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1 2 SUMÁRIO Aspectos Históricos, culturais e conceituais da dependência química ___________________4 Neurobiologia ______________________________________________________________6 Neuropsicologia e Dependência Quimica________________________________________14 Etiologia, critérios diagnósticos e classificação____________________________________18 Critérios diagnósticos e classificação___________________________________________21 Comorbidades _____________________________________________________________26 Principais comorbidades_____________________________________________________28 Poliusuários _______________________________________________________________33 Drogas lícitas: Álcool _______________________________________________________37 Drogas lícitas: Nicotina ______________________________________________________43 Drogas lícitas: Opióides _____________________________________________________49 Drogas lícitas: Anfetaminas __________________________________________________55 Drogas lícitas: Benzodiazepínicos, Ansiolíticos e Hipnóticos ________________________60 Drogas lícitas: Anabolizantes_________________________________________________64 Drogas ilícitas: Maconha, Haxixe e Skunk_______________________________________70 Drogas ilícitas: Cocaína _____________________________________________________75 Drogas ilícitas: Crack e similares ______________________________________________80 3 Drogas ilícitas: Alucinógenos _________________________________________________83 Drogas ilícitas: Inalantes e outras drogas de abuso _________________________________87 Construtos Cognitivos _______________________________________________________89 Comprometimento da Atenção e Funções Executivas_______________________________94 Comprometimento da Memória _______________________________________________97 Comprometimento da praxia e visuo-construção __________________________________99 Reabilitação Neuropsicológica e Dependência Quimica____________________________101 Populações Especiais: Crianças e Adolescentes __________________________________103 Populações Especiais: Mulher, Gestante e Perinatal ______________________________112 Populações Especiais: Idosos ________________________________________________117 Populações Especiais: LGBT e conseqüências do abuso____________________________121 Populações Especiais: Minorias_______________________________________________124 População em Situação de Rua: ______________________________________________125 População Indígena: _______________________________________________________127 População Carcerária: ______________________________________________________128 Intervenção Breve: ________________________________________________________128 Terapia de Grupo no Tratamento da Dependência Química ________________________134 Prevenção a Recaída _______________________________________________________138 4 Terapia Familiar e Dependência Química_______________________________________142 Grupo de Apoio (Paciente e Família) __________________________________________146 Redução de Danos _________________________________________________________148 Papel das equipes multidisciplinares no tratamento da Dependência Química ________________________________________________________________________151 Políticas Públicas para a dependência Química e Lei Orgânica ______________________154 Organização do serviço no tratamento da Dependência Química ____________________158 Dispositivos de Atenção Psicossocial __________________________________________162 Comunidades Terapêuticas e Residências Assistidas ______________________________165 Suicídio e Dependência Química _____________________________________________168 Fatores de Proteção e Risco na Dependência Química _____________________________173 Dicas de Filme ___________________________________________________________175 Referências Bibliográficas _ _________________________________________________177 Anexos _________________________________________________________________180 5 MÓDULO I – Aspectos Introdutórios da Dependência Quimica e Neuropsicologia Aspectos históricos, culturais e conceituais a dependência quimica “Toda forma de vício é ruim, não importa que seja droga, álcool ou idealismo.” Carl Jung Pontos chaves A história do uso das substâncias psicoativas de confundem com a história da própria humanidade. Compreensão da dependência quimica como doença. Vivemos em um mundo permeado de mudanças, com constantes avanços nas ciências humanas. A busca da compreensão por certos fenômenos datam idades remotas, no qual o olhar investigativo torna-se evidente frente aos fatos que o homem não compreende. É interessante destacar que na buscar do plano da compreensão acerca do ser humano e suas facetas, o contexto histórico- cultural do objeto que se pretende estudar ocupa lugar de destaque. A partir das referências históricas, o fenômeno “uso de substâncias psicoativas” marcam seu espaço na história da humanidade, configurando sua presença nas relações humanas desde os tempos pré-históricos. De acordo com uma revisão histórica publicada de décadas de pesquisas arqueológicas, o seres humanos em todo o mundo fizeram uso de substâncias psicoativas como o ópio, álcool e cogumelos alucinógenos desde o período pré-histórico, datando cerca de 10 mil anos atrás, e evidência histórica de uso cultural cerca de 5 mil anos atrás. Observe que a relação homem-droga é bastante antiga e persistente. O álcool, segundo evidências arqueológicas, data sua existência entre 7000 a.C e 6600 a.C, a partir de resíduos da bebida (misto de arroz, mel, frutas fermentadas) encontrados em fragmentos de cerâmica de um vilarejo chinês. Quanto aos alucinógenos, resquícios de fósseis de cacto alucinógeno de São Pedro foram encontrados em uma caverna do Peru, entre o ano 8600 a.C e 5600 a.C. Sementes da 6 leguminosa Dermatophylum, forma encontradas na região do sul do Texas no período de 1000 d.C. Pequenas esculturas de pedra chamada “pedra de cogumelo” foram encontradas na cidade Guatemala no México, com possível uso dos cogumelos alucinógenos em cerimônias religiosas. Já o ópio, vestígios de fôsseis desta planta foram encontrados em um sítio arqueológico na Itália, por meados do sexto milênio a.C. Resquícios de cápsulas de semente de papoula e de Opiáceos foram localizados em ossos de esqueleto humano no quarto milênio a.C., com indícios de utilização em cerimônias religiosas. Quanto ao tabaco, nota-se que os vestígios de sua existência foi evidenciada em cachimbos encontrados na Argentina, por cerca de 2000 a.C., pelos povos que ali habitavam neste período. Já a nicotina está presente na história da humanidade desde o período de 300 a.C. As evidências do uso das folhas de coca datam aproximadamente 8000 atrás, na região da América do Sul. Seus resquícios foram encontrados em restos dentários de humanos e em cabelo de múmias, o que indica que os povos que faziam uso desta planta, faziam através do processo de mascá-la. Se Liga!!! Nota-se que o uso das substâncias psicoativas não é um evento novo no repertório humano, ele vem se entrelaçando ao longo da história da humanidade, permeadas pela cultura, religião, hábitos e costumes dos povos com finalidades específicas. Mas porque este fenômeno é tão Milenar? Podemos inferir que o homem sempre buscou através dos tempos, o aumento de seu prazer e a diminuição do O termo DROGA, é compreendido no ambiente cientifico, como qualquer substância capaz de alterar o funcionamento do organismo, resultando em mudanças fisiológicas e comportamentais, sejam elas nocivas ou medicinais. 7 sofrimento. O uso das drogas sempre esteve relacionado às questões que fazem parte da condição humana, prazer/dor, vida/morte,sofrimento/alívio trazendo a tona à fragilidade humana. Observa-se que através da evolução histórica do homem, é possível verificar que em cada época este ser apresenta uma maneira particular em lidar com esses elementos, bem como a forma de consumo das drogas. Mas enfim, o que vem a ser dependência quimica? É o impulso que leva a pessoa a usar droga de forma continua ou periódica, no qual o controle do consumo é precário, fazendo com que o dependente aja de forma impulsiva e repetitiva com evidentes prejuízos cognitivos, emocionais, sociais e familiares. A dependência é entendida como uma DOENÇA que envolve uma gama de fatores biopsicossociais. Neurobiologia “O vício não é uma escolha...” Dr. Gabor Maté Pontos chaves A compreensão da neurociência auxilia no entendimento da neurobiologia da dependência quimica. Você sabia... De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mental – DSM-V, os Transtornos por uso de Substâncias, consiste na presença de agrupamentos de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos mediante ao uso continuo pelo indivíduo, onde o consumo em excesso da substância atua na ativação direta do sistema de recompensa do cérebro. Estes transtornos são divido em dois grupos: transtorno por uso de substância e transtorno induzidos por substâncias. 8 O sistema de recompensa tem sido um dos fatores para entendimento do abuso das substâncias psicoativas. De acordo com pesquisas recentes, as regiões pré-frontais são mais afetadas com o uso de substâncias psicoativas, apresentando intima ligação com processo de dependência. Compreender a dependência quimica é entender que está doença não está ligada apenas a fatores comportamentais e psico-sociais, mas com uma configuração perpassada por fatores genéticos e epigenéticos. Atualmente, os avanços científicos na área da dependência química permitem dizer que, assim como a ação do uso prolongado de substâncias com potencial de abuso no cérebro, aspectos sociais, culturais, educacionais e comportamentais têm papel central no desenvolvimento da síndrome de dependência. As bases neurobiológicas da dependência química têm recebido crescente atenção em inúmeras pesquisas, uma vez que um melhor entendimento dos mecanismos cerebrais ligados ao comportamento de dependência tem permitido a busca de tratamentos medicamentosos mais eficazes para o comportamento repetitivo de busca pela substância, assim como para a síndrome de abstinência. Porém a pouca compreensão das alterações bioquímicas que as substâncias de abuso promovem no cérebro humano, assim como da relação entre essas alterações cerebrais e comportamentais presentes na síndrome de dependência tem sido segundo a comunidade científica, alguns dos motivos que têm impedido o desenvolvimento de tratamentos farmacológicos mais efetivos para a os quadros de dependência quimica. Observa-se dentro desse contexto, que o sistema dopaminérgico, sobretudo as vias dopaminérgicas envolvidas nos circuitos motores, límbicos e cognitivos dos núcleos da base, tem-se apresentado como potencialmente envolvido em mecanismos que desempenhariam um papel central nas síndromes de dependência e abstinência (Almeida, Bressan & Lacerda, 2011). Mas de fato, qual é o objetivo do estudo da neurobiologia dos transtornos relacionados ao uso de substâncias? Segundo a literatura cientifica atual, a neurobiologia busca compreender os mecanismos genéticos e epigenéticos, além dos mecanismos celulares e moleculares envolvidos na dependência de substâncias. Esses mecanismos podem mediar à transição entre o padrão de uso chamado “recreacional” e um padrão caracterizado por perda do controle, 9 bem como o comportamento de busca apesar de evidentes prejuízos em diferentes esferas, “fissura” e recaídas freqüentes, tipicamente descritos nos quadros de dependência. Se Liga!!! Observa-se que na compreensão da neurobiologia da dependência química o sistema cerebral de recompensa (SCR) tem ocupado papel central na tentativa de entendimento desse fenômeno multifacetado. Entende-se que o uso de substâncias psicoativas apresentam um mecanismo particular de ação no cérebro, cada droga tem seu mecanismo próprio de ação, e essa ação particular atua de forma direta ou indireta no sistema recompensa cerebral. Mas para que entendamos o sistema cerebral de recompensa, é de suma importância tecer uma linha de raciocínio e entendimento acerca dos mecanismos de ação das substâncias psicoativas. Então, o que é mecanismos de ação? Qual a importância desse entendimento para compreensão da dependência quimica? Os mecanismos de ação são expressões utilizadas pela farmacologia, com intuito de delinear a interação bioquímica específica que determinada droga em uso produz como efeito A transição entre o padrão “recreativo” e a perda de controle envolve reprogramação de circuitos neuronais, nos quais os processos de motivação, os comportamentos de recompensa, a memória, o condicionamento, a habituação, o funcionamento executivo e o controle inibitório, bem como a resposta ao estresse sofre alterações. Sendo assim, essa transição é fortemente influenciada por fatores genéticos, de neurodesenvolvimento e ambientais, que poderão determinar o curso e a gravidade da dependência. 10 farmacológico. Em suma, o mecanismo de ação é o alvo molecular específico, uma enzima, um receptor em que a droga se conecta. Por exemplo, vejamos o mecanismo de ação do álcool na figura abaixo: Neurotransmissão glutamatérgica e GABAérgica Fonte: csmmse.wixsite.com/etanol/dependencia-tolerancia-e-abstinenci Como observado na figura, o mecanismo de ação do etanol ocorre nos neurotransmissores GABA (ácido gama-aminobutírico) com efeitos inibitórios e no Glutamato – com feitos excitatórios, promovendo alterações simultâneas de inúmeras vias neuronais, deprimindo o sistema nervoso central, com profundo impacto neurológico e com repercussões no comportamento e cognição do dependente. A partir do entendimento do mecanismo de ação, nota-se que a compreensão das bases biológicas no uso das substâncias psicoativas, a partir dos avanços científicos, tem evidenciado perspectivas promissoras para o entendimento das alterações neurobiológicas e seu desencadeamento nos aspectos fisiológicos, comportamentais e estados emocionais da condição que torna a dependência quimica tão complexa. C omo já iniciado anterior Você sabia... A quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtorno mental (DSM-V) pondera a premissa neurobiológica dos transtornos relacionados ao uso de substâncias – os critérios diagnósticos são embasados predominantemente em aspectos clínicos comportamentais. 11 mente, o sistema cerebral de recompensa, denominado por James Olds (1950, apud Ornell, Diemen & Kessler) como sistema mesolímbico-mesocortical, se projeta anatomicamente na área tegmental ventral (ATV) para o córtex frontal e estriado ventral (núcleo accumbens). É percebido que este sistema tem participação na busca de estímulos causadores de prazer. Por meio de reforço positivo, há o impulso de manter o prazer repetido vezes, criando-se uma memória específica. No abuso de substâncias psicoativas, os processos fisiológicos de recompensa se alteram, dando lugar para a instalação do ciclo de reforço negativo nas vias de gratificação cerebral. Embora cada substância tenha um mecanismo de ação particular no cérebro e diversos outros núcleos cerebrais serem afetada com o uso da substância, estas acarretam alterações no sistema de recompensa no cérebro. Portanto a ativação desta área, a priori está relacionada aos sentimentos de prazer reforçados por situações de potencial reforçador, e é intensificada como abuso de substâncias que poderão gerar o ciclo da repetição crônica da substância. Sistema de Recompensa Cerebral Fonte: http://aumagic.blogspot.com/2019/04/neurobiologia-mecanismos-de-reforco-e.html?m=1 Segundo Quevedo e Izquierdo (2020) tal processo relatado acima, resulta no aumento direto ou indireto das concentrações de dopamina extracelular no sistema de recompensa, sobretudo no nucleus accumbens, estendendo-se para a amígdala e induzindo os estados excitatórios. A dopamina nesse contexto desempenha papel chave nos processos de aprendizagem e está associada a recompensas e a definição de eventos de potencial gratificante, onde os estímulos desencadeadores de prazer e sistema de recompensa ocorrem pela expressão de dopamina. O aumento de sua concentração sináptica em regiões especifica do cérebro está associado às sensações de prazer e bem estar desencadeada frente a certos comportamentos. 12 No uso das substâncias, observamos uma liberação bastante elevada da dopamina, com intensidade e duração excedente aquelas desencadeadas por reforçadores naturais, ocasionando um desequilíbrio entre os circuitos dopaminérgicos relacionados à recompensa. De acordo com certos estudos científicos, essa possível repetição crônica da atividade da dopamina no sistema de recompensa pode promover um desequilíbrio neuroquímico, conduzindo a uma homeostase alterada ao gerar neuoadaptação estruturais e funcionais permanentes a neuroplasticidade cerebral. Vimos que a dependência quimica é caracterizada por sintomas fisiológicos, comportamentais e cognitivos. Mas quais seriam as principais fases do transtorno relacionado à substância e suas alterações neurobiológicas? Observamos que o uso da substância psicoativa gera um padrão patológico e mal adaptativo de uso, propiciando a continuidade do consumo mesmo na existência de sintomas negativos. Do ponto de vista clinico, percebemos que os elementos de impulsividade e compulsividade produzem ciclos que envolvem a compulsão em conseguir a usar a substância. Nota-se a perda de controle sobre o uso com evidente surgimento de sintomas Você sabia... Os autores Volkow e colaboradores sugerem a presença de diferenças marcantes em circuitos cerebrais nos pacientes com dependência quimica. O modelo proposto por eles é de que além dos circuitos de recompensa, os de memória, condicionamento, controle executivo e motivação estão envolvidos na dependência de sustâncias. 13 negativos quando o consumo não ocorre. Tais sintomas são: disforia, irritabilidade e ansiedade. Como conseqüência do uso agudo e impulsivo, o ato pode se tornar compulsivo e, assim, desenvolver o uso crônico, a fissura, a tolerância e a recaída. Este processo pode ser resumido na figura abaixo Neurocircuito e Neurotransmissores Fonte: Livro Neurobiologia dos transtornos psiquiátricos Observa-se na figura acima que o uso agudo e impulsivo passa por três fases, são elas: Compulsão para busca e obtenção da substância, intoxicação e perda do controle sobre o consumo, no qual envolve principalmente a rede ventromedial e o sistema de recompensa; Alteração clinica e estados emocionais negativos, quando limitado o acesso a substância. Envolve a rede da amígdala estendida e o sistema cerebral de estresse; Preocupação e antecipação. Envolve rede de saliência e o sistema cognitivo. Na etapa de compulsão e intoxicação o sistema de recompensa corresponde à rede mesocorticolímbica, sendo dividida em dois subsistemas: mesolímbico e mesocortical. O sistema mesolímbico ativa o estriado envolvendo o septo, a amígdala e o hipocampo, estando associados aos sistemas de gratificação, processos de antecipação e aprendizado de recompensas. Já o subsistema mesocortical, inclui além do estriado, o córtex pré-frontal medial, giro do cigulo, córtex orbitofrontral e córtex perirrinal. Embora essas áreas estejam 14 associadas às funções executivas, elas possuem papel importante no processamento da recompensa quanto no planejamento do comportamento aprendido e direcionado a metas. Nota-se que a exposição do indivíduo repetidamente gera a construção do reforço positivo. No abuso das substâncias o cérebro identifica as pistas ambientais associados ao uso da substância e as transforma em sinais preditivos de recompensa, causando sensação de gratificação mesmo ante de recebê-la (antecipação da recompensa). Com o pareamento dos sinais e recompensa, resultando em “Gatilhos”, quando ativados estimulam os neurônios dopaminérgicos a emitirem uma reposta frente ao estimulo exposto mesmo antes da recompensa ser suscitada. Essas respostas ficam gravadas no cérebro modificando o comportamento do indivíduo mesmo após a interrupção do efeito da substância. O armazenamento destas repostas ocorrem devido a duas classes de mecanismos moleculares, adaptações homeostáticas (papel na tolerância, dependência e na abstinência da substância) e aprendizado associativo (papel relacionado na recaídas). Na etapa de abstinência e disforia, podemos entender que a supressão dopaminérgica e exposição crônica a picos elevados de dopamina reduzem a ativação da serotonina, aumentando assim o sistema cerebral de estresse por meio dos hormônios. Com a progressão da abstinência, outros hormônios relacionados ao estresse são recrutados ocasionando sintomas como angústia, disforia, insatisfação e anedonia. Nota-se que quando o individuo torna-se abstinente por um período, a disforia induz o comportamento de busca da recompensa a fim de amenizar os efeitos causados pela privação da substância. Assim, um indivíduo que fazia uso da substância na busca da euforia, nessa etapa buscará o alívio da disforia, reforçando a dependência do uso. Na terceira etapa preocupação, antecipação e fissura, vemos que o comportamento aprendido, tanto pela sensação agradável como pela sensação desagradável, é totalmente esperado no transtorno de substâncias. Nessa etapa, a saliência ao estimulo pareado no uso da substância se intensifica exigindo recursos de controle no processo de tomada de decisão, no qual o mecanismo neurobiológico gera um sistema de “vá/não vá” em busca da recompensa. Veja que esse sistema influência intimamente as funções cognitivas, como direcionamento de metas e flexibilidade cognitiva. A partir desse exposto, notamos que as alterações cerebrais ocasionadas pelo uso de substâncias resultam não apenas na intensificação do desejo de usar (fissura), mas também na capacidade do individuo resistir à tentação, gerando um novo episódio de compulsão e intoxicação, iniciando assim o ciclo do transtorno relacionado ao uso de substâncias. 15 Vimos neste tópico de estudo, à introdução da neurobiologia dos transtornos de uso de sustâncias psicoativas, a fim de elucidar pontos importantes para a compreensão deste fenômeno complexo e multifacetado. Tais informações sobre os efeitos neurobiológicos e potenciais mecanismos fisiopatológicos da dependência química, nos trazem reflexões importantes acerca das esferas enigmáticas dos sistemas cerebrais que ocorrem na dependência quimica e sua repercução na vida e funcionalidade do sujeito. É importante destacar que o período pré-mórbido presente nos usuários crônicos de substâncias é considerado uma predisposição do sujeito para o uso. Tentar compreender a dependência quimica é manter o olhar no individuo em sua forma biopsicossocial respeitando as dinâmicas envolvidas na inter-relação desses aspectos. Neuropsicologia e Dependência Química “Um homem pinta com seu cérebro, não com suas mãos” Michelangelo Buonarroti Pontos chaves Compreensão da importância da avaliação neuropsicológica na dependência quimica. O uso de substâncias psicoativas altera o funcionamento cognitivo. Os comprometimentos cognitivos parecem interferir na adesão ao tratamento.Como já discorrido anteriormente o transtorno por uso substâncias é entendido como uma doença crônica que afeta as funções cognitivas com repercuções na funcionalidade e adesão ao tratamento. Compreender os aspectos de comprometimento neuropsicológico pode auxiliar na construção de recursos para um tratamento mais eficaz e individualizado, contemplando as limitações e potencialidades cognitivas apresentadas pelo dependente químico. Nesta perspectiva a Neuropsicologia surge com objetivo de estabelecer relações entre o cérebro e comportamento humano, por meio de processos cerebrais que podem se observados direta ou indiretamente. Pode-se observar que ao longo da história da humanidade, o homem vem tecendo estudos na tentativa de explicar os processos cerebrais. Na antigüidade clássica, Hipócrates (século V a.C.) já se referia ao cérebro como o órgão do intelecto. Galeno, no século II a.C., em seus estudos, enfatizou que o encéfalo era formado de duas partes: o cerebrum, 16 relacionado às sensações, e o cerebellum, relacionado ao controle dos músculos, sendo que os nervos eram condutos que levavam os líquidos vitais ou humores, permitindo que as sensações fossem registradas e os movimentos iniciados. Já Descartes, referia-se à glândula pineal como centro da alma. Gall, ao final do século XVIII, discorreu que as faculdades humanas estariam localizadas em diferentes órgãos e centros cerebrais e que as atividades intelectuais estariam situadas nos dois hemisférios cerebrais. Com isso, surgiu a base da frenologia e da corrente localizacionista. Broca, em 1861, em seus estudos observou que um paciente com hemiplegia à direita era capaz de compreender a linguagem falada, porém produzia apenas uma única palavra desprovida de significado. As publicações de Wernicke, em 1874, mostraram que lesões nas porções posteriores da região temporal superior provocavam alterações de linguagem, sendo um tipo de afasia na qual a compreensão estava prejudicada. No século XX, Luria desempenhou importante papel para o desenvolvimento da Neuropsicologia, no estudo das funções cognitivas, além do trabalho em conjunto com Vygotsky, em relação aos mecanismos cerebrais envolvidos e desenvolvidos com a educação formal, assunto que é estudado até os dias atuais. Mas, então... o que é Neuropsicologia? Atualmente, a Neuropsicologia é um campo intermediário entre as neurociências e as ciências do comportamento, desenvolvido a partir da neurologia e da psicologia. Nota-se que com o constante avanço tecnológico dos exames de neuroimagem permitiu que a investigação neuropsicológica contribuísse para o entendimento das relações de complexibilidade entre as estruturas cerebrais e o comportamento. Com a expansão do conhecimento, e o avanço nas pesquisas científicas, a Neuropsicologia nas últimas décadas vem sendo mais conhecida no cenário da sociedade. Por ser uma interface dentro neurociência e psicologia, podemos ver os seguintes campos de atuação do profissional psicólogo: clinica, hospitais, pesquisa e docência, centro de reabilitações, juizados, e áreas onde há a busca do entendimento da entre o cérebro e o comportamento e suas repercussões na vida das pessoas. 17 Observa-se que o Neuropsicólogo busca o entendimento das relações dos processos cerebrais/comportamento através do método de avaliação, investigação de hipóteses, para assim desenvolver um plano de tratamento para o paciente. Mas qual seu objeto de estudo? Quais os domínios cognitivos avaliados pelo Neuropsicólogo? O Neuropsicólogo debruça seus estudos na compreensão da cognição humana. A cognição é a expressão de um conjunto de processos cerebrais complexos, responsáveis pela elaboração do conhecimento que o ser humano adquire e necessita ao longo de seu desenvolvimento. Dessa forma, estamos falando sobre funções cerebrais, das quais podemos destacar a atenção, a memória, a linguagem, as funções executivas, as funções visuoespaciais e praxias e a percepção. As funções cognitivas são habilidades desempenhadas em várias áreas cerebrais, que trabalham de forma cooperativa por meio de vias de conexão neuronal. De forma, serão destacadas algumas funções. A atenção é a capacidade pelos quais o organismo se torna receptivo aos estímulos internos e externos. Proporciona habilidades que orientam o organismo a mudar o estímulo, trocar o foco e/ou sustentá-lo, inibindo estímulos internos. Este constructo tem um papel fundamental na realização das nossas atividades diárias, tendo a dependência do interesse e a necessidade da realização de determinada tarefa, como caracteriza primordial. A memória consiste na capacidade de adquirir (aquisição), armazenar (consolidação) e recuperar (evocação) informações. A memória não é um sistema único e se divide em dois tipos: memória de curto prazo (ou operacional) e memória de longo prazo. As funções executivas permitem ao homem desempenhar, de forma independente e autônoma, atividades dirigidas a um objetivo específico de estreita relação com o comportamento humano. Essas funções englobam ações complexas que dependem da integridade de vários processos cognitivos, emocionais, motivacionais e volitivos, os quais estão intimamente associados ao funcionamento dos lobos frontais. Desse modo, as funções executivas abarcam processos como planejamento, controle inibitório, tomada de decisões, flexibilidade cognitiva, memória operacional, que categorização, fluência e criatividade. 18 Avaliação Neuropsicológica consiste em um processo investigativo, sob a perspectiva quantitativa e qualitativa, que por meio de ferramentas padronizadas (de acordo com o SATEPSI), testes neuropsicológicos com evidências de validade na comunidade científica, observação clinica, entrevista e anamnese, visa investigar a relação entre o funcionamento cerebral e o comportamento do sujeito que está sendo avaliado. A Praxia é a habilidade de idealizar e executar um ato motor normalmente gestual, tratando-se do componente cognitivo do comportamento motor. A percepção é a capacidade de reconhecer, organizar e dar significado a um estímulo vindo do ambiente através dos órgãos sensoriais. Já a linguagem é definida através dos processos biológicos e sociais, que exprimem seu caráter essencial de favorecer a adaptação do individuo ao meio. A partir do entendimento dos constructos cognitivos, iremos entender o conceito da avaliação neuropsicológica, que segue logo abaixo: Portanto a avaliação neuropsicológica no contexto da dependência quimica, busca identificar déficits cognitivos, extensão e gravidade, bem como as funções que se encontram preservadas. O conhecimento das alterações cognitivas decorrentes do uso de substâncias é fundamental para o entendimento do processo de dependência desses indivíduos. Visto que as substâncias psicotrópicas são aquelas que atuam sobre o cérebro, alterando de alguma maneira o psiquismo. Com isso, pode-se observar em usuários de substâncias o aparecimento de comportamentos inadequados ou ineficientes com a manifestação de prejuízos no funcionamento. Nota-se que o estudo nessa área é um desafio, visto que existem diversas dificuldades metodológicas para a realização de pesquisas nessa área, como as variáveis do tipo de testes neuropsicológicos utilizados, intervalo entre a última vez que a substância psicoativa foi 19 consumida e o momento da avaliação, efeitos do uso de outras substâncias, presença de Comorbidades psiquiátricas e tempo e intensidade do uso da substância. Pesquisas cientificas relatam, que o uso das drogas podem alterar o funcionamento cognitivo, com repercução na eficácia da proposta de tratamento, visto que as funções mais comprometidos no uso referem-se as funções executivas. As alterações nesse domino cognitivo denotam incapacidade para utilizar conhecimentosespecíficos em uma ação apropriada, dificuldade de mudar de um conceito para o outro e alterar um comportamento depois de iniciado, dificuldade em integrar detalhes isolados e de manipular informações simultâneas. Sendo assim a identificação precoce das alterações cognitivas possibilita o aumento das chances de adequar uma intervenção ao dependente químico. Além disso, auxilia no complemento do diagnóstico, esclarecendo possíveis dificuldades que o indivíduo possa enfrentar para se manter abstinente ou evitar uma recaída. MÓDULO II– Diagnóstico e classificação dos transtornos relacionados ao uso de substâncias. Etiologia, critérios diagnósticos e classificação “O diagnóstico não é o fim, mas o começo da prática” Martim H. Fischer Pontos chaves Os modelos etiológicos existentes são teorias com embasamento científico que objetivam a busca da compreensão dos motivos e da manutenção do uso das substâncias psicoativa; Devido à complexibilidade da dependência quimica, não existe um modelo etiológico que consiga por si só abarcar a dinamicidade dos aspetos que compõem a dependência de sustâncias psicoativas; A característica essencial do transtorno por uso de substância consiste na presença de um agrupamento de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos indicando o uso contínuo pelo indivíduo, mesmo mediante ao comprometimento significativo relacionado a uso da substância; A triagem, ou rastreamento sobre o consumo de drogas deve incluir uma investigação sobre o padrão consumo, assim como uma avaliação de sua gravidade. 20 Os modelos etiológicos são teorias com fundamento científico, construídas com propósito de explicar e orientar as observações dos autores sobre o fenômeno da dependência química, com certa predição deste fenômeno para assim fundamentar as intervenções, na tentativa de explicar os motivos do primeiro episódio de consumo, da permanência do uso ocasional, da manutenção de uso, do surgimento de padrão de uso nocivo, e por fim a compreensão do surgimento da dependência. Dentre os modelos etiológicos, podemos destacar: modelo moral, modelo de temperança, modelo de degenerescência neurológica, modelo de aconselhamento confrontativo, modelos naturais, modelos biológicos, modelos psicológicos, modelos espirituais, modelo de saúde publica e ecletismo informado. Um dos primeiros modelos etiológicos foi o modelo moral criado na tentativa da sociedade contemporânea de entender e controlar o uso de substâncias psicoativas, enfatizando a escolha pessoal como fator de causa primordial. Nota-se que nesse modelo é uma reedição do pensamento acerca do uso excessivo do álcool desde a antiguidade clássica. No modelo de temperança a embriaguez era considerada uma doença, no qual gerava perda de controle e comprometimento do equilíbrio corporal. Nesse modelo a intensidade do consumo variava ao longo de um continuum de gravidade, na qual os problemas ocorriam ao longo do tempo. Já modelo de degenerescência neurológica, apresentou pensamentos revolucionários para época. O termo “alcoolismo” foi utilizado pela primeira, na sociedade, e sendo compreendido como uma doença de fato. Neste modelo havia pouca atenção para os aspectos comportamentos, o foco de tratamento era voltado para internações prolongadas e tratamentos físicos, como tônicos banhos a vapor e estimulação farádica até o uso de sanguessugas. O modelo de aconselhamento confrontativo defendia a idéia que o dependente era um indivíduo que recebera na vida muitas provisões sem aprender a compartilhar quando adulto. Desta forma, o método enfatizava convivência comunitária, hierarquizada entre os dependentes utilizando da terapia denominada “choque”, ou seja, uma confrontação agressiva como cerne da intervenção. 21 Os modelos naturais enfatizavam que o homem possui uma tendência inata e universal ao consumo de drogas, tendo como percepção do dependente, um sujeito fraco diante da sua incapacidade de se controlar, responsabilizando-o por suas escolhas e por seus excessos, com evidentes vieses sociais e culturais neste modelo. O olhar para o aspecto orgânico com enfoque nas alterações físicas e psíquicas da dependência quimica surge os modelos biológicos como fonte de estudo e compreensão da predisposição biológica para o desenvolvimento do uso indevido de substâncias psicoativas, considerando os estágios da dependência quimica. Dentro desse modelo surge o modelo constitucional e as explicações neurobiológicas e genéticas que trouxeram avanços incontestáveis para o entendimento atual da dependência química. Nos modelos psicológicos as teorias psicológicas estão focadas no individuo, bem como nos processos que os conduziram ao consumo desregrado das substancias psicoativas. Nesse modelo, a psicoterapia é uma das técnicas utilizadas com intuito de compreender a natureza e qualidade da experiência individual que aumentam a probabilidade e o risco do desenvolvimento da doença. Dentre as teorias psicológicas abarcadas dentro desse modelo se destacam: o modelo caracteriológico e determinista, as explicações psicanalíticas, a teoria sistêmica, teorias comportamentais e a teoria cognitivo-comportamental. Já os modelos sociais são embasados pelo referencial teórico da terapia cognitivo- comportamental, bem como no treino das habilidades sociais. Dentro desse modelo temos a teoria de controle social como outra vertente existente. No modelo espiritual a espiritualidade é uma característica única e responsável pela ligação do individuo com o universo e com os outros, estando para além da religião e religiosidade. Este modelo propõe que há uma possível influência positiva da espiritualidade na recuperação dos dependentes químicos. Principais exemplos são os Alcoólicos Anônimos (AA) e congêneros. O modelo de saúde pública correlaciona a interação entre sujeito, ambiente e substância psicoativa, visando à explicação do fenômeno da dependência química. Observa-se a construção de uma inter-relação dos aspectos de aprendizado social, controle social, psicológicos, estados biológicos e espirituais do individuo com intuito de entender a suscetibilidade ao uso e o processo de evolução do consumo. 22 E por fim, o modelo ecletismo informado assim como o modelo de saúde pública reúne os fatores biológicos, psicológicos, sociais e da própria substância envolvidos na gênese do uso indevido das drogas. Esse modelo entende que cada indivíduo requer uma abordagem especialmente desenhada e que leve e consideração seu estágio de tratamento e suas idiossincrasias. Critérios diagnósticos e classificação Segundo Marque (2017): “Qualquer avaliação inicial em saúde tem como objetivo coletar dados do indivíduo para identificá-lo social, demográfica e economicamente, pesquisar sobre seu estado de saúde e suas possíveis alterações, investigar a sua história clínica, seus antecedentes familiares e, então, desenvolver a hipótese diagnóstica e planejar seu cuidado”. (pg. 83) Para se realizar uma avaliação com triagem específica no uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas existem algumas considerações a serem adotadas pelos profissionais de saúde na execução do processo de triagem, são elas: Não há uso seguro de drogas psicoativas; O uso nocivo e a dependência de álcool e outras drogas são poucos diagnosticados; As complicações clínicas ocorrem com maior freqüência; A demora do diagnóstico impacta negativamente no prognóstico; Evidente deficiência na formação e conhecimento dos profissionais que atual na área. Nota-se que a entrevista inicial deve ser conduzida de fora clara, simples, breve, flexível e ampla, e apenas ao final focar os hábitos do indivíduo em relação ao seu uso ou abuso de substâncias psicoativas. Na entrevista inicial os instrumentos como escalas e questionários podem ser utilizadosa fim de contribuírem para a construção do diagnóstico clínico, e corroborarem na consistência da intervenção implementada com possíveis melhoras a adesão no tratamento. Nos serviços especializados, assim como o diagnóstico das complicações, comorbidade psiquiátricas, a avaliação terá um enfoque mais aprofundado, pois a complexibilidade do diagnóstico propõe maior elucidação dos aspectos clínicos para se estabelecer a construção de um tratamento adequado e eficaz. 23 Observa-se, que de acordo com a literatura cientifica atual, existe uma freqüência de sintomas que são considerados sinalizadores do uso problemático de drogas psicoativas, observados ao longo da história do problema atual e durante o exame psíquico (história do problema até queixa atual –anamnese completa), logo após o exame físico, realizado por um médico especialista. É de suma importância dar enfoque na pesquisa sobre o inicio do uso e outros eventos correlacionados, a saber, o último uso, quantidade, vias de administração da substância psicoativa, ambiente, etc. Se Liga!!! Nota- se que além dos sintomas relatados acima, há o esquadrilhamento dos sintomas físicos observados durante o exame físico realizado pelo médico especialista em álcool e outras drogas, são eles: Tremor leve – sugestivo de uso de diferentes substâncias; Pressão arterial lábil – sugestiva de síndrome de abstinência de alcool, nicotina, cocaína; SINTOMAS SINALIZADORES: Distúrbio do sono; Depressão; Ansiedade; Humor Instável; Irritabilidade exagerada; Disfunção sexual; Problemas gastrintestinais; Alterações da pressão arterial; História de traumas e acidentes freqüentes; Alterações da memória e da percepção da realidade; Faltas freqüentes no trabalho ou na escola ou diante de compromissos 24 Taquicardia e/ou arritmia cardíaca – uso de estimulantes ou síndrome de abstinência; Aumento do fígado; Irritação das conjuntivas – sugestiva de uso de maconha, crack, álcool, nicotina; Irritação nasal; Odor de álcool; Odor de maconha ou nicotina nas roupas; “Síndrome da higiene bucal”, disfarce do odor de álcool ou tabaco. Uso freqüente de colírio ocular. Dentro dessa perspectiva, se o indivíduo se mantiver colaborativo, com a percepção que um novo processo se inicia, o diagnóstico relacionado ao uso de drogas psicoativas poderá ser mais bem realizado. Você sabia... Oito etapas a ser seguida na apresentação do Diagnóstico para o paciente: 1. Clareza dos critérios positivos e /ou negativos; 2. Explicação do método adotado; 3. Enfatizar que o problema não é culpa do individuo; 4. Definir com o individuo a responsabilidade da etapa seguinte; 5. Apresentar o plano de tratamento mínimo ou encaminhamento; 6. Sugerir participação familiar no tratamento; 7. Planejamento do retorno; 8. Rastrear os problemas relacionados ao uso das drogas. 25 Outro fator importante a se manter durante a entrevista é o estabelecimento de um vinculo com o individuo, a fim de facilitar a colaboração do individuo, a adesão e efetividade ao tratamento. Lembre-se que para cada indivíduo, haverá a construção de um plano terapêutico único e individualizado, conhecido com Plano Terapêutico Singular, compatível com o grau de sua problemática. Segundo a OMS, o abuso ou a dependência de substancias é entendida como um uso nocivo como “um padrão de uso de substâncias psicoativas e psicotrópicas que esteja causando dano à saúde.” (Marques, 2017) Segundo o CID-10, os critérios para o uso nocivo das substâncias psicoativas são: J á de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM V) o diagnóstico de um transtorno por uso de substância baseia-se em um padrão patológico de comportamento relacionado ao uso, levando a comprometimentos ou sofrimentos clinicamente significativos, manifestados pelo menos dois critérios, ocorrendo durante um período de 12 meses. Podem apresentar uma gama de a gravidade, desde leve a grave. Uma gravidade leve sugere a presença de dois a três sintomas; moderado, por quatro ou cinco sintomas; e grave por seis ou mais sintomas. A síndrome de abstinência (critério 11) ocorre quando as concentrações de uma substância no sangue ou tecidos diminuem em um individuo que manteve uso intenso O diagnóstico requer que um dano real tenha sido causado à saúde física e mental do usuário; Presença de intoxicação aguda ou a “ressaca” não são evidências suficientes do dano a saúde requerida para codificar uso nocivo; Padrões nocivos de uso são com freqüência criticada por outras pessoas e estão associados às conseqüências sociais diversas, não são suficientes para evidenciar o uso nocivo; O uso nocivo não deve ser diagnosticado se a síndrome de dependência, um transtorno psicótico ou outra fora específica de transtorno relacionado ao uso de drogas ou álcool estiverem presentes. 26 prolongado, no qual o sujeito busca consumir a substância para aliviar os sintomas da abstinência. A fim de melhor organizar os critérios diagnósticos propostos pelo DSM V, segue a tabela abaixo: CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS DOS TRANSTORNOS RELACIONADOS A USO DE SUBSTÂNCIA – DSM V Critério A Baixo controle, deterioração social, uso arriscado e critérios farmacológicos Critério 1 Substância consumida em quantidades maiores, ou por um tempo mais longo do que pretendido. Critério 2 Desejo persistente de reduzir ou regular o uso da substância com esforços malsucedidos. Critério 3 Muito tempo gasto para obter a substância ou na recuperação de seus efeitos. Critério 4 Fissura ou forte desejo em usar a substância. Critério 5 Uso recorrente da substância pode resultar no fracasso em cumprir obrigações no trabalho, escola ou no lar. Critério 6 Mesmo mediante os prejuízos sociais e interpessoais persistentes, a continuidade do uso da substância é mantida. Critério 7 Abandono ou redução de atividades profissionais, sociais ou recreativas por conta do uso da substância. Critério 8 Uso recorrente da substância em situações que apresentam perigo para integridade física do indivíduo. Critério 9 Uso mantido apesar da consciência de ter um problema físico ou psicológico persistente ou recorrente, que tende a ser causado pelo uso da substância. Critério 10 Tolerância definida pelos seguintes aspectos: a. Necessidade de quantidades progressivamente maiores para alcançar o efeito desejado; b. Efeito acentuadamente menor com o uso continuado da mesma quantidade da substância. Critério 11 Abstinência manifestada por qualquer um dos seguintes aspectos: 27 a. Síndrome de abstinência característica do uso da substância de acordo com os critérios propostos pelo DSM V para a síndrome de abstinência de cada substancia usada; b. Substância utilizada para aliviar ou evitar os sintomas de abstinência. É importante ressaltar que a dependência de substâncias é um fenômeno que se caracteriza por padrões diferenciados de consumo. Pacientes dependentes químicos podem apresentar diversos graus de consumo, desde um consumo que no momento não gere prejuízos evidentes, passando por níveis que afetam determinados contextos da vida do indivíduo, até chegar a padrões que prejudicam intensamente sua vida, o que podemos considerar um nível grave de dependência. Mesmo o paciente tratado e em determinado momento “abstinente” do uso de determinada substância ainda é dependente químico, embora não esteja dependente de uma substância específica naquele exato momento. A equipe que acompanha o dependente químico, deve estar atento a esse padrão de consumo, a partir dessa observação elaborar um plano de tratamento que atenda às necessidades específicas daquele paciente e não utilizar um modeloque chamamos de tamanho único. Devem-se evitar posições radicais, não diagnosticando o paciente à luz dos critérios diagnósticos puramente, mas compreendendo os sistemas diagnósticos à luz do paciente que temos à nossa frente e de sua história, pois a partir desse olhar, o planejamento do tratamento será orientado de forma singular a partir das hipóteses levantadas. Comorbidades Psiquiátricas “Pedras no caminho? Guardo todas. Um dia vou fazer um castelo…” Fernando Pessoa Pontos chaves Comorbidade compreendida como a incidência de duas patologias durante o mesmo curso do adoecimento; Teorias desenvolvidas objetivando com intuito de explicar a co-ocorrência dos transtornos relacionados ao uso de substâncias e dos transtornos mentais; Complexidade na construção do diagnóstico entre duas patologias, devido à inespecificidade dos sintomas ou o fato de ser comum tanto para o quadro produzido pela substância (ou pela falta dela) quanto para um quadro primário. 28 Comorbidade é compreendida como a ocorrência de uma patologia qualquer em um individuo já portador de outra doença, com potencialização recíproca entre elas, apresentando capacidade em alterar a sintomatologia, interferindo no diagnóstico, tratamento e prognóstico da primeira doença. No que se refere aos transtornos mentais, o consumo de substâncias psicoativas aumentam a chance do surgimento de outros transtornos, podendo mimetizar, atenuar ou piorar os sintomas físicos, cognitivos, emocionais ou comportamentais de outros transtornos psiquiatricos, tecendo assim certa complexibilidade na construção do diagnóstico. Vista a complexidade na compreensão do surgimento da doença secundária (comorbidade) ou das associações entre duas doenças, ou seja, na tentativa em explicar os principais transtornos associados ao consumo de substância e o impacto dos quadros comorbidos, foram desenvolvidas varias teorias objetivando os principais motivos pelos quais o uso de drogas e dos transtornos mentais geralmente co-ocorrem. Dentre as teorias criadas, temos as seguintes: Na Hipótese da etiologia comum, o transtorno primário e o comórbido seriam apresentações da mesma doença em formas e estágios diferentes resultantes de fatores extrínsecos e intrínsecos associados a uma predisposição genética. Já na Hipótese bidirecional, a presença de um determinado transtorno resultaria no surgimento de outro, ambos se influenciando durante seus cursos. O surgimento do primeiro transtorno causaria fragilidades (vulnerabilidades), facilitando o surgimento do segundo. Hipótese da etiologia comum; Hipótese bidirecional; Hipótese do uso de substâncias secundário ao transtorno psiquiátrico; Hipótese do transtorno psiquiátrico secundário ao do uso de substâncias. 29 Na Hipótese do uso de substâncias secundário ao transtorno psiquiátrico, a condição psiquiátrica causaria sofrimentos que seriam atenuados pelo uso de substâncias, na tentativa de produzir melhoras nos sintomas apresentado pelo transtorno psiquiátrico. Observa-se que na Hipótese do transtorno psiquiátrico secundário ao do uso de substâncias, relata que o consumo da substância antecede o surgimento da doença psiquiátrica. Principais Comorbidades associadas Esquizofrenia Segundo a Classificação internacional de doenças – 10º edição (CID-10), esse transtorno é caracterizado por distorções do pensamento e da percepção, sem mudanças do nível de consciência, e pela presença de afeto embotado ou inadequado. Inicialmente, não ocorrem alterações intelectuais, mas estas podem surgir no decorrer da evolução da doença. A esquizofrenia é uma patologia complexa, crônica e com dificuldades de tratamento próprias, que são exacerbadas quando associadas a quadros de consumo abusivo/dependência de substâncias, ocasionando piora na evolução em comparação com pacientes que não apresentam tal comorbidade. Nota-se que o uso de substâncias associados à esquizofrenia, pode estar atrelados Na tentativa de minimizar os sintomas da doença e os efeitos colaterais dos remédios utilizados; em pacientes suscetíveis, o consumo abusivo de substâncias propiciaria o surgimento da patologia ainda não desperta; ou, por fim, não existiria relação causal entre estas, mas uma coincidência no surgimento dos dois transtornos por apresentarem semelhanças quanto à idade de instalação e à prevalência. Depressão Segundo a CID-10 são caracterizado por humor deprimido, perda do interesse e do prazer e energia reduzida, que resulta em diminuição de atividade, em virtude de maior fatigabilidade. Outros sintomas importantes são: 1. Redução da concentração e da atenção; 2. Redução da autoconfiança e da autoestima; 30 3. Idéias de inutilidade e culpa pessimismo acerca do futuro; 4. Idéias que podem levar a atos autolesivos ou ao suicídio; 5. Alteração de sono; 6. Apetite diminuído. O diagnóstico é feito com a sintomatologia apresentada, envolvendo dois dos sintomas principais e pelo menos dois dos seis itens anteriores por um período mínimo de duas semanas. Observa-se que a droga mais freqüentemente associada ao quadro depressivo é o álcool. Em geral, a depressão antecede o surgimento da dependência do álcool, principalmente em mulheres, porém, na maioria das vezes, é muito difícil determinar o transtorno primário e o secundário, visto que há interferência entre os transtornos depois de instalada a comorbidade. A importância do diagnóstico está em determinar se os sintomas apresentados pelo paciente fazem parte da depressão ou se estão relacionados com o consumo de álcool. É necessária abstinência de pelo menos duas semanas para que seja realizado o diagnóstico, quando, então, os sintomas podem persistir ou haver remissão total do quadro depressivo, mesmo sem a utilização de antidepressivos. Transtorno bipolar O transtorno afetivo bipolar é caracterizado por repetidos episódios de perturbação do humor e dos níveis de atividade, que ocasionalmente estarão relacionados com o aumento da atividade e da energia e com a elevação do humor e, outras vezes, apresentarão redução de energia e atividade com humor rebaixado. A recuperação entre os episódios é completa e tem incidência igual para ambos os sexos, podendo ocorrer em qualquer idade, de crianças até idosos. Os episódios depressivos tendem a durar por volta de seis meses e os quadros de mania duas semanas a quatro meses. O Transtorno Bipolar do humor costuma ser associado ao consumo de drogas/álcool com piora no prognóstico, com maior número de episódios e internações, sendo estas mais prolongadas, além de levar à maior risco de suicídio. No consumo de cocaína há produção de sintomas semelhantes aos dos quadros de hipomania/mania, como agitação, disforia, aumento de energia, pensamento acelerado e grandiosidade, que, contudo, ficam limitados à ação da droga e surgem após consumo recente. 31 Nota-se que as substâncias que estimulam o sistema nervoso central, possuem tendência em produzir, mimetizar e perpetuar um quadro maníaco. Já nos episódios depressivos, observa-se que o consumo de álcool pode aumentar em 15%. Já nos quadros de mania, esse aumento pode ser ainda mais significativo, de cerca de 25%, tornando o diagnóstico das doenças afetivas ainda mais difícil por apresentarem vários sintomas em comum com os quadros relacionados com a substância. Transtornos de ansiedade Alguns estudos indicam que um terço dos alcoolistas apresenta um quadro significativo de ansiedade, com evidências de que 50 a 67% dos alcoolistas e 80% dos dependentes de outras drogas têm sintomas que se assemelham aos do transtorno de pânico, dos transtornos fóbicos ou do transtorno de ansiedade generalizada. Os quadros ansiosos são comumente associados aos transtornos por consumo de drogas. Essa estreita relação pode ser explicada pelo fato deas drogas psicoativas, de modo geral, causarem sintomas de ansiedade por intoxicação com drogas estimulantes do sistema nervoso central ou por um quadro de abstinência a depressores deste sistema. Outras drogas perturbadoras do funcionamento do sistema nervoso central, como a maconha, também podem produzir efeitos como ansiedade, com quadros de pânico transitório. Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade Esse grupo de transtornos caracteriza se por início precoce podendo ser feito na idade adulta, comportamento hiperativo, com desatenção marcante (julgadas com referência as normas apropriadas do desenvolvimento) e falta de envolvimento persistente nas tarefas, além de conduta invasiva nas situações e persistência na duração dessas características de comportamento. Pesquisas associando a esse transtorno e os usos de substâncias têm revelado alto grau de sobreposição e de comorbidade. Estudos prospectivos de crianças, cujos sintomas persistiram na adolescência e na idade adulta, têm demonstrado que estas estão em risco aumentado de consumo abusivo de substâncias, o qual se torna ainda maior se associado a Comorbidades com outras entidades psiquiátricas, como transtorno de personalidade antissocial. 32 Ratto e Cordeiro (2018) relatam que cerca de 33% dos adultos com TDAH têm problemas relacionados com consumo abusivo/dependência de álcool e drogas, entre as quais a maconha é a mais comumente utilizada, seguida de estimulantes e cocaína. O consumo de álcool nessa população, segundo estudo recente, tem representativa prevalência: cerca de 38% das pessoas que apresentaram TDAH na infância. Transtornos de personalidade Segundo o CID-10, são perturbações graves da constituição caracterológica e das tendências comportamentais do indivíduo, ou padrões de comportamentos mal adaptativos e desvios significativos da norma cultural do modo de pensar, sentir, perceber e, particularmente, de se relacionar com os outros. Esses transtornos tendem a surgir no final da infância ou adolescência, mas o diagnóstico antes dos 16 ou 17 anos de idade talvez seja inapropriado. Dentre os transtornos de personalidade com maior prevalência durante no uso de substâncias, destacam-se o Transtorno de personalidade antissocial e transtorno de personalidade borderline. Nota-se que muitos estudos têm documentado a prevalência de transtornos de personalidade e uso de substâncias. A presença de um transtorno de personalidade pode modificar os sintomas apresentados, a resposta terapêutica e o curso da dependência. Transtornos alimentares Anorexia nervosa É um transtorno caracterizado por determinada redução de peso, induzida e/ou mantida pelo paciente, mais comum em adolescentes e mulheres jovens. Sendo necessários os seguintes critérios para o diagnóstico desse transtorno: O peso corporal é mantido 15% abaixo do ideal; Autoimagem distorcida; Ocorre um transtorno endocrinológico generalizado, com várias alterações manifestadas em mulheres, como amenorréia, e em homens, como diminuição de interesse e potência sexuais. Bulimia nervosa 33 É um quadro caracterizado por repetidos ataques de ingestão de grandes quantidades de alimentos com preocupação excessiva relacionado ao peso corporal. Pode ser seqüela da anorexia nervosa (mas o inverso também pode ocorrer) e sua incidência tende a ser semelhante quanto à idade e ao sexo, porém, é um pouco mais tardia. Os critérios diagnósticos para a bulimia nervosa são: Preocupação persistente com o comer e desejo irresistível de comida; Para tentar neutralizar os efeitos de engorda dos alimentos, o paciente auto induz vômitos, abusa de purgante, tem períodos de inanição e utiliza drogas anorexígenas. No caso de pacientes diabéticos, observa-se a negligência no tratamento com a insulina; Existe um medo acentuado em engordar, gerando um limiar de peso, estabelecido pelo próprio paciente, bem abaixo do que se consideraria saudável na opinião de um médico. Diagnóstico Segundo Ratto e Cordeiro (2018) as dificuldades encontradas na realização do diagnóstico estão circunscritas a inespecificidade dos sintomas ou o fato de serem comuns tanto para o quadro produzido pela substância (ou pela falta dela) quanto para um quadro primário. Porém, um tratamento adequado só será possível após um diagnóstico mínimo. Para tanto, podem ser utilizados: anamnese e exames clínicos adequados, questionários padronizados, dados do prontuário e entrevistas aos profissionais que atendem ou atenderam o paciente, entrevistas familiares, análise de amostras de urina e cabelo. Por se tratar de uma população com diferente apresentação de sintomas e evolução, muitos dos tratamentos propostos para pacientes sem comorbidade se mostram impróprios para os que recebem esse diagnóstico. Muitos programas têm sido propostos para auxiliar na conscientização da necessidade de abstinência, adesão ao tratamento e reorganização de redes sociais. Existe uma gama de programas propostos para esses pacientes. Alguns serviços seguem o modelo dos 12 passos dos Alcoólicos Anônimos (AA) e outros oferecem lares abrigados, entre outras opções, porém, nenhum destes se mostrou superior. Nota-se que devido à complexibilidade do tema, alguns tópicos importantes devem ser observados durante a implementação da estratégia mais eficaz durante o tratamento: 34 A abordagem deve ser integrada e com o uso de estratégias de manejo biopsicossocial; Deve haver sinergismo, melhorando o quadro psíquico comum ao quadro de consumo abusivo de substâncias, e redução do risco de recaídas, melhorando a qualidade de vida. Segundo a Associação Brasileira de Estudos de álcool e outras drogas (ABEAD) a melhor abordagem no tratamento de pacientes com Comorbidades devem contemplar a integralidade, visando o tratamento em conjunto de ambas as patologias com abordagens que possam aumentar a adesão e programas psicoeducacionais para atendimento familiar. Deve-se levar em conta a interação do estágio de motivação para o tratamento do transtorno relacionado a uso de substâncias psicoativas e para outra patologia comórbida. Nota-se a importância da utilização de tratamento medicamentoso na fase de desintoxicação e fase inicial do tratamento, o uso de técnicas psicossociais e atendimento familiar e bem como o acompanhamento psiquiátrico. Poliusuários “A arte de ser sábio é a arte de saber o que ignorar”. Anônimo Pontos chaves O uso de mais de uma substância é REGRA para o conceito de policonsumo. A associação de várias substâncias, seja simultânea ou seqüencial, pode produzir sinergia de seus efeitos e apresentações clínicas atípicas. A compreensão do policonsumo auxilia no estabelecimento de intervenções terapêuticas adequadas. O policonsumo de substâncias psicoativas pode ser definido como o consumo concomitante ou consecutivo de diferentes drogas lícitas e/ou ilícitas. O uso de múltiplas substâncias é um padrão que atualmente se constitui mais em regra do que em exceção. A abrangência do termo permite, porém, que diferentes tipos de uso possam ser considerados nessa categoria. Dessa maneira, o poliuso de substâncias pode ser definido sob alguns 35 parâmetros, vistos a seguir. Padrão de poliuso simultâneo é o uso de duas ou mais substâncias em um intervalo de tempo curto o suficiente para que haja interação entre os diversos efeitos psicoativos. Nessa situação, os efeitos de uma substância podem atenuar os efeitos desagradáveis de outra, ou ainda prolongar o efeito de outra substância. Nota-se que o uso das substâncias normalmente inicia-se na adolescência, na qual os usos dessas substâncias costumam ser lícitas, a saber, álcool e tabaco. A evolução para poliuso na adolescência está associada, entre outros fatores, a dificuldades sociais e pouca continência familiar, podendo ser um fator indicativode maior gravidade e maior chance de desenvolvimento de dependência. Nessa fase ocorre o desenvolvimento neuronal do sistema límbico do córtex pré-frontal, com aprimoramento das funções executivas. O controle da impulsividade nessa fase é precário devido a um de desequilíbrio natural entre o desenvolvimento de vias inibitórias e estimulatórias. Um dos princípios mecanismos neurobiológicos da dependência envolve o lobo frontal e o sistema límbico, que tem seus circuitos neuronais alterados com a mediação principalmente dos neurotransmissores, tais como: dopamina, serotonina e norepinefrina. Sendo assim as substâncias podem ser classificada em três classes em relação a sua ação principal no sistema nervoso central: depressoras (álcool, sedativos, hipnóticos, solventes, opioides), estimulantes (nicotina, cocaína/crack, anfetaminas, anfetaminícos) e perturbadoras (maconha e outros canabinoides, anticolinérgicos, alucinógenos naturais e sintéticos). Nessa compreensão, podemos discorrer que a associação de substâncias da mesma classe produz sinergismo de seus efeitos, tanto na intoxicação quanto na exarcebação dos quadros de abstinência. Já a associação de classes diferentes pode produzir metabólicos ativos e tóxicos, alem de apresentações clínicas atípica. Uma pesquisa nacional realizada em 2015 com estudantes entre 13 e15 anos abordou componentes de riscos ente jovens. Os resultados mostraram que o percentual de jovens que já experimentaram bebidas alcoólicas subiu de 50,3% em 2012, para 55,5%, em 2015; já a taxa dos que dos que usaram drogas ilícitas aumenta de 7,3 para 9% no mesmo período. A associação Cocaína/crack e Álcool são bastante prevalentes. Na combinação da cocaína co o álcool os níveis plasmáticos de cocaína e norcocaína reduzem as concentrações de benzoilecgonina e induz a síntese de cocaetileno, que tem alta taxa de distribuição no cérebro/sangue, com meia vida plasmática 3 a 5 vezes maior do que a da cocaína. O 36 cocaetileno possibilita o aumento da duração dos efeitos de euforia, com maior dano renal, cardíaco e no sistema nervoso central. Além disso, os efeitos desagradáveis da abstinência recente de cocaína e crack, denominada crash, são atenuados pelos efeitos do álcool. A ação do cocaetileno sobre a inibição da recaptação de dopamina é mais intensa do que a de cocaína, assim como as ações serotonérgicas. Isso resulta na intensificação dos efeitos psicoativos quando cocaína e álcool são utilizados juntos. As ações do álcool envolvendo as vias dopaminérgicas, a atividade do ácido gama-aminobutírico (GABA principal neurotransmissor inibitório), o aumento da concentração de dopamina e endorfina no nucleus accumbens, ativando as vias mesolímbicas, somadas à inibição da função do receptor de Glutamato, produz uma euforia inicial que é identificada como um dos mais importantes facilitadores (“gatilhos”) para o uso da cocaína, havendo altos índices de comorbidade para abuso das duas drogas. O álcool também atenua a hiperatividade causada pela intoxicação por cocaína, levando muitos dos usuários ao uso seqüencial. No consumo seqüencial ou combinado de Cocaína/Crack e Cannabis, nota-se que esta mescla empregada pelos os usuários é com a finalidade de diminuir a fissura e os efeitos ansiogênicos causados pelo crack. Uma vez atenuada à fissura, o comportamento compulsivo de busca pela droga, torna-se mais controlável, permitindo ao indivíduo uma possibilidade de descontinuar seu uso e tentar retornar as suas atividades diárias. Na Cocaína e Opioides, cerca de 90% dos dependentes de heroína fazem uso regular de cocaína, sendo essa combinação ainda pouco freqüente no Brasil. Um dos mecanismos de ação dos opioides consiste na ativação dopaminérgica do sistema mesolímbico. Tanto a heroína quanto a cocaína exercem efeitos sobre os neurônios dopaminérgicos do nucleus accumbens, no qual ocorrem o reforço positivo e o comportamento de busca pela substância, facilitando o uso associado. A cocaína ameniza os efeitos da abstinência de heroína, o que contribui para aumentar a prevalência de uso concomitante. Uma das conseqüências e um dos indicadores da gravidade da dependência é o comportamento de busca pela droga: os dependentes de heroína que usam cocaína apresentam maior exposição a riscos, tanto por envolvimento com a criminalidade. Nas MDMA e outras substâncias psicoativas, o MDMA, conhecido também como ecstasy, substância que exerce efeitos perturbadores e estimulantes no sistema nervoso central, apresenta efeitos serotonérgicos potentes, e o seu uso concomitantemente com outras substâncias (álcool, maconha e cocaína) pode potencializar riscos de intoxicações. 37 O uso simultâneo de MDMA e etanol mostraram prejuízos nas funções executivas, como atenção e memória. A percepção subjetiva desse prejuízo, porém, foi bem menor em indivíduos que usaram MDMA e álcool se comparados aos que usaram apenas álcool. Os usuários de MDMA costumam fazer uso de diversas substâncias de forma concomitantes, sendo a principal associação é do álcool com benzodiazepínicos, com uso da maconha comum também nesse grupo, que intensifica os sintomas (efeitos) e aumenta o tempo de intoxicação do MDMA. A associação da maconha e MDMA podem causar falhas na memória e aumentar a chance de desenvolvimento de transtornos neuropsiquiátricos. O uso concomitante de MDMA e outros estimulantes também ocorrem com relativa freqüência, embora menor se comparado ao uso concomitante de álcool e maconha. Tanto o MDMA quanto a cocaína e as anfetaminas exercem efeitos estimulantes sobre o sistema nervoso central, por isso o uso concomitante em princípio acentua os efeitos estimulantes de ambas as substâncias. Também eleva o risco de desenvolvimento de dependência. Nota-se que o aumento da sociabilidade, um efeito típico do MDMA, é atenuado pelo uso simultâneo de cocaína. Há, ainda, um aumento do risco de desenvolvimento de sintomas paranoide e alterações de humor, principalmente mania e hipomania, durante a intoxicação. Nota-se que o poliuso de substâncias expõe o usuário a riscos consideráveis. O sujeito tende apresenta maior comprometimento no funcionamento laboral, social e afetivo, além de maiores taxas de abandono do tratamento. Para que a evolução no tratamento aumente, a abordagem terapêutica deve ser realizada sob perspectiva multidisciplinar, atentando para as particularidades do sujeito, e um olhar investigativo no padrão de consumo de substâncias nos diferentes contextos de atendimento, tendo também, associado a avaliação de fatores favorecedores do poliuso e mapeamento das conseqüências físicas, psíquicas e sociais decorrentes do uso. Portanto, o profissional da saúde que se depara com um usuário de múltiplas substâncias deve estar atento a diversos graus de gravidade e atipicidade na apresentação clínica dos quadros. Em suma, o poliuso de substâncias psicoativas é um fenômeno freqüente entre os usuários, em especial entre os que apresentam transtornos relacionados ao uso de drogas, uso nocivo ou dependência. O padrão é variável, assim como as razões que levam o indivíduo a usar múltiplas substâncias, tendo destaque ação neurobiológica da associação das substâncias, aspectos psíquicos e contexto em que está inserido o usuário. 38 Módulo III – Drogas específicas de abuso e dependências. Drogas Lícitas Álcool “Álcool: princípio essencial de todos os líquidos que fazem o homem ficarem com o olho negro”. Ambrose Bierce Pontos chaves Fatores para compreensão da dependência do álcool Morbidades causadas pelo Álcool Transtornos psiquiatricos decorrentes do consumo do álcool. O álcool é um, depressor do sistema nervoso central que, dependendo da quantidade ingerida, causa leve euforia e progressiva sedação, propriedades afrodisíacas. Seu mecanismo de ação atua nos neurotransmissores GABA e noGlutamato, também, segundo estudos científicos recentes, monoamina e do transportador de monoaminas pré-sinápticos. O uso do álcool vem permeando a história da humanidade. Observam-se evidências de consumo desde os tempos pré-biblicos, enviesado pela cultura e costumes da época. O conceito de beber como nocivo começou a ser vinculados a uma condição médica somente após a revolução industrial, meados do século 19, onde as bebidas até então consumidas eram predominantes (vinho e alguns tipos de cerveja) fermentadas. Nota-se, que a partir da revolução industrial a produção de bebidas fermentadas começou a ser produzidas em larga escala, diminuindo seu custo de acesso, e com conseqüente aumento no consumo. Além do aumento da produção, a destilação dos fermentados começou a ser implementada com técnica para aumentar a concentração alcoólica das bebidas. Somando-se todos esses fatores com o fator histórico da urbanização, os perfis das relações sociais começaram a se modificar, aumentando o número de pessoas que passaram a consumir o álcool. O ato de beber é estimulado na maioria dos países do mundo. No Brasil não há política publicas reguladoras do consumo, o que torna o acesso fácil e de baixo custo. Estudos epidemiológicos enfatizam que o consumo de bebidas alcoólicas no Brasil entre os jovens é um importante problema de saúde de pública. O beber em Binge, quando o individuo ingere grandes quantidades de álcool em curto espaço de tempo (homens 5 doses, mulheres 4 doses, 39 em ocasião única, em um período de 2 horas), tem mostrado si um aumento significativo de 31,1% entre os anos de 2006 a 2012. O consumo de álcool é medido por um conceito denominado unidades de álcool. Cada unidade da substância equivale a 10 gramas de álcool puro. Para obter as unidades equivalentes, é necessário multiplicar a quantidade de bebida por sua concentração alcoólica. Na prática, há dificuldades de obter esses valores com precisão, uma vez que existem variedades de bebidas com diferentes apresentações alcoólicas, as quais nem sempre são condizentes ou reveladas no rótulo. Como entender quando o uso do álcool apresenta baixo risco para a pessoa que consome? Para compreender este aspecto, é necessário o entendimento das unidades de álcool. Esse aspecto é calculo através de uma fórmula, como por exemplo, de uma pessoa que bebe três doses de uísque por dia, é preciso considerar os seguintes aspectos: cada dose de uísque tem em média 50 mL, logo, essa pessoa estaria ingerindo 150 mL de uma bebida alcoólica destilada cuja concentração é aproximadamente 40%. Observe a fórmula do cálculo: Imagem: Livro Dependência Quimica, prevenção, tratamento e política públicas. Se uma unidade de álcool equivale a 10 gramas de álcool puro, isso significa que a pessoa do exemplo ingeriu 60 gramas de álcool. Ao longo da semana, essa pessoa ingeriria 42 unidades de álcool, ultrapassando, em grande escala, a faixa do beber de baixo risco. 40 Imagem: Livro Dependência Quimica, prevenção, tratamento e política públicas É consenso entre especialistas que não existe consumo de álcool isento de riscos. Portanto o uso do álcool está associado a diversos problemas, mas qual seria a quantidade de consumo necessária para que isso ocorra? Apesar de essa ser uma questão bastante polêmica entre os estudiosos do assunto, está questão não é claramente respondida. Observa-se na literatura que existe um nível de consumo associado a baixo risco de desenvolver problemas. Esse consumo é diferente para o gênero masculino 21 unidades de álcool no período de uma semana, e para o feminino 14 unidades de álcool também no período de uma semana. A dependência do álcool deve ser entendida como uma doença de caráter biopsicossocial, que se instala por meio de um processo que decorre ao longo de um continuum de uso de bebia alcoólica. Esse consumo pode passar por um padrão de uso de baixo risco, uso nocivo, dependência Leve, dependência moderada e dependência grave, sendo complexo a definição da passagem de um estágio para o outro. De acordo com pesquisas realizadas por Edwards Griffith, existem fatores que estão presentes na síndrome de dependência, nos quais são: estreitamentos do repertório, síndrome de abstinência, alívio dos sintomas da síndrome de abstinência pelo uso, fissura ou craving, evidências de tolerância, saliência do comportamento de busca e reinstalação da síndrome de dependência depois de recaída. Com o consumo crônico do álcool pode-se evidenciar distúrbios físicos por meio de efeitos diretos e indiretos com significativa morbidade nesta população. A identificação dos problemas físicos é fundamental para avaliar a gravidade da situação a fim e promover estímulos que possam influenciar no comportamento de beber. O consumo é muito perigoso com repercuções na saúde física do dependente. Dentre as possíveis morbidades podemos elencar as seguintes: Distúrbios Gastroenterológios; 41 Distúrbios musculoesqueléticos; Distúrbios endócrinos; Câncer; Doenças cardiovasculares; Doenças respiratórias; Distúrbios metabólicos; Distúrbios hematológicos; Distúrbios no sistema nervoso central e periférico; Síndrome fetal alcoólica; Doenças dermatológicas; Supressão do sistema imunológico; Alterações no funcionamento sexual. Além das morbidades físicas aqui apresentadas, alguns transtornos psiquiátricos podem decorrer do uso do álcool, tais como: intoxicação alcoólica aguda, síndrome de abstinência do álcool, convulsões, Delirium tremes, alucinose alcoólica, Transtorno psicótico delirante induzido pelo álcool, intoxicação patológica, Depressão, suicídio, hipomania, ansiedade, danos ao tecido cerebral, ciúme patológico. Para elucidar uma maior compreensão das complicações psiquiátricas, descreveremos as características principais desses transtornos. A intoxicação alcoólica aguda é uma condição clinica passageira oriunda da ingestão aguda de bebidas alcoólicas, com produção de alterações como: embriaguez leve a anestesia e coma, inconsciência em alguns casos, depressão respiratória e, mais raramente a morte. É importante salientar que é pouco provável que uma dose excessiva ponha em risco a vida do dependente em virtude da tolerância desenvolvida ao álcool. A manifestação sintomatológica da intoxicação aguda pelo álcool inclui comportamento sexual inadequado, agressividade, labilidade do humor, diminuição do julgamento critico e funcionamento social e ocupacional prejudicados. A síndrome de abstinência do álcool é um conjunto de sintomas que se manifestam quando as pessoas que bebem excessivamente diminuem ou param. Partindo da gravidade do diagnóstico, é possível classificar o comprometimento em leve/moderado e grave. Considera- se também na avaliação do diagnostico os aspectos biológicos, psicológicos e sociais na definição dos níveis de comprometimento do paciente e o correspondente tratamento a que este deverá ser submetido. O tratamento farmacológico pode incluir flumazenil e naloxona, 42 sendo de inteira responsabilidade do médico a avaliação clínica e a subseqüente terapia medicamentosa de acordo com a necessidade do caso. Vejamos os sinais e sintomas da síndrome de abstinência do álcool (SAA) e encaminhamento terapêutico: Imagem: Livro Aconselhamento em Dependência Química (2018). Nas convulsões, a maioria das crises é do tipo Tônico-clônica generalizada. São uma manifestação precoce da SAA, ocorrendo até 48 h após a interrupção do uso de álcool, sendo associadas à evolução para formas graves de abstinência. Já no Delirium Tremes, forma mais grave de abstinência, seu início é geralmente entre 1 a 4 dias após da interrupção do uso de álcool, com duração de ate 3 a 4 dias. Sua manifestação sintomatológica inclui rebaixamento do nível da consciência com desorientação,
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