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Indaial – 2021 Igreja antIga à Prof. ª Priscilla da Silva Góes 2a Edição HIstórIa da Contemporânea Elaboração: Prof. ª Priscilla da Silva Góes Copyright © UNIASSELVI 2021 Revisão, Diagramação e Produção: Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI Impresso por: G598h Góes, Priscilla da Silva História da igreja antiga à contemporânea. / Priscilla da Silva Góes – Indaial: UNIASSELVI, 2021. 207 p.; il. ISBN 978-65-5663-674-0 ISBN Digital 978-65-5663-669-6 1. História da igreja. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci. CDD 270 Prezado acadêmico, Estamos iniciando a disciplina História da Igreja, que tem como objetivo fazer um apanhado dos principais momentos de mudança no cristianismo, desde a morte de Jesus Cristo até o século atual. Como você deve ter percebido, trataremos aqui de muitos temas, que incluirão diversos personagens, filosofias, artes, tragédias, superação. Enfim, assim como conhecer a história política e social é fundamental para nossa formação, conhecer a história do cristianismo é fundamental para entendermos seu papel na formação do mundo atual. Nossa disciplina envolve um tempo histórico extenso, mais de dois mil anos, e com várias mudanças. Por esse motivo, nosso material não tem como abordar todos os acontecimentos com profundidade. Então, desafiamos você, caro acadêmico, a usar esse material como uma bússola que vai lhe orientar nos principais fatos, conceitos e personagens, para que você possa se aprofundar, posteriormente, a partir de outras leituras acadêmicas. Ao ler a história do cristianismo, devemos também ter em vista que cada religião é um produto humano, ou seja, seu desenvolvimento, formas de pensar, filosofias, dentre outros aspectos, fazem parte de um contexto social, político e econômico. Neste livro, trataremos da vivência religiosa não como algo sobrenatural, mas, ao contrário, como um fenômeno humano. Portanto, a fé e as discursões sobre transcendência ou sobre Deus não farão parte desse material. O que você encontrará aqui serão as discussões acadêmicas feitas por historiadores sobre as diversas fases da história da Igreja cristã. Vejamos, então, o que estudaremos nessa disciplina: Na Unidade 1, abordaremos as duas primeiras fases históricas, ou seja, o cristianismo na Idade Antiga e na Idade Média. Essa unidade busca compreender os primeiros passos do cristianismo após a morte de Jesus, como ele se espalhou e se consolidou até chegar ao patamar de religião oficial de Roma. A partir daí, abordaremos questões referentes aos grupos considerados heréticos, que foram perseguidos dentro do cristianismo. Conheceremos, também, como se deu o desenvolvimento do cristianismo no período Medieval, que teve como resultado a cristianização da Europa. Veremos sobre a influência cristã na arte e, também, o funcionamento da Inquisição. Conheceremos, ainda, os grupos considerados hereges desse período. APRESENTAÇÃO Em seguida, na Unidade 2, estudaremos as mudanças ocorridas no cristianismo devido às ideias renascentistas, que culminaram na Reforma Protestante. No contexto da Reforma, conheceremos os principais grupos reformistas e suas disputas perante as igrejas oficiais. Conheceremos, ainda, como se deu a luta do catolicismo perante o avanço protestante. Veremos também como ocorreu a influência do pensamento iluminista nas questões referentes ao cristianismo. Por fim, na Unidade 3, aprenderemos como a Revolução Francesa modificou as relações entre Igreja e Estado, além do avanço de diversos grupos protestantes tanto na Europa quanto na América. Estudaremos as relações entre a escravidão e as igrejas cristãs, além das mudanças ocorridas na sociedade e seu reflexo nas questões religiosas. Com relação ao catolicismo, veremos o despertar de mudanças significativas nos ritos e nas relações da igreja católica com os demais grupos cristãos, após o Concilio do Vaticano II. Bons estudos! Prof.ª Priscilla da Silva Góes Olá, acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você – e dinamizar, ainda mais, os seus estudos –, nós disponibilizamos uma diversidade de QR Codes completamente gratuitos e que nunca expiram. O QR Code é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar essa facilidade para aprimorar os seus estudos. GIO QR CODE Olá, eu sou a Gio! No livro didático, você encontrará blocos com informações adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender melhor o que são essas informações adicionais e por que você poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto estudado em questão. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material-base da disciplina. A partir de 2021, além de nossos livros estarem com um novo visual – com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura –, prepare-se para uma jornada também digital, em que você pode acompanhar os recursos adicionais disponibilizados através dos QR Codes ao longo deste livro. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com uma nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página – o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Preocupados com o impacto de ações sobre o meio ambiente, apresentamos também este livro no formato digital. Portanto, acadêmico, agora você tem a possibilidade de estudar com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Preparamos também um novo layout. Diante disso, você verá frequentemente o novo visual adquirido. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar os seus estudos com um material atualizado e de qualidade. ENADE LEMBRETE Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conheci- mento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementa- res, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! Acadêmico, você sabe o que é o ENADE? O Enade é um dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de educação superior. Todos os estudantes estão habilitados a participar do ENADE (ingressantes e concluintes das áreas e cursos a serem avaliados). Diante disso, preparamos um conteúdo simples e objetivo para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira, acessando o QR Code a seguir. Boa leitura! SUMÁRIO UNIDADE 1 - HISTÓRIA DA IGREJA ANTIGA E MEDIEVAL ................................................... 1 TÓPICO 1 - OS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO ..................................................................3 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................3 2 O INÍCIO DO CRISTIANISMO ...............................................................................................4 3 INFLUÊNCIAS SOFRIDAS PELO CRISTIANISMO E A SEPARAÇÃO DO JUDAÍSMO ......... 7 4 HERESIAS: A LUTA INTERNA DO CRISTIANISMO.............................................................9 4.1 O GNOSTICISMO .................................................................................................................................... 9 4.2 O MONTANISMO .................................................................................................................................. 13 4.3 O ARIANISMO ....................................................................................................................................... 14 4.4 O DONATISMO ...................................................................................................................................... 14 4.5 O PELAGIANISMO ............................................................................................................................... 14 5 A FORMAÇÃO DO CÂNON SAGRADO ............................................................................... 15 6 A FORMAÇÃO DA HIERARQUIA ECLESIÁSTICA CATÓLICA............................................ 17 7 O CRISTIANISMO E O PODER TEMPORAL EM ROMA ...................................................... 20 8 OS PRINCIPAIS PENSADORES CRISTÃOS DA ANTIGUIDADE ....................................... 22 RESUMO DO TÓPICO 1 .........................................................................................................27 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................. 28 TÓPICO 2 - O CRISTIANISMO NO PERÍODO MEDIEVAL ..................................................... 31 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 31 2 O PODER PAPAL .............................................................................................................. 32 3 A QUESTÃO ICONOCLASTA ............................................................................................. 34 4 O CISMA DO ORIENTE ...................................................................................................... 36 5 OS MONASTÉRIOS: A FUGA DO MUNDO ......................................................................... 38 6 A REFORMA MONÁSTICA E A REFORMA GREGORIANA ................................................ 40 7 A MÚSICA NA IGREJA ...................................................................................................... 42 8 AS CRUZADAS ................................................................................................................. 44 9 O GRANDE CISMA PAPAL ................................................................................................ 46 10 OS PRINCIPAIS PENSADORES CRISTÃOS MEDIEVAIS ............................................... 48 RESUMO DO TÓPICO 2 ........................................................................................................ 50 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................. 51 TÓPICO 3 - AS HERESIAS MEDIEVAIS E A INQUISIÇÃO ................................................... 53 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 53 2 AS HERESIAS MEDIEVAIS ............................................................................................... 53 2.1 OS ALBIGENSES OU CÁTAROS .........................................................................................................54 2.2 OS VALDENSES ...................................................................................................................................56 2.3 JOHN WYCLIFFE ................................................................................................................................. 57 2.4 JOHN HUSS ........................................................................................................................................58 2.5 OS BEGUINOS .....................................................................................................................................59 3 A INQUISIÇÃO MEDIEVAL ................................................................................................ 60 LEITURA COMPLEMENTAR ................................................................................................ 64 RESUMO DO TÓPICO 3 ........................................................................................................ 69 AUTOATIVIDADE ..................................................................................................................70 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................73 UNIDADE 2 — O CRISTIANISMO NA IDADE MODERNA ....................................................... 77 TÓPICO 1 — AS MUDANÇAS RELIGIOSAS NA IDADE MODERNA .......................................79 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................79 2 O RENASCIMENTO CULTURAL E CIENTÍFICO: REAÇÕES DA IGREJA .......................... 80 3 A INQUISIÇÃO MODERNA ................................................................................................ 86 3.1 ESTATUTOS DE PUREZA DE SANGUE ............................................................................................ 91 RESUMO DO TÓPICO 1 ........................................................................................................ 92 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................. 93 TÓPICO 2 - PERÍODO DE REFORMAS ..................................................................................95 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................95 2 A REFORMA PROTESTANTE .............................................................................................95 2.1 O LUTERANISMO ..................................................................................................................................96 2.2 HULDRYCH ZWINGLI .........................................................................................................................101 2.3 O CALVINISMO ...................................................................................................................................103 2.4 OS ANABATISTAS..............................................................................................................................105 2.5 JACÓ ARMÍNIO ..................................................................................................................................108 2.6 O ANGLICANISMO ..............................................................................................................................110 2.7 O PURITANISMO .................................................................................................................................113 2.8 JOHN KNOX E A REFORMA NA ESCÓCIA ....................................................................................114 2.9 OS QUACRES ......................................................................................................................................115 2.10 OS RANTERS .....................................................................................................................................118 RESUMO DO TÓPICO 2 .......................................................................................................120 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................ 121 TÓPICO 3 - AS MUDANÇAS NA RELIGIÃO EUROPEIA APÓS A REFORMA ......................123 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................1232 A CONTRARREFORMA CATÓLICA ..................................................................................123 3 O JANSENISMO ...............................................................................................................126 4 O ILUMINISMO E A QUESTÃO RELIGIOSA ...................................................................... 127 5 AS MISSÕES DA ÁSIA......................................................................................................129 6 O PIETISMO ..................................................................................................................... 131 7 O METODISMO .................................................................................................................132 8 O GRANDE AVIVAMENTO NA AMÉRICA DO NORTE .......................................................134 LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................138 RESUMO DO TÓPICO 3 ...................................................................................................... 144 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................145 REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 147 UNIDADE 3 — A IGREJA NA IDADE CONTEMPORÂNEA ................................................... 151 TÓPICO 1 — A REVOLUÇÃO FRANCESA: O INÍCIO DO ESTADO LAICO E AS MUDANÇAS RELIGIOSAS ..........................................................................................153 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................153 2 A REVOLUÇÃO FRANCESA E A IGREJA ........................................................................154 3 O MOVIMENTO EVANGÉLICO .......................................................................................... 157 3.1 A COMUNIDADE DE CLAPHAM ...................................................................................................... 157 4 O MOVIMENTO DE OXFORD ............................................................................................159 5 A INFLUÊNCIA DE WILLIAM CAREY NAS MISSÕES PROTESTANTES ..........................160 6 O CRISTIANISMO NA AMÉRICA DO NORTE NO SÉCULO XIX: O AVIVAMENTO E A QUESTÃO ESCRAVISTA .................................................................... 161 7 AS MISSÕES CRISTÃS NA ÁFRICA NO SÉCULO XIX ......................................................164 8 A TEOLOGIA LIBERAL PROTESTANTE ...........................................................................166 RESUMO DO TÓPICO 1 .......................................................................................................169 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................170 TÓPICO 2 - O CRISTIANISMO NO MUNDO INDUSTRIALIZADO ....................................... 173 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 173 2 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E OS MOVIMENTOS CRISTÃOS ....................................... 174 3 O EVANGELHO SOCIAL NA AMÉRICA ............................................................................ 176 4 A INFALIBILIDADE PAPAL E O CONCÍLIO DO VATICANO I ........................................... 177 5 O MOVIMENTO FUNDAMENTALISTA PROTESTANTE.................................................... 179 6 O MOVIMENTO DA NEO-ORTODOXIA ............................................................................. 179 7 O PENTECOSTALISMO ...................................................................................................180 8 O NEOPENTECOSTALISMO ............................................................................................182 RESUMO DO TÓPICO 2 .......................................................................................................184 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................185 TÓPICO 3 - A IGREJA CATÓLICA NO SÉCULO XX ............................................................187 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................187 2 O CONCÍLIO DO VATICANO II ..........................................................................................187 3 A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA ...................................................................................189 4 O MOVIMENTO CARISMÁTICO ........................................................................................ 191 5 A IGREJA ORTODOXA NO SÉCULO XX ...........................................................................192 LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................195 RESUMO DO TÓPICO 3 ...................................................................................................... 202 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................... 203 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 205 1 UNIDADE 1 - HISTÓRIA DA IGREJA ANTIGA E MEDIEVAL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • conhecer a formação das principais doutrinas cristãs; • entender os conflitos entre judeus e cristãos e, posteriormente cristãos e Império Romano; • examinar o processo para que o cristianismo se tornasse oficial no Império Romano; • estudar as principais ideias consideradas heréticas pela ortodoxia cristã; • identificar os principais teólogos cristãos dos primeiros séculos. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – OS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO APÓS A MORTE DE JESUS TÓPICO 2 – O CRISTIANISMO NO PERÍODO MEDIEVAL TÓPICO 3 – AS HERESIAS MEDIEVAIS Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 1! Acesse o QR Code abaixo: 3 OS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO 1 INTRODUÇÃO Então, Jesus aproximou-se deles e disse: ‘Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei. E eu estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos (Mateus 28:18-20). Estimado acadêmico, provavelmente você já deve conhecer o texto anterior. Tais palavras, segundo a tradição cristã, foram ditas por Jesus aos seus discípulos antes de sua partida da terra. Esse texto ainda hoje tem sido pregado como uma verdadeira ordenança aos cristãos. Imaginemos, então, o impacto dessas palavras na vida dos discípulos, futuros apóstolos, logo após a separação deles do seu Mestre. Imaginemos, ainda, o impacto dessa pregação dentro do contexto judaico, cuja comunidade encontrava-se dividida entre os que seguiam Jesus, como Messias, e os que rechaçavam os ensinamentos de Jesus. Com o Mestre morto, as autoridades judaicas que não concordavam com sua doutrina passaram a atacar ainda mais os cristãos. Nessa época, surgiram os primeiros mártires, mas, também, o início da expansão do cristianismo. E a expansão foi intensa. Os discípulos, animados pela ideia da parúsia, que seria o retorno de Cristo, faziam com que a mensagem cristã se difundisse não só entre os judeus, mas também por províncias romanas que tinhauma religiosidade completamente diferente tanto do judaísmo quanto do cristianismo. Essa religiosidade diversa do império romano foi chamada pelos cristãos de paganismo. Portanto, caro acadêmico, iniciaremos nossos estudos da história da igreja procurando entender os primeiros passos do movimento que convencionou-se chamar de Cristianismo. Abordaremos, neste tópico, os principais conflitos com o judaísmo e a religiosidade romana, assim como os conflitos internos do cristianismo e sua luta para consolidar uma doutrina ortodoxa. Veremos, também, como o cristianismo passou de uma religião perseguida à religião estatal. Por fim, conheceremos os principais nomes dos teólogos que ajudaram a igreja no fortalecimento de sua doutrina. TÓPICO 1 - UNIDADE 1 4 2 O INÍCIO DO CRISTIANISMO No século I, os judeus tinham seu território ocupado pelos romanos. O Império Romano estabeleceu seu domínio por várias regiões como Grécia, Egito, Palestina, dentre outras. A dominação romana obrigava que seus súditos pagassem impostos e proibia que fizessem revoltas, pois o exército estava pronto para combater qualquer tentativa de rebelião. Com a morte de Jesus, seus seguidores, cuja maioria, até então, era composta de judeus, liderados pelos discípulos, passaram a disseminar seus ensinamentos. Tais ideias geraram divergências entre os grupos judaicos que acreditaram que, com a morte do líder, seus ensinos sucumbiriam mais facilmente. A aceitação ao cristianismo, porém, ocorreu rapidamente por outras regiões do império romano, para judeus e não-judeus. A partir disso, surgiu um problema interno relacionado à aceitação do cristianismo por pessoas que não tinham a cultura e a religião judaica. Ritos judaicos comuns aos primeiros seguidores passaram a ser vistos, pelos devotos não judeus, como desnecessários. Assim, ocorreu o processo de separação entre o cristianismo e o judaísmo. Inicialmente, o cristianismo era uma das faces do judaísmo. Os cristãos iam as sinagogas e ao Templo. No entanto, pouco a pouco, foi crescendo a relutância judaica contra a disseminação do cristianismo . Vejamos o que diz o historiador das religiões Eliade: Por outro lado, cumpre ter em conta que os primeiros cristãos, judeus de Jerusalém, constituíam uma seita apocalíptica dentro do judaísmo palestino. Estavam na espera iminente da segunda vinda de Cristo, a parúsia; o que os preocupava era o fim da história, e não a historiografia da espera escatológica. Além disso, como era de prever, em torno da figura do mestre ressuscitado cristalizou-se bem cedo toda uma mitologia que lembra a mitologia dos deuses salvadores e do homem divinamente inspirado (theîos ántropôs). Essa mitologia, [...] é particularmente importante: Ajuda-nos a compreender a dimensão religiosa específica ao cristianismo e também sua história posterior. Os mitos que projetaram Jesus de Nazaré num universo de arquétipos e figuras transcendentais são tão ‘verdadeiros’ quanto seus gestos e palavras: esses mitos confirmam, de fato, a força e a criatividade de sua mensagem original. É aliás, graças a essa mitologia e simbologias universais que a linguagem religiosa do cristianismo torna-se ecumênica e acessível para além do seu foco de origem (ELIADE, 2011a, p. 296). Percebemos então que, para os discípulos que recentemente haviam perdido a convivência com Jesus, a expectativa do retorno deste era esperada para ao quanto antes, colocando o foco na ideia apocalíptica. A pregação sobre os feitos de Jesus e o seu retorno passa a ser a ênfase na pregação dos primeiros cristãos. Esse discurso encontrou eco nas comunidades não judaicas com muita força. Enquanto o cristianismo era rechaçado pelos judeus, passou a ter adesão dos não judeus, como explica Eliade (2011a, p. 301): 5 É na diáspora que se desenvolve a cristologia. O título ‘filho do homem’ – que em grego já não tem sentido – é substituído por ‘filho de Deus’ ou ‘Senhor’ (Kúrios); o termo “messias” é traduzido para o grego (Khristós) e acaba por transformar-se em nome próprio: Jesus Cristo. Portanto, com a ampliação do cristianismo para os domínios pagãos, houve uma nova forma de vivenciar o cristianismo. A partir disso, novos conflitos surgiram. O apóstolo Paulo é considerado o principal agente propagador do cristianismo, inclusive entre populações não judaicas. Ele implantou igrejas em várias regiões, dentre elas: Ásia Menor, Grécia e Macedônia. Porém, foi em Antioquia, na Síria, que se estabeleceram as primeiras comunidades cristãs de origem pagã, sendo nela utilizada pela primeira vez a expressão “cristãos”, para designarem os seguidores de Jesus (ELIADE, 2011a). Após a adesão de vários gentios ao cristianismo, os judeus-cristãos se desentenderam com os novos convertidos, principalmente devido à não observância da circuncisão. Assim, foi convocado o primeiro concílio, realizado em Jerusalém (Atos 15), no qual foi decidido que os pagãos que se convertessem não precisariam seguir todos os ritos judaicos, somente “abster-se das carnes sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas” (ELIADE, 2011a, p. 304). Na década de 60 d.C., teve início a ruptura da relação entre judeus e cristãos. Com a destruição do Templo em Jerusalém e a expulsão dos judeus do império romano, o cristianismo continuou ganhando adeptos entre os gentios. No segundo século, porém, os cristãos foram perseguidos dentro dos domínios romanos, tendo em vista, principalmente, a não aceitação pela adoração aos imperadores romanos (ELIADE, 2011a). Havia rejeição aos cristãos não somente por parte da cúpula romana, mas, também, pela sociedade em geral. De acordo com Shelley (2004), alguns fatores contribuíram para essa hostilidade aos cristãos por parte dos romanos. A acusação de ateísmo é um desses fatores. Como o cristianismo não fazia uso de imagens para representar seu Deus, eles eram tidos pelos romanos como ateus. Outro fator importante era que os judeus receberam do império romano uma espécie de imunidade nas questões de seu culto. Assim, enquanto o cristianismo estava sob a tutela do judaísmo, ele não era perseguido pelos romanos, pois os judeus eram vistos mais como um grupo fechado, no qual não havia a ênfase no proselitismo. Quando, gradualmente, o cristianismo foi se separando do judaísmo e, assim, adotando uma abordagem mais proselitista, o governo romano passou a ver o cristianismo como uma possível ameaça à ordem pública. Também, como dito, os cristãos se opuseram ferrenhamente aos deuses adorados pelos romanos e gregos. Tal rejeição ocorria em festas ou demais ambientes sociais, nos quais os cristãos se recusavam a comer alimentos que haviam sido consagrados aos deuses pagãos. 6 Além disso, outros traços culturais foram rechaçados pelos cristãos, como, por exemplo, as batalhas de gladiadores. Outra razão para os romanos não se agradarem do cristianismo eram as recorrentes denúncias de que, nos cultos cristãos, havia orgias e prática de canibalismo. Quanto ao canibalismo, Shelley (2004) explica que pode ter sido devido a uma má interpretação do rito eucarístico, em que o pão e o vinho são chamados de o sangue e o corpo de Cristo. Ele ressalta, também, que, aos cristãos, eram imputados os motivos para quaisquer desgraças que ocorressem em Roma. Eram verdadeiramente os “bodes-expiatórios” (SHELLEY, 2004). Seguiu-se, então, uma hostilidade para com os cristãos, que saiu da esfera social e passou a ser parte da política de Estado de muitos imperadores romanos (SHELLEY, 2004). Segundo Eliade (2011a), o cristianismo era clandestino em Roma e, os imperadores passaram a publicar alguns decretos anticristãos. O imperador romano Nero (54-68) fomentou uma perseguição acirrada em que “[...]muitos cristãos chegaram a ser crucificados. Alguns eram costurados na pele de animais selvagens e depois cachorros enormes eram atiçados contra eles, que então eram despedaçados. Mulheres eram amarradas a touros furiosos e arrastadas até a morte” (SHELLEY, 2004, p. 47). Em 202, o imperador Septímo Severo proibiu que os cristãos fizessem proselitismo. Já Décio, em 250, deu ordens para que todos os cidadãos romanos fizessem oferendas aos deuses pagãos. Alguns cristãos, com medo das perseguições, aderiram ao edito, mas muitos se opuseram. O clima de perseguição foi intenso até 258, em que os cristãos gozaram de um breve período de paz. Foi então que, no governo do imperador Diocleciano (244-311), ocorreu a perseguição mais longa e sangrenta (ELIADE, 2011a). Nem sempre o estado romano combateu o cristianismo. Houve épocas de calmaria e outras de perseguição mais intensas. Em tais períodos, surgiram pensadores cristãos que tentar mostrar que as ideias do cristianismo não iam de encontro aos ideais sociais dos romanos. Tais homens foram chamados de apologistas. Esta foi a tentativa de fazer com que o cristianismo pudesse viver pacificamente em Roma. Todavia, segundo Eliade (2011a), os apologistas não tiveram sucesso nessa fase e, aos cristãos, era imputado tudo de ruim que acontecesse em Roma. O termo pagão foi dado pelos cristãos para categorizar os adeptos da religiosidade greco-romana. Tanah é o termo em hebraico que diz respeito a totalidade da Bíblia hebraica. NOTA 7 3 INFLUÊNCIAS SOFRIDAS PELO CRISTIANISMO E A SEPARAÇÃO DO JUDAÍSMO Caro acadêmico, devemos ter em vista que toda religião surge em um contexto histórico, político e social. É importante entendermos esses aspectos ao tratarmos de qualquer fenômeno religioso. Assim sendo, veremos agora algumas das influências que o cristianismo teve nos seus primórdios. Vejamos o que o professor Theissen (2009, p. 97, 98) explica: Sob a ótica histórica, o etos cristão primitivo está situado entre o judaísmo e o paganismo. É o etos de um grupo que provém do judaísmo, mas que encontrou a maioria de seus seguidores no paganismo. Ele se diferencia do etos judaico apenas de forma gradual. Ele intensifica e radicaliza os princípios ali existentes, certamente com uma tendência a superá-los mediante uma ‘justiça melhor’ (Mt 5,20). Essa ‘tendência de superação’ é levada adiante no ambiente pagão. Os primeiros cristãos querem corresponder, de maneira exemplar, a muitas normas do mundo pagão circundante. [...] O cristianismo primitivo introduz no mundo pagão dois valores oriundos da tradição judaica, os quais, dessa forma, são novos: O amor ao próximo e humildade (ou a renúncia ao status). Ao lado de uma acomodação dos valores e normas do mundo pagão (com pretensão de superioridade), surge, por conseguinte, a consciência de uma antinomia em relação a ele. Paralelamente à pretensão de cumprir melhor do que todos os demais as normas comuns do mundo ambiente, surge uma consciência contracultural de que a religião cristã primitiva mostra-se quase como uma ‘religião-de-excêntricos’. Portanto, para entender o cristianismo em suas origens, é fundamental ter em vista as características principais da religiosidade judaica na época de Cristo, assim como aspectos da religiosidade romana. E, da mesma forma que o cristianismo incorporou traços do paganismo, também contribuiu para mudanças na estrutura desta última tradição, assim como valores judaicos foram assimilados pelo cristianismo e transportados para a sociedade pagã. Uma das alterações empreendidas pelo cristianismo, em relação ao judaísmo, foi o rompimento com um importante rito praticado pelos judeus: o sacrifício no Templo de Jerusalém. Com a destruição do Templo, os judeus pararam de realizar os rituais de sacrifícios e dedicaram-se nas sinagogas aos estudos da Torá, do Midrash e do Tamuld. Porém, até hoje, boa parte da comunidade religiosa judaica espera poder retomar os sacrifícios quando o Templo for reerguido. O cristianismo, entretanto, reelaborou a ideia do sacrifício por meio de Jesus. A morte de Cristo é considerada o ápice de todos os rituais realizados no Templo. Foi o ato mais importante para a humanidade, pois, por meio dele, não há mais necessidade da utilização de animais para o sacrifício. Desse modo, a mensagem da morte e ressurreição de Jesus tornou-se o ponto principal do cristianismo e sua principal ruptura com o judaísmo, então, a simbologia ritualística adotada pelo cristianismo foi modificada (THEISSEN, 2009, p.171). A mudança do ritual foi uma quebra no paradigma do mundo religioso antigo, tendo em vista que tanto a religião romana quanto as outras religiões do mundo antigo usavam o sacrifício de animais como o principal rito realizado. 8 Nessa fase, o cristianismo inaugurou uma nova forma de expressão ritual, muito mais simbólica, a eucaristia. O momento eucarístico consiste em um ato de transubstanciação, em que duas substâncias terrenas, o pão e o vinho, são transformadas, respectivamente, no corpo e no sangue de Cristo. Esse ato substituiu a imolação de animais. Além da ceia eucarística, o batismo é outro principal rito simbólico praticado por essa nova comunidade religiosa. O batismo representa a introdução à nova jornada religiosa e a eucaristia é a promoção da contínua comunhão entre os fiéis, ao reviverem o sacrifício sagrado feito por Jesus Cristo (THEISSEN, 2009). Outra alteração que a inclusão de não-judeus ao cristianismo trouxe diz respeito aos espaços de culto. Os espaços de cultos judaicos não poderiam ser frequentados por quem não fosse judeu. A partir disso, surgiu a necessidade de reuniões somente entre cristãos, o que gerou o afastamento mais intenso entre cristianismo e judaísmo. Ademais, os cristãos trouxeram uma nova visão sobre espaço de culto, em que o templo passa a ser a pessoa, não o local. Com isso: A ideia de que a comunidade – isto é a congregação e pessoas – é o templo de Deus, favoreceu também o surgimento das igrejas domésticas. As casas particulares constituíram-se no lugar de reunião e de culto das comunidades cristãs durante séculos [...] até que a própria expansão missionária tornou necessário buscar espaços mais amplos para as reuniões (ESTRADA, 2005, p. 159). Foi, então, no final do século I e início do II que o cristianismo começou a traçar sua organização de forma mais estruturada, buscando, em especial, a divulgação de suas ideias (ESTRADA, 2005). Assim sendo, o caráter universalista do cristianismo foi criando forma. Tal fato levou um tempo para acontecer pois, inicialmente, a mensagem vinha diretamente do único líder: Jesus. Após a morte de Jesus e principalmente depois de Pentecostes, o cristianismo passou a ter vários líderes, e em vários lugares pois o cristianismo se expandiu (JOHNSON, 2001). O encontro com contextos culturais e religiosos diversos e o afastamento temporal com os primeiros discípulos que haviam ouvido, de perto, a mensagem de Jesus geraram diversas interpretações das ideias cristãs, surgindo, então, a luta entre a ortodoxia e o que ficou caracterizado como heresia. Para conhecer mais dos conflitos entre cristãos, judeus e pagãos, vejam o filme Alexandria (Ágora), dirigido por Alejandro Amenábar, maiores informações em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-134194/. DICA 9 4 HERESIAS: A LUTA INTERNA DO CRISTIANISMO Caro discente, devemos ter em vista que, com a destruição do Templo, a separação entre cristianismo e o judaísmo ocorreu com maior veemência, como já discutimos. O cristianismo foi se ampliando nos domínios romanos e, com isso, ficava cada vez mais difícil manter um cristianismo centrado em umaúnica forma de pensar. Foi assim que interpretações diversas começaram a ocorrer, fazendo com que um grupo tomasse para si o direito de se definir como ortodoxia, ou seja, os que receberam os ensinos dos primeiros apóstolos e repassaram de forma “correta”. As ideias que surgiram e que não estavam de acordo com tal ortodoxia passaram a ser tratadas como heresias e rechaçadas pelo grupo dominante. Dentre as principais questões levantadas, estavam as seguintes: se realmente houve a ressurreição de Cristo; se Jesus veio em carne ou somente em espírito; se haverá ressurreição e juízo final; se as mulheres poderiam fazer parte da liderança, entre outros pontos. De acordo com Johnson (2001), a igreja cristã não conseguiu se expandir com ideias uniformes devido, principalmente, à tradição oral, tendo em vista que o cânon considerado sagrado levou um tempo para ser compilado e, mesmo depois de pronto, não era disponível para todos, sendo assim: “cada igreja tinha sua própria ‘história de Jesus’, e todas haviam sido fundadas por um membro do bando original, que passara a tocha adiante para um sucessor designado, e assim por diante” (JOHNSON, 2001, p. 59). Tendo em vista tal realidade, veremos, a seguir, alguns desses movimentos considerados heréticos e seus impactos na cristandade dos primeiros séculos. 4.1 O GNOSTICISMO A luta contra o gnosticismo perdurou durante anos no cristianismo, se estendendo até o período do Medievo. Um dos principais aspectos defendidos por esse movimento era a crença não só na ideia do bem e do mal, mas também na existência de um código secreto na religião que só seria revelado a alguns. Ao aceitar tais ideias, o indivíduo, que antes “dormia”, “acordava” por meio da gnose, passando a conhecer a verdade (JOHNSON, 2001). Vejamos a explicação de Johnson: O gnosticismo é uma religião do ‘conhecimento’ – é esse o significado da palavra – que afirma deter uma explicação interna para a vida. Daí ele ter sido, e, na verdade, ser ainda, um parasita espiritual, valendo- se de outras religiões como ‘portadoras’. O cristianismo prestava-se muito bem a esse papel. Tinha um fundador misterioso, Jesus, que misteriosamente desaparecera, deixando para trás um conjunto de ditos e seguidores para transmiti-los; e claro que além dos ditos públicos haviam os ‘secretos’, transmitidos geração a geração por membros da seita. Assim, certos grupos gnósticos aproveitaram-se de pedaços do cristianismo, mas tendiam a isolá-los de suas origens históricas (JOHNSON, 2001, p. 60). 10 A partir do excerto, vemos que o gnosticismo não surgiu no cristianismo. As suas ideias já se encontravam em outras religiões antigas e, uma vez que o cristianismo foi se expandindo a diferentes povos, tais ideias passaram a ser internalizadas no cristianismo, afastando-o, inclusive, de seu contexto judaico. Tal questão foi importante para a adesão das ideias gnósticas cristãs por gregos, principalmente. No contexto do Novo Testamento, vemos que o próprio apóstolo Paulo combateu veementemente o gnosticismo (JOHNSON, 2001). O gnosticismo cristão teve vertentes diferentes, porém, algumas ideias foram comuns. A teologia cristã foi desenvolvida visando combater o que era considerado heresia. Sendo assim, o gnosticismo foi, sem dúvida, o seu principal rival na Idade Antiga. Vejamos como Shelley explica alguns dos pensamentos gnósticos: O relacionamento da série de emanações variava nas diferentes escolas gnósticas. Mas elas concordavam em que, de alguma forma, a luz pura do paraíso na alma do homem acabou envolvida pela desagradável questão da matéria e tinha de ser redimida. Os gnósticos gostavam da ideia de o bom Deus ter enviado Cristo, e, por isso, pensavam que a última divindade enviara ao mundo um de seus ‘poderes’ subordinados, chamado ‘Cristo’, para libertar o homem das correntes da matéria. Mas Cristo não poderia ter contato real com a matéria. Portanto, no batismo de Jesus de Nazaré, ou nessa época, Cristo desceu para dele; na prisão de Jesus, ou nessa ocasião, ele se retirou. Quem foi açoitado e assassinado não foi o Cristo (SHELLEY, 2004, p. 59). Por meio de tais percepções, vemos que o campo do pensamento gnóstico afastava a ideia de Jesus Cristo fazer parte da Trindade, tendo os mesmos atributos de Deus. Além disso, a encarnação de Cristo era colocada como errônea, ou, em alguns casos, como tendo sido substituída em determinadas horas, como o excerto exposto. Um dos exemplos de grupos cristãos com ideias gnósticas foi conduzido por Marcião (85-160). Ele era um grego que fora para Roma por volta de 120, convertido ao cristianismo, dizia ser da escola de Paulo e procurava divulgar o cristianismo. Ele ficou conhecido como um exímio heresiarca em seu período, fundando ideias que ficaram conhecidas como marcionismo. Marcião concordava que os ensinos do apóstolo Paulo eram os mais próximos do que Jesus havia pregado, porém, sobre os escritos sagrados, ele renunciou todo o Antigo Testamento e, do Novo testamento, aceitou apenas parte do evangelho de Lucas e Atos e os escritos paulinos. Com isso, ele rompia radicalmente com o fio de ligação entre judaísmo e cristianismo (JOHNSON, 2001; ELIADE, 2011a). Para ele, o Deus do Antigo Testamento era: “monstruoso, cruel, sangrento, patrono de rufiões como Davi” (JOHNSON, 2001, p. 61). 11 Marcião foi denunciado como herege, excomungado e nenhum dos seus livros chegou aos nossos dias. Suas principais ideias, assim como as de outros considerados hereges, chegaram até nós por meio dos escritos que o acusavam (JOHNSON, 2001). Assim, é importante entendermos que, muitas vezes, essas acusações não correspondiam à verdade do pensamento do acusado. Apesar de toda rejeição, Marcião fundou uma igreja e conseguiu com que parte da comunidade cristã da Bacia do Mediterrâneo aderisse suas ideias. A sua igreja, inclusive, conseguiu angariar uma boa quantia financeira. Porém, ela não passou do século III (ELIADE, 2011a). Vejamos uma síntese do seu pensamento: Marcião compartilha o essencial do dualismo gnóstico, sem, entretanto, incluir as implicações apocalípticas. Seu sistema dualista contrapõe a lei e a justiça, instituídas pelo Deus criador do Antigo Testamento, ao amor e ao Evangelho revelados pelo Deus bom. Este último envia seu filho, Jesus Cristo, para libertar os homens da escravidão da lei. Jesus reveste um corpo capaz de sentir e sofrer, embora não seja material. Em sua pregação, Jesus exalta o Deus bom, mas evita esclarecer que não se trata do Deus do Antigo Testamento. Por outro lado, é pela pregação de Jesus que Javé é informado da existência de um Deus transcendente. Vinga-se entregando Jesus a seus perseguidores. Mas a morte na cruz traz a salvação, pois, com seu sacrifício, Jesus resgata a humanidade do Deus criador. No entanto, o mundo continua sobre o domínio de Javé, e os fiéis serão perseguidos até o fim dos tempos. Só então é que o Deus bom se dará a conhecer: receberá os fiéis em seu Reino, enquanto o resto dos homens, bem como a matéria e o Criador, serão definitivamente destruídos (ELIADE, 2011a, p. 327). Na explicação de Eliade, conseguimos perceber os elementos do gnosticismo no pensamento de Marcião. O dualismo muito presente, principalmente na ideia do Deus bom versus Deus mau. O dualismo está presente, também, na ideia de que Cristo não veio em carne, mas em um corpo diferenciado, como um espírito. Um dos grandes críticos de Marcião foi Tertuliano (160-220). Enquanto o primeiro enfatizava Deus como o princípio do amor, sendo este suficiente, ao segundo importava fazer uso do temor a Deus, pois somente se obedece e se respeita a quem se teme, vejamos: A controvérsia de Marcião e Tertuliano nos proporciona um vislumbre, talvez pela primeira vez, de doistipos básicos de cristianismo: o otimista racional, que crê que o princípio do amor seja suficiente, com o homem tendo um desejo essencial de praticar o bem, e o pessimista, convencido da corruptibilidade básica das criaturas humanas e da necessidade do mecanismo de danação (JOHNSON, 2001, p. 62). Outro ponto crucial nos ensinos de Marcião, que muitos gnósticos aceitavam também, era a oposição ao casamento. Ele defendia que o casamento fora um ato criado pelo Deus do Antigo Testamento que visava à procriação, portanto, não deveria ser realizado. Porém, outras vertentes gnósticas não se opuseram ao casamento e, em alguns casos, praticavam também orgias. 12 Outro grupo que difundiu as ideias gnósticas dentro do cristianismo foram os Valentinianos, liderados por Valentino (100-160). Eles acreditavam que o verdadeiro ser do indivíduo é o espiritual, em contraponto ao carnal. O espiritual estaria adormecido, preso nesse mundo, porém, a partir da gnose, haveria a salvação quando esse ser estivesse livre da prisão carnal. Nessa concepção, as ideias contrastantes/dualistas estão sempre presentes: “espírito/matéria, divino (transcendente)/antidivino; o mito da queda da alma (alma = espírito, parcela divina), ou seja, a encarnação em um corpo (assimilado a uma prisão); e a certeza da libertação (a ‘salvação’) obtida graças à gnose” (ELIADE, 2011a, p. 324). A gnose cristã seria o ensinamento que Jesus deixou para alguns escolhidos e estes foram divulgando a outros. Os gnósticos, portanto, fariam parte de uma casta separada que seria salva, os santos (ELIADE, 2011a). Valentino foi um dos grandes pensadores e divulgadores do gnosticismo cristão do século II (MATIAS, 2011). Ele chegou, inclusive, a se candidatar ao cargo de bispo em Roma, mas não chegou a ser escolhido. Segundo Matias (2011, p. 2482), “Valentino afirmava que aprendeu seus ensinamentos secretos com Teúdas, um dos discípulos de Paulo, os seguidores de Valentino afirmavam que somente os seus evangelhos e revelações continham tais ensinamentos”. Temos, aqui, uma das principais filosofias do gnosticismo, que consistia em ideias escondidas, reveladas somente a um grupo de seguidores. Um fator curioso da história de Valentino era que ele e seus seguidores não queriam o afastamento da igreja, tendo lutado por muito tempo contra a expulsão deles do meio considerado ortodoxo (MATIAS, 2011). Outro fator relevante dos movimentos tidos como seitas gnósticas era de que se diferenciavam do cristianismo mais geral quanto à universalidade do ensino, tendo em vista que eles preconizavam um conhecimento secreto, revelado aos seus. Além disso, suas reuniões poderiam ser feitas em qualquer espaço, não havendo uma complexidade em seu culto (MATIAS, 2011). Também, os grupos gnósticos eram constantemente acusados de estarem na igreja somente para atrair outros cristãos as reuniões, em que as ideias gnósticas eram ensinadas. Para o grupo dos Valentinianos, a humanidade estaria dividida em três categorias: os choics, que seriam as pessoas que só se preocupavam com as coisas terrenas, cotidianas; os psíquicos, que englobavam os religiosos em geral e, os pneumos que seriam os gnósticos (MATIAS, 2011). Portanto, a função do terceiro grupo seria desvelar a verdade para que outros pudessem “acordar” e obter a salvação, juntando-se ao terceiro grupo. Outro movimento importante ficou conhecido como docetismo. Tal grupo também defendia que Cristo não veio à terra em carne, pois seria uma humilhação, assim como seria uma humilhação morrer na cruz. Segundo eles, Cristo apenas teve uma aparência de homem. Segundo o docetismo, a crucificação teria sido feita por outra pessoa (ELIADE, 2011a). 13 4.2 O MONTANISMO Segundo Estrada (2005), o movimento montanista surgiu no século II, fundado por Montano da Frígia, que era auxiliado por Priscila e Maximila. Além de ter produzido escritos, eles tinham uma concepção de cristianismo voltada à escatologia e aos carismas. Uma das suas principais divergências com relação aos outros grupos cristãos era de que os carismas tinham sido esquecidos por eles, vejamos: “O movimento era composto por carismáticos, que eram arrebatados pelo Espírito e enriquecidos com uma infinidade de êxtases, oráculos, visões e profecias” (ESTRADA, 2005, p. 271). Além disso, o montanismo aceitava a participação feminina de modo ativo, pregava a importância do celibato e, assim, não encorajava o casamento, pois a necessidade maior era se preparar para o fim dos tempos. Tais posturas foram severamente criticadas por muitos grupos de cristãos, apesar de sua vasta difusão em diversas igrejas do Ocidente. Os montanistas foram duramente perseguidos por bispos, e, por isso, estes eram chamados de “assassinos de profetas” (ESTRADA, 2005, p. 272). Ao final do século, com o movimento consolidado, várias de suas igrejas faziam concorrência com a igreja considerada oficial, ao passo que esta não mediu esforços na realização de concílios e excomunhão de quem seguia os ensinamentos do montanismo. Um dos seus mais conhecidos seguidores foi o teólogo Tertuliano, e, segundo ele, tais concepções não eram novas, pois estavam seguindo os ensinamentos de Cristo e o que acontecera com a descida do Espírito Santo. Todavia, era uma forma de vida que procurava ser mais perfeita, devido à severidade de suas práticas (ESTRADA, 2005, p. 273). O movimento durou até o século IV. Sobre Tertuliano, Paul Johnson (2001) comenta: O caso de Tertuliano oferece um vislumbre precioso, sob alguns aspectos único, do funcionamento da Igreja primitiva. Aqui estava um grande estadista da igreja, homem de impecável retidão e fé ardorosa, abraçando a heresia. Sua aderência, assim, solapa por completo os ataques ortodoxos a moral e ao comportamento público dos montanistas, proporciona, de qualquer modo, um selo de aprovação ética para o movimento (JOHNSON, 2001, p. 66). Portanto, vemos que as heresias não chamavam a atenção somente de pessoas iletradas, mas também de intelectuais da igreja. Nesse caso, o fervor religioso dado por meio dos êxtases, a busca por uma vida santa, acabou trazendo para o meio do montanismo um teólogo tão apreciado pela ortodoxia cristã como Tertuliano. 14 4.3 O ARIANISMO No século IV, outro grupo tentou abalar os alicerces do que ficou conhecido como ortodoxia cristã. Um sacerdote de Alexandria, Ário, passou a questionar a ideia da Trindade. Ele negou “[...] a consubstancialidade das três pessoas divinas. Para ele, Deus é único e incriado; o filho e o Espírito Santo foram criados mais tarde pelo pai, e, portanto, lhe são inferiores” (ELIADE, 2011a, p. 355). Claro que essas declarações foram rejeitadas pela igreja, tendo repercutido negativamente e sendo considerada tão errônea essa ideia, que foi convocado o concílio de Niceia para dar conta do assunto. 4.4 O DONATISMO As ideias donatistas tiveram início em Cartago, por volta do ano 332, com o bispo Donato e foram consideradas heréticas. Eles também foram considerados como um dos primeiros movimentos cismáticos, ou seja, que quiseram se separar da Igreja. Um dos primeiros desentendimentos ocorreu em virtude do acolhimento que a Igreja deu a algumas pessoas que haviam sido consideradas traidoras, pois, em um momento de perseguição, essas se apartaram do cristianismo. Um desses “traidores” foi colocado como presbítero-supervisor da região de Cartago, no Norte da África. Tal decisão não foi aceita pela igreja no norte da África e eles escolheram outra pessoa como presbítero-supervisor. Essa atitude gerou um clima de cisão. Segundo Johnson (2001, p. 104) “era um movimento de homens pobres liderados por um clero puritano” e, ainda: “Para Agostinho, [...] eles eram agentes da anarquia e do horror social, ‘hordas ensandecidasde homens abandonados’. Segundo ele, celebravam seus mártires promovendo distúrbios, em meio a bebedeiras”. Agostinho de Hipona foi um duro crítico deste movimento. Estando do lado católico, considerava os donatistas como hereges. Outro ponto defendido pelos donatistas é que eles esperavam que cada igreja local tivesse autonomia e que não precisassem seguir as ordens da igreja de Roma. Além disso, eles prezavam pela separação entre igreja e Estado (SANTOS, 2016). Porém, como o cristianismo conseguiu a adesão do Império Romano por meio do Edito de Milão, era mais fácil manter a igreja sendo governada a partir de Roma do que mantê-la independente, ou seja, cada cidade com seus líderes. 4.5 O PELAGIANISMO Atribui-se a Pelágio ser o criador das ideias pelagianas. Este teria nascido por volta do ano 350 e falecido em 428. Não se sabe ao certo onde nasceu, e foi morar em Roma no ano 405. Praticante do ascetismo, Pelágio considerava que o pecado 15 ocorria pela vontade do homem, assim, o salvar-se dependia somente do homem, não concordando, então, que a Graça de Deus é que salva (SILVA, 2014). Vejamos um dos seus argumentos: Pelágio afirmava categoricamente que o dogma do livre arbítrio era um absurdo. As passagens bíblicas do Gênesis deviam ser relidas, pois não era possível que o pecado de um ser humano, atavicamente, atravessasse toda a história. Cada indivíduo, necessariamente munido das orientações da Igreja e praticando os exercícios espirituais, de per si, era capaz de ‘combater’ o pecado (SILVA, 2014, p. 51). Assim, é possível perceber que o que propunha Pelágio ia de encontro a um dos principais dogmas do cristianismo, ou seja, a Graça de Deus é que salva e que todo o homem é pecador. Para o cristianismo, foi o sacrifício de Cristo que concedeu a salvação ao homem. Ele também atacava a questão do pecado original, não acreditando que as crianças tivessem pecados, por isso, não concordavam com o batismo de crianças. A forma de pensar de Pelágio se espalhou e ele conseguiu vários adeptos e, no Sínodo de Cartago (397) que suas doutrinas foram condenadas como heréticas. 5 A FORMAÇÃO DO CÂNON SAGRADO A expressão “Cânon sagrado”, que hoje faz referência aos escritos bíblicos, é derivada da palavra grega kanon (reta). Ela foi usada para os textos sagrados com o intuito de simbolizar a régua, ou o padrão que os cristãos deveriam seguir (BRUCE, 2011). Após a morte de Jesus, seus discípulos, que mais tarde ficaram conhecidos como apóstolos, passaram a divulgar os feitos de Jesus em diversas localidades, muitas vezes por meio de cartas que eram lidas por diferentes igrejas, servindo para instruir os cristãos. Depois da morte dos apóstolos que haviam vivido com Jesus, a tornou-se muito necessária a leitura de seus testemunhos, para que a mensagem de Jesus não se perdesse ou fosse deturpada. Caro acadêmico, estudamos, no subtópico anterior, os conflitos internos que o cristianismo estava vivendo com relação às heresias, principalmente ao gnosticismo. Tais conflitos foram a mola propulsora da escrita apologética dos pais da igreja, como ficaram conhecidos os primeiros teólogos cristãos, e, também, foi colocada a importância de se decidir quais livros entrariam ou não no compêndio final do que veio a ser a Bíblia cristã. Várias discussões a esse respeito ocorreram. Veremos, a partir de agora, os principais fatores que levaram a igreja cristã a aceitar alguns livros como inspirados e dignos de entrar no cânon sagrado e outros não. O termo “bíblia” fazia referência ao conjunto de livros, passando a representar o livro sagrado (SHELLEY, 2004). Como Jesus nasceu e pregou no meio judaico, os Escritos que eram sagrados para o judaísmo entraram no cânon cristão. Mesmo com a discordância de alguns grupos, principalmente dos gnósticos, como já pontuamos, 16 aceitar os escritos do Antigo testamento fazia sentido, pois eles ratificavam a importância do Messias para o mundo, que os cristãos afirmavam ser Jesus. Sem o Antigo Testamento, o peso da vinda do Messias não seria tão enfático. O próprio Jesus, a todo instante, retomava as passagens do Tanah, mostrando que as profecias se cumpriam de acordo com a caminhada dele. Portanto, o Antigo Testamento passou a ter um novo significado para a cristandade, pois ele foi completado pelos escritos dos seguidores de Jesus, que se convencionou chamar de Novo Testamento. Porém, vale lembrar que, para os judeus, o termo “Antigo/Velho” testamento não é bem-visto, pois, para eles, nada ficou velho, pois é esse escrito que para eles é sagrado. Sobre a aceitação do Tanah, vejamos o que diz Shelley: Quando os cristãos reivindicaram o uso do Antigo Testamento, não definiram quais os livros que essa reivindicação incluía. Naquele tempo, os cristãos divergiam sobre a inclusão ou exclusão dos chamados apócrifos na lista de livros do Antigo testamento. O termo aplica-se a dose ou quinze livros, dependendo de como são agrupados, os quais são aceitos pelos católicos romanos como canônicos e rejeitados pela maioria dos protestantes (SHELLEY, 2004, p. 68). Sobre a aceitação dos livros que não estavam no cânon judaico, Agostinho de Hipona foi a favor, e, assim, eles passaram a fazer parte do cânon católico. Na época da Reforma Protestante, essa questão foi revista e, com isso, alguns reformadores preferiram deixar somente os livros que constavam no cânon judaico (SHELLEY, 2004). Vejamos, também a explicação de Johnson: Em geral, a figura determinante na evolução do cânon foi Eusébio, cujo objetivo era associar o mais intimamente possível a doutrina e estrutura de facto da igreja a suas credenciais documentais; após sua morte, documentos úteis que ele considera duvidoso, foram aceitos como canônicos, o processo, estando praticamente concluído em 367, quando Atanásio apresentou uma lista de suas Cartas Pascais. Nessa época, o Novo Testamento, aproximadamente como conhecemos hoje, havia sobrepujado, em grande parte, as antigas escrituras hebraicas como o principal instrumento doutrinário da igreja. Era uma ferramenta que fora moldada na Igreja e não o contrário (JOHNSON, 2001, p. 72). Percebemos, na fala de Johnson (2001), que a compilação do cânon bíblico foi feita de acordo com as premissas do setor da Igreja que tomava para si a função de guardiã da ortodoxia. A controvérsia maior aconteceu na compilação do Novo Testamento. Um dos critérios adotados foi perceber se era um escrito já lido nas igrejas cristãs de diferentes localidades (SHELLEY, 2004). Outro fator importante apontado por Shelley (2004) é se o livro foi ou não escrito por algum apóstolo ou por alguém que convivera com um apóstolo. A autoridade dos apóstolos era evidenciada, pois foram eles que conviveram com Jesus e, portanto, tinham a essência do cristianismo exposta em seus escritos. 17 6 A FORMAÇÃO DA HIERARQUIA ECLESIÁSTICA CATÓLICA Caros alunos, como já expusemos, após a morte dos apóstolos, outros seguidores passaram a assumir a liderança nas diversas cidades onde o cristianismo conseguiu chegar. Com o passar do tempo, tais lideranças, que foram chamadas de bispos, passaram a responder pelo cristianismo, como líderes que descendiam da tradição dos apóstolos. Com a expansão do cristianismo no Império Romano, o bispo de Roma passou a ter um papel de destaque dentro do cristianismo. Essa força foi ampliada ainda mais quando houve a necessidade de combater o que era considerado heresia. Além das heresias, a igreja cristã não tolerava comportamentos que não correspondessem a uma moralidade rígida, como nos lembra Shelley (2004, p. 81): “[...] essas comunidades cristãs tentaram regular sua vida em comum pelos princípios da mais estrita moralidade, nãotolerando membros pecaminosos no meio delas. Os pecadores obscenos eram expulsos do meio da igreja”. Lembremos que, no contexto social greco-romano, a moralidade era totalmente diferente do que preconizava o cristianismo. As questões relacionadas à admissão ou não de alguém que houvesse cometido algo considerado como um pecado grave dentro da igreja passavam pelo bispo local. Havia muita discussão entre os bispos e teólogos sobre quais tipos de erros poderiam ser perdoados: “Calixto (217-222) readmitiu os membros arrependidos que tinham cometido adultério. Para ele, a igreja era como a arca de Noé. Nela, podiam ser encontrados tanto os animais puros como os impuros” (SHELLEY, 2004, p. 81). Calixto ainda atribuiu à igreja, pela primeira vez, a função das chaves dadas a Pedro por Cristo (SHELLEY, 2004). Com o cânon bíblico formado, era necessária também sua explicação. Caro acadêmico, analise, então: se a igreja já procurava combater o que era considerado heresia, agora com o Novo Testamento já compilado, quem você acha que teria a responsabilidade de explicar/decodificar o que dizia o livro sagrado? Claro que a igreja tomou para si essa responsabilidade. Tal questão foi consolidada, posteriormente, na ideia de que a Igreja Católica tem sua base na Bíblia e na Tradição, pois é ela que autentica a forma de interpretar a Bíblia. A questão da interpretação da Bíblia foi crucial para que houvesse um clero unificado dentro do cristianismo (JOHNSON, 2001). [...] a autoridade do bispo foi, então, escorada na compilação de listas episcopais remontando às origens apostólicas. Todas essas Igrejas produziram seus levantamentos e nenhuma delas, isoladamente, tinham que arcar com o ônus de provar que sua doutrina era a pregada a princípio. Assim, as Igrejas instituíram a intercomunhão e a defesa mútua contra a heresia, com base no episcopado monárquico e sua genealogia apostólica (JOHNSON, 2001, 73). 18 Outra mudança importante ressaltada por Johnson (2001) foi que somente um bispo poderia consagrar outro. Com a escolha de um cânon único, o fortalecimento dos bispos, principalmente o de Roma, as heresias sendo combatidas e o cristianismo se expandindo, a igreja foi conseguindo se consolidar no Império Romano. Além disso, com o aumento da intelectualidade se convertendo ao cristianismo, o credo e a teologia se solidificaram e conquistaram, posteriormente, outras regiões. O controle do clero nos assuntos religiosos ficava cada vez mais latente. Temia- se que mais heresias nascessem, se espalhassem e, com isso, dividissem a comunidade cristã. Os cultos, que durante muito tempo eram celebrados em casas ou em catacumbas, precisavam de espaços maiores, pois o número de fiéis era cada vez mais crescente. Assim, com reuniões em locais mais amplos, dirigidas pelo bispo, manter a doutrina mais coesa seria mais fácil. Além disso, como o batismo e a eucaristia passaram a ser os principais ritos, eles deveriam ser celebrados pelo bispo. Estada (2005), explica que o culto sofreu influências judaicas, mas aos poucos foi tomando uma forma própria. Os sacerdotes aumentavam seu poder, enquanto o papel dos leigos foi diminuindo. Somente no século IV é que a liturgia começou a ser oficializada. Antes disso, cada região cultuava de acordo com sua cultura (ESTRADA, 2005, p. 372). O papel do bispo também foi mudando, como explica Estrada (2005, p. 376): “O incremento do número de membros da Igreja contribuiu para a burocratização do bispo, para seu distanciamento do culto e para a dissolução do estreito vínculo existente entre o bispo e seu presbitério”. O autor também ressalta que o formato de bispo atualmente, que está distanciado do povo, lotado em uma cúria, com tarefas mais burocráticas, foi algo implementado no período medieval, e esse modelo suscita, constantemente, desagrado entre alguns teólogos católicos (ESTRADA, 2005). Vejamos, a seguir, a importância que os bispos passaram a ter para o cristianismo: Os bispos pregavam, instruíam a congregação, batizavam os catecúmenos, impunham penitências aos pecadores, sustentavam os princípios ortodoxos contra os heréticos, ordenavam presbíteros e diáconos e participavam dos concílios. Aos poucos, vão adquirindo também capacidade jurídica sobre os membros do seu clero e os leigos da sua congregação, um privilégio que, mais tarde, será ratificado e expandido pela legislação imperial. No IV século, à medida que avança o processo de cristianização nos meios urbanos, a autoridade episcopal passa a ser exercida também em assuntos que dizem respeito ao funcionamento do corpo cívico, como, por exemplo, a administração da justiça, a organização do abastecimento de víveres em tempos de escassez, a defesa da cidade contra as investidas dos bárbaros e a representação do povo junto à corte. A partir de então, as tarefas do bispo se deslocam do âmbito da ecclesia para o da civitas, o que lhe confere a capacidade de, em muitas circunstâncias, interpelar o próprio imperador sobre a sua conduta pública e privada. Os bispos se tornam, desse modo, agentes políticos extremamente influentes, cuja posição é reforçada pelo apoio que amiúde lhes tributa a população urbana, sempre pronta a tomar a defesa do seu líder espiritual (SILVA, 2010, p. 115). 19 A partir da citação anterior, observamos como, aos poucos, a cúpula religiosa passou a influenciar também a organização estatal. Além do bispo, outro cargo relevante dentro da Igreja cristã foi o de diácono, que respondia aos bispos e presbíteros. Com o passar do tempo, sua função passou a ser de auxiliar do bispo (ESTRADA, 2005). Quanto mais aumentava o número de adeptos ao cristianismo, mais aumentava também o clero. Em Roma, ele passou a ser dividido da seguinte maneira: Os diáconos e subdiáconos encarregavam-se da atenção aos pobres. [...]. A ‘diocese’ era uma unidade administrativa política. Diocleciano dividiu o império em 12 dioceses, que abrangiam várias províncias, e que equivaliam, em termos eclesiásticos, aos patriarcados. Por outro lado, o território do bispo, inicialmente, era a ‘paróquia’, e somente a partir do século XIII se impôs o termo ‘diocese’ (ESTRADA, 2005, p. 406). Caro acadêmico, deu para notar que, com o crescimento do cristianismo, foi se tornando necessário organizar não só a doutrina, tendo em vista as heresias, mas também a funcionalidade de cada cargo na igreja. Para tal formação, foi incorporado muito das características administrativa de Roma. A estrutura foi sendo ampliada na Idade Média e Moderna, até termos a forma atual. Veremos, agora, como foi estruturado o cargo mais elevado da igreja, o de pontífice. É sabido que o cargo de pontífice é, para a Igreja Católica, equivale à sucessão do apóstolo Pedro, tendo em vista a passagem dos evangelhos em que Jesus teria deixado a chave da igreja para Pedro (Mateus 16:16-19). Porém, a formalidade do papado e sua sucessão ocorreu posteriormente. O aspecto da preponderância do papa em relação aos bispos e demais cargos eclesiásticos não foi aceito unanimemente. Foram feitas várias discussões internas para que o cargo e suas funções fossem plenamente aceitos. Porém, como já vimos, a Igreja em Roma passou a usufruir de um status importante perante a comunidade cristã. Ela acreditava ser o polo em que a ortodoxia cristã foi preservada, além de ser a capital do império romano e, poderiam contar com um poderio econômico também. Estrada comenta: “Roma começa a tornar-se uma instância por meio da qual se recorre quando há conflitos nas igrejas do Ocidente. No século III, há intervenções que denotam sua autoridade na igreja latina, embora só intervenha em casos excepcionais, tendo necessidade de aceitar a independência de bispos” (ESTRADA, 2005, p. 452).Inicialmente, a igreja em Roma procurava não intervir em outras igrejas, a não ser se visse que era necessário. A igreja do norte da África procurava andar livre da igreja de Roma, porém, com as mudanças históricas ocorridas nessa região, decorrentes das invasões bárbaras, que praticamente acabaram com o cristianismo na região, o papado ganhou mais força em Roma (ESTRADA, 2005). Sobre a função do papa, o autor ainda expõe: Não se pode esquecer que o bispo de Roma possui três âmbitos distintos de autoridade: enquanto bispo de uma igreja local, a romana, enquanto patriarca do Ocidente (onde ele exerce uma autoridade semelhante à dos bispos de Alexandria e de Antioquia em seus patriarcados) enquanto primaz da Igreja universal. Sua autoridade 20 em Roma é indiscutível, uma vez que se impôs a ideia segundo a qual cada Igreja deve ter somente um bispo, contra as pretensões dos antipapas. Sua primazia no Ocidente também se desenvolve progressivamente, mais na prática do que na teoria, sendo cada vez mais frequente o recurso a ela quando há enfrentamentos entre as Igrejas ou conflitos episcopais (ESTRADA, 2005, p. 452). Ainda de acordo com Estrada (2005), foi no Concílio de Niceia (325), realizado no governo de Constantino, que ficou decidido que as [...] “Igrejas de Alexandria, Antioquia e Roma eram as principais e exerciam um controle sobre as demais Igrejas em seu âmbito territorial” (ESTRADA, 2005, p. 453). Com isso, a igreja de Jerusalém perdeu de vez sua importância oficial perante as outras. Nessa fase, o cristianismo com o modelo romano começava a ganhar um peso de universalidade. Nessa época, o papa ainda não possuía o poder e prestígio que conhecemos. Estudaremos essa questão no tópico sobre o cristianismo na Idade Média. Vemos, então, que Roma possuía vários atributos para que o cristianismo lá se consolidasse, e ela passou a ser referência para outras regiões. Com a subida de Constantino ao poder, a igreja deixou de sofrer com as perseguições imperiais e, o clero teve acesso, pela primeira vez na história cristã, ao imperador romano. Abordaremos essa questão no próximo subtópico. 7 O CRISTIANISMO E O PODER TEMPORAL EM ROMA Caro acadêmico, já comentamos a respeito da perseguição do Império Romano aos cristãos nos primeiros séculos. É comum dizer que, nessa época, quanto mais perseguido, mais o cristianismo crescia. E não só crescia, mas também se estruturava, hierarquizava e consolidava sua base teológica e os livros canônicos. Pois bem, foi no século IV que ocorreu uma mudança radical na estrutura romana, que foi o Edito de Milão, decretado pelo imperador Constantino. Vejamos a explicação do professor Carlan: Reunidos em Milão, em 313, Constantino e Licínio assinam o Edito de Milão. Em resumo, o documento declarava que o Império Romano seria neutro em relação ao credo religioso, acabando oficialmente com toda perseguição sancionada oficialmente, especialmente ao Cristianismo. A aplicação do Edito fez devolver os lugares de culto e as propriedades que tinham sido confiscadas dos cristãos e vendidas em praça pública. O Edito deu ao Cristianismo (e a todas as outras religiões) o estatuto de legitimidade, comparável com o paganismo e, com efeito, desestabeleceu o paganismo como a religião oficial do Império Romano e dos seus exércitos (CARLAN, 2011, p. 28). Foi com esse edito que o cristianismo gozou de paz no império, mas esse não foi o único feito de Constantino para o cristianismo. Naquele momento, o cristianismo estava de mãos dadas com o Estado romano. Sobre as mudanças implementadas por Constantino, Shelley (2004) ressalta: 21 A partir de 312, ele favoreceu abertamente os cristãos. Permitiu que os ministros cristãos usufruíssem da mesma isenção de impostos que os sacerdotes pagãos; aboliu as execuções realizadas por meio de crucificação; pôs fim às batalhas dos gladiadores como punição para crimes; e, em 321, tornou feriado o dia de domingo. Graças a sua generosidade, surgiram prédios suntuosos de igrejas como prova de seu apoio ao cristianismo (SHELLEY, 2004, p. 105). A conversão de Constantino ao cristianismo não foi aceita por todos. Há quem ressalte que foi a penas uma cartada política. Constantino passou a usar seu poder como imperador para interferir nos assuntos cristãos, inclusive convocando o Concilio de Niceia, considerado de extrema importância para a cristandade. O Concílio de Niceia ocorreu, dentre outros fatores, em virtude das ideias do arianismo, que já estudamos no Subtópico 4.3. Foi nesse concílio que o arianismo foi combatido como heresia, e a questão da Trindade foi firmada na doutrina cristã. O imperador Constantino se fez presente no concílio e “[...] no seu discurso, Constantino expressava o desejo da união da Igreja, deixando de lado as diferenças que por ora se manifestava na separação entre arianos e antiarianos” (SILVA, 2017, p. 31). Caro acadêmico, a esta altura você pode estar se perguntando: O que mudara? Por que a partir de então o império romano se voltou com benevolência ao cristianismo? Pois bem, Johnson (2001) faz uma explanação interessante a respeito da adesão do estado romano ao cristianismo. Segundo ele, o cristianismo da época de Constantino (século IV) já possuía uma elite intelectual responsável por sua doutrina, além de uma sólida estrutura hierárquica, como já estudamos, e um alto poder proselitista, que já havia se disseminado por todo império. Portanto, “era católico, ecumênico, ordenado, internacional, multirracial e cada vez mais legalista. “ao atacá-lo e enfraquecê-lo, o império estava se debilitando” (JOHNSON, 2001, p. 93). A situação do cristianismo em Roma chegou a um patamar que se tornava insustentável continuar a perseguição. Outro imperador que conseguiu um feito talvez ainda maior do que Constantino, com relação às leis no Império Romano e o cristianismo, foi o imperador Teodósio, o Grande (379-395). Indo além do Edito de Milão, ele implementou o Edito de Tessalônica, pelo qual o cristianismo passava ser a religião oficial do Império Romano. Perceba, acadêmico, como o cristianismo saiu da marginalidade em Roma e, em pouco mais de trezentos anos, conseguiu subir ao patamar de religião oficial do Império. O poder da igreja foi, a partir de então, ligado à política estatal, e essa ligação se efetivou não somente em Roma, como também nos demais estados que formaram a Europa Medieval e Moderna. Nesse sentido, Eliade (2011a) nos lembra: “[...] o cristianismo converte-se em religião de Estado e o paganismo é definitivamente proibido; os perseguidos transformaram-se em perseguidores” (ELIADE, 2011a, p. 356)”. 22 Com a ascensão do cristianismo ao posto de religião oficial, muitos grupos cristãos acabaram achando que era seu direito pôr fim às religiosidades diferentes que ainda existiam no Império. Eliade (2011a) relata que surgiu, ainda no século IV, um grupo, dentre outros, que foi responsável por alguns levantes contra populações religiosas, a saber, os monges. Os monges cristãos surgiram em meio ao desejo de se abster ao máximo da vida considerada mundana, e se separar dessa para servir a Deus. Os lugares escolhidos para isso eram afastados das cidades, geralmente nos desertos ou grutas. Vejamos o relato de Eliade (2011) sobre a influência que esses monges começaram a ter na sociedade cristã, ainda na Idade Antiga: Cerca do final do século IV, desde a Mesopotâmia até o norte da África, assiste-se a uma onda de violência perpetrada pelos monges: em 388, incendeiam uma sinagoga em Calinico, perto do Eufrates, e aterrorizam as aldeias sírias onde haviam templos pagãos; em 391, o patriarca de Alexandria, Teófilo, convoca-os para ‘purificar’ a cidade do Serapeum (Serapeu), o grande templo de Serápis. Na mesma época, penetraram
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