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AULA 6 DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS Profª Juliana Bertholdi 2 CONVERSA INICIAL Entendendo que a igualdade é o cerne da realização dos direitos humanos e mola propulsora da realização dos direitos sociais, nesta aula abordaremos a construção dos direitos sociais e políticas públicas que visam tais garantias aos chamados grupos vulneráveis/minoritários. Com esta abordagem, pretende-se contribuir para o desenvolvimento de uma percepção mais crítica da exclusão social destas populações no Brasil, promovendo a consciência da necessidade de redução das desigualdades sociais e combate a todas as formas de preconceitos e discriminação. Nesta aula estudaremos alguns grupos minoritários e as principais legislações e políticas públicas que os envolvem, caminhando para a finalização do conteúdo. TEMA 1 – DIREITOS SOCIAIS, POLÍTICAS PÚBLICAS E MINORIAS Para Alexandre de Moraes, os direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida dos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado Democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal. Na mesma toada, a Declaração Universal dos Direitos Humanos nos traz que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Desconhecido por grande parte da população, o dispositivo legal busca alumiar fato que nos deveria ser óbvio: independentemente de sexo, etnia ou religião, todos os seres humanos merecem, por princípio, os mesmos direitos e garantias. Nesse sentido, os direitos fundamentais brasileiros buscam a mesma tutela da igualdade; a Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu art. 5º caput: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. Percebe-se de pronto o quão fulcral é a igualdade: a palavra aparece em variações por duas vezes no art. que desenha os direitos fundamentais brasileiros. Ela é ponto de partida dos direitos humanos e fundamentais e pressuposto da realização dos direitos da cidadania e realização democrática. 3 Tal princípio é ainda replicado no art. 4º, inciso VIII, que descreve a igualdade racial; no art. 5º, I, que versa sobre a igualdade de gênero; no art. 5º, inciso VIII, que trata da igualdade de credo religioso; no art. 5º, inciso XXXVIII, que trata da igualdade na prestação jurisdicional; no art. 7º, inciso XXXII, que cuida da igualdade trabalhista; no art. 14, que monta a igualdade política; ou ainda no art. 150, inciso III, que dispõe a igualdade tributária. Assim, analisado o princípio da igualdade, por razões metodológicas torna- se fundamental entendermos o que se quer dizer quando tratamos de minorias ou populações vulneráveis. Neste aspecto, desde logo é importante enfatizar que não há consenso acadêmico quanto ao conceito de minorias e mesmo quanto à sua necessidade de aplicação, havendo inclusive autores que questionam a escolha terminológica. Assim, igualmente por razões metodológicas, abordaremos o conceito de minorias mais amplo, conforme a definição do sociólogo Mendes Chaves (1970, p. 149): A palavra minoria se refere a um grupo de pessoas que de algum modo e em algum setor das relações sociais se encontra numa situação de dependência ou desvantagem em relação a um outro grupo, “maioritário”, ambos integrando uma sociedade mais ampla. As minorias recebem quase sempre um tratamento discriminatório por parte da maioria. Há autores, ainda, que estabelecem critérios/elementos para identificação dos grupos minoritários. Tais critérios possuem grande variação; inobstante, alguns repetem-se com bastante frequência, a exemplo da vulnerabilidade, caracterizada pela ausência de suficiente amparo nas estruturas governamentais e legais vigentes, tornando-se especialmente dificultosa a realização dos direitos fundamentais àquele grupo. É importante ressaltar que tal vulnerabilidade jamais é intrínseca, mas sim possui caráter histórico e cultural: em cada região ou país, diferentes grupos podem ser considerados minoritários a depender das estruturas sociais locais, podendo o mesmo grupo ser dominante em determinada sociedade e dominado em outra. Veja-se, por exemplo, os judeus, grupo hegemônico em Israel e minoritário em outros países. O mesmo ocorre com o povo curdo e o povo turco. Assim, o Estado brasileiro prevê políticas públicas desenvolvidas para a promoção da igualdade e pleno exercício da cidadania por estes grupos vulneráveis. 4 TEMA 2 – POVO NEGRO E QUILOMBOLA Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os brasileiros pretos ou pardos representam 54% da população do país. Não obstante, os mesmos dados do IBGE demostram que ainda é grande a desigualdade entre pretos e brancos: três em cada quatro pessoas das 10% mais pobres do país são negras. Em 2015, elas correspondiam a 76% daqueles com renda média de R$ 130 per capita na família (Brasil, 20181). No ano de 2017, a divulgação do Atlas da Violência, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), trouxe mais uma informação preocupante para essa parcela da população: de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Para historiadores e especialistas, esses números podem ser justificados por um fato: a escravidão (Brasil, 20182). Não existem registros precisos dos primeiros escravos negros que chegaram no Brasil, há somente um consenso de que o povo negro sofreu aproximados 3 séculos de escravidão, sendo a tese mais aceita a de que no ano de 1538 Jorge Lopes Bixorda, arrendatário de pau-brasil, teria traficado os primeiros escravos africanos para a Bahia. Os negros escravizados tornaram-se a principal mão de obra em plantações e engenhos, e mais tarde nas vilas, cidades, minas e fazendas de gado. Ademais, o escravo tratava-se de verdadeira riqueza, valorosa propriedade que podia ser vendida, alugada, doada e leiloada, símbolo de poder e prestígio. Entre 1701 e 1810, atingiu-se o apogeu do tráfico escravocrata, quando 1.891.400 africanos foram desembarcados nos portos coloniais. O período foi marcado por inomináveis atrocidades, que remontam desde a privação de alimentação adequada até torturas cruéis. O caminho para a abolição foi percorrido a duras penas, após longa pressão internacional: 1850 – promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que acabou definitivamente com o tráfico negreiro intercontinental. Com isso, caiu a oferta de escravos, já que eles não podiam mais ser trazidos da África para o Brasil. 1865 – Cresciam as pressões internacionais sobre o Brasil, que era a única nação americana a manter a escravidão. 1871 – Promulgação da Lei Rio Branco, mais conhecida como Lei do Ventre Livre, que estabeleceu a liberdade para os filhos de escravas 1 Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/consciencianegra/noticias/negros-ainda-lutam-para- superar-consequencias-da-escravidao>. 2 Idem. 5 nascidos depois desta data. Os senhores passaram a enfrentar o problema do progressivo envelhecimento da população escrava, que não poderia mais ser renovada. 1872 – O Recenseamento Geral do Império, primeiro censo demográfico do Brasil, mostrou que os escravos, que um dia foram maioria, agora constituíam apenas 15% do total da população brasileira. O Brasil contou uma população de 9.930.478 pessoas, sendo 1.510.806 escravos e 8.419.672 homens livres. 1880 – O declínio da escravidão se acentuou nos anos 80, quando aumentou o número de alforrias (documentos que concediama liberdade aos negros), ao lado das fugas em massa e das revoltas dos escravos, desorganizando a produção nas fazendas. 1885 – Assinatura da Lei Saraiva-Cotegipe ou, popularmente, a Lei dos Sexagenários, pela Princesa Isabel, tornando livres os escravos com mais de 60 anos. 1885-1888 – o movimento abolicionista ganhou grande impulso nas áreas cafeeiras, nas quais se concentravam quase dois terços da população escrava do Império. 13 de maio de 1888 – assinatura da Lei Áurea, pela Princesa Isabel3. Após a abolição, seguiram-se ainda décadas de escravidão clandestina e o inegável racismo institucionalizado. Ambas situações deploráveis continuam objetos de combate por parte do governo. 2.1 Movimento negro Os movimentos negros se consolidam no Brasil na década de 1970, durante a ditadura militar, relacionando o resgate da cultura africana às reivindicações periféricas. No ano de 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) lançou seu manifesto, com o seguinte conteúdo: como princípio básico o trabalho de denúncia permanente de todos os atos de discriminação racial, a organização constante da comunidade para enfrentar qualquer tipo de racismo […]. Por essa razão, propomos a criação de centros de luta do movimento negro unificado contra a discriminação racial nos bairros, nas cidades, nas prisões, nos terreiros de candomblé, em nossos terreiros de umbanda, no trabalho, nas escolas de samba, nas igrejas, em todos os lugares onde as pessoas vivem: Centros de Luta que promovam o debate, a informação, a conscientização e a organização da comunidade negra […]. Convidamos os setores democráticos que nos apoiam a criarem as condições necessárias para uma verdadeira democracia racial. O MNU e outras organizações negras tiveram papel fundamental durante a Constituinte de 1988, especialmente por meio de uma convenção nacional em 1986, cuja resolução propôs normas a serem inseridas na nova constituição, tratando de “direitos e garantias individuais, violência policial, condições de vida e saúde, direitos da mulher e do menor, educação, cultura, trabalho, questão da terra e relações internacionais”. 3 Disponível em: <https://www.faecpr.edu.br/site/portal_afro_brasileira/3_IV.php>. 6 A articulação conseguiu, junto a outros movimentos sociais, a formação de uma subcomissão dos negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias. Neste sentido: As principais conquistas inseridas na Constituição foram a definição de igualdade, a proibição de qualquer discriminação racial e o direito ao território. O conceito de remanescentes de quilombos foi introduzido na Constituição de 1988 (hoje, o Movimento Quilombola não aceita esta denominação, preferindo descendentes dos quilombos). A Constituição Federal determina o direito ao território por parte daquelas comunidades que se autorreconheçam como quilombolas e comprovem as Comunidades Quilombolas (Conaq). O Decreto 4.887/2003 regulamentou os procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas. Esse processo está mais atrasado que o dos indígenas e sofrerá igualmente as consequências da PEC 215, se aprovada. Atualmente, apenas 253 comunidades quilombolas contam com o título de propriedade de seu território, número que representa apenas 8% da totalidade estimada de três mil comunidades no Brasil. (Levino, 2017) Desta feita, há de se ressaltar também o movimento quilombola, que luta pelo território e o movimento negro, bem como por políticas de inclusão social, a exemplo das cotas para negros nas universidades e a implementação do Estatuto da Igualdade Racial. 2.2 Legislação e políticas públicas para realização dos direitos sociais da população negra Nosso país possui legislação consolidada e é signatário de diversos tratados internacionais relativos a direitos individuais e coletivos do povo negro. Não obstante, assim como no caso da população indígena, resta evidente que há uma série de deficiências para cumprir a legislação, sendo o racismo um dos principais obstáculos para a efetivação dos direitos humanos em nosso país. Assim, passaremos a discutir as principais leis e políticas públicas voltadas à garantia dos direitos humanos e direitos da cidadania da população negra, buscando sempre uma visão crítica. a. Estatuto de Igualdade Racial (Lei 12.288/2010): em seu art. 1º, a lei determina que o Estado brasileiro deve “garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”. Assim, a legislação tem por escopo tratar dos direitos fundamentais da população negra em áreas como saúde, 7 educação, cultura, esporte e lazer; liberdade de consciência e de crença e livre exercício dos cultos religiosos; acesso à terra e à moradia adequada; trabalho e meios de comunicação4. b. Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir): cunhado para implementar o conjunto de políticas e serviços públicos destinados a superar as desigualdades étnicas no país. Além de implementar ações afirmativas, o Sinapir criou ouvidorias permanentes, garantindo acesso à justiça e à segurança5. c. Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial: o Estatuto da Igualdade Racial determinou a criação da Ouvidoria Nacional para receber denúncias de discriminação racial e racismo e conduzir aos órgãos responsáveis, bem como para acolher sugestões e críticas da sociedade para garantir o cumprimento dos direitos dos cidadãos. A Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial pode ser acessada por diversos meios, disponíveis no website envolvendo o sistema de denúncias do Disque 1006. 2.3 Crime de racismo e injúria racial Dois são os delitos envolvendo diretamente atitudes racistas, sendo fundamental para denunciar conhecer a diferença entre ambos, que possuem conceitos e responsabilidades penais próprias. A diferença entre esses crimes está explicada detalhadamente no Portal da Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial, o qual se replica parcialmente: a. Racismo: a CF/1988, em seu art. 5º, inciso XLII, avalia a prática do racismo como “crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão”. O praticante do racismo, da Lei n. 7716/89, age com o intuito de menosprezar, inferiorizar, de forma genética, determinado grupo étnico, raça ou cor. Não há um destinatário específico. b. Injúria racial: a legislação penal contempla o crime de injúria racial em seu parágrafo 3º do art. 140 como forma de preencher as lacunas deixadas pela 4 Para consultar e fazer o download da íntegra do Estatuto da Igualdade Racial (e outras leis atualizadas e comentadas), acesse o portal da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – Ministério dos Direitos Humanos: <www.seppir.gov.br>. 5Para saber mais sobre o Sinapir, seus objetivos, ações e resultados, acesse: <http://www.seppir.gov.br/articulacao/sinapir>. 6 Para saber mais sobre a Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial, acesse: <http://www.seppir.gov.br/ouvidoria>. 8 Constituição Federal. A injúria consiste em ofender a dignidade e o decoro de determinada pessoa, imputando-lhe qualidade negativa. O parágrafo 3º do art. 140 do Código Penal traz o delito de injúria em sua forma qualificada. Desta feita, a diferença entre racismo e injúria qualificada pelo preconceito de cor está, sobretudo, no elemento subjetivo do agente, que, no primeiro caso, age sem um destinatário específico e, no segundo caso, age para ofender a dignidade e o decoro de determinada pessoa. TEMA 3 – AS MULHERES: VIOLÊNCIAS SIMBÓLICAS E FÍSICAS Maioria numérica no Brasil, atingindo quase quatro milhões de excedentesem 2010 (Alves, 2017, p. 22), as mulheres vêm adquirindo gradativamente maior relevância social e econômica, representando atualmente 43% do mercado de trabalho formal e constituindo a maioria em setores essenciais como saúde e serviços sociais (73,3%), educação (66,6%) e alimentação (57,6%)7. Em 2010, 38,7% dos 57,3 milhões de domicílios registrados no IBGE já eram comandados por mulheres8 (Bertholdi, 2018). A expressiva representatividade da mulher, no entanto, não vem sendo traduzida em direitos: as mulheres brasileiras seguem entre as mais violentadas do mundo. Somos o 5º lugar em número de feminicídios9, possuímos baixíssima representatividade política e seguimos recebendo salários em média 30% menores que os dos homens10. É evidente, portanto, que as mulheres representam grupo que merece maior tutela do Poder Público, constituindo incontestável minoria. 3.1 Legislação Há uma série de legislações e dispositivos esparsos que visam à proteção da mulher, sendo impossível esgotá-los neste tópico. Entre estes mecanismos, destacaremos aqui a Lei Maria da Penha e a Lei de Cotas Eleitorais. 7 IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de Indicadores Sociais, 2016. Disponível em: <https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/pesquisas/pesquisa_resultados.php?id_pesquisa=9>. 8 Idem. 9 Fernanda Matsuda, socióloga e advogada que integrou o grupo responsável pela pesquisa “A violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no Brasil” (Cejus/FGV, 2014). 10 Dados do IBGE disponíveis em: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2018/04/11/desigualdade-salarial-homem-mulher- ibge.htm>. 9 Na seara trabalhista, são amplas as normas jurídicas de proteção à mulher em respeito à proibição de discriminação, proteção à gestação e também à amamentação no ambiente de trabalho, estabelecidas sobretudo nos art.s 389 e seguintes da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). No âmbito penal, há crimes mais severamente punidos quando praticados contra a mulher, em que se destaca o feminicídio (art. 121, IV, CP) e aumentos de pena envolvendo delitos praticados em contexto de violência doméstica. No âmbito eleitoral, destacam as recentes disposições legais e posicionamentos do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) no sentido de buscar a isonomia de gênero nas eleições. 3.2 Lei Maria da Penha Segundo dados coletados pelo Datafolha, uma em cada três mulheres brasileiras já sofreu violência doméstica. Só de agressões físicas, o número é alarmante: 606 mulheres vítimas a cada hora11, sendo 164 estupros por dia. Os dados, divulgados em agosto de 2018, mostram que 22% das brasileiras sofreram ofensa verbal no ano de 2017, um total de 12 milhões de mulheres. Além disso, 10% das mulheres sofreram ameaça de violência física, 8% sofreram ofensa sexual, 4% receberam ameaça com faca ou arma de fogo. E ainda: 3% ou 1,4 milhões de mulheres sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento e 1% levou pelo menos um tiro. A pesquisa mostrou que, entre as mulheres que sofreram violência, 52% se calaram. Apenas 11% procuraram uma delegacia da mulher e 13% preferiram o auxílio da família. Por sua vez, o agressor, na maior parte das vezes, é um conhecido (61% dos casos). Em 19% das vezes, eram companheiros atuais das vítimas e em 16% eram ex-companheiros. As agressões mais graves ocorreram dentro da casa das vítimas, em 43% dos casos, ante 39% nas ruas. A Lei Maria da Penha é o caso clássico de resposta estatal no âmbito dos direitos humanos após pressão internacional: o caso n. 12.051/OEA, de Maria da Penha Maia Fernandes, julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, deu origem à lei 11.340/2013, que leva o nome da vítima e ativista. 11 Dados disponíveis em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/08/brasil-registra-606- casos-de-violencia-domestica-e-164-estupros-por-dia.shtml>. 10 A Sra. Maria da Penha era casada com Marco Antônio Heredia Viveros, seu algoz durante os 23 anos de casamento. Em 1983, o marido tentou assassinar Maria da Penha em duas oportunidades: na primeira vez, por meio de disparos de arma de fogo que a deixaram paraplégica, e na segunda, por eletrocussão e afogamento na banheira da casa do casal. Após a segunda tentativa, Maria da Penha criou coragem para ofertar a denúncia e pôde sair de casa devido a uma ordem judicial. Entretanto, o caso foi julgado duas vezes e, devido a alegações da defesa de que haveria irregularidades, o processo continuou em aberto por anos. Assim, com o apoio da vítima, o Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) realizaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, ocasião em que o Brasil foi condenado e pressionado a apresentar soluções legais e institucionais para violência praticada contra a mulher. Desde então, há todo um sistema à disposição da mulher vítima de violência doméstica, que vem apresentando resultados insuficientes para sanar o problema, mas satisfatórios para contê-lo. Em pesquisa de março de 2015, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostrou que a Lei Maria da Penha reduziu em 10% a projeção de aumento de homicídios domésticos contra mulheres, afirmando que “a LMP foi responsável por evitar milhares de casos de violência doméstica no país”12. No entanto, apesar de a LMP ser compreendida como “um dos mais empolgantes e interessantes exemplos de amadurecimento democrático no Brasil”, a pesquisa demonstrou que a efetividade da lei não ocorreu de forma homogênea no país, devido aos “diferentes graus de institucionalização dos serviços protetivos às vítimas de violência doméstica”13, sendo que o Brasil segue o país que mais mata mulheres no mundo. No Paraná, uma das mais elogiadas políticas públicas alinhas à Lei Maria da Penha se chama “Patrulha Maria da Penha”. 12 “Participação em Foco – Ipea: Lei Maria da Penha reduziu violência doméstica contra mulheres”. Disponível em:<www.ipea.gov.br>. 13 Idem. 11 3.3 Representatividade política Com desempenho medíocre, o percentual brasileiro de participação feminina na política é bem abaixo da média mundial, que é de quase 23%, e da média para as Américas, de quase 28%. Com muito esforço, atingimos 11% de participação no parlamento brasileiro. Assim, também não surpreende que o primeiro banheiro feminino do Senado brasileiro destinado às parlamentares tenha sido inaugurado apenas em janeiro do ano de 2016 (Alegretti, 2017). Nitidamente, os dados percentuais apresentados traduzem desproporção, que demonstra o quanto a pretensa democracia nacional nega às mulheres participação mínima nas tomadas de decisões inerentes ao processo político nas verdadeiras democracias representativas14, em contradição aos próprios fundamentos democráticos e determinações constitucionais. Ao tratar da representatividade política feminina no Brasil, Clara Araújo diz que “a desigual participação feminina nos espaços políticos, particularmente aqueles que exigem representação, está assentada em razões históricas, relacionadas com o processo de exclusão das mulheres como sujeitos políticos de direitos no momento em que o político era institucionalizado na esfera pública”. A autora também analisa que “o background histórico marcou a inserção das mulheres no mundo político” (Araújo, 2001). De fato, histórica e mundialmente, a representatividade política feminina está bastante aquém do desejável. Não por outra razão, organismos internacionais vêm se engajando na divulgação de dados e relatórios sobre o assunto, defendendo, inclusive, a instituição de cotas de gênero para garantirque as mulheres venham a constituir, pelo menos, “minorias críticas”, que constituíram de 30% a 40% dos parlamentos nacionais (Dahlerup, 2017). Atualmente, estima-se que metade dos países se utilizem de algum tipo de cota eleitoral de gênero15, justamente com o escopo de implementação progressiva de políticas de igualdade, proposta por Diamond e Morlino ao tratar da qualidade da democracia. O Brasil não é exceção à regra. A legislação aprovada para melhorar as oportunidades das mulheres de ingressarem na vida política vigora desde 1995, ano em que entrou em vigor a Lei n. 9.100/95, determinando que ao menos 20% 14 Vergo e Schuck apontam que a proposta de democracia paritária surge como marco estratégico ao combate do monopólio masculino no exercício do poder em todas as esferas de tomadas de decisões. In: VERGO, T. M. W.; SCHUCK, E. de. A representação política das mulheres enquanto desafio à qualidade da democracia. V Congresso Uruguaio de Ciência Política, out. 2014. 15 Idem. 12 das vagas de cada partido fossem preenchidas por um dos gêneros. A Lei n. 9.504/1997 (Lei das Eleições) elevou o percentual mínimo de cada gênero para 25%, sendo elevado a 30% nas eleições posteriores, percentagem mantida atualmente. Em adição, no ano de 2009, a reforma eleitoral introduzida pela Lei 12.034 instituiu novas disposições na Lei dos Partidos Políticos (Lei n. 9096/1995), de forma a privilegiar a promoção e difusão da participação feminina na política ao determinar que os recursos do fundo partidário sejam aplicados na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres em ao menos 5% do total repassado. As medidas, no entanto, não vêm impactando como se esperava: há de se questionar a qualidade e eficácia dos métodos e legislações atualmente aplicados, uma vez que as cotas adotadas no sistema brasileiro, como bem anotado por Raquel Preto16 “chamam para o baile, mas não nos tiram para dançar” (informação verbal), permitindo falhas graves que impedem a real participação feminina na democracia e o alcance de uma “maior igualdade” (Sartori, 2017, p. 205). Tal fato fica nítido dos bancos de dados da Justiça Eleitoral: apesar de as cotas estarem em vigor desde 199517, adquirindo o formato atual em 201018, as evoluções vêm sendo bastante tímidas: de 5% de cadeiras no parlamento brasileiro em 1990, passamos para 9,9% em 2016. TEMA 4 – IMIGRANTES E REFUGIADOS Conforme informações e dados da Agência das Organizações das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), o ano de 2017 teve o maior número de pedidos de refúgio no Brasil, totalizando 33.866 pessoas que solicitaram o reconhecimento da condição de refugiado nesse ano: a. Venezuelanos representam mais da metade dos pedidos realizados, com 17.865 solicitações; b. Cubanos – 2.373 solicitações; 16 Anotação da advogada Raquel Preto na VI Conferência Estadual da Advocacia Paranaense, em agosto de 2017. 17 A Lei n. 9.100/1995 prescrevia a exigência do registro de no mínimo 20% de candidaturas femininas por cada partido ou coligação, inaugurando a política de cotas no Brasil. 18Conforme decidido pelo TSE nas eleições de 2010, § 3º do art. 10 da Lei n. 9.504/97, na redação dada pela Lei n. 12.034/2009, estabelece a observância obrigatória dos percentuais mínimo e máximo de cada sexo, o que é aferido de acordo com o número de candidatos efetivamente registrados. Disponível em: <http://temasselecionados.tse.jus.br/temas-selecionados/registro-de- candidato/reserva-de-vaga-por-sexo>. 13 c. Haitianos – 2.362 solicitações; d. Angolanos – 2.036 solicitações. No que concerne à imigração, o IBGE calcula que o Brasil deve chegar em 2022 com cerca de 79 mil imigrantes venezuelanos. Esta população é internacionalmente reconhecida como grupo altamente vulnerável. Após a Segunda Guerra Mundial e com a instauração do sistema das Nações Unidas, criou-se um Estatuto para Refugiados, que em 1951 limitava-se a proteger refugiados europeus, mas em 1967 passou a integrar a todos. Tal convenção deu início ao direito internacional hodierno, que incluiu instituições para migrados e refugiados, separando as categorias em relação à motivação (Aveni, Mello; Gonçalves, 2017, p. 4). O Art. 1 da convenção de 1951 estabelece que é refugiado: toda a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer fazer uso da proteção desse país ou, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país em que residia como resultado daqueles eventos, não pode ou, em razão daqueles temores, não quer regressar ao mesmo. Assim, mais uma vez vemos a reafirmação da já estudada universalidade dos direitos humanos, contemplando migrantes e refugiados. O Brasil aderiu à Convenção dos Refugiados de 1951 em 1960, bem como ao Protocolo de 1967, tomando o conceito ampliado de refugiado estabelecido na Declaração de Cartagena de 1984, que considera a “violação generalizada de direitos humanos” como uma das causas de reconhecimento da condição de refugiado. No processo de redemocratização, foi estabelecido na Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, que o Brasil tem como fundamentos da República a cidadania e a dignidade da pessoa humana, razão pela qual entende-se como abarcada a integral proteção aos refugiados. O Brasil foi ainda pioneiro na América Latina ao elaborar uma lei específica sobre refugiados, a Lei n. 9.474/1997. A chamada Lei de Refúgio estabelece padrões para avaliação das razões de requerimento de refúgio considerando as condições políticas do país de origem do refugiado. 14 4.1 Atualidades Os dados mais recentes foram divulgados pelo Ministério da Justiça na 3ª edição do relatório “Refúgio em números”. Atualmente, os sírios representam 35% da população de refugiados com registro ativo no Brasil, sendo que, do total, 52% moram em São Paulo, 17% no Rio de Janeiro e 8% no Paraná. Além da Lei n. 9.474/1997, uma série de outras políticas públicas vem demonstrando a preocupação estatal com a dignidade humana dos refugiados. Cita-se como exemplo o vestibular promovido exclusivamente para os migrantes com visto humanitário e refugiados que desejam cursar graduação na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Segundo informações do sítio da universidade, para se inscrever no vestibular o candidato precisa apresentar documentos comprobatórios da conclusão de ensino médio e da condição de migrante com visto humanitário ou refugiado, tais como cópia da solicitação de refúgio no Ministério da Justiça ou na Polícia Federal ou atestado reconhecido pelo Comitê Nacional de Refugiados (Conare), do Ministério das Relações Exteriores. Os aprovados deverão fazer o curso de acolhimento linguístico e acadêmico, organizado pelo Projeto Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH). TEMA 5 – CONCLUSÃO Ao longo da presente disciplina, buscamos cumprir o desafio de investigar a interação entre os direitos sociais e as políticas públicas. Explanamos que os direitos sociais têm por objetivo e essência a tutela da igualdade e da liberdade, buscando garantir aos cidadãos condições dignas de vivência, disponibilizando materiais e meios para que se efetive a fruição plena das liberdades individuais. Analisamos como nasceram e evoluem os direitos sociais, no panorama internacional e nacional, estudando sua natureza e os conceitos que os permeiam, introduzindo suas características, formas de positivação e regimes jurídicos. Discutimos, ainda, como o principal desafio à realização dos direitos sociais é justamente a sua eficácia eefetividade, especialmente no que concerne a implementação de seu principal meio de realização: as políticas públicas, responsáveis por fixar de maneira planejada as diretrizes e atitudes da ação do Poder Público perante nossa sociedade. 15 Assim, apontamos como a igualdade é o cerne da realização dos direitos humanos e a mola propulsora da realização dos direitos sociais, destacando a importância de garantias aos chamados grupos vulneráveis/minoritários, abordando as principais legislações e políticas públicas que possuem tal objetivo. LEITURA OBRIGATÓRIA BUENO, M. S. Direito das minorias e as políticas públicas frente aos direitos fundamentais. Revista Direito e Política. v. 2, n. 1, 2007. Disponível em: <https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/rdp/article/view/7565>. Acesso em: 30 abr. 2019. 16 REFERÊNCIAS ALVES, J. E. D. et al. Meio século de feminismo e o empoderamento das mulheres no contexto das transformações sociodemográficas do Brasil. In: BLAY, E. A.; AVELAR, L. (Org.). 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile: a construção das mulheres como atores políticos e democráticos. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 2017. ARAUJO, C. Construindo novas estratégias, buscando novos espaços políticos – as mulheres e as demandas por presença. In: MURARO, R. M; PUPPIN, A. B. (Prgs.). Mulher, gênero e sociedade. Rio de Janeiro: Relume Dumará. FAPERJ, 2001. BULOS, U. L. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2002. DAHLERUP, D. About quotas. Quota Project. Disponível em: <http://www.quotaproject.org/aboutQuotas.cfm>. Acesso em: 30 abr. 2019. KARPSTEIN, C. Representatividade feminina na política e nas cadeias de comando: a meritocracia e o preconceito. Gazeta do Povo, 30 mar. 2017. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e- direito/art.s/representatividade-feminina-na-politica-e-nas-cadeias-de-comando- a-meritocracia-e-o-preconceito->. Acesso em: 30 abr. 2019. MORAES, A. de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. PIOVESAN, F. Temas de direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. SANTOS, B. de S. A construção intercultural da igualdade e da diferença. In: _____. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez. 2008. SARTORI, G. O que é democracia? Coletânea da democracia. 1. ed. Curitiba: Atuação, 2017.
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