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DESCRIÇÃO Apresentação dos conceitos de sociedade disciplinar, sociedade de controle, sociedade de consumo e sociedade do espetáculo, além das formas de controle e arranjo social na modernidade e na pós-modernidade. PROPÓSITO Compreender as principais formas de arranjo e controle social no mundo contemporâneo e suas consequências, a partir das contribuições de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Guy Debord e Jean Baudrillard, trazem ao estudioso da contemporaneidade importantes ferramentas de análise e compreensão dos últimos séculos e em especial da sociedade dos dias atuais. OBJETIVOS MÓDULO 1 Definir características da sociedade disciplinar MÓDULO 2 Identificar aspectos da sociedade de controle MÓDULO 3 Reconhecer paradigmas da sociedade do espetáculo MÓDULO 4 Descrever a problemática do valor na sociedade de consumo INTRODUÇÃO Uma das preocupações do pensamento filosófico, em especial na filosofia política, é o poder. Por séculos, pensadores se perguntam e elaboram teorias a respeito da atuação do poder. E um dos caminhos possíveis para esse estudo passa pelos mecanismos de controle dos indivíduos e das sociedades. Apresentaremos quatro modelos: Foto: Unknown / Wikimedia commons/ Domínio público / Acervo Arquivo Nacional SOCIEDADE DISCIPLINAR Por Michel Foucault - tendo inspiração inicial o claustro monástico, mas também reproduzida tendo a prisão, a escola e a fábrica como modelos. Foto: Gilles Deleuze / Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) / Gilles Deleuze © SOCIEDADE DE CONTROLE Por Gilles Deleuze - um desdobramento no século XX da sociedade de controle. Foto: www.marxists.org © SOCIEDADE DE ESPETÁCULO Por Guy Debord - também iniciada no fim do século XX, mas com características muito mais marcantes no século XXI. Foto: Ayaleila/ Magnus Manske/ CC BY-SA 3.0 SOCIEDADE DE CONSUMO Por Jean Baudrillard - iniciada também no final do século XX, mas que ganharia força no século XXI. MÓDULO 1 Definir características da sociedade disciplinar UMA HISTÓRIA POLÍTICA DO CORPO A PARTIR DO SÉCULO XVII As chamadas sociedades disciplinares, na forma como as entende Michel Foucault, podem ser identificadas a partir do século XVII e nascem no contexto da Modernidade. Podemos entender a palavra Modernidade segundo a definição de Max Weber (1864-1920). Para ele, a Modernidade era o produto de um processo de racionalização ocorrido no Ocidente desde o final do século XVIII e implicou a modernização da sociedade e a modernização da cultura (ROUANET, 1987). O século XVIII se caracterizou pela crença no progresso do espírito humano, pelo desenvolvimento das máquinas termodinâmicas, pela confiança no saber e na razão e pela utopia da educação universal. Todas essas perspectivas podem ser identificadas nos movimentos revolucionários do período, sejam no âmbito econômico (Revolução Industrial Inglesa), ideológico (Iluminismo Francês e Esclarecimento Alemão) e mesmo social (Revolução Americana e Francesa). Mas, para Foucault, apesar de característica das sociedades industriais, o poder disciplinar já estava presente no século XVII. Esse mecanismo de controle e sua conformação social atingiram seu apogeu no início do século XX. MICHEL FOUCAULT Michel Foucault (1926-1984) foi um filosofo francês, que exerceu grande influência sobre os intelectuais contemporâneos. Ficou conhecido por suas posições contrárias ao sistema prisional tradicional. As teorias de Foucault abordam principalmente a relação entre o poder e o conhecimento, e como elas são usadas com o objetivo de controle social através das instituições. Fonte: Ebiografia javascript:void(0) PARA ELE, AS SOCIEDADES DISCIPLINARES SÃO AS SOCIEDADES BURGUESAS COM OS SEUS HORÁRIOS RÍGIDOS, SEUS EXAMES, E TUDO ISSO CONVERGINDO PARA A FORMAÇÃO DE “CORPOS DÓCEIS” APTOS PARA TRABALHAREM EM FÁBRICAS COM JORNADAS ABSURDAS. O personagem de Charles Chaplin (1889-1977), no filme Tempos Modernos, é exatamente o homem da “sociedade disciplinar”, representado em seu modelo mais clássico: o trabalho mecanizado que também mecaniza o homem e suas relações. Imagem: Unknown author/ moreorlessbunk.wordpress.com / Wikimedia commons / Domínio Público De acordo com Foucault (1977), as sociedades disciplinares engendraram o que se pode chamar de “biopoder”: um poder que se exerce sobre os corpos e as populações. Nesta perspectiva, há uma história política dos corpos que pode ser contada a partir do século XVII. Essa história abrange desde as preocupações com a higiene até o vigor dos castigos corporais que eram adotados pelas famílias, escolas, presídios etc. Para que se exerça esse biopoder é necessário tanto uma quantificação rígida quando a contabilização da espécie humana, que passaria a ser objeto de estimativas e pesquisas quantitativas. Daí a importância econômica e política do controle sobre a população com seus fenômenos específicos: Natalidade; Mortalidade; Expectativa de vida; Fecundidade; Estado de saúde; Formas de alimentação e de habitat. As sociedades disciplinares objetivavam tornar o homem racional, eficiente, dócil e trabalhador. Era preciso constituir uma humanidade flexível às inovações trazidas pelas novas máquinas de produção e táticas de guerra. Revolução Industrial. Ferro e Carvão, William Bell Scott, 1855-60. Imagem: William Bell Scott / en.wikipedia / Wikimedia commons / Domínio Público O OLHAR ESMIUÇANTE No século XVIII, segundo Foucault (1997), aparece a ideia de “homem-máquina”, pensada em dois registros diferentes: REGISTRO ANÁTOMO-METAFÍSICO Sua fundamentação era cartesiana e buscava regulamentar o corpo e a alma. REGISTRO TÉCNICO-POLÍTICO Constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. CARTESIANA “A filosofia mecanicista de Descartes [1596 – 1650] se estendia inclusive ao funcionamento do corpo humano. Ela acreditava que as leis da mecânica explicariam a vida do homem e dos animais, e em seus trabalhos de fisiologia utilizou o calor, a hidráulica, os tubos, as válvulas e as ações mecânicas das alavancas para explicar as ações do corpo” (KLINE apud MURTA; SANSON Jr., 2017). ATENÇÃO O que estava sendo construído era uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento. A ideia era produzir um “corpo dócil” que pudesse ser submetido, utilizado e manipulado. A esses processos Foucault nomeou de “disciplinares” e assim os definiu: javascript:void(0) A MODALIDADE, ENFIM, IMPLICA NUMA COERÇÃO ININTERRUPTA, CONSTANTE QUE VELA SOBRE OS PROCESSOS DA ATIVIDADE MAIS QUE SOBRE SEU RESULTADO; E SE EXERCE DE ACORDO COM UMA CODIFICAÇÃO QUE ESQUADRINHA AO MÁXIMO O TEMPO, O ESPAÇO, OS MOVIMENTOS. (FOUCAULT, 1997) Foucault distingue a “disciplina” de outras formas de controle como a “escravidão”, a “domesticidade”, a “vassalidade”, o “ascetismo”. Para ele, o momento histórico das disciplinas é quando nasce “uma arte do corpo humano que visa não unicamente ao aumento de suas habilidades” (1997, p.11), mas a uma manipulação calculada de seus gestos, de seus comportamentos. Fonte: makeagif.com Assim, conclui: O CORPO HUMANO ENTRA NUMA MAQUINARIA DE PODER QUE O ESQUADRINHA, O DESARTICULA E O RECOMPÕE. (FOUCAULT, 1997, p.119) Com isso, temos uma mecânica do poder que fabrica corpos submissos, exercitados e dóceis. Esse tipo de poder aumenta, por um lado, certas aptidões, capacidades e energias e, por outro lado, cria relações de sujeição estrita. SE A EXPLORAÇÃO ECONÔMICA SEPARA A FORÇA E O PRODUTO DO TRABALHO, DIGAMOS QUE A COERÇÃO DISCIPLINAR ESTABELECE NO CORPO O ELO COERCITIVO ENTRE UMA APTIDÃO AUMENTADA E UMA DOMINAÇÃO ACENTUADA. (FOUCAULT, 1997, p.119) Essa nova anatomia política, de acordo com Foucault (1997), não foi uma criação súbita, ela decorre de uma multiplicidade de processos com origens e localização esparsas. Esses processos começaram nos colégios, nas escolas primárias, nosespaços hospitalares. Isso tudo não estava separado da emergência da indústria e dos investimentos para o monitoramento de certas doenças epidêmicas. As instruções disciplinares foram diversas e cada uma teve as suas singularidades, mas todas tinham em comum técnicas minuciosas. A SOCIEDADE DISCIPLINAR, SEGUNDO FOUCAULT, NÃO CRIOU A RACIONALIZAÇÃO UTILITÁRIA, MAS DEU A ELA CUIDADOS MINUCIOSOS E INSTRUMENTOS PRECISOS. De certo modo, a sociedade disciplinar herdou da teologia essa obsessão pelo detalhe que já estava na ideia de que aos olhos de Deus nenhuma paixão é maior que o detalhe. Para o crente, assim como para o homem disciplinado, nenhum detalhe é indiferente. Há nitidamente uma perspectiva pastoral na “sociedade disciplinar”. A mística pastoral do cotidiano se assemelha muito à tecnologia do minúsculo como uma relação de poder. Trata-se de um olhar esmiuçante, do controle das mínimas coisas. Nasce o novo Newton, não mais da imensidão dos céus das massas planetárias, mas do controle sobre os pequenos movimentos que não deixam escapar um mínimo fio de cabelo: NEWTON Isaac Newton (1643 - 1727), cientista inglês cujas leis, como a lei da gravidade, fundamentaram a mecânica clássica. Analisou, por exemplo, as leis de movimento dos planetas. E DESSES ESMIUÇAMENTOS NASCEU O HOMEM DO HUMANISMO MODERNO. (FOUCAULT, 1997, p.121) A CIDADE PESTILENTA Foucault nos diz que, no século XVII, foi para erradicar a peste que a “disciplina” fez valer o seu poder. A sociedade disciplinar nasceu com o “grande fechamento”. javascript:void(0) Quando se declarava que a peste estava numa cidade, todos eram proibidos de sair de casa sob pena de morte, cada rua era colocada sob a autoridade de um síndico. O próprio zelador fechava por fora cada casa. As pessoas só podiam sair de casa em turno, para evitar qualquer encontro, e ainda assim, apenas por motivos absolutamente necessários. Só podiam circular os intendentes, os síndicos e os soldados. A gente considerada vil ficava encarregada de enterrar os mortos, além de outros ofícios abjetos. Em cada rua existia uma sentinela para evitar desordens, roubos e pilhagens. Havia uma chamada diária e os intendentes faziam registros detalhados do que ocorria nas ruas. Imagem: unknown / theloveforhistory.com / Wikimedia Commons / Domínio público Coleta de cadáveres na rua durante a Grande Praga de Londres. ESSE ESPAÇO FECHADO, RECORTADO, VIGIADO, ONDE OS INDIVÍDUOS ESTÃO INSERIDOS NUM LUGAR FIXO, ONDE OS MENORES MOVIMENTOS SÃO CONTROLADOS, ONDE TODOS OS ACONTECIMENTOS SÃO REGISTRADOS, ONDE UM TRABALHO ININTERRUPTO DE ESCRITA LIGA O CENTRO E A PERIFERIA, ONDE O PODER É EXERCIDO SEM DIVISÃO, SEGUNDO UMA FIGURA HIERÁRQUICA CONTÍNUA, ONDE CADA INDIVÍDUO É CONSTANTEMENTE LOCALIZADO, EXAMINADO E DISTRIBUÍDO ENTRE OS VIVOS, OS DOENTES E OS MORTOS – ISSO TUDO CONSTITUI UM MODELO COMPACTO DE DISPOSITIVO DISCIPLINAR. (FOUCAULT, 1997, p.163) Foi para combater a peste que se fez valer um poder onisciente e onipresente. O modelo político da peste era o contrário das festas coletivas com suas aglomerações e máscaras; cada um agora era exposto e identificado pelo poder. A sociedade disciplinar surgiu com a penetração capilar do poder que tornava visíveis os mais finos detalhes da existência por meio de uma hierarquia completa. A PESTE COMO FORMA REAL E, AO MESMO TEMPO, IMAGINÁRIA DA DESORDEM TEM A DISCIPLINA COMO CORRELATO MÉDICO E POLÍTICO. ATRÁS DOS DISPOSITIVOS DISCIPLINARES SE LÊ O TERROR DOS CONTÁGIOS, DA PESTE, DAS REVOLTAS, DOS CRIMES, DA VAGABUNDAGEM, DAS DESERÇÕES, DAS PESSOAS QUE APARECEM E DESAPARECEM, VIVEM E MORREM NA DESORDEM. (FOUCAULT, 1997, p.164) Foucault afirma que foi o “dispositivo da peste” que fez emergir a universalidade dos controles disciplinares e todos os conjuntos de técnicas e de instituições que nos permitem medir, controlar e corrigir os ditos anormais. Foi o medo da peste que possibilitou “os mecanismos de poder que, ainda em nossos dias, são dispostos em torno do anormal, para marcá-lo, como para modificá-lo” (FOUCAULT, 1997, p.165). É nesse sentido que ele usa o exemplo de uma doença epidêmica – a hanseníase (lepra) – e a própria peste (bubônica) para tais mecanismos de poder: SE É VERDADE QUE A LEPRA SUSCITOU MODELOS DE EXCLUSÃO QUE DERAM ATÉ UM CERTO PONTO O MODELO E COMO QUE A FORMA GERAL DO GRANDE FECHAMENTO, JÁ A PESTE SUSCITOU ESQUEMAS DISCIPLINARES. MAIS QUE A DIVISÃO MACIÇA E BINÁRIA ENTRE UNS E OUTROS, ELA RECORRE A SEPARAÇÕES MÚLTIPLAS, A DISTRIBUIÇÕES INDIVIDUALIZANTES, A UMA ORGANIZAÇÃO APROFUNDADA DAS VIGILÂNCIAS E DOS CONTROLES, A UMA INTENSIFICAÇÃO E RAMIFICAÇÃO DO PODER. (FOUCAULT, 1997, p.164) A IDADE DE OURO DA ORTOPEDIA SOCIAL Em um conjunto de conferências que foi publicado com o nome de A Verdade e as Formas Jurídicas, Foucault procurou situar nos fins do século XVIII e no início do século XIX a consolidação de um tipo de formação social que ele designou de sociedade disciplinar. Ele nos diz que a reorganização do sistema judiciário e penal nos diferentes países da Europa e de outros países no mundo foi importante para a emergência dessa perspectiva de controle social. Identificou que essa transformação teve amplitude e cronologia diferentes nos diversos países em que ocorreu. VAMOS CONHECER O EXEMPLO EM DOIS PAÍSES? A Inglaterra e a França sofreram modificações distintas: Imagem: Shutterstock.com INGLATERRA O direito penal inglês apresentava um dos sistemas mais sangrentos e selvagem que a história das civilizações conheceu. Não obstante essa situação tenha se alterado no início do século XIX, não foi suficiente para que as instituições judiciárias inglesas se modificassem profundamente. Imagem: Shutterstock.com FRANÇA Na França, algo inverso aconteceu. Profundas modificações ocorreram. Beccaria e Brissot (revolucionários do Direito no século XVIII) redefiniam o princípio fundamental do sistema teórico da lei penal: a infração deixou de ter relação com a falta moral ou religiosa. BECCARIA Beccaria, ou melhor, Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria (1738-1794) foi um aristocrata milanês considerado o pai do Iluminismo penal. Vinha de uma família burguesa, por isso o título de Marquês. Sua família era praticamente dona da cidade onde vivia, Pavia, na Itália. javascript:void(0) javascript:void(0) Fonte: Jusbrasil. BRISSOT Jacques-Pierre Brissot, ou Jacques-Pierre Brissot de Warville (1754-1793), foi um líder dos girondinos (muitas vezes chamados brissotins), uma facção burguesa moderada que se opôs aos jacobinos radical-democráticos durante a Revolução Francesa. Fonte: Encyclopædia Britannica. O crime passou a ser considerado ruptura com a lei civil estabelecida no interior de uma sociedade pelo braço legislativo do poder político. Antes da lei existir não podia haver infração. Criminoso era aquele que danificava a sociedade: ele era um inimigo interno que rompera com um pacto social. COMENTÁRIO O problema da lei penal não era mais a vingança ou a redenção de um pecado, mas a reparação da perturbação causada à sociedade. A lei penal deveria reparar o mal ou impedir que males semelhantes pudessem ocorrer. Nesse sentido, basicamente quatro penas foram previstas: deportação, trabalho forçado, vergonha (escândalo público) e pena de Talião. Contudo, o funcionamento das penalidades adotadas pelas sociedades industriais em vias de formação foi inteiramente diferente. Importante perceber, nesse contexto, a questão do aprisionamento. Beccaria havia falado nele ligeiramente, como uma forma de pena, e Brissot fizera uma breve alusão. Assim, a prisão não teria surgido da reforma penal do século XVIII, mas emergiu como um fato, no início do século XIX, sem justificativa teórica, segundo Foucault. Mas, para ele, não há como pensar a emergência da sociedade disciplinar sem entender o surgimento da prisão. javascript:void(0) PENA DE TALIÃO A pena de Talião consiste em uma rigorosa reciprocidade entre o crime e a pena. Tudo que o indivíduocometeu deve ser aplicado a ele mesmo em igual medida. MINHA HIPÓTESE É QUE A PRISÃO ESTEVE, DESDE SUA ORIGEM, LIGADA A UM PROJETO DE TRANSFORMAÇÃO DOS INDIVÍDUOS. DESDE 1820 SE CONSTATA QUE A PRISÃO, LONGE DE TRANSFORMAR OS CRIMINOSOS EM GENTE HONESTA, SERVE APENAS PARA FABRICAR NOVOS CRIMINOSOS OU PARA AFUNDÁ-LOS AINDA MAIS NA CRIMINALIDADE. (FOUCAULT, 1997, p.131-132) A POLÍCIA DAS VIRTUALIDADES A sociedade disciplinar pressupôs desde o seu aparecimento uma polícia das virtualidades, já no início do século XIX: as punições não visavam mais ao que já foi realizado. javascript:void(0) VIRTUALIDADES Nesse contexto, virtual indica “aquilo que potencialmente pode acontecer; aquilo que pode ser que aconteça”. O PROBLEMA ESTAVA AO NÍVEL DO QUE OS INDIVÍDUOS PODERIAM FAZER. O foco da criminologia passou a ser a periculosidade: não se tratava mais de uma reação penal ao que foi feito, mas do controle do comportamento no instante em que ele se esboça. Com isso, o poder judiciário deixou de ser uma instituição penal autônoma. Já que se inicia um controle penal punitivo ao nível das virtualidades, esse não pode ser efetuado pela própria justiça. Surgem poderes paralelos ao judiciário: o poder policial (para vigilância); os poderes criminológicos e pedagógicos (para correção). E PARA QUE SERVEM ESSAS NOVAS INSTITUIÇÕES? Todas essas instituições nascem para corrigir virtualidades. Foucault denominou essa época de idade de ouro da ortopedia social. Nessa era, o grande nome não foi Kant nem Hegel. O mais importante foi Bentham, que previu um esquema para a sociedade de vigilância: o famoso “panóptico”. javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) KANT Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo alemão, fundador da “Filosofia Crítica” - sistema que procurou determinar os limites da razão humana. Sua obra é considerada a pedra angular da filosofia moderna. Fonte: eBiografia HEGEL Friedrich Hegel (1770-1831) foi um filósofo alemão. Um dos criadores do sistema filosófico chamado idealismo absoluto. Foi precursor do existencialismo e do marxismo. Fonte: eBiografia BENTHAM Jeremy Bentham (1748-1832) foi um filósofo inglês e jurista teórico que chefiou um grupo de filósofos radicais conhecidos como “utilitaristas” que pregavam reformas políticas e sociais, entre elas uma nova Constituição para o país. Fonte: eBiografia O PODER DO ESPÍRITO SOBRE O ESPÍRITO O “panóptico” era uma arquitetura que permitia o poder do espírito sobre o espírito; ou seja: o poder da subjetividade. Mais que vigiar o corpo do indivíduo (ou a ação realizada), era possível vigiar seu espírito (a ação virtual). Por isso, o panóptico deveria valer para hospitais, prisões, casas de correção, escolas, hospícios, fábricas etc. Imagem da arquitetura panóptica de um presídio na Isla de la Juventud, em Cuba. Foto: Friman / Own work / Wikimedia Commons / CC BY-SA 3.0 ELE ERA A UTOPIA DE UMA SOCIEDADE E DE UM PODER QUE PRETENDIA MANTER SOB VIGILÂNCIA PERMANENTE TODOS OS INDIVÍDUOS. No século XVIII, os mecanismos sociais de controle não pararam de proliferar: Foto: Shutterstock.com INGLATERRA Surgiram comunidades religiosas que tinham dupla tarefa: vigilância e assistência. Assim foram as sociedades de controle aos vícios, os metodistas, os quakers etc. javascript:void(0) Foto: Shutterstock.com FRANÇA Por outro lado, a França possuidora de um forte aparelho do Estado monárquico, criou, ao lado dos instrumentos judiciários clássicos (os parlamentares, as cortes etc.), um instrumento parajudiciário: a polícia. QUAKERS Grupos religiosos do protestantismo britânico do século XVII. Os quakers rejeitam qualquer organização clerical e defendem o pacifismo e simplicidade. A LETTRE-DE-CACHET Foucault relaciona o surgimento da prisão a uma prática parajudiciária denominada lettre-de- cachet. Tratava-se de uma utilização do poder real feita espontaneamente por grupos. Quando uma lettre-de-cachet era enviada contra alguém, esse não era enforcado, nem multado, nem marcado, mas preso numa cela por um tempo não estabelecido, previamente, até nova ordem do rei. A ideia era aprisionar para corrigir. LETTRE-DE-CACHET Carta produzida por um rei ou seus ministros, que tinha como característica ser lacrada com um selo real (cachet). Na maioria das vezes, seu conteúdo possuía uma pena a ser cumprida por quem a recebia. SAIBA MAIS A prática da lettre-de-cachet não tem origem no universo do Direito e não nasceu da teoria jurídica do crime. A ideia de uma penalidade que procura corrigir aprisionando nasceu em um jogo de trocas entre demandas sociais (de grupos determinados) e o exercício do poder, mas, sobretudo, era uma ideia policial. Nasceu paralela à justiça! O que ocorreu na França, no século XVIII, é que os instrumentos estatais, estabelecidos pelo poder real, passaram a ser usados por grupos sociais. O que estava na origem do aparecimento desses grupos de controle era a emergência de um novo tipo de riqueza (materialidades não monetárias): máquinas, estoques, mercadorias etc. ERA O NASCIMENTO DO CAPITALISMO. AS RIQUEZAS ESTAVAM EXPOSTAS À DEPREDAÇÃO. O PROBLEMA DO FIM DO SÉCULO XVIII ERA PROTEGER ESSA FORMA MATERIAL DA FORTUNA. Não é estranho que a criação da polícia na Inglaterra esteja ligada àqueles que eram, inicialmente, comerciantes. A polícia inglesa nasceu para vigiar as mercadorias armazenadas nas docas de Londres. Outra forte razão para a pilhagem, tanto na Inglaterra quanto na França, javascript:void(0) foi o desaparecimento dos grandes espaços não cultivados e das terras comuns. Com isso, multiplicaram-se os trabalhadores agrícolas desempregados, vivendo como conseguiam (pilhando frutas, legumes). Fica claro que a nova distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola tornou necessárias novas formas de controle. O LIRISMO E A OBSESSÃO No panóptico de Bentham, no centro da construção, há uma torre projetada de tal forma que se pode vigiar sem que o vigilante seja visto. O vigilante pode até ser virtual, mas o indivíduo que está na cela tem a impressão de ser vigiado e de poder ser punido. Foucault denuncia que o modelo da vigilância e da punição foi um coeficiente de efetuação que atravessou todos os dispositivos institucionais. COMENTÁRIO Em outras palavras, a família passou a ser uma espécie de prisão, assim como a fábrica etc. Claro que isso se dava em graus diferentes. Foucault entende que Bentham apresenta-se como complementar a Rousseau. O sonho rousseauniano, presente em muitos revolucionários iluministas, era de uma sociedade transparente, visível e legível em cada uma de suas partes, em que, de cada lugar ocupado por nós, pudéssemos enxergar todo o seu conjunto; em que os corações se comunicassem uns com os outros, e olhares e opiniões se encontrassem. ROUSSEAU Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi um filósofo social, teórico político e escritor suíço. Foi considerado um dos principais filósofos do Iluminismo e um precursor do Romantismo. javascript:void(0) Suas ideias influenciaram a Revolução Francesa. Em sua obra mais importante, O Contrato Social, desenvolveu sua concepção de que a soberania reside no povo. Fonte: eBiografia BENTHAM PENSA UMA VISIBILIDADE ORGANIZADA INTEIRAMENTE EM TORNO DE UM OLHAR DOMINADOR E VIGILANTE; UM PODER RIGOROSO E METICULOSO. Nesse sentido, o lirismo da Revolução articula-se à monstruosa ideia técnica do exercício de um poder onividente: um poder capaz de tudo ver; até a falta que ainda não foi cometida. A obsessão de Bentham complementa o lirismo de Rousseau. No vídeo a seguir, saiba um pouco mais sobre as Sociedades Disciplinares. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. EM SUA OBRA VIGIAR E PUNIR, FOUCAULT NOS DIZ QUE AS SOCIEDADES DISCIPLINARES SÃO AS SOCIEDADES BURGUESAS COM OS SEUS HORÁRIOS RÍGIDOS E SEUS EXAMES PARA A FORMAÇÃO DE CORPOS DÓCEIS. ANALISE AS AFIRMAÇÕES ABAIXO E ASSINALE A ALTERNATIVA COM AS OPÇÕES CORRETAS: I. AS SOCIEDADES DISCIPLINARES OBJETIVAVAM TORNAR O HOMEMRACIONAL, EFICIENTE, DÓCIL E TRABALHADOR. II. AS SOCIEDADES DISCIPLINARES NÃO DESENVOLVERAM PROCESSOS EMPÍRICOS PARA UMA TEORIA GERAL DO ADESTRAMENTO. III. AS SOCIEDADES DISCIPLINARES SE DISTINGUEM DE OUTRAS FORMAS DE CONTROLE COMO A ESCRAVIDÃO, A VASSALAGEM, O ASCETISMO, A DOMESTICIDADE. IV. A COERÇÃO DISCIPLINAR ESTABELECE UM ELO ENTRE A APTIDÃO AUMENTADA E A DOMINAÇÃO ACENTUADA. V. NÃO HÁ NENHUMA RELAÇÃO ENTRE O CONTROLE DA PESTE E A SOCIEDADE DISCIPLINAR. A) I, II e IV. B) II e V. C) I, III e IV. D) I e V. E) II e IV. 2. SEGUNDO FOUCAULT, NO SÉCULO XVII, SURGIU UM NOVO NEWTON, NÃO DA IMENSIDÃO DOS CÉUS, MAS DO CONTROLE DOS PEQUENOS MOVIMENTOS. ANALISE E ASSINALE A QUESTÃO EM QUE DUAS RESPOSTAS ESTÃO ERRADAS: I. EM PERÍODO DE QUARENTENA, SÓ O PROPRIETÁRIO TINHA AUTORIZAÇÃO PARA FECHAR AS PORTAS DAS CASAS. II. NO SÉCULO XVII, NO PERÍODO DE QUARENTENA, TODOS ERAM PROIBIDOS DE SAIR DE CASA. III. AS INSTITUIÇÕES DISCIPLINARES NÃO ERAM ESPAÇOS FECHADOS. IV. A PESTE SUSCITOU GRANDES ESQUEMAS DISCIPLINARES. V. O MODELO DE EXCLUSÃO DA LEPRA ERA DISTINTO DOS PROCEDIMENTOS UTILIZADOS NA QUARENTENA. A) I e V. B) I e III. C) II e III. D) III e IV. E) II e IV. GABARITO 1. Em sua obra Vigiar e Punir, Foucault nos diz que as sociedades disciplinares são as sociedades burguesas com os seus horários rígidos e seus exames para a formação de corpos dóceis. Analise as afirmações abaixo e assinale a alternativa com as opções corretas: I. As sociedades disciplinares objetivavam tornar o homem racional, eficiente, dócil e trabalhador. II. As sociedades disciplinares não desenvolveram processos empíricos para uma teoria geral do adestramento. III. As sociedades disciplinares se distinguem de outras formas de controle como a escravidão, a vassalagem, o ascetismo, a domesticidade. IV. A coerção disciplinar estabelece um elo entre a aptidão aumentada e a dominação acentuada. V. Não há nenhuma relação entre o controle da peste e a sociedade disciplinar. A alternativa "C " está correta. As sociedades disciplinadas, através de formas racionalizadas, se distinguiam de outras formas de controle por conjugarem, por meio da coerção, o estímulo aumentado e a dominação acentuada. 2. Segundo Foucault, no século XVII, surgiu um novo Newton, não da imensidão dos céus, mas do controle dos pequenos movimentos. Analise e assinale a questão em que duas respostas estão ERRADAS: I. Em período de quarentena, só o proprietário tinha autorização para fechar as portas das casas. II. No século XVII, no período de quarentena, todos eram proibidos de sair de casa. III. As instituições disciplinares não eram espaços fechados. IV. A peste suscitou grandes esquemas disciplinares. V. O modelo de exclusão da lepra era distinto dos procedimentos utilizados na quarentena. A alternativa "B " está correta. Foucault, em Vigiar e Punir, nos diz que a quarentena era forçada. Havia um síndico para cada rua, e para quem saísse de casa a pena era a morte. Os síndicos ficavam encarregados de fechar por fora todas as casas. A quarentena como resposta à peste possibilitou a emergência das sociedades disciplinares cujo modelo comum é o confinamento e o controle em espaços fechados. MÓDULO 2 Identificar aspectos da sociedade de controle SOCIEDADE DE CONTROLE Seguindo alguns pontos do pensamento de Foucault, o filósofo Gilles Deleuze pensa a passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controle. Deleuze percebe que as instituições que constituíam a sociedade disciplinar – escola, família, hospital, prisão, fábrica – estão todas em crise. Essas instituições estão desmoronando de tal maneira que suas lógicas disciplinares se tornam ineficazes. Saímos de um modelo de sociedade e entramos em outro. A sociedade disciplinar forjava moldagens fixas, diferentemente da sociedade de controle, que funciona por modulações autodeformantes que mudam continuamente. Nesse sentido, é necessário apontar algumas diferenças entre a sociedade disciplinar e a sociedade de controle. javascript:void(0) GILLES DELEUZE Gilles Deleuze (1925-1995) foi um proeminente filósofo francês. Frequentou o Liceu Carnot, em Paris, e estudou filosofia na Universidade de Sorbonne entre 1944 e 1948. O seu primeiro livro, publicado quando ele tinha apenas 23 anos, intitulava-se Empirismo e Filosofia. Em 1995, pôs fim à sua vida, atirando-se de uma janela do seu apartamento em Paris. Fonte: Wook Fonte: wikipedia.org Foto: Shutterstock.com MÁQUINAS As sociedades disciplinares tinham como equipamento máquinas energéticas, desenvolvidas com o advento da termodinâmica. O perigo que ameaçava essas máquinas era a sabotagem. As sociedades de controle operam por máquinas de informática, computadores, cujo perigo, além da interferência direta, apresenta-se também na pirataria e na introdução de vírus. FRONTEIRAS O homem não é mais o homem confinado (na fábrica, nos hospitais, no asilo). O controle não necessita mais dos espaços fechados. Com as novas tecnologias, o controle tornou-se contínuo e aberto: somos controlados a qualquer hora e em qualquer lugar. O problema maior das sociedades de controles é o desaparecimento das fronteiras: o crescimento incontrolável das favelas, dos guetos, dos bandos. Foto: Shutterstock.com Foto: Shutterstock.com ESCOLAS Nas escolas, as recompensas e punições disciplinares são substituídas pelo controle contínuo: a avaliação contínua diferenciada e a formação permanente (como os estágios, por exemplo). A TOUPEIRA E A SERPENTE As sociedades disciplinares possuíam uma organização por confinamento, e a prisão era o modelo analógico. Deleuze (2008) cita a heroína de Europa 51, que, olhando para um fábrica, exclamava ao ver operários: “pensei ver condenados”. O modelo analógico da fábrica e de outras instituições era a prisão. As sociedades disciplinares entraram em crise a partir da Segunda Grande Guerra. Atualmente, os meios de confinamento estão também todos em crise: a prisão, a escola, a fábrica, o hospital, a família. As reformas dessas instituições vieram para gerir a sua própria organização. javascript:void(0) Entramos cada vez mais em sociedades com formas ultrarrápidas de controle ao ar livre. Os confinamentos eram (ou continuam a ser) moldes: atuam por moldagens, enquadrando os indivíduos em suas formas. Os controles são modulações, que podem mudar continuamente, a cada instante. As sociedades disciplinares constituem os indivíduos em um só corpo; isso trazia uma vantagem para o patronato na hora de vigiar os empregados. Mas as sociedades de controle trabalham de forma metaestável impondo o modulador “salário por mérito” e a noção de educação permanente. EUROPA 51 Filme italiano, de 1952, sob direção de Roberto Rossellini, que conta a história de Irene Girard (Ingrid Bergman), mulher da alta sociedade, esposa de um embaixador (Alexander Knox), que vive cercada de luxo e compromissos. Quase não dedica tempo ao filho e quando o menino morre repentinamente, aos doze anos, ela decide prestar mais atenção no próximo, provocando importantes mudanças em sua vida. Fonte: AdoroCinema NAS SOCIEDADES DISCIPLINARES NÃO SE PARAVA DE RECOMEÇAR (A FAMÍLIA, A ESCOLA, O QUARTEL, A FÁBRICA); NAS SOCIEDADES DE CONTROLE NUNCA SE TERMINAVA NADA. (DELEUZE, 2008) As sociedades disciplinares possuem dois polos: a assinatura, que indica o indivíduo, e o número de matrícula, que indica o indivíduo na massa. A assinatura e a matrícula foram apontadas como um duplo cuidado cuja origem estava no poder pastoral: cuidar do rebanho e de cada um dos animais. Mas a linguagem numérica do controle se dá a partir de “cifras” ou “senhas”, ao passo que a regulagem da sociedade disciplinar era através de “palavras de ordem”. As massas tornaram-se “amostras”, dados, mercados ou “bancos”. Deleuze busca encontrar um elemento-chave que possa melhor diferenciar esses pontos: É O DINHEIRO QUE TALVEZ MELHOR EXPRIMA A DISTINÇÃO ENTRE AS DUAS SOCIEDADES, VISTO QUE A DISCIPLINASEMPRE SE REFERIU A MOEDAS CUNHADAS EM OURO – QUE SERVIA DE MEDIDA PADRÃO –, AO PASSO QUE O CONTROLE REMETE A TROCAS FLUTUANTES, MODULAÇÕES QUE FAZEM INTERVIR COMO CIFRA UMA PERCENTAGEM DE DIFERENTES AMOSTRAS DE MOEDA. A VELHA TOUPEIRA MONETÁRIA É O ANIMAL DOS MEIOS DE CONFINAMENTO, MAS A SERPENTE É DAS SOCIEDADES DE CONTROLE. (DELEUZE, 2008, p.222) Tal serpente é representada pelo modelo de capitalismo que identifica, extremamente dispersivo. E a fábrica cedeu lugar à empresa. A família, a escola, o exército, a fábrica convergiam para um proprietário, fosse esse proprietário o Estado ou a potência privada. Essas instituições são agora figuras “cifradas”, deformáveis e transformáveis, são empresas com gerentes. Isso se faz sentir até na arte que abandonou os espaços fechados. SAÍMOS DAS SOCIEDADES DOS HOMENS CONFINADOS E ENTRAMOS NAS SOCIEDADES DOS HOMENS ENDIVIDADOS. O SERVIÇO DE VENDAS TORNOU-SE O CENTRO OU A “ALMA” DA EMPRESA. INFORMAM-NOS QUE EMPRESAS TÊM UMA ALMA, O QUE É EFETIVAMENTE A NOTÍCIA MAIS TERRIFICANTE DO MUNDO. O MARKETING É AGORA O INSTRUMENTO DE CONTROLE SOCIAL E FORMA A RAÇA IMPUDENTE DE NOSSOS SENHORES. O CONTROLE É DE CURTO PRAZO E DE ROTAÇÃO RÁPIDA, MAS TAMBÉM CONTÍNUO E ILIMITADO, AO PASSO QUE A DISCIPLINA ERA DE LONGA DURAÇÃO, INFINITA E DESCONTÍNUA. (DELEUZE, 2008, p.224) Segundo Deleuze (2008), o capitalismo manteve três quartos da humanidade pobres demais para a dívida e numerosos demais para o confinamento. Essas fronteiras tendem, atualmente, a se dissolver, e um dos problemas para o capitalismo atual é a explosão dos guetos e das favelas. OS ESTILHAÇOS DO CAPITAL Algumas pesquisas (ALLIEZ; FEHER, 1988) defendem que uma mudança se deu em relação ao capitalismo clássico, aquele das sociedades disciplinares, a partir do momento em que o processo de valorização passou a se apoiar mais no tratamento dado à informação. Com isso, o tempo de valorização se libertou do tempo de trabalho concreto. COMENTÁRIO Em outras palavras, atualmente, o capital não se contenta em “dar” trabalho dentro de um espaço-tempo limitado (a fábrica, por exemplo), mas passa a ser um “doador” de tempo, de um tempo indiviso. Essa mudança conduz a uma desativação dos espaços e dos homens que não podem ser “ligados” nessa rede, seja porque não são suficientemente informados, seja porque as informações que produzem são consideradas rebeldes ao modelo esperado. Em uma sociedade em que o desemprego se torna estrutural, o trabalhador passa a uma alienação voluntária em relação ao seu próprio tempo, acreditando possuir uma identidade formal com os empresários. O trabalhador torna-se “empreendedor” e o capital pretende tornar rentável a totalidade de seu tempo. Em outras palavras: O ESPAÇO PRODUTIVO, ATÉ ENTÃO DOMINADO PELAS GRANDES FÁBRICAS, TENDE A SE DISSEMINAR PELO TECIDO URBANO E, ATÉ MESMO, A INVADIR O ESPAÇO DOMÉSTICO CORRELATIVAMENTE. O TEMPO DE TRABALHO, ATÉ ENTÃO REGULAMENTADO POR RIGOROSAS CONVENÇÕES COLETIVAS, CADA VEZ MAIS SE ACOMODA ÀS NECESSIDADES E EVENTUALIDADES DA PRODUÇÃO. (ALLIEZ e FEHER, 1988, p.152) Quer conhecer mais um pouco da sociedade de controle? Clique e assista. O PANÓPTICO DIGITAL Han (2017), retomando o conceito deleuziano de sociedades de controle, afirma que o final do panóptico é hoje um novo panoptismo. O panóptico digital do século XXI é, ao contrário do panóptico de Bentham, “aperspectivístico”. A onipotência de um centro contendo um olhar despótico é substituído por um panóptico digital desprovido de qualquer perspectiva. A permeabilidade aperspectivística é mais eficiente que a supervisão perspectivística. Pense nas celas ordenadas, na torre no centro, nos espaços fechados (como você viu na figura do presídio de Isla de la Juventud, anteriormente), em que se criava a ilusão de vigilância permanente: os indivíduos além de serem incapazes de se comunicarem entre si, tinham a impressão de que tudo que fizessem estava sob a perspectiva, o olhar atento, do vigilante. Agora, tudo isso é substituído por um aperspectivismo e por uma hipercomunicação, que asseguram a transparência. No panóptico digital, seus frequentadores colaboram de forma ativa, voluntária e pessoal. Eles se expõem e se expressam, expondo-se ao “mercado panóptico”. Podemos facilmente perceber o quanto o exibicionismo é marcante nas sociedades de controle: O EXPOR PORNOGRÁFICO E O CONTROLE PANÓPTICO MISTURAM-SE ENTRE SI; O QUE ALIMENTA O EXIBICIONISMO E O VOYEURISMO É A REDE ENQUANTO PANÓPTICO DIGITAL. NESSE SENTIDO, A SOCIEDADE DE CONTROLE CHEGA A SUA CONSUMAÇÃO ALI ONDE O SUJEITO DESSA SOCIEDADE NÃO SE DESNUDA POR COAÇÃO EXTERNA, MAS A PARTIR DE UMA NECESSIDADE GERADA POR SI MESMO; ONDE, PORTANTO, O MEDO DE RENUNCIAR À SUA ESFERA PRIVADA DÁ LUGAR À NECESSIDADE DE SE EXPOR À VISTA SEM QUALQUER PUDOR. (HAN, 2017, p.108-110) TEMOS HOJE, GRAÇAS À TECNOLOGIA DIGITAL, UMA ILUMINAÇÃO COMPLETA E RECÍPROCA. CADA UM E TODOS SÃO EXPOSTOS À VISIBILIDADE E AO CONTROLE, ADENTRANDO NA VIDA PRIVADA. No limite, o controle total aniquila a liberdade de ação e leva à uniformização. Han (2017, p.112) contrapõe a transparência panóptica digital à confiança. Para ele, a confiança conjuga saber e não saber para edificar uma relação positiva. A transparência visa a eliminar todo e qualquer não saber e não há lugar para a confiança. A sociedade de controle, vista como sociedade da transparência, é a sociedade da desconfiança. A transparência é o nosso novo imperativo moral e social. A lógica da sociedade da transparência é a do desempenho. E ainda: o sujeito que explora é ao mesmo tempo o sujeito explorado. A IMPLANTAÇÃO DAS SOCIEDADES DE CONTROLE Em 1977, em suas Conversações, Deleuze conta que Félix Guattari imaginou uma sociedade do futuro em que cada um só pudesse deixar o seu apartamento, a sua rua, o seu bairro, graças a um cartão eletrônico (individual). FÉLIX GUATTARI Félix Guattari (1930-1992) foi um pensador, homem de movimentos e analista: brilhante e polêmico em cada uma de suas facetas, inovador em todas elas. Como analista, no início da década de 1960, inventou a “análise institucional”. Esse pensamento crítico à Psicanálise radicalizou-se após o encontro com Gilles Deleuze e o levou daquela primeira invenção a outra: a “esquizoanálise” (corpoarteclícina). O cartão abriria barreiras ou bloquearia; sendo assim, um computador detectaria a posição de cada um lícita ou ilícita, operando uma modulação universal. Guattari nomeou esses cartões de coleiras eletrônicas (DELEUZE, 2008, p.224). O mais estranho é que isso já não parece uma ficção futurista. javascript:void(0) Foto: Shutterstock.com A manifestação das sociedades de controle em contexto pós-industrial também era preocupação de Deleuze. Na década de 1990, alertava que deveríamos fazer um estudo categorial e descritivo dos mecanismos que estavam e ainda estão em vias de serem implantados pelas sociedades de controle. Ele imaginava, nas prisões, as penas alternativas e o uso de coleiras eletrônicas que obrigariam os indivíduos a ficarem em casa em determinadas horas. Nas escolas, o controle contínuo, a avaliação contínua, a formação permanente e a introdução do espírito empresarial em todos os níveis escolares. Nos hospitais, “a medicina sem médico e sem doente” preventiva, que substitui o corpo individual ou numérico por uma cifra “dividual”. Segundo Deleuze, o novo ideal da medicina não é curar, mas tornar as doenças insensíveis. MUITOS JOVENS PEDEM ESTRANHAMENTE PARA SEREM ‘MOTIVADOS’ E SOLICITAM NOVOS ESTÁGIOS E FORMAÇÃO PERMANENTE; CABE A ELES DESCOBRIR A QUE ESTÃO SENDO LEVADOS, ASSIM COMO OS SEUS ANTECESSORES DESCOBRIRAM, NÃO SEM DOR, A FINALIDADE DAS DISCIPLINAS. OS ANÉIS DE UMA SERPENTE SÃO AINDA MAIS COMPLICADOS QUE OS BURACOS DE UMA TOUPEIRA. (DELEUZE, 2008, p.226) VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. DELEUZE, EM SEU LIVRO CONVERSAÇÕES, FALA DO SURGIMENTO DAS SOCIEDADES DE CONTROLE. ESSES TIPOS DE SOCIEDADES EMERGIRAM APÓS A SEGUNDA GRANDE GUERRA. ANALISE AS AFIRMATIVASABAIXO E ASSINALE A ALTERNATIVA COM AS OPÇÕES INCORRETAS. I. AS SOCIEDADES DE CONTROLE SURGIRAM APÓS A CRISE DAS SOCIEDADES DISCIPLINARES. II. NOS DIAS ATUAIS, AS INSTITUIÇÕES QUE TÊM COMO BASE O CONFINAMENTO ESTÃO EM CRISE. III. AS PRISÕES, OS HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS, O MODELO DA FÁBRICA, ENQUANTO INSTITUIÇÕES DE CONFINAMENTO, SERVIRAM DE MODELO PARA AS SOCIEDADES DE CONTROLE. IV. O CONFINAMENTO FAZ PARTE DAS ESTRATÉGIAS DE MOLDAGEM NAS SOCIEDADES DISCIPLINARES; AS SOCIEDADES DE CONTROLE VISAM AO CONTROLE EM ESPAÇO ABERTO ATRAVÉS DA MODULAÇÃO. V. O CONFINAMENTO É UMA DAS ESTRATÉGIAS DAS SOCIEDADES DE CONTROLE. VI. NAS SOCIEDADES DISCIPLINARES NÃO SE PARA DE RECOMEÇAR; NAS SOCIEDADES DE CONTROLE NUNCA SE TERMINA NADA. A) I e II. B) II e IV. C) IV e VI. D) III e V. E) II e V. 2. ERIC ALLIEZ E MICHEL FEHER NOS DIZEM QUE MUDANÇAS SIGNIFICATIVAS OCORRERAM NA PASSAGEM DO CAPITALISMO CLÁSSICO PARA A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO. TENDO ISSO EM VISTA, ASSINALE A ÚNICA OPÇÃO INCORRETA. A) Na sociedade da informação, o trabalho se libertou de suas ligações com um tempo e um espaço determinado. B) Na sociedade da informação, os trabalhadores rebeldes à forma-mercadoria podem ser “desativados”. C) No capitalismo clássico, o trabalhador tornava-se um empreendedor e o capital pretendia tornar rentável a totalidade de seu tempo. D) O trabalhador na sociedade da informação, alienado de seu próprio tempo, acredita possuir uma identidade formal com os empresários. E) O espaço produtivo, que até então era basicamente a fábrica, passa a ser o meio urbano e mesmo o espaço doméstico. GABARITO 1. Deleuze, em seu livro Conversações, fala do surgimento das sociedades de controle. Esses tipos de sociedades emergiram após a Segunda Grande Guerra. Analise as afirmativas abaixo e assinale a alternativa com as opções INCORRETAS. I. As sociedades de controle surgiram após a crise das sociedades disciplinares. II. Nos dias atuais, as instituições que têm como base o confinamento estão em crise. III. As prisões, os hospitais psiquiátricos, o modelo da fábrica, enquanto instituições de confinamento, serviram de modelo para as sociedades de controle. IV. O confinamento faz parte das estratégias de moldagem nas sociedades disciplinares; as sociedades de controle visam ao controle em espaço aberto através da modulação. V. O confinamento é uma das estratégias das sociedades de controle. VI. Nas sociedades disciplinares não se para de recomeçar; nas sociedades de controle nunca se termina nada. A alternativa "D " está correta. As sociedades de controle não tiveram como modelo as instituições que se objetivam ao confinamento. As sociedades disciplinares pressupõem espaços fechados e atuam por moldagem; as sociedades de controle querem gerenciar a sociedade em espaço aberto e exercem o poder através de estratégias de modulações. 2. Eric Alliez e Michel Feher nos dizem que mudanças significativas ocorreram na passagem do capitalismo clássico para a sociedade da informação. Tendo isso em vista, assinale a única opção incorreta. A alternativa "C " está correta. No capitalismo clássico, a separação entre trabalhador e empreendedor era clara e distinta. A sociedade da informação obscurece isso na medida em que faz o trabalhador acreditar que possui uma identidade formal com os empresários. Sendo assim, a sociedade da informação visa a explorar o trabalhador em tempo integral. MÓDULO 3 Reconhecer os paradigmas da sociedade do espetáculo SOCIEDADE DO ESPETÁCULO Sociedade do espetáculo é o termo cunhado por Guy Debord (1931-1994), em 1967, para definir os novos arranjos sociais, nos quais a importância das relações entre pessoas se dá através da mediação de imagens. As contribuições do autor tiveram grande influência no movimento de Maio de 68 e nos questionamentos advindos acerca do meio social, econômico, político e sexual que compunham o consumismo burguês. Fonte: wikipedia.org Guy Debord PARA ELE, O ESPETÁCULO NÃO SE CONSTITUI COMO UM COMPLEMENTO DO MUNDO REAL, MAS SIM O MODELO SOCIALMENTE DOMINANTE NA VIDA CONTEMPORÂNEA. A representação tornou-se mais importante do que as vivências, e a prática social da atualidade se dá através da fusão entre realidade e imagem, como uma espécie de alienação recíproca. A organização social passou a ser através da afirmação da aparência, sendo este o principal produto da sociedade atual. Para compreender as mudanças que resultaram no caráter espetacularizado da realidade, é importante observar a transformação em relação aos aspectos que definiam o ser humano. Inicialmente, a dominação da economia se inseriu pela degradação de um modo de vida que (antes) valorizava o ser, mas passou a almejar o ter. Posteriormente, o modo ter deu vez ao parecer, em que o aspecto mais valorizado do sujeito se fundamenta em uma vida de aparências. SER TER PARECER Consequentemente, o poder social que um indivíduo tem passa a ser a máxima relevância que sua vida possui. A espetacularização transcende o meio artístico e surge como o próprio real. Com o advento dos meios de comunicação de massa, atrelado à lógica capitalista de determinação do indivíduo a partir de suas condições materiais, a realidade tornou-se submetida à aparência, e a aparência se tornou o produto a ser vendido e consumido por cada um. O desempenho individual nesse mercado de imagens passa a determinar o posicionamento na cultura, e bens materiais determinam a superioridade do ser. Tal perspectiva pode relacionar-se ao conceito de fetichismo de mercadoria, cunhado por Karl Marx (1818-1883), pois a mercadoria passa a ser objeto de adoração e sua produção excede às necessidades individuais. Foto: Shutterstock.com Karl Marx O CONSUMIDOR REAL TOMA-SE UM CONSUMIDOR DE ILUSÕES. A MERCADORIA É ESTA ILUSÃO EFETIVAMENTE REAL, E O ESPETÁCULO A SUA MANIFESTAÇÃO GERAL. (DEBORD, 2003a, p.36) PARA UMA SOCIEDADE DE ESPETÁCULO, O CONSUMO ALIENADO TORNOU-SE UM DEVER, ALÉM DA PRODUÇÃO ALIENADA. Para manter o ciclo capitalista funcionando, investiu-se em tecnologias de dominação do ser humano, mantendo-o eternamente desejante. Ao adquirir os produtos que possuam natureza espetacular e promessas de satisfação, o indivíduo nota seu caráter falho de conseguir satisfazer seu desejo. A publicidade é permeada de ilusões e, de alguma forma, o consumo dos essenciais não é mais satisfatório, pois a acumulação de supérfluos se alinha à perspectiva existencial do indivíduo. A mercadoria passa a ter um caráter transcendente, em que características de prestígio vêm da aquisição. E o proletariado, que anteriormente tinha um caráter essencialmente operário, passou a ser inserido também como consumidor. Os critérios para definir o que é essencial à sobrevivência se tornam difusos e facilmente confundidos com o que é satisfação pessoal. Desse modo, o domínio das sociedades (sobretudo das regiões ainda em desenvolvimento) passou a relacionar-se intrinsecamente à produção do espetáculo. É a partir da criação de uma sociedade-modelo, com uma conduta exímia, que os ditos países desenvolvidos exercem sua soberania. A fabricação ininterrupta de pseudonecessidades torna-se o meio necessário para manter a lógica capitalista em pleno vigor. E, nesse grande jogo de representações, a formação das classes e a instituição da divisão social do trabalho mostram-se imprescindíveis para caracterizar qual parte da sociedade se estabelece como superior e digna de contemplação. A partir dos diferentes arranjos sociais presentes no século XX, Debord caracteriza dois tipos de espetáculo, sendo eles: ESPETÁCULO CONCENTRADO É o que estaria nas sociedades burocráticas, pelas quais a economia dissemina sua propaganda de controle por meio da criação de imagens heroicas como, por exemplo, a China e o culto à personalidade de Mao Tsé-Tung. ESPETÁCULO DIFUSO Está presente nas sociedades do capitalismo moderno alinhadas à democracia, que possuem uma abundância de mercadorias e proporcionam ao indivíduouma ilusória liberdade de escolha. Segundo Debord (2003a, p.48), o espetáculo dita as mercadorias e as paixões dos homens: A ALIENAÇÃO DO ESPECTADOR EM PROVEITO DO OBJETO CONTEMPLADO (QUE É O RESULTADO DA SUA PRÓPRIA ATIVIDADE INCONSCIENTE) EXPRIME- SE ASSIM: QUANTO MAIS ELE CONTEMPLA, MENOS VIVE; QUANTO MAIS ACEITA RECONHECER-SE NAS IMAGENS DOMINANTES DA NECESSIDADE, MENOS ELE COMPREENDE A SUA PRÓPRIA EXISTÊNCIA E O SEU PRÓPRIO DESEJO. Apesar de o homem agir, e de suas ações poderem estar presentes no espetáculo, esse parece externo ao homem, como se seus próprios gestos já não fossem seus, mas de outra pessoa que lhe apresente. É por isso que, segundo Debord, o espectador não se sente em casa em parte alguma: porque o espetáculo está em toda parte. O autor baseia-se no marxismo para embasar sua teoria e descrever os processos que constituem a formação da sociedade espetacular. De acordo com o trabalho de Anselm Jappe (1999, p.36), a imagem e o espetáculo ocupam, para Debord, o mesmo lugar da mercadoria na teoria de Marx. PRIMEIRA FRASE DE A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO: “Toda a vida das sociedades em que reinam as condições modernas de produção apresenta-se como uma imensa acumulação de espetáculos”. REFERÊNCIA AO INÍCIO DE O CAPITAL: “Toda a vida das sociedades modernas nas quais reinam as condições modernas de produção apresenta-se como uma imensa acumulação de mercadorias”. ATENÇÃO A respeito do surgimento do espetáculo, Debord afirma que este ocorre devido ao fato de o homem contemporâneo se identificar com um ser passivo, espectador da vida social e que não vive os acontecimentos. O mundo passa a ser visto como representação, e não como atividade. Para a sociedade do espetáculo ser superada é necessária uma ação prática. Tal passividade relaciona-se às influências das práticas de desinformação propagadas pelo Estado. Em sua obra Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo, publicada em 1988 para analisar as mudanças que ocorreram desde a publicação da obra inicial – duas décadas antes –, Debord discorre acerca do poder da dissimulação como arma para combater o que se considera “perigoso” para a sociedade. A IMBECILIDADE CRÊ QUE TUDO É CLARO QUANDO A TELEVISÃO MOSTROU UMA BELA IMAGEM E A COMENTOU COM UMA AUDACIOSA MENTIRA. (DEBORD, 2003b, p.68) Sendo assim, a subordinação do sujeito a uma vida de contemplação e aparências afeta sua subjetividade e sua forma de se portar, pois seus gestos se pautam em condições sociais de apresentação. Quanto mais sua vida se transforma em mercadoria, mais o ser se separa genuinamente dela. A CULTURA DO NARCISISMO Em sua obra A Cultura do Narcisismo, Christopher Lasch (1983) fala sobre a dificuldade, cada vez mais comum, por parte das pessoas, de aceitar a banalidade da existência cotidiana. Segundo o autor, a mídia intensifica os sonhos narcisistas de fama e glória, e os cultos às personalidades transformam o indivíduo em fã que, ao se ver refletido na imagem dos ídolos, ilude-se com a perspectiva de que também irá superar a anonimidade da vida. Foto: Scan of book cover / Wikimedia Commons © A INDÚSTRIA CULTURAL ESTIMULA A IDENTIFICAÇÃO DO INDIVÍDUO COM SEUS “HERÓIS”, PASSANDO A ENXERGÁ- LOS COMO UMA EXTENSÃO DE SI MESMO. PARA O EU ATUANTE, A ÚNICA REALIDADE É A IDENTIDADE QUE ELE PODE CONSTRUIR A PARTIR DE MATERIAIS FORNECIDOS PELA PUBLICIDADE E PELA CULTURA DE MASSA, TEMAS DE FILMES E DE FICÇÃO POPULARES E FRAGMENTOS TIRADOS DE VASTO ESPECTRO DAS TRADIÇÕES CULTURAIS (...) DE MODO A POLIR E APERFEIÇOAR O PAPEL QUE ESCOLHEU PARA SI, O NOVO NARCISO OLHA PARA SEU PRÓPRIO REFLEXO, NÃO TANTO POR ADMIRAÇÃO, MAS POR UMA INCESSANTE PROCURA DE IMPERFEIÇÕES, SINAIS DE FADIGA, DECADÊNCIA. (LASCH, 1983, p.123) Curiosamente, a vida torna-se uma obra de arte, ao passo que, como pontuou Norman Mailer, a primeira obra de arte de um artista é a modelagem de sua própria personalidade. De acordo com Lasch (1983), o narcisista patológico na contemporaneidade revela quase que as mesmas ansiedades – porém de forma mais profunda – que se mostram cotidianas ao homem comum. O narcisismo descreve uma condição que é ao mesmo tempo psicológica e cultural. Psicologicamente, indica uma perturbação individual que surge como consequência do investimento exagerado na imagem em detrimento da sua própria instância interior. Os narcisistas preocupam-se mais com a sua aparência do que com seus sentimentos. Socialmente, porém, está relacionado ao momento que a cultura sobrevaloriza a imagem, a riqueza, o progresso e a notoriedade ao invés das necessidades humanas. (LOWEN, 1983, p.9) Foto: Shutterstock.com Segundo Alexander Lowen (1983, p.10), o narcisismo denota um grau de irrealidade no indivíduo e na cultura. É favorecido com uma carreira eficiente, alto rendimento no trabalho e o sucesso pessoal, sua personalidade narcísica é elogiada ao invés de ser percebida criticamente como sintoma de uma sociedade que estimula incessantemente a apresentação de si mesmo como um produto a ser vendido e aprimorado, mesmo que isso lhe proporcione sofrimento psíquico. O ESPETÁCULO NO SÉCULO XXI Andy Warhol (1928-1987) já afirmava, em meados dos anos 1960, que no futuro “todos teriam seus quinze minutos de fama”. Com a ascensão da internet, uma nova gama de possibilidades adentrou na sociedade espetacularizada. Os meios de comunicação passaram por uma revolução que transformou seu caráter passivo em ativo. A CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE SE TORNOU PERMEADA PELA AMPLA POSSIBILIDADE DE SE EXPOR E USUFRUIR DA EXPOSIÇÃO DOS OUTROS. A INTIMIDADE TORNOU-SE UM PRODUTO VENDÁVEL. De acordo com Silva (2007), o espetáculo acabou. Estamos agora na era do hiperespetáculo. No espetáculo o indivíduo tinha como papel a contemplação. Entretanto, na contemporaneidade, a contemplação passa a ser de si mesmo e de um outro, que aparenta ser cada vez mais semelhante e alcançável. O ESPETÁCULO ERA UMA IMAGEM DO MUNDO. O HIPERESPETÁCULO É UMA IMAGEM DE SI MESMO. O ESPETÁCULO ACABOU JUNTO COM A ILUSÃO DO CONTROLE E DA DISCIPLINA. AINDA NÃO ESTAMOS, PORÉM, NO DESCONTROLE, EMBORA O CAOS URBANO APRESENTE PERFORMANCES EXEMPLARES. ESTAMOS NA ÉPOCA DO “SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO”. (...) A CÂMARA TOTAL, CONTUDO, NÃO INIBE NEM COÍBE. APENAS REGISTRA. (SILVA, 2007, p.3) Entretanto, o hiperespetáculo não é o fim do espetáculo, mas sua aceleração. É um dispositivo aprimorado de controle total, em que todos se controlam a partir do olhar imaginário (ou nem tanto) de um Outro. A antropóloga Paula Sibilia publicou, em 2009, sua obra O show do Eu: a intimidade como espetáculo que disserta acerca da transformação da realidade em entretenimento a partir da disseminação do acesso à internet. Segundo a autora, o que se cria e se recria nesse espaço interativo é a própria personalidade, mediada pelas possibilidades da criação e reprodução de si mesmo. (SIBILIA, 2009, p.233) Foto: franz12 / Shutterstock.com Todo final de ano, a renomada revista Time publica a escolha de uma “personalidade do ano”. Tal publicação existe há quase um século e já contou com nomes como Adolf Hitler, em 1938, e George W. Bush, em 2004. Entretanto, no final do ano de 2006, a personalidade escolhida foi “você”. Sim, você. Ou, não necessariamente você mesmo, mas também eu e todos nós (SIBILIA, 2008, p.8). COMENTÁRIO Tal escolha se deveu à ascensão, quase que megalomaníaca, da exposição de cada um na internet. O mundo e o espetáculo agora pertenciam às pessoas comuns. Foto: Shutterstock.com Segundo Byung-Chul Han (2017, p.24), a sociedade contemporânea é mediada pela transparência e positividade, influenciada pela troca de informações e os likes das redes sociais. Na sociedade positiva, as coisas – que atualmente se transformaram em mercadorias – têm de ser expostas para ser. O valor expositivo de algo se torna sua máxima importância, e a coação passa a ser por desempenho, mediado pela aparência. Não há lugar para a negatividade, que desafia a lógica da espetacularização.NA SOCIEDADE EXPOSITIVA CADA SUJEITO É SEU PRÓPRIO OBJETO-PROPAGANDA; TUDO SE MENSURA EM SEU VALOR EXPOSITIVO. A SOCIEDADE EXPOSTA É UMA SOCIEDADE PORNOGRÁFICA; TUDO ESTÁ VOLTADO PARA FORA, DESVELADO, DESPIDO, DESNUDO, EXPOSTO. O EXCESSO DE EXPOSIÇÃO TRANSFORMA TUDO EM MERCADORIA. (HAN, 2017, p.31-32) O NARCISISMO PASSA A SER UM IMPERATIVO CULTURAL, NÃO MAIS UMA FALHA DA PERSONALIDADE. Han (2017, p.83) descreve que, na sociedade mediada pela intimidade, os narcisistas não possuem uma capacidade de distanciar-se da cena que performam e acabam se tornando impossibilitados de determinar os limites de si e do olhar do outro. Em 1959, na obra A Representação do Eu na Vida Cotidiana, o sociólogo Erving Goffman (1922-1982) utiliza-se de uma metáfora teatral para descrever a sociedade. Em sua teoria do palco social, o autor descreve os indivíduos como atores, que performam representações socializadas e moldadas para se ajustar às expectativas sociais. Para Han, entretanto, o mundo atual não é mais um teatro, mas sim um mercado. O teatro é um lugar de representação, enquanto o mercado é um lugar de exposição. Atualmente, a representação teatral foi substituída pela exposição pornográfica. A distância teatral não pertence mais ao espetáculo contemporâneo, que visa à aproximação e à intimidade como os produtos a serem consumidos. Embora na contemporaneidade quase qualquer um possa enunciar a si mesmo e tentar a popularidade na web, através de uma narrativa autorreferente enaltecida de sua própria vida, surge o questionamento: a relação entre o “autor” e sua própria “obra” (a vida enunciada) configura-se de maneira fidedigna ou não? Foto: Shutterstock.com A criação de um mundo que despreza a alteridade e de indivíduos que se fecham em narrativas ilusórias de felicidade pautadas no consumo e na exibição de transparência exacerbada, no entanto, se relaciona a um vazio de sentido. Pois, a vida na internet surge como um simulacro do imaginário, permeado por fantasias e idealizações de si mesmo e do outro. O real, porém, mostra-se cada vez mais atravessado pelas angústias e pelos sintomas de uma sociedade cansada da performance ininterrupta e do esforço para caber nos moldes de sucesso e admiração. O professor Mário Bruno comenta no vídeo abaixo a Sociedade do Espetáculo, segundo Guy Debord. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. DE ACORDO COM O QUE VOCÊ APRENDEU A RESPEITO DA OBRA DE GUY DEBORD, A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, ASSINALE A ALTERNATIVA INCORRETA: A) O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens. B) A realidade surge no espetáculo e o espetáculo no real, constituindo uma alienação recíproca que sustenta a sociedade existente. C) O espetáculo se encontra presente apenas nos meios de comunicação e manifestações artísticas como, por exemplo, o rádio, a televisão e o teatro. D) O espetáculo se apropria do fetichismo de mercadoria para fundir o que é excedente ao que é essencial às necessidades humanas. E) O espetáculo não se constitui como um complemento do mundo real, mas sim o modelo socialmente dominante na vida contemporânea. 2. SOBRE OS DESDOBRAMENTOS DO ESPETÁCULO NO SÉCULO XXI, ASSINALE A ALTERNATIVA QUE CONTÉM AS AFIRMAÇÕES VERDADEIRAS: I. O VALOR EXPOSITIVO SUBSTITUIU O VALOR CULTURAL. AS COISAS ATUALMENTE TÊM DE SER EXPOSTAS PARA SER. II. A SOCIEDADE DA TRANSPARÊNCIA CAMINHA PASSO A PASSO COM UM VAZIO DE SENTIDO. III. A COERÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE SE DÁ PELA ODE À TRANSPARÊNCIA E À GLAMOURIZAÇÃO DO OLHAR DO OUTRO. IV. A EXPOSIÇÃO EXCESSIVA CONTRIBUI PARA O CONHECIMENTO DO REAL DA VIDA HUMANA, POSSIBILITANDO CONHECER OS SERES HUMANOS ALÉM DO ESPETÁCULO. A) I, II e IV. B) I, II, III e IV. C) I e II. D) I, II e III. E) II e IV. GABARITO 1. De acordo com o que você aprendeu a respeito da obra de Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo, assinale a alternativa INCORRETA: A alternativa "C " está correta. O espetáculo excede os palcos e os meios de comunicação e passa a se consolidar como o formato das relações sociais contemporâneas. 2. Sobre os desdobramentos do espetáculo no século XXI, assinale a alternativa que contém as afirmações verdadeiras: I. O valor expositivo substituiu o valor cultural. As coisas atualmente têm de ser expostas para ser. II. A sociedade da transparência caminha passo a passo com um vazio de sentido. III. A coerção na contemporaneidade se dá pela ode à transparência e à glamourização do olhar do outro. IV. A exposição excessiva contribui para o conhecimento do real da vida humana, possibilitando conhecer os seres humanos além do espetáculo. A alternativa "D " está correta. Embora a transparência exacerbada possibilite uma nova forma de espetáculo, diferente do século XX, a proposta de uma verdade exposta é ilusória, pois os indivíduos, em suas redes sociais, continuam performando um modo de agir espetacular. MÓDULO 4 Descrever a problemática do valor na sociedade de consumo O VALOR NA SOCIEDADE DE CONSUMO Jean Baudrillard é considerado um dos mais significativos pensadores franceses pós-maio de 1968. Ele teve ativa experiência no momento e publicou em tal período O Sistema dos Objetos e, dois anos depois, A Sociedade de Consumo. Desde então, passou a ocupar um lugar de destaque internacional no meio acadêmico. PÓS-MAIO DE 1968 Protestos inicialmente estudantis na capital francesa, mas que se alastraram por outras cidades e com outras bandeiras, tornando-se um marco político e intelectual mundial. VOCÊ SABIA Embora não tivesse afinidades profundas com os filósofos de sua geração, inclusive escreveu uma ácida missiva à obra de Foucault, Baudrillard é também um sociólogo do contemporâneo, que retoma Freud, Marx, Bataille e muitos outros autores. Em linhas gerais, neste módulo, vamos abordar um aspecto bem abrangente do percurso de Baudrillard. Escolhemos, como foco, sua análise dos sistemas de representação ocidentais a partir da Idade Moderna. Em virtude disso, apresentaremos três momentos: 1) A emergência da cena do sujeito no Renascimento; 2) O surgimento da ordem do valor; 3) A exacerbação do valor no valor-signo e o simulacro hiper-real – todos pontos importantes para entender os mecanismos que operam por trás da sociedade de consumo. SIMULACRO javascript:void(0) javascript:void(0) Em sentido corriqueiro, o simulacro é uma imitação. Mas, para Baudrillard, o simulacro difere de uma mera simulação, por querer se fazer passar por “real”. Imagem: Shutterstock.com O SUJEITO NO RENASCIMENTO Baudrillard nos insere numa teoria dos simulacros a partir de uma espiral de significações. No contexto dessa teoria, nos apresenta três fases: contrafação, produção e simulação. CONTRAFAÇÃO A contrafação, primeira ordem de uma espiral de simulacros, diz respeito à época clássica e à lei natural do valor. A segunda ordem corresponde à era industrial e à lei mercantil do valor (MELO, 1988). A terceira ordem é referência ao estágio atual das sociedades capitalistas, sob o domínio do código. Para Baudrillard, no Renascimento, coincidindo com a ascensão progressiva da burguesia, um processo gradativo de abstração marcou a forma de representação que o Ocidente passou a ter de si mesmo. Esse processo de abstração é característico da fase da contrafação. CONTRAFAÇÃO javascript:void(0) Essa palavra denota fingimento de autenticidade, ou, em termos jurídicos, falsificação. Lendo Baudrillard, Hygina Bruzzi de Melo nos diz que a contrafação se definiu pela disputa aberta em função de signos de prestígio social. Esse comportamento não era conhecido tanto pelas sociedades de castas como pela ordem feudal. Os estamentos sociais de casta e feudal obedeciam a uma hierarquia rígida demais, em que os signos possuíam um caráter ritual e cerimonial. A reciprocidade nos estamentos rígidos não transcendia, era o selo de uma ordem estática de signos limitados. Com o Renascimento, os signos tornaram-se significantes num universo desencantado dosignificado. Em vez de uma ordem ritual, trata-se de uma ordem indiscriminada de troca de signos entre uma classe e outra. Os signos tornaram-se puros significantes que proliferam sem referências. Libertando-se de uma lógica equivalente de significados, o signo passou a simulacro. A arquitetura renascentista é a representação exterior dessa modificação: O ESPAÇO PERSPECTIVO DO RENASCIMENTO JOGA COM O FALSO E O VERDADEIRO E INTRODUZ A CENA COMO MANIFESTAÇÃO DA TEATRALIDADE DA CULTURA BURGUESA. (MELO, 1988, p. 35). Não seria exagerado dizer que a técnica da perspectiva do Renascimento expressou a emergência do individualismo e do Estado Moderno. Com precisão, Baudrillard procura mostrar que a representação linear, distinta e desarticulada do espaço medieval marcou o efeito proporcional do sujeito-observador. O surgimento da cidade estelar revela uma planta de cidade centralizada num ponto focal, como uma espécie de ponto de fuga localizável e identificável. A cidade medieval era orgânica, a cidade Renascentista passou a possuir o absolutismo da perspectiva ilimitada. No Renascimento, a natureza apresentou-se como o modelo que, por analogia, a arte e a arquitetura deveriam seguir. Na visão desse pensador francês, o projeto de centralização política e de hegemonia universal, que a racionalidade produtivista do capital iria consagrar, já estava contido no espaço naturalista do Renascimento e nos seus artefatos de contrafação. O simulacro naturalista, enquanto unidade de representação, preparou o caminho para a ordem da produção enquanto modo de intervenção e transformação da natureza. De acordo com Baudrillard, o modo de simulação naturalista do Renascimento estava ligado à relação de oposição e à polaridade que fez emergir o conceito de Sujeito. Entretanto, no Renascimento, a natureza era regida por um conjunto de leis que fundavam a inteligibilidade das coisas. A ruptura se deu no século XVIII, quando a lógica do Esclarecimento marcou uma cisão entre sujeito e natureza (objeto). Com isso, começaram a se estruturar as condições para o surgimento de uma segunda ordem dos simulacros: a produção. Dessa forma, o simulacro naturalista, em seu coroamento, já trazia algo que apontava para outra era. PRODUÇÃO O que distingue, na ordem dos simulacros, a contrafação da produção? No sistema industrial, os signos não correm risco de contrafação, por terem perdido a referência. “Já não se trata mais aqui do objeto único e singular, mas do objeto em série, cuja referência original já se dissolveu” (MELO, 1988, p. 40). Sendo assim, essa nova ordem dessacraliza o objeto tradicional e introduz novas relações entre os objetos industrialmente produzidos e seus produtores. Nas palavras de Baudrillard: NA SÉRIE, OS OBJETOS TORNAM-SE SIMULACROS INDEFINIDOS UNS DOS OUTROS E, JUNTAMENTE COM OS OBJETOS, OS HOMENS QUE OS PRODUZEM. (BAUDRILLARD, 1996, p. 85) SIMULAÇÃO Nesse momento da trajetória dos simulacros, temos o simulacro produtivista, que, como nota Hygina Bruzzi de Melo, é menos efetivo que o simulacro naturalista, aquele da contrafação, e menos abstrato que o simulacro operacional ou simulacro de simulação. Com a Revolução Industrial, uma nova geração de signos e de objetos emergiu: SIGNOS SEM TRADIÇÃO DE CASTA, QUE JAMAIS CONHECERAM RESTRIÇÃO DE POSIÇÕES – E QUE NÃO MAIS TERÃO DE SER CONTRAFEITOS PORQUE SERÃO DE IMEDIATO PRODUZIDOS NUMA ESCALA GIGANTESCA. (BAUDRILLARD, 1996, p. 71) A época do simulacro industrial corresponde, em linhas gerais, à era da reprodutibilidade técnica. Nesse processo, a reprodução absorve o processo de produção. Para Baudrillard, é uma época pobre quanto ao imaginário se a compararmos à época da contrafação, com seus jogos de máscaras, espelhos e duplos. ATENÇÃO Baudrillard aponta que Walter Benjamin, em A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, destacou pela primeira vez as implicações essenciais do princípio de reprodução e mostrou que a reprodução absorve a produção e altera o estatuto do produto, da produção e do produtor. Mais tarde, também Marshall McLuhan notaria que a técnica deixou de ser força produtiva e se tornou um meio. Mais do que isso, tornou-se o princípio de toda uma nova geração de sentido. Segundo Baudrillard (1996, p. 72), “O simples fato de uma coisa qualquer poder ser simplesmente reproduzida, tal como é, em duplos exemplares já é uma revolução”. Nesse contexto, a produção perde o sentido em si. Sua finalidade social se perderia na serialidade: “os simulacros sobrepujam a história” (BAUDRILLARD, 1996, p .72). Se, por um lado, Benjamin e McLuhan se situaram nos confins da reprodução, Baudrillard vislumbra, na próxima fase, uma vertigem dos signos ainda maior. A EXACERBAÇÃO DO VALOR NO VALOR SIGNO – E O SIMULACRO HIPER-REAL Imagem: Pedro Tamburro. Baudrillard, em Simulacros e Simulação, valendo-se de uma imagem tecida por Borges em que cartógrafos do império desenham um mapa tão detalhado que recobre exatamente o território representado, nos diz que essa fábula está arruinada. O mapa é um duplo ou um espelho. A simulação deixou de ser a simulação de um território enquanto referencial. Na terceira fase dos simulacros, o mapa precede o território, engendra o território sem origem, ou sem realidade: o “deserto do real”. A produção ainda trazia o encanto da abstração. A partir dali, já não se trata nem de mapa nem de território. Vemos com o terceiro estágio da simulação toda a metafísica do espelho do ser, das relações entre aparência e real, o imaginário da representação desaparece. O real passou a ser operacional. Não está envolto em nenhuma imaginação, é um hiper-real, hiperespaço sem atmosfera. IRREFERÊNCIAS DIVINAS DAS IMAGENS É preciso estabelecer uma diferença entre fingir e simular. Simular não é fingir. Fingir Refere-se a uma presença. Fingir ou dissimular deixam intacto o princípio da realidade. Simular Refere-se a uma ausência. A simulação não deixa clara a diferença entre “verdadeiro” e “falso”, “real” e “imaginário.” De um modo bem original, Baudrillard opõe simulação à representação. A simulação parte da negação radical do signo como valor. A simulação é o aniquilamento de toda referência. Por outro lado, a representação tenta assimilar a simulação tomando-a como falsa representação. O CONSUMO EM UM MUNDO DE SIMULACROS Uma face importante a ser abordada da obra de Baudrillard é a questão do consumo. Na passagem do século XIX para o XX, o consumo portava um significado diferente. Era uma exibição de riqueza alguém comprar objetos com solidez e durabilidade. Isso pertencia a uma sociedade de produtores que apostavam na segurança do que é durável em longo prazo. Mas quando Baudrillard, em A Sociedade de Consumo, aborda esse fenômeno da relação produção-consumo, novos aspectos vão estar presentes. Apresentaremos quatro: 1. O CORPO COMO OBJETO DE CONSUMO Na perspectiva de Baudrillard, após uma era milenária de puritanismos, o corpo foi redescoberto sob o signo da libertação física e sexual, marcando sua presença constante na cultura de massa, na moda e na publicidade. O mito do prazer que o circunda testemunha que o corpo, na lógica do consumo, se apresenta como um objeto de salvação. Nesse sentido, nas sociedades atuais, o corpo é investido como capital e como feitiço (ou objeto de consumo). Longe de ser negado ou omitido, o corpo passa a ser profundamente investido, tanto no sentido econômico como no sentido psíquico. O que se tem hoje, segundo Baudrillard (1975), é a psicogênese romanceada da apropriação do corpo, ou seja, a gênese de uma psicologia fictícia da apropriação do corpo. Com isso, toda pessoa que não cumprir “as devoções corporais, se pecar por omissão, será castigada” (BAUDRILLARD, 1975, p.214). O investir narcisicamente para não se conhecer em profundidade pressupõe o corpo como o principal objeto de consumo. O corpo não seguiria, não se reapropriaria, segundo as finalidades independentes do sujeito, mas sim deacordo com o princípio do prazer e da rentabilidade hedonista. Esse princípio, porém, não seria livre, mas normativo, guiado por uma instrumentalidade (Baudrillard usa inclusive o termo “coação”) diretamente indexada pelo código e pelas normas da sociedade de consumo. 2. CONSUMO E EROTISMO FUNCIONAL Nesse contexto de corpo como objeto do consumo, a sexualidade e a beleza orientam por toda a parte o consumo do corpo. O imperativo da beleza ou o imperativo de “fazer-valer o corpo pelo desvio do reinvestimento narcisista, implica o erótico como encarecimento sexual” (BAUDRILLARD, 1975, p. 221). Cabe enfatizar: o erótico como encarecimento sexual. O corpo enquanto lugar do fantasma e “habitáculo” do desejo é reduzido, na lógica do consumo, ao imperativo estético enquanto metáfora do imperativo funcional (como se a beleza fosse sinônimo da funcionalidade, da eficácia tão prezadas pela contemporaneidade). Foto: Shutterstock.com Fora isso, na lógica do consumo, a abstrata beleza funcional do manequim faz do objeto erótico um objeto semelhante aos demais, ou seja, objetos assexuados, funcionais veiculados e vendidos pela publicidade. Sendo assim, nos espetáculos promovidos pela moda, o corpo surge de forma hipnótica, tendo como modelo absoluto, sobretudo para as mulheres, o manequim. 3. O CONSUMO DO CONSUMO Ainda diz Baudrillard que a sociedade de consumo é o seu próprio mito; ela pensa-se e fala-se como sociedade de consumo: “[Uma] espécie de imenso narcisismo coletivo leva a sociedade a confundir-se e absolver-se na imagem que oferece de si mesma” (BAUDRILLARD, 1975, p.334). E a publicidade é o hino triunfal dessa ideia. O consumo é o discurso autoprofético que faz a sociedade alimentar-se de si mesma. O mesmo fato se dá em relação à opinião pública, que deixa de ser uma opinião da coletividade para se tornar uma imagem que o público reflete: Foto: Friman / Own work / Wikimedia Commons / CC-BY-SA-3.0 4. O NEO – OU A REVOLUÇÃO ANACRÔNICA O último aspecto de que trataremos em relação ao consumo define-se como a ressureição do que já não existia. O consumo se caracteriza pela recusa da história, ele consome um acontecimento histórico reatualizado à força como lenda. Sendo assim, o desaparecimento real é exaltado pela sua ressureição caricatural. Se a família se dissolveu, nota Baudrillard, a sociedade passa a exaltá-la. Se as crianças deixaram de o ser, “socializa-se a infância”. E mais: “enaltece-se o corpo à medida que se atrofiam as respectivas possibilidades reais, sendo [o corpo] cada vez mais acossado pelo sistema de controle e de constrangimentos urbanos, profissionais e burocráticos” (BAUDRILLARD, 1975, p. 256). ATENÇÃO Uma das características do consumo é exaltar o que já não existe, “exaltar os sinais com base na recusa das coisas e do real” (BAUDRILLARD, 1975, p.156). A SOCIEDADE DE CONSUMO DE BAUDRILLARD Vamos saber um pouco mais sobre a sociedade de consumo: VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. TENDO EM VISTA O QUE BAUDRILLARD DENOMINA MODO DE SIMULAÇÃO NATURALISTA, ASSINALE A ALTERNATIVA CORRETA. A) O simulacro naturalista surgiu do conceito de produção que foi desenvolvido a partir da abstração operacional do simulacro como simulação. B) A tradição de casta contribuiu do ponto de vista socioeconômico para a ampliação dos simulacros produtivistas. C) A contrafação é um simulacro produtivista, se visto sob o ângulo de um sistema energético- político estruturalmente generalizado. D) A contrafação pressupõe um conjunto de leis fundadas na inteligibilidade natural das coisas. 2. (IBADE - 2016) JEAN BAUDRILLARD, EM UM DE SEUS TRABALHOS SEMINAIS, VALE-SE DA SEGUINTE DESCRIÇÃO PARA EXPRESSAR UM DOS MAIS SIGNIFICATIVOS VETORES BALIZADORES DA ATUAL DINÂMICA CULTURAL CONTEMPORÂNEA. SEGUNDO ELE, “CHEGAMOS AO PONTO EM QUE” ESSE ALUDIDO ASPECTO “INVADE TODA A VIDA, EM QUE TODAS AS ATIVIDADES SE ENCADEIAM DO MESMO MODO COMBINATÓRIO, EM QUE O CANAL DAS SATISFAÇÕES ENCONTRA PREVIAMENTE TRAÇADO, HORA A HORA, EM QUE O 'ENVOLVIMENTO' É TOTAL, INTEIRAMENTE CLIMATIZADO, ORGANIZADO, CULTURALIZADO”. A CARACTERÍSTICA DA SOCIABILIDADE CONTEMPORÂNEA LISTADA A SEGUIR, A QUAL DESEMPENHA TAL PAPEL DE VETOR INCONTORNÁVEL, CORRESPONDENDO PLENAMENTE À DESCRIÇÃO ACIMA É A(O): A) Cultura B) Consumo C) Televisão D) Internet GABARITO 1. Tendo em vista o que Baudrillard denomina modo de simulação naturalista, assinale a alternativa correta. A alternativa "D " está correta. Para Baudrillard, a partir do Renascimento, embora os signos tenham se tornado significantes, temos um tipo de simulacro fundado nas leis naturais; pois pretende ser uma espécie de mimesis da própria natureza. 2. (IBADE - 2016) Jean Baudrillard, em um de seus trabalhos seminais, vale-se da seguinte descrição para expressar um dos mais significativos vetores balizadores da atual dinâmica cultural contemporânea. Segundo ele, “chegamos ao ponto em que” esse aludido aspecto “invade toda a vida, em que todas as atividades se encadeiam do mesmo modo combinatório, em que o canal das satisfações encontra previamente traçado, hora a hora, em que o 'envolvimento' é total, inteiramente climatizado, organizado, culturalizado”. A característica da sociabilidade contemporânea listada a seguir, a qual desempenha tal papel de vetor incontornável, correspondendo plenamente à descrição acima é a(o): A alternativa "B " está correta. Apesar de cultura, televisão, internet e microchip sintetizarem itens que intensificam a banalização da sociedade, é somente através do consumo que estas se justificam na inserção no seio da sociedade capitalista. CONCLUSÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste tema, acompanhamos as análises de quatro importantes teóricos da modernidade e da pós-modernidade: Michel Foucault, Gilles Deleuze, Guy Debord e Jean Baudrillard. Auxiliados por seus conceitos de sociedade disciplinar, sociedade de controle, sociedade de consumo e sociedade de espetáculo, pudemos aprender como se dão determinadas relações de poder sobre os indivíduos e, consequentemente, sobre suas culturas e comunidades Como vimos, os mecanismos de controle podem não ser externamente coercitivos, mas sim interiorizados. A crença em determinados valores, como o trabalho, a mercadoria, a tradição, a aparência, ou mesmo o próprio consumo, tem mostrado a forma de organizar e de dominar as sociedades ao longo da história. AVALIAÇÃO DO TEMA: REFERÊNCIAS ALLIEZ, E.; FEHER, M.; GILLE, D.; STENGERS, I. Contratempo: ensaios sobre algumas metamorfoses do capital. Rio de Janeiro: Forense – Universitária, 1988. BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973. BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 1975. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991. BAUDRILLARD, Jean. A Troca Simbólica e a Morte. São Paulo: Edições Loyola, 1996. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. eBooksBrasil, 2003a. Consultado em meio eletrônico em: 25 mai. 2020. DEBORD, G. Comentários sobre A sociedade do espetáculo. eBooksBrasil, 2003b. Consultado em meio eletrônico em: 25 mai. 2020. DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 2008. FOUCAULT, M. 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