Buscar

IMPACTOS DA LEI 13 874 2019 NO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO _A LIBERDADE ECONÔMICA EM FOCO

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 29 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 29 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 29 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Impactos da Lei 13.874/2019 no princípio da função social do contrato: a liberdade econômica em foco
 
 
 
Página 
IMPACTOS DA LEI 13.874/2019 NO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO: A LIBERDADE ECONÔMICA EM FOCO
Impacts of the Law 13.874/2019 on the principle of social function of the contract: economic freedom in focus
Revista dos Tribunais | vol. 1010/2019 | p. 149 - 179 | Dez / 2019
DTR\2019\42283
	
Micaela Barros Barcelos Fernandes 
Doutoranda em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito da Empresa e Atividades Econômicas pela UERJ. Mestre em Direito Internacional e da Integração Econômica pela UERJ. Pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV/RJ. Graduada em Direito pela UFRJ. Advogada. Membro das Comissões de Direito Civil e de Defesa da Concorrência da OAB – Seção RJ. mibbf@yahoo.com.br 
 
Área do Direito: Civil; Financeiro e Econômico
Resumo: Este artigo propõe-se a tratar do princípio da função social do contrato, principalmente tendo em vista as alterações promovidas pela Lei 13.874/2019, a chamada Lei da Liberdade Econômica, de forma a contribuir para a compreensão e aplicação do instituto, inclusive através da comparação com outros que lhe são costumeiramente aproximados pela doutrina, vale dizer, a causa contratual e a perspectiva da análise econômica do direito. Pelo desenvolvimento do trabalho conclui-se pela utilização do princípio da função social como instrumento que reforça o exercício da autonomia privada, promovendo a eficácia dos atos de autonomia sempre que estejam compatíveis com valores socialmente relevantes positivados no ordenamento jurídico brasileiro.
 Palavras-chave:  Função social do contrato – Causa do contrato – Liberdade econômica –Artigo 421 do Código Civil Brasileiro
Abstract: This paper aims to deal with the principle of the social function of the contract, especially in view of the changes promoted by Law 13.874-2019, the so-called Law on Economic Freedom, in order to contribute to the understanding and application of the institute, including through comparison with other institutes which are customarily brought together by doctrine, that are, the contractual cause, and the law and economics perspective. According to the development of the work, it is concluded that the principle of social function is used as an instrument that reinforces the exercise of private autonomy, promoting the effectiveness of acts of autonomy whenever they are compatible with socially relevant values existing in the Brazilian positive Law.
 Keywords:  Social function of the contract – Contractual cause – Economic freedom – Section 421 of the Brazilian Civil Code
Sumário:  
Introdução - 1 Do liberalismo clássico ao comunitarismo - 2 Função social como princípio da teoria contratual contemporânea que atua como intermediador na composição entre interesses individuais e interesses sociais relevantes - 3 Função social na prática: quando incide e a quem atende - 4 Aproximações do instituto - 5 Preocupação com excesso de intervenção e a Lei 13.874/2019 - Síntese conclusiva - Referências bibliográficas
 
Introdução
A função social do contrato está prevista expressamente no artigo 4211 e no parágrafo único do artigo 2.0352 do Código Civil (LGL\2002\400), sendo possível também apontar sua sede na Constituição, seja porque é (entre outros institutos) decorrente do princípio da solidariedade3, este fundante em nosso ordenamento juntamente com os princípios da liberdade e da justiça, seja porque é entendida como desdobramento do princípio da função social da propriedade4, este previsto em nosso ordenamento desde a Constituição de 19465, afinal, o contrato é o meio de circulação de bens proprietários6.
A despeito de sua previsão expressa no ordenamento já há bastante tempo, doutrina e jurisprudência não conseguiram se entender pacificamente sobre de que trata o instituto, e a que fins atende, precisamente, o que contribuiu para historicamente ter havido certa apreensão por parte dos juristas sobre suas potencialidades de uso, e, por conseguinte, para a dificuldade de sua aplicação no ordenamento brasileiro.
Recentemente, com o advento da Lei 13.874/2019 (LGL\2019\8262), a chamada Lei da Liberdade Econômica, o artigo 421 do Código Civil (LGL\2002\400) referente à função social do contrato teve sua redação modificada, podendo gerar expectativa se, antes mesmo de o entendimento sobre o instituto ter sido consolidado com base em sua redação original, não houve importante mudança de rumo, a ponto de sobre ele se projetar nova compreensão.
Este artigo se propõe a contribuir na pavimentação de um caminho para o entendimento e melhor aproveitamento do princípio da função social do contrato. De forma a entender o contexto em que se insere o surgimento do princípio, inclusive permitindo apontar para onde ele pode ir em nosso ordenamento, recorre-se a brevíssimo relato do ambiente histórico do surgimento do instituto.
1 Do liberalismo clássico ao comunitarismo
Evento apontado como marco fundante de boa parte dos sistemas jurídicos ocidentais, a Revolução Francesa pôs fim ao antigo regime e introduziu a perspectiva do Estado (o absolutista) como inimigo, um ente ao qual se contrapor. A partir daí, o liberalismo clássico se desenvolveu, pressupondo liberdade máxima do indivíduo, e a já tão propalada autonomia da vontade.
Superada uma primeira fase de visão extremada do individualismo, com exacerbação da vontade, e ante a constatação de que também a liberdade, se não ponderada em face de outros valores, tem potencial de gerar abusos do indivíduo contra o indivíduo, surgem as chamadas críticas comunitaristas, em que a atenção à coletividade ganha relevo.
O comunitarismo, como visão que flexibilizou a perspectiva liberal clássica, cresceu em múltiplas vertentes, das mais radicais, que levaram a movimentos autoritários (ditaduras e perdas de liberdades), a outras mais brandas, entre as quais os defensores da funcionalização da análise jurídica, dentro da qual ganharam projeção alguns institutos, entre os quais a função social da propriedade e a do contrato7.
Sob a perspectiva comunitarista, não apenas o Estado, mas também o próprio indivíduo pode ser instrumento de supressão de direitos. Sem querer aniquilar o indivíduo e o espaço de liberdade de cada um, justamente porque este é amplo, passou-se a vislumbrar a necessidade de controle sobre a autonomia, para que os excessos de alguns, particulares ou públicos, não prejudiquem outros. O individualismo oitocentista foi então substituído por outro individualismo: o exercício da liberdade é para todos, e a função social entra em cena para auxiliar nesse equilíbrio, compondo a liberdade de uns com a de todos.
Para quem se apegou à visão liberal clássica, o inimigo, ainda hoje, é o Estado. A quem se contrapõe (no outro extremo) a essa visão radical, o inimigo apontado passou a ser o mercado, este compreendido como espaço de trocas em que os agentes econômicos atuam livremente. Em verdade, a supressão de liberdades decorre de qualquer poder absoluto. Estado, mercado, ou até mesmo a família pode ser fonte de opressão dos indivíduos.
O princípio da função social do contrato emerge nesse contexto, na tentativa de balanceamento da liberdade absoluta com a falta de liberdade (que estão muito relacionadas, afinal, da liberdade absoluta de uns decorre a falta de liberdade de outros), assumindo várias acepções na doutrina, ora como mecanismo de proteção das partes por invasão de terceiros8, ora identificado com a causa9, e também visto como meio para livre circulação de riquezas10. Todos os sentidos atribuídos contribuíram para, de alguma forma, remodelar a teoria geral do Direito Civil, juntamente com outros princípios e valores inseridos em nosso quadro normativo.
Sem embargo, sob qualquer perspectiva que se adote em relação ao instituto, deve-se ter cuidado para que sua formulação não seja tão abstrata a ponto de não ter aplicação prática em casos concretos – com invocação como mero instrumento retórico, como vem sendo utilizado em alguns julgadospelos tribunais –, mas também não tão específica a ponto de ter aplicação muito limitada. Outrossim, deve-se evitar o extremo de excessiva intromissão na liberdade de contratar11. A invocação do princípio da função social destina-se a conceber uma autonomia individual atenta a outros interesses individuais e coletivos sem, no entanto, suprimir a expressão individual (como feito pelos regimes totalitários).
Miguel Reale, jurista responsável pela comissão de juristas que revisou e elaborou o texto do Código Civil de 2002, já ressalvava desde sua concepção que a função social foi instrumento criado com o objetivo de obstar abusos do privatismo, não devendo ser vista como fonte de eliminação da autonomia privada e da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda)12.
2 Função social como princípio da teoria contratual contemporânea que atua como intermediador na composição entre interesses individuais e interesses sociais relevantes
Na doutrina civilística tradicional são sempre apontados três princípios que informam o direito dos contratos, decorrentes da chamada autonomia da vontade, a saber, (i) o da liberdade contratual lato sensu, (ii) o da intangibilidade (ou obrigatoriedade, também expressa na expressão latina pacta sunt servanda), e (iii) o da relatividade (expressa no brocardo res inter alios acta tertio neque nocet neque prodest).
A referidos princípios, revisitados pela civilística contemporânea, adicionam-se novos13, decorrentes da chamada autonomia privada14, a saber, (i) o da boa-fé, com sua função tripartite inclusive para interpretação, imposição de limites ao exercício de direitos pelas partes, e criação de deveres anexos (conforme os artigos 113, 187, 422 do Código Civil (LGL\2002\400)); (ii) o do equilíbrio contratual, que introduz controle de proporcionalidade ao conteúdo do contrato, permitindo desequilíbrio quando derivado de um propósito específico, como prática de liberalidade ou assunção de risco (em reação ao desequilíbrio originário ou ao superveniente, que também se socorre das figuras jurídicas da lesão, da onerosidade excessiva, e do dever de renegociar (conforme os artigos 157, e 478 a 480 do Código Civil (LGL\2002\400)); e, finalmente, (iii) e o da função social, prevista nos artigos 187, 421, 2.035, parágrafo único do Código Civil (LGL\2002\400), pelo qual se reconhece que o contrato opera efeitos não somente interpartes, mas também transubjetivamente15.
O princípio da função social do contrato foi concebido como instrumento de adequação do ato negocial para observância de interesses sociais relevantes. Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, em função do vocábulo “social” contido na expressão do princípio, a função social do contrato não limita à livre-iniciativa. Muito pelo contrário, pois se fundamenta na livre-iniciativa e a reforça. Assim como a função social da propriedade foi criada como mecanismo de reforço do sistema proprietário, melhorando-o de forma a assegurar a força da propriedade individual, através da compatibilização dos interesses proprietários com os não proprietários, a função social do contrato atua para reforço do sistema contratual16.
A função social do contrato só existe porque a liberdade de iniciativa existe, porque a liberdade de contratar existe. Para garantir que essa liberdade seja exercida por todos (de maneira a ser viável para a coletividade e em conformidade com valores pré-acordados através da positivação de direitos), ela deve ser moderada por alguma força, que vem justamente da função social.
Em outras palavras, além dos interesses próprios das partes em um determinado contrato (estes que não podem ser menosprezados pelo intérprete, afinal, deles decorre a própria razão da existência da contratação), a verificação do atendimento ao princípio da função social garante que elas atentem para o fato de que há outros interesses merecedores de tutela previstos no ordenamento, criando, então, deveres para as partes, ainda que não expressamente previstos por elas, e, consequentemente, responsabilidade pelo seu descumprimento17.
A função social é intrínseca, no sentido de ser fundamento da liberdade de contratar, sendo cada contrato celebrado conforme seus limites. A conformação da vontade proporcionada pelo atendimento ao princípio da função social não é externa, no sentido de se confrontar, como um limite contraposto ao direito subjetivo e às liberdades individuais. Pelo contrário, sob a perspectiva civil-constitucional, a função social deve ser vista como interna, e justificadora do exercício da liberdade, reforçando a autonomia privada. Em singela formulação, a função social do contrato corrobora que “porque estou atento aos outros, eu tenho liberdade de agir”18. Sua invocação orienta o intérprete, mas ela não é mera regra de interpretação das relações jurídicas, na medida em que as integra.
A respeito das expressões empregadas pelo legislador nos dispositivos legais a ela referentes, cabe pequena digressão histórica. Como didaticamente explicado por Carlos Konder:
“Na primeira versão do anteprojeto de Código Civil (LGL\2002\400), o dispositivo que viria a se tornar o artigo 421 enunciava que ‘a liberdade de contratar somente será exercida em razão e nos limites da função social do contrato’. A inclusão do vocábulo “somente” foi muito criticada, pois se temia que fizesse com que o enunciado fosse interpretado de forma a exigir que a única função que o contrato pudesse ter fosse a social, em oposição à função que ele teria apenas para as partes. Assim, receava-se que as partes pudessem ficar adstritas a abdicar de seus próprios interesses para, ao contratar, servir somente à coletividade. O receio vincula-se a um embate mais amplo, que diz respeito ao próprio papel do ato de autonomia no sistema. Trata-se de um esforço para a convergência entre a perspectiva individual, própria do ato, e a geral, própria do ordenamento, a relação entre a liberdade dos privados e a autoridade do direito. Enfim, significa indicar quando o ato de vontade poderá desfrutar da eficácia jurídica própria das normas do ordenamento, ou, sob outra formulação – e sob outra perspectiva – indicar quando é legítimo que o Estado intervenha sobre a eficácia dos negócios entre particulares. Entre as perspectivas extremas de um Estado mínimo, no qual a autonomia privada foi concebida como um espaço quase ilimitado e praticamente imune a qualquer intervenção exterior, e um Estado autoritário, no qual ocorria a total submissão dos interesses particulares a supostos interesses públicos, em algum meio termo disso deveria estar a função social do contrato. O ponto de equilíbrio é que gera a controvérsia. As críticas à redação inicial fizeram com que o termo ‘somente’ fosse suprimido e o dispositivo ganhasse a redação com que foi promulgado: ‘A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato’. No entanto, o receio quanto às potencialidades do dispositivo persistiu, agora com relação à expressão ‘em razão de’: a liberdade de contratar deve ser exercida em razão de sua função social. Este movimento de reticência ao dispositivo, que se poderia chamar ‘antifuncionalista’, afirmava que a função social só poderia servir como limite, mas não se poderia exigir que ela fosse razão da tutela do contrato.”19
Considerando o cenário legislativo atual, pode-se dizer que preponderou, de acordo com a reformulação do dispositivo legal trazida pela Lei 13.874/2019 (LGL\2019\8262), a perspectiva de quem resistia ao uso da expressão “em razão” atrelado à função social, ante a recente supressão de referida expressão no artigo 421 do Código Civil (LGL\2002\400).
A resistência, com todo respeito a opiniões divergentes, parecia exagerada, na medida em que a leitura do dispositivo, como já havia sido esclarecido pela anterior retirada do vocábulo “somente” da redação original proposta no anteprojeto do código, não impunha valoração apenas da função social. Sem dúvida, o legislador brasileiro quis dar atenção também à função social. O atendimentodesta, voltada à observância, pelas partes, de outros interesses merecedores de tutela no ordenamento, não conduz ao desprezo da função negocial, vale dizer, a função econômico-individual que é própria do contrato e em linha com os interesses particulares das partes, a qual sempre foi e sempre será indissociável de qualquer negócio jurídico, pois a razão de sua existência – afinal, as partes contratam de acordo com seus interesses particulares, e esse o motivo de a referência à função negocial não ser necessária na lei para existir20.
A função social afeta de forma qualitativa o controle valorativo a ser feito pelo intérprete e aplicador da norma sobre os atos de autonomia privada. Embora interna, porque integra a liberdade de contratar, ela incide no plano externo, dos efeitos dos contratos, pois diz respeito a interesses que se projetam além dos interesses individuais das partes. Sendo as trocas acordadas pelas partes merecedoras de tutela, a função social atuará para reforçar o avençado e garantir que efeitos previstos pelas partes no exercício de sua autonomia sejam produzidos, promovendo a eficácia de todo ato de vontade em conformidade com os valores do ordenamento.
Os interesses individuais das partes podem coincidir (ou no mínimo não colidir) com os interesses relevantes tutelados pelo ordenamento, e nesse caso, a autonomia será sempre prestigiada. Todavia, se situações jurídicas colidirem com valores relevantes inseridos na ordem positivada21, a cláusula geral da função social conformará intrinsicamente a autonomia privada, dando eficácia apenas aos atos merecedores de tutela.
E aqui vale a lembrança de que o exame do merecimento de tutela não se vincula apenas ao plano repressivo do Direito, no sentido de que condutas ilícitas ou abusivas devem ser rechaçadas, mas vai além, na medida em que permite ao intérprete realizar um controle promocional, isto é, de incentivo a valores positivados no ordenamento. Com efeito, ante a constitucionalização do Direito Civil, atualmente há percepção mais clara da eficácia horizontal das normas constitucionais, que impõem não somente ao Estado, mas também aos particulares, o respeito aos valores contidos na Constituição, e à sua promoção, entre os quais o da liberdade e o da solidariedade, que deve se expressar internamente nas relações jurídicas, moldando-as qualitativamente.
Eventualmente, a conformação conferida em decorrência da função social pode favorecer, de forma indireta, uma parte em relação à outra, mas essa proteção será reflexa, na medida em que o que a função social visa é a realização de interesses tutelados pelo ordenamento, que podem ser individualizáveis ou não.
Em resumo, o contrato é fruto de “autonomia mais ordenamento”. Todo exercício de autonomia se insere em um contexto normativo, não sendo simplesmente ato de autonomia da vontade, preferindo-se a expressão autonomia privada, que designa ampla liberdade de agir, mas em consonância com um quadro de valores estabelecidos pela sociedade através da normativa existente22.
Ressalve-se que dizer que a autonomia é conformada não a transmuta em autonomia que deve simplesmente atender a interesses de terceiros e desprezar a vontade das partes. Pelo contrário, a autonomia privada nada mais é do que um livre agir orientado a valores, em conformidade com o quadro normativo em vigor, que prestigia, inclusive e expressamente, a própria livre-iniciativa.
Sendo a livre-iniciativa em si um valor relevante – um dos valores fundantes em nosso ordenamento –, se os contratantes observam os limites internos e externos trazidos pela função social23, a autonomia privada nos contratos (estes que instrumentalizam o exercício da livre iniciativa) opera como regra. Isto é, a intervenção estatal é possível, mas apenas excepcionalmente, para assegurar, por exemplo, a própria liberdade das partes, ou para que valores socialmente relevantes constantes do nosso quadro constitucional não sejam violados. Essa intervenção deverá ser sempre proporcional, ou seja, na medida da necessidade e da adequação para atingimento dos fins pretendidos24.
3 Função social na prática: quando incide e a quem atende
Compreendida a razão de ser do instituto, cabe investigar como ele opera, na prática. O princípio da função social serve como parâmetro de análise dos atos de autonomia privada, entre os quais, o mais conhecido deles, o contrato. A função social, tal como a boa-fé, incide antes, durante, e depois de qualquer avença contratual, devendo orientar as partes em seu agir, e também os intérpretes e aplicadores. A concepção contemporânea da obrigação como processo25 impõe sua incidência desde antes da contratação e até depois da extinção do contrato. Também tal como o princípio da boa-fé, a função social pode criar deveres contratuais às partes que podem ser inadimplidos.
Não obstante, a função social não se presta a uma análise qualquer, mas sim a uma análise específica, que investiga não a estrutura do contrato, esta que resultará na verificação de sua licitude ou ilicitude (que, naturalmente, é parte primordial da análise interpretativa, mas não suficiente para resolver dilemas referentes aos casos concretos). A análise feita pelo intérprete na verificação de atendimento da função social é de outra natureza, chamada funcional.
Pelo controle funcional, o intérprete verifica a conformidade de qualquer ato jurídico não do ponto de vista da (i)legalidade estrita, mas também de outras formas de manifestação de desconformidade do ato com o ordenamento, como o abuso de direito e do merecimento de tutela. A função social não é o único instrumento a auxiliar no controle funcional dos atos de autonomia privada, mas é um elemento de adequação importante, na medida em que destinado à verificação da conformidade do ato com valores socialmente relevantes do ordenamento.
Aqui é importante que se faça a distinção – análise funcional é a que investiga elementos teleológicos e axiológicos, os fins e os valores subjacentes a uma dada situação jurídica. O vocábulo “funcional” aqui não deve ser confundido como decorrente da “função social”, embora a ela relacionado. A função social é um dos instrumentos de análise funcional, assim como a causa, o abuso de direito, entre outros institutos jurídicos.
O mero controle estrutural não é suficiente para identificar (e solucionar) um problema em um determinado ato jurídico, razão da importância do controle funcional. A título de ilustração, suponha-se, por hipótese, que exercendo sua autonomia privada, determinada sociedade mantenedora de um hospital ou clínica médica possa escolher livremente, entre os fornecedores existentes no mercado, com qual contratar o fornecimento de gases hospitalares para terapia de seus pacientes internados. Entre as partes, contratante e contratada, há ampla margem de liberdade para fixação do objeto, preço, garantias de qualidade e pagamento, entre outras avenças. Também em função da liberdade de contratar que lhes é assegurada pelo ordenamento, lhes é permitido a qualquer momento se desvincular, nos termos previstos no instrumento contratual.
Entretanto, caso o exercício dessa liberdade, seja pela contratante ou pela contratada, afete direitos de saúde dos pacientes, por exemplo, interrompendo abruptamente o fornecimento de suporte de oxigênio necessário à manutenção das condições de saúde ou mesmo de vida dos pacientes, essa liberdade de contratar (inclusive de se desvincular do contrato) não poderá ser exercida de maneira irrestrita, sob pena de violar direitos existenciais dos pacientes, estes que por óbvio merecem tutela prioritária em relação aos direitos patrimoniais da clínica/hospital e do fornecedor do gás hospitalar.
Nessa hipótese, embora estruturalmente possa ser perfeitamente lícita a previsão contratual que garanta a possibilidade de resilição unilateral do contrato a qualquer tempo, por exemplo, mediante notificação com antecedência de 30 dias, se, no caso concreto, a interrupção do fornecimento não for amparada por imediata substituição por outro fornecedordo produto essencial, haverá violação de direitos fundamentais de terceiros, e, portanto, agressão a valores socialmente relevantes no ordenamento brasileiro. Tal violação não seria notada pela mera análise estrutural dos fatos, cujo resultado aponta a legalidade estrita tanto da contratação quanto do seu desfazimento.
De outro lado, pela análise funcional, é possível concluir que nesse caso concreto, há, em função dos efeitos decorrentes dos atos praticados pelas partes, a produção de consequências que não devem prosperar em nosso sistema de direito, e, portanto, não são merecedoras de tutela. Em tal hipótese, pode-se entender que haverá, independente de quem for a decidir pela interrupção do fornecimento sem as devidas cautelas em favor do interesse existencial dos pacientes, violação a direitos de terceiros, e, por incidência do princípio da função social, o ato de autonomia, tal como previsto pelas partes, deverá ter seus efeitos modificados, de forma a permitir que o fornecimento seja interrompido somente quando outro fornecedor possa atender a demanda, sob pena inclusive de responsabilidade.
Nesse exemplo concreto, se a contratada (fornecedora do gás hospitalar) exercer seu direito à resilição, configurar-se-á também abuso do direito de resilir, em prejuízo à sociedade contratante e seus pacientes, podendo o abuso ser preventivamente evitado por ordem judicial que impeça o exercício da liberdade tal como previsto originariamente pelas partes. Em caso de ofensa ao direito existencial dos pacientes, o ato abusivo resultará, na forma do artigo 187 do Código Civil (LGL\2002\400), na responsabilização civil daquele que o cometer. Ou seja, há sobreposição de fundamentos para a tutela jurídica, seja pela incidência do princípio da função social (que limita a autonomia tanto da sociedade contratante quanto da contratada, para proteger o interesse dos pacientes), seja pela figura do abuso de direito (que limita a autonomia da contratada). Obviamente, a contratada tem todo o direito de se desvincular, e, existindo há plena oferta do gás hospitalar para o hospital/clínica no mercado, adotar rigorosamente o prazo previsto no contrato. Mas, dependendo das circunstâncias concretas, essa liberdade será orientada a valores de respeito a direitos existenciais dos pacientes26.
Com base nesse singelo exemplo, frise-se uma característica importante da análise funcional: ela é sempre feita no caso concreto. Os instrumentos para a análise funcional, entre eles o princípio da função social, assim como o abuso de direito, só são verificáveis verdadeiramente nos casos concretos. Porque somente no caso concreto se saberá se houve ou não (des)conformidade do ato de autonomia em relação aos interesses afetados pelas partes ou a valores do ordenamento. Pequenas variações no suporte fático podem resultar em diferentes análises sobre a produção de efeitos dos atos de autonomia.
Não é possível fazer análise funcional de um ato privado em abstrato. A análise em abstrato se faz com facilidade no plano estrutural, da ilicitude (ou contrariedade do ato a determinado dispositivo legal, também chamado de legalidade específica). De outro modo, a análise funcional pressupõe a investigação dos interesses perseguidos pelas partes, o que só pode ser feito na concretude das relações jurídicas, inclusive porque uma mesma estrutura jurídica, por exemplo, um mesmo tipo contratual adotado como referência pelas partes em dada contratação, pode se prestar a diversas funções negociais, diversas finalidades, algumas típicas, portanto já imaginadas pelo legislador, e outras atípicas, decorrentes da criatividade humana.
Com base na análise estrutural e na funcional, é possível então saber se um ato de autonomia é lícito (lato sensu) e ao mesmo tempo merecedor de tutela e, portanto, apto a produzir os efeitos almejados pela parte que o praticou. E aqui se reitera – justamente porque a autonomia privada é prestigiada em nosso ordenamento – a função social do contrato como importante instrumento de análise e adequação dos atos de autonomia. Se não houvesse a liberdade, esta um valor do ordenamento, os atos privados seriam apenas aqueles pré-autorizados pelo legislador. Porque há liberdade, e ela há de ser respeitada, a função social incide para que se possa apontar, entre vários atos de autonomia que se cruzam e interferem uns nos outros, entre vários interesses contrapostos, quais são merecedores de tutela porque promovedores dos valores positivados em nosso ordenamento.
Dessa maneira, pode-se dizer que a função social é instrumento jurídico que traz o controle externo do merecimento de tutela (que incide para ponderação entre interesses juridicamente compatíveis com o ordenamento) para o controle interno, em efetiva tutela do interesse privado de acordo com o ordenamento em vigor.
Resta saber de que forma a função social incide, na prática, e a quem ela atende, exatamente. Pietro Perlingieri ensina que
“o sujeito não é elemento essencial para a existência da situação, podendo existir interesses – e, portanto, situações – que são tuteladas pelo ordenamento apesar de não terem ainda um titular. Tome-se, por exemplo, a doação a favor de nascituros ou dos não concebidos [...]. A partir do momento do fato doação até o possível, futuro momento do nascimento do sujeito, existe já o interesse juridicamente tutelado, a situação da qual o donatário, ou de qualquer forma, o sujeito nascituro, será o titular; mas ainda não existe o sujeito titular do interesse.”27
Tendo a lição de Perlingieri como norte, como responder quem é o sujeito da tutela proporcionada pela função social? Situações jurídicas tuteladas no ordenamento que sejam atingidas por um determinado contrato ou ato de autonomia privada, independentemente de sua titularidade, acabarão não apenas sendo afetadas, mas também afetando a sua eficácia. Nesse sentido, o sujeito da tutela pode ser determinado ou indeterminado. Por via reflexa, uma das partes pode, também, ter seus próprios interesses reforçados pela incidência do princípio da função social, mas, via de regra, os contratantes contam com outros princípios para tutela dos próprios interesses, como a boa-fé e o equilíbrio contratual28.
O fato de a função social ser prevista em atenção a interesses tutelados no ordenamento e não ter, necessariamente, um sujeito determinado, provoca a indagação sobre quem poderá, na prática, invocá-la diante de um caso concreto. Sendo o sujeito indeterminado, cabe a alguma das partes invocar a aplicação do princípio porque o contrato deixou de atender à função social, ou ainda, cabe a alguma das partes se socorrer do argumento do descumprimento da função social para buscar a resolução do contrato? Parece que sim, ou seja, ainda que não tenha sido pensada como instrumento para fortalecimento de posição contratual das partes, a função social pode ser invocada por uma parte que se encontre em situação de conflito de interesses com outra, para, na exigência de readequação do ato de autonomia em conformidade com valores socialmente relevantes, por via reflexa a eficácia modificada do ato inclusive favorecê-la.
Mas não só. Também os membros do Ministério Público, com relação a interesses difusos, ou mesmo terceiros particulares afetados (inclusive representantes de grupos afetados) pelo ato de autonomia que não se coaduna com os valores socialmente relevantes do ordenamento, têm legitimidade para invocar o princípio da função social para pleitear a adequação do ato, modificando sua eficácia, ou mesmo impedindo a produção de efeitos, a depender do grau de violação do ato aos interesses tutelados pela cláusula geral de função social.
Ainda sobre aspectos práticos de aplicação do princípio da função social, importante observar, por óbvio que pareça o alerta, que ele é mais um, entre tantos do nosso ordenamento a serem observados. O princípio da função social não é um superprincípio que se sobrepõe aos demais. De fato, como instrumento de análise funcional, de um lado, o princípio da função social dá mais poder ao intérprete,mas de outro, simultaneamente impõe-lhe maior ônus argumentativo, na medida em que só se completa no caso concreto.
Talvez por excesso de invocação (por vezes meramente retórica) ou também alguma interpretação que equivocadamente o tenha considerado ora como instrumento jurídico contraposto à autonomia, ora de justiça distributiva, o princípio da função social do contrato tenha sido entendido como controverso e, por consequência, não esteja sendo aplicado em sua potencialidade. Entretanto, ele deve atuar, conjuntamente com outros princípios, em favor de soluções formal e substancialmente mais justas e compatíveis com os valores consagrados pelo legislador brasileiro.
Se incide conjuntamente com outros princípios em todos os atos de autonomia privada, na hipótese de confronto com as obrigações assumidas contratualmente pode ocorrer de os princípios interagirem entre si. E, se assim é, forçoso concluir também que dessa interação pode ocorrer de um princípio afastar, no caso concreto, a incidência do outro. Com efeito, nenhum princípio é absoluto. Os três novos princípios da teoria contratual reconfiguraram os tradicionais, mas também interagem entre si, e nenhum tem incidência estanque. Conforme os interesses em jogo no caso concreto, um ou outro pode se sobrelevar.
Dessa maneira, assim como a boa-fé é instrumento para regular a atuação das partes entre si, internamente, mas também impacta externamente os contratos (no mínimo porque há um custo de oportunidade aproveitado pelos contratantes que eventualmente os retira potencialmente de outras negociações com terceiros), a função social é instituto com aplicação principal externa, mas que também impacta a relação das partes, no mínimo por via reflexa. Há, portanto, um efeito regulador principal de cada um dos princípios, mas que não obsta seu efeito secundário, em comunicação constante entre efeitos internos e externos.
Dada essa interação, cabe a pergunta se uma parte pode demandar em juízo pela revisão do contrato em decorrência do princípio da função social. Usualmente, é outro princípio, o do equilíbrio contratual, que opera para esse fim, não cabendo, fora das situações amparadas por ele, ou pelos institutos jurídicos disponíveis em nosso ordenamento para recomposição de eventual sinalagma perdido, como a onerosidade excessiva, a revisão não negociada livremente pelas partes.
Não obstante, parece possível que uma parte invoque, entre outros princípios, também o da função social, desde com base em seus próprios fundamentos, para revisar as condições originárias de contratação, beneficiando-se, por via reflexa, com a eventual mudança de efeitos que corresponda aos seus interesses, seja para redução ou mesmo ampliação da eficácia inicialmente prevista pelas partes29.
Nesse sentido, exemplo didático se revela em litígio tramitado no Tribunal de Justiça do Ceará entre um banco comercial de varejo e uma transportadora de valores. Em breve relato, as partes possuíam relação contratual longeva (por mais de 20 anos) de prestação de serviços de transporte de cheques, documentos e valores entre agências, bem como abastecimento de caixas eletrônicos. No exercício de sua autonomia privada, as partes estavam, como relatado nos autos do processo, durante o segundo semestre de 2017, em negociação para revisão dos valores pactuados. Todavia, não tendo chegado a um consenso sobre as condições para manutenção da relação jurídica, a transportadora, utilizando-se de prerrogativa constante do contrato, denunciou-o, formalizando aviso prévio de 30 dias para encerrar a relação de serviços.
A par da discussão sobre os efeitos da decisão de resilição unilateral entre as partes, no caso concreto, o encerramento das atividades após o decurso do prazo do aviso prévio contratual resultaria (diante da impossibilidade de o banco encontrar fornecedor substituto que assumisse uma operação logística complexa no prazo de 30 dias) em acentuado transtorno a terceiros, clientes do banco em diversas regiões de abrangência do serviço contratado, que poderiam deixar de ter acesso a serviços de bancos 24 horas no período de festas de fim de ano. O banco, naturalmente buscando defender seus próprios interesses, mas fundando-se no princípio da função social, obteve, liminarmente (com confirmação da decisão em sede de agravo de instrumento30), a determinação para que a transportadora continuasse a prestar os serviços por 90 dias, garantindo, dessa forma, a continuidade dos serviços aos consumidores da região.
No caso em tela, não se pode dizer que o demandante seja hipossuficiente, tampouco que não se beneficiou com a decisão judicial, mas a intervenção fundamentou-se no interesse da população, sobretudo de cidades do interior do Ceará, em que o uso de cartão de crédito como meio de pagamento não é tão comum, tendo sido levado em consideração, especialmente, a época da decisão liminar, obtida no período de festas de fim de ano, quando a demanda por saques em caixa eletrônico tradicionalmente aumenta.
Com base nesse exemplo, vale observar um aspecto importante da função social. Ela não deve servir como critério de justiça distributiva ou para equilibrar partes desiguais em uma dada relação jurídica. Há, no ordenamento brasileiro, outros institutos jurídicos criados para proteção a hipossuficientes, e mecanismos destinados à tutela do equilíbrio contratual, os quais, quando encontram suporte fático para aplicação, incidem nos casos concretos. Mas a função social não deve se confundir com tais institutos, sob pena de se enfraquecer como efetivo instrumento de tutela de interesses metaindividuais.
Cabe, em conclusão deste item, também alguma consideração sobre em que plano incide o princípio da função social. Assumida a premissa de que a função social impõe certos condicionamentos à autonomia privada, como deve ser qualificado o descumprimento do conteúdo da função social? Em regra, justamente porque destinado à adequação do ato de autonomia a valores socialmente relevantes, ele opera no plano da eficácia, de maneira que o ato de autonomia que viola a função social será juridicamente válido, porém inapto a produzir os efeitos esperados pelo agente porque não merecedor de tutela, ou o ato que a atende da melhor forma, será prestigiado e apto a produzir efeitos perante a coletividade.
4 Aproximações do instituto
4.1 Causa
A função social é figura que, por se inserir no contexto de funcionalização do direito privado, se aproxima de outros institutos que igualmente se inserem nesse mesmo contexto, como a causa, também referida (após longa caminhada conceitual31) como “função econômico-individual do contrato”, ou ainda, função negocial. Pela investigação da causa é possível estabelecer a síntese dos efeitos essenciais perseguidos pelas partes em atendimento a seus interesses particulares, sendo ela, portanto, elemento primordial para compreensão do negócio como ato de autonomia privada, sua qualificação, e avaliação do merecimento de tutela. Embora a causa não seja prevista expressamente no artigo 104 do CC (LGL\2002\400)32, é possível dizer que ela integra o negócio jurídico de forma indissociável, de tal forma que qualquer ato negocial necessariamente deve ter uma função econômico-individual, que corresponde à sua razão de existir, sob pena de não ser tutelável.
Os dois conceitos, de causa e função social, são complementares, mas não se confundem. Causa é uma construção das partes e para as partes, corresponde à função econômico-individual perseguida por elas com o ato negocial, e que é avaliada, valorada pelo intérprete. Por isso também chamada de função negocial, na feliz expressão adotada por Eduardo Nunes de Souza33.
Pode ser ilícita, quando violadora de um comando normativo, ou inexistente, quando, por exemplo, o contrato perdeu sua razão de ser. Pode também se modificar no decurso do tempo, de forma que um contrato que começou com uma causa durante a execução pode passar a ter outra, o que inclusive traz enormes desafios para a doutrina civilística no campo da interpretação e aplicação dasnormas, tendo em vista que não há previsão para muitas situações relacionadas a estas mutações, ora que afetam a validade do negócio, ora sua eficácia.
Já a função social, inclusive por sua natureza de princípio, é aquilo que avalia, ou perante o qual se avalia o contrato34, e sob perspectiva de tutela não dos interesses particulares das partes, mas sim de interesses metaindividuais, portanto incide como um instrumento parametrificador de interpretação jurídica. De acordo com a função social, os efeitos previstos pelas partes poderão ser tutelados no ordenamento, em consideração à autonomia privada e à liberdade de iniciativa, mas também poderão ser excluídos ou modificados, como visto nos itens anteriores deste trabalho. Os efeitos decorrentes da função social, portanto, podem ou não coincidir com aqueles previstos pelas partes para o seu negócio.
Não está errada a associação da função social com a causa do contrato, mas enquanto à função social correspondem valores socialmente relevantes tutelados pelo ordenamento, a serem observados e produzirem efeitos independentemente da previsão contratual feita pelos contratantes confirme seu interesse econômico-individual, a causa se refere aos efeitos perseguidos especificamente pelas partes em um contrato. Quando se aproximam, causa e função social tendem a coincidir, mas não são a mesma coisa.
4.2 Análise Econômica Do Direito (AED)
Ainda sobre aproximações da função social do contrato a outros institutos, outra perspectiva que pretende compreendê-la é a da análise econômica do direito (AED), que aproxima a função social do contrato à “função econômica do contrato”, muito influenciada pelas lições de law and economics iniciadas com os textos de Ronald Coase e Guido Calabresi35.
De fato, a função social em alguma medida se associa à função econômica (não já à função econômico-individual perseguida pelas partes, esta que corresponde à causa, mas à função econômica do contrato, instrumento de circulação de riquezas que é, perseguida pelo ordenamento). Segundo Luciano Timm, declarado defensor dessa perspectiva na doutrina brasileira, o direito contratual privado deve promover o bom funcionamento do mercado (este espaço de interação coletiva), contribuindo para a diminuição dos chamados custos de transação36.
Para tanto, o Direito deve (a) oferecer um marco regulatório previsível e passível de proteção judicial; (b) minimizar problemas de comunicação das partes; (c) salvaguardar os ativos de cada agente (por exemplo, a tecnologia, o know-how, a propriedade intelectual, o bom nome dos contratantes); (d) criar instrumentos contra oportunismo; (e) gerar mecanismos de ressarcimento e de alocação de riscos.
Se o contrato der segurança e previsibilidade às operações econômicas e sociais, protegendo as expectativas dos agentes econômicos, o direito contratual cumprirá seu papel institucional e social em um regime de mercado.
A AED é consequencialista, sempre atenta a incentivos e desincentivos ao comportamento das partes, e critica a compreensão da função social do contrato a partir de uma ideia de justiça distributiva, que permitiria a constante revisão judicial dos pactos, por meio de interferência estatal no acordo estabelecido entre as partes em favor da parte contratante menos favorecida, apontada hipossuficiente.
Segundo a perspectiva da AED, com a qual se concorda neste aspecto, os critérios distributivos acabam confundindo o interesse coletivo com a proteção da parte mais fraca (que, muitas vezes, espelha um interesse individual e não coletivo) ou mesmo com a redistribuição dos benefícios econômicos do contrato entre as partes arbitrariamente, descurando da autonomia privada. Nem sempre o interesse social significa interferir no contrato em favor de uma das partes (proposição com a qual igualmente se concorda)37.
É inegável que Direito e Economia se relacionam, constituindo-se e limitando-se reciprocamente. A AED pode ser uma ferramenta valiosa de compreensão das tomadas de decisões das partes, bem como de apuração (e consequente tutela, em caso de verificado merecimento) da função econômica perseguida tanto individualmente por elas, quanto coletivamente pela sociedade. Ou seja, a perspectiva da AED auxilia, tanto do ponto de vista intra partes, quanto extra partes, na revelação dos objetivos econômicos perseguidos, que, na grande maioria casos, sobretudo nas relações patrimoniais, são os que sobrelevam, inclusive integram a causa do contrato, sua razão de existir.
Todavia, tomar a função social do contrato (que é instituto jurídico) apenas como função econômica parece uma premissa equivocada, porque reduz a natureza do princípio jurídico. Nossa Constituição, com os defeitos e qualidade que possa ter, tem como fundamento alguns valores que não podem ser simplesmente desconsiderados pelas partes, pelo mercado, ou quem quer que seja. Entre os valores relevantes positivados em nosso sistema jurídico, há também um de conteúdo social (solidário), com sede constitucional, que necessariamente se comunica com a construção das relações econômicas.
Sob esta perspectiva, a leitura proposta à função social pela AED mostra-se incompleta, na medida em que os valores tutelados por nosso ordenamento não são somente econômicos. Embora não se possa negar a importância do aspecto econômico nos negócios jurídicos, sobretudo nos contratos empresariais, a perspectiva somente econômica afigura-se muito reducionista do papel da função social do contrato.
O Direito, além de oferecer marco regulatório, minimizar problemas, salvaguardar ativos, impedir oportunismo, e gerar mecanismos de ressarcimento e de alocação de riscos, deve fazer mais. Sem dúvida, exige-se muito do Direito, mas também sem dúvida ele não se confunde com a Economia, que não se ocupa da concretização da justiça, com observância da ordem jurídica em consonância com as normas positivadas no ordenamento. Há que se ter cuidado para que, sob o manto da função social do contrato, ao invés de se tutelar todos os valores relevantes da sociedade, se prestigie seletivamente apenas parte dos valores, de natureza econômica.
Como mencionado, o grande mérito da AED foi oferecer instrumentos que, do ponto de vista econômico, facilitam a tomada de decisões pelas partes e sua compreensão pelo intérprete. Essa contribuição é relevante e deve ser prestigiada, mas não é o único elemento que deve orientar o intérprete nos casos concretos, sob pena de reduzir a ciência do direito a subsistema da economia, com mera função de guarda externa do funcionamento correto da racionalidade econômica38.
Em resumo, a função econômica é um aspecto da função social (e importante, voltado a repercussões de alto impacto na vida das pessoas), mas não o único valorado pelo nosso ordenamento, embora ganhe na seara contratual especial projeção, inclusive porque o Direito, com seu caráter não apenas punitivo mas também promocional, é mecanismo de incentivos e desincentivos a determinados comportamentos, moldando o mercado e os agentes que o integram.
Sem prejuízo dessas ponderações, é de se registrar o aumento da projeção da análise que leva em conta a racionalidade econômica nas decisões. O próprio ordenamento tem incorporado reflexões de natureza pragmática propostas pela AED, por exemplo, ao impor atitude mais consequencialista a todos os tomadores de decisão nas esferas públicas. Em exemplo dessa perspectiva, a Lei 13.655/2018 (LGL\2018\3430) modificou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657, de 1942 (LGL\1942\3)), para passar a prever, em seu artigo 20, que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”.
5 Preocupação com excesso de intervenção e a Lei 13.874/2019
Entendida a razão de ser do princípio da função social do contrato, e visto como ele pode operar efeitos na prática, cumpre, por fim, trazer alguma reflexão sobre os riscos com o excesso de intervenção na autonomia privada que o princípiopode autorizar.
Tal preocupação se revela pertinente diante da sempre existente possibilidade de excessiva intervenção pelo Estado no domínio privado, isto é, por razões que não se justificam verdadeiramente diante do princípio da função social, embora ele seja invocado com frequência no momento da decisão (ainda que muitas vezes de maneira retórica, na medida em que apenas citado, em conjunto com outros princípios, mas sem o imprescindível desenvolvimento da fundamentação que efetivamente justifica sua aplicação ao caso concreto).
A função social do contrato é princípio que pode e deve ser invocado quando, de fato, valores sociais relevantes integrados ao ordenamento não forem observados pelas partes no exercício de sua autonomia privada, cabendo, conforme a medida de necessidade e adequação que devem ser apresentadas argumentativamente pelo intérprete, possível modificação de efeitos atrelados ao ato de autonomia. Em tais hipóteses, a intervenção não pode ser chamada de excessiva. Isso porque ao invés de invadir o espaço de liberdade das partes no exercício de sua autonomia privada, a atuação estatal estará ocorrendo justamente para garantir liberdades.
Mas há que se ter o cuidado de não confundir valores socialmente relevantes, que serão sempre amparados na Constituição, e eventualmente traduzidos concretamente na legislação infraconstitucional, com valores pessoais relevantes, sejam das partes, sejam do intérprete. Há uma tábua axiológica comum à coletividade, uma gramática comum que deve orientar a todos em seu livre agir. Dentro do quadro de valores positivados, a liberdade é ampla, e deve ser priorizada, exatamente porque é, também, um valor socialmente relevante em nosso ordenamento.
Nesse sentido, a função social do contrato não pode ser invocada para revisão de maus acordos, ou contratos mal-sucedidos que estabeleçam trocas que se revelem inconvenientes, ou mesmo prejudiciais às partes. Há, de fato, alguns mecanismos em nosso ordenamento que permitem a revisão dos contratos, ou modificação dos seus efeitos sob certas circunstâncias, mas eles devem ser estritamente interpretados, sob pena de contribuição para insegurança jurídica, e enfraquecimento do próprio sistema de justiça.
Se um dado negócio jurídico celebrado estiver em conformidade com os valores socialmente relevantes do ordenamento, sua função econômico-individual deverá ser sempre reforçada pela função social, e não o contrário. Se não estiver, é possível, dependendo do caso, que caiba revisão ou ineficácia do avençado. Via de regra, o remédio principal deve ser a ineficácia, e não a revisão heterônoma de um ato que é fruto da autonomia privada.
O Judiciário deve ser em geral contido na revisão contratual de condições comerciais (o dever de renegociar contratos cabe às partes), sob pena de o Estado contratar em nome da parte o que ela própria jamais contrataria. Nesse sentido, cabe a preocupação sobre o atropelamento da função econômico-individual pela função social e, principalmente, cabe, reitere-se, a ressalva de que função social não é função de assistência social39.
O Direito Civil deve encontrar respostas adequadas à perspectiva solidarista trazida pela Constituição, através de institutos que a concretize de distintas maneiras, mas isso não quer dizer suplantar a tradição civilista como espaço das negociações privadas, das assunções de riscos, e eventualmente de prejuízos não indenizáveis incorridos por diversas razões, desde más decisões, a fortuitos.
A resposta que o Direito Civil dá à perspectiva solidarista se impõe, seja pela função social que preserva valores contemplados no ordenamento, ainda que não necessariamente previstos pelas partes em seus contratos, seja pelo princípio do equilíbrio contratual que determina proporcionalidade nas prestações (ainda que autorize desproporções justificadas40), ou ainda, por outros institutos possivelmente incidentes em cada caso concreto. Sem prejuízo do dever do intérprete de estar atento à aplicação da normativa em vigor em sua totalidade e unidade, não é papel do Direito Civil atuar como mecanismo distributivo de riquezas. Há outros campos do Direito que se ocupam melhor desta função, especialmente aqueles usados como instrumentos de políticas públicas.
Tendo em vista alguns exageros interpretativos praticados, principalmente em sede de justiça estatal com relação à possibilidade de revisão dos contratos fundada no princípio da função social, ganhou força no âmbito do debate legislativo a perspectiva de quem se opunha ao fortalecimento linguístico do princípio da função social do contrato também por meio do uso da expressão “em razão” prevista no principal dispositivo legal referente ao princípio, vale dizer, o artigo 421 do Código Civil (LGL\2002\400). Por conseguinte, e na esteira de outras mudanças normativas promovidas por meio da aprovação da Lei 13.874/2019 (LGL\2019\8262), todas com intuito declaradamente liberalizante e de contenção do papel dos agentes estatais, referido dispositivo foi alterado e passou a atualmente assim dispor:
“Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (conforme redação dada pela Lei 13.874, de 2019 (LGL\2019\8262))
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela Lei 13.874, de 2019 (LGL\2019\8262)).”
Com a retirada da expressão “em razão”, esta que já havia sido criticada desde a aprovação da redação original do artigo 421, e também com a inclusão do parágrafo único, ficou evidente a intenção, pelo legislador, de que as partes sofram menos interferência por terceiros no âmbito de sua autonomia privada. Tal mudança legislativa é bastante coerente com a perspectiva que ganhou projeção no cenário político e econômico recente, pela qual a intromissão de agentes estatais no domínio privado é apontada como exagerada.
A intenção da mudança – acompanhada por amplo conjunto de alterações em nosso ordenamento –, manifestada, inclusive, na exposição de motivos do ato que deu origem à alteração legislativa (a Medida Provisória 881/2019, ou MP 881), foi dar foco e fortalecer a liberdade econômica, assegurando o pacta sunt servanda. Não por outra razão, a lei que a aprovou foi chamada de Lei da Liberdade Econômica.
Tendo em vista especialmente o cenário recente de estagnação econômica, e considerando os dados indicativos de pouco investimento no Brasil nos últimos anos, as mudanças foram justificadas na melhoria do ambiente de negócios e incentivo à iniciativa privada. A Lei 13.874/2019 (LGL\2019\8262) se apresenta como tentativa de reformular as condições jurídicas para que a liberdade econômica seja efetivamente prestigiada, com mecanismos de reforço de garantias aos agentes econômicos privados, e proteção contra intervenções e exigências que não tenham eficiência e não atendam finalidades públicas.
Em sua redação original, o projeto de lei, que havia resultado dos estudos de um grupo de trabalho composto por juristas e professores de renomadas instituições41 mais do que preocupado com um Estado mínimo, tinha como ideia central que liberdade econômica deve ser a regra, e que normas que eventualmente a limitem sejam pensadas sempre ao menor custo para a sociedade, e sejam justificadas, evitando regulamentações puramente retóricas e que não se destinem a eficazmente resolver algum problema que compete à administração pública.
Compreende-se a preocupação do legislador, mas é preciso ter cuidado na assunção de algumas premissas que ocasionaram as mudanças legislativas. A mais notável, que os agentes estatais só atrapalham. Sem dúvida, a atuação dos servidores públicos pode e deve ser sempre aprimorada, mas a premissa de que ocorre sempre em detrimento da iniciativa privada é equivocada. Como já mencionado, muitas vezes a atuação estatal ocorre justamente em sentido contrário, isto é, em garantia do exercício da autonomia pelos indivíduos, notadamente na atuação judicial, através da aplicação das normasassecuratórias do direito de liberdade positivadas aos casos concretos.
É preciso, igualmente, ter cuidado com os efeitos das mudanças legislativas, e aqui cabem duas ressalvas: em primeiro lugar, o princípio que impõe a obrigatoriedade das obrigações contratadas pelas partes, embora primordial para o funcionamento do sistema obrigacional, não é o único a incidir nas relações negociais; em segundo lugar, importa, mais do que a mera existência e observância do princípio pacta sunt servanda, e seu reforço em sede legislativa, o reforço das condições fáticas para que os contratos possam ser cumpridos.
Assumir que qualquer contrato, simplesmente porque celebrado, tem força irrefreável perante as próprias partes e terceiros é desconsiderar a realidade de que todo contrato é celebrado inserido em um sistema de valores, e sob determinado contexto histórico, no qual importam as circunstâncias, inclusive as econômicas.
Desde há muito se reconhece que, a liberdade, se não ponderada em face de outros valores, isto é, a liberdade ilimitada, tem, ela própria, potencial de gerar abusos, não já do Estado contra o indivíduo, mas do indivíduo contra o indivíduo. Sem querer aniquilar o indivíduo e o espaço de liberdade de cada um, justamente porque este é amplo, há que se ter controle sobre a autonomia dos agentes privados, para que os excessos de alguns, particulares ou públicos, não prejudiquem outros.
A liberdade econômica pode e deve ser assegurada, mas não é o único valor da nossa Constituição. Há outros que também devem ser observados. Deve-se, pois, compatibilizar esse importante princípio constitucional com outros igualmente previstos. Argumentos econômicos, embora importantes e preciosos no campo da atividade econômica, não podem ser os únicos a serem levados em consideração tanto na criação de modelos legislativos quanto na aplicação das normas criadas. Por óbvio que se diga, a economia deve ser compatibilizada com a justiça.
Diante de tais considerações, espera-se que a alteração legislativa realizada no dispositivo referente ao princípio da função social do contrato seja motivadora de maior racionalidade na utilização do princípio. Os intérpretes devem ser cuidadosos na sua invocação, para que a função social não seja indevidamente utilizada para amparar intromissões excessivas no espaço de autonomia privada, que deve ser amplo.
A autonomia se orienta não apenas pelo princípio da função social, mas também outros que informam a teoria geral do contrato, entre os quais, o da obrigatoriedade dos negócios jurídicos celebrados em conformidade com o nosso ordenamento. Parece que nesse sentido deve ser a leitura do novo parágrafo único do artigo 421, o qual menciona a prevalência do princípio da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual. Ou seja, as alterações legais foram previstas para promover foco na liberdade econômica, que ganha prestígio, sem, contudo, descurar de outros valores do ordenamento.
Com efeito, o comando introduzido por referido parágrafo único do artigo 421 do Código Civil (LGL\2002\400) não tem o condão de impedir a atuação estatal sempre que ela for necessária e adequada, com base no princípio da função social e em conjugação com os outros princípios incidentes sobre a interpretação contratual. Considerando notadamente o fato de os limites estabelecidos pelo princípio da função social serem internos, conformadores da autonomia, ele não deixará de ser invocado sempre que violados valores socialmente relevantes, conforme positivados em nossa ordem jurídica, a despeito das alterações legislativas recentes.
Síntese conclusiva
Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o princípio da função social do contrato não outorga uma faculdade ao intérprete, mas sim um limite para sua atuação, tendo em vista que a própria liberdade de agir constitui valor relevante em nosso ordenamento. Ou seja, apenas quando, concretamente analisado, um ato de autonomia privada se revele em desacordo com valores socialmente relevantes (devidamente positivados) estará sujeito a controle imposto pela função social do contrato.
Todo contrato é um ato multifuncional. Sua principal finalidade é ser instrumento de autonomia privada e gestão de riscos, mas o intérprete deve estar atento a todas as suas funções. O artigo 421 do Código Civil (LGL\2002\400) e demais dispositivos relacionados à função social do contrato contidos em nosso ordenamento devem atuar como mecanismos de proteção à autonomia, na medida em que qualquer intromissão não justificada em interesses sociais relevantes será vedada ao julgador42.
Sem prejuízo, sempre que houver violação a valores socialmente relevantes, efeitos de atos de autonomia poderão ser obstados (ou eventualmente modificados), com fundamento no princípio da função social do contrato, que determina a conformação da autonomia aos valores do ordenamento. Da mesma maneira, sob a perspectiva promocional do Direito, pode ocorrer também, com base na função social do contrato, o reconhecimento de efeitos de atos de autonomia que estruturalmente não sejam perfeitos, sempre mediante a justificada necessidade e adequação de sua invocação.
Se os limites impostos pela função social do contrato fossem apenas externos, meramente formais ou estruturais, isto é, não conformassem internamente a vontade das partes, tenderiam a ser sempre os mesmos. Mas a função social é interna, integra intrinsecamente o contrato, fazendo com que a designada autonomia privada não seja uma autonomia qualquer, mas qualificada, isto é, uma autonomia em conformidade com os valores do ordenamento, que por isto mesmo deve ser prestigiada.
Tal percepção só é possível através de uma análise que investiga os fins perseguidos pelas partes através do ato de autonomia, bem como verifica a conformidade do ato aos valores constantes em nosso ordenamento, chamada de análise funcional.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Nádia de. Contratos internacionais e a jurisprudência brasileira: lei aplicável, ordem pública, e cláusula de eleição de foro. In: RODAS, João Grandino (Coord.). Contratos internacionais. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2002.
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do Mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 750, p. 113-120, abr. 1998.
BELLOIR, Arnaud Marie Pie; POSSIGNOLO, André Trapani Costa; Ensaio de classificação das teorias sobre a função social do contrato. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 11, p. 37-56, jan.-mar. 2017.
BOYADJIAN, Gustavo Henrique Velasco; BIZELLI, Rafael Ferreira. A cláusula geral da função social dos contratos: enfoque específico na sua eficácia externa, sob a perspectiva civil-constitucional. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 58, p. 111-137, abr.-jun. 2014.
BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Limites dogmáticos da intervenção judicial na Liberdade contractual com fundamento na função social dos contratos. In: MONTEIRO, António Pinto (Dir.) Estudos do Direito do consumidor, Coimbra, n. 8, p. 203-227, 2006/2007. Disponível em: [www.fd.uc.pt/cdc/pdfs/rev_8_completo.pdf].
BUCAR, Daniel; MUCILO, Daniela de Carvalho. Situações Jurídicas patrimoniais: funcionalização ou comunitarismo? Revista Brasileira de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 6, p. 26-41, out.-dez. 2015.
CAVALI, Cássio Machado. Apontamentos sobre a função social da empresa e o moderno direito privado. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 6, p. 519-526, jul.-ago. 2014.
DANTAS, Marcus Eduardo de Carvalho. Dogmática “opinativa”: o exemplo da função social da propriedade. Revista Direito GV, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 769-795, set.-dez. 2017.
FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015.
FACHIN, Luiz Edson. Contratos e responsabilidade civil: duas funcionalizações e seus traços. Revista dos Tribunais,São Paulo, v. 903, p. 26-37, jan. 2011.
FERNANDES, Micaela Barros Barcelos. Lei 13.818/2019, MP 881 e as iniciativas para promoção da liberdade econômica: reflexões sobre as propostas de redução de barreiras burocráticas e a concretização do princípio da livre iniciativa. Jota Info. Publicado em 10.05.2019. Disponível em [www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lei-13-818-2019-mp-881-e-as-iniciativas-para-promocao-da-liberdade-economica-10052019]. Acesso em: 02.10.2019.
FONSECA, Rodrigo Garcia da. A função social do contrato e o alcance do artigo 421 do Código Civil (LGL\2002\400). Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.
HIRONAKA, Giselda M. Fernandes Novaes. A função social do contrato. Revista de DireitoCivil, São Paulo, v. 45, p. 141-152, jul.-set. 1988.
KONDER, Carlos Nelson. Para além da “principialização” da função social do contrato. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 13, p. 39-59, jul.-set. 2017.
KONDER, Carlos Nelson. Princípios contratuais e exigência de fundamentação das decisões: boa-fé́ e função social do contrato à luz do CPC/2015 (LGL\2015\1656). Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, ano 14, n. 19, p. 33-57, jul.-dez. 2016.
KONDER, Carlos Nelson. Fundamentação das decisões e aplicação da função social do contrato: aportes do código de processo civil de 2015. In MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro et a.l (Coord.). O novo processo civil brasileiro: temas relevantes – estudos em homenagem ao professor, ministro e jurista Luiz Fux. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2018. v. I.
KONDER, Carlos Nelson. Causa do contrato x função social do contrato: estudo comparativo sobre o controle da autonomia negocial. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 43, p. 33-75, jul.-set. 2010.
LÔBO, Paulo. Contrato e mudança social. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 722, ano 84, p. 40-45, dez. 1995.
MARTINS-COSTA, Judith. Novas reflexões sobre o princípio da função social dos contratos. In: MONTEIRO, António Pinto. Estudos de direito do consumidor. Coimbra: Centro de Direito do Consumo, 2005.
MARTINS-COSTA, Judith. Notas sobre o princípio da função social dos contratos. Revista Literária de Direito, n. 53, p. 17-21, ago.-set. 2004.
MORAES, Maria Celina Bodin de. A causa do contrato. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 2, n. 4, out.-dez. 2013. Disponível em: [http://civilistica.com/a-causa-do-contrato]. Acesso em: 03.10.2019.
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
REALE, Miguel. Função social do contrato. Disponível em: [www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm]. Acessado em: 02.10.2019.
RENTERÍA, Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In: MORAES, Maria Celina Bodin de (Coord.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. O valor social da livre iniciativa e a função social dos
contratos na MP 881. Jota Info. Publicado em 15.05.-2019. Disponível em: [www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-valor-social-da-livre-iniciativa-e-a-funcao-social-dos-contratos-na-mp-881-15052019]. Acesso em: 02.10.2019.
SCHREIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento: adimplemento substancial, inadimplemento antecipado e outras figuras. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 8, n. 32, p. 3-27, out.-dez. 2007
SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual: aplicações da função negocial nas invalidades e nas vicissitudes supervenientes do contrato. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 8, n. 2, 2019. Disponível em: [http://civilistica.com/de-volta-a-causa-contratual/]. Acesso em: 03.10.2019.
SOUZA, Eduardo Nunes de. Função negocial e função social do contrato: subsídios para um estudo comparativo. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 54, p. 65-98, abr. 2013.
TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos contratos. Disponível em: [www.tepedino.adv.br/tep_artigos/notas-sobre-a-funcao-social-dos-contratos]. Acesso em: 30.03.2019.
THEODORO JR., Humberto. O contrato e sua função social: a boa-fé objetiva no ordenamento jurídico e a jurisprudência contemporânea. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
TIMM, Luciano Benetti. Função social do direito contratual no Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro: justiça distributiva vs. eficiência econômica. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 876, p. 11-28, out. 2008.
TIMM, Luciano Benetti. Direito, economia e a função social do contrato: em busca dos verdadeiros interesses coletivos protegíveis no Mercado de crédito. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, v. 33, p. 15-31, jul.-set. 2006.
TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Uma década de aplicação da função social do contrato. Análise da doutrina e da jurisprudência brasileiras. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 940, p. 49-85, fev. 2014.
VIÉGAS, Francisco de Assis. Denúncia contratual e dever de pré-aviso. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
WALD, Arnoldo. O novo código civil e o solidarismo contratual. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, v. 21, p. 14-47, jul.-set. 2003.
ZANETTI, Cristiano de Sousa. A relatividade dos efeitos contratuais e a autonomia da pessoa jurídica. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 905, p. 119-134, mar. 2011.
   
1 “Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei 13.874, de 2019).”
 
2 “Art. 2.035. [...] Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”
 
3 “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:I– – construir uma sociedade livre, justa e solidária;”
 
4 “Art. 5º [...]XXII– – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;”
 
5 “Art. 147. – O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.”
 
6 Princípio do qual decorre também a função social da empresa, atividade econômica organizada voltada à produção e circulação de riquezas desenvolvida pelos agentes econômicos que administram múltiplos e entrecruzados contratos, na consecução de seus objetivos.
 
7 BUCAR, Daniel; MUCILO, Daniela de Carvalho. Situações Jurídicas patrimoniais: funcionalização ou comunitarismo? Revista Brasileira de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 6, p. 26-41, out.-dez. 2015.
 
8 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do Mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 750, p. 113-120, abr. 1998.
 
9 RENTERÍA, Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social do contrato. In MORAES, Maria Celina Bodin de (Coord.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 281-313.
 
10 TIMM, Luciano Benetti. Função social do direito contratual no Código Civil brasileiro: justiça distributiva vs. eficiência econômica. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 876, p. 11 – 28, out. 2008.
 
11 BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Limites dogmáticos da intervenção judicial na liberdade contractual com fundamento na função social dos contratos. In: MONTEIRO, António Pinto (Dir.) Estudos do direito do consumidor, Coimbra, n. 8, p. 203-227, 2006-2007.12 REALE, Miguel. Função social do contrato. Disponível em: [www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm]. Acesso em: 30.03.2019.
 
13 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do Mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 750, p. 113-120, abr. 1998. – 
 
14 Importante notar a passagem da expressão autonomia da vontade, em que se destaca um individualismo exacerbado, em que o espaço de liberdade era compreendido como confrontado com a ordem jurídica, para a expressão autonomia privada, em que o espaço de liberdade é conformado pela ordem jurídica, valorizado por ela, mas não mais tido como absoluto, devendo ser equilibrado com outros valores e interesses positivados no ordenamento.
 
15 MARTINS-COSTA, Judith. Novas reflexões sobre o princípio da função social dos contratos. In: MONTEIRO, António Pinto. Estudos de direito do consumidor. Coimbra: Centro de Direito do Consumo, 2005. p. 93 e ss.
 
16 Antes que se invoque o valor da solidariedade, e seus institutos correlatos, como a própria função social, como algo que tira a liberdade, ou até mesmo como instituto de “inspiração comunista”, vale lembrar que no comunismo sequer há propriedade privada, então não há função social da propriedade, também não há liberdade de contratar, portanto tampouco há função social do contrato.
 
17 FACHIN, Luiz Edson. Contratos e responsabilidade civil: duas funcionalizações e seus traços. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 903, p. 26-37, jan. 2011.
 
18 Na perspectiva libertária, a função social é entendida como um limite apenas externo, que se contrapõe à autonomia. Mas não parece ter sido essa a perspectiva encampada pelo ordenamento brasileiro que, de acordo com a redação conferida à função social, conferiu-lhe caráter de limite interno, que integra a autonomia.
 
19 KONDER, Carlos Nelson. Para além da “principialização” da função social do contrato. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 13, p. 39-59, jul.-set. 2017.
 
20 A respeito do tema, que será retomado no item 4.1 adiante, desde já se recomenda: SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual: aplicações da função negocial nas invalidades e nas vicissitudes supervenientes do contrato. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 8, n. 2, 2019. Disponível em: [http://civilistica.com/de-volta-a-causa-contratual]. Acesso em: 03.10.2019.
 
21 Ou seja, valores da coletividade (que se refiram a sujeitos determinados ou indeterminados) que foram positivados em nosso ordenamento (porque obviamente a própria atividade do intérprete, tal como o agir dos contratantes, é uma atividade orientada pelo ordenamento). A função social como princípio lato sensu subjaz a todos os bens de interesse comum, mas, como princípio de aplicação específica, se torna especialmente útil em situações em que os valores relevantes para a coletividade ainda não foram expressamente detalhados, mas se encontram subjacentes em nosso ordenamento. Com efeito, valores que já foram amadurecidos e desenvolvidos a ponto de ganharem expressão própria, inclusive sendo objeto de legislação específica, como livre concorrência, meio ambiente, relações trabalhistas, entre outros, são também reflexo da função social, mas a cláusula geral deve ser invocada justamente quando não há uma regra clara já estabelecida, e mediante a ponderação o aplicador da norma deve encontrar o equilíbrio interpretativo, com o fim de assegurar a observância de valores do ordenamento, entregando a justa tutela de interesses.
 
22 Interessante que os internacionalistas distinguem, no Direito Internacional Privado, de um lado, a autonomia privada, como liberdade de agir e contratar conforme dado ordenamento jurídico, da autonomia da vontade, esta entendida como liberdade para escolher a lei de regência nos contratos internacionais. A respeito, ver ARAÚJO, Nádia de. Contratos internacionais e a jurisprudência brasileira: lei aplicável, ordem pública, e cláusula de eleição de foro. In RODAS, João Grandino (Coord.). Contratos internacionais. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 195-229, especialmente nota de rodapé 3. Ainda que a possibilidade de escolha da lei de regência só exista porque essencialmente autorizada por um dado ordenamento (sob pena de os efeitos produzidos não serem posteriormente reconhecidos por ele), essa sutil distinção no uso das expressões parece coerente com a perspectiva aqui proposta.
 
23 Não apenas os trazidos pelo princípio da função social, inclusive porque não é o único a incidir nos contratos, mas também os trazidos por ele.
 
24 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. O valor social da livre-iniciativa e a função social dos contratos na MP 881. Jota Info. Disponível em: [www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-valor-social-da-livre-iniciativa-e-a-funcao-social-dos-contratos-na-mp-881-15052019]. Acesso em: 02.10.2019.
 
25 Nas relações obrigacionais não se cogita mais da existência de simples deveres de prestação estáticos a serem cumpridos, mas de um processo dinâmico em que direitos e deveres recíprocos entre as partes são dirigidos a um escopo comum. SCHREIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento: adimplemento substancial, inadimplemento antecipado e outras figuras. Revista Trimestral de Direito Civil. v. 8, n. 32, p. 3-27, out.-dez. 2007.
 
26 “[...] controle funcional da denúncia contratual pode fundamentar-se (não apenas na proteção da legítima confiança das partes, mas) também no interesse de terceiros cujos interesses podem ser alcançados pela interrupção da relação contratual mediante denúncia. Trata-se, da mesma forma, de controle de merecimento de tutela do ato de autonomia privada consubstanciado na denúncia, mas o interesse que justifica a restrição ao direito de resilir nesta hipótese não é o das partes da relação contratual, mas de terceiros, como, por exemplo, consumidores, agentes econômicos de determinado mercado, comunidades locais ou mesmo a coletividade indeterminada. [...] necessário restringir a faculdade normalmente assegurada ao denunciante sempre que a função social do contrato demandar que o contrato seja executado por prazo razoável após a denúncia.” (VIÉGAS, Francisco de Assis. Denúncia contratual e dever de pré-aviso. Belo Horizonte: Fórum, 2019. especialmente p. 246 e ss.).
 
27 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 107-108.
 
28 TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos contratos. Disponível em : [www.tepedino.adv.br/tep_artigos/notas-sobre-a-funcao-social-dos-contratos]. Acesso em: 30.03.2019.
 
29 Com efeito, a tutela conferida pela função social pode ter tanto efeito supressor de efeitos, como criador. Como lembra Carlos Konder, “a consequência da proteção aos interesses da coletividade pode ser não apenas a privação de efeitos dos negócios que afrontam tais interesses, mas também a conservação ou o tratamento jurídico diferenciado de um contrato que tenha grande repercussão no atendimento de um interesse socialmente relevante.” (KONDER, Carlos Nelson. Princípios contratuais e exigência de fundamentação das decisões: boa-fé́ e função social do contrato à luz do CPC/2015. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, ano 14, n. 19, p. 33-57, jul.-dez. 2016).
 
30 TJCE. Processo 0630689-43.2017.8.06.0000 – Agravo de Instrumento. Agravante: Brinks Segurança e Transporte de Valores Ltda. Agravado: Itaú Unibanco S/A. Relator: Desembargador Heráclito Vieira de Sousa Neto.
 
31 Sobre essa trajetória recomenda-se: KONDER, Carlos Nelson. Causa do contrato x função social do contrato: estudo comparativo sobre o controle da autonomia negocial. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 43, p. 33-75, jul.-set. 2010.
 
32 “Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:I – agente capaz;
II– – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III – forma prescrita

Outros materiais