermos a esse questiona- mento. Em primeiro lugar, tendo em vista que o Brasil é um país muito grande territorialmente e extremamente variado, em se tratando das realidades social, cultural, econômica e ambiental que envolvem sua população, o Governo Fe- deral, dificilmente, teria condições plenas de conhecer, com profundidade, as especificidades de cada região ou município, de modo que um setor público descentralizado, com maior autonomia conferida aos estados e municípios, con- tribuiria para melhor gestão dos recursos públicos. Em segundo lugar e, de certa maneira, em consequência do primeiro aspecto, de acordo com Peppe et al. (1997), o texto da Constituição de 1988 favorece, em se tratando de poder relacionado aos recursos e às competências, a União seguida dos Municípios e, por último, as unidades da federação, sendo que os estados teriam menor autonomia e seriam, não raras vezes, preteridos na articulação de demandas e políticas e no recebimento de recursos financeiros e orçamentários para a conformação e consecução de políticas públicas e sociais. As relações entre as esferas de organização do Estado e do setor público se dão por meio dos poderes reconhecidos, teórica e historicamente, como pertinentes ao seu funcionamento, quais sejam: o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. E essa divisão não é recente! Para que você tenha uma ideia, uma das obras mais importantes que trata da divisão dos poderes é O Federalista, originalmente publicada, em 1788, pela compilação de ensaios publicados na imprensa de Nova York pelos politólogos Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, no período em que os Esta- dos Unidos buscavam estruturar sua organização política após a independência (1776), sendo que um dos pontos de destaque da obra foi a defesa da ratificação da Constituição pelos estados-membros ante a estruturação do governo por meio 187 do federalismo. Nesta unidade de estudos, como estamos tratando da divisão dos poderes, interessa-nos, caro(a) estudante, especialmente, os ensaios, um conjunto de ensaios de Madison (1984), em que o articulista tratou das repúblicas repre- sentativas (como é o Brasil, hoje), da separação dos poderes e seu balanceamento no chamado “sistema de freios e contrapesos”. Inicialmente, um ponto relevante a destacar sobre a visão do politólogo é como Madison (1984) interpretava e defendia os benefícios da União dos estados em um ente federado nacional ao qual se subordinariam:“ Vimos a necessidade da União como nosso bastião contra os peri-gos externos, como a preservadora da paz entre nós, como a guardiã de nosso comércio e de outros interesses comuns, como o único substituto dos efetivos militares que subverteram as liberdades do Velho Mundo e como o próprio antídoto para os males das facções, que se revelaram fatais a outros governos populares e das quais já conhecemos os alarmantes sintomas (MADISON, 1984a, p. 173). Segundo o autor, restaria analisar uma objeção à União por conta da sua grande extensão territorial, a qual consistiria numa falha de interpretação entre república e democracia: a primeira seria exercida por representantes e agentes escolhidos pelo povo, ao passo que a segunda implicaria no próprio povo constituir e exercer o governo pessoalmente, o que confinaria tal forma de governar a pequenos espa- ços. A república, ao contrário, poderia estender-se sobre vastos territórios, como os Estados Unidos. Este erro ou falácia foi defendido, segundo Madison, por al- guns autores à época e teria influenciado a formação da opinião pública moderna, mas pode ter passado despercebido pelo fato de que a maior parte dos governos populares antigos foi democrática, mesmo na Europa moderna. Nesse sentido, “ Se a Europa tem o mérito de haver descoberto este grande poder mecânico no Governo – através de cuja simples intervenção a von-tade de um conjunto político, por maior que seja, pode ser concen- trada e sua força orientada no sentido de qualquer objetivo exigido pelo bem público – a América pode reivindicar o mérito de ter feito a descoberta dos fundamentos de repúblicas genuínas e extensas. UNICESUMAR UNIDADE 5 188 É apenas de lamentar-se que alguns de seus cidadãos desejassem privá-la do mérito adicional de demonstrar sua inteira eficácia no estabelecimento do amplo sistema agora submetido à sua conside- ração (MADISON, 1984a, p. 174). Em defesa da república, Madison argumentou que a alegada distância que difi- cultaria a reunião de representantes para a administração dos negócios públicos não era inviável e destacou tanto a frequência de comparecimento de represen- tantes de Estados distantes no Congresso quanto as distâncias para locomoção, comparadas àquelas percorridas pelos representantes de países, como Alemanha, Polônia (antes de seu último desmembramento) e Grã-Bretanha. Perceba aqui, caro(a) acadêmico(a) que esta é uma questão importante para refletirmos sobre o funcionamento da política no Brasil, afinal, também um país — assim como os Estados Unidos — com grande território! Na sequência, o autor expôs quatro observações que tornariam, ainda mais, satisfatória a aceitação da república, já tratando do poder e de sua sistematização particionada. Em primeiro lugar, o governo-geral tinha poder para elaborar e executar leis apenas sobre assuntos comuns a todos os membros da república, cabendo aos governos subordinados a autoridade sobre temas específicos de sua competência e atuação. A segunda observação era de que o objetivo da Cons- tituição Federal seria assegurar a União dos 13 Estados existentes à época “[...] e somar a eles outros Estados que possam surgir do seio dos atuais ou de seus vizinhos – o que não podemos negar que é igualmente praticável” (MADISON, 1984a, p. 176). O terceiro argumento era de que a navegação e as estradas no in- terior do país seriam aperfeiçoadas e as distâncias, por conseguinte, encurtadas. Por fim, os Estados fronteiriços, em atenção à própria segurança, beneficiar-se- -iam também da proteção geral e, em contrapartida, receberiam reforços diante da necessidade de lutar contra um invasor. Diante de tais argumentos, Madison encerrou seu artigo, intitulado “Repúbli- cas representativas e democracias diretas”, pedindo aos seus concidadãos que não se prendessem aos artifícios daqueles que eram contrários à União e conclamou os estadunidenses a apoiar a federação, recorrendo à memória da revolução sem precedentes na sociedade anteriormente ocorrida. 189 “ Ele [o povo] construiu uma estrutura de governo sem qualquer modelo na face do globo. Elaborou o projeto de uma grande Confederação que cabe às futuras gerações aperfeiçoar e perpetuar. Se sua obra revela im- perfeições, devemos admirar-nos de serem elas tão poucas. Se errou na estrutura da União é que essa tarefa foi a mais difícil de ser levada a cabo e que vai receber as correções de vossa Convenção, representando agora o assunto sobre o qual ireis deliberar e decidir (MADISON, 1984a, p. 178). Assim, considerado o governo republicano e os poderes a ele conferidos — Exe- cutivo, Legislativo e Judiciário —, Madison afirmou que uma das principais ob- jeções expostas pelos adversários da Constituição dizia respeito à distribuição desproporcional desses poderes. Em defesa da divisão dos poderes, o autor ar- gumentou: “ Nenhuma verdade política é certamente de maior valor intrínseco ou revestida da autoridade de mais esclarecidos defensores da liberdade do que aquela na qual a crítica se fundamenta. A acumulação de todos os poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – nas mesmas mãos, quer de um, de poucos ou de muitos cidadãos, por heredita- riedade, autonomeação ou eleição, pode com justiça ser considerada como caracterizando a tirania (MADISON, 1984b, p. 393). Para ele, a preservação da liberdade exigia a separação e a distinção entre os ramos de poder, tendo publicado ensaios em que defendia o argumento de que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário não deveriam ser exercidos por qualquer dos outros dois e também não deveria haver influência dominante de um sobre o exercício do outro. Isso significava buscar estabelecer, junto à popu- lação, a visão de que os três poderes deveriam ser independentes entre si. “ Assim, após a discriminação teórica das diferentes categorias de poder, que pertencem naturalmente ao Legislativo, ao Executivo ou ao Judiciário, a tarefa seguinte e mais difícil está em prover para cada um deles certa se- gurança prática contra invasões por parte dos outros. Como será tal segu- rança – eis o grande problema a ser resolvido (MADISON, 1984c, p. 401). UNICESUMAR UNIDADE 5 190 Tendo em vista que ao Poder Legislativo recairia a res- ponsabilidade sobre a definição das leis e distribuição orçamentária, ao Poder Executivo, o exercício da gestão e ao Poder Judiciário, a fiscalização das atividades dos demais poderes, já no século XVIII, Madison alertava que, ainda que houvesse barreiras legais à usurpação do poder, o Legislativo estaria estendendo suas esferas de atuação e de poder sobre os demais ramos, o que não foi percebido pelos fundadores das repúblicas, mas pode- ria dar margem, até mesmo, a uma tirania comparada àquela decorrente de usurpações do Executivo. Sobre uma república representativa, Madison (1984c, p. 402) escreveu que deveria ser “[...] contra os abusos deste legislativo que o povo deve orientar suas suspeitas e concentrar todas as suas precauções”, uma vez que a superioridade decorre de seus poderes consti- tucionais, que lhe permite legislar mesmo sobre aspectos relacionados ao Executivo e ao Judiciário e em relação aos recursos financeiros, inclusive no que tange à remu- neração dos funcionários dos demais poderes. Pensemos, porém, juntos: faz sentido essa observa- ção para o caso brasileiro, ainda mais nos dias atuais? Por um lado, dialogamos, especialmente, com as discus- sões sobre o papel do Poder Legislativo na formulação de políticas públicas e a avaliação, que cabem aos demais poderes. Por outro lado, ainda nesta quinta unidade, serão expostas análises sobre as relações entre presi- dencialismo e judicialização com as políticas públicas e sociais, remetendo aos papéis e impactos dos poderes Executivo e Judiciário, respectivamente. Retomando o autor clássico sobre o federalismo e as relações de poder, a partir de uma análise sobre o funcionamento dos poderes nos estados da Virgínia e Pensilvânia, asseverou que haviausurpação de poderes, 191 consideradas condições específicas de violações em cada estado, e terminou seu ensaio da seguinte maneira: “ A conclusão que propus extrair destas observações é que uma sim-ples demarcação, no papel, dos limites constitucionais dos diferen-tes ramos não constitui uma barreira suficiente contra as violações que dão margem a uma concentração abusiva de todos os poderes do governo nas mesmas mãos (MADISON, 1984c, p. 405). A fim de enfrentar essa debilidade ao funcionamento do setor público, Madi- son discorreu em outro ensaio sobre os meios que garantiriam a conservação da repartição de atribuições entre os diferentes poderes, o que seria essencial à preservação da liberdade. Em primeiro lugar, dever-se-ia garantir a personali- dade própria de cada poder e a ingerência dos demais sobre a escolha de seus membros, o que decorreria de escolhas pelo povo. No entanto tal princípio apre- sentaria um desvio, com relação ao Judiciário: “ Na constituição do Judiciário, particularmente, seria desaconselhá-vel insistir na observância rigorosa do princípio; primeiro, porque, devendo ser atendidas as qualificações peculiares de seus membros, a consideração primordial seria que a seleção assegurasse a exis- tência de tais qualificações; em segundo lugar, porque a vitalicie- dade do mandato deve, em pouco tempo, destruir qualquer laço de dependência em relação à autoridade responsável pela nomeação (MADISON, 1984d, p. 417-418). Segundo o autor, a maior segurança contra a concentração de vários poderes no mesmo ramo do governo adviria do estabelecimento de meios constitucionais para resistir às intromissões alheias, de modo a criar mecanismos de defesa compatíveis com as ameaças de ataque. Nesse sentido, o governo seria uma disputa entre ambi- ções, o que refletiria a própria natureza humana e permitiria o controle pelo povo. UNICESUMAR UNIDADE 5 192 “ Ao constituir-se um governo – integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens – a grande dificuldade está em que se deve, primeiro, habilitar o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo. A dependência em relação ao povo é, sem dúvida, o principal controle sobre o governo, mas a experiência nos ensinou que há necessidade de precauções suplementares (MADISON, 1984d, p. 418). Tal capacidade de autodefesa não poderia ser atribuída, igualmente, aos poderes, sendo que, na república, predomina-se o Legislativo. A solução seria subdividi-lo em ramos e, ainda que sob o risco de usurpação ou uso abusivo, estabelecer o direito de veto às suas decisões ao Executivo. Madison teceu, ainda, duas conside- rações sobre o sistema federativo nos Estados. A primeira diz respeito ao controle mútuo exercido pelos poderes, o que diferenciava seu contexto político daquele onde o poder era outorgado pelo povo a um único governo. A segunda trata do combate à opressão, não apenas por parte do governo, mas também entre classes diferentes de cidadãos, que se daria caso os grupos de interesses fossem tantos a ponto de fragmentar a influência dos grupos mais fortes. “ Em uma república com a extensão territorial dos Estados Unidos e com a enorme variedade de interesses, partidos e seitas que englo-ba, a coalizão de uma maioria da sociedade dificilmente poderia ocorrer com base em quaisquer outros princípios que não os da justiça e do bem comum; embora a minoria fique menos sujeita a uma ditadura da maioria, deve haver também menos pretextos para garantir a segurança daquela, inserindo no governo uma voz não dependente desta ou, em outras palavras, uma voz independente da própria sociedade (MADISON, 1984d, p. 421). Em suma, quanto maior a sociedade, mais necessário seria um governo autô- nomo, o que, felizmente, para o caso republicano, consistiria no alargamento de limites práticos, de modo que se constituiria por uma adaptação do princípio federal. No entanto, caro(a) estudante, a lógica desse sistema de freios e contra- pesos não consistiria na redução do Poder Legislativo, mas — como o termo que denomina a reflexão exprime — na sistematização de um funcionamento do setor 193 público no federalismo com regras e limites para cada Poder instituído (freios) e possibilidade de diálogo e/ou intervenções, quando pertinentes (contrapesos). Tanto não se tratava de uma crítica explícita e direcionada exclusivamente ao Legislativo que o ensaísta escreveu, em defesa da presença de bases populares na Câmara dos Deputados estadunidense, que o recrutamento de seus membros ocorria entre uma classe de cidadãos que gozavam de pouca simpatia da massa e seriam propensos à defesa do sacrifício dos interesses da maioria em favor de poucos, qual seja: uma pretensa oligarquia. Aqui, perceba, temos uma crítica ao elitismo na definição de quem eram os representantes e os limites de sua representação, sobre o que dialogamos no início de nossos estudos nesta disciplina. Para Madison, tal crítica poderia ser a mais extraordinária à Constituição, uma vez que atingia os fundamentos do regime republicano de que o objetivo de qualquer Constituição deveria ser escolher os indivíduos mais capacitados e eficientes para dirigir governos com vistas ao bem-estar da sociedade, sendo que tais indivíduos permaneceriam eficientes enquanto desfrutassem de confiança pública, sujeitos a processos eletivos e limi- tação do período de mandato, o que manteria a responsabilidade dos governantes perante o povo. “ Quais serão os preferidos pelo voto popular? Aqueles cidadãos cujos méri-tos os recomendem à estima e à confiança de seu país. Nenhuma conside-ração relativa à riqueza, à família, à crença religiosa ou à profissão poderá restringir o julgamento ou frustrar as tendências do povo (MADISON, 1984e, p. 421). Entre os eleitos, seria esperado que possuíssem qualidades que justificassem sua escolha pelos cidadãos e, uma vez no setor público, produzissem, ao menos, um relacionamento afetivo temporário com seus constituintes. Todas essas garantias, contudo, seriam insuficientes sem que houvesse eleições frequentes, já que os deputados teriam sempre em mente que a manutenção de seu poder (mandato) estaria vinculada à nova escolha pelos cidadãos e ela os conduziria à prática de não aprovar medidas opressivas ou cujos benefícios fossem maiores aos seus do que à sociedade em geral. Nesse sentido, Madison (1984e, p. 453) afirmou: UNICESUMAR UNIDADE 5 194 “ Se for perguntado o que é que impede a Câmara de Deputados de fazer discriminações legais em favor de seus membros e de uma classe particular da sociedade, responderei: a inspiração de todo o sistema, a natureza de leis justas e constitucionais, e, acima de tudo, o espírito vigilante e varonil que anima o povo da América – um es- pírito que alimenta a liberdade e, em retorno, é alimentado por ela. Em alguma medida, essas observações sobre os Poderes nos Estados Unidos re- cém-independentes no século XVIII nos possibilitam refletir sobre a organização do setor público na atualidade, não apenas para o caso brasileiro, mas focaremos em nossa realidade nacional, devido à finalidade desta unidade estabelecer as- pectos práticos das políticas públicas e sociais. Em termos práticos, temos a distribuição dos poderes entre os entes fede- rados, de maneira específica, para cada segmento no Brasil. O Poder Executivo é coordenado por representantes eleitos em pleitos majoritários (com possibili- dade de dois turnos, a depender do percentual de concentração de votos e porte do município) para os cargos de Presidente da República, governadores e pre- feitos. O Poder Legislativo é composto por representantes eleitos em votações proporcionais nos estados e municípios, como deputados estaduais e vereadores, respectivamente, e, no âmbito federal, o Congresso Nacional reúne dois grupos de legisladores, quais sejam: deputados federais eleitos por voto proporcional, que compõem a Câmara dos Deputados em quantidades relativamentepropor- cionais ao tamanho da população de cada unidade da federação, e senadores, que compõem o Senado em quantidade igual para todas as unidades federativas (três) conforme eleição por voto majoritário (em turno único). Para esses cargos eletivos os mandatos são de quatro anos, à exceção dos senadores, para os quais há especificidade de mandato por oito anos, sendo que, em pleitos alternados, são eleitos um ou dois legisladores, de modo que não seja possível, ao menos por via eleitoral, a renovação completa do Senado. Com relação ao Poder Judiciário, o Artigo 2º, da Constituição Federal, define que sua principal função é aplicar as leis para resolver conflitos e garantir os di- reitos dos cidadãos, sendo que o Artigo 92, da Carta Magna, elenca seus órgãos, quais sejam: o Supremo Tribunal Federal (STF), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tribunal Superior do Trabalho (TST), os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais, os Tribunais e Juízes do Trabalho, os Tribunais e Juízes Eleitorais, os Tribunais e Juízes Militares, os 195 Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios. Esses órgãos se concentram majoritariamente na esfera federal, ainda que haja Tribunais de Justiça, por exemplo, também nos estados. Ainda, destaca-se que, ao abordar as funções essenciais à Justiça, a Constituição brasileira determina o Ministério Público, a Advocacia-Geral da União e a Defensoria Pública como instituições permanentes. Para além da questão da distribuição do poder político, a estrutura do setor público no federalismo implica também considerarmos aspectos de ordem fi- nanceira. Acerca das finanças públicas no arranjo federativo brasileiro, Lopreato (2022) construiu uma análise dos textos constitucionais e pactuações, desde a Constituição brasileira de 1981 até a atualidade, sobre o que nos importa com- preender os aspectos pertinentes ao texto constitucional atual. Em comparação com textos anteriores, a Carta Magna de 1988 elevou a par- ticipação dos estados e dos municípios com relação à receita tributária e proibiu a União de condicionar transferências constitucionais de recursos e intervir nos tributos das esferas subnacionais. Ademais, a referida lei determinou a descen- tralização dos gastos com as áreas de políticas de saúde e educação com trans- ferência de recursos e percentuais mínimos das receitas a serem destinadas às pastas e determinou um conjunto amplo de direitos sociais cuja materialização implica em políticas públicas e sociais a serem desenvolvidas no setor público. UNICESUMAR UNIDADE 5 196 Conforme o último autor mencionado, a Constituição “cidadã”, então, teria, si- multaneamente, promovido o reequilíbrio federativo, em termos de concessão de relativa autonomia de receita tributária, aos municípios e às unidades da fe- deração e estabelecido direitos que reforçariam o compromisso público com um modelo de Estado de bem-estar social — sobre o qual tratamos em nossa pri- meira unidade de estudos. Por outro lado, Lopreato (2022, p. 26) critica o texto, ao afirmar que “o esforço, no entanto, não veio acompanhado da definição da arquitetura institucional e da delimitação dos direitos e encargos de cada esfera de governo, essenciais à escolha do modelo de gestão das políticas sociais e do formato das relações intergovernamentais”. Um dos desdobramentos dessa relação federativa de distribuição de receitas foi o ajuste fiscal da União, que regula iniciativas em diversas áreas de políticas públicas e sociais e interfere, em maior ou menor medida, na aplicação de re- cursos financeiros nas esferas subnacionais. Um avanço com relação ao controle, com desdobramento positivo no sentido de possibilitar uma aplicação passível de acompanhamento pela população, foi a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) por meio da Lei Complementar nº 101/2000, a qual estabeleceu as normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e consolidou o novo regime fiscal brasileiro, no qual as finanças das esferas subna- cionais foram enquadradas de modo a atender às determinações de metas fiscais periódicas e normas específicas de gestão orçamentária. 197 Um ponto de atenção decorrente da federalização dos gastos públicos com a LRF foi a redução do papel dos estados nesse processo. Se, ao longo do pro- cesso de redemocratização, na década de 1980, houve grande protagonismo dos estados na política nacional, após a retomada do regime democrático, tais entes perderam espaço, tanto que parte dos recursos financeiros é transferido da União aos municípios, o que tornou os estados “reféns” — no sentido de dependentes — do poder público federal para a consecução de diferentes políticas públicas e sociais, como evidencia Lopreato (2022, p. 32), ao afirmar que “[...] os estados, fragmentados e sem vigor na negociação de alternativas, cederam campo na in- terlocução nacional e tornaram-se subalternos aos ditames do governo federal”. Portanto, se os governos estaduais se destacaram como força de poder po- lítico até a redemocratização, a reorganização do setor público no atual arranjo federativo empoderou os municípios, mas isso não significa que os estados deixa- ram de ter importância na gestão pública em geral e, de maneira mais específica, para nossa disciplina, na estruturação e na conformação de políticas públicas e sociais. Isso porque cabe aos governos estaduais coordenar, fornecer suporte téc- nico e financeiro e colaborar com as gestões locais, para que as políticas públicas e sociais sejam implementadas e gerem resultados, além de, por representarem a esfera intermediária de poder político, serem os governos estaduais responsáveis pela interlocução entre os municípios e a União. UNICESUMAR UNIDADE 5 198 A despeito da federalização da distribuição de recursos, entretanto, é importante considerar que os acordos relacionados a aspectos financeiros e de gestão do setor público são perpassados por diferentes interesses. No caso brasileiro, tanto esses recursos quanto a transferência de bens e a determinação sobre o estabelecimento de equipamentos e serviços dependem, em alguma medida, de articulações en- tre grupos políticos capitaneados especialmente pelos partidos políticos, que se articulam nas posições de aproximação ou distanciamento do governo — como tratado em nossa abordagem anterior sobre as instituições que conformam um regime democrático. Tratando-se da organização dos partidos em favor do governo ou de modo a parceirizar a gestão, o Brasil se destaca teoricamente pelo funcionamento do presidencialismo de coalizão como maneira de organização do governo para aprovação de pautas e implementação de seu projeto político. Conforme expõem Rocha Neto e Borges (2016), temos, no país, a vigência da competição e orga- nização partidária em decorrência do mulltipartidarismo, ou seja, um sistema partidário amplo que fraciona o poder político. Para que você tenha uma ideia, caro(a) acadêmico(a), o Brasil é o país com maior número de partidos políticos com força política no seu Poder Legislativo federal, o que significa que há grande fragmentação das percepções e projetos políticos de grupos que atuam nas discussões sobre a legislação nacional, em que se encontra, em destaque, a pauta de políticas públicas e sociais. Ainda, essa discussão remete a uma especificidade nacional, em que há co- mentadores que mencionam o presidencialismo de coalizão como uma “jabuti- caba política brasileira”, em referência à fruta produzida especificamente em solo nacional, numa alusão ao presidencialismo como algo peculiar do Brasil. Foi essa Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no fim de 2021, havia 5.568 municípios no território brasileiro. A interlocução direta desses entes com a União seria inviável, devido ao alto fluxo de informações e especificidades locais. Assim, é papel dos governos estaduais organizar asdemandas das municipalidades para dialogar com o governo federal, o que pode ocorrer por meio de diálogos com representantes de todas as cidades simultaneamente ou por meio do estabelecimento de regiões (co- missões ou grupos regionais), para organizar, de maneira escalonada, as demandas — a depender do número de municípios de cada estado. EXPLORANDO IDEIAS 199 distinção, em termos práticos, que levou o cientista político Sérgio Abranches (1988) a, primeiramente, refletir teoricamente sobre tal modo de organização política do poder, ainda durante nosso período de redemocratização. Quando pensamos o funcionamento do setor público, costumamos direcio- nar nossa atenção aos governos instituídos, porém a noção de presidencialismo tem um momento anterior a ser ponderado: durante as campanhas eleitorais, a maioria dos partidos políticos se unem em coligações, estabelecidas para angariar mais recursos, maior tempo no horário político eleitoral gratuito e ter possibili- dade de massificar seu apoio à população, ainda que parcialmente e/ou junto a segmentos sociais ou grupos específicos. Nem sempre, contudo, essas alianças têm como preocupação um projeto político unitário de governo. Depois que uma coligação é eleita, muitos partidos ficam à mercê do conjunto de legendas vitorioso, mas também esse grupo que logrou êxito no pleito eleito- ral enfrenta uma situação, por vezes, delicada: o sucesso na eleição presidencial pode e, em verdade, tende a não se repetir para os cargos legislativos federais, o que significa que o(a) presidente pode não dispor de uma base majoritária de apoiadores e correligionários no Congresso Nacional, o que é essencial para a aprovação de projetos de lei que influenciam o funcionamento do poder públi- co, pensada desde sua gestão burocrática até a efetivação de políticas públicas e sociais. Como reforçam Rocha Neto e Borges (2016, p. 443): UNICESUMAR UNIDADE 5 200 “ O modelo presidencialista do país foi caracterizado como de ‘coali-zão’ por Sérgio Abranches (1988), que apontou um traço concreto da institucionalidade brasileira, em que se combinam a propor- cionalidade, o multipartidarismo e o “presidencialismo imperial”. Nesse modelo, o detentor do cargo majoritário organizaria o Poder Executivo baseado em alianças partidárias. Isso significa que o presidente — e aqui leia-se seu grupo político de alto escalão — necessita, portanto, reconhecer que seu poder de estruturação de agenda e decisão sobre preocupações prioritárias de governo carecem de negociação ou diálogo com o maior número possível de partidos políticos com alguma expressi- vidade do Congresso Nacional, assim como é importante o contato com governa- dores, ainda que em outra escala. Para Meneguello (1998), essa percepção sobre os arranjos políticos ao funcionamento do governo evidencia a importância dos partidos aos governos eleitos, de modo que não devemos ceder à armadilha do senso comum de que quem é presidente tem o poder concentrado em suas mãos. Conforme salienta Carvalho (2016), a prática da política, que conforma, de maneira expressiva, as políticas públicas e sociais em todas as etapas de seu ciclo, permite identificarmos que o Poder Executivo tem força política para promover a gestão, porém é incapaz de fazê-lo isoladamente, sendo que, quanto maior o nú- mero de partidos, maior se acentua a fragmentação do poder político no âmbito Legislativo. Nesse sentido, o autor mencionado no parágrafo anterior afirma que, no presidencialismo de coalizão, o presidente, tecnicamente, dispõe de “moedas políticas” para barganhar apoios políticos. É o caso, por exemplo, da oferta de car- gos em Ministérios ou Secretarias — a depender da esfera governamental — em “troca” do apoio para a aprovação de uma proposta, pauta ou encaminhamento de demanda do setor público ao Poder Legislativo. 201 Esses arranjos coletivos entre partidos, caso salientar, não são uma especificidade do caso brasileiro, mas o que nos diferencia com relação a outros países é o “por- te”, ou seja, o tamanho dessa articulação em se tratando da quantidade de partidos e políticos necessários às aprovações. Isso porque a articulação de partidos em fa- vor de interesses — que podem ser diretamente diferentes, mas culminam sempre e invariavelmente na questão do poder, ainda que indiretamente — é reconhecida também na literatura internacional. Desde o fim do século passado, Katz e Mair (2004) já sinalizavam que era importante aos analistas políticos direcionarem sua atenção aos arranjos entre partidos políticos, ao que denominaram “partido cartel” como sendo aqueles que se organizam para direcionar os recursos polí- ticos e o funcionamento do setor público conforme seus interesses, que podem e, não raras vezes, são distintos das vontades e/ou demandas da população em geral ou de coletividades específicas. Por um lado, reforça-se que essa pactuação entre políticos e partidos reduz a autonomia do Poder Executivo, afinal, implica abdicar de alguns cargos e, até mesmo, de algumas pautas. Por outro lado, esse arranjo não deve ser visto como algo que enfraquece o Poder Executivo e fortalece o Poder Legislativo, pois bene- ficia a ambos, já que confere ao presidente condições da governabilidade, ou seja, a possibilidade de encaminhar determinados projetos e propostas com garantia de que tramitarão e terão chances de serem aprovados (CARVALHO, 2016). NOVAS DESCOBERTAS A barganha política, no contexto brasileiro de presidencialismo de coalizão, é identificada, por exemplo, nos discursos de alguns políti- cos quando declaram seus votos na Câmara dos Deputados ou no Senado Nacional (se pertinente, tal modalidade de voto em plenária ou por opção de cada parlamentar), mas também em entrevistas de agentes políticos diversos no setor público. Para além de meios de co- municação, como telejornais na TV ou internet, blogs e outros veículos de mídia, também é possível tomar contato com as negociações polí- ticas e seus reflexos nas mais diversas áreas de políticas públicas pelo tradicional programa de rádio “A voz do Brasil”, existente desde 1938 (ainda que com outro nome, “A hora do Brasil”) e de veiculação obriga- tória por todas as emissoras nacionais de segunda à sexta-feira. UNICESUMAR https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/17523 UNIDADE 5 202 Linz (2006) denomina essa prática como moedas políticas e afirma que devemos considerar um perigo do presidencialismo, afinal, pode implicar, em situações extremas, em governantes que aceitem determinadas pautas contrá- rias àquelas que apresentaram em seus programas de campanha em troca da aprovação de políticas que julgarem mais importantes ou expressivas, mas essa mudança pode implicar no afastamento do eleitorado, que pode se perceber en- ganado pelas promessas de campanha diante dos encaminhamentos no âmbito do setor público. Rocha Neto e Borges (2016) argumentam que os partidos e políticos que contribuem para que o presidente conquiste e mantenha a governabilidade são contemplados com partilha do poder, são premiados pela maneira como se es- tabelecem como parte da estrutura partidária cartelizada. Isso porque os par- lamentares que votam favoravelmente às propostas e/ou intencionalidades do governo — e do presidente — são recompensados (premiados) também com a autorização de emendas para seus projetos, o que lhes confere visibilidade pública e prestígio político, além de se tornar uma informação sobre seu desempenho parlamentar, a ser mobilizada por ocasião de nova candidatura. Destacam os mesmos autores, entretanto, que o presidencialismo de coalizão tem sua face punitiva àqueles que não fazem parte do arranjo, o que implica o reconhecimento de que há expressiva motivação particularista estabelecida entre os parlamentares e o Poder Executivo, ainda que se trate de questões pontuais. Isso porque, em muitas situações e discussões sobre políticas públicas, não é possível articular grandes acordos, por conta dos interesses dos gruposenvolvi- dos, social, política e economicamente — especialmente dos eixos de políticas públicas econômicas, de uso e ocupação do solo e de infraestrutura, quando se tem grupos empresariais ou agroindustriais no raio de ação — e também quando se trata de políticas públicas do eixo social ou de defesa e garantia de direitos de grupos minorizados, em que posicionamentos negativos podem macular a imagem dos políticos. Como a política é um espaço de disputa pelo poder, “ser” parte da banca- da governista pode implicar maiores visibilidade e desempenho público, então, há potencial perspectiva de reflexos eleitorais positivos no competitivo cenário eleitoral brasileiro. Para concluirmos essa abordagem e seguirmos em nosso diá- logo sobre a prática das políticas públicas e sociais no setor público, pergunto-lhe: ficou evidente para você, estudante, como esse arranjo de governabilidade entre 203 os Poderes Executivo e Legislativo pode influenciar o ciclo de políticas públicas? A resposta direta é: o presidencialismo de coalizão pode determinar assuntos que comporão a agenda de discussões, os debates no processo de formulação de propostas e, logicamente, a tomada de decisões, então, é importante que você tenha em “seu radar”, sob sua atenção, que a aprovação (ou não) de determinado projeto ou ação não decorre somente de sua finalidade pública, mas também de outros interesses. E ainda com relação os Poderes instituídos, suas relações e impactos sobre as políticas públicas e sociais, temos o papel crescente do Poder Judiciário no Brasil, um fenômeno que não é específico do nosso país, mas tem se tornado mais recorrente e expressivo nos últimos anos. Trata-se da judicialização no ciclo de políticas públicas. Conforme asseveram Barreiro e Furtado (2015), constatou-se que o Poder Judiciário vinha aumentando sua atuação com relação às políticas públicas para além da divisão de atribuições historicamente instituída e legalmente sedimen- tada ao longo dos séculos. Para que você tenha uma noção dessa divisão, caro(a) acadêmico(a), em 1748, o filósofo francês Montesquieu identificou a existência de três funções estatais distintas e inconfundíveis — executiva, legislativa e judi- ciária — e preconizou a existência de três Poderes harmônicos e independentes entre si, cada qual responsável pelo exercício de uma função. Assim, em Do Espí- rito das Leis, o autor expôs sua argumentação teórica de que o Poder Legislativo seria o responsável por elaborar normas abstratas de caráter geral e impessoal, ao Poder Executivo caberiam os atos voltados à resolução dos problemas concretos e individualizados, encerrando atribuições de ordem política, colegislativa, de decisão e da administração pública em geral, e, por fim, ao Poder Judiciário seria conferida a atribuição de interpretar e aplicar a lei, de modo a dirimir os conflitos específicos porventura surgidos. O argumento central do modelo proposto por Montesquieu está assentado na liberdade e visa evitar o despotismo, já que ele defendia que somente have- ria liberdade política ante a autonomia relativa entre os Poderes, sempre com vistas a combater a arbitrariedade. A separação dos poderes, ainda conforme Montesquieu (2005), incluiria também a definição de titulares distintos, a fim de assegurar a independência, de fato, entre eles e, assim, evitar a absorção de um poder por outro. A preocupação com o equilíbrio entre os poderes não ape- nas se revelava importante em termos teóricos, mas também tinha como fundo UNICESUMAR UNIDADE 5 204 político a preocupação em evitar o despotismo. Nesse sentido, mais do que a separação abrupta e completa dos poderes, a expectativa do pensador era de que hou- vesse colaboração entre eles, respeitados os limites de suas atuações. Assim, caro(a) estudante, perceba que o modelo tri- partido de poder ganhou força a partir da necessidade de se garantir as liberdades individuais frente ao Estado, uma estratégia política de minimização da concentração do poder do Estado por meio de sua fragmentação. Isto posto, desde a década de 1990, o tema da judi- cialização tem sido considerado nas mais diversas áreas do conhecimento, com seus respectivos desdobramen- tos nos campos de atuação profissional, como Direito, Ciência Política, Serviço Social, e Gestão Pública. Em 1999, por exemplo, o pesquisador Luiz Vianna publicou com colaboradores A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil (VIANNA et al., 1999) e, pos- teriormente, afirmou, categoricamente, que o processo de judicialização da política no Brasil pode ser consta- tado desde 1988 (VIANNA; BURGOS; SALLES, 2007), ou seja, desde o ano de conformação legal do Estado democrático de Direito brasileiro com a promulgação de nossa atual Carta Magna. Para Vianna et al. (1999), haveria dois fenômenos ou tipos de judicialização em curso no Brasil: a judi- cialização da política e a judicialização das relações sociais. A primeira no âmbito da constitucionalidade das leis, a segunda, referente à regulação da vida privada, sendo que se trataria de fenômenos conjugados e rele- vantes à consolidação do Poder Judiciário no contexto de aprofundamento — no período da escrita do texto, ainda relativamente inicial — da democracia brasileira. Conforme autores constitucionalistas brasileiros, como Lessa (2008) e Coutinho (2013), a judicialização 205 tem relação com valores previstos na Constituição Federal brasileira de 1988, que determina, entre outros aspectos, a exigência de implementação e de con- cretização dos direitos fundamentais de natureza social, o que significa que nossa legislação maior determina, em sua redação-base, que os Poderes Executivo e Legislativo atuem no sentido da consecução das garantias sociais, cabendo ao Poder Judiciário fiscalizar. Esse argumento corrobora a análise de Cappelletti e Garth (1988, p. 12) de que “o acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental — o mais básico dos direitos humanos — de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir e não apenas proclamar os direitos de todos”, já que o direito à justiça está previsto no inciso XXXV, do Artigo 5º, da Constituição de 1988. Atente-se, caro(a) estudante, ao seguinte: como o direito à justiça está previsto constitucionalmente, significa que, caso os Poderes Executivo e/ou Legislativo não cumpram suas obrigações, podem ser acionados judicialmente. E como isso ocorre? Barreiro e Furtado (2015, p. 296) respondem, ao explicar que “[...] o Po- der Judiciário entra em cena porque é demandado por alguém, seja o cidadão, carecedor de um serviço público, seja algum representante seu, como o Minis- tério Público”. Perceba que foi explicitada a legalidade da judicialização, então, agora cabe-nos explorar seu conceito, de fato. Conforme Barroso (2010, p. 5): “ Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista polí-tico, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Esse conceito denota que a judicialização implica em transferir ao Poder Judi- ciário atribuições que caberiam ao Poder Executivo e/ou ao Poder Legislativo, já que os temas que tratam de políticas públicas, em geral, e sociais, de modo mais específico, cabem, prioritariamente, aos Poderes que participam das etapas iniciais do ciclo de políticas públicas. Aqui, cabe destacar, portanto, que o Poder Judiciário tem impacto direto nas etapas de tomada de decisões e de implementação de políticas, afinal, são os estágios em que a função judiciária de verificação de legalidade e fiscalização, respectivamente, operam. Portanto, se o Poder Judiciário precisa atuar em etapas UNICESUMAR UNIDADE 5 206 distintas, temos que o setor não está pautando, adequadamente, os temas impor- tantes e latentesna composição da agenda, tem realizado propostas à formulação de leis que não oferecem subsídios à solução ou redução efetiva do problema ou não avalia, de maneira correta, os resultados, o que limita a otimização de recursos empregados e sua potencialidade. É correto, então, afirmar que a judicialização tem duplo caráter: por um lado, reforça a importância do Poder Judiciário, não raras vezes, desconsiderado nas análises sobre o setor público e seu funcionamento; por outro lado, em contrapar- tida, permite-nos identificar um limite da capacidade de representação do regime democrático e a efetividade (ou não) de sua congruência política, já que, quando um indivíduo recorre à justiça para ter sanada uma necessidade que corresponde a uma garantia social constitucional, é porque os parlamentares não legislaram, adequadamente, sobre aquele assunto e/ou o Poder Executivo não cumpriu seu papel de gestão do Estado. 207 Fato é que, diante desse duplo caráter, a judicialização deve ser considerada um fenômeno amplo, não apenas de natureza jurídica, mas também política, social e, até mesmo, cultural. Um exemplo de campo de políticas públicas em que a judicia- lização se coloca como forma praticamente uníssona de garantias de direitos sociais mínimos é a questão de gênero e sexualidade relacionada à população LGBTI+. Villela e Gimenes (2021, on-line) destacam um conjunto de avanços em ter- mos de reconhecimento de direitos e conquistas: “ No período de governos do PT, primeiro com Lula (2003-2010) e depois com Dilma Rousseff (2011-2016), as pautas dos movimentos e suas voca-lizações em conferências e conselhos receberam maior atenção e encami- nhamentos do que em períodos anteriores (e também posterior), tanto que houve diversos avanços e reconhecimentos nos âmbitos jurídico, social e de saúde à população LGBTI+, como a autorização de redesignação sexual e sua oferta pelo Sistema Único de Saúde em 2008, a utilização do nome social para identificação em alguns órgãos e serviços públicos como o pró- prio SUS e para inscrição no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011 e o casamento ou conversão de união estável em casamento pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2013. Mais recentemente, apesar do retrocesso político, a força das lutas dos movimentos LGBTI+ resultaram, ainda, na aprovação pelo STF da possibilidade de alteração de nome e sexo no registro civil de pessoas transsexuais (2018), a criminalização da LGBTI+fobia como crime de ra- cismo até a aprovação de lei específica pelo Congresso Nacional (2019) e o fim da proibição de doação de sangue por homens que tiveram relações se- xuais com outros homens nos últimos 12 meses, também pelo STF (2020). Perceba que as instâncias em que tais direitos foram garantidos são o Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, o que significa que os princi- pais avanços, em termos de garantias mínimas de direitos sociais que promovam a igualdade também prevista constitucionalmente, ocorreram por instrumentos judiciais, ou seja, por meio da judicialização. UNICESUMAR UNIDADE 5 208 Para que você não pense que a judicialização ocorre somente no campo do acesso a direitos sociais por grupos minorizados, como a população LGBTI+, há diver- sos textos que exploram a existência desse mecanismo democrático em políticas públicas, como saúde e educação (CURY; FERREIRA, 2009) e infraestrutura e assistência social (SILVA et al., 2012). Entretanto um dos temas que tem gerado muita polêmica e atingido destaque tanto no âmbito do Poder Judiciário quanto na mídia é a judicialização da liberação do uso medicinal de canabidiol, subs- tância não-psicotrópica que é extraída da Cannabis sativa, a maconha (ASSIS; LOURA, 2022; QUEIROGA, 2022; RODRIGUES, 2022). Ainda no artigo de Barreiro e Furtado (2015), há uma relação de perspectivas e exemplos relacionados à judicialização, dentre os quais, é possível, sintetica- mente, mencionar as relações entre as instituições no contexto de crise da repre- sentação política e consequente ascensão da representação funcional, atuação de instituições específicas do Poder Judiciário, como Ministério Público, Defensoria Pública, STF, Tribunal Superior Eleitoral e Tribunais de Justiça, e a utilização de instrumentos jurídicos, como as Ações Diretas de Inconstitucionalidade e as Sú- mulas Vinculantes, em favor do controle jurisdicional da administração pública. NOVAS DESCOBERTAS Título: Diversidade sexual e identidade de gênero: direitos e disputas Organizadores: Eliane Rose Maio, Hebert de Paula Giesteira Villela, José Valdeci Grigoleto Netto e Murilo dos Santos Moscheta Editora: CRV Sinopse: a cisgeneridade heterossexual normativa sempre soube da existência de uma vizinhança nada homogênea, com boa parte dela bastante “diferentona”, mas que só, agora, era vista colocando o lixo na rua e fazendo compras na padaria e no mercadinho da esquina. Uma vizinhança que, até bem pouco, era silenciada e conversava aos sussurros e ouvia o rádio baixinho, para não ser notada. Essa vizinhan- ça passa, então, a disputar espaços em todos os segmentos, especialmente no campo da educação, do direito, do serviço social e da saúde. Comentário: a obra foi produzida a partir de projeto de pesquisa com finan- ciamento público e encontra-se disponível gratuitamente no QR Code. https://apigame.unicesumar.edu.br/qrcode/17524 209 Mas como essa judicialização se manifesta na produção de políticas públicas e sociais? Responder a esse questionamento depende de retomarmos as etapas do ciclo dessas políticas e estabelecermos sua relação com a intervenção judicial para sua consecução. Comecemos, então, pela composição da agenda, que ocorre em decorrência da chegada do conhecimento formal do Poder Judiciário de um problema ou demanda, geralmente, por meio de um pedido, uma petição ou uma denúncia. Sobre tal documento inicial, Barreiro e Furtado (2015) destacam que é recorrente que essa comunicação à justiça ocorra após um cidadão ou grupo de pessoas receber uma resposta negativa do setor público a uma solicitação, sendo que, muitas vezes, esse pedido judicial é acompanhado de instrução que remete à previsão constitucional do direito. Com relação à segunda etapa do ciclo, a formulação de propostas alter- nativas de políticas públicas, Sarmento (2010) aponta uma crítica pertinente e relevante: juízes têm conhecimento técnico e formação específica para julgar situações seguindo a lei, mas não detêm expertise para analisar demandas pon- tuais ou muito específicas de políticas públicas, especialmente aquelas que dizem respeito às esferas subnacionais. Isso significa que, conforme se eleva a complexi- dade de fatores a serem considerados — de natureza econômica, cultural, política, mas, principalmente, no âmbito social, em atendimento à temática deste material didático — e mais fatores técnicos da política são necessários, mais cuidadosa tem que ser a atuação do Poder Judiciário. A terceira etapa do ciclo de uma política pública é a tomada de decisão, de modo que, quando se trata do caminho de judicialização, a intervenção implica em promulgação de ato normativo ou de exigência por meio de ato administra- tivo em decorrência de decisão judicial. Essa é a última etapa exclusivamente desenvolvida pelo Poder Judiciário no processo de judicialização de políticas públicas, uma vez que as etapas seguintes implicam atuação da gestão pública por meio do Poder Executivo. Quando é chegado o momento de implementar a decisão judicial, temos uma etapa crucial nesse processo de judicialização das políticas públicas, como explicam Barreiro e Furtado (2015, p. 306): “ Mas, por que então se considera que a judicialização se insere prin-cipalmente na etapa da implementação? Por dois motivos. Primei- UNICESUMAR UNIDADE 5 210 ro, porque resta evidente que é por falhas na implementação das