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CENTRO TEOLÓGICO FATAD CURSO EM TEOLOGIA MODULAR HERMENÊUTICAHERMENÊUTICA PROF.º JALES BARBOSA INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA APRESENTAÇÃO Amados e queridos estudantes, amigos da verdade, povo adquirido, nação eleita. Graça e paz, da parte de Deus nosso pai, e do nosso Senhor Jesus Cristo. Grande é a nossa responsabilidade do servo e salvo em Jeová, de anunciar, apresentar, fazer chegar claramente à todos, da infinita bondade e grandeza, de tão grande salvação em Cristo Jesus. Conscientes dessa grande, esplendida, árdua e laboriosa tarefa do ensino da palavra. E te convidamos para estudar a Santa e maravilhosa palavra de Deus. Numa serie de apostilas andaremos juntos, passo a passo com, o Senhor Jesus. Nos evangelhos; seremos missionário com os apóstolos em atos; profetizaremos com Isaias, Ezequiel, e outros profetas; caminharemos com Moisés pelo deserto, passaremos o Jordão com Josué; venceremos todos os Golias ao lado de Davi em nome de Jeová; salmodiaremos canções ao nosso Deus com “Asafe”, teremos a coragem de Débora, a sabedoria de Salomão, a graça de Jesus, a visão de Paulo, a fidelidade de Samuel, amaremos e reclinaremos nosso rosto no peito de Cristo, tal qual João. Venha conosco, seja como os crentes de Beréia (At, 17.10-12), examinando cada dia as escrituras, você estará tomando posse das bênçãos do Senhor, fortalecendo-se, aprendendo e falando dessa palavra, você salvará tomando a ti mesmo como seus ouvintes. (1 Tm 4:16). Em Cristo Jesus, A Diretoria FATAD Prof. Jales Barbosa 2 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA COMO ESTUDAR ESTE LIVRO Às vezes estudamos muito e aprendemos ou retemos pouco ou nada. Isto em parte acontece pelo fato de estudarmos sem ordem nem método. Embora sucintas as orientações que passamos a expor ser-lhe-á muito útil. 1. Busque a ajuda divina Ore a Deus dando-lhe graças e suplicando direção e iluminação do alto. Deus pode vitalizar e capacitar nossas faculdades mentais quanto ao estudo da Palavra de Deus. Nunca execute qualquer tarefa de estudo ou trabalhos da palavra de Deus sem primeiro orar. 2. Além da matéria a ser estudada , tenha à mão as seguintes fontes de consulta e refe-rência: Bíblia. Se POSSÍVEL em mais de uma versão. Dicionário Bíblico. Atlas Bíblico. Concordância Bíblica. Livro ou caderno de apontamentos -individuais. Habitue-se a sempre tomar notas de seus estudos e meditações. 3. Seja ORGANIZADO ao estudar A. Ao primeiro contato com a matéria procure obter uma visão global da mesma isto é como um todo. Não sublinhe nada. Não faça apontamentos. Não procure referências na Bíblia. Procure sim descobrir o propósito da matéria em estudos, isto é o que deseja ela comunicar-lhe. B. Passe então ao estudo de cada lição observando a SEQÜÊNCIA dos Textos que a englobam. Agora sim à medida que for estudando sublinhe palavras frases e trechos-chaves. Faça anotações no caderno a isso destinado. C. Ao final de cada lição encontra-se uma revisão geral de cada parte do livro perguntas e EXERCÍCIO que deverão ser respondidas ao termino de cada parte, que deverão ser respondidas sem consulta ao texto correspondente. responda todas as perguntas que for POSSÍVEL, logo em seguida volte ao texto e confira as suas respostas. Fazendo assim VOCÊ chegara a um final do seu estudo, com um bom aprendizado quanto no conhecimento intelectual e ESPIRITUAL. FATAD Prof. Jales Barbosa 3 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA ÍNDICE INTRODUÇÃO.....................................................................................................................................5 I. A HERMENÊUTICA..........................................................................................................................5 II. HISTÓRIA DOS PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS ENTRE OS JUDEUS........................................6 A. DEFINIÇÃO DA HISTÓRIA DA HERMENÊUTICA.....................................................................................6 B. PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO ENTRE OS JUDEUS............................................................................6 II. HISTÓRIA DOS PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS NA IGREJA CRISTÃ......................................10 A. O PERÍODO PATRÍSTICO..................................................................................................................10 B. O PERÍODO DA IDADE MÉDIA...........................................................................................................13 C. O PERÍODO DA REFORMA................................................................................................................14 D. O PERÍODO DO CONFESSIONALISMO................................................................................................16 E. O PERÍODO HISTÓRICO - CRÍTICO....................................................................................................17 III. CONCEPÇÃO PRÓPRIA DA BÍBLIA – OBJETO DA HERMENÊUTICA SACRA........................22 A. A INSPIRAÇÃO DA BÍBLIA.................................................................................................................22 IV. A UNIDADE E DIVERSIDADE DA BÍBLIA...................................................................................28 A. OS LIVROS DA BÍBLIA.......................................................................................................................28 B. DIVERSIDADE BÍBLICA......................................................................................................................29 C. A UNIDADE DO SENTIDO DA ESCRITURA..........................................................................................30 D. O ESTILO DA ESCRITURA................................................................................................................31 E. PONTO DE VISTA EXEGÉTICO DO INTÉRPRETE...................................................................................33 VI. INTERPRETAÇÃO GRAMATICAL...............................................................................................34 A. SIGNIFICADO DAS PALAVRAS ISOLADAS............................................................................................34 B. O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS NO SEU CONTEXTO – “USUS LOUENDI”...............................................35 C. AJUDAS INTERNAS PARA EXPLICAÇÃO DAS PALAVRAS.......................................................................36 D. O USO FIGURADO DE PALAVRAS.......................................................................................................38 E. A INTERPRETAÇÃO DO PENSAMENTO................................................................................................40 F. O CURSO DO PENSAMENTO DE UM TEXTO COMPLETO.......................................................................45 G. AUXÍLIOS INTERNOS PARA A INTERPRETAÇÃO DO PENSAMENTO........................................................46 VII. INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA..................................................................................................52 A. DEFINIÇÃO E EXPLICAÇÃO...............................................................................................................52 B. CARACTERÍSTICAS PESSOAIS DO AUTOR..........................................................................................53 C. ELEMENTOS PARA A INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA.............................................................................60 VIII. INTERPRETAÇÃO TEOLÓGICA................................................................................................63 IX. APLICAÇÃO DA MENSAGEM BÍBLICA......................................................................................82 A. UMA PROPOSTA PARA O PROBLEMA TRANSCULTURAL.......................................................................82X. REPETIÇÕES E OBSERVAÇÕES................................................................................................93 CONCLUSÃO.....................................................................................................................................95 A. A TAREFA DO MINISTRO (DO OBREIRO, DO CRISTÃO EM GERAL).......................................................95 BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................................96 FATAD Prof. Jales Barbosa 4 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA INTRODUÇÃOINTRODUÇÃO Após completar o estudo desta matéria, você será capaz de: a) Definir os termos hermenêutica, hermenêutica geral e hermenêutica especial; b) Descrever os vários campos de estudo bíblico (estudo do cânon, da crítica textual, da crítica histórica, da exegese, da teologia bíblica, da teologia sistemática) e sua relação com a hermenêutica. d) Explicar a base teorética e bíblica da necessidade da hermenêutica; e) Apontar três opiniões fundamentais da doutrina da inspiração e explicar as implicações dessas opiniões para a hermenêutica; I. A HERMENÊUTICAI. A HERMENÊUTICA A hermenêutica é uma ciência primordial para o estudante e pregador da palavra de Deus. O dicionário define “hermenêutica” (Gr. hermeneutes=intérprete) como a “arte de interpretar leis e/ou textos sagrados”. Podemos referir-nos a hermenêutica geral e especial. A primeira se aplica à interpretação de qualquer obra escrita; a última se aplica a determinados tipos de produção literária, tais como: Leis, História, Profecia, Poesia. A Hermenêutica Sacra tem caráter especial, pois trata de um livro peculiar no campo da literatura: a Bíblia, como inspirada Palavra de Deus. Somente podemos conservar o caráter teológico da Hermenêutica Sacra quando reconhecemos o princípio da inspiração divina da Bíblia. A hermenêutica bíblica faz parte da teologia exegética (exegese = expor; extrair uma verdade oculta) e se preocupa em conhecer com exatidão o sentido das verdades bíblicas. É o estudo metódico dos princípios e regras de interpretação das Sagradas Escrituras. Distingue-se, entretanto da crítica textual que procura determinar as “palavras” exatas do texto original. A hermenêutica, em contrário, procura descobrir o “sentido” dessas palavras. Isto é, a crítica textual pergunta: “O que está escrito?”, e a hermenêutica indaga: “O que o autor quer dizer?” Ao estudarmos a hermenêutica, iremos conhecer algumas regras de interpretação da Bíblia que muito auxiliarão o estudante na exegese da mesma. A hermenêutica apresenta as regras e a exegese é a prática destas regras. A principal regra da hermenêutica é “A BÍBLIA SE EXPLICA A SI MESMA”, isto é, “A BÍBLIA É INTERPRETADA PELA PRÓPRIA BÍBLIA”. Sabemos que a Bíblia é um conjunto de 66 livros que forma um volume único, pois foi o Espírito Santo que inspirou cerca de 40 homens, de vários níveis de educação, classe social etc., FATAD Prof. Jales Barbosa 5 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA dando esta unidade. O Espírito Santo é o único autor das Sagradas Escrituras. É Ele, entretanto, o intérprete que nos fornece vários guias que servem para ajudar-nos na interpretação da Palavra. Como os escritores bíblicos eram de variadas classes sociais, educação, épocas, etc., o Espírito Santo respeitou seus estilos e suas culturas. Por isso, os estudantes da Bíblia devem levar em consideração as regras da hermenêutica que nos orientam a observar os detalhes de cada livro, olhando os contextos textuais, históricos, culturais, geográficos, etc. Nesta disciplina iremos analisar cada uma das principais regras de interpretação da Bíblia, o que muito nos ajudará a entender melhor o que o Espírito Santo quis dizer, quando disse e como disse. II. HISTÓRIA DOS PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS ENTRE OS JUDEUSII. HISTÓRIA DOS PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS ENTRE OS JUDEUS A. Definição da História da Hermenêutica Devemos fazer uma distinção entre a história da Hermenêutica como uma ciência e a história dos princípios hermenêuticos. A primeira teria começado no ano de 1567 da nossa era, quando Flacius Illyricus fez a primeira tentativa de um tratamento científico de Hermenêutica; a última teve seu início no próprio começo da era cristã. Uma história de princípios Hermenêuticos tenta responder a três questões: a) Qual era a visão predominante com respeito às Escrituras? b) Qual foi o conceito de método de interpretação prevalecente? c) Quais foram às qualidades consideradas essenciais ao intérprete da Bíblia? As duas primeiras questões têm caráter mais permanente do que a última e, naturalmente, requer maior atenção. B. Princípios de Interpretação entre os Judeus Por causa da integralidade, será feito um breve comentário sobre os princípios que os judeus aplicaram na interpretação da Bíblia. As seguintes classes de judeus devem ser distinguidas: 1. Judeus Palestinos. Estes tinham um respeito profundo pela Bíblia como a Palavra infalível de Deus. Consideravam até mesmo as letras como sagradas, e seus copistas tinham o hábito de contá-las como receio de que alguma delas se perdesse na transcrição. Ao mesmo tempo, estimavam muito mais a Lei do que os Profetas e Escritos Sagrados. Consequentemente, a interpretação da Lei era seu grande objetivo. Faziam uma distinção cuidadosa entre o mero sentido literal da Bíblia (tecnicamente chamado peshat) e sua exposição exegética (midrash). “Ao se investigar o motivo e o caráter do midrash deve-se examinar e elucidar, por intermédio de todos os meios exegéticos disponíveis, todos os possíveis significados escondidos e aplicações da Escritura” (Oesterley e Box, FATAD Prof. Jales Barbosa 6 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA The Religion and Wordship of the Synagogue, p. 752.) Num sentido amplo, a literatura midrash pode ser dividida em duas categorias: a) Interpretações de caráter legal, que lidam com assuntos de lei que impõe obrigações num sentido legalista (Hadakhah), e b) Interpretações de uma tendência mais edificante e livre, que cobrem todas as partes não- legalistas da Escritura (Haggadah). A última é mais homilética e ilustrativa do que exegética. Uma das grandes fraquezas da interpretação dos escribas se deve ao fato de ela exaltar a Lei Oral, a qual, em última análise, é idêntica às inferências dos rabinos, como um suporte necessário da Lei Escrita e que, no final, era usada como meio para pôr a Lei Escrita de lado. Isso deu origem a todos os métodos de interpretação arbitrários. Observe o veredicto de Cristo em Marcos 7.13. Hillel foi um dos maiores intérpretes dos judeus. Ele nos deixou sete regras de interpretação pelas quais, pelo menos aparentemente, a tradição oral poderia ser deduzida a partir dos dados da Lei Escrita. Essas regras, na sua forma mais abreviada, são as seguintes: a) leve e pesado (isto é, a minore ad majus, e vice-versa); b) “equivalência”; c) dedução do especial para o geral; d) inferência a partir de várias passagens; e) inferência geral para o especial; f) analogia a partir de outra passagem; g) inferência a partir do contexto. 2. Judeus Alexandrinos Sua interpretação era determinada mais ou menos pela filosofia de Alexandria. Adotavam o princípio fundamental de Platão de que não se deveria acreditar em nada que fosse indigno de Deus. E sempre que encontravam coisas do Antigo Testamento que não estavam de acordo com a sua filosofia e que ofendiam o seu senso de adequação, se valiamdas interpretações alegóricas. Filo foi o grande mestre, entre os judeus, desse método de interpretação. Ele não rejeitou completamente o sentido literal da Escritura, mas o considerou como uma concessão aos fracos. Para ele, o sentido literal era meramente um símbolo de coisas muito mais profundas. O significado escondido das Escrituras era o que tinha grande importância. Ele, também, nos deixou alguns princípios de interpretação. “Negativamente, ele diz que o sentido literal deve ser excluído quando qualquer coisa dita for indigna de Deus; - quando então uma contradição estaria envolvida; - e quando a própria Escritura alegoriza. Positivamente, o texto deve ser alegorizado quando as expressões foram dúbias; quando palavras supérfluas foram usadas; quando houver uma repetição de fatos já conhecidos; quando uma expressão for variada; quando houver o emprego de sinônimos; quando um jogo de FATAD Prof. Jales Barbosa 7 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA palavras for possível em qualquer uma das variedades; quando as palavras admitirem uma pequena alteração; quando houver qualquer coisa anormal no número ou tempo do verbo” (Farrar, History of Interpretation, p. 22). Essas regras, naturalmente, abrem caminho para todos os tipos de más interpretações. 3. Os Caraítas Esta seita, denominada por Farrar “Os Protestantes do Judaísmo”, foi fundada por Anan Ben David, cerca de 800 A.D. Do ponto de vista de suas características fundamentais, podem ser considerados como descendentes espirituais dos saduceus. A forma hebraica da palavra “Karaites” é Beni Mikra “Filhos da Leitura”. Eram considerados assim porque seu princípio fundamental era considerar a Escritura como única autoridade em matéria de fé. Sua exegese, como um todo, era muito mais correta do que a dos judeus palestinos e alexandrinos. 4. Os Cabalistas O movimento cabalista do século XII era de natureza bem diferente. Ainda que empregasse também o método alegórico dos judeus alexandrinos, representava uma reductio ad absurdum do método de interpretação empregado pelos judeus da Palestina. Admitiam que todo o Massorah, mesmo os versos, as palavras, letras, vogais e acentos foram entregues a Moisés no Monte Sinai; e que o “número de letras, cada letra de per si, a transposição e a substituição tinha poder especial e sobrenatural”. Em sua tentativa de desvendar os mistérios divinos, lançaram mão dos métodos seguintes: a) GEMATRIA, de acordo com o qual podiam substituir certa palavra bíblica por outra que tivesse o mesmo valor numérico; b) NOTARIKON, que consistia em formar palavras pela combinação de letras iniciais e finais, ou por considerar cada letra de uma palavra a letra inicial de outras palavras; e c) TEMOORAH, que indicava o método pelo qual se conseguia nova significação das palavras por meio do intercâmbio de letras. 5. Os Judeus Espanhóis Do século XII ao século XV desenvolveu-se um método mais sadio de interpretação entre os judeus da Espanha. Quando a exegese da Igreja Cristã estava periclitante, e o conhecimento do hebraico estava quase perdido, alguns judeus instruídos da Península Pirenaica restauraram a luz ao castiçal. Algumas de suas interpretações ainda hoje são citadas. QUESTIONÁRIO FATAD Prof. Jales Barbosa 8 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA 1. Defina o termo “Hermenêutica”. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 2. Qual a importância do estudo da hermenêutica? _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 3. Mencione a principal regra da hermenêutica. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 4. Escreva três regras de hermenêutica dos judeus palestinos. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 5. Em que era baseada a interpretação dos judeus alexandrinos. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 6. Qual o princípio fundamental da seita dos caraítas. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 7. Cite e explique cada método usado pelos cabalistas. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ FATAD Prof. Jales Barbosa 9 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA II. História dos Princípios Hermenêuticos na Igreja CristãII. História dos Princípios Hermenêuticos na Igreja Cristã A. O Período Patrístico No período patrístico, o desenvolvimento dos princípios hermenêuticos está associado a três diferentes centros da vida da igreja. 1. Escola de Alexandria. No início do terceiro século d.C., a interpretação bíblica foi influenciada especialmente pela escola catequética de Alexandria. Esta cidade foi um importante local de aprendizado, onde a religião judaica e a filosofia grega se encontraram e exerceram influência uma sobre a outra. A filosofia Platônica ainda estava em curso nas formas do Neoplatonismo e o Gnosticismo. E não é de se admirar que a famosa escola catequética dessa cidade caísse sob o encanto da filosofia popular e se acomodasse à sua interpretação da Bíblia. O método natural encontrado para harmonizar religião e filosofia foi a interpretação alegórica, visto que: a) Os filósofos pagãos (Estóicos) já havia, por um longo tempo, aplicado o método na interpretação de Homero e, assim, mostrado o caminho; e b) Filo, que também era um alexandrino, emprestou ao método o peso da sua autoridade, reduziu-o a um sistema e aplicou-o até mesmo nas mais simples narrativas. Os principais representantes dessa escola foram Clemente de Alexandria e seu discípulo, Orígenes. Ambos consideravam a Bíblia como Palavra inspirada de Deus, no sentido mais estrito e, compartilhavam da opinião corrente de que regras especiais tinham de ser aplicadas na interpretação das mensagens divinas. E, embora reconhecessem o sentido literal da Bíblia, eram daopinião de que só a interpretação alegórica contribuía para o conhecimento real. Exegese Patrística (100-600 D.C) A despeito da prática dos apóstolos, uma escola de interpretação alegórica dominou a igreja nos séculos que se sucederam. Esta alegorização derivou-se de um propósito digno - o desejo de entender o Antigo Testamento como documento cristão. Contudo, o método alegórico segundo praticado pelos pais da igreja muitas vezes negligenciou por completo o entendimento de um texto e desenvolveu especulações que o próprio autor nunca teria reconhecido. Uma vez abandonado o sentido que o autor tinha em mente, conforme expresso por suas próprias palavras e sintaxe, não permaneceu nenhum princípio regulador que governasse a exegese. Clemente de Alexandria (150-DC – 215 DC) Exegeta patristico de nomeada fama. Clemente acreditava que as Escrituras ocultavam seu verdadeiro significado a fim de que fôssemos inquiridores, e também porque não é bom que todos a entendam. Ele desenvolveu a teoria de que cinco sentidos estão ligados à Escritura FATAD Prof. Jales Barbosa 10 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA (histórico, doutrinal, profético, filosófico, e místico), com as mais profundas riquezas disponíveis somente aos que entendem os sentidos mais profundos. Sua exegese de Gênesis 22:1-4 (a viagem de Abraão a Moriá para sacrificar lsaque) dá o sabor de seus escritos: Quando, no terceiro dia, Abraão chegou ao lugar que Deus lhe havia indicado, erguendo os olhos, viu o lugar à distância. O primeiro dia é aquele constituído pela visão de coisas boas; o segundo é o melhor desejo da alma; no terceiro a mente percebe coisas espirituais, sendo os olhos do entendimento abertos pelo Mestre que ressuscitou no terceiro dia. Os três dias podem ser o mistério do selo (batismo) no qual cremos realmente em Deus. É, por consequência, à distância que ele percebe o lugar . Porque o reino de Deus é difícil de atingir, o qual Platão chama de reino de idéias, havendo aprendido de Moisés que se tratava de um lugar que continha todas as coisas universalmente. Mas Abraão corretamente o vê à distância, em virtude de estar ele nos domínios da geração, e ele é imediatamente iniciado pelo anjo. Por esse motivo diz o apóstolo: "Porque agora vemos como em espelho, obscuramente, então veremos face a face" , mediante aquelas exclusivas aplicações puras e incorpóreas do intelecto. Orígenes (185? - 254?) Orígenes foi o notável sucessor de Clemente. Ele cria ser a Escritura uma vasta alegoria na qual cada detalhe é simbólico, e dava grande importância a 1 Coríntios 2:6-7 ("falamos a sabedoria de Deus em mistério"). Orígenes acreditava que assim como o homem se constitui de três partes - corpo, alma e espírito - da mesma forma a Escritura possui três sentidos. O corpo é o sentido literal, a alma o sentido moral, e o espírito o sentido alegórico ou místico. Na prática, Orígenes tipicamente menosprezou o sentido literal, raramente se referiu ao sentido moral, e empregou constantemente a alegoria, uma vez que só ela produzia o verdadeiro conhecimento. Agostinho (354-430) Em termos de originalidade e gênio, Agostinho foi de longe o maior homem de sua época. Em seu livro sobre a doutrina cristã ele estabeleceu diversas regras para exposição da Escritura, algumas das quais estão em uso até hoje. Entre suas regras encontramos as seguintes, conforme resumo de Ramm: a) O intérprete deve possuir fé cristã autêntica. b) Deve-se ter em alta conta o significado literal e histórico da Escritura. c) A Escritura tem mais que um significado e portanto o método alegórico é adequado. d) Há significado nos números bíblicos. e) O Antigo Testamento é documento cristão porque Cristo está retratado nele do princípio ao fim. FATAD Prof. Jales Barbosa 11 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA f) Compete ao expositor entender o que o autor pretendia dizer, e não introduzir no texto o significado que ele, expositor, quer lhe dar. g) O intérprete deve consultar o verdadeiro credo ortodoxo. h) Um versículo deve ser estudado em seu contexto, e não isolado dos versículos que o cercam. i) Se o significado de um texto é obscuro, nada na passagem pode constituir-se matéria de fé ortodoxa. j) O Espírito Santo não toma o lugar do aprendizado necessário para se entender a Escritura. k) O intérprete deve conhecer o idioma hebraico e grego, além da geografia e outros assuntos relacionados ao texto bíblico. l) A passagem obscura deve dar preferência à passagem clara; m) O expositor deve levar em consideração que a revelação é progressiva. Na prática, Agostinho renunciou à maioria de seus princípios e inclinou-se para uma alegorização excessiva. Esta prática faz que seus comentários exegéticos sejam alguns dos menos valiosos de seus escritos. Ele justificou suas interpretações alegóricas em 2 Coríntios 3:6 ("porque a letra mata, mas o espírito vivifica"), querendo com isso dizer que uma interpretação literal da Bíblia mata, mas uma alegórica ou espiritual vivifica. Agostinho cria que a Escritura tinha um sentido quádruplo histórico, etiológico, analógico, alegórico. Sua opinião foi a predominante na Idade Média. Portanto, a influência de Agostinho no desenvolvimento de uma exegese científica foi mista: na teoria ele sistematizou muitos dos princípios de exegese sadia, mas na prática deixou de aplicar esses princípios em seu estudo bíblico. 2. A Escola de Antioquia Esta foi fundada, provavelmente, por Doroteu e Lúcio, no fim do terceiro século. Embora Farrar considere Diodoro, seu primeiro presbítero, e depois em 378 A.D., bispo de Tarso, como o verdadeiro fundador da escola. Escreveu um tratado sobre princípios de interpretação. Teve dois discípulos: Teodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo, que diferiam grandemente em vários aspectos. Teodoro sustentou um ponto de vista liberal a respeito da Bíblia, enquanto que Crisóstomo a considerou em todas as suas partes como sendo a infalível Palavra de Deus. A exegese do primeiro era intelectual e dogmática; a do último, mais espiritual e prática. Um tornou-se famoso como crítico e intérprete; o outro, eclipsou todos os seus contemporâneos como orador. Teodoro é considerado O EXEGETA, enquanto que João foi chamado Crisóstomo (BOCA DE OURO). Ambos avançaram no sentido de uma exegese verdadeiramente científica, reconhecendo, como o fizeram, a necessidade de determinar o sentido original da Bíblia, a fim de fazer dele uso proveitoso. Eles deram grande valor ao sentido literal da Bíblia, como também, rejeitaram o método alegórico de interpretação. 3. O Tipo Ocidental de Exegese FATAD Prof. Jales Barbosa 12 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA Surgiu no Ocidente um tipo intermediário de exegese. Acolheu alguns elementos da escola alegórica de Alexandria, mas também reconheceu os princípios da escola Síria. Seu aspecto mais característico, contudo, encontra-se no fato de haver acrescentado outro elemento que até então não havia sido considerado, a saber, a autoridade da tradição e da Igreja na interpretação da Bíblia. Atribuiu valor normativo ao ensino da Igreja no campo da exegese. Este tipo de exegese foi representado por Hilário e Ambrósio, todavia, de modo especial, por Jerônimo e Agostinho. A fama de Jerônimo baseia-se mais na tradução da Vulgata do que na sua interpretação da Bíblia. Era conhecedor tanto do hebraico como do grego, entretanto, seu trabalho no campo exegético consiste principalmente de grande número de notas lingüísticas, históricas e arqueológicas.Agostinho difere de Jerônimo no fato de ter um conhecimento muito deficiente das línguas originais, Fundamentalmente, ele não foi um exegeta. Foi grande na sistematização das verdades bíblicas, mas, não o foi na interpretação das Escrituras. Seus princípios hermenêuticos, apresentados no trabalho “De Doctrina Christiana”, eram melhores do que sua exegese. Advogava que um intérprete devia estar preparado para sua tarefa, tanto filológica como crítica e historicamente, e devia, acima de tudo, ter amor ao autor. Enfatizou a necessidade de se considerar o sentido literal, e de se basear nele o alegórico; contudo, ao mesmo tempo, usou muito livremente a interpretação alegórica. Nos casos em que o sentido da Escritura era dúbio, ele deu voz decisiva a regula fidei que significava uma afirmação compendiada da fé da Igreja. Infelizmente, Agostinho também adotou um quádruplo sentido da Escritura: histórico, etimológico, analógico e alegórico. Foi especialmente neste sentido que ele influenciou a interpretação da Idade Média. B. O Período da Idade Média Durante a Idade Média, muitos, até mesmo do clero, viviam em profunda ignorância quanto à Bíblia. E o que conheciam era devido apenas à tradução da Vulgata e aos escritos dos Pais. A Bíblia era, geralmente, considerada como um livro cheio de mistérios, os quais só poderiam ser entendidos de uma forma mística. Nesse período, o sentido quádruplo da Escritura (literal, topológico, alegórico e analógico) era geralmente aceito, e o princípio de que a interpretação da Bíblia tinha de se adaptar à tradição e à doutrina da Igreja tornou-se estabelecido. Reproduzir os ensinos dos Pais e descobrir os ensinos da Igreja na Bíblia eram considerados o ápice da sabedoria. A regra de São Benedito foi sabiamente aplicada nos monastérios, e decretado que as Escrituras deveriam ser lidas e, com elas, como explicação final, a exposição dos Pais. Hugo de São Vítor chegou a dizer: “Aprenda primeiro as coisas em que você deve crer e, então, vá a Bíblia para encontrá-las lá”. Nos casos em que as interpretações dos Pais diferiam, como freqüentemente acontecia, o intérprete tinha o dever de escolher, quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est. Nem um único princípio hermenêutico foi desenvolvido nessa época, e a exegese estava de mãos e pés atados pela tradição oral e pela autoridade da Igreja. FATAD Prof. Jales Barbosa 13 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA C. O Período da Reforma A Renascença foi de grande importância para o desenvolvimento dos princípios sadios da Hermenêutica. Nos séculos XIV e XV, a ignorância densa prevaleceu quanto ao conteúdo da Bíblia. Houve doutores de divindade que nunca a haviam lido inteira. E a tradução de Jerônimo era a única forma pela qual a Bíblia era conhecida. A Renascença chamou a atenção para a necessidade de se voltar ao original. Reuchlin e Erasmo – chamados os dois olhos da Europa – seduzidos pela idéia, insistiram em que os intérpretes da Bíblia tinham o dever de estudar as Escrituras nas línguas em que haviam sido escritas. Além disso, facilitaram grandemente esse estudo: o primeiro pela publicação de uma Gramática Hebraica e um Lexicon Hebraico; e o último, publicando a primeira edição crítica do Novo Testamento em Grego. O sentido quádruplo da Escritura foi sendo gradualmente abandonado e foi estabelecido o princípio de que a Bíblia tinha apenas um sentido. Os reformadores criam na Bíblia como sendo a Palavra inspirada de Deus. Mas, por mais escrita que fosse sua concepção de inspiração, concebiam-na como orgânica ao invés de mecânica. Em certos particulares, revelaram até mesmo uma liberdade notável ao lidar com as Escrituras. Ao mesmo tempo, consideravam a Bíblia como a autoridade suprema e como corte final de apelo em disputas teológicas. Em oposição à infalibilidade da Igreja, colocaram a infalibilidade da Palavra. Sua posição é perfeitamente evidenciada na declaração de que a Igreja não determina o que as Escrituras ensinam, mas as Escrituras determinam o que a Igreja deve ensinar. O caráter essencial da sua exegese era o resultado de dois princípios fundamentais: a) Scriptura Scripturae interpres, isto é, a Escritura é a intérprete da Escritura; e b) Omnis intellectus ac expositio Scripturae sit analogia fidei, isto é, todo o entendimento e exposição da Escritura deve estar em conformidade com a analogia da fé. E, para eles a analogia fidei é igual à analogia Scripturae, isto é, o ensino uniforme da Escritura. Verifica-se que na exegese da reforma nos séculos XIV e XV predominava uma profunda ignorância concernente ao conteúdo da Escritura: alguns doutores de teologia nunca haviam lido a Bíblia toda. A Renascença chamou a atenção para a necessidade de conhecer as línguas originais a fim de entender-se a Bíblia. Erasmo facilitou este estudo ao publicar a primeira edição de crítica ao Novo Testamento grego, e Reuchlin com sua tradução de uma gramática e léxico hebraicos. O sentido quádruplo da Escritura foi, aos poucos, deixado de lado e substituído pelo princípio de que a Escritura tem apenas um único sentido. Lutero (1483-1546) Lutero acreditava que a fé e a iluminação do Espírito eram requisitos indispensáveis ao intérprete da Bíblia. Ele asseverava que a Bíblia devia ser vista com olhos inteiramente distintos daqueles com os quais vemos outras produções literárias. Lutero sustentava, também, que a igreja não deveria determinar o que as Escrituras ensinam; pelo contrário, as Escrituras é que deveriam determinar o que a igreja ensina. Rejeitou o FATAD Prof. Jales Barbosa 14 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA método alegórico de interpretação da Escritura, chamando-o de "sujeira", "escória", e "um monte de trapos obsoletos". De acordo com Lutero, uma interpretação adequada da Escritura deve proceder de uma compreensão literal do texto. O intérprete deve considerar em sua exegese as condições históricas, a gramática e o contexto. Ele acreditava, também, que a Bíblia é um livro claro (a perspicuidade da Escritura), contrariamente ao dogma católico romano de que as Escrituras são tão obscuras que somente a igreja pode revelar seu verdadeiro significado. Ao abandonar o método alegórico que por tanto tempo servira para fazer do Antigo Testamento um livro cristão, Lutero viu-se forçado a encontrar outro meio de explicar aos crentes como o Antigo se aplicava ao Novo. Isto ele fez sustentando que o Antigo e o Novo Testamento apontam para Cristo. Este princípio de organização, que em realidade se tornou um princípio hermenêutico, levou Lutero a ver a Cristo em muitos lugares (como alguns dos Salmos que ele designou como messiânicos) onde mais tarde os intérpretes deixaram de encontrar referências cristológicas. Quer concordemos, quer não, com todas as designações de Lutero, seu princípio cristológico capacitou-o, de fato, a demonstrar a unidade da Escritura sem apelação para a interpretação mística do texto do Antigo Testamento. Um dos grandes princípios hermenêuticos de Lutero dizia que se deve fazer cuidadosa distinção entre aLei e o Evangelho. Para Lutero, aLei refere-se a Deus em sua ira, seu juízo, e seu ódio ao pecado; o Evangelho refere-se a Deus em sua graça, seu amor, e sua salvação. O repúdio à Lei estava errado, segundo Lutero, porque conduz à ilegalidade. Fundir a Lei e o Evangelho também estava errado, porque conduz à heresia de acrescentar obras à fé. Lutero acreditava, pois, que o reconhecimento e a manutenção cuidadosa da distinção Lei-Evangelho eram decisivos ao entendimento adequado da Bíblia. Melanchton, companheiro de Lutero em questõesde exegese, continuou a aplicação dos princípios hermenêuticos de Lutero em suas exposições do texto bíblico, sustentando e aumentando o impulso da obra de Lutero. Calvino (1509-1564) O maior exegeta da Reforma foi, provavelmente, Calvino, que concordava, em geral, com os princípios articulados por Lutero. Ele, também, acreditava que a iluminação espiritual é necessária, e considerava a interpretação alegórica como artimanha de Satanás para obscurecer o sentido da Escritura. “A Escritura interpreta a Escritura" era uma sentença predileta de Calvino, a qual aludia à importância que ele dava ao estudo do contexto, da gramática, das palavras, e de passagens paralelas, em lugar de trazer para o texto o significado do próprio intérprete. Numa famosa sentença ele declarou que "a primeira tarefa de um intérprete é deixar que o autor diga o que ele de fato diz, em vez de atribuir-lhe o que pensa que ele deva dizer" . Calvino, provavelmente, superou a Lutero em harmonizar suas práticas exegéticas com sua teoria. Ele não FATAD Prof. Jales Barbosa 15 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA partilhava da opinião de Lutero de que Cristo deve ser encontrado em toda a parte nas Escrituras (e.g., ele não concordava com Lutero quanto ao número de Salmos que são legitimamente messiânicos). A despeito de algumas diferenças, os princípios hermenêuticos sistematizados por esses reformadores haveriam de tornar-se os grandes princípio norteadores para a moderna interpretação protestante ortodoxa. D. O Período do Confessionalismo Após a Reforma, tornou-se evidente que os protestantes não se haviam purgado do velho fermento. Teoricamente, conservavam o princípio: Scriptura Scripturae interpres. Mas se recusavam a submeter sua exegese ao domínio da tradição e da doutrina da Igreja tal como havia sido formulada pelos concílios e papas, corriam o risco de se deixar escravizar pelos Padrões Confessionais da Igreja”. Foi o período preeminente das Confissões. “Ao tempo, quase toda a cidade importante tinha o seu credo favorito” (Farrar).O protestantismo estava lamentavelmente dividido em várias facções, pois este foi o período das controvérsias. O espírito militante da época encontrou expressão em centenas de trabalhos polêmicos. Cada um defendia a sua própria opinião, apelando para a Escritura. A exegese tornou-se serva da dogmática, e degenerou em mera busca de textos-provas. Estudava-se as Escrituras para nelas encontrar as verdades incorporadas nas Confissões. Foi nesse período que alguns se inclinaram na direção de uma idéia mecânica da inspiração da Bíblia. Há três tendências dessas reações abaixo mencionadas: 1. Os Socinianos Eles não criaram nenhum novo princípio hermenêutico, todavia, em todas as suas exposições se baseavam na afirmação de que a Bíblia deve ser interpretada de modo racional, ou, talvez melhor, em harmonia com a razão. Como Palavra de Deus a Bíblia não podia conter qualquer coisa contrária à razão, isto é, de acordo com o seu pensamento, qualquer coisa que não pudesse ser racionalmente entendida. Assim, as doutrinas da Trindade, das Duas Naturezas de Cristo, da Divina Providência foram abandonadas. Construíram um sistema teológico que representava uma mistura de Racionalismo e Supernaturalismo. Sua exegese era, no final das contas, dominada por seu sistema dogmático. 2. Coccejus Teólogo holandês não se satisfez com o método corrente de interpretações. Sentiu que os que consideravam a Bíblia como coleção de textos-provas não faziam justiça à Escritura como um organismo, do qual as diferentes partes eram tipologicamente relacionadas entre si. Insistiu em que o intérprete devia estudar cada passagem à luz do seu contexto, do pensamento dominante e do propósito do autor. Seu princípio fundamental era o de que as palavras da Escritura significavam o que podiam significar em todo o discurso; ou, como diz em uma das suas obras: “O sentido das FATAD Prof. Jales Barbosa 16 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA palavras da Bíblia é tão abrangente que contém mais de um pensamento, sim, algumas vezes, uma multiplicidade de pensamentos, que um intérprete pode deduzir”. Segundo Farrar “... ele introduziu uma falsa pluralidade de significações, fazendo confusão entre o sentido real e todas as possíveis aplicações”. E isto foi agravado por sua excessiva tipologia, que o levou não só a ver a Cristo em toda parte da Bíblia, mas também descobrir as vicissitudes da Igreja do Novo Testamento, no curso de sua história, tipificada no Velho Testamento, e até nas palavras e atos do próprio Cristo. Apesar de falhas de sua exegese, prestou um bom serviço, chamando a atenção para o caráter orgânico da revelação de Deus. J. A. Turretin se opôs ao procedimento arbitrário de Coccejus e de seus seguidores. Ao contrário do sentido imaginário descoberto pela escola de Coccejus. Turretin insistiu em que a Bíblia devia ser interpretada sem preconceitos dogmáticos, e com o auxílio da lógica e da análise. 3. Os Pietistas Cansados de lutas entre os protestantes, os pietistas se inclinaram a promover uma vida verdadeiramente piedosa. No todo, eles representavam uma reação sadia contra as interpretações dogmáticas de seu tempo. Insistiam no estudo da Bíblia nas línguas originais, e sob a influência e iluminação do Espírito Santo. De acordo com o seu ponto de vista, o estudo gramatical, histórico e analítico da Palavra de Deus produzia apenas o conhecimento externo e superficial do pensamento divino, enquanto que o estudo porismático (isto é, aquele que tira inferências para repreensão) e o prático (consistindo de oração e lamentação) penetram no âmago da verdade. E. O Período Histórico - Crítico Se o período anterior foi testemunha de alguma oposição à interpretação dogmática da Bíblia, no período que ora consideravam o espírito de reação ganhou o lugar predominante no campo da Hermenêutica e da Exegese. Freqüentemente, encontrou expressão em oposições extremas, e então se defrontava com determinada resistência. Divergentes pontos de vista foram expressos a respeito da inspiração da Bíblia, mas eram unânimes em negar a inspiração verbal e a infalibilidade da Escritura. O elemento humano na Bíblia foi reconhecido e enfatizado como não havia sido antes, e os que acreditavam também no elemento divino, refletiam sobre a mútua relação entre o humano e o divino. Fizeram-se tentativas no sentido de sistematizar a doutrina da inspiração. Alguns adotaram o ponto de vista de Le Clerk, segundo o qual a inspiração variava em graus nas diferentes partes da Bíblia¸ admitindo a existência de erros e imperfeições naquelas partes em que esta inspiração era de grau mais baixo. Outros aceitaram a teoria de uma inspiração parcial, limitando-a às porções pertinentes à fé e à moral, admitindo, portanto, a possibilidade de erros históricos e geográficos. Schleiermacher e seus seguidores negaram o caráter sobrenatural da inspiração, e a identificaram com a iluminação espiritual dos cristãos; enquanto que Wegscheider e Parker reduziram-na ao poder que todo homem possui simplesmente em virtude da luz natural. Em nossos FATAD Prof. Jales Barbosa 17 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA dias, é comum falar-se da inspiração como dinâmica, e relaciona-la mais com os autores do que com seus escritos. “a inspiração é o resultado da energia supernatural e espiritual, que se manifesta num alto grau e nova ordem da energia espiritual do homem” LADD. Exige-se como conditio sine qua non que o exegetaseja voraussetzunglos, isto é, sem pressuposições, e, portanto, inteiramente livre do domínio dos padrões dogmáticos e confessionais da Igreja. Além disso, estabeleceu-se o princípio segundo o qual a Bíblia devia ser interpretada como qualquer outro livro. O elemento divino da Bíblia foi, em geral, menosprezado, e o intérprete se limitava à discussão de questões históricas e críticas. O fruto produzido por este período foi a consciência da necessidade da interpretação gramático-histórica da Bíblia. Há também evidências de uma crescente convicção de que este duplo princípio de interpretação devia ser complementado por outro princípio, a fim de fazer-se justiça à Bíblia como revelação divina. O começo deste período foi marcado pelo aparecimento de duas escolas opostas – a Gramatical e a Histórica. 1. A Escola Gramatical Foi fundada por Ernesti, que escreveu importante trabalho sobre a interpretação do Novo Testamento, no qual estabelece quatro princípios: a) o sentido múltiplo da Escritura deve ser rejeitado, e somente se deve conservar o sentido literal; b) as interpretações alegóricas devem ser abandonadas, exceto nos casos em que o autor indique o que deseja, a fim de se combinar com o sentido literal; c) visto que a Bíblia tem o sentido gramatical em comum com outros livros, isto deve ser considerado em ambos os casos; d) o sentido literal não pode ser determinado por um suposto sentido dogmático. A Escola Gramatical era essencialmente supernaturalista, prendendo-se “às palavras do texto como legítima fonte de interpretação autêntica da verdade religiosa”. ELLIOT. 2. A Escola Histórica Originou-se com Semler, filho de pais pietistas, tornou-se apesar disso, em certa extensão, o pai do Racionalismo. Em seu trabalho sobre o Cânon, chamou a atenção para o aspecto humano da origem histórica e da composição da Bíblia, fato até então negligenciado. Num segundo trabalho, sobre a interpretação do Novo Testamento, estabeleceu princípios de interpretação. Semler salientou o fato de vários livros da Bíblia e o Cânon se originaram de modo histórico, e eram, portanto, historicamente condicionados. Partindo do fato de que os livros foram escritos por diferentes classes do povo, concluiu que seu conteúdo, em grande parte, é local e efêmero, e que não pretendiam Ter valor normativo para todos os homens em todos os tempos. Além disso, viu neles uma mistura de erros, pois Jesus e seus apóstolos se acomodaram em alguns pontos ao povo a quem se dirigiram. Daí ele dizer que FATAD Prof. Jales Barbosa 18 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA era necessário que o intérprete tivesse estas coisas em mente para a interpretação do Novo Testamento. 3. Tendências Resultantes Este período começou com duas escolas opostas, logo revelou três tendências distintas no campo da Hermenêutica e da Exegese. Grande número de intérpretes desenvolveu os princípios racionalistas de Semler a ponto de espantar o próprio iniciador do movimento. Outros recuaram das posições extremadas do Racionalismo, ou assumiram um meio-termo ou voltaram aos princípios da Reforma. Ainda outros salientaram o fato de que o método gramático-histórico de interpretação devia ser suplementado por algum princípio que capacitaria o expositor a penetrar no espírito da Escritura. A semente espalhada por Semler produziu a ala racionalista no campo da exposição histórica. Exemplos: a) PAULUS, professor de Heidelberg, assumiu uma posição puramente naturalista. Considerava a “fidelidade prática à razão”, como fonte da religião cristã. Seu trabalho mais famoso é que se relaciona com a interpretação dos milagres. Distinguiu duas questões, a saber: Se eles ocorreram; e, como tudo que aconteceu pode ter acontecido. b) A teoria de Paulus foi ridicularizada por STRAUSS, que propôs a teoria da interpretação mítica do Novo Testamento. Sob a influência de Hegel, ensinou que a idéia messiânica, com todos os seus acréscimos do miraculoso, desenvolveu-se gradualmente na história da humanidade. No tempo de Jesus, as expectações messiânicas estavam no seu auge. O trabalho de Jesus e seu ensino deixaram impressão tão profunda sobre os discípulos que, depois de sua morte, atribuíram- lhe palavras e obras maravilhosas, que se esperavam do Messias, incluindo a ressurreição. c) Este ponto de vista foi ridicularizada por F. C. BAUR, o fundador da Escola de Tuebingen, que ensinou que o Novo Testamento se originou de acordo com o princípio hegeliano de tese, antítese e síntese. Sustentou que a hostilidade entre as facções Paulina e Petrina produziu uma literatura rival, e, finalmente, também a composição de livros que visavam a reconciliação dos partidos oponentes. Como resultado, evidenciaram-se três tendências na literatura do Novo Testamento. d) No presente, o Velho Testamento é mais objetivamente pelos assaltos críticos do que o Novo Testamento. A Escola Graf-Kuenen-Wellausen tem por objetivo explicar o Velho Testamento de modo “histórico e objetivo”, ou seja, de acordo com a filosofia evolucionista. Seu trabalho caracteriza-se pela minudência que causa admiração e por sua grande engenhosidade; mas mesmo agora há sinais que indicam seu caráter passageiro. O Racionalismo não se desenvolveu sem oposição. No curso dos tempos apareceu uma dupla reação: a) A Escola de Conciliação – Se bem que não se possa dizer que Schleiermacher tenha sido o fundador dessa escola, ele foi certamente seu principal impulsionador. Sua obra póstuma sobre Hermenêutica não responde a essa expectação geral. Ele ignorou a doutrina da inspiração, negou a FATAD Prof. Jales Barbosa 19 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA validade permanente do Velho Testamento e tratou a Bíblia como outro livro qualquer, se bem que não duvidasse da genuinidade substancial da Escritura. Distinguiu entre o essencial e não essencial, e achou que a ciência crítica era capaz de estabelecer a linha divisória entre ambos. Com toda a sua insistência sobre a piedade do coração, ele seguiu em seu trabalho exegético, principalmente os caminhos do Racionalismo. Alguns racionalistas adotaram uma posição intermediária, entre eles: Tholuck, Riehm, Weiss, Luecke, Neander e outros. Eles rejeitaram inteiramente a teoria da inspiração verbal, mas ao mesmo tempo revelaram profunda reverência para com a autoridade das Escrituras Sagradas. “Sem admitir a infalibilidade do Cânon ou a inspiração plenária do texto, e reservando-se o direito de submeter ambas ao teste do criticismo histórico, a Escola da Conciliação não faz mais do que proclamar a autoridade da Bíblia em matéria de religião” LICHTENBERG. b) A Escola de Hengstenberg – Naturalmente, o caráter intermediário da escola precedente foi também sua fraqueza. Ela não serviu para impedir o curso do Racionalismo. Uma reação muito mais efetiva apareceu na Escola de Hengstenberg, que retornou aos princípios da Reforma. Ele acreditou na inspiração plenária da Bíblia, e, consequentemente, defendeu sua absoluta infalibilidade. 4. Tentativas de ir além do sentido Gramático-Histórico O resultado final deste período é o método gramático-histórico de interpretação. Encontramos este método representado em manuais de hermenêutica como os de C.A.G. Keil, Davidson, P. Fairbairn, A.Imer e N.S. Terry. Geralmente, porém, surge uma tendência segundo a qual se revela que a interpretação gramático-histórica não satisfaz plenamente, e procurou-se complementá-la. KANT afirmou que somente a interpretação moral da Bíblia tem significado religioso. OLSHAUSEN advogou a necessidade de se alcançar “o sentido mais profundo da Escritura”; “amaneira de descobrir o sentido mais profundo é reconhecer a revelação divina na Escritura e seu ponto central, Cristo, em sua unidade com Deus e com a humanidade”; GERMAR adotou o que ele chamou de interpretação pan-harmônica da Escritura. “Exigiu completa harmonia entre o sentido encontrado na Escritura, desde que seja considerado como revelação de Deus, e as declarações de Cristo e tudo mais que seja certo e verdadeiro”; T. BECK sugeriu a interpretação pneumática ou espiritual. Ensinou que o intérprete devia ter o espírito de fé, que daria ao intérprete a convicção de que as várias partes da Escritura formam um todo orgânico. QUESTIONÁRIO 1. Que benefícios a escola de Alexandria trouxe a hermenêutica. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 2. Que regras Agostinho usava no estudo das Escrituras? FATAD Prof. Jales Barbosa 20 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 3. Que movimento no período da reforma chamou a atenção para a necessidade de se voltar ao original. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 4. Diferencie os métodos de interpretação de Lutero com os métdos de interpretação de Calvino. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 5. Mencione as três tendências do período do confessionalismo e explique uma. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 6. Quem são os pietistas? _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ FATAD Prof. Jales Barbosa 21 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA III. CONCEPÇÃO PRÓPRIA DA BÍBLIA – OBJETO DA HERMENÊUTICA SACRAIII. CONCEPÇÃO PRÓPRIA DA BÍBLIA – OBJETO DA HERMENÊUTICA SACRA O estudo da Hermenêutica Sacra exige, antes de tudo, uma descrição do seu objeto – a Bíblia – porque a Hermenêutica Especial deve adaptar-se sempre à classe de literatura a que se aplica. O caráter especial da Bíblia determinará, também, em certa extensão, os princípios que devem ser adotados na sua interpretação. A. A Inspiração Da Bíblia Ao discutir o caráter da Bíblia, é natural colocar-se em primeiro lugar o princípio dominante a respeito do qual diz a nossa confissão: “confessamos que esta palavra de Deus não foi enviada ou entregue pela vontade do homem, porém que homens santos de Deus falaram movidos pelo Espírito Santo, como diz o apóstolo Pedro. E que Deus, por causa do interesse que tem em nós e em nossa salvação, mandou que seus servos, os profetas e apóstolos, escrevessem sua palavra revelada, e ele mesmo escreveu, com o próprio dedo, as duas tábuas da Lei. Portanto, chamamos tais escritos de “Santa e Divina Escritura”. “A Bíblia é divinamente inspirada” – Este é um dos grandes princípios da Hermenêutica Sacra. Não pode ser ignorado impunemente. Qualquer teoria de interpretação que o despreze é fundamentalmente precária e não nos levará à compreensão da Bíblia como a Palavra de Deus. Por inspiração “entendemos a influência sobrenatural exercida pelo Espírito Santo sobre os escritores sacros, em virtude da qual seus escritos conseguem veracidade divina, e constituem suficiente e infalível regra de fé e prática”. a) Provas Escriturísticas da Inspiração Divina – Muitos intérpretes se opõem decididamente a qualquer semelhante concepção de inspiração divina. Quase sempre a apresentam como sendo uma teoria inventada pelos teólogos conservadores, a fim de enquadrarem a Bíblia nas suas noções preconcebidas daquilo que supõem que a Palavra de Deus devia ser. A inspiração divina da Bíblia é uma das doutrinas ao lado da Providência, de Deus, de Cristo e da Expiação, entre outras. (1) a Bíblia ensina claramente que os órgãos da revelação foram inspirados, quando comunicaram oralmente ao povo as revelações que haviam recebido. As expressões que a Bíblia emprega para descrever as funções proféticas implicam necessariamente na idéia de uma inspiração direta. As fórmulas proféticas mostram claramente que os profetas eram cônscios do fato de que iam ao povo com a Palavra do Senhor. Há outro aspecto digno de nota nos escritos proféticos que aponta para a mesma direção. Em muitos dos seus discursos, nos quais o Senhor é apresentado falando, os profetas passam rapidamente do uso da terceira pessoa gramatical para o da primeira, sem incluir a frase “diz o Senhor”. FATAD Prof. Jales Barbosa 22 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA Voltando ao Novo Testamento, vemos que Cristo prometeu aos seus discípulos o Espírito Santo para ensinar-lhes todas as coisas, e fazer que se lembrassem de tudo que lhes havia ensinado (Jo 14.26). (2) A Bíblia ensina a inspiração da Palavra escrita – Esta certeza dá origem a uma conclusão favorável à inspiração dos órgãos de revelação. Se Deus julgou necessário que eles transmitissem ao povo a mensagem oral sob a direção do Espírito Santo, não consideraria menos importante que seus escritos fossem de igual modo salvaguardados. Nós, porém, não nos devemos contentar apenas com suposições. A Bíblia, de fato, ensina a inspiração da Palavra escrita. É verdade que não se pode citar uma passagem que assevere explicitamente a inspiração de toda a Bíblia, mas as evidências são tais que não deixam dúvidas sobre este ponto. As citações do Novo Testamento, os judeus possuíam uma coleção de escritos tecnicamente chamados he graphe (a Escritura), ou hai graphai (as Escrituras) (Rm 9.17; Lc 24.27). A Escritura é muitas vezes citada em o Novo Testamento como tendo autoridade divina. Para Cristo e seus discípulos, um apelo he graphe significava pôr fim a toda controvérsia. Seu “está escrito” eqüivalia a “Deus diz”. Além disso, esses escritos são designados de modo que o seu caráter sagrado se salienta; por exemplo, são chamados graphai hagiai (Rm 1.2) e ta hiera grammata (II Tm 3.15). E, além destes, há uma descrição que indica diretamente o seu caráter divino. São chamados “os oráculos de Deus” (Rm 3.2). Na clássica passagem de II Tm 3.16, as Escrituras são concebidas claramente como revelação divina. Há muitas citações do Velho Testamento em o Novo Testamento que identificam Deus e as Escrituras como os que falam. Encontramos um expressivo exemplo em Hb 1.5-13, onde são citadas sete palavras do Velho Testamento que se diz haverem sido proferidas por Deus (Sl 2.7; II Sm 7.14; Dt 32.43 (LXX) ou Sl 97.7; 104.4; 45.6,7; 102.24-27; 110.1). Examinando estas passagens, notamos que em algumas delas Deusé quem fala, em outras, não. O que a Escritura diz é simplesmente atribuído a Deus. Além disso, em Rm 9.17 e Gl 3.8 citam-se palavras do Velho Testamento com a fórmula “A Escritura diz” (“prega”), enquanto que nas passagens citadas, Ex 9.16; Gn 22.18, quem fala é Deus. Esta identificação só seria possível à base de um estrito ponto de vista de inspiração. O LOCUS CLASSICUS para o estudo da inspiração da Bíblia é II Tm 3.16. Para uma interpretação pormenorizada deste versículo, recorremos aos comentários. Para o momento, faremos apenas algumas observações. No contexto precedente imediato, o Apóstolo fala das vantagens que Timóteo teve pelo fato de haver recebido uma estrita educação religiosa, e também pelo fato de haver conhecido desde a infância as Escrituras Sagradas, isto é, o Velho Testamento. E agora, no versículo 16, o apóstolo enfatiza a grande importância destas Escrituras. Partindo daí, segue-se que he graphe se refere também ao Velho Testamento como um todo. A palavra Theo- pneustos significa sopro de Deus, ou seja, o produto do sopro criador de Deus. A palavra grega pasa é traduzida por alguns por “todo”, e por outros, “cada” o que faz uma diferença muito pequena, visto que uma enfatiza a totalidade e a outra, cada uma de suas partes. Também alguns traduzem: “toda FATAD Prof. Jales Barbosa 23 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA (cada) Escritura é dada por inspiração de Deus, e é proveitosa”, etc.; e outros: “toda (cada) Escritura dada por inspiração de Deus é também proveitosa”, etc. Mas, mesmo isto não faz grande diferença, pois a inspiração do Velho Testamento, em qualquer dos casos, é asseverada ou implicada. Outra importante passagem é II Pe 1.19-21, onde o apóstolo mostra a seus leitores que o que lhes foi feito saber sobre a vida e poder de nosso Senhor Jesus Cristo não se baseia em fábulas habilmente inventadas, mas na palavra de testemunhas oculares. E então acrescenta que eles têm melhor testemunho na palavra profética (que no entender de Dr. Warfield se refere a todo o Velho Testamento). Isto é dito por mais seguro, porque não é de particular interpretação, ou seja, não resulta da investigação humana, nem é mero produto do próprio pensamento do escritor. Não resultou da vontade do homem, mas é dom de Deus. Ainda outra passagem de considerável importância se encontra em I Co 2.7-13. Paulo salienta o fato de que a sabedoria de Deus, que esteve oculta desde a eternidade, e que somente o Espírito de Deus podia conhecer, foi-lhe revelada. E, então, continua: “Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito Santo”. Desde que ele usa o presente, isto se aplica também às coisas que estava escrevendo aos Coríntios. (3) a Bíblia ensina que a inspiração se estende também às palavras empregadas pelos escritores. É conhecido que muitos dos que dizem acreditar na inspiração da Bíblia são enfáticos em negar a inspiração verbal. Satisfazem-se em aceitar uma espécie de inspiração parcial, como por exemplo, a de que somente os pensamentos foram inspirados e não as palavras, ou que somente os assuntos relativos à fé e à vida ou, em sentido mais limitado, somente as palavras de Jesus foram inspiradas. Alguns rejeitam o termo “inspiração verbal”; porque sugere uma teoria mecânica da inspiração e, preferem usar o termo “inspiração plenária”. Não há objeção a isto se entendemos, entre outras coisas, que a orientação sobrenatural do Espírito Santo se estendeu à escolha das palavras, pois isto é ensinado na Bíblia, tanto por declaração expressa como por implicação. Note-se especialmente o que se segue: Na passagem já mencionada, Paulo diz estar ensinando coisas que foram reveladas pelo Espírito de Deus “... não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas (em palavras) ensinadas pelo Espírito Santo”. Aqui o apóstolo claramente se refere a palavras particulares como palavras ensinadas pelo Espírito Santo, e a dupla expressão fortalece a sua afirmativa. Quando o Senhor chama Jeremias para a sua difícil tarefa, ele diz: “Eis que eu ponho minhas palavras na tua boca”. Ora, se ele teve cuidado especial para com as palavras através das quais Jeremias transmitiria suas revelações a Israel, a suposição é que ele teria igual cuidado com respeito às palavras por meio das quais o profeta apresentaria estas revelações de uma forma permanente a todas as futuras gerações. De acordo com João 10.33, os judeus se ofenderam porque, como disseram, Jesus estava se fazendo Deus. Em resposta a esta objeção, Jesus apela para uma palavra da Escritura, em Salmos 82.6, onde os juízes são chamados deuses, e ao mesmo tempo salienta o fato de que a FATAD Prof. Jales Barbosa 24 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA Escritura não pode ser anulada, mas tem autoridade incontestável. Visto que Jesus baseia seu argumento no uso de uma palavra, segue-se que cada palavra tem autoridade divina. Em Gl 3.16, Paulo fundamenta todo o seu argumento no fato de uma palavra ser usada no singular e não no plural. Este argumento tem sido atacado, alegando-se que a palavra hebraica a que se refere não de ser usada no plural para indicar posteridade (Gn 3.15). Isto, todavia, não destrói a validade do seu argumento, pois Moisés podia ter usado outra palavra ou expressão no plural. E mesmo que isto tivesse ocorrido, a passagem ainda provaria que Paulo acreditava na inspiração das palavras particulares. b) A Relação entre o Divino e o Humano na Autoria Escriturística - Do que foi dito, é bastante claro que um duplo fator, o divino e o humano, operaram na produção da Bíblia. E então levanta-se a questão a respeito de como estes dois elementos se relacionam na composição dos livros da Bíblia. “Foram os escritores humanos meramente usados como penas na mão de Deus? Foram eles simplesmente amanuenses que escreveram o que Deus ditou?“ Foi a sua personalidade suprimida quando o Espírito de Deus veio sobre eles e os orientou a escrever o que desejava? Foram sua memória e imaginação, compreensão e julgamento, desejos e vontade anulados pelo fato de haverem sido movidos pelo Espírito Santo?” Para todas estas questões só há uma respostas à luz dos elementos fornecidos pela Escritura. (1) Os autores humanos da Bíblia não foram máquinas, nem mesmo amanuenses. O Espírito Santo não reduziu a sua liberdade nem destruiu sua individualidade. As provas seguintes são decisivas a este respeito: Em muitos casos, os autores investigaram de antemão a matéria a respeito da qual pretendiam escrever, Lucas nos diz no prefácio do seu Evangelho que procedeu deste modo; e os autores dos livros de Reis e Crônicas se referem constantemente às suas fontes. Os escritores muitas vezes expressaram suas próprias experiências, como Moisés o fez nos capítulos iniciais e finais do livro de Deuteronômio, e Lucas, na segunda metade do livro dos Atos dos Apóstolos. Os salmistas cantaram a respeito do seu pecado pessoal e da recepção da graça perdoadora, dos perigos que os cercavam e dos maravilhosos livramentos. Muitos livros da Bíblia têm caráter ocasional. Sua composição foi motivada por circunstâncias externas, e seu caráter determinado pelas condições morais e religiosas dos leitores originais. Em o Novo Testamento, isso se aplica particularmente às Epístolas de Paulo, de Pedro e de Judas, mas também, em grau menor, aos outros escritores. Os vários livros se caracterizam por uma marcante diferença de estilo. Ao lado da exaltada poesia dos Salmos e dos Profetas, temos a prosa comum dos historiadores. Ao lado do hebraico castiço de Isaías, temos a linguagem influenciada pelo aramaiconos escritos de Daniel; o estilo dialético de Paulo, ao lado da exposição simples de João. (2) É claro, portanto, que o Espírito Santo usou os escritores da Bíblia como eles eram, e como ele mesmo os preparou para a tarefa, com suas idiossincrasias pessoais, seu caráter e temperamento, seus talentos e educação, sua preferências e aversões, sem suprimir suas FATAD Prof. Jales Barbosa 25 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA personalidades. Há, contudo, uma importante limitação: o Espírito Santo não permitiu que sua natureza pecaminosa se expressasse. (3) Objeções à doutrina da Inspiração Verbal – Têm surgido muitas objeções à doutrina da inspiração verbal ou plenária; não podemos despreza-las; todavia devemos considera-las devidamente. Algumas delas têm grande aparência de plausibilidade, tais como as que se baseiam nos chamados fenômenos da Escritura, como erros textuais, aparentes discrepâncias, citações supostamente incorretas e mal aplicadas, e duplas representações. Essas objeções derivam sua força do suposto fato de que uma teoria verdadeiramente científica de inspiração deve basear-se num estudo indutivo de todos estes fenômenos. Há, todavia, um ponto que merece ser considerado. As asserções de que as Escrituras são, em todo o sentido, infalivelmente inspiradas, referem-se somente aos autógrafos, e não, no mesmo sentido, aos manuscritos que hoje possuímos, às atuais edições e traduções da Bíblia. Os autógrafos originais foram escritos sob a orientação divina, e eram, portanto, absolutamente infalíveis. Todavia, isto não significa que um perpétuo milagre tenha preservado o texto sagrado de erros dos copistas. Uma comparação dos manuscritos revela claramente a presença de tais erros. Daí, então, alguns inferem que a inspiração da Bíblia tem pouca significação, e não assegura a infalibilidade das Escrituras tal como as possuímos. Finalmente, há muitos há muitos estudiosos de Hermenêutica e Exegese que se opõem decididamente a um conceito a priori de inspiração divina, em seus trabalhos exegéticos. IMMER acrescenta o princípio de que “toda pressuposição que de alguma forma antecipe o resultado exegético é inadmissível”. E advoga que “a crença incondicional na autoridade e inspiração da Escritura é uma destas pressuposições”. (1) Ele mesmo acha que nenhum intérprete pode livrar-se de todas as pressuposições. Parece que ele teria de colocar-se à parte, o que é impossível. O intérprete não pode abandonar suas convicções mais profundas, nem assumir uma atitude indiferente para com o autor que procura interpretar. E certamente um teólogo reformado não pode fugir da firme convicção, que não é meramente uma questão de inteligência, mas do coração, de que a Bíblia é a infalível Palavra de Deus. (2) A suposição de que a Bíblia é a inspirada Palavra de Deus, e portanto, tem autoridade divina, se bem que nos dê certeza de que cada uma das suas partes é verdadeira e não pode ser autocontraditória, não determina, como regra, de uma ou de outra maneira, a nossa exegese de determinadas passagens. (3) É digno de nota que os que têm tais escrúpulos contra a aceitação da inspiração divina em seus trabalhos exegéticos são sempre dominados por preconceitos que determinam o resultado de suas interpretações em maior extensão do que faria a aceitação da doutrina bíblica da inspiração. Um desses preconceitos dos nossos dias, que tem produzido muito mal e pervertido muitas passagens das Escrituras, é a teoria evolucionista aplicada à religião de Israel. FATAD Prof. Jales Barbosa 26 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA QUESTIONÁRIO 1. A Bíblia é toda inspirada? Explique. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 2. Apresente algumas provas escriturísticas da Inspirração Divina. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ 3. Argumente sobre a relação entre o divino e o humano na autoria escriturística. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ Anotações: _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ FATAD Prof. Jales Barbosa 27 INTRODUÇÃO A HERMENÊUTICA IV. A UNIDADE E DIVERSIDADE DA BÍBLIA IV. A UNIDADE E DIVERSIDADE DA BÍBLIA A. Os livros da Bíblia Os livros da Bíblia constituem uma Unidade Orgânica. Esta unidade não é meramente mecânica, consistindo de diferentes partes, preparadas com vistas a uma correlação mútua, como peças de um relógio, e que finalmente tenham sido colecionadas em um volume. A Bíblia não é comparada a uma catedral construída de acordo com os planos de um arquiteto, porém se compara a uma árvore majestosa. É o produto de um crescimento progressivo. A Bíblia não foi feita, porém, cresceu. a) As passagens citadas para provar a inspiração da Bíblia, e muitas outras que poderiam ser acrescentadas a estas, indicam o fato de que ela tem um autor principal. Ela é, em todas as suas partes, produção do Espírito Santo. b) O conteúdo da Bíblia, não obstante sua verdade, revela admirável unidade. Todos os livros da Bíblia têm como centro unificador a pessoa de Jesus Cristo. Todos eles se relacionam com a obra da redenção e com a função do reino de Deus na terra. Além disso, todos eles concordam em seu ensino doutrinário e em sua pratica a respeito da vida. É uma da maravilhas do século o fato de sessenta e seis livros, que surgiram gradativamente no curso de dezesseis séculos, poderem revelar tão notável unanimidade. c) O caráter progressivo d revelação de Deus é também uma prova efetiva de sua unidade. O estudo da “Teologia Bíblica” esta tornando este fato cada vez mais claro. As Escrituras revelam o desenvolvimento de um pensamento divino singular
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