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1 
 2 
Prólogo 
O ERÓTICO JUSTIFICADO 
 
― Tire a roupa, Giselle! Fique inteiramente nua! 
A princípio fiquei fria, atônita, espantada com a 
estranha ordem do meu companheiro de Resistência. Que 
espécie de comando era aquele? Que utilidade poderia ter 
no meu trabalho de patriota francesa contra o exército 
nazista de ocupação? 
― Tire a roupa, já disse! ― insistiu o maquis Paulo 
Zingg, numa voz que inspirava respeito e medo a um só 
tempo. 
Não pude resistir e fui deixando cair, uma a uma, as 
peças do meu vestuário. A saia rolou-me aos pés. A blusa. 
Completamente despida, sem o gesto virginal de proteção, 
aguardei os acontecimentos. 
O maquis pôs de lado a metralhadora portátil que até 
então estivera empunhando e acercou-se de mim, 
examinando detidamente, como se fosse um médico, cada 
detalhe do meu corpo nu. Apalpou-me as nádegas, os seios 
e as coxas. Pediu-me que andasse pelo quarto, desse voltas, 
exibindo-me como uma prostituta. Olhou-me por longos 
momentos e afinal, puxando uma baforada do seu cigarro 
Gauloises, sentenciou: 
― É, você tem um corpo irresistível. Serve 
perfeitamente ao que pretendemos fazer... Sua nudez 
ajudará à nossa causa! 
* * * 
A guerra tem estranhos preceitos que a moral dos 
tempos de paz não saberia aceitar. Admitimos que, em 
 3 
nome da pátria, seja lícito jogar bombas sobre cidades 
inimigas e matar centenas de pessoas inocentes. Somos 
forçados a admitir ― e lendo esta história vocês 
compreenderão ― que uma linda jovem ofereça a beleza do 
seu corpo nu ao serviço de espionagem. Tudo indica que 
uma heroína tem o direito de apelar para o erotismo do seu 
corpo se com esse gesto devolve às suas compatriotas a 
segurança de se manterem castas e bem vestidas. Os maquis 
― bravos soldados dos subterrâneos de Paris ― impuseram 
a Giselle o dever terrível de oferecer o próprio corpo aos 
nazistas da ocupação. Só assim poderia ela roubar-lhes os 
segredos vitais do planejamento do histórico desembarque 
na Normandia, o dia D que veio libertar a Europa do jugo 
de Hitler. Estas páginas que se seguem foram escritas por 
Giselle na prisão de Lys, em velhos papéis de embrulho. O 
ano era 1941. O general Stupnaggel, preposto de Himmler, 
comandava o Exército de Ocupação Nazista na França. E a 
GESTAPO massacrava os heróis da Resistência. Mas 
Giselle nua era irresistível. 
Giselle escreve: 
"Onde fica bem claro que meu destino é o de uma 
mulher marcada para servir aos apetites bestiais dos 
adoradores da carne. O vaticínio da cigana... e o meu 
corpo". 
Meu nome é Giselle Montfort. Meu pai era escultor e 
trabalhou com Auguste Rodin. Minha mãe era filha de um 
parteiro de Cannes e suas últimas palavras foram de 
preocupação e temor quanto ao meu futuro. Tudo porque 
uma dessas ciganas errantes, que costumam acampar nos 
 4 
arrabaldes de Paris, lhe disse que havia sangue e terror em 
meu destino. 
― Sua filha é uma mulher marcada! ― garantiu a 
espanhola morena, de olhos grandes, negros. 
E o que mais impressionou minha mãe foi a cigana ter 
partido sem aceitar um franco. Mas isso, há tanto tempo... 
Hoje, no meio de uma noite fria, escrevo sobre este papel 
grosseiro, assim mesmo a lápis, na cela úmida, sem luz, 
abafada. Terá curso minha palavra? Serei lida, algum dia, 
por alguém neste mundo? Nem sei onde me encontro. Os 
nazistas me trouxeram de olhos vendados, através de uma 
longa viagem, e atiraram-me aqui, depois de um simulacro 
de julgamento em que houve de tudo contra o meu espírito, 
e principalmente contra o meu corpo. Ah... minha França 
ocupada! Um nazista imundo no Arco do Triunfo, outro na 
porta de Versalhes, Nem quero pensar! Meu julgamento... 
que julgamento! Um oficial jovem, até bonito, de lábios 
finos e duros, leu a sentença que me condena à morte por 
fuzilamento, "em vista das minhas comprovadas atividades 
contra a vida do "führer" do Terceiro Reich e contra a 
Grande Alemanha". 
Isso quer dizer que se cumpre de maneira inexorável a 
profecia da cigana vagabunda. E eu jamais acreditara em 
profetas... Um guarda noturno me atira a lata de comida 
malcheirosa por um buraco do meu cárcere. Disse-me ― 
como quem faz um grande favor ― que ainda não morrerei 
por estes dias. Querem fazer-me crer que há algum interesse 
especial em adiar minha execução. Pretendem extirpar-me 
segredos, os demônios. Faltam-lhes detalhes essenciais para 
completar o que já descobriram sobre o grupo subterrâneo 
 5 
chefiado por Billy. Esses bravos "maquis" lhes têm dado 
um trabalho constante. Ah... como gostaria de estar agora 
novamente entre eles! Resolvi escrever para não pensar na 
morte ou nas coisas piores do que a morte que certamente 
me reservam. Facilitaram-me um lápis e alguns papéis de 
embrulho. O carcereiro fez tudo isso chegar às minhas 
mãos, fingindo gentileza. Doce ironia: as folhas me 
recordam as da loja do meu pai, em Cannes. Os pacotes de 
biscoito, na padaria tranqüila. Minha infância boa... 
Os nazistas acham que a minha escrita lhes será útil. 
Acham mesmo ― pois vivem achando ― que 
possivelmente denunciaria os meus companheiros narrando 
estes episódios. Que absurdo! Supõem-me tão ingênua 
depois de me condenar à morte por muito perigosa! Estou 
usando a linguagem taquigráfica dos sistemas TIFFIN 
(1750) e LYLE (1762), combinada com a dos sistemas 
HOLSWORTH & ALDRIDGE (1766), todas inglesas e 
muito antigas, desconhecidas dos alemães que estão 
habituados apenas aos sistemas PITMAN e GREGG, mais 
recentes. Se, porventura ― o que parece sumamente difícil 
e improvável ― estas páginas forem encontradas pelos 
libertadores da Europa, talvez cheguem às mãos do meu 
professor Raymond Pirrier que as decifrará. (1) Seja como 
for, vou transmitindo aqui todas as lembranças destes dias 
horríveis, como se estivesse confessando-me a mim mesma. 
 
(1) Aquilo que Giselle pensava não ocorreria senão por 
milagre, aconteceu de maneira bem simples. As forças de 
libertação, com os "maquis" à testa, soltaram os presos 
políticos de uma pequena prisão em Lys, entregaram todos 
 6 
os documentos encontrados nos armários e fichários dos 
nazistas às autoridades aliadas. Entre eles as memórias de 
Giselle, que despertaram maior curiosidade pelo fato de 
estarem cifradas em caracteres desconhecidos. Os técnicos 
em taquigrafia foram chamados. Nenhum sabia do que se 
tratava. Finalmente o "maquis" Berloz lembrou que Giselle 
tinha um professor. Pirrier foi localizado e fez a tradução. 
 
1 
O MORCEGO E OS TARADOS 
 
Ontem à noite foi introduzido um padre na minha cela. 
Falava excelente francês e apresentou-se, gentilmente, 
como Monsenhor Goulin. Deve ter notado minha 
desconfiança, mas procurou convencer-me de que exercia o 
ofício sagrado de confortar os condenados na hora intensa 
da morte, levando-lhes a palavra de Deus. E explicou: 
― A princípio os alemães não quiseram aceitar as 
minhas razões. Mas por fim não viram mal algum em que 
viesse aqui... É verdade que não deixam de me revistar toda 
vez que entro na prisão, o que é constrangedor para um 
sacerdote. Aceitaram que eu visite também sua cela. 
Acredite em mim, filha. Farei tudo para ajudá-la a salvar a 
alma. 
Dei uma gargalhada. 
― Padre nazista ― berrei-lhe, cuspindo para o lado. 
Um fulgor estranho veio dos seus olhos. Levantou-se 
num pulo, já sem aquele ar místico, sem um mínimo de 
caridade cristã. 
 7 
― Sua vaca! ― gritou. 
E agarrando-me com a mão esquerda rasgou-me, com a 
direita, o vestido de seda que estava em mim desde a prisão, 
um vestido mais de uma vez profanado pelos oficiais 
nazistas. Seminua, agachada ao canto da cela onde o falso 
padre me atirara, vi-o de narinas abertas, ofegante, caminhar 
na minha direção; sua expressão era a de um fauno ávido. 
Agarrou-me novamente e despiu-me. Sua boca estava cheia 
de insultos, ditos em francês legítimo, francês dos becos 
sombrios de Montmartre.Pensei no que se ia repetir. A 
posse! 
Apesar de tudo ainda não me acostumara. Uma jovem 
mulher, por mais vilezas que experimente, não se pode 
habituar a servir de pasto aos apetites bestiais dos homens 
desvairados, Desde a minha prisão, num cabaré em Paris, eu 
rolara de cama em cama, satisfazendo oficiais nazistas. 
Embora eu me mantivesse numa indiferença de gelo, não 
conseguia afetá-los. Possuíam-me, de qualquer maneira, 
como a um belo cadáver. Preparei-me para o pior. Goulin, o 
falso padre, já estava bem perto de mim, Eu nua. Ele 
trêmulo! Só lhe disse isso: 
― Você? Um francês traidor! 
Ele foi embora como uma sombra. Não consegui 
entender no que as minhas palavras poderiam ter influído 
para aplacar-lhe os instintos bestiais. Talvez medo dos 
nazistas. Afinal, viera ali com outra missão, a de me 
arrancar segredos. Não estava escalado para possuir-me. 
Foi-se. Fiquei na cela, completamente nua. Meu vestido 
transformado em trapos. Aquele Goulin filho da cadela!... 
 8 
Os soldados nazistas, beberrões de chope, caras 
redondas e chapadas, aproximavam-se da janelinha para me 
ver. Davam gargalhadas, apontando certas partes do meu 
corpo. Queriam ver-me os seios, que eu procurava cobrir 
com as mãos. No dia seguinte, como eu teimasse em 
encolher-me num dos cantos da cela, retraindo-me toda, 
igual a um caramujo, houve um deles, a que os outros 
chamavam de Goliath ― por causa de seu tamanho e de 
suas feições abrutalhadas ― que decidiu obrigar-me a 
erguer o corpo, para que meus seios fossem vistos por 
todos. Trouxeram até à janela do cubículo uma grande 
mangueira e fizeram o esguicho d'água atingir-me em cheio. 
Pulei, com o impacto frio. Tive que correr, alucinada, pela 
reduzida cela. Os miseráveis davam risadas lascivas. 
Diziam coisas bestiais sobre meu corpo. Em certa hora, 
exausta, caí ao chão. Sobre as minhas costas eles 
continuavam a manter o jato gelado daquela mangueira. 
Doíam-me as ancas e as nádegas, O jato parecia de fogo e 
chumbo. O vozerio, as gargalhadas daqueles brutos 
insensíveis davam-me tonteiras. Mas fui posta em estado de 
alerta pelo berro grotesco de Goliath: ― Deixem-me entrar! 
O brutamontes forçava o carcereiro indeciso. 
― Deixa eu botar a mão nesta puta!... 
Toda molhada, com o rosto colado à laje fria de olhos 
fechados, eu ouvia os berros como se estivesse noutro 
mundo. A voz de Goliath, as negativas do carcereiro e a 
insistência dos outros soldados, apoiando o tarado. Ouvi a 
chave ranger na fechadura e fiquei esperando. Mas, de 
repente, tudo cessou, como por encanto. Acordei na 
enfermaria, com a voz ríspida da enfermeira: 
 9 
― Ela já está em condições de ir à presença do diretor. 
 
UM PORCO A MAIS 
 
O diretor da prisão é o pior dos animais desta manada. 
Tem a agravante de ser imundo (e os alemães, em geral, são 
limpos). Fala de maneira gutural, come em gestos grotescos, 
sem um mínimo de civilização, e invariavelmente arrota, de 
modo lamentável e nojento. Vi tudo isto hoje, quando me 
levaram, escoltada, à sua presença. Ele pensou que eu não 
entendesse alemão, quando ordenou aos guardas que se 
retirassem e ficassem do outro lado da porta. 
― Meu amor ― foi ele dizendo, numa tentativa de 
tornar macio o seu vozeirão bovino ― Eu quero recebê-la 
aqui como uma grande amiga. Isto não quer dizer que lhe 
possa prometer a liberdade, ou a comutação da sua pena de 
morte, mas... 
Encarei-o, desafiando seu olhar. 
― Mas? 
― Mas há uma ou outra probabilidade... ― fez ele, 
com olhar cínico ― dependendo, é claro, da maneira pela 
qual nos entendermos de agora em diante. 
Levantou um recipiente de metal e de lá tirou uma coxa 
de galinha que passou a devorar como se fosse a última 
porção de alimento da sua vida. Olhava-me 
impiedosamente. Olhava sobretudo os meus joelhos. Eu 
estava sentada, com as mãos sobre as pernas, e vestia um 
capote militar que me emprestaram na enfermaria para 
cobrir minha nudez, 
 10 
― Você, Giselle, precisa deixar de ser a gata brava que 
parece ― disse, procurando outro pedaço de galinha no 
prato. ― Esse ar selvagem, essa indiferença, essa 
agressividade de nada lhe servirão. 
Transformou-se. Brutal, com os olhos injetados, 
levantou-se e sacudiu-me pela gola do capote: 
― Sabe o que você é? Uma rameira à-toa, uma 
autêntica vagabunda de Paris, pretendendo se dar ares de 
grande senhora. Eu lhe ensinarei a tratar bem os oficiais 
alemães. Nós somos os vencedores, entendeu? Nós 
esmagamos a terra decadente de vocês! 
Continuou dizendo barbaridades. Comparou-me às 
messalinas do mundo inteiro. Fez paráfrases à honra e ao 
caráter. Elogiou, em altos brados, a Grande Alemanha de 
que ele, com Himmler, Goering e o "führer", era um 
artífice. De repente, voltou à docilidade, ou ao que lhe 
deveria parecer gentileza. Chamou-me, então, de espiã linda 
e segurou-me suavemente, na gola do capote, para abri-lo. 
Foi então que se deu o inevitável. Cuspi-lhe na cara. 
 * * * 
O coronel ainda me estava batendo, as mãos 
sangrando, um olhar de louco, no instante em que os dois 
guardas entraram ruidosamente. 
― Levem esta mulher! ― gritava. ― Levem esta 
vagabunda antes que eu a mate! 
Um dos soldados levantou-me pelos pés com a ajuda 
de outro, que me levantou pelas mãos. Eu já estava 
insensível à dor e quase não senti quando me atiraram ao 
fundo do cárcere, como um fardo. 
― Ela não passa desta noite ― disse um dos guardas. 
 11 
― Por quê? 
― O coronel vai querer matá-la. 
O outro guarda olhou longamente nos olhos do que 
dava a informação de minha morte possível e disse: 
― Não creio nisso. Chegou uma ordem do quartel-
general de Munique para poupá-la. A Casa Parda acha que 
ela sabe de muitas coisas. 
O primeiro guarda estranhou: 
― Por que, então, não fazem com que ela vomite o que 
sabe? 
A explicação era simples. O coronel tinha ordens de 
esperar um agente especial. 
― O coronel suplicia até matar. E é preciso que o 
torturador faça seu trabalho sem matar. Os mortos não 
falam. Os mortos, como se diz na minha terra, têm boca de 
peixe, E isso não convém, Rudolf. 
Os dois ainda me olharam um pouco. Eu estava com os 
olhos bem abertos para eles, ouvindo tudo que 
conversavam, embora só agora, quando rememoro, posso 
entender o que diziam. Depois, os dois saíram. Fiquei 
pensando. Então, era verdade? Viria um técnico em suplício 
para obrigar-me a denunciar os que estavam comigo, os 
meus companheiros, os meus amigos? Viria de Munique, 
seria altamente treinado e saberia como agir comigo? Até 
onde poderia eu resistir? 
As torturas usadas pelos agentes da GESTAPO eram 
terríveis. Algumas ultrapassavam aquele conhecido ponto 
de resistência humana. Meu Deus, se, num momento de 
inconsciência, eu revelasse os nomes dos dedicados e 
valentes rapazes, das mulheres abnegadas que mantinham 
 12 
acesa a flama da resistência, canalizando para a Inglaterra 
os pilotos britânicos derrubados e os franceses que 
precisavam unir-se ao exército de De Gaulle? Eles saíam 
através da Suíça, pois o Canal da Mancha estava sob uma 
vigilância severa. Eu sabia de tudo isso. Iria dizer o que 
sabia? Nosso grupo estava organizado em células estanques, 
é bem verdade. Uma não sabia da outra. Mas, havia a 
possibilidade de, no momento de desespero ou de 
inconsciência, eu deixar escapar de meus lábios o nome de 
Paulo Zingg. E isso era um caminho. Um caminho para 
muitas outras informações e dores imediatas. 
Conheci Paulo Zingg alguns meses antes da guerra, 
quando estive nos Alpes. Ele devia ter um metro e oitenta e 
cinco, sua família descendia de suíços, seu pai fora um dos 
mais famosos pintores da França, em certa época, e deixara 
a Paulo uma apreciável fortuna. A tia de Zingg possuía em 
São Paulo, no Brasil, terrenos valiosos. Por isso, ele dividia 
a maior parte de seu tempo entre os esportes de inverno e a 
direção de dois cabarés um tanto quantoimportantes de 
Paris. A guerra e a ocupação fizeram com que eu o perdesse 
de vista, até o dia em que recebi um bilhete com as iniciais 
PZ. O bilhete me pedia que o encontrasse em certo 
apartamento da Rua Grouchy. Nunca me esqueci desse 
encontro. Ele estava sentado, com o rosto voltado para a 
janela. Deitado, a três passos, um jovem desconhecido, que 
mal ergueu os olhos para mim. Paulo Zingg, sem se voltar, 
mandou que eu me sentasse. 
― Chamei-a, Giselle, para saber se está disposta a 
trabalhar com nosso grupo. 
Sua voz era serena e quente. 
 13 
― Sabemos que seu pai se encontra na Alemanha e 
que seu noivo foi fuzilado. Você deve ter motivos 
suficientes para odiar os alemães. 
Não respondi. Aquilo parecia tão lógico que nem 
deveria ser comentado. Paulo compreendeu. Houve um 
silêncio e ele tornou a falar: 
― Sua missão, Giselle, será a mais perigosa de todas 
as que nós temos. Você vai ficar com o inimigo. Vai tocá-lo 
com suas unhas. Estará tão perto do fogo que ele pode, a 
qualquer momento, envolvê-la. Que é que você acha? 
Paulo se voltou e, pela primeira vez, me olhou de 
frente, olhos nos olhos. Eu não disse nada. Mas continuei a 
olhá-lo. Se o meu olhar queria dizer sim, até hoje não sei. 
Sei que estava disposta a qualquer coisa que fosse útil ao 
trabalho da Resistência. Sei que desejava vingar-me de tudo 
que me haviam feito os alemães. 
 Paulo deve ter entendido meu olhar como uma 
expressão de tudo que me ia na alma. Por isso, não mais 
tentando ser persuasivo, mas como um sargento que se 
dirige a um soldado, disse, numa voz seca: 
― Tire a roupa, Giselle. Fique inteiramente nua! 
Aturdi-me. Não esperava aquele convite. Que é que ele 
queria? Fiquei fria, atônita, espantada. Que espécie de 
brincadeira era aquela? O olhar de Paulo, entretanto, dizia 
que não era brincadeira. Por isso, fui tirando, uma a uma, as 
peças de meu vestuário. Não eram muitas. Eu estava vestida 
de saia e blusa, uma anágua curta, sutiã e, naturalmente, 
aquela peça mais íntima e mais difícil de tirar em ocasiões 
não adequadas, como a que me tinha posto diante de Paulo 
Zingg. 
 14 
Completamente despida, sem o gesto (clássico) de 
proteção das virgens, mas numa atitude que, depois, Paulo 
Zingg classificou de "ligeiramente desafiante e 
absolutamente cretina, apesar de indiscutivelmente 
adorável", aguardei a explicação. A pergunta estava em 
todo o meu rosto. Talvez estivesse em todo o meu corpo nu, 
se é que a gente pode ter uma expressão de pergunta, por 
exemplo, nos seios trêmulos, no ventre contraído e nas 
pernas que procuram proteger-se. Nenhum dos dois disse 
uma palavra. O que estava deitado, enquanto tirava 
baforadas do cachimbo, punha os olhos em mim como se 
avaliasse alguma boa mercadoria exposta à venda por preço 
altíssimo. Zingg, não. Calmo, sem demonstrar qualquer 
deslumbramento, levantou-se e me olhou com olho técnico, 
enquanto rodeava meu corpo. 
― Vista-se, Giselle. É só! 
Eu não estava contente de ter dado aquele espetáculo 
sem nenhuma explicação. Por que me despira? Para que me 
pusera nua diante daqueles homens? Que tinha a ver a 
minha nudez o meu corpo, com meu pai na Alemanha, meu 
noivo morto, a Resistência, os franceses humilhados? 
Perguntei: 
― Quer explicar o motivo desta cena de "strip-tease"? 
Paulo disse que não se tratava de "strip-tease". 
― A história é bem mais séria ― explicou. ― Sente-
se. 
Sentei-me. Com voz pausada, tranqüilo e senhor de si. 
Paulo Zingg começou a falar. Precisava de uma mulher que 
tivesse um corpo alucinante, capaz de deixar os alemães de 
queixo caído, pelo menos àqueles alemães que interessavam 
 15 
ao trabalho da Resistência. Um corpo impecavelmente belo, 
que modificasse a natural frieza nazista e aturdisse ao mais 
rígido oficial prussiano. 
Era verdade que a prática de Rudolf Hess se alastrara 
rapidamente entre os mais duros homens da Wehrmacht, 
dentro do próprio Estado-Maior. Mas se fosse encontrada 
no meio das jovens parisienses aquela cuja carne e cujas 
formas tivessem o toque excepcional, o traço de Vênus, 
quem sabe, haveria uma possibilidade de êxito. Estranho e 
violentamente real: meu corpo se ajustava com perfeição 
àquelas normas traçadas pelo chefe da espionagem francesa. 
Como se fosse uma simples máquina, uma peça de 
artilharia. Eu não poderia negar que fosse bela. 
Desde muito nova me habituara a ouvir dos homens, na 
rua, o comentário nem sempre decoroso sobre a perfeição 
das minhas ancas, ou a nitidez dos meus seios. Quantas 
manhãs eu mesma não me havia surpreendido, na cama, a 
olhar com meus próprios olhos admirados a maciez das 
minhas próprias pernas indiscutivelmente provocantes. 
Jamais, porém, me passara pela cabeça que meu corpo 
devesse ser usado, algum dia, como arma de conquista, 
numa guerra subterrânea. Zingg continuava explicando: 
― Queremos que alguém se infiltre no meio deles. 
Procuramos dia e noite, em toda Paris sensual e profana, um 
corpo vivo de mulher bonita. Como o seu, Giselle! Eu 
jamais a tinha visto despida, mas adivinhava suas formas 
esculturais através dos vestidos. Além do mais, seus olhos, 
seus cabelos, seu rosto, são maravilhosos. Agora vejo que, 
nua, é irresistível. Seu corpo é impressionante. Você vai 
transformá-lo no símbolo novo do exército clandestino. 
 16 
Você será a Lady Godiva dos franceses, mas de um modo 
bem mais violento. Sua nudez deslumbrante servirá para 
conquistar os líderes nazistas. A guerra tem estranhos 
preceitos que a moral dos tempos de paz não saberia aceitar. 
Mas na guerra, Giselle, a única coisa que não se pode fazer 
é perder a guerra. Deixe que profanem seu corpo, mas salve 
a França. Ofereça sua honra em holocausto à honra de todas 
as mulheres de nossa pátria! 
Zingg nunca fizera um discurso tão longo. Ou assim 
me parecia. Quando terminou, mostrava-se envergonhado 
de haver falado tanto, e com aquelas palavras cínicas, do 
cinismo da guerra. Baixou a cabeça e ficou em silêncio. 
Nada acrescentou, Mas via-se, eu estava disposta a servir a 
ele. Ou à França. Foi assim que me tornei a espiã nua de 
Paris. 
* * * 
Os alemães pediam uma licença que poderiam gozar 
em Hamburgo ou Bremem, com as famílias, mas vinham a 
Paris. Queriam ver-me. Durante meses, desfilaram diante de 
mim aquelas bocas sedentas, aqueles olhos úmidos, 
enquanto eu exibia minha nudez. 
― Cadela! ― disse-me a velha florista parisiense na 
noite da minha estréia no CHEZ EVE para uma grande 
platéia de oficiais nazistas. 
― Você deve ter nascido em bom lugar e sua mãe 
talvez se orgulhe da filha que pariu. Vendida aos boches! 
Ela não sabia de nada. Nem poderia. Ninguém devia 
saber de nada. Por isso não me incomodei quando cuspiu 
para o lado e me disse as coisas que me disse. Fiquei fria, 
embora intimamente constrangida. 
 17 
― Que é que esta velha está dizendo? ― quis saber o 
major que me conduzia pelo braço. 
― Traduza o "argot" dessa velha. Mandarei castigá-la, 
se lhe ofendeu. 
Disse que não. Menti sobre os insultos. Expliquei que 
se tratava de rixa antiga. 
― Devo dinheiro a ela. 
― Quanto? ― quis saber o nazista. Inventei uma 
quantia, e ele pagou. Já no carro o major se dirigiu a mim 
com palavras muito importantes. 
― Quer ir para o meu hotel? ― neste momento nos 
encaminhamos para o quartel da Gestapo. 
― Mas não precisa sobressaltar-se. Nós não a 
mandaremos para um campo de concentração. Você não! 
Uma preciosidade como você não pode ter este destino. 
Giselle, você trabalhará para nós, aqui mesmo em Paris! 
 
2 
 
No pequeno quarto de uma prisão, a memória dos fatos 
cresce espantosamente. Parece-me estar vendo o capitão 
inglês Randolph Bryan, oculto numa pequena casa do 
"Bois". A minha primeira missão foi tirá-lo de Paris e 
entregá-lo nos Alpes ao homem escalado para fazê-lo 
atravessar a fronteira. As coisas principiaram a tornar-se 
difíceis no instanteexato em que pedi a Braun, um dos 
oficiais do serviço de espionagem nazista, que me 
arranjasse um salvo-conduto. 
 18 
Esse Braun sempre me tratara com amabilidade, 
embora deixasse claras as suas intenções: 
― Giselle, gosto da quentura de suas mãos... ― dizia-
me o animal. Parecia um porco doméstico. 
 Encostava-se a mim até que eu o afastasse. Pior do que 
isso: sabia do interesse de seu superior hierárquico por 
mim. E se humilhava. Queria as sobras... 
― Sou da Baviera, Giselle ― dizia-me. 
― Lá os homens são pacientes. Lá os homens sabem 
esperar. No dia em que você for abandonada, lembre-se de 
mim. Estarei esperando por você. 
Ora, dado esse devotamento, que ele próprio fazia 
questão de dizer que não era "apenas" sexual, eu tinha 
razões para acreditar que Braun me atenderia na primeira 
ocasião, ao meu primeiro pedido. Depois do que me tinha 
dito o major que saíra comigo, este era o meu passo inicial 
com a espionagem nazista. Era o passo inicial no sentido, 
vamos dizer assim, profissional, porque o resto tinham sido 
contatos no campo amoroso, se é que houve amor alguma 
vez. Mas, quando fiz o pedido, Braun, macio e primário, 
transformou-se. Olhou-me duramente, com um ar de 
desconfiança que eu nunca lhe vira antes no rosto. 
― Para que você quer o salvo-conduto? 
― Pretendo sair de Paris por uns dias. 
― Aonde vai? Que vai fazer? 
Braun me lançava estas perguntas num tom 
profissional. Tive de procurar toda a malícia feminina que 
havia em mim, essa malícia que leva a gente a dizer a um 
homem que o ama sem o amar. 
― Vou descansar na Província! ― afirmei. 
 19 
― Por quê? 
― Estou cansada, meu amor. Mas se há tanta 
dificuldade, fique com seu salvo-conduto. Vou pedi-lo a 
quem tenha mais autoridade. 
Braun percebeu a alusão. E queimou-se. Senti que não 
admitia a superioridade hierárquica quando se tratava de me 
fazer um favor. Ah... ele era capaz de esperar até que eu 
fosse abandonada por seu superior. Influência não tinha 
para disputar-me o favor do corpo. Mas vi que mantinha sua 
vaidade intacta. E fiz meu jogo. Quando ele disse: 
― Deixe de arrogância. Temos de adotar certas 
precauções! 
Respondi, pondo na voz o maior charme do mundo: 
― Não comigo, chéri... 
Mas o desgraçado continuou durão: 
― Você é uma francesa. Por que não haveríamos de ter 
precauções com você? 
Resolvi aí arrasá-lo de vez. E acrescentei: 
― Porque sou alugada a vocês, dos pés à cabeça. 
Braun então riu. Um riso bobo, mas franco. Certamente 
lembrava-se de coisas. Das suas tentativas de me levar para 
a cama. 
― “Alugada a vocês”, diz você! Mas a verdade é que 
você é alugada ao coronel, não a mim. 
Passou os olhos sobre meu corpo, de alto a baixo. 
Parecia querer fecundar-me com a vista. Pensei fosse ficar 
nisso, nesse olhar concupiscente. Mas Braun me tocou com 
as pontas dos dedos, um ponto do meu ombro esquerdo, 
próximo ao pescoço e experimentou a maciez e o calor da 
minha pele. Fui deixando. Desceu, escorregando a parte 
 20 
externas dos dedos pelo colo, afundando-se pelo decote, 
para dentro da minha blusa, pela maciês da minha pele. 
Quando tentou avançar um pouco mais, quase a tocar o bico 
do seio esquerdo, dei um passo atrás. Ele reagiu: 
― Esquivando-se, heim, Giselle? Você tem esse corpo, 
essa beleza de corpo, essa exuberância de forma. Por que se 
faz tão difícil? 
― Que imagina você, capitão Braun? Que eu vá me 
entregar a todo o Exército Alemão? 
― Não estou dizendo isso. Nem eu desejava que você 
se transformasse numa propriedade da Wehrmacht. 
Francamente, Giselle, detesto as mulheres públicas... Em 
todo caso, acho que você devia ser mais condescendente 
comigo. Principalmente se deseja o salvo-conduto. 
Senti que tinha ganho a parada. 
― Giselle ― disse ele ― levarei o salvo-conduto ao 
seu quarto, esta noite. Depois da meia-noite... 
Um "frisson" me percorreu o corpo. Santo Deus, eu 
teria que suportar aquela figura animalesca, aquele 
brutamontes horrível, aceitar os seus galanteios e os seus 
carinhos, para cumprir a minha missão? Não me faltava 
vontade de lhe dizer tudo que pensava de sua barriga, de seu 
nariz vermelho, de sua cara de bolacha. A voz de Paulo 
Zingg, porém, quente e persuasiva, soava aos meus ouvidos 
como uma advertência vinda de longe: 
"Giselle, o seu corpo já não lhe pertencerá. Você sabe 
que eu o adoro. Que ele, para mim, é um santuário, o lugar 
de minhas orações, o centro de todos os meus desejos. 
Giselle, seu corpo é um hino de beleza, um poema de carne 
e o lugar-comum de todos os poetas. Eu o conservaria 
 21 
para mim o resto da minha vida, adorando-o. Mas, Giselle, 
o seu corpo é a melhor arma, a única arma de que 
dispomos. Ele salvará muitos de nossos companheiros. Sou 
o primeiro a lhe dizer que use o seu corpo. Satisfaça com 
ele os apetites desses brutos. Deixe que eles profanem com 
suas mãos imundas a sua carne. Entregue-se, Giselle, 
durma com os alemães, deixe que eles se fartem." 
Os olhos de Paulo Zingg, lembro-me bem, estavam 
vermelhos quando me disse estas coisas. Mas brilhavam, 
quando acrescentou: 
― Giselle, o seu corpo pertence à França! 
Naquela noite, quando o Capitão Braun deixou o 
serviço, eu estava no meu quarto, à sua espera; à espera do 
salvo-conduto. O amor enxundioso daquele homem pelo 
meu corpo é algo que conservo até hoje na lembrança, como 
qualquer coisa de repugnante e rude. Braun era pegajoso. 
Tinha limo. Betume sobre a pele. Quando, antes, na fúria de 
seus beijos (que eu tinha de suportar de lábios cerrados, 
dura e fria) resvalava sobre ele, sentia algo parecido com 
lama. As frases de amor que soltava vinham misturadas 
com suor e um cheiro acre de axilas. Ele me sussurrava 
promessas, que eu sabia, e ele sabia, nunca seriam 
cumpridas. Isso tinha outro cheiro. Muito pior. 
De repente, a porta se abriu violentamente. Cinco 
oficiais fardados cravaram os olhos em cima de nós. Eu 
estava completamente nua. O capitão Braun puxou o lençol, 
com esse pudor característico dos saxões, e ficou esperando. 
Não disse nada. Mas eu sentia suas pernas tremerem. Estava 
lívido e acovardado. À frente do grupo, o coronel, meu 
 22 
amante oficial, não dizia uma palavra. Um tenentezinho é 
que deu o primeiro passo à frente e falou: 
― Capitão Braun, por ordem do coronel, tenha a 
bondade de nos acompanhar. 
Só então Braun pareceu estar vivo. Respondeu: 
― Não têm o direito de me prender só porque estou 
com uma mulher. 
O coronel, até então calado, tomou a palavra, com os 
lábios quase cerrados, naquela maneira de um alemão dar 
ordens que eu iria conhecer depois através de muitas e 
muitas oportunidades. 
― De acordo. Mas, se você fornece salvo-conduto sem 
autorização do Estado-Maior, torna-se passível de punição. 
Acompanhe o tenente. 
 Tudo isso se passou enquanto eu, sob um lençol que 
puxara também, dominada, como é lógico, por um medo 
terrível, escutava em silêncio. Vi o capitão Braun vestir-se e 
sair. Nesses poucos minutos, as palavras de Paulo Zingg 
voltaram-me a apontar o caminho: 
"Giselle, sempre que você se encontrar numa situação 
difícil, pense. Procure raciocinar e agir com calma. 
Encontrará uma porta. Mesmo quando todas parecerem 
fechadas." 
Dominei-me. 
O coronel avançou em direção à cama. Vinha pálido e 
enfurecido. Seus olhos pareciam do chumbo, duros e 
opacos. Foi nesse instante que me lembrei de minha arma, 
aquela arma secreta e clandestina, arma irresistível para os 
homens, de que me havia falado Paulo Zingg. Puxei o 
lençol e atirei-o para longe. Nua, inteiramente nua, levantei-
 23 
me e fiquei à sua espera. Ele se deteve. A porta se fechara 
sobre o último guarda. No quarto, estávamos nós dois 
apenas. Ele, todo oficial, de quepe, revólver na cintura, e eu, 
toda mulher, com a pele que Deus me deu. Um vento frio 
entrava pela janela. 
* * * 
Escrevo apressadamente porque as lembranças seamontoam em meu cérebro e a morte se aproxima. Será 
hoje? Amanhã? Daqui a uma semana? Quando chegará a 
madrugada em que terei de ser levada ao muro de 
fuzilamento e o coronel Oetting, com aquela barriga de 
chope, adotará a pose de um general, apenas para dar a 
ordem de fuzilamento ao pelotão? Ontem, fui conduzida a 
uma cela da ala esquerda, cujas grades dão para o pátio de 
execuções. Sob o pretexto de que a minha antiga prisão 
fosse lavada, queriam que eu assistisse ao massacre de um 
grupo de franceses. Percebi isso. Os miseráveis acreditavam 
que o medo acabaria por derrubar todas as paredes da minha 
resistência. Mas, se eles soubessem o que me vai por 
dentro! Se soubessem as forças que tenho em minha alma! 
Mesmo assim, permaneci na abertura, olhando, através das 
grades, o espetáculo degradante. 
― Um! 
― Dois! 
― Três! 
O pelotão se deteve. Reconheci o tenente que o 
comandava. Ernst era o seu nome. Uns trinta prisioneiros 
(tentei contar), de punhos atados, aspectos cadavéricos, mal 
se sustinham sobre as pernas. Dez soldados alemães vinham 
depois, numa formação militar rígida. O tenente Ernst se 
 24 
aproximou do coronel Oetting. Pude ouvir perfeitamente o 
diálogo. 
― Meu coronel, aqui existe um problema de ordem 
técnica. 
― Vamos resolvê-lo. 
― Os condenados sobem a trinta. 
Eu não estava errada. 
― Os fuzis não passam de dez. Como vamos matá-lo? 
― O jeito será executá-los em três turmas. 
― Nós podemos também usar a metralhadora. Um 
soldado fará todo o serviço. 
― Não convém esbanjar munição. Divida os soldados. 
Divida também esses porcos franceses. Dê mais balas aos 
soldados e mataremos a todos. 
O tenente ficou pensando um pouco e depois falou: 
― Sei que há problema de levar os cadáveres ao forno 
crematório. A segunda turma levará para o forno os 
cadáveres da primeira. A terceira levará os cadáveres da 
segunda. Mas quem levará os cadáveres da terceira? 
E riu com sua piada imbecil. O tenente não riu. O 
tenente tomou seu posto e, em tom seco, sem levantar a voz, 
deu a ordem. Fez aquilo com absoluta naturalidade. Dez 
prisioneiros foram separados do grupo e levados ao muro. O 
coronel Oetting se sentou na cadeira que a ordenança lhe 
trouxera ― porque ele gostava de dar ordem de fogo e 
assistir aos tiros de misericórdia confortavelmente. Mandou 
que certo prisioneiro fosse trazido à sua presença. Tratava-
se de um rebelde que não consentira em ser fuzilado pelas 
costas nem de olhos vendados. Os soldados não tinham 
conseguido dobrar a sua coragem. O coronel ofereceu-lhe 
 25 
um cigarro. O "maquis" (era um "maquis") não se mexeu. 
Apenas seus lábios formaram a palavra que eu pude ler e 
não posso reproduzir. Digo, entretanto, que era aquela 
mesma palavra que Cambronne disse aos ingleses. 
― Ele fica para depois. Terei uma sessão especial com 
ele. 
Esforcei-me do fundo de meu peito para assistir a todo 
o espetáculo. Vi os fuzilamentos das três séries. Queria 
mirar-me naquele exemplo. Nem um dos condenados se 
acovardou. Os vinte e nove homens e mulheres gritaram, 
"Viva a França!", logo após a ordem de fogo, e caíram 
secos, na laje do pátio. 
O coronel aproximou-se da fileira de corpos e, aqui e 
ali, como quem se desobriga de um serviço de rotina, 
distribuiu tiros de pistola nos crânios dos agonizantes. Por 
fim, quando todos estavam mortos, os dez soldados com o 
oficial à frente deixaram o pátio, enquanto os guardas 
conduziam o único sobrevivente. Isso foi tudo. Certo dia, 
um bando de mulheres alemãs, todas jovens e rosadas, 
entrou no pátio da prisão. Vinha à frente, com um sorriso de 
inefável felicidade nos lábios, o mesmo tenente Ernst que 
chefiara o pelotão da morte. As moças se aproximaram da 
grande cela, onde uns duzentos homens se amontoavam 
como sacos, pois não havia espaço para sentar ou deitar. O 
jeito era ficar de pé, dia e noite, encostados uns aos outros. 
Alguns morriam de pé. 
― Espia aquele moço! ― apontou uma das prostitutas 
ambulantes do Grande Reich. 
Todas elas eram isso. Acompanhavam as tropas, como 
se fizessem parte dos mantimentos. Havia necessidade de 
 26 
sua presença para que os soldados alemães tivessem 
convívio de mulheres. (E nem todas as mulheres do país 
ocupado se recusavam aos seus pedidos!) Eu não sabia 
disso então. Soube depois. Soube que aquelas pertenciam à 
equipe ambulante, vamos chamar assim, das meretrizes a 
soldo da Wehrmacht. Sua missão era acompanhar a tropa e 
satisfazer as necessidades dos soldados. 
Na França, eram absolutamente necessárias, pois 
muitas mulheres francesas preferiam contaminar-se com 
enfermidades humilhantes a se deitarem com os soldados e 
oficiais alemães. Só umas poucas consentiam nisso, e os 
soldados, esses, não tinham nenhuma possibilidade de 
possuí-las. Essas vivandeiras amorosas do nazismo não se 
compunham apenas de alemãs. Muitas eram austríacas, 
outras polonesas, outras tchecas. Todas incorporadas a esse 
exército não regular. Não se fazia questão absoluta de raça. 
Os médicos especializados em "dèlivrances" se 
encarregavam das complicações que, por acaso, viessem a 
correr. Pois bem. Chegaram. Estavam a dois metros das 
grades da cela. Apesar dos guardas armados de 
metralhadoras, que as protegiam, elas tinham medo dos 
rostos contraídos, do ódio concentrado nos olhos daqueles 
prisioneiros. O coronel Oetting fez seu aparecimento no 
pátio, acompanhado por seus cães de fila. 
― Bertha, não fique aí. Esses homens há meses não 
vêem mulher. 
Bertha era bonita. Uma espécie de "vamp"' nazista, de 
acordo com os padrões eugênicos do alto Reno. 
― Você deixa esses homens loucos, Bertha ― 
continuou Oetting, com um estranho sorriso nos lábios. ― 
 27 
Não acha que seria um espetáculo monumental se pudesse-
se fazê-la entrar na cela, nua, e obrigar esses homens a 
ficarem parados sob metralhadoras? 
Bertha notou a mudança no olhar do coronel Oetting 
entre a recomendação de ela sair de perto daqueles homens 
e, quase sem interrupção, a sugestão para o que chamou de 
"espetáculo monumental". 
― Quer experimentar hoje à noite? 
Ela quis. 
 
A MENSAGEM 
 
Esse coronel Oetting é um tipo estranho. Esta noite, 
voltou à minha cela. Não o tinha visto mais, desde o nosso 
ruidoso encontro. Embora fosse de esperar que tornasse à 
carga, a verdade é que não houve nada disso. Parecia ter 
desistido de tudo. Sem que a princípio eu compreendesse 
por que tinha dado aquela ordem, o certo é que me 
deixaram nua na cela. Ordem do coronel. Não me 
forneceram um vestido, um cobertor, um pedaço de pano, 
qualquer trapo com que me cobrisse. 
― Ficará nua enquanto estiver na cela e morrerá nua 
― disse-me um oficial, reproduzindo suas palavras. 
Hoje, Oetting fez o seu reaparecimento. 
― Giselle ― disse-me ele ― esta é a sua última 
oportunidade. Quer deitar-se comigo esta noite e contar o 
que sabe? 
― Coronel, o senhor está perdendo o seu tempo ― 
respondi-lhe. 
― Não quer revelar os nomes? 
 28 
 ― Vocês todos estão enganados a meu respeito. 
Era incrível: o coronel Oetting não tinha ainda 
percebido que minha boca permaneceria fechada, bem 
fechada, pela minha vontade e pelo compromisso que me 
ligava aos meus companheiros. 
― Esta é a sua última palavra? 
 ― É a verdade. 
O coronel ensaiou sair de minha cela, parou quase à 
porta, voltou-se e disse, com voz dura: 
― Você será fuzilada amanhã, ao alvorecer. 
Depois da meia-noite, o carcereiro me trouxe o que 
seria a minha última refeição: um prato de sopa e metade de 
um pão. Olhou-me bem no fundo dos olhos com um jeito 
que eu, a princípio, julguei fosse de piedade. Mas, depois, vi 
que não era. Queria dizer-me alguma coisa. Vi que ele era 
um dos nossos. Não podia falar, porque o guarda nos 
observava. Mas quando abri o pão achei um bilhete de 
Paulo Zingg: 
"Denuncie o Espanhol, o Charles e a Marie. Já estão a 
salvo, Procure poupara sua vida, que nos é indispensável, 
ceda até o limite do possível." 
Engoli o papel e fiquei imaginando o que fazer, durante 
algum tempo. Depois, chamei o guarda e lhe disse: ― 
Quero falar com o coronel Oetting. 
 
 29 
3 
 
Paris. A velha. A querida. A minha Montmartre. Meus 
amigos que jamais tomarei a ver: Jacques, Pierre Dalloz, 
Christine... As lembranças iam desfilando no meu cérebro, 
enquanto o coronel Oetting não chegava. Viria, afinal? Ou 
toda promessa de liberdade não passava de uma farsa? Seria 
mais uma farsa? Os nazistas são assim. Desconcertantes. 
Imaginosos na arte de amedrontar. Gostam de ver os 
prisioneiros com o medo estampado no rosto. Fiquei 
pensando de que maneira esses vermelhões da Wehrmacht 
se portariam na presença da morte. Várias vezes eles 
simularam um fuzilamento apenas para gozar a expressão 
de pavor dos homens no momento do disparo. 
― Veja o velho! Vai precisar de outras calças! 
Os miseráveis achavam graça nessas coisas horríveis. 
No meu devaneio, eu os punha na situação de vencidos. 
Imaginava a cara do tenente Ernst, geralmente tão 
orgulhoso, no instante em que fosse levado para a forca. 
Via, em pensamentos, a expressão de terror que teria o 
coronel Oetting, um gozador vulgar, na hora de morrer. Ele 
adulava os jovens da guarda, acariciando-os mansamente, e, 
ao mesmo tempo, não podia ver mulher. Tinha um profundo 
e incomparável amor pela vida. 
― As três coisas que mais amo no mundo ― 
costumava dizer, quando estava bêbado ― são Hitler, a vida 
e eu. 
No íntimo, eu me comprazia em imaginar como ele se 
comportaria no instante de perder essas três coisas de uma 
 30 
só vez. De repente, porém, meus pensamentos foram 
cortados. Guardas se aproximaram da porta da cela. A 
fechadura rangeu e um deles atirou um capote militar aos 
meus pés. 
― Vista-se. 
Vesti-me e deixei-me levar. Dois minutos depois, 
entramos na sala de Oetting. O coronel lia uns documentos 
e, sem levantar a cabeça, mandou que os guardas se 
retirassem. Só quando a porta se fechou é que ele ergueu os 
olhos e murmurou com voz engasgada: 
― Giselle! 
Não baixei o olhar. Fixei-o. O coronel Oetting saiu de 
onde estava, rodeou a cadeira que um dos guardas 
empurrara para mim e pôs a mão dentro do casaco que me 
cobria, acariciando-me. O seu rosto no meu pescoço era 
áspero e eu sentia a respiração quente passeando pelo meu 
colo. Os lábios pareciam ventosas. A impressão que eu 
tinha era de que ele babava, como certos epilépticos. 
― Giselle! 
Fria, hirta, como a própria estátua do sacrifício, eu o 
deixava fazer o que bem entendesse. Já não me importava o 
capote que, a princípio, tentara segurar, num movimento de 
defesa. Via o ar de louco, a expressão alucinada daquele 
homem vencido pela carne e dominado pelo sexo. O 
coronel Oetting era um lúbrico, um tarado, um anormal, que 
me agarrava e me amassava com seus beijos e seus abraços. 
Minha vontade era a de cuspir-lhe outra vez na cara, 
empurrá-lo para longe; mas as palavras de Paulo Zingg me 
impediam: "Sua vida, Giselle, nos é indispensável." 
 31 
Acima de todos os meus escrúpulos, de minha vida e 
de meus amores, acima de meu asco e de minha revolta, 
acima de tudo estava a França que eu precisava ajudar. E 
por isso, apenas por isso, suportava as carícias desordenadas 
daquele porco nazista. Foi assim que passei a ser a 
companheira das noites de insônia e de insânia do coronel 
Oetting. A princípio, obtive uma liberdade relativa. Saia 
com ele, de automóvel, pelos arredores. Nunca mais voltei à 
cela, desde aquele momento chamado assim, ironicamente, 
de "a rendição de Giselle". Deixei que me supusesse 
rendida. Mas como é difícil agüentar as carícias de alguém 
que nos inspira repugnância! 
O amor, pelo que pude perceber, fazia o coronel suar. 
Não o esforço com que, por acaso, ele tivesse de enfrentar 
uma ou outra resistência minha. Mas a simples excitação 
sexual. E isso deixava a sua pele oleosa e o seu contato mais 
nojento ainda. Era um suor frio que contrastava com sua 
respiração ofegante e quente. As suas mãos, nessas horas, se 
punham nervosas e, embora macias algumas vezes, 
freqüentemente estavam crispadas e duras. Tudo isso 
contribuía para que eu inconscientemente assumisse uma 
atitude de retração. O coronel Oetting percebia esse 
movimento e, daí, alegrar-se quando lhe parecia que eu 
vibrava sob suas carícias. 
Paulo Zingg recomendava que houvesse de qualquer 
maneira retribuição ao amor que o coronel nazista 
despendia em mim. Todas as minhas forças, toda a minha 
vontade consciente só punham a serviço dessa 
recomendação. O coronel Oetting se entusiasmava: 
― Consegui, Giselle! Consegui tocar em você! 
 32 
A sua teoria, para quem, como eu, conhecia claramente 
toda a mentira atrás do motivo que o punha satisfeito, tinha 
um pouco de ridícula. 
― Giselle ― dizia ele ― eu sou o bruto, a fera, o 
selvagem que você odeia. Mas ninguém pode controlar a 
força do sexo. E você se deixa arrastar, Giselle! 
Aos poucos, fui aceitando a minha missão. Procurava 
palestrar amigavelmente com ele. Buscava tirar partido, sem 
deixar perceber a minha verdadeira intenção. O coronel 
Oetting, até certo ponto, colaborava. Mas o fato de eu ter 
pertencido a um movimento clandestino francês e ajudado 
muitos oficiais ingleses a deixar a França aparecia como um 
obstáculo quase intransponível. Na verdade eu desconfiava: 
o coronel não me libertara apenas porque me queria junto 
dele, para satisfação de seus apetites sexuais. Devia haver, 
acima disso, algum plano da Gestapo. 
Dias seguidos fiquei pensando que plano poderia ser 
esse. Que queriam eles de mim? Como iriam utilizar-me 
para obter os segredos que considerassem importantes? A 
resposta veio na noite seguinte, quando estávamos, eu e o 
coronel Oetting, sozinhos, frente a uma lareira. Ele me 
ofereceu uma camisola de dormir, dizendo que "era herança 
de uma condessa pouco amável". 
― Essa condessa não nos queria em sua residência, 
veja você... Quando chegamos à sua casa, nos gritou: 
"Vocês são o que há de mais vil sobre a Terra!" e bateu com 
a porta em nossa cara. Fomos obrigados a forçar a entrada. 
Dei carta branca aos meus soldados. 
O coronel ria, enquanto contava a história. Claro, eu 
não sabia. Minha imaginação, apesar de acostumada a supor 
 33 
tudo desses monstros, não chegava a me indicar nada. O 
coronel, sempre com um meio sorriso nos lábios, se 
levantou, pôs a mão sobre a mesa e contou: 
― A mesa era parecida com esta. Estenderam sobre ela 
a mulher, depois de tirarem toda a sua roupa. Ela quis 
bancar a forte, cometer seu heroísmo e deixou-se trabalhar 
sem dizer palavra, apenas com os olhos postos no soldado 
mais próximo. Sentei-me numa cadeira e fiquei olhando o 
espetáculo. Um a um, os meus homens a possuíram. Os 
mais apressados não chegavam nem mesmo a tirar a farda. 
Era um espetáculo estupendo! Aos poucos, a condessa foi 
deixando pender a cabeça, os seus olhos perderam o brilho 
duro do começo e ela desmaiou. Aquela vaca aprendeu a 
receber alemães em sua casa! 
De pé, estendeu-me a camisola. 
― Esta é uma lembrança da condessa. Você é digna de 
usá-la. 
O coronel Oetting me olhava. Eu sabia que ele estava 
fazendo mais uma de suas experiências comigo. Queria 
observar minhas reações ante o fato monstruoso. Mas, 
preparada para isso, fingi não ligar e aceitei o presente, 
― Quero que a vista. Agora mesmo. 
Tirei minha roupa, usando cada gesto como uma 
provocação. Só depois de nua e de ter-me espreguiçado 
como Vênus se espreguiçaria para conquistar os favores do 
Olimpo, é que vesti a camisola. O coronel abraçou-me pela 
cintura. E apagou a luz. Nessa noite, senti que ele se estava 
lembrando da condessa e de todos os seus soldados. Tinha a 
fúria de um exército. 
* * * 
 34 
― Você hoje vai para a Capital ― disse-me ele, na 
manhã seguintea essa noite desvairada. ― Aguarde-me no 
endereço que lhe vou dar. Ficarei em Paris algumas 
semanas. 
Suas últimas instruções foram pronunciadas em tom 
frio e categórico: 
― Lá, você deve entrar em contato com seus antigos 
camaradas. Isso nos facilitará a tarefa, Giselle. Mostre que, 
de fato, é uma das nossas, ou já sabe o fim que a aguarda. 
Mostre que é inteligente. 
Embarquei para Paris. Nessa cidade que eu amo, fiquei 
instalada na Rua de Bac, à espera do coronel. Não podia 
fazer muita coisa. Sabia que meus passos, todos os meus 
passos, eram vigiados dia e noite, pela Gestapo. Mas Paulo 
Zingg, que tomou conhecimento de minha chegada, 
conseguiu furar o bloqueio da vigilância e mandou um 
bilhete em que dizia: "A Gestapo ronda sua casa. Veja se 
nos informa." 
Utilizei a mesma mensageira que entrara em contato 
comigo, disfarçada em moça procurando trabalho, e contei 
o que se passava comigo e quais os planos do coronel 
Oetting. Aconselhei a todos do grupo que não se 
aproximassem de mim, pois corriam perigo. Achei que essa 
era a melhor solução, o caminho verdadeiramente indicado 
pelo bom-senso. Por isso, fiquei surpresa com a resposta de 
Paulo Zingg: 
"Três elementos suicidas do grupo clandestino vão 
procurá-la" ― escreveu ele. ― "Você deve acolhê-los e, 
sem demora, denunciá-los ao coronel. Será essa a única 
maneira de ganhar rapidamente a confiança da Gestapo." 
 35 
As palavras de Paulo Zingg me deixaram chocada. Na 
verdade, a guerra me estava ensinando muitas coisas a 
respeito dos homens. Então, era assim que se dispunha da 
vida de três pessoas? Na situação em que me encontrava, 
qualquer suspeito entrando em contato comigo tinha 
declarada sua sentença de morte. Eu estava em Paris para 
atrair o grupo clandestino a que pertenci e o simples fato de 
um "maquis" me ter procurado iria catalisar todas as 
suspeitas da Gestapo. Seria um homem morto. Paulo Zingg, 
entretanto, falava de "elementos suicidas" como se falasse 
de tanques, fuzis ou qualquer outra coisa sem alma. Não 
eram homens. Eram pré-fantasmas. E eu devia utilizá-los, 
utilizar as suas vidas, para que o coronel Oetting e a 
Gestapo abrissem um crédito mais largo de confiança nessa 
sua "agente". Isso me aturdia. E me deixava indecisa quanto 
à importância de viver. 
 
 36 
A MANIA DO CORONEL 
 
O coronel Oetting, por sua vez, era uma surpresa diária 
para mim. Ontem mesmo, me contaram mais uma de suas 
estranhas manias. Registro aqui. Ele servia numa missão 
militar nas Antilhas. Seu hábito semanal era o de ocultar-se 
num pavilhão com seis mulatas novas, todas em legítima 
"première" sexual. Naturalmente, esse prazer custava caro 
ao então capitão Oetting. Punha as mulatas dentro do 
pavilhão, trancava-as e surrava uma a uma. Depois, 
mandava que elas o amarrassem e o surrassem também. 
Somente dessa maneira atingia o grau necessário de 
excitação. 
Ao voltar para a Alemanha, depois de um caso nas 
Antilhas que deu muito que falar, foi internado num 
sanatório militar onde passou largo período de readaptação. 
Foi esse o nome que deram ao tratamento a que ele foi 
submetido. Precisava readaptar-se. E, passados os meses, os 
médicos lhe deram alta. Estava readaptado. 
Eu, porém, que tenho convivido com ele, noto que já 
estão despertando as suas velhas anomalias. Por exemplo: 
ele me pede para passear à sua frente nua, com turbante 
vermelho, e de sapatos de salto alto. Outro exemplo: manda 
que eu fique de pé, imóvel, enquanto ele, sentado numa 
poltrona, passa meia hora de olhos postos em mim, aqueles 
olhos amarelos de tigre na véspera do salto, sem dizer uma 
palavra, sem esboçar um gesto, apenas olhando. Não faz 
nada. Depois diz, cansado, que eu me vista e eu me visto. 
Ele deita a cabeça para trás e fecha os olhos. Fica pensando. 
* * * 
 37 
Era meia-noite. (Lembro-me bem da hora porque as 
batidas na porta soaram quase ao mesmo tempo que o 
carrilhão da sala, grave e sinistro carrilhão roubado a um 
castelo normando pelo coronel Oetting). Pois à meia-noite, 
Max Jacob apareceu. O poeta surgiu com aquela expressão 
suave que eu adorava, nas noites do tempo de paz nas 
"Follies Bergères". 
“Meu Deus! ― pensei comigo mesma. ― O pobre 
Max se ofereceu como suicida e vem entregar-se à 
Gestapo!” 
Eu sabia que todo o quarteirão estava sendo vigiado e 
que a entrada de Max no meu apartamento não poderia ter 
passado despercebido. No próprio apartamento, disfarçado 
em mordomo, dormia um agente do Serviço Secreto 
Alemão. 
― Ma petite, Giselle! ― disse Max Jacob abraçando-
me enternecido. 
Fiz-lhe um sinal com o dedo nos lábios para que ele 
ficasse calado. Max fingiu não perceber nada. -Giselle 
adorada! ― tornou ele. 
― Você está sempre divina, sempre maravilhosa! Que 
perfume de mulher bonita, Giselle! A vida lhe tem sido boa, 
não? 
Seu lápis deslizava sobre um jornal aberto, enquanto 
falava. O que escrevia era isso: 
"Giselle, sei que nos estão ouvindo. Quando sair daqui 
vão seguir-me, certos de que descobrirão nosso quartel-
general. Isso faz parte do nosso plano." 
 38 
O contraponto entre o que escrevia no jornal nas partes 
brancas das margens das folhas, e o que dizia em voz alta 
revelava um clandestino altamente treinado. 
― Minha querida, vou dormir esta noite em sua casa 
― falou. 
"Responda-me que é impossível" ― escreveu. 
Obedeci. 
― Ora, vá dormir onde quiser, Max. Não tenho lugar 
no meu apartamento. 
O tom de voz com que Max me falava mudou de 
repente. Tornou-se irônico: 
― Por que, Giselle? Você alugou os quartos de seu 
apartamento aos alemães? Oh, minha querida, você se 
vendeu depressa, heim? 
O lápis desmentia a voz: "Perdoe, minha querida. 
Insulte-me." 
Insultei-o. 
― Escute aqui, Max. Por que você não vai para sua 
casa? Essa história de que me vendi aos alemães é conversa 
fiada. Continuo francesa, amiga de meus amigos e leal ao 
meu grupo. 
― Quem mantém esse luxo todo, então? 
― Eu trabalho, ora essa! 
― Posso saber em quê? 
― Estou no câmbio-negro. 
― De quê, Giselle? 
― De cigarros. 
Max fez uma pausa. Sorriu, um pouco alto para um 
sorriso, e comentou: 
 39 
― Cigarros, minha linda? Cigarros que caem do céu, 
provavelmente... Os ingleses lhe atiram cigarros de pára-
quedas, não é? Ou você os recebe pela fronteira? 
― Max ― respondi ― deixe de fazer ironia. Você 
sabe muito bem que meu tio Etiene tinha uma charutaria. Eu 
guardei o estoque. 
― Aqui? ― Sob uma laje da adega. 
Max Jacob pareceu mudar de atitude. Sua voz (que 
grande artista ele era!) revelava confiança na farsa que 
representava. 
― Giselle, posso acreditar na sua sinceridade? 
― Eu sou francesa, Max... 
― Laval é francês também. 
― Mas Laval é um francês degenerado. 
― Max ― interrompi ― qual o motivo de sua 
desconfiança? 
― A sua libertação inesperada. 
― Max, minha libertação não foi tão inesperada assim. 
Depois, foi feita porque os nazistas não tinham nada contra 
mim. Nenhuma prova. 
― Ah, foi? Os nazistas já estão exigindo provas? Eles 
sempre condenaram sem julgamento. 
― Bom, mas houve outra ajuda. 
― Posso saber qual? 
― Isto ― respondi e, com um gesto que mostrava meu 
corpo de alto a baixo, pus-me de pé. 
Nessa noite, eu vestia um "deshabillé" extremamente 
simples, que primava pela sua quase transparência. O 
coronel Oetting adorava o tom azul do tecido. E o tom de 
pele que ele percebia sob o tecido. Pensei, enquanto olhava 
 40 
Max Jacob. Nossa vida corria perigo. Nossos planos 
estavam ameaçados, a cada instante, de ruir de maneira 
inexorável. Vinha agora Max Jacob, poeta e esforçado 
lutador da Resistência, meter-se na boca do lobo. Qual seria 
a intenção de Paulo Zingg? 
― Giselle, vou embora. Tenho um encontro com 
nossos companheiros. Voltarei dentro de uma semana para 
acertarmos um plano de ação. 
― Está bem, Max. 
Ele se aproximou de mim, seguroumeu queixo com 
sua mão firme e grande. Não tremia um pouco sequer. 
― Giselle, se você nos trair... 
Bateu-me suavemente no pescoço, como quem acaricia 
sinistramente uma vítima, e falou duro: 
― Eu a enforcarei com o meu próprio cinto, Giselle. 
Palavra de honra! 
Tal era o brilho de seus olhos nesse instante que eu 
fiquei sem saber se a advertência era séria ou se destinava-
se apenas ao ouvido da Gestapo. 
Uma hora depois que Max Jacob saiu, o coronel 
Oetting chegou. Eu estava deitada e lia um livro sobre 
Wagner. Oetting bisbilhotou as primeiras páginas. 
― Onde você aprendeu alemão, Giselle? 
― Estudei na Baviera. Cinco anos. 
― Na Baviera? 
― Sim. Meu pai foi embaixador em Berlim. 
Matriculou-me num colégio de freiras na Baviera. (Tudo 
isso era mentira. Meu pai não passava de um escultor sem 
renome). 
 41 
Com os olhos pregados nos meus, Oetting fez a 
pergunta que desejava fazer desde o primeiro momento. 
― Você gosta da Alemanha, Giselle? 
Sem esperar um segundo, respondi: 
― Não, coronel. Detesto a Alemanha. Detesto os 
alemães, inclusive o senhor. 
Ele se abriu num sorriso completo e absolutamente 
idiota: 
― Se você dissesse o contrário, Giselle, eu saberia que 
estava mentindo. Leio em seus olhos, nas suas atitudes, nas 
suas palavras mais simples, que você detesta os alemães e a 
mim. 
Subitamente, irritou-se. Sua voz adquiriu o tom rouco 
que anunciava tempestade. 
― Sua cadela ordinária! Quem é você, uma meretriz 
desclassificada, para falar dessa maneira dos alemães? 
Deitada na cama, eu descansava as costas num 
travesseiro. O coronel Oetting puxou-me pelo "deshabillé" e 
deu-me uma bofetada. Sua boca espumava insultos. Sem 
uma palavra, desci do leito. Ele me acompanhava com os 
olhos. Fui até o guarda-roupa, apanhei um quimono pesado 
e ia vesti-lo, quando o coronel se atirou como uma fera 
sobre mim. 
― Que vai fazer? 
― Vou vestir-me, ora essa! 
― Por quê? É uma represália, não é? Pois vou ensiná-
la a receber castigos sem pensar em represálias. 
Encarei-o duramente, os olhos nos olhos. Havia aço na 
minha voz quando lhe disse: 
 42 
― Coronel, se me trata como um animal, eu o 
receberei como um cadáver. Não imagine que eu retribua 
mais as suas carícias. Não existirá força no mundo que me 
obrigue a acariciá-lo. Já lhe disse que não o suporto. Tudo 
que tenho feito é procurar me acostumar a satisfazer os seus 
caprichos. Por que não me trata de outra maneira? Se quer 
meu corpo frio, inerte, hei-lo. 
Despi-me. 
― Exijo boas maneiras. Não gosto de ser chamada de 
cadela nem de ordinária. Se quiser, pode me mandar de 
volta para a prisão. 
Desafiava-o com o olhar. 
― Tem coragem? 
Meu corpo estava inteiramente nu. E trepidava! O 
coronel Oetting parecia não suportar por mais tempo. 
Olhava-o de alto a baixo e o suor, aquele suor que eu 
conhecia de tantas noites, caía em bagas pelo seu rosto. Pus 
a mão instintivamente sobre um dos meus seios e verifiquei 
que estava duro e trêmulo. Corri até a cama e caí de bruços, 
como se fosse chorar. Todo o meu dorso, que tantos 
garantiam ser perfeito, estava à disposição do olhar daquele 
nazista louco. Fiz um ligeiro movimento com as ancas, 
deixei que a fêmea dentro de mim se revelasse. O coronel 
não tinha caráter para resistir a tanto. Aliás, segundo o 
próprio Zingg, nenhum homem teria. 
 
 43 
4 
 
À hora marcada, Max Jacob se ajoelhou perto de mim, 
na Igreja de Notre Dame. As palavras foram sussurradas 
mansamente. Eu deveria procurar obter um carro oficial dos 
alemães sob qualquer pretexto. Alegasse, por exemplo, a 
necessidade de sair de Paris. Alegasse qualquer coisa. Mas 
não deixasse de aparecer com o carro ao meio-dia de 
segunda-feira. Era um domingo. Isso fazia parte de um 
plano do grupo de "maquis" a que ele, Max, pertencia. 
― Esta é a última vez que falo com você, Giselle. 
― Você será preso? 
― Ainda hoje, minha querida. Você não deve esperar 
um minuto. Denuncie-me logo que chegar ao apartamento. 
― Isso é inevitável, Max? 
Foi a primeira vez que vi o rosto de Max ficar triste. 
― Giselle ― disse-me ele ― estou marcado há muitas 
semanas. Eles me seguem dias a fio, noites seguidas, e estão 
a par de minhas atividades. Não posso fugir. Quando Zingg 
falou da necessidade de três ou quatro voluntários suicidas, 
para que a "missão Giselle" pudesse ir adiante, apresentei-
me. Quiseram recusar, dizendo que eu era demasiado 
importante para ser sacrificado. Tudo bobagem. De 
qualquer maneira, eu já estava condenado. Philippe e 
Jacques também. 
― Quer dizer que isto é um adeus, Max? 
― Sim. Um adeus definitivo. 
Max ficou em silêncio por algum tempo e, com a 
mesma voz sussurrada, traçou o plano: ― Quando você 
 44 
estiver com o coronel Oetting, dê-lhe nosso endereço. Eu, 
Jacques e Philippe os esperaremos. Você então terá dado 
uma prova fulgurante de honestidade na defesa dos 
interesses alemães. 
Parou novamente, voltou o rosto para mim e estendeu a 
mão. Era a mesma mão firme de sempre. 
― Adeus, Giselle. Honre o nosso sacrifício. Cumpra 
sua missão. Lembro-me bem de seus passos dentro da 
igreja. 
E me lembro também de cada minuto daquele 24 de 
fevereiro em que denunciei Max Jacob, esse grande poeta 
de França, aos alemães. Uma denúncia que não era tão 
criminosa assim, de vez que o próprio Max e seus 
companheiros sabiam das condições em que o velho e 
sentimental amigo se encontrava, Estava sendo vigiado e, 
de uma hora para outra, seria preso. Considerou-se de maior 
utilidade a sua inclusão dentro do que tomara o nome de 
"missão Giselle". 
― A confiança dos alemães é o que você precisa obter, 
Giselle ― mandou-me dizer Paulo Zingg, em repetidas 
mensagens. 
Pois bem, apesar de saber que Max Jacob estava 
perdido, sem qualquer possibilidade de salvação, doeu-me a 
consciência. Quando, numa das farras loucas que o coronel 
Oetfing organizava em meu apartamento para os seus 
colegas de armas, entreguei a ele um papel com o endereço 
de Max Jacob, em Saint Benoit. 
― Quer assistir à prisão, Giselle? Eu não achava 
conveniente. Ponderei que, assim, logo todos saberiam que 
eu estava trabalhando para os alemães. 
 45 
― Ora, nós faremos crer que você nos está traindo. 
Segurou-me pela cintura, na sua atitude favorita, e 
cravou-me os olhos, acrescentando: ― E não será isso 
verdade? 
Sustentei o olhar. Convinha desconcertá-lo. 
― Coronel, é preciso não esquecer que sou francesa. 
Se houver uma oportunidade, saberei aproveitá-la. 
Na manhã seguinte, cerca das 11 horas, fomos até Saint 
Benoit. A Gestapo já invadira a casa de Max Jacob. Mas 
nos informaram que somente à noite o levariam para 
Orleans. O coronel sorriu e disse: 
― Entremos. Vejamos o que diz o trovador de França. 
Max Jacob estava sentado e tranqüilo, enquanto um oficial 
nazista examinava gavetas. Revistaram tudo. O coronel 
Oetting cumprimentou-o delicadamente. Max não 
respondeu. 
Foi então que o nazista, irônico, me apresentou: 
― Senhorita Giselle Montfort. 
Max Jacob mal pousou os olhos sobre meu rosto. Sua 
atitude era de desprezo, nojo e, ao mesmo tempo, piedade. 
Senti que minha face ficava vermelha, apesar de 
compreender que ele representava seu papel. Por fim, Max 
falou. Em tom baixo, sem erguer a voz durante todo o 
tempo: 
― Giselle, você é uma infeliz. Causa-me pena. É uma 
boa mulher para os alemães. Uma companheira de cama, 
uma fêmea sem pudor, que perdeu os últimos vestígios de 
dignidade. Você venderia sua própria mãe. Você se vende 
todas as noites. Então, é verdade que foi você quem me 
denunciou? Acha que isso tem alguma importância para 
 46 
mim? Mais cedo ou mais tarde eles me pegariam. Mas 
porque veio assistir ao resultado do seu trabalho? 
Parou um pouco e balançou a cabeça. 
― Não, Você está certa, Você é uma profissional. 
Trabalha até o fim. Mas quero contar-lhe uma história.Um 
dia destes, eu estava num café e um cidadão francês 
elogiava os nazistas. Fui ao seu encontro, apertei a mão do 
homenzinho e disse-lhe: "Permita-me cumprimentá-lo, 
amigo". Todos me olharam revoltados. Acrescentei: "E que 
Deus o perdoe!" 
Max se levantou, parou à minha frente, pôs as mãos 
nos meus ombros e repetiu: 
― Que Deus a perdoe, Giselle. 
Estava na minha frente um dos maiores poetas de 
França. Eu iria saber depois que ele, de Orleans, tinha sido 
removido para a prisão de Muetta, em Draney, perto de 
Paris. Uma prisão úmida e miserável. Uma escuridão total 
marcou, desde então, os seus dias. 
Depois que deixamos Max Jacob, voltamos para nosso 
apartamento. Haveria uma das festas de oficiais nazistas que 
o coronel Oetting promovia de quando em quando. Essas 
festas eram verdadeiras bacanais. Um espetáculo de doidos. 
E note-se que nelas não eram admitidos senão de capitães 
para cima. Nem aos tenentes era possibilitada a freqüência 
ao meu apartamento. O que havia de menos desagradável 
nelas é que todos os convivas chegavam banhados e de 
roupa limpa. Aquele cheiro de trincheira tinha de ser 
arrancado da pele à custa de muito sabão e de muita escova. 
Eles chegavam, eram polidos, vinham sóbrios. 
 47 
Tudo começava como se fosse uma distinta reunião 
social de tempo de paz. Os primeiros drinques rodavam e os 
pequenos grupos que se formavam entretinham palestras 
agradáveis sobre os mais diversos assuntos. Por vezes, 
amigos de outros tempos se encontravam. E 
confraternizavam. Tinham suas recordações. Conversavam 
sobre colegas de colégio que nunca mais haviam visto. 
Posso dizer mesmo que, nesses poucos instantes de começo 
de farra, os alemães eram simpáticos, como, fora os nazistas 
e fora a guerra, os alemães de um modo geral o são. 
De repente, um grupo começava a cantar. Copo na 
mão, velhas canções alemãs estimulavam toda a sala. E 
vinha a farra propriamente dita. Várias moças colaboravam 
nessas festas. Não muitas, por que os grupos formados pelo 
coronel Oetting geralmente eram de dez ou doze oficiais 
nazistas apenas. Elas se espalhavam pela sala, conversavam, 
bebiam com os homens e riam. Algumas tentavam, na hora 
das canções, cantar também. Atrapalhavam-se com as 
palavras (eram francesas) e gargalhavam para desculpar-se. 
Vi muitas dessas moças. Olhei muito os seus rostos. 
Inutilmente procurei descobrir, sem dizer nada, se alguma 
delas estava na minha situação. Se tinha uma missão 
também junto aos alemães. Mas nunca pude perceber nada. 
Ao contrário disso, quando estive com elas no banheiro, 
ouvi expressões de satisfação e felicidade: 
― Aquele com quem estou é formidável, não é? 
― Você viu o meu? É o tipo do homem macho. Um 
lourão impossível! 
Na verdade, sempre me pareceu que eu estava sozinha 
em minha missão. Todas as outras queriam divertir-se, 
 48 
conseguir os favores dos que dominavam nossa cidade, 
obter alimentos, dinheiro, vestidos e prestígio como se o 
destino da França não fosse o seu destino. 
Certo dia, alguém, que eu nunca soube quem foi, 
descobriu uma francesinha quase criança e levou-a para 
uma dessas festas. Em tempo de paz aquela garota deveria 
estar cursando os primeiros anos escolares. No máximo, 
teria doze ou treze anos. Por mais incrível que pareça, 
aqueles homens, vindos da guerra, a cercaram com um 
interesse jamais demonstrado pelas mulheres mais velhas e 
mais experientes. Despiram-na e eu pude ver que os 
primeiros pêlos da puberdade ainda começavam a sombrear 
seu sexo e suas axilas. Os seus seios eram apenas flores. E 
seu corpo um pouco anguloso como os das crianças. Os 
homens a disputaram. 
O coronel Oetting, com a sua autoridade de anfitrião, 
gritou uma ordem, quando começou a balbúrdia: 
― Parem com isso. Vamos disputá-la nos dados. 
Eu fui ao quarto, trouxe dados e os oficiais jogaram a 
meninota, que sorria nua a um canto, sem nenhuma 
expressão. Para ela, tanto fazia um como outro dos nazistas 
o vencedor. Na verdade, seus olhos se fixavam nos dados, 
ela própria toda entregue à sorte dos números. Não via 
quem jogava os dados. Finalmente, um major magro e alto 
conseguiu onze pontos. Ganhou. O coronel Oetting segurou 
o braço da garota e entregou-a ao major, à semelhança de 
um troféu. 
― Pronto, major. Ela é sua. 
E sorrindo com o canto da boca: 
― Agora queremos assistir esse espetáculo. 
 49 
Todos se sentaram e o major, olhando em volta com o 
ar superior de um verdadeiro "conoisseur", despiu-se 
lentamente. Deitou a francesinha no tapete da sala e, quando 
ia possuí-la, gritou: 
― Mas ela é virgem! 
A gargalhada foi geral. A cara do major era de espanto 
e queria dizer que aquela criança, sendo virgem, não podia 
ser possuída. Um capitãozinho de cabelo aparado e sorriso 
cínico deitou-se sobre a jovem, vestido como estava, 
levantou-se daí a pouco e disse, sempre sorrindo: 
― Pronto, major, agora ela não é mais virgem! 
Lá para o meio da festa, os oficiais bêbados se despiam 
e dançavam uns com os outros. Chamavam a isso o baile 
dos "sans culottes". Eu era respeitada. Minha atuação vinha 
sempre quando a festa estava no fim. 
Dançava o "Pecado Original", tema que o coronel 
Oetting, possuído de imaginação coreográfica, criara para 
mim. Eu aparecia toda nua, apenas tentando proteger-me 
com as mãos. Em gestos rápidos, elevava os braços e 
voltava a cobrir-me. Os nazistas gritavam de entusiasmo. 
Os meneios de meu corpo eletrizavam a sala. Os olhos de 
todos os homens se cravavam em mim. Pareciam de fogo. 
― Que mulher! ― dizia um. 
― Que corpo! ― dizia outro. 
Os que estavam mais sóbrios elogiavam o bom-gosto 
do coronel Oetting. De repente, a coreografia do "grande 
artista" me obrigava a deitar-me de ventre para cima, com 
as pernas dobradas e os joelhos ligeiramente afastados. Eu 
acompanhava o ritmo sensual da música com movimentos 
 50 
de ventre que se aproximavam dos gestos de uma mulher 
em pleno êxtase sexual. 
Nessa hora, um capitão, certa vez, se atirou sobre mim, 
agarrando-me e beijando-me escabrosamente. O coronel 
Oetting, refeito da surpresa, puxou-o pela gola, enquanto o 
capitão baixava a cabeça e pedia desculpas. 
― Meu coronel, eu venho da Normandia. Lá as 
mulheres fogem de nós ou se contaminam para que não as 
queiramos possuir. Estive muitas semanas na Polônia e, 
depois, vim direto para a Franca. Não tive sequer um 
pequeno período de licença. Minha tropa é tropa de elite. 
Há meses que não sei o que é mulher, meu coronel. E esta 
me deixou louco. 
― Qual é a sua divisão? 
― Divisão Hitler, meu coronel. 
Eu estava parada, na mesma posição em que a dança se 
interrompera, quando ouvi, inesperadamente, a resposta do 
coronel Oetting. 
― Tome-a. Ela é sua por esta noite, capitão. 
* * * 
Livrei-me do irrequieto capitão ― um fauno sem 
grandeza ou flauta ― que tentava arrastar-me em direção 
ao quarto. Fui colocar-me face a face com o coronel 
Oetting. Os outros oficiais, deitados sobre o tapete ou 
sentados nos divãs e nas poltronas, com suas ninfetas ou 
com seus companheiros de farda, tinham silenciado. 
Queriam prestar maior atenção à cena, esperando, quem 
sabe, uma tirada wagneriana. 
 51 
― Coronel ― fui dizendo ― se imagina que me vou 
transformar em depósito de imundície do exército alemão, 
está muito enganado. 
Ele escutava calado. Prossegui: 
― Se esse aflito capitão, cujo nome ignoro, veio 
mesmo do front, onde esteve tantos meses invicto de 
mulheres, se ele necessita de emoções revitalizantes, se é 
um herói nazista, se pertence à Divisão Hitler, isso não me 
diz respeito. Por que não lhe oferece as cortesãs da casa? Há 
muitas aqui, para sua escolha. 
Com a mão apontei as doidivanas, inteiramente 
embriagadas, que divertiam ― ou tentavam divertir ― os 
oficiais. Chamei uma delas. 
― Seu nome? 
― Heléne. 
― Quer ficar com este capitão indócil? 
― E o outro?― ela quis saber. 
― Quer este? 
― Tanto faz. 
Chamei outra: 
― Você aí. Seu nome? 
― Delly. 
― Está muito magra, mas tem um belo corpo e um 
sorriso bonito. Agrada-lhe, capitão? 
O huno não abria a boca. Só me espiava, com um jeito 
de cão faminto e despeitado. 
― Delly, prefere o capitão? 
― Não faço questão de posto. 
― Faz questão de quê? 
 52 
A cínica fez com os dedos um sinal muito antigo. 
Dinheiro era a solução. 
― O capitão paga mais. Fique com ele. 
Chamei outras três. Era impressionante vê-las assim, 
tão disponíveis na sua honra. Heloise, Marly e Dora, esta 
uma espanhola morena, conversadora. Quando o quadro 
ficou completo, ofereci-o ao capitão, como uma feitora de 
bacantes: 
― Estão às suas ordens para fazê-lo esquecer da 
guerra, capitão. Eu prefiro me abster da honra. 
Cheguei mais perto do coronel. Senti que ele estava 
feliz com a minha atitude. Tratava-se de outra experiência 
sua. 
― Muito bem, Giselle. Sou forçado a admitir que você 
está magnífica. Tem a facilidade de expressão de um 
Goebbels. 
Pousei minha mão sobre seu braço. 
― Estou quase me acostumando com sua 
personalidade, coronel. 
Voltei os olhos para o capitão ávido. Ele estava no 
meio das cinco fêmeas, já sem dólmen, em manga de 
camisa, contando a passagem do Reno por sua Divisão 
Blindada. O coronel se divertia, talvez sem saber bem por 
quê. 
 
O GOLPE TRAIÇOEIRO 
 
Amanheceu, e, como sempre, Oetting roncava. Seria o 
ronco noturno uma reminiscência da bestialidade dos 
homens? Não pensei muito sobre isto, porque o telefone 
 53 
soou, estupidamente, e o brutamontes saltou da cama, 
assustado. Depois de atender ao chamado deixou que sua 
face granítica assumisse uma expressão de alegria. 
― Giselle, descobrimos um dos quartéis dos "maquis". 
Vou assistir ao cerco. 
Meu coração estremeceu, mas não me deixei perturbar. 
Perguntei, à queima-roupa: 
― Posso ir com você? 
Ele mostrou-se receoso: 
― Não acho conveniente para uma mulher. Voltarei 
ainda hoje, com certeza. 
Saiu sem dar qualquer indicação sobre o reduto que a 
Gestapo descobrira. E eu fiquei apavorada. Era preciso 
avisar Zingg, mas como? Se a vigilância ainda era severa? 
De qualquer maneira, vesti-me e saí às pressas. Fui parar no 
Quartier Latin. Entrei no restaurante "Capoulade". Percebi 
que um carro me estava acompanhando e que dele saltara 
um homem de preto. Ficara defronte.à casa de refeições, na 
esquina da rua Soufflot com o Boulevard Saint Michel. 
Através do vidro do restaurante eu podia observá-lo. 
Procurei uma das mesas no canto e o garçom se aproximou. 
Fingindo que estudava o cardápio disse-lhe que mandasse 
Bebert Vogel falar comigo. 
― Ele foi deportado, senhora. 
― E Jean Labrit? 
― Não está. Se quiser algum recado... 
― Diga-lhe apenas que Giselle está aqui para avisar 
que a Gestapo descobriu um dos nossos redutos. Não sei 
qual. Pode ser este ou qualquer outro. 
 54 
O garçom se afastou. Minutos após veio com pratos 
que eu não escolhera. Falou mansamente: 
― Labrit já sabe. Foi o grupo do padre Corentin. 
Acabaram com ele. 
E em tom alto: 
― Mais alguma coisa, senhora? 
Enquanto comia, observava o homem de preto. Ele 
disfarçou durante alguns minutos mas por fim entrou no 
"Capoulade" e sentou-se numa das mesas próximas à 
minha. Terminei a refeição e saí. Ele veio atrás. Seguiu-me 
até a porta do edifício. À noite, Oetting entrou. Vinha 
eufórico. Da nossa desgraça se compunha a alegria dos 
nazistas. Agora tudo era motivo para um sorriso seu, ou um 
gracejo. 
― Pobrezinha da Giselle. Ficou o dia inteiro em casa? 
― Não. Saí. Almocei fora. 
― Onde? 
― No "Capoulade". Com este racionamento é onde se 
pode comer alguma coisa. 
O coronel se despiu rapidamente, vestiu o pijama e 
deitou-se. 
― Quer saber o que aconteceu hoje, Giselle? 
― Se quiser me contar. 
― Quero contar, sim. embora saiba que você detesta 
essas nossas caçadas humanas. Há de convir que é a luta 
pela sobrevivência. Não foi um general francês que disse: 
― "Na guerra, como na guerra"? 
― Prossiga! 
― Calma! Você chegou a conhecer, em seu tempo 
perdido de "maquis", o tal padre Corentin Cloarec? 
 55 
― Não. 
― Aquele do convento que fica ali no 14.° distrito, à 
rua Rose? 
― Não conheço. 
― Ele recebia os "maquis" feridos e transformava o 
convento em hospital. Preparava-os para voltarem à luta. 
Tinha sabotadores, terroristas, assassinos sob custódia. Sabe 
o que fizemos? 
Seu sorriso era revoltante, mas sincero: 
― Um de nós, que fala o francês, sem sotaque, bateu à 
porta. O grupo conduzia um homem ferido. ― Oetting 
imitou a voz do comandante: ― "Trata-se de um maquis 
que está morrendo, padre Corentin!" ― esclareceu o que 
dominava o idioma, acrescentando detalhes sobre a 
perseguição nazista a fim de remover do espírito do 
sacerdote qualquer suspeita. ― Sem demora ele abriu a 
porta. Você vê... os franceses não são tão maliciosos quanto 
se imaginam. Nossos homens caíram de punhais sobre ele. 
Barbaridade? Talvez. Mas dentro da semântica de guerra eu 
chamaria a isto de simples punição. O padre cozinheiro veio 
aos gritos saber do que se tratava. Queriam matá-lo 
também, mas não deixei. 
Fiz uma sinal de indiferença com os ombros. 
― Está triste, Giselle? ― concluiu Oetting. 
Ele mudou de assunto: 
― Antes de você, vinha aqui uma artista de cinema, 
Corine Luchaire. 
E fez uma revelação que me deixou fria: 
― Tenho um filho com ela. 
 
 56 
 
5 
 
Como não podia deixar de ser, a minha casa se tornou, 
em pouco tempo, o ponto preferido de reuniões profanas 
dos oficiais graduados da Wehrmacht. O fato de que eu 
servira no movimento clandestino francês passava agora 
quase despercebido, ante a circunstância valiosa da 
denúncia que fizera, enviando Max Jacob ao muro de 
fuzilamento. Tornei-me, para todos os efeitos, uma deles. 
O sigilo natural dos membros do Estado-Maior alemão 
que me freqüentavam foi pouco a pouco sendo 
negligenciado. Discretamente eu me ia insinuando na sua 
intimidade. Falava em estratégia. Procurava interessar-me 
no seu "heroísmo". Um dia, já depois da segunda garrafa de 
champanha, o major Grung, responsável pelo suprimento de 
munições aos aquartelamentos de Léon, deixou escapar esta 
frase: 
― Os Aliados são uns bobocas, Respeitam a velha 
igreja de Santo Agostinho ao sul de Lyon. Nem uma bomba 
cai sobre ela. Mas lá guardamos coisa muito boa. 
Uma semana depois este local foi pesadamente 
bombardeado pela RAF. Era com efeito um imenso 
depósito de munições. A mensagem aos ingleses, apontando 
o objetivo, transmiti-a eu, através dos amigos do 
"Capoulade". É bem verdade que eu temia ser descoberta, 
mais tarde ou mais cedo. A qualquer momento um passo em 
falso poderia denunciar-me. Mas os oficiais que iam à 
minha casa estavam de tal maneira embrutecidos pela carne 
 57 
que não sabiam desconfiar. Só lhes interessava o sexo, o 
prazer, a loucura fácil do vinho. Na minha presença 
esqueciam completamente as regras prussianas pelas que se 
deveriam pautar se quisessem vencer a guerra. Mandavam a 
disciplina às favas. 
― Isto até parece a casa de Funk! ― disse-me, certa 
noite, um oficial prussiano, alto, magro, cara-de-pau. 
― Casa de Funk? ― perguntei, intrigada. 
― Sim. Vou explicar. Em Hamburgo vivia um 
camarada de nome Hans Funk. Toda a sua família se dava, 
sem reservas, ao culto do amor profano. A esposa, as duas 
filhas. Funk também. 
― E daí? 
― Um dia, na praça que fica bem na extremidade de 
Ripperbank, dois namorados se amavam, descaradamente, 
ao pé da estátua de Bismarck. O Chanceler de Ferro, lá do 
topo do seu monumento, abaixou a espada, saiu da sua 
incômoda posição e perguntou: "Vocês estão pensando que 
isto aqui é a casa do Funk?" 
 
 58 
A DANÇA E AS VIOLETAS 
 
Pela madrugada apareciam no meu apartamento os 
tipos mais exóticos do oficialatoalemão. O grupo da 
Resistência, que Zingg chefiava, vivia a relembrar-me ― 
através de mensagens ― sobre a necessidade de eu procurar 
atrair sempre, e cada vez mais, os nazistas ligados ao 
comandante germânico de Paris, o general Stupnaggel. 
Certa vez, o coronel Oetting chegou acompanhado de 
cinco oficiais. Enquanto se refestelava ele numa poltrona da 
sala, com aquele ar de dono do mundo que fazia questão de 
manter, seus companheiros varejavam a casa, de ponta a 
ponta. Oetting procurava escutar a rádio de Berlim. 
― Que estão procurando? ― indaguei. 
― Examinem os cômodos! ― foi a resposta. 
― Para quê? 
― Logo saberá. 
Observei depois que várias patrulhas alemãs 
percorriam o bairro. Ainda desta vez o coronel não quis 
revelar-me o segredo. Sua resposta era sempre a mesma: 
― Logo saberá. 
Soube de tudo, muito depois, e não através da palavra 
de Oetting. Ele não gostava de contar seus fracassos. Os 
nazistas procuravam Jean Tuby, um dos nossos 
telegrafistas, aquele que era capaz de montar e desmontar 
um transmissor com a rapidez de um malabarista. Uma 
informação cifrada estivera sendo irradiada de um edifício 
não muito longe do meu. Os técnicos da Gestapo 
localizaram o ponto onde se achava o transmissor e 
 59 
esquadrinharam todo o quarteirão. Mas Jean escapara, 
disfarçado em mulher, vendedora de violetas. 
Ah! O poder das violetas. 
Depois de fugir ao cerco o pobre Jean ainda fora 
censurado por Zingg. Não deveria fazer transmissões das 
proximidades da minha residência. Nada deveria 
comprometer-me. O risco fora muito grande. Eu, apesar de 
tudo, ainda estava sob suspeita. Era uma deles, como dizia 
Oetting, orgulhoso de ter-me convertido. Mas confiavam, 
desconfiando. Os cinco oficiais, depois de vasculharem 
minha casa inutilmente, voltaram à sala onde me encontrava 
com "meu" coronel. Um deles, mais ousado, comentou: 
― Bonita! Porém muito vestida. 
Oetting explicou, sádico: 
― Por enquanto. Logo se despe. As francesas gostam 
de tirar a roupa. 
 ― Quando assistiremos a isso? ― perguntou um 
outro, de olho lúbrico. 
Oetting, dono do mundo, explicou, com voz macia: 
― Na hora da minha dança, Giselle se despe. Mas não 
é um "strip-tease" comum. Ela interpreta alguns motivos da 
minha autoria. Vocês sabiam que eu sou também 
coreógrafo? O grande militar alemão, o estrategista das 
batalhas vitoriosas, tem de ter alma de coreógrafo. Não é a 
guerra, por acaso, a dança das horas? Das horas que mais 
contam na história do mundo? 
Oetting falava inflamado, apaixonado por si mesmo, 
como todo bom nazista. Eu fui, aos poucos, me preparando 
para aquela dança terrível. O coronel foi até o piano e 
 60 
atacou os primeiros acordes da sua composição medíocre: 
"A Abelha e o Zangão". 
Fiz o melhor que pude para entretê-los. Embora não 
soubesse ainda naquele momento o que os nazistas 
procuravam no quarteirão, pressentia alguma perseguição 
aos meus companheiros. Assim, tratei de mantê-los 
fechados no meu apartamento, olhando-me o corpo nu. 
Dancei a dança das horas. Das horas perdidas. O telegrafista 
Jean Tuby talvez devesse sua liberdade à minha nudez, mais 
do que às violetas. Afinal, as violetas... 
 
O GENERAL E EU 
 
Afinal, o famoso comandante das forças de ocupação 
de Paris, general Stupnaggel, caiu nas minhas malhas. 
Vinha com freqüência à minha casa, trazido por Oetting. A 
princípio mostrava-se apenas interessado nas outras 
pequenas, nas ninfetas irresistíveis. Depois resolveu cuidar 
de mim, com alguma ênfase. Trazia inúmeros oficiais na 
sua companhia. Eu a todos preparava bom repasto. Não era 
esta minha missão? Tinha meu pequeno exército de garotas 
livres, umas poucas fiéis à nossa causa, outras apenas 
interessadas em dinheiro (que significava comida, naqueles 
dias amargos). O objetivo era distraí-los, embebedá-los, 
roubar-lhes informações. 
A princípio os oficiais se comportavam. Afinal, 
estavam na frente do comandante. Mas depois, aquela 
intimidade que o convívio entre mulheres fáceis estabelece, 
abrandava os rigores da disciplina e apagava os traços mais 
nítidos da hierarquia militar. Stupnaggel já permitia quase 
 61 
tudo aos seus comandados. Procurava mesmo estabelecer 
certa bagunça a fim de desviar os olhares de Oetting de 
sobre mim. E iniciava suas investidas. Meu amante oficial 
― "meu" coronel Oetting, como o chamara, num duplo 
sentido ― estava já demonstrando o ciúme. 
Quando eu ficava na sala com Stupnaggel, ele trazia à 
nossa presença garotas mais ousadas, procurando fazer o 
general-comandante interessar-se por alguma delas. Inútil. 
Stupnaggel dava visíveis mostras de pretender "requisitar-
me" para seus serviços exclusivos. De repente, aconteceu! 
O general, na frente do próprio Oetting, pôs a mão no meu 
decote. "Meu" coronel, numa última tentativa, foi buscar 
Molu, uma japonesinha adorável, famosa por sua habilidade 
em tornar os homens velhos mais jovens. Uma criatura 
absolutamente fêmea de carne dourada e intensa. 
― Veja, general, que belo espécime! 
O general limitou-se a olhá-la friamente. Depois voltou 
a bolinar-me, com aquela autoridade que seu posto lhe dava, 
mas com aquela falta de jeito que sua condição de nazista 
imbecil lhe emprestava. Oetting permanecia lívido. Por fim, 
Stupnaggel levantou-se e chamou o coronel a um canto. Eu 
calculava o assunto dessa conversa pela cara de Oetting. Por 
mais subserviente e viciado que se revelasse ― faço justiça 
em reconhecer ― o coronel não gostava que eu fosse 
dormir com seus chefes militares. 
"Uma mulher, quando pertence a um homem, deve-lhe 
fidelidade. Uma mulher não é uma árvore que dá sombra ao 
primeiro viajante, ao segundo e ao terceiro, 
indiferentemente. Não me incomodo que outros tenham 
 62 
marchado antes por este caminho. Mas quando o percorro, 
gosto de fazê-lo sozinho". 
A conversa foi rápida. Voltaram os dois, em passo 
marcial. Oetting sentou-se a meu lado, limpando as bagas 
de suor que lhe desciam agora pela testa. Situação difícil. 
Stupnaggel se afastara em direção ao corredor que dava 
para os quartos. 
― Giselle... ― principiou Oetting. 
― Já sei: o general quer ficar comigo. 
― Que posso fazer? Ele impôs. Falou categoricamente. 
Olhei com desprezo aquela imundície de gente. 
Perguntei: 
― Ele sabe que lhe pertenço? 
 ― Que você é minha companheira? Sabe. 
― Por que, então?... 
― A hierarquia militar. Desde que você é francesa, e 
não é minha esposa, sou obrigado a concordar. 
Eu estava intimamente satisfeita com a oportunidade de 
travar relações com o general-comandante de Paris, mas 
queria mortificar Oetting e não perdê-lo também. 
― Neste caso ― falei ― sou obrigada a concordar. 
Oetting engoliu uma praga quando notou que 
Stupnaggel se aproximava. Ergueu sua taça de Sautémes e 
disse: 
― À vossa felicidade, meu general. E à plena 
satisfação dos vossos desejos. 
Apontou-me. Sorria um sorriso cadavérico. Disse, em 
péssimo francês: 
― La femme est à vous! 
 63 
Para maior infelicidade de Oetting o general não ficou 
nesta primeira "entrevista". A partir desse dia passou a 
freqüentar-me toda semana. Aparecia sem aviso, e quando 
surgia, "meu corond Oetting", com o rabo entre as pernas, 
era obrigado a dar uma voltinha pelo quarteirão, deixando o 
campo livre. Seu papel era tão ridículo que passou a ser 
comentado pelos próprios oficiais de sua roda. Davam-lhe 
apelidos tão deprimentes que não vale a pena repetir. Zingg, 
o chefe do grupo dos "maquis", entretanto, mostrava-se 
satisfeito com a marcha dos acontecimentos. 
Era estranho pensar que aquele valoroso revolucionário 
punha seu idealismo acima de qualquer sentimento de 
ternura por mim. Primeiro, a causa da libertação da França. 
Depois, o meu amor, a minha honra, o meu caráter. Teriam 
que ser os idealistas homens assim tão frios? Ah! 
Estávamos em guerra! E na guerra... Zingg enviou-meum 
pedido. Eu deveria saber o programa do general Stupnaggel 
para a próxima terça-feira. Como o nazista não tinha dia 
marcado para vir, resolvi aparecer em seu gabinete, no 
Ministério da Marinha. Quando o auto parou à frente do 
edifício, na Place de la Concorde, não tive maiores 
dificuldades em chegar à portaria, graças a um salvo-
conduto que Oetting me deu para ter livre-trânsito em 
lugares considerados perigosos de Paris. 
― Desejo falar ao general Stupnaggel! ― disse ao 
sentinela. Se eu tivesse mostrado intenções de dirigir-me 
pessoalmente a Hitler não teria causado maior espanto ao 
soldado alemão que me atendeu. 
― É impossível! ― respondeu, metalicamente. 
― Faça chegar até ele meu cartão. 
 64 
― Não tenho ordens ― foi ele dizendo, enquanto lia 
no cartão: GISELLE MONTFORT. 
― Leve-o então ao capitão Kuntz. 
― Vou ver se posso. 
Meia hora depois eu entrava no gabinete do capitão. 
Era um dos meus comensais. Não foi difícil convencê-lo a 
falar com o general Stupnaggel sobre minha visita. Apenas 
o comandante de Paris se encontrava em conferência e não 
me podia atender. 
― Escreverei algumas palavras ― falei ― e o senhor 
fará com que cheguem ao general. 
― Com prazer, mademoiselle Giselle ― (e o capitão 
Kuntz sorria com todos os dentes, de canto a canto. Ele 
sabia que eu era a nova prenda do general. Seu melhor 
conforto). 
O bilhete era simples. Uma bela mulher não tem que 
escrever muito para atingir seus objetivos. Dizia: 
”Espero-o à noite. Giselle.” 
* * * 
Quando eu descia as escadas do edifício da Place da La 
Concorde, um gendarme francês, auxiliar do policiamento, 
sussurrou-me com ódio: 
― Vaca nazista! 
* * * 
Fui acostumando-me. A princípio era difícil suportar os 
olhares de ódio, a expressão de desprezo, de intenso 
desprezo, que eu lia nos rostos dos meus compatriotas, na 
rua. Depressa os franceses passaram a me considerar o 
símbolo da corrupção e da desonra, a máxima expressão do 
que os alemães chamavam "a decadência da França". Se a 
 65 
maioria silenciava à minha passagem, algumas mulheres do 
povo tinham, no entanto, aquela bela coragem de me 
enfrentar com palavras. Eu representava a traição. 
Tinha de agüentar os insultos da minha gente, que 
desconhecia, totalmente, o sacrifício do meu posto de espiã. 
Mas aos poucos, observando que nenhuma das que me 
xingavam pelas ruas fora denunciada por mim, as vizinhas 
se aquietaram. E eu comecei a me preocupar; era preciso 
que os nazistas não desconfiassem de nada, e jamais me 
sentissem simpatizada pelos meus concidadãos. 
Passei, então, friamente, a conduzir-me com arrogância 
no meio do povo. Como se eu também fosse uma 
conquistadora. Os insultos voltaram a me cobrir de 
opróbrio. E as pequenas que vinham à minha residência 
encontrar, diariamente, a chusma de oficiais alemães ávidos 
de prazer, eram muitas vezes até agredidas na rua por 
populares mais corajosos. Duas protestaram, mas fiz-lhes 
ver que deveriam calar-se, porque, do contrário, as pessoas 
autoras dos insultos seriam presas, iriam para os campos de 
trabalho forçado na Alemanha, as mulheres para o campo 
de morte lenta, em Compiègne. As moças preferiram, desde 
então, como eu, ouvir em silêncio as ofensas. Era o lado 
mais difícil da nossa missão! 
 
 66 
AS "MENINAS" 
 
Quero deixar bem claro, nestas minhas memórias, para 
a hipótese de que algum dia venham a tomar-se conhecidas, 
o papel desempenhado por estas moças que freqüentavam 
meu apartamento. Não eram todas heroínas como qualquer 
falso literário tentaria fazer crer. Algumas se ofereciam aos 
alemães em troca de alimentos. Outras obedeciam às ordens 
do Movimento Clandestino, mas é forçoso admitir que, 
enquanto trabalhavam, comiam do bom e do melhor, num 
contraste flagrante com o resto da população que se 
comprimia em racionamentos cruéis. 
Uma ou outra procurava os nazistas por motivos 
particulares. Lembro-me ― porque me causou profunda 
impressão ― do caso de Delly, a esbelta marselhesa que 
melhor sabia fingir camaradagem com os nazistas, 
aparentando exagerado amor ao dinheiro e aos "tickets" de 
racionamento. Ela se tornou minha amiga especial. 
Pequenos favores, no meio da confusão. Uma ou outra 
palavra de ternura, em ocasiões em que todos eram tão 
amargos, nos aproximaram espiritualmente. 
Certa madrugada, quando os alemães haviam saído, e 
apenas Oetting dormia no quarto dos fundos, roncando 
como sempre, eu e Delly ficamos aconchegadas no salão 
principal, frente à lareira. O inverno era rigoroso e o coronel 
obtivera uma quota especial de carvão, alegando o fato de 
que passava suas noites de folga em minha casa. Abrigadas 
do frio, olhávamos os carvões em brasa e pensávamos em 
nossas vidas antes da maldita guerra. Foi então que Delly 
contou-me sua história tão simples, tão igual às outras, tão 
 67 
profundamente triste. Reproduzo-a, agora, em minhas 
próprias palavras: 
 
A HISTÓRIA DE DELLY 
 
“Eu completara 17 anos e todos diziam que eu me 
casaria depressa por ser muito bonita. Meu pai, o professor 
Bonnard, abanava a cabeça e falava: “ Mania de casar! 
Todo mundo com essa mania de casar! Pra que tanta 
pressa? Um mundo está aí, novinho, para ser vivido pelos 
solteiros, desembaraçados, prontos para qualquer 
aventura...” Mas a verdade é que eu já tinha um namorado, 
Flavien, aluno de pintura em Paris, membro de uma família 
razoavelmente rica da cidade, e bonito como ele só. 
Morávamos na Rua da Gare, em Reims, e o pessoal de 
Flavien vivia num palacete defronte. Havia rosas, e 
juramento, e estas doidas bobagens do amor bom, sem 
preocupações. Veio a guerra. Flavien foi mobilizado e não 
voltou mais. 
A mãe dele, com o choque, nunca mais se levantou. Só 
então meu pai soube que eu já amava alguém. Minha 
tristeza, pela ausência de Flavien, era muito maior do que a 
simples tristeza de amiga. Era grande e permanente. A 
outra, bem pior, sucedeu quando a empregada veio subindo 
as escadas, toda nervosa, e nos disse, à mesa do jantar, que 
os alemães estavam lá embaixo. Vi que meu pai 
empalidecia. Admirada, minha mãe quis saber a razão 
dessa visita que lhe parecia estranha. Seus olhos buscavam 
a resposta nos olhos do meu pai, que desviava o rosto, 
constrangedoramente. Por fim, deu uma desculpa qualquer, 
 68 
sugeriu que talvez não passasse tudo de simples visita de 
rotina, e desceu as escadas. Ficamos lá no alto, ouvindo o 
diálogo. 
O alemão fez a pergunta: 
― O senhor é Bonnard? 
― Sim. Alguma coisa? 
― Dez minutos para arrumar-se. 
O oficial voltou-se para o soldado nazista e disse que 
acompanhasse meu pai até o andar superior. Insistiu na 
ordem de não abandoná-lo nem que fosse ao banheiro. Meu 
pai subiu, arrumou uma pequena mala, vestiu o casaco e se 
deteve um minuto para olhar minha mãe. Acariciou-me os 
cabelos e finalmente desceu, sem uma palavra. As lágrimas 
só nos vieram aos olhos alguns minutos depois, tão rude e 
inesperado fora o golpe. 
Meia hora antes jantávamos, tranqüilos, numa reunião 
de família que há tantos anos eu me acostumara a ver 
inalterável. Agora, o meu pai saía para o desconhecido. 
Durante noventa dias não tivemos uma só notícia dele. Se 
estava vivo, se fora torturado, se pudera manter sua já 
precária saúde de velho.Certa noite a criada nos alarmou, 
outra vez, com os gritos de "alemão lá embaixo! alemão lá 
embaixo!”. 
Eu mesma fui abrir a porta. Um sargento nazista 
perguntou, em tom seco, se a casa era da família Bonnard. 
No mesmo tom respondi que sim. Ele tirou do bolso uma 
carta e depois de colocá-la em minhas mãos ― pois eu 
estava tão espantada que nem esboçara um movimento ― 
partiu. A carta, rabiscada a lápis, do próprio punho do meu 
 69 
velho, dizia que estava bom, mas precisava de roupas de 
inverno e certos alimentos. 
Durante meses enviamos o que era possível obter. 
Dormíamos noites de invernorigoroso quase sem 
cobertores para que nada faltasse ao velho. Por uma 
segunda carta, com muita habilidade na escrita, ele nos fez 
ver que muito pouca coisa lhe chegava às mãos. O resto 
deveria estar sendo desviado para os soldados de Hitler, no 
'front' russo. 
Minha mãe caminhava quilômetros a pé, em 
Compiègne, para entregar um embrulho de comida e roupa 
que quase sempre meu pai não recebia. Para ficar mais 
perto dele tínhamos mudado nossa residência para 
Compiégne, onde cinco esposas de presos organizaram 
uma espécie de república, alugando uma casa. Um dia, 
quando eu voltava das imediações da prisão, um carro 
oficial alemão se deteve perto de mim. O graduado nazista 
viajava no assento traseiro e me chamou: 
― Fraulein! ― Imobilizei-me. 
Os alemães nunca nos chamavam para boas coisas. 
Preparei-me para uma desgraça. Ele me convidou a fazer o 
resto do percurso no seu automóvel. Agradeci com a 
cabeça e pus-me a andar. Ele deu ordem ao chofer para 
acompanhar-me vagarosamente, e, num francês ruim, quis 
saber se eu tinha alguém preso em Compiégne. 
― Tenho meu pai! ― expliquei-lhe, num ímpeto. 
― É assim que a senhorita se interessa pela sorte 
dele? ― falou o nazista, com voz suave. 
― O bem-estar de seu pai não significa alguma coisa 
para a família? 
 70 
― É evidente que sim! ― disse eu, com uma esperança 
na alma. 
Fez um ar irônico que me deixou ainda mais 
intranqüila. 
E insistiu: ― Pois viaje comigo.” 
 
O PREÇO 
 
“Foi assim que travei conhecimento com Hans Gluck, 
o oficial alemão responsável pela guarda do campo de 
prisioneiros de Compiègne. É claro que ele me falou da 
possibilidade de melhorar as condições de meu pai, 
transferindo-o até para a enfermaria, se eu me tornasse 
mais condescendente. O que quereria dizer "tornar-me 
condescendente"? 
Muito depressa cheguei a saber. Ele me convidou para 
visitá-lo em sua casa, um bangalô roubado a uma distinta 
família francesa. Prometi comparecer. Amarga foi a 
decisão que tomei, àquela noite, sem que minha mãe 
soubesse. Mesmo que o oficial alemão fosse dos mais rudes 
― eu raciocinava ― alguma coisa de positivo teria de 
fazer pelo meu pai, caso contrário eu não voltaria à sua 
presença, pelo menos com meus próprios pés. Apanhei um 
pequeno xale e disse à velha minha mãe: 
"Fique tranqüila, querida! Vou sair um pouco, só até a 
casa de Hermine, em busca de alguns gramas de manteiga. 
Está fazendo frio e é possível, mamãe, que eu durma lá". 
Eu estava decidida a pagar um alto preço pela vida do 
meu pai.” 
 
 71 
6 
 
A neve caía sobre a vidraça, enquanto eu escutava o 
impressionante relato de Delly, que tremia ao recordar 
aquelas cenas do seu recente passado. Lá fora, Paris 
ocupada era um vulto negro, com seus "boulevards" 
apagados e sua alegria ferida. Atiçamos o fogo na lareira, e 
a jovem marselhesa prosseguiu: 
“Eu estava mesmo disposta a pagar qualquer preço 
pela vida do meu pai. Saí, dentro da noite gelada, deixando 
minha pobre mãe em casa, e fui bater à porta do oficial 
Hans Gluck. A voz soou, soturna: ― Quem é? 
Tive vontade de fugir. Mas falei firme: ― Sou eu. A 
moça de ontem. A que o senhor encontrou na Rua Satin. 
― Entre! 
Subi a escada. Ele abrira a porta com um cordão. Lá 
estava seu corpo descomunal, no alto, cobrindo quase toda 
a luz. Continuei subindo. Não se arredou do caminho. Tive 
de esbarrar a meio palmo do seu nariz. Aí aconteceu o 
inesperado: ele voltou-me as costas e foi para seu quarto. 
Lá deitou-se, com as mãos atrás da nuca. Estava bem 
vestido, de robe de chambre de "foulard". Falou: ― Não se 
dispa! 
Fiquei espantada. Eu não fizera um gesto nesse 
sentido. 
― Prefiro despir as minhas vítimas! ― explicou, no 
meio de uma gargalhada estranha. 
Falou com serenidade: 
 72 
― Vocês nunca poderiam acreditar no mistério, na 
delícia que há em retirar, de uma bela mulher, as peças do 
seu vestuário, lentissimamente, com a doçura dos sonhos. 
Tossiu um pouco, e acrescentou: 
― Mesmo que não seja de mulher, desde que o corpo 
tenha formas perfeitas. 
Parece que eu estava, naquilo tudo, de olhos abertos, 
paralisada de medo, porque ele ensaiou um sorriso meigo 
ao dizer: 
― Não receie. Sou um tarado mas não devoro minhas 
vítimas. 
Fez uma pausa antes de observar: 
― Você deve ter uns seios impressionantemente duros 
e quentes. Gosto das minhas vítimas francesas. Procuro 
amá-las devagar, mansamente. O amor é uma coisa lenta. 
A carne é a maior invenção de Deus. Nada de pressa. A 
carne pede tempo. 
Veio vindo em minha direção. Eu sentia duzentos 
quilos de chumbo me prenderem os pés. Com um gesto leve, 
afastou a blusa e descobriu-me os seios. Jamais me 
perdoarei. Naquele instante, com toda a força do meu 
espírito, detestava o nazista. Mas meu corpo estava 
realmente excitado.” 
 
QUANDO O HOMEM CANSA 
 
“Esta não foi a pior das minhas experiências, porque 
naqueles tempos o pior sempre vinha no dia seguinte. Gluck 
amava as virgens. Ele se interessava por uma jovem até 
onde seus encontros tinham um sabor de sangue. Enquanto 
 73 
durava meu período de iniciação ia conseguindo dele 
certas vantagens para meu pai. Houve de fato certa 
condescendência em relação ao velho. Transferiram-no 
para a enfermaria. Deram-lhe um regime mais suave. Mas 
o oficial logo se cansou de mim. Depressa se enfastiava de 
qualquer mulher com quem dormia cinco ou seis vezes. 
Procurava-as, naturalmente, entre as filhas e irmãs dos 
presos. Usava de argumentos terríveis. Ameaçava-as, e às 
suas famílias, de deportação, caso resistissem. 
Quantas e quantas moças se entregaram ao bruto 
"para serem despidas mansamente, amadas suavemente", 
como ele costumava repetir ― a fim de que seus pais e seus 
irmãos ficassem em terra francesa até o dia da libertação. 
A hora era negra e sombria, mas todos conservavam a 
esperança de que os alemães, um dia, seriam expulsos. A 
última vez que saí do bangalô de Gluck, marcada por seus 
dentes ― e ele não tinha sido tão suave quanto prometera 
― levava na memória, bem nítidas, as palavras do tarado: 
― Não é preciso voltar. Principalmente não me 
aborreça mais com a situação do seu pai. Já fiz por ele o 
máximo e não estou disposto a complicar-me apenas para 
servi-la.” 
 
A IDÉIA TERRÍVEL 
 
“Via bem o perigo que o velho corria. A deportação. O 
campo de trabalho na Alemanha. Todos os homens 
prisioneiros iriam para o leste, onde o braço escravo 
construía fortificações e armamentos. Tinha certeza de que, 
 74 
após isto, nunca mais voltaríamos a ver papai. Foi então 
que uma idéia assombrosa me surgiu: A da chantagem. 
Gluck era medroso dos seus superiores. Tornaria a sua 
presença e lhe diria, calmamente, que se ele retirasse sua 
proteção eu faria cair nas mãos do general-comandante a 
denúncia de tudo que fizera: as transigências na prisão de 
Compiègne. Tudo para possuir-me, sem qualquer vantagem 
para o Exército Alemão. Uma jogada perigosa que talvez 
resultasse em maior desgraça para mim, e para meu pai. 
No entanto, era a última de que poderia lançar mão. Fiz 
meia-volta e, após cinco minutos, abria, com a própria 
chave que ele me dera, a porta do bangalô. Estava tudo 
escuro. Subi a escada e vi que a porta do quarto jazia 
semicerrada. 
― Gluck! 
Ninguém respondeu. 
― Hans Gluck! 
O mesmo silêncio. Empurrei a porta. Sobre o leito, o 
oficial estava deitado, com a cara enfiada no travesseiro. 
Nas costas, à altura do coração, um punhal cravado, até o 
cabo. Ao lado da cama, de pé, encostada à parede, imóvel e 
branca como a própria estátua do terror, uma menina de 
quinze anos, absolutamente nua.” 
 
A VIRGEM ASSASSINA 
 
― Você fez isto? ― perguntei. 
Ela assentiu, com a cabeça, molemente. 
― Por quê? 
 75 
Um pranto convulsivo dominou-a por completo. Fiquei 
com medo de que a ouvissem, de fora, e procurei acalmá-la. 
Recompôs-se. 
― Por que fezisso? Por que matou o homem? ― 
insisti. 
― Ele me perseguiu durante meses... ― foi ela 
dizendo, em soluços. 
― Prometia sempre vantagens para meu noivo, Albert, 
que está preso. Eu adoro Albert! Ele ia ser deportado. 
― E depois? 
― O comandante Gluck jurou-me que ajudada a 
salvar Albert da deportação se eu concordasse em vir aqui 
dormir com ele. Aceitei, embora fosse cruel. Fazia-o pelo 
amor ao meu Albert... 
O pranto da menina era sufocante. Aos poucos foi 
falando: 
― Ontem, soubemos que há dois meses Albert estava 
na Alemanha, servindo no leste, em um campo de 
concentração. E esse miserável a me enganar, dando 
notícias de Albert, dizendo-o aqui em Compiègne. Por isso 
matei-o. Friamente, como se mata a um cão. Ele nem 
chegou a desconfiar do meu propósito. Eu estava 
carinhosa. Despiu-me, sem pressa. Era assim que ele fazia. 
Confirmei: ― Sim. Tinha esse hábito. 
― Quando acabou, procurou abraçar-me. Tirei o 
punhal que escondera sob o travesseiro e cravei-o em suas 
costas. Com toda a força. Ele ainda me apertou, num último 
gesto. Mas perdeu logo as forças. Afastei-me. ― Apontou o 
cadáver. ― Agora está aí. Não diz mais nada. Não faz 
 76 
coisa alguma. Está parado. Terminou. E eu? Que farei 
agora? 
― Você vai sair daqui o mais depressa possível! ― 
observei, numa súbita compreensão de que estávamos 
ambas correndo um perigo extremo. 
― Alguém a viu entrar? 
― Acho que não. 
― Reze por isso. E vista-se, depressa. 
Ela deu mostras de retornar à realidade. Pôs urgência 
em vestir-se, e até, procurando as roupas, pisou várias 
vezes o cadáver de Hans Gluck, o que me constrangeu. 
Depois pensei comigo mesma: "É apenas o cadáver de um 
tarado nazista!" E dei-me pressa em fugir com a menina. 
Naquela noite ela dormiu em minha casa. Estava ainda 
traumatizada e me fazia perguntas assim: 
― Você acha que só pelo fato de esse homem imundo 
ter posto a mão no meu corpo, eu não mereço o Albert, se 
um dia ele voltar? 
Confortei-a, da melhor maneira possível. Eu também 
me fizera aquelas mesmas perguntas, com o pensamento 
voltado para meu querido Flavien. Mas ela insistia: 
― Tenho a impressão de que as mãos dele me 
deixaram verdadeiras marcas de ferro em brasa no corpo. 
Eu sustentava o argumento de que ela agira nobremente, 
fizera o mais sublime dos sacrifícios. 
Finalmente aconselhei: 
― Agora é ir a um médico francês para verificar se o 
tal Gluck não lhe deixou alguma lembrança desagradável. 
― Lembrança? 
― Ou herança, como quiser. Um filho. 
 77 
Ela abanou a cabeça. 
― Isto não seria possível. Ele nunca me possuiu! 
* * * 
Com a jovem que assassinara o oficial alemão em 
nossa casa, vivíamos em eterno sobressalto. Os nazistas 
eram terríveis nos atos de represália e, nestes casos, faziam 
quase sempre uma expedição punitiva. Isto porque não lhes 
era possível descobrir a origem dos atentados contra seus 
homens. Restavam-lhes os meios mais bárbaros, como o de 
fuzilar reféns e perseguir famílias inocentes. 
À saída dos cinemas ou nas filas de racionamento 
eram escolhidos os números 10, ou 20, ou 50 e levados 
sumariamente para o paredão de fuzilamento. Por isso 
ficamos esperando o pior. Dia e noite sem sair. Minha mãe, 
posta ao corrente de tudo o que ocorrera, ajudara a 
consolar a pobre moça, embora não se conformasse, ela 
própria, de que eu também houvesse posto em jogo a minha 
honra. 
A menina chorava, e insistia neste ponto: 
― Não tenho o direito de envolvê-las nas minhas 
complicações. Deixem-me ir embora. 
Mas, embora soubéssemos que a presença da jovem 
assassina em nossa casa constituía um perigo virtual de 
fuzilamento, continuávamos a protegê-la, à espera de um 
milagre. O milagre veio na pessoa de um desconhecido. 
Bateu-nos, altas horas da noite, na janela. A casa era baixa 
e no alinhamento da rua. Geladas de frio e medo, 
acordamos. 
Minha mãe, com voz rouca, perguntou: ― Quem é? 
― Um francês que está com fome ― foi a resposta. 
 78 
Ouvi os passos de minha mãe na sala e o ruído da 
porta se abrindo. O homem entrou e minha mãe me 
chamou: ― Delly! Venha me ajudar. 
E acrescentou: 
― Ele está ferido. Foi apenas o tempo necessário para 
vestir um robe e precipitar-me na sala. O francês estava 
sentado, com as mãos sobre a mesa e a cabeça apoiada. 
Pálido, quase da palidez cadavérica, via-se que perdera 
sangue em quantidade. Vestia uma capa impermeável e por 
isso não pudemos, de imediato, ver o ferimento. Minha mãe 
ajudava-o, já, a erguer-se. 
― Venha comigo, Delly. Precisamos levá-lo ao quarto. 
Eu e a outra moça, secundadas por minha mãe, 
conseguimos arrastar o ferido até a cama maior da casa. O 
corpo tombou, enquanto eu tirava a capa que o envolvia. 
Não pude conter um grito. 
― Veja, minha mãe! Sobre a blusa azul do estranho 
uma enorme mancha de sangue revelava a gravidade do 
ferimento. 
― Deve ter atingido o pulmão ― e minha mãe, 
enquanto falava, ia despindo o busto do desconhecido. 
― Não podemos fazer muita coisa sem auxílio de um 
médico. 
― Acha que podemos arriscar? 
Minha mãe voltou seus olhos para mim. Havia uma 
chama diferente, um brilho estranho, quando respondeu: 
― Vamos tentar salva-lo! Achei que deveria fazer uma 
ponderação, àquela altura. 
― Mas, minha mãe ― comentei ― acontece que 
temos já conosco a assassina de um oficial alemão. Com 
 79 
mais este desconhecido, certamente fugitivo de um campo 
de prisioneiros, não teremos meios de nos manter por muito 
tempo. Além do que é praticamente impossível ocultá-los. 
Minha mãe era uma velha francesa de fibra, e 
retorquiu: 
― Antes de tudo, aqui não está uma assassina, mas 
somente a executora da vontade divina! E este homem 
ferido é um francês, lutando pela França. 
― Os alemães não pensam assim ― observei ― e se 
formos apanhados juntos, aqui nesta casa, teremos 
encerrado nossa passagem por este mundo. 
― Nossa passagem por este mundo só vale se 
conseguirmos deixar nele, com um belo gesto, a nossa 
marca. Do contrário terá sido inútil. No momento minha 
maior preocupação é o que possa acontecer ao seu pai, 
meu bom marido, naquele lugar horrível. Mas vamos 
chamar o médico, quanto antes, para cuidar deste ferido! 
― concluiu minha mãe, com uma força de espírito 
extraordinário. 
Convenci-me dos argumentos da mamãe. Minha 
mocidade, minha vontade de viver, haviam posto em mim, 
nos minutos anteriores, um princípio de egoísmo. Mas 
resolvi afinal dedicar-me aos meus infelizes companheiros. 
E lembrei o nome do doutor Cerdan, um verdadeiro 
francês. 
― Está muito vigiado nesta hora. Mas só pode ser ele 
mesmo ― assentiu minha mãe. 
O desconhecido soltou um gemido. Bagas de suor 
molhavam o travesseiro, e o pobre se contorcia em dores. 
 80 
― O ferimento é gravíssimo! ― disse a menina, que o 
estudava. 
― Não passará desta noite se alguma coisa não for 
feita. 
― Só temo a gangrena! ― falou o desconhecido, 
entredentes. 
― Qualquer pessoa encontrada a esta hora na rua 
será presa. As patrulhas alemãs devem estar rondando a 
cidade, depois da morte do oficial ― comentou minha mãe. 
― Mas é preciso arriscar. Do contrário, o homem não 
escapa. Vocês duas ficarão ao lado dele. Eu vou à casa do 
doutor Cerdan. 
― A senhora? Não! ― disse eu. 
― E por quê? Sou velha e não desperto suspeitas. 
Prefiro que você fique, minha filha. 
Como se não me ouvisse, minha mãe vestiu o casaco, 
enrolou o xale no pescoço e saiu. 
A menina ficou do meu lado, fazendo-me companhia. 
Era um trágico espetáculo aquele. Duas moças sentadas ao 
pé de um leito onde um homem agonizava. Sangue pingava 
no assoalho. 
 
A MENINA CONTA SUA HISTÓRIA 
 
“Para fazer o tempo passar, resolvi dirigir perguntas à 
menina que assassinara Hans Gluck: 
― Você disse que ele não a possuiu? 
― Não. Ele não me teve realmente. Mal me tocou. 
― É estranho. Os alemães não costumam ser tão 
condescendentes.Principalmente aquele tipo. 
 81 
Da mesma forma que contasse uma história simples, 
dos dias calmos de antes da guerra, a moça me contou sua 
espantosa tragédia: 
― Era outra a intenção dele. Estava apenas dando 
tempo ao tempo. Costumava dizer que me preparava para 
os esponsais. ― um brilho de pavor crescia nos olhos da 
adolescente quando recordava aquele episódio. ― As 
noites e os dias se passavam e eu sempre esperando que ele 
cumprisse a promessa de fazer algo por Albert, meu noivo. 
Não me importava, àquela altura, o que ele fizesse ao meu 
corpo. Decidira considerar válida apenas minha alma, que 
de tudo sairia limpa. Suas mãos sujas de tarado não a 
poderiam tocar. Ele gostava de segurar minhas mãos e 
beijar-me os dedos. Dizia que lembrava lírios e não sei que 
mais. Sugava-os, a principio, mansamente. Depois, num 
crescendo, ia até a fúria, e, então, mordia-os como um 
louco. O paroxismo durava pouco. Vestido como estava, 
deixava a cabeça tombar sobre o travesseiro e dormia até o 
amanhecer. Nunca vi coisa igual. 
― Tara! 
― Eu sei que era um tarado. A cena se repetia todas 
as noites. Veja como tenho os dedos. 
Mostrou as mãos. Todas marcadas. A direita, então, 
parecia esmagada, e deixava ver os sinais dos dentes. 
― Você pagou um preço muito alto ― disse-lhe eu. ― 
Comigo, tudo foi diferente. 
Ela abaixou a cabeça, com tristeza e disse apenas: 
― Que podia eu fazer? Pedir-lhe que me possuísse em 
vez de morder-me? 
 82 
― Compreendo a situação. Já passei por isso. Não 
existe um... 
 
O HOMEM FERIDO SE REVELA 
 
Nisto, o ferido gritou. Não poderíamos continuar nossa 
conversa diante do seu sofrimento. Já agora delirava. 
Repetia frases sem nexo. Mas insistia em um nome. 
 ― E agora vem a grande revelação! ― diz Delly. ― 
Era o teu nome que ele pronunciava, Giselle. Falava assim: 
“Giselle... Giselle... sou eu... sou Zingg... Não me conhece 
mais, meu amor? Sou Paulo Zingg... Ah, Giselle, deixar que 
aqueles porcos sujem seu corpo... Pensar que aquelas 
bocas imundas beijam a minha Giselle... Ah!” 
― Naquele tempo ― continua Delly explicando ― 
jamais me passaria pela cabeça quem seria Giselle, esta 
que agora, aqui na casa do coronel Oetting, diante da 
lareira, ouve minha narrativa. 
Giselle, mais curiosa, pediu: ― Continue, continue, 
Delly! Não pare de contar! 
Delly prossegue, voltando à cena daquela noite 
angustiada, na sua casa, em Compiègne. 
― Como disse, o ferido delirava, falando teu nome. 
Num esforço desesperado, ergueu metade do corpo, mas 
tombou sem forças. Quando ajeitávamos o travesseiro sob 
sua cabeça, bateram violentamente na porta. Não poderia 
ser minha mãe. Ela batia um sinal combinado, a espaços 
longos. O ruído era agressivo. 
― Quem é? ― perguntei com voz firme. 
Responderam lá de fora: ― Gestapo! 
 83 
 
 84 
7 
 
Neste exato momento, Delly interrompeu sua narrativa. 
E foi quando nos levantamos, de nossa confortável posição 
em frente à lareira, porque o telefone tocou. Um chamado 
urgente do quartel-general para o "meu" coronel Oetting 
que roncava. Fomos acordá-lo, com toda a urgência 
possível. Ele quase perfilou-se diante do aparelho, falando 
com seu superior. Logo depois vestiu-se e tomou o caminho 
da rua. Novamente ficamos, Delly e eu, na tranqüilidade da 
sala bem aquecida. Ouvimos o automóvel oficial de Oetting 
roncar pela rua afora, como se nos abandonasse. Agora 
desfrutaríamos de alguns longos momentos de liberdade. 
Servimo-nos de duas boas doses de velho conhaque, 
aconchegamo-nos outra vez nas grandes poltronas e 
contemplamos o brilho das chamas da lareira em nossos 
próprios rostos agora serenos. Delly recomeçou sua história: 
As pancadas da Gestapo na porta de casa quase me 
fizeram o coração saltar pela boca. A pobre menina 
fugitiva tremia do meu lado. Na cama, os olhos muito 
abertos, o desconhecido que agora eu sabia ser Paulo 
Zingg, demonstrava toda a sua angústia de ser 
surpreendido naquele estado desesperado. Os homens da 
polícia secreta alemã batiam com mais força. Resolvi 
ganhar tempo. Foi o que me ocorreu. 
 ― Um momento. Estamo-nos vestindo! ― gritei. 
A verdade é que naquele instante eu sonhava com um 
milagre, algo de sobrenatural que acontecesse depressa. 
Minha mãe chegou no minuto seguinte, e aí revelou-se de 
 85 
um sangue-frio excepcional. Ouvi-lhe a voz, na discussão 
com os nazistas. Revelava-se rabugenta. Exagerava sua 
condição de velha intransigente: 
― Que querem os senhores na casa de uma anciã, a 
estas horas da noite?! 
Vi que procurava também ganhar tempo. Chamei a 
menina, fiz com que me ajudasse a embrulhar Zingg em 
toalhas e velhos jornais. Transformei-o, em poucos 
instantes, numa verdadeira múmia. Meu objetivo era 
esconder seu ferimento. Única providência cabível, naquele 
minuto, sem qualquer esperança. Pouco depois minha mãe 
abriu a porta e deixou que os nazistas entrassem. Vinha 
discutindo, embaraçando-lhe os movimentos. 
― Afinal, o que querem? ― perguntou. 
― Queremos revistar-lhe a casa ― disse um deles, 
enérgico. ― Fugiu um preso que pode bem estar escondido 
aqui. 
Com a voz mais tranqüila deste mundo minha mãe 
concordou: 
― Bem,... os senhores mandam mesmo. Vasculhem a 
casa, como quiserem. 
― Somente há mulheres aqui? ― perguntou o mais 
rude. 
A velha não tirou os olhos dele nem se perturbou 
quando disse: 
― Temos um homem também. 
O ESTRATAGEMA 
 
Fiquei gelada. Que pretenderia minha mãe? Então, 
sem mais nem menos, entregava o prisioneiro fugitivo, um 
 86 
francês como nós, aos carrascos alemães? E depois de 
todas as invocações de patriotismo feitas uma hora antes? 
Pretenderia, com aquilo, salvar nossas vidas? 
― Onde está o homem? ― quis saber o agente que 
parecia ser mesmo o chefe. 
― Queremos vê-lo. 
― No quarto dos fundos. 
― Vamos lá. 
À porta do aposento, enquanto a abria, minha mãe 
observou: 
― Os senhores não fazem questão de entrar? 
― Questão? Por quê? 
Minha mãe fez um gesto displicente. 
― Por quê?... A doença. 
O agente empalideceu e parou à entrada. 
― Doença? 
― Ele está mal. 
Na cama, verde de pavor, ou do sangue que perdera, 
Zingg parecia também já resignado. Talvez fora de si. 
Tinha os olhos fundos e uma barba cerrada cobria metade 
do seu rosto, dificultando a identificação. 
― Vamos entrar logo ― disse o segundo agente. 
Mas uma força estranha o deteve e fez com que ele 
arriscasse a pergunta: 
― Qual é a doença? 
― Lepra?! 
 
A LISTA 
 
 87 
Depois de substancial silêncio os homens da Gestapo 
resolveram entrar assim mesmo. Não tocaram em um móvel 
sequer. Com os olhos pregados em Zingg, deitado na cama, 
exigiram o cartão de identidade. Aí julguei tudo perdido, 
mas outra vez a presença de espírito de minha mãe salvou a 
situação. 
― Não tem documentos. ― explicou ela. ― Vinha 
rolando pela cidade e acabou em nossa porta. Ficamos 
apiedados e não sabíamos qual a enfermidade. Depois de 
estar aqui há alguns dias, descobrimos. ― Suspirou, numa 
aflição que parecia verdadeira. ― Agora talvez os senhores 
nos livrem dele. 
― Por que não telefonaram à Saúde Pública? 
― Estamos cansados de fazê-lo. É a guerra. Não 
tomam qualquer providência. Os senhores sabem como é... 
― Esses franceses... ― comentou um dos agentes. ― 
Gente desorganizada. 
Voltou-se o chefe do grupo para minha mãe: 
― Providenciarei a remoção. As senhoras terão de ir 
também para um hospital, a fim de serem examinadas. Há 
sempre o perigo do contágio. 
― Nós? Por quê? 
― Ficaram muito tempo em companhia de um leproso. 
― Não tocamos nele. 
― Mesmo assim. É uma medida de proteção. 
Quando iam saindo e quase respirávamos felizes, pois 
teríamos algumas horas para fazer o prisioneiro, que era 
Zingg, desaparecer, outro golpe por pouco não fez 
desmoronar minha resistência. 
Foi quando o chefe pediu: 
 88 
― Tragam a lista dos moradoresdesta casa. 
― A lista? 
― Sim. Imediatamente! Ou vocês não sabem que o 
Exército de Ocupação alemão pune com deportação 
aqueles que não conservam listas de residentes em suas 
casas. 
Minha mãe foi ao quarto e voltou com o cartão. 
Depois de lê-lo o chefe observou: ― Aqui fala em duas 
pessoas. A senhora é a mãe. Qual das duas é Delly, sua 
filha? 
― Sou eu! ― adiantei. 
― E essa moça? 
― Uma amiga que nos visita. 
― A estas horas? Tem documento de identidade? 
A pobre moça tremia quando respondeu que não. 
― Neste caso, virá conosco ― informou o chefe. 
 
 89 
OS CORPOS QUE SALVAM 
 
Compreendi, então, que estávamos jogando a última 
cartada. Alguma coisa precisava ser feita, e pela expressão 
desanimada da minha mãe percebi que dela nada mais era 
possível esperar. Agi, sem muita noção do que estava 
realizando, talvez por simples instinto de sobrevivência. 
Falei, num tom desconhecido para minha própria mãe: 
― Podem levá-la, se quiserem. De uma coisa fiquem 
certos: nós gostamos dos alemães. E somos mulheres sem 
homem! 
Os agentes se entreolharam. Percebi um brilho 
diferente em seus olhos: 
― Ah... gostam dos alemães? 
― Principalmente dos mais limpos ― acrescentei. 
― Então por que não saem agora conosco desta casa 
onde há um leproso infecto? Vamos cear em algum bar 
limpo. 
O chefe do grupo consultou os outros dois, em surdina, 
e depois fez sinal para que os acompanhássemos. Vestimos 
nossos velhos casacos e partimos, fingindo agora alegria. 
Dei um último olhar a minha mãe, que não disfarçava sua 
tristeza e sua vergonha. Longo e triste é o caminho das que 
são obrigadas a transigir no seu pudor, por uma causa ou 
por uma idéia mais nobre. 
Delly fez uma pausa. Agora as brasas da lareira 
estavam quase apagadas. E Paris dormia aos nossos pés, 
dentro da noite gelada. Sabíamos que, àquela mesma hora, 
em dezenas de quartos fechados, jovens rebeldes francesas, 
ou simples aventureiras, davam seus corpos a oficiais da 
 90 
invicta Wehrmacht, em busca de pequenas informações que 
serviam a planos enormes. Daí minha convicção, hoje em 
dia, de que o exército alemão não haveria de perder sua 
guerra nos campos da Rússia. Ele já a perdera em nossas 
camas desforradas. 
* * * 
As revelações de Delly não constituíam para mim uma 
grande surpresa. Eu pressentira já que sob aquela máscara 
de leviandade pulsava um coração de heroína. Só a 
espantosa coincidência de Zingg em sua casa, naquela noite 
angustiosa, me deixara inquieta. Não quis apressar a 
narrativa. Tive medo de precipitar o fim da história. Deixei 
que falasse mansamente, como era do seu hábito. Ela 
prosseguiu: 
Os oficiais alemães saíram conosco e somente quando 
o dia já ia alto pudemos regressar a casa. Tínhamos dado 
tempo a minha mãe para arranjar uma solução que livrasse 
Zingg da morte certa. Não erramos em confiar no excelente 
raciocínio da velhinha. Mal nos aproximamos do prédio 
sentirmos que algo de extraordinário se passava. Da porta 
da rua entreaberta, vimos, em plena sala, o velório. 
Diversas mulheres e homens guardavam o esquife de 
alguém. O sangue gelou-me nas veias, mas uma das 
primeiras pessoas a levantar-se à minha entrada foi 
exatamente minha mãe. Não era ela, felizmente, a morta. 
― Quem foi? ― perguntei, com a voz embargada. 
― O rapaz. 
― Não resistiu, mamãe? 
* * * 
 91 
Aqui Delly interrompeu novamente sua história e 
observou: 
― É preciso que eu faça um retrospecto de tudo o que 
aconteceu durante nossa ausência de casa, para que você 
entenda, Giselle. Minha mãe só pôde me contar isto muito 
depois: 
Momento após nossa saída com os agentes da 
Gestapo, o doutor Cerdan, chamado pela minha mãe, deu 
entrada em casa. Zingg piorava, assustadoramente. A um 
simples exame, o médico verificou que a remoção do 
"maquis" teria de ser imediata, para um local onde fosse 
possível tratamento hospitalar adequado. Dois problemas 
se apresentavam, quase insolúveis: a condução de um 
ferido, em plena noite, numa cidade mantida sob rigorosa 
vigilância, e a justificativa do desaparecimento do doente, 
no dia seguinte, quando os perdigueiros nazistas 
retornassem em busca do suposto leproso. 
O doutor Cerdan encostou seu velho carro Packard na 
parte dos fundos da casa. Com a ajuda de um enfermeiro, 
seu acompanhante, logrou transportar Zingg até a mala do 
automóvel, colocado propositadamente de costas, contra a 
porta de saída, onde não havia qualquer iluminação. Havia 
perigo de que o bravo "maquis" sucumbisse no transporte, 
tal seu estado de fraqueza, mas entre a morte certa e a 
morte provável só se apresentava uma alternativa: a 
tentativa de remoção. Que afinal se fez, Zingg foi recolhido 
à enfermaria de um convento onde o próprio doutor Cerdan 
conseguiu operá-lo com êxito. 
* * * 
 92 
Neste ponto da história Giselle não se conteve e 
perguntou: 
― Mas o meu querido Zingg esteve a ponto de morrer 
assim? 
― Escapou, nesse milagre que agora lhe descrevo. E só 
uma constituição de super-homem faria com que se 
restabelecesse tão depressa quanto se restabeleceu. Mas 
ouça o resto da história. 
― Sim... Conte como foi que sua mãe justificou a 
ausência do "leproso" no dia seguinte. 
― Aí é que está... ― fez Delly. ― Era preciso arranjar 
um morto para substituir Zingg lá em casa! 
― Um morto? 
― Sim! Um cadáver! E um cadáver de homem jovem, 
parecido com o do suposto leproso que os agentes da 
Gestapo haviam encontrado na noite anterior, no quarto dos 
fundos da nossa casa. 
― E como foi feita esta "operação"? 
― Não sem certa dificuldade . No convento-hospital da 
Resistência, onde o doutor Cerdan operava Zingg, havia 
dois franceses rebeldes mortos. Mas as caras não conferiam 
com a do nosso "maquis". Foi preciso escolher o mais 
jovem e desfigurar-lhe o rosto com ácidos. O cadáver fez, 
na mala do carro, o trajeto inverso que havia feito Zingg. 
Documentos falsos de identidade foram arranjados pelo 
grupo dos "burocratas livres". Restou apenas um atestado de 
óbito, passado pelo próprio doutor Cerdan, declarando que a 
morte ocorrera por moléstia infecto-contagiosa e que o 
enterro deveria ser realizado o mais breve possível. Quando 
os alemães chegaram, de manhã, encontraram o corpo já no 
 93 
velório. Não houve a mais leve suspeita. Autorizaram o 
enterro e até exigiram que o fizéssemos depressa. Mas você 
imagina o meu susto, ao chegar em casa, com os agentes da 
Gestapo, já dia claro, e encontrar um esquife na sala? Se 
não era o da minha mãe, tinha que ser o de Zingg. Mas o 
cadáver de um bravo guerrilheiro francês, desfigurado por 
vitríolo, substituíra o chefe dos "maquis". Até depois de 
morto o herói anônimo prestou um serviço à causa dos seus 
companheiros. 
― E Zingg? ― perguntou Giselle. ― Que continuou 
fazendo, depois de todas estas peripécias? 
Delly foi entusiástica na resposta: 
― Seu Zingg é mesmo formidável. Ainda doente, no 
leito do convento-hospital, recebia os companheiros, 
traçava planos de sabotagem, estruturava operações de 
salvamento dos outros companheiros detidos. 
― E você, Delly, já tomava parte em tudo isto, assim 
efetivamente? Era um membro da Resistência naquela 
época? 
Delly foi comedida: 
― Sim, de certa maneira, mas por interesse muito 
pessoal. Queria, como quero até hoje, salvar meu pai. Eu 
poderia dizer que lutava pela França quando permitia que os 
boches me possuíssem. Mas não seria verdade. Só penso no 
meu pai. Há poucos meses, um alto oficial do campo de 
prisioneiros prometeu-me a liberdade do velho por 60 mil 
francos. Não tinha tanto dinheiro. Para obtê-lo depressa, 
segui este caminho. Vim rolando e acabei aqui na sua casa, 
Giselle. Aqui há ouro de sobra. 
 94 
― E sua companheira? Foi presa? ― quis saber 
Giselle. 
― Por incrível que pareça, nunca chegaram a descobrir 
que fora ela a assassina de Gluck ― disse Delly. 
E subitamente,com ar mais triste: 
― Mas vários inocentes morreram por causa daquele 
assassinato. A menina, depois, pôde alistar-se no 
movimento clandestino e teve uma tarefa mais suave que a 
nossa: acompanhar fugitivos até a fronteira. Por falar em 
fugitivos, você recebeu notícias de Zingg, recentemente? 
― Um bilhete, faz poucos dias. Imagine: quer que eu 
arranje de qualquer maneira um carro oficial alemão. Só 
isso. Um carro oficial alemão. Como se fosse um isqueiro 
de cobre, ou um maço de cigarros. 
 
VOLTA AO PRESENTE 
 
A campainha da porta soou. Era o fim do nosso 
momento de sossego. Deu entrada na sala, mal-humorado, o 
coronel Oetting. 
― Péssimas notícias ― disse. ― Vou ser transferido 
para a Rússia. 
Exultei-me, interiormente. Mas a alegria não durou o 
tempo de um sorriso. 
― Não fique satisfeita antes do tempo. Você irá 
comigo. – concluiu Oetting. 
― Para a Rússia? Está maluco? 
― Para a Rússia ou para o inferno! 
― Não me pode obrigar. 
 95 
― Esquece-se de que quem conseguiu sua liberdade 
pode revogá-la. 
― E o general Stupnaggel? 
― Confia demais no interesse do general Stupnaggel. 
― Falarei com ele. 
― Tempo perdido. Virá a Paris uma grande 
personalidade alemã e ele não pensa noutra coisa. 
 
AÇÃO RÁPIDA 
 
Não fiquei de braços cruzados. Mandei um recado 
urgente a Stupnaggel que se apressou em visitar-me, na 
noite do dia seguinte. Perfumara-se e adotava uns ares de 
mancebo. Mal fechou a porta atrás de si quis agarrar-me os 
seios. 
― Descanse, general. 
― Como posso, Giselle? Você me enlouquece! 
― Aceita um chá? 
― Aceito alisar sua pele. 
E procurava fazê-lo, com as pontas dos dedos, para 
eletrizar-se. 
― É pura seda, Giselle. Tal qual um par de meias de 
Lyon que mandei para minha mulher na Alemanha. 
― Ela é bonita? 
Ele deu uma gargalhada. 
― Bonita? Ah!... Uma bruxa. Tem todos os defeitos. 
Só falta voar na vassoura. Bebe, joga, fuma. Pesa quase cem 
quilos. E se considera uma valquíria ― concluiu num gesto 
de desalento -, mas mantenho-a por uma questão de 
princípio. Em troca, ela se mostra compreensiva e não 
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perturba minha vida com ciumeiras. A escolha de criadas 
sempre foi um privilégio meu, quando estava em casa. 
― Por que esse interesse? 
Stupnaggel esfregou as mãos. Antes de continuar, 
sentou-se num divã, pediu que eu deitasse sobre o tapete 
oriental a seus pés. 
― Não cubra as pernas, Giselle. Elas são monumentos. 
Já não lhe pertencem. Eu quero vê-las enquanto falo. Quero 
desejá-las. Você parece uma estátua macia de Afrodite. 
― Disseram-me uma vez isso. 
― Pois acertaram. Não há quem olhe seu corpo sem 
dizer poemas, sem fazer coisas impossíveis. 
O general tomou uma atitude grotesca, própria dos 
tarados sexuais. Seria aquilo sua espécie de poema? 
 
CONTINUA... 
 
© 1964 ― DAVID NASSER E A.S.GUEIROS 
 
NOTA INFORMATIVA: 
A espiã Giselle Montfort foi criada pelo jornalista David Nasser no 
ano de 1948 e publicada originalmente no Diário da noite na forma de 
capítulos seriados (56 capítulos). As histórias foram depois publicadas em 
quatro volumes cuja primeira edição foi publicada em 1952 pela Editora 
Distribuidora Edições do Povo. Estes quatro volumes foram publicados 
posteriormente pela Editora Monterrey em Março de 1964 e em Dezembro 
de 1967. 
 
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