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CAPÍTULO 21 Avaliação da função hepática Matthew R. Pincus MD PhD, Philip Tierno PhD, D. Robert Dufour MD Função hepát ica normal Funções metabólicas Funções sintéticas Testes de lesão he pática Níveis de enzimas plasmáticas cx,-fetoproteína (AFP) Marcadores autoimunes Marcadores de infecção pelo vírus da hepatite Diagnóstico das d oenças hepáticas Hepatite PONTOS-CHAVE • O fígado é composto por três sistemas: o hepatócito, que está relacionado às reações metabólicas e à síntese e degradação macromolecu lar (especialmente de proteínas); o sistema bi liar, que está envolvido com o metabolismo da bili rrubina e dos sais biliares; e o sistema reticuloendotelial, que tem a ver com o sistema imune e a produção de heme e metabólitos da globina (p. ex., bili rrubina). • A função de cada um desses sistemas pode ser medida de forma conveniente e praticamente não invasiva, pela determinação dos níveis séricos de analitos específicos, conforme o conhecido perfi l de teste de função hepática. • Uma das causas mais comuns de lesão hepática aguda é a hepatite virai, principalmente dos tipos A, B e C. Todas essas variantes da hepatite induzem e levações dos níveis séricos das aspartato e alan ina aminotransferases (AST e ALT, respectivamente). • O diagnóstico de hepatite virai pode ser feito pela triagem de antígenos virais, especialmente no caso da hepatite B, e da triagem de lgM e lgG dirigida a antígenos virais específicos. A confirmação do diagnóstico de uma forma particular de hepatite virai é realizada com auxílio de técnicas de d iagnóstico molecular apropriadas, como PCR em tempo real (RT-PCR), empregando iniciadores (primers) que codificam sequências de genes virais. • O diagnóstico de doenças hepáticas específicas, incluindo hepatite, cirrose, obstrução biliar aguda, lesões ocupadoras de espaço, doenças autoimunes e insuficiência hepática fulminante, pode ser realizado a partir da detecção de padrões específicos de testes séricos de função hepática, bem como da presença de anticorpos específicos no soro. Função hepática normal O figado é o maior e mais complexo órgão do trato gastrintestinal ( GI). De forma geral, abrange três sistemas. O primeiro deles - o sistema hepatocítico bioquímico - é responsável pela vasta maioria das ativida- des metabólicas que ocorrem no corpo, incluindo a síntese de proteínas, o metabolismo aeróbio e anaeróbio da glicose e de outros açúcares, a síntese e a quebra de glicogênio, o metabolismo de aminoácidos e áci- dos nucleicos, as intervenções em aminoácidos e ácido dicarboxílico via transaminases (aminotransferases), a síntese e o metabolismo de lipo- proteínas, o metabolismo xenobiótico (p. ex., metabolismo de fárma- cos, usualmente envolvendo o sistema oxidativo do citocromo P450), o armazenamento de ferro e vitaminas (como A, D e B12) e a síntese de hor- mônios (como angiotensinogênio, fator de crescimento insulina-símile 1 e tri-iodotironina). É também o local de depuração de muitos outros hormônios, como insulina, PTH , estrógenos e cortisol. Singularmente, o figado é o sítio onde a amônia é metabolizada em ureia. 307 307 312 314 314 316 316 317 320 320 Congestão passiva crônica Cirrose Diagnóstico e acompanhamento de cirrose, fibrose e inflamação necrotizante do fígado por meio de métodos não invasivos e utilizando analitos séricos Correlações bioqu ímicas e c línicas da cirrose Obstrução bi liar pós-hepática e pós-hepatocítica Lesões que ocupam espaço Insuficiência hepática fu lminante Referências bibliográficas 321 321 321 322 323 323 323 324 Também deve ser observado que todo o conteúdo de albumina do organismo é sintetizado no fígado, assim como todas as proteínas que atuam como fatores de coagulação, com exceção do fator de von Willebrand. Este é sintetizado pelas células endoteliais e megacariócitos. Pacientes com doença hepática podem apresentar sinais ou sintomas relacionados a um distúrbio envolvendo quaisquer uma dessas funções. O segundo sistema hepático mais importante é o sistema hepato- biliar. Esse sistema está relacionado ao metabolismo da bilirrubina - um processo que envolve o transporte da bilirrubina pelo interior do hepatócito, sua conjugação ao ácido glicurônico e sua secreção nos canalículos biliares, além do sistema êntero-hepático. Por fim, há ainda o sistema reticuloendotelial, ou seja, as células de Kupjfer. Essas células são um tipo de macrófago e estão envolvidas com: (a) o sistema imunológico, mesmo como um dos principais locais de defesa contra bactérias intestinais e um local primário para remoção de complexos antígeno-anticorpo da circulação; e (b) a quebra da hemoglobina pro- veniente dos eritrócitos, dando origem à bilirrubina que, junto à bilir- rubina oriunda do baço, entra no hepatócito. Na doença hepática, a manifestação dos sintomas clínicos por vezes ocorre tardiamente, após a progressão da doença, portanto torna-se importante detectar a presença e até mesmo o início de tais condições. Felizmente, muitas vezes é possível ter acesso a uma avaliação da fun- ção hepática determinando-se o conteúdo sérico de analitos segun- do um perfil de teste conhecido como "testes de função hepática". Muitos desses componentes não são exclusivamente hepáticos, con- tudo possibilitam um diagnóstico acurado quando são avaliados em conjunto. No Capítulo 8, são destacados os teste de função hepática e sua interpretação. O presente capítulo aborda os testes laboratoriais m ais comumente empregados para avaliar a função e as lesões hepáticas, bem como os métodos utilizados em sua quantificação, os testes para determinação das causas de lesão e os perfis de anomalias laboratoriais observados em doenças hepáticas específicas. Funções metabó licas Bilirrubina Metabolismo normal da bilirrubina A bilirrubina é o principal metabólito do heme - o anel tetrapirrólico de ligação ao ferro encontrado em hemoglobina, mioglobina e citocro- mos. Aproximadamente 250 a 350 mg de bilirrubina são produzidos diariamente em indivíduos adultos sadios, sendo que cerca de 850/o desse total deriva da renovação de hemácias senescentes (Chowdhury, 1988; Berk, 1994a; Berlin, 1981). Em macrófagos, principalmente C1:l u ·- ·- C1:l > <( ,.. N o ...J ::::> ,l- o.. 6 308 esplênicos, a metemoglobina das hemácias é quebrada e gera cadeias livres de globina e heme. O anel porfirínico do heme é oxidado pela oxidase do heme m icrossomal, resultando na produção de biliverdina (um composto de cadeia reta) e na liberação de ferro. Nessa reação de abertura do anel, há liberação de 1 mol de CO (monóxido de carbono) que, por sua vez, é transportado definitivamente como carboxiemo- globina. Os níveis séricos da carboxiemoglobina podem ser úteis no diagnóstico da anemia hemolítica, como já discutido no Capítulo 8. A biliverdina, então, é reduzida à bilirrubina (Fig. 21 .1) pela enzima dependente de NADPH- a biliverdina redutase. Em seguida, a bilirru- bina é transportada principalmente no sistema porta, sobretudo ligada à albumina, e segue para o fígado. Uma vez no fígado, a bilirrubina entra nos hepatócitos através da região da membrana celular que está em contato com os sinusoides, conforme ilustrado na Figura 21.2. A medida que a bilirrubina livre entra nos hepatócitos, mais bilirru- bina se dissocia da albumina. Esse processo é altamente eficiente. A depuração de bilirrubina não conjugada normalmente é de cerca de 5 mg/kg/dia ou, em um indivíduo que pesa 75 kg, aproximadamente 400 mg/dia (Berk, 1994 b). A bilirrubina não conjugada apresenta meia-vida curta. Após a inoculação, cerca de 600/o da bilirrubina marcada aparece junto aos hepatócitos em 5 minutos (Bloomer, 1973). A taxa de depura- ção se eleva com o aumento da concentração de bilirrubina não conju- gada, chegando, pelo menos, a 4 mg/ dL (Berk, 1994 b). Em sua forma isomérica mais comum (trans-), a bilirrubina é alta- mente insolúvel em água, sendoque a maior parte é transportada na forma acoplada à albumina e apenas uma pequena fração permanece livre. A luz pode causar fotoisomeração, transformando a forma trans em uma forma eis mais compacta, que é bem mais hidrossóluvel e, por- tanto, excretável pela urina (Onishi, 1986). Esse processo constitui a base da fototerapia no tratamento da hiperbilirrubinemia (não conju- gada) neonatal. A via de depuração hepática da bilirrubina é ilustrada na Figura 21.2. Repare que a bilirrubina não conjugada entra no hepa- tócito pela região da membrana celular adjacente aos sinusoides, opos- tamente à face que entra em contato com os canalículos biliares. Existem dois mecanismos de entrada da bilirrubina no hepatócito: a difusão passiva e a endocitose mediada por receptores. De acordo Baço Proteína transportadora CH2 11 Me CH Me A CH o N H COOH Glicuronida o o N H OH HO '----{ OH B N H N H C02H 1 C02H 1 CH2 1 CH2 1 CH2 CH2 CH2 e N H Bilirrubina N H CH2 11 Me CH CH D N o H HOOC o Glicuronida HO .,....__,, OH OH N H o Bilirrubina diglicuronida Figura 21.1 Estruturas de moléculas críticas no metabolismo da bilirrubina em diglicuronida. A bilirrubina é transportada para dentro do hepatócito, onde é convertida em diglicuronida e, em seguida, é secretada nos canalículos (Crawford, 1988 b). com o resumo apresentado na Figura 21.2, uma vez no hepatócito, a bilirrubina passa de um complexo proteico a outro em uma cadeia. Primeiramente, se complexifica às proteínas conhecidas como Y e Z e, em seguida, liga-se de modo sequencial a um complexo proteico denominado ligandina. A partir desse complexo, é transportada ao REL < AQ) B~ Ligandina (L) Proteína secretora\ OBilirrubina (Bil i) ~ Bili-L--.. Bil i + UDP-Gu Globina + he~ @ GT + C ~ CVS Bili-Gu ___,,.,~ Bili-Gu GT + D @ E Bili-(Gu)2 ---w- Bili-(Gu)2 ,....__, + Sinusoide Hepatócito Eritrócitos Canalículos Figura 21 .2 Resumo esquemático da via de transporte e do metabolismo da bilirrubina (indicada por "Bili" e também com círculos marrons). A bilirrubina (Bili) é produzida a partir da metabolização do heme primariamente no baço. Em seguida, é transportada para o fígado ligada à albumina. Para entrar no hepatócito, liga-se a uma proteína transportadora (crescentes em vermelho) e atravessa a membrana celular (círculo 1) entrando na célula. Liga-se às proteínas Ye Z (omitidas) e, então, à ligandina para ser transportada até o retículo endoplasmático liso (REL). Uma vez no REL, a bilirrubina é conjugada a ácido glicurônico pela UDP glicuronil transferase-1 (círculo 2), produzindo mono e diglicuronídeos de bilirrubina - Bili-Gu e Bili-(Gu}i. A bilirrubina conjugada é, em seguida, secretada dentro dos canalículos (círculo 3) pela proteína de transporte ATP-binding cassete MRP2/cMOAT/ABCC2 (crescentes azuis). Em doenças de superprodução (A), como na anemia hemolítica, a taxa de produção de bilirrubina não conjugada excede a capacidade de depuração do fígado, acarretando um aumento transiente dos níveis séricos de bilirrubina não conjugada. Tanto na síndrome de Gilbert como na de Crigler-Najjar, mutações que afetam o gene coficador da UDP gl icuroni 1 transferase (UDPGT1A1) (em C) resultam no acúmulo da bi 1 irrubina não conjugada nos hepatócitos e, por fim, no soro. Na síndrome de Gilbert, também pode haver um defeito envolvendo a proteína transportadora de bilirrubina (em B). Mutações no gene MRP2/cMOAT/ABCC2 resultam em proteínas secretoras defeituosas e, consequentemente, no acúmulo de bilirrubina conjugada dentro dos hepatócitos e, por fim, no soro. Tais alterações levam à síndrome de Dubin-Johnson (D), uma doença autossômica recessiva. A hiperbilirrubinemia conjugada também é encontrada na síndrome de Rotor, possivelmente induzida por vírus. Em adultos, o bloqueio de qualquer um dos principais duetos biliares, em especial o dueto biliar comum, por cálculos ou lesões espaçosas (como os tumores) (E) constitui as causas mais comuns de hiperbilirrubinemia conjugada. retículo endoplasmático liso (REL), onde se transforma em substrato da enzima glicuronil transferase. Essa enzima catalisa a esterificação das cadeias laterais do ácido propiônico da bilirrubina com o ácido gli- curônico (presente como ácido uridina difosfoglicurônico) para for- mar principalmente o conjugado diglicuronida, mostrado na Figura 21.1 (Chowdhury, 1988). Também são formados monoglicuronida e um pouco de triglicuronida. A proporção de pigmentos monoconju- gado e diconjugado na bile é 1:4, enquanto essa mesma proporção é igual a 1:1 no plasma, sugerindo que o refluxo de monoconjugados para o plasma ocorre mais prontamente. Conforme o esquema ilustrado na Figura 21.2, a bilirrubina conjuga- da é transportada em seguida até a face canalicular do hepatócito para ser diretamente secretada dentro dos canalículos por meio de um meca- nismo dependente de energia. Apenas a bilirrubina conjugada pode ser excretada diretamente dentro dos canalículos, sendo que a bilirrubina não conjugada é incapaz de atravessar as membranas nesse local. Depois de ser excretada nos canalículos e, definitivamente, no trato GI, a bilirrubina passa por mais uma etapa metabólica, dessa vez por ação das bactérias intestinais. Como resultado, sofre desconjugação e oxidação ou redução, dando origem a compostos que, tomados em conjunto, são denominados urobilinogênio e urobilina. Esses com- postos podem ser reabsorvidos no intestino. A maior parte do urobili- nogênio absorvido é reexcretada pelo fígado. Uma fração minoritária pode ser eliminada pela urina. Grandes quantidades são detectadas na urina em condições que levam à hiperbilirrubinemia ou em casos nos quais o fígado não pode secretar prontamente o urobilinogênio absorvido no intestino. Por fim, o urobilinogênio intestinal é conver- tido nos pigmentos das fezes, como a estercobilina. A ausência desses pigmentos resulta em fezes com cor de argila que, muitas vezes, cons- tituem um dos primeiros sinais de comprometimento do metabolis- mo da bilirrubina. Quando está presente no soro, a bilirrubina conjugada pode ligar -se covalentemente à albumina e produzir biliproteína ou bilirrubina-~ (Lauff, 1982; McDonagh, 1984). Enquanto a bilirrubina conjuga- da tem meia-vida inferior a 24 horas, a bilirrubina-~ tem meia-vida semelhante à da albumina (17 dias) (Fevery, 1986). Por esse motivo, causa icterícia prolongada durante a recuperação de lesões hepatoce- lulares (Van Hootegem, 1985) ou de obstrução biliar (Kozaki, 1998). A bilirrubina conjugada, sendo hidrossolúvel, pode ser filtrada pelo glomérulo e aparecer na urina, onde é detectada por meio do exame com vareta medidora de nível. A quantificação do urobilinogênio, contudo, acrescenta pouca informação aos testes-padrão de função ou lesão hepática (Binder, 1989). A concentração de bilirrubina uri- nária aumenta na maioria dos pacientes que apresenta níveis séricos elevados de bilirrubina conjugada (Binder, 1989). Desarranjos do metabolismo da bilirrubina. De acordo com a Figura 21.2, em cada etapa do processamento da bilirrubina, uma possível lesão talvez esteja levando ao aumento dos níveis séricos de bilirrubina conju- gada ou não conjugada. Cada caso, por sua vez, é discutido a seguir. Causas da elevação dos níveis séricos de bilirrubina não conjugada Hemólise. Conforme discutido no Capítulo 8, nas anemias hemolíticas, o aparecimento de bilirrubina não conjugada se deve à elevação anor- mal dos níveis de hemoglobina liberada a partir dos eritrócitos. Se a taxa de formação de bilirrubina excede sua taxa de depuração hepática, isto é, diante da superprodução de bilirrubina, os níveis séricos dessa molécu- la aumentarão. Praticamente todo o conteúdo de bilirrubina produzida será da forma não conjugada. Essa situação é particularmente prová- vel em recém-nascidos, nos quais a atividade de glicuronil transferase é baixa. Assim, um modo de confirmar o diagnósticode anemia hemo- lítica é detectar, em indivíduos adultos, níveis séricos elevados de bilir- rubina indireta. Usualmente, esses níveis não estão muito altos e, em geral, são da ordem de 1,5 a 3 mg/dL. As síndromes de Gilbert e de Crigler-Najjar são causadas por m uta- ções e deleções gen éticas. Na síndrome de Gilbert, caracterizada por uma discreta hiperbilirrubinemia não conjugada, a lesão genética mais comum parece ser a inserção de duas bases na região promotora do gene UGTlAl. Como resultado, observam-se diminuição das taxas de transcrição (Maruo, 2004; Kraemer, 2002) e atividade enzimática global reduzida (para aproximadamente 300/o do valor normal). Na síndrome de Crigler-Najjar, mais grave e caracterizada por elevados níveis séricos 309 de bilirrubina não conjugada, são detectadas mutações múltiplas nesse mesmo gene, incluindo frame shifts (mutações genéticas que resultam na modificação das bases do mRNA, tornando-o sem registro) nas regi- ões de leitura, inserção de códons de parada e substituições de amino- ácidos críticos. Todas essas modificações dão origem a um espectro de proteínas não funcionais, cuja perda funcional varia de discreta a total (Kraemer, 2002). Na síndrome de Gilbert, que acomete uma parcela significativa da população (3 a 5%), embora seja necessário, o defeito genético não é suficiente para causar a doença. Em um estudo realizado por Persico et al. (1999), constatou-se que um percentual significativo de indivíduos do sexo masculino com esse defeito apresentavam hiperbilirrubinemia, enquanto nenhuma das mulheres com o déficit enzimático apresentou elevação dos níveis séricos de bilirrubina (Bosma, 1995). Em alguns pacientes com síndrome de Gilbert, observou-se que a taxa de capta- ção de ânions orgânicos exibia uma correlação negativa com os níveis séricos de bilirrubina (Persico, 1999). Desse modo, foi sugerido que um defeito adicional poderia estar presente e ser o responsável pela hiperbi- lirrubinemia, a qual poderia estar relacionada a um déficit de transpor- te na membrana sinusoidal do hepatócito. Nessa condição, é típico o conteúdo de bilirrubina total - praticamente constituído da forma não conjugada- estar elevado (2 a 3 mg/dL). Tais níveis podem aumentar ainda mais durante o jejum, contudo raramente ultrapassam 5 mg/dL. Uma vez que ocorre difusão passiva da bilirrubina dentro dos hepató- citos, essa condição não costuma ser grave e pode resultar em elevações discretas dos níveis de bilirrubina, como aquelas que são observadas na anemia hemolítica, conforme foi descrito. A síndrome de Gilbert talvez tenha sido superdiagnosticada, pois seu diagnóstico é mais frequente em adultos jovens com idade entre 20 e 30 anos. Entretanto, o intervalo de valores normais de bilirrubina é dependente da idade; e, de fato, os valores máximos são detectados em adolescentes e adultos jovens (Rosenthal, 1984). Essa característi- ca será discutida adiante. Nas formas mais graves da síndrome de Crigler-Najjar, ou seja, na doença de tipo 1 com perda da função proteica determinada por homozigose, a hiperbilirrubinemia não conjugada torna-se marcante. Os níveis de bilirrubina são quase sempre maiores que 5 mg/dL e causam icterícia, mas podem ultrapassar 20 mg/dL. Bebês afetados desenvolvem uma severa hiperbilirrubinemia que, tipicamente, leva ao kernicterus (icterícia nuclear) e à deposição de bilirrubina no cére- bro, afetando, em particular, os gânglios basais e principalmente o núcleo lenticular. Como resultado, ocorre disfunção motora severa e retardamento. Na doença de tipo li, menos grave, a atividade enzi- mática encontra-se reduzida em cerca de 10% da atividade normal, e a sobrevivência até a idade adulta é uma possibilidade (Berk, 1994 c). O kemicterus transforma-se em uma ameaça real quando os níveis de bilirrubina excedem 20 mg/dL. É essencial tratar com fototerapia os bebês que apresentam essa condição, como já discutido, a fim de promover a excreção da bilirrubina não conjugada. Causas da elevação dos níveis séricos de bilirrubina conjugada Déficits de excreção: síndrome de Dubin-Johnson . Em outro erro inato do metabolismo, denominado Síndrome de Dubin-Johnson, há um bloqueio da excreção de bilirrubina no interior dos canalículos em decorrência de defeitos no transportador de ânions orgânicos multies- pecífico canalicular ATP-binding cassette (ABC), o MRP2/cMOAT/ ABCC2 (Paulusma, 1997; Tsujii, 1999; Gottesman, 2001). Essa proteína integra uma familia de aproximadamente 100 proteínas transportado- ras diferentes, que compartilham homologia na região ABC. Essas pro- teínas contêm domínios transmembrana que estão envolvidos no reco- nhecimento de substratos, os quais são transportados através, dentro e fora das membranas celulares, e incluem proteínas relacionadas à resis- tência farmacológica múltipla (RFM) a agentes quimioterápicos utili- zados na terapia do câncer. Alguns dos membros dessa família utilizam ABCs para regular canais iônicos. Várias doenças genéticas resultam de mutações envolvendo os transportadores, entre as quais estão síndro- me de Dubin-Johnson, fibrose cística, degeneração macular associada à idade, doença de Tangier e colestase intra-hepática familiar progressiva (Gottesman, 2001). C1:l u ·- ·- C1:l > <( ,.. N o ...J ::::> ,l- o.. 6 310 A síndrome de Dubin-Johnson está associada ao aumento dos níveis plasmáticos de bilirrubina conjugada, tipicamente acompanhado de icterícia branda (bilirrubina total igual a 2 a 5 mg/dL) e intensa pigmen- tação escura do fígado, decorrente do acúmulo de lipofuscina. Assim, a bilirrubina conjugada se acumula junto ao hepatócito e, eventualmente, difunde-se de volta para a circulação, sendo detectada no soro. Esse erro inato por vezes é confundido com a síndrome de Rotor, cuja origem pode ser viral e também apresenta um bloqueio da excreção da bilirru- bina conjugada, embora a pigmentação hepática esteja ausente (Berk, 1994 d). Em tais circunstâncias, a biópsia hepática muitas vezes revela a presença de corpos de inclusão citosólicos nos hepatócitos. Obstrução biliar. Em adultos, a colelitíase é a causa mais comum de hiperbilirrubinemia. Essa condição resulta da presença de cálculos biliares (compostos tanto de bilirrubina como de colesterol), mais frequentemente no dueto biliar comum (coledocolitíase). Na maio- ria das vezes, os pacientes com essa condição são mulheres bran- cas que deram à luz no início da meia-idade (o que deu origem à semi-mnemônica ''fair, fecund, fortyish female", mulher clara, fecunda e quarentona). A obstrução biliar decorrente da colelitíase resulta na elevação dos níveis de bilirrubina total, com mais de 90o/o de bilirrubi- na direta. Em mais de 90% desses pacientes, observa-se um aumento concomitante dos níveis de ALP, os quais são variáveis e frequente- mente superiores a 300 UI/L. Condições inflamatórias envolvendo o trato biliar, como a colan- gite ascendente, também resultam em elevação dos níveis séricos de bilirrubina direta e ALP, como será discutido adiante. Os níveis ele- vados de bilirrubina direta muitas vezes excedem 5 mg/dL. Na sepse causada por bactérias Gram-negativas, pode haver uma condição semelhante a uma inflamação branda no trato biliar e, como resulta- do, ocorrem aumentos discretos dos níveis de bilirrubina direta de 2 a 3 mg/dL. Há também uma elevação concomitante da concentração de ALP, que atinge valores de 200 a 300 UI/L. Na hepatite, em que ocorre destruição tóxica dos hepatócitos de origem viral, química ou traumática, a necrose focal e/ou danos celu- lares resultam no bloqueio tanto da conjugação da bilirrubina como da excreção de bilirrubina conjugada. Assim, verifica-se uma elevação dos níveis de bilirrubina tanto direta como indireta. Os níveis séri- cos de bilirrubina são variáveis, dependendo do grau de severidade da infecção e da extensão da doença. Na hepatite viral, como a hepatite B, conforme discutido adiante, os níveis séricos de bilirrubinamuitas vezes chegam a cerca de 5 a 1 O mg/ dL ou mais. A parte da doença hepática, elevações da concentração de bilirru- bina conjugada podem ser detectadas em poucas doenças. Condições como septicemia e nutrição parenteral total, além de certos fármacos, como os andrógenos, costumam induzir aumento dos níveis de bilir- rubina conjugada, no entanto os mecanismos envolvidos permane- cem desconhecidos (Zimmerman, 1979). O jejum provoca aumento da concentração de bilirrubina não conjugada em indivíduos nor- mais, porém esse efeito é mais intenso na síndrome de Gilbert. Testes laboratoriais para bilirrubina A bilirrubina é tipicamente quantificada com ácido sulfanílico dia- zotizado, que forma um conjugado de composto azo com os anéis porfirínicos da bilirrubina, resultando em produtos de reação que absorvem fortemente a 540 nm. Como a bilirrubina não conjugada reage lentamente, substâncias aceleradoras, como a cafeína ou o meta- nol, são empregadas para determinar o conteúdo de bilirrubina total. A deleção desses aceleradores permite a quantificação da bilirrubina de reação direta ou bilirrubina direta. Até o início dos anos 1980, aceitava-se que a bilirrubina direta era igual à bilirrubina conjugada. A introdução da tecnologia do esfrega- ço seco, empregando espectrofotometria diferencial para quantificar separadamente a bilirrubina conjugada e a não conjugada, conduziu à constatação de que a soma dessas duas entidades não correspondia ao conteúdo de bilirrubina total e à caracterização da bilirrubina ~. Aproximadamente 70 a 80°/o da bilirrubina conjugada e da bilirrubi- na ~, além de um pequeno percentual de bilirrubina não conjugada, é quantificada por meio do ensaio de bilirrubina direta (Lo, 1983; Doumas, 1991). Embora existam bons dados sustentando a determi- nação dos níveis de bilirrubina conjugada em vez de sua estimação a partir da bilirrubina direta (Arvan, 1985; Doumas, 1987), o ensaio da bilirrubina direta é ainda amplamente empregado. A acurácia desse ensaio depende do manuseio da amostra e da composição do reagen- te. A exposição prolongada à luz provoca fotoisomeração e aumenta a concentração de bilirrubina de reação direta (Ihara, 1997). O uso de agentes umidificadores ou de tampões com pH incorreto aumenta a quantidade de bilirrubina não conjugada detectada como bilirrubina direta (Doumas, 1991). Tipicamente, a concentração de bilirrubina direta deve ser de O a 0,1 mg/dL em indivíduos normais, sendo raro detectar valores iguais a 0,2 mg/dL na ausência de doença envolvendo o fígado ou o trato biliar. Os valores de referência para bilirrubina total variam conforme a idade e o sexo. Os níveis dessa substância propriamente chegam ao pico próximo aos 14 a 18 anos de idade e, ao redor dos 25 anos, caem até atingir os níveis estáveis detectados nos indivíduos adultos (Rosenthal, 1983; Notter, 1985; Zucker, 2004). Homens apresentam valores mais altos que as mulheres, seja qual for a idade do indiví- duo (Rosenthal, 1983; Notter, 1985; Carmel, 1985; Dufour, 1998 a; Zucker, 2004). O exercício extenuante causa um aumento significa- tivo dos valores de bilirrubina, em comparação àqueles observados em indivíduos sedentários ou que praticam exercícios físicos de forma crônica (Dufour, 1998 b). Indivíduos afro-americanos apresentam níveis de bilirrubina significativamente mais baixo que indivíduos de outros grupos étnicos. Outros testes metabólicos A amônia é metabolizada exclusivamente no fígado. A amônia deri- va principalmente do metabolismo de aminoácidos e ácidos nuclei- cos. Uma parte é também produzida em certas reações metabólicas, como na que envolve a ação da enzima glutaminase sobre a glutami- na, resultando na produção de ácido glutâmico e amônia. Quando isso ocorre, a amônia pode ser metabolizada somente no fígado, pois esse órgão é o único que contém as enzimas essenciais ao ciclo de Krebs-Henseleit ou ciclo da ureia. Ao final desse processo, a amônia (tóxica) é convertida em ureia (não tóxica), e esta é excre- tada. Nesse ciclo, amônia, carbamoil fosfato sintetase condensada com C02 e ATP atuam na formação de fosfato de carbamoil que, na etapa determinante da velocidade, promove a "carboxamidação" do grupo ~-amino da ornitina para formar citrulina com auxilio da enzima orn itina carbamoiltransferase (OCT), uma enzima que é exclusivamente hepática. A deficiência congênita dessa enzima ou de outras enzimas que participam do ciclo da ureia leva ao aumen- to dos níveis de amônia no soro e no líquido cerebrospinal (LCE) (Batshaw, 1994). Uma característica diferencial do tecido hepático é sua capacidade de regeneração. Para que a função hepática seja perdida, é preciso que mais de 800/o do fígado seja destruído. Se a maior parte do órgão for destruída em decorrência de condições como a cirrose (Stahl, 1963) ou, menos comumente, insuficiência hepática aguda fulminante, incluindo a síndrome de Reye (Heubi, 1984; Sunheimer, 1994), as enzimas do ciclo da ureia deixam de estar presentes. Em consequên- cia, formam-se acúmulos de amônia tóxica e de alguns aminoácidos intermediários desse ciclo, como a arginina, cujos efeitos são conhe- cidamente neurotóxicos. O resultado é o aumento da concentração de amônia e desses aminoácidos intermediários na circulação e no sistema nervoso central (SNC), dando origem à encefalopatia hepá- tica. Além disso, na maioria dos pacientes cirróticos, observa-se uma derivação portossistêmica intra-hepática que faz a amônia se desviar do fígado e ser detectada em elevada concentração no soro. Os altos níveis séricos de amônia, portanto, muitas vezes apontam a existência de alguma forma de insuficiência hepática, embora outras condições também possam induzi-los. Em pacientes com cirrose ou insuficiência hepática fulminante, há certa controvérsia com relação a ser a própria amônia a causado- ra da encefalopatia hepática. É possível que essa doença seja causada por outras toxinas, as quais também se acumulam em decorrência da ausência de destoxificação hepática. Um dos argumentos utiliza- dos com frequência é a inexistência de uma correlação entre o grau de severidade da encefalopatia e a concentração sérica de amônia (Lewis, 2003). Como contra-argumento, afirma-se que, embora os níveis venosos de amônia não se correlacionem com o grau de encefalopatia (Stahl, 1963), os níveis arteriais de amônia geralmente apresentam correlação com a gravidade da doença. Além disso, em pacientes com cirrose ou insuficiência hepática fulminante, a redu- ção dos níveis séricos de am ônia invariavelmente diminui o grau de severidade da encefalopatia (Pincus, 1991). Um importante mecanis- mo pelo qual a amônia pode causar toxicidade ao SNC é por meio da capacidade de reduzir a concentração de ácido y-aminobutírico (GABA, gama-aminobutyric acid), um neurotransmissor criticamente importante do SNC. Essa redução se dá pela reação da amônia com o ácido glutâmico, com formação de glutamina via reversão da reação catalisada pela glutaminase (Butterworth, 1987). O processo resulta na depleção do ácido glutâmico no SNC. Entretanto, como o GABA é formado diretamente a partir da descarboxilação do ácido glutâmico, seus níveis acabam diminuindo e acarretando efeitos potencialmente sérios sobre a neurotransmissão. Uma vez que amônia provoca acú- mulo de glutamina no SNC, foi sugerido que - ao menos na hipera- moninemia induzida por ácido valproico - os níveis desse metabólito no LCE podem ser utilizados para diagnóstico e monitoramento da encefalopatia hepática. Os elevados níveis séricos de amônia detectados na encefalopatia hepática são mais comumente reduzidos pela lactulose, que é um agente metabolizado a ácido lático por bactérias intestinais específi- cas. O ácido produzido no lúmen intestinal captura a amônia como íon amónio. Este é incapaz de se difundir através das membranas intestinais e, por esse motivo, acaba sendo excretado. No intestino, as bactérias produtoras de amônia sãoremovidas pelo tratamento com antibióticos, como a neomicina. Ensaios para am ônia. A amônia é tipicamente quantificada por meio de ensaios enzimáticos, utilizando glutamato desidrogenase. Essa enzi- ma catalisa a reação do a-cetoglutarato com a amônia para formar glu- tamato, tendo a oxidação de NADPH a NADP como indicador (dimi- nuição da absorbância a 340 nm). A amônia também é quantificada pelo método do esfregaço seco, utilizando tampões de pH alcalino para converter todos os íons amónio em gás amônia e azul de bromofenol como indicador da reação (Huizenga, 1994). Sendo a amônia um pro- duto do metabolismo celular, os métodos empregados na coleta e no transporte da amostra são críticos na prevenção de artefatos que levem à detecção de níveis falsamente elevados. O sangue arterial é a amos- tra preferida para quantificação da amônia. Embora o sangue venoso não seja recomendado, nos casos em que for utilizado, é preciso redu- zir ao mínimo o uso de torniquetes, bem como evitar cerrar e relaxar o punho durante a coleta. As amostras devem ser mantidas em água gelada até o momento da separação do componente celular do plasma (Howanitz, 1984; da Fonseca-Wollheim, 1990). Lipídeos Colesterol e outros lipídeos ( Cap. 17). Sendo o fígado essencial à síntese das lipoproteínas e às interconversões, os distúrbios hepáti- cos muitas vezes desequilibram o metabolismo lipoproteico. Embora nenhuma anomalia desse tipo seja empregada no diagnóstico de patologias hepáticas, é importante reconhecer que podem resultar de doenças hepáticas. Nos casos de lesão hepática severa, entre os quais a cirrose, tais anormalidades incluem uma redução da fração HDL, em particular de HDL3 (e raramente de HDL2), bem como alteração da distribuição de outras lipoproteínas, decorrente, em parte, da defici- ência das seguintes lecitinas: colesterol aciltransferase (LCAT, a enzi- ma que esterifica o colesterol) e lipoproteína lipases. Como resulta- do, o indivíduo afetado apresenta hipertrigliceridemia (níveis de TGs em torno de 250 a 500 mg/dL). Além disso, a diminuição da síntese de LCAT e das lipoproteínas lipases provoca aumento dos níveis de colesterol não esterificado no sangue e nas frações de HDL, aumento dos níveis de fosfolipídeos (incluindo lecitinas) no sangue e na fração VLDL, bem como aumento da concentração sérica de TGs. Em ter- mos globais, o padrão lipoproteico resultante é o mesmo da conheci- da ~-lipoproteína, cuja migração é anormal, característico da hiperli- poproteinemia de tipo III (Cap. 17). Todavia, em pacientes cirróticos desnutridos, apesar das deficiências enzimáticas críticas, podem ser detectados baixos níveis de colesterol ( < 100 mg/dL). Ao contrário, na lesão hepática induzida por álcool, observa-se um aumento da expressão de apoA-I induzido pelo álcool. Assim, se o paciente continuar consumindo essa substância, poderá apresentar conteúdo de H DL (em especial, a HDL3) aumentado. Como na cirrose há diminuição dos níveis de apoA-I, os níveis séri- 311 cos dessa proteína têm sido utilizados para diagnosticar a doença pelo método do índice de PGA da atividade da transferase (Teare, 1993). Trata-se de uma combinação da proteína apoA-I com a atividade de y-glutamil transferase (discutida adiante), a qual aumenta, e o tempo de protrombina, o qual também aumenta (índice PGA). Esse índice é dife- rente em casos de hepatite alcoólica e, portanto, permite distinguir as duas condições eliminando a necessidade de realizar biópsia hepática. Na colestase, a regurgitação do conteúdo biliar para dentro da cir- culação sanguínea resulta em acúmulo de lipoproteína X (LpX), já discutido no Capítulo 17, e elevação dos níveis de lipídeos biliares. Tendo em vista que a LpX transporta alta concentração de colesterol não esterificado, os níveis séricos de colesterol podem se tornar acen- tuadamente elevados (Turchin, 2005). Sais biliares. Os sais biliares são produtos do metabolismo do coleste- rol e facilitam a absorção de gorduras no intestino. São armazenados na vesícula biliar e liberados no intestino após as refeições, por meio da contração da vesícula mediada pela colecistoquinina. Embora seja incomum usá-los no diagnóstico de anomalias da função hepática, podem ser empregados no diagnóstico da colestase por serem impor- tantes constituintes de uma quantidade substancial da bile na excre- ção da bilirrubina. Do mesmo modo, na obstrução biliar severa, o acúmulo de sais biliares no soro causa uma doença sintomática que se apresenta como uma coceira intratável, ainda que existam contro- vérsias (Jones, 1999). Os sais biliares primários - colato e quenodeo- xicolato - são produzidos no fígado. Sua excreção se dá pelos sistemas biliar e êntero-hepático, além do trato intestinal, onde são metabo- lizados pelas bactérias locais e produzem os sais biliares secundários (i. e., litocolato, deoxicolato e ursodeoxicolato) (Carey, 1988) por 7-a-desidroxilação bacteriana no lúmen intestinal. Sendo um produ- to terminal do metabolismo dos sais biliares no homem, o ursodeo- xicolato é produzido por isomerização dos sais biliares secundários e tem sido empregado com fins terapêuticos nas doenças colestáticas (Rost, 2004). No sistema microssomal (discutido anteriormente), os sais biliares são conjugados em glicina e taurina, além de também serem sulfatados e submetidos à glicuronidação. A conjugação dos sais biliares em taurina e sulfatos aumenta com o grau de severidade da colestase em condições que provocam obstrução do escoamento da bile. A recirculação dos sais biliares no fígado se dá por reabsorção a partir do íleo terminal, onde quase todo o deoxicolato e cerca de 75°/o do quenodeoxicolato são reabsorvidos. Na cirrose, ocorre uma dimi- nuição desigual dos níveis de ácido cólico e da proporção entre sais biliares primários e secundários. Diante da colestase, não há forma- ção de sais biliares secundários e, assim, a proporção entre sais biliares primários e secundários aumenta acentuadamente. Em pacientes normais, a depuração renal dos sais biliares é negli- gível. Nos pacientes com colestase, por outro lado, ocorre elevação da excreção renal desses sais, principalmente na forma de sulfatos e glicuronídeos. Sais biliares de jejum normais podem excluir a doen- ça do parênquima hepático em pacientes com síndrome de Gilbert (Vierling, 1982), anteriormente discutida. Do mesmo modo, também é preciso considerar que a produção hepática defeituosa de sais bilia- res - os quais auxiliam na solubilização do conteúdo da bile - pode predispor à formação de bilirrubinato ou cálculos de colesterol, bem como obstrução biliar pós-hepática. A análise dos sais biliares deve ser feita em amostras de soro obti- das de pacientes em jejum, ou em amostras de soro coletadas em um intervalo de tempo específico após as refeições, uma vez que a ingestão de alimentos causa elevação significativa dos níveis de ácidos biliares. Os sais da bile podem ser quantificados por meio de muitas técnicas, contudo os métodos cromatográficos, em particular o HPLC (discuti- do no Cap. 23), são mais amplamente utilizados e permitem a separa- ção dos diferentes tipos de sais biliares. Metabolismo de fármacos Muitos xenobióticos, como os fármacos, são metabolizados no fígado, principalmente nos microssomos hepáticos. Existem séries complexas de reações, muitas das quais dependem do citocromo P450, que estão envolvidas na oxidação desses compostos. As iso- formas do citocromo P450 determinam se as substâncias exógenas específicas são ou não convertidas em metabólitos. Algumas dessas C1:l u ·- ·- C1:l > <( ,.. N o ...J ::::> ,l- o.. 6 312 isoformas são CYPlA e CYP2B (citocromo P450 lA e 2B, respecti- vamente). Com frequência, a conversão dos xenobióticos em meta- bólitos por meio desse sistema envolve duas fases: as reações da fase I promovem oxidação/hidroxilação, enquanto as reações da fase II conjugam o metabólito (ou composto parental) a compostos polares, comoácido glicurônico, glicina, taurina e sulfato. Na doença hepática mais grave, em que há dano microssomal, essa capacidade de meta- bolização dos agentes xenobióticos está comprometida. Dessa forma, a capacidade dos hepatócitos de metabolizar fármacos pode ser utili- zada para determinar o grau de dano hepático. Nesse caso, em geral é administrada uma dose conhecida de fármaco com marcação radioa- tiva (usualmente, 13C) e quantifica-se o 13C02 exalato pelo indivíduo no decorrer de uma respiração. Duas categorias de testes de respiração foram desenvolvidas com base na etapa limitante da taxa de metabo- lismo. No primeiro grupo - que inclui fármacos como aminopirina, cafeína e diazepam - todos são metabolizados a taxas que indepen- dem do fluxo de sangue para o fígado, mas que dependem apenas da atividade enzimática de diferentes citocromos P450 (p. ex., CYPlA). O segundo grupo é composto por fármacos como metacetina, fenace- tina e eritromicina, cujas taxas de metabolização são dependentes da velocidade do fluxo sanguíneo, isto é, suas taxas de metabolização são mais rápidas que suas taxas de distribuição para o fígado. Esses tipos de testes dinâmicos aparentemente não são tão úteis no diagnóstico inicial da doença hepática. Em vez disso, são mais úteis para estimar a extensão do dano ao fígado diante de uma doença hepática conhe- cida (Nista, 2004). Uma interferência que complica a interpretação dos resultados de tais testes é a dependência da desmetilação da ami- nopirina (o grupo metil é oxidado a C02) contida na vitamina B12• Em casos de deficiência dessa vitamina, quantidades de 13C02 abaixo do normal são exaladas em decorrência dos baixos níveis de vitami- na, não necessariamente dano hepático. As taxas de metabolização da cafeína, em geral, diminuem com o avanço da idade, porém são aumentadas pelo tabagismo - achados estes que podem complicar a interpretação dos resultados. Funções sintét icas Síntese proteica O fígado é sítio de síntese da maioria das proteínas plasmáticas. (As principais exceções constituem as imunoglobulinas e o fator de von Willebrand). É no fígado que ocorre mais de 90o/o da síntese de todas as proteínas e 100% da síntese de albumina. Assim, uma des- truição extensa do tecido hepático resultará em baixos níveis séricos de proteína total e de albumina. Na cirrose, além da destruição dos hepatócitos, outra causa da diminuição da produção de proteínas é a hipertensão porta, que leva à diminuição da distribuição de aminoá- cidos para o fígado. Duas quantificações essenciais da função hepática são, portanto, a determinação dos níveis séricos de proteína total e de albumina. Todavia, é preciso lembrar que existem ainda outras causas importantes da queda desses parâmetros, as quais são doença renal, desnutrição, enteropatias perdedoras de proteína e, menos frequente- mente, doenças inflamatórias crônicas. Tais causas alternativas devem ser sempre consideradas ao avaliar o status funcional do fígado. Nas doenças hepáticas em que há lesão ou necrose disseminadas, como na insuficiência hepática fulminante e na cirrose, há uma queda dos níveis plasmáticos das proteínas sintetizadas no fígado. Desse modo, as proteínas cuja meia-vida é maior tendem a ter a concentra- ção diminuída mais lentamente. A meia-vida da albumina é de cerca de 20 dias, por isso seus níveis séricos caem mais devagar que os níveis das proteínas cujas meias-vidas são mais curtas. Entre as proteínas pro- duzidas no fígado que apresentam meia-vida curta estão o fator VII ( 4 a 6 horas), a transtiretina ( 1 a 2 dias) e a transferrina ( 6 dias). A determinação dos níveis séricos de proteína costuma ser basea- da no método do ácido biurético. Esse método reflete a capacidade de os grupos C=O do esqueleto peptídico das proteínas formarem complexos coloridos com o cobre e, então, apresentarem forte absor- bância a 540 nm. Alguns métodos empregam método que envolve a ligação a um corante, no qual as proteínas formam complexos com o azul de Coomassie. A albumina forma um complexo de cor única que se cora com verde de bromocresol e púrpura de bromocresol, de modo a apresentar absorbância máxima em comprimentos de onda discretamente diferentes e, assim, permitir a quantificação direta por espectrofotometria (Ihara, 1991). O intervalo de referência dos níveis séricos normais de proteína total geralmente são da ordem de 6 a 7 ,8 g/dL. Ao menos 60% desse conteúdo deve ser constituído de albumi- na, cuja faixa de normalidade é de cerca de 3,5 a 5 g/dL. A eletroforese de proteínas séricas e a quantificação com imunoglo- bulinas (Igs) podem revelar alterações características da doença hepá- tica, as quais são discutidas no Capítulo 19. Na cirrose, é típico que a albumina esteja significativamente diminuída, assim como as bandas a.1, <X.z e ~ (principalmente, transferrina). Entretanto, há sempre um aumento policlonal da concentração de Igs que produz o característico padrão de "ponte" ~-y, conforme discutido no Capítulo 19. Na hepati- te autoimune, a diminuição da concentração de albumina é tipicamen- te acompanhada de um aumento policlonal marcante da concentração de IgG. A cirrose biliar primária é acompanhada de um aumento poli- clonal da concentração de IgM. Albumina A albumina é a principal proteína produzida pelo fígado. A síntese hepática é aumentada pela diminuição da pressão oncótica do plasma, sendo diminuída por ação das citocinas (principalmente, interleu- cina-6). Enquanto a síntese normal de albumina é da ordem de 120 mg/kg/dia, a taxa de síntese pode se tornar duas vezes maior diante de uma pressão oncótica reduzida. Uma diminuição da concentração de albumina constitui um dos principais aspectos prognósticos de pacientes com cirrose. Sua quantificação foi discutida anteriormente e é detalhada no Capítulo 19. A albumina é também uma proteína de transporte para muitas substâncias, tanto endógenas (p. ex., bilirrubi- na e hormônio da tireoide) como exógenas (p. ex., fármacos). Baixos níveis séricos de albumina decorrentes de doença hepática são quase sempre causados pela destruição massiva do tecido hepático, sendo detectados primariamente na cirrose e, com mais frequência, secunda- riamente ao alcoolismo. A queda da concentração de albumina ocorre em paralelo à queda do conteúdo de proteína total. Como a albumina é o coloide intravascular osmoticamente ativo, a hipoalbuminemia muitas vezes resulta em edema. Na cirrose, em que a resistência ao fluxo sanguíneo está maior nos sinusoides e causa hipertensão porta, o efeito combinado da elevada pressão hidrostática no sistema porta e da reduzida pressão osmótica do coloide resulta na formação de ascite - um achado comum nessa doença. Outras proteínas séricas Enquanto a maioria das proteínas discutidas no Capítulo 19 é pro- duzida no fígado, duas delas possuem especial importância na detec- ção de distúrbios hepáticos. a.1-antitripsina (AAT). A a.1-antitripsina - a a.1-globulina mais abundante - é o principal inibidor de proteases existente no plasma. Embora seu nome indique a inibição da tripsina, essa proteína tam- bém inibe outras serina-proteases, como a elastina. A AAT é codifica- da pelo gene Pi, situado no cromossomo 14. Existem diversas varian- tes genéticas que são produzidas por mutações pontuais, as quais levam a substituições de um único aminoácido (Chappell, 2004). A variante mais comum (M) está associada a níveis séricos normais de AAT. A mutação presente nas variantes Se Z impedem a glicação nor- mal da proteína, levando ao acúmulo de AAT nos hepatócitos com redução dos níveis plasmáticos dessa proteína (Propst, 1994). Nos Estados Unidos, o genótipo esmagador é o PiMM, em que Pi consti- tui o inibidor de protease. Todos os demais genótipos (Pizz, Piss, Pi5z, PiMZ e PiM5) apresentam atividade de antiprotease mensurável, com exceção do raro genótipo nulo Pi-. Se a atividade de antiprotease do fenótipo MM é adotada como referencial, então a atividade determi-nada por ZZ será de 15%, a de SS será de 60°/o, a de MZ será de 57,5% e a de MS será de 80%. Adultos com genótipo Pizz são mais propen- sos ao desenvolvimento de enfisemas com relativa prematuridade, em consequência de ausência de inibição da atividade da tripsina sobre a elastina da parede alveolar. Esses pacientes Pizz tendem a acumular proteína Z nos hepatócitos periportais, onde se formam corpúscu- los citoplasmáticos, sendo que também pode haver desenvolvimento de hepatite neonatal. Curiosamente, embora bebês possam morrer em decorrência de uma lesão hepática, essa condição se resolve na maioria dos casos e progride para cirrose em apenas 30/o dos bebês afe- tados (Sveger, 1988). Há uma probabilidade maior de lesão hepática em pacientes adultos heterozigotos ou homozigotos para a variante Z da AAT, possivelmente devido ao acúmulo de AAT no retículo endo- plasmático com consequente indução de autofagia e apoptose nos hepatócitos (Teckman, 2004). A fenotipagem de AAT pode ser reali- zada pela focalização isoelétrica (Propst, 1994). Sendo um reagente de fase aguda, os níveis séricos dessa enzima podem permanecer normais em indivíduos heterozigotos MZ. Ceruloplasmina. A ceruloplasmina é a principal proteína sérica con- tendo cobre, sendo também a enzima que circula em maior concentra- ção. É uma ferroxidase, essencial à conversão do ferro ao estado férrico que possibilita a ligação à transferrina. Níveis baixos de ceruloplasmina são detectados na doença de Wilson, um raro distúrbio congênito ( 1 a cada 30.000 indivíduos) associado a uma mutação - entre várias possí- veis - no gene localizado no cromossomo 13, que codifica uma adeno- sina trifosfatase celular (ATPase) denominada ATP7B. Essa enzima é um novo membro da família de ATPases de tipo p transportadoras de cátions (Buli, 1993). É uma proteína expressa principalmente no fígado que promove a secreção de cobre no plasma, acoplada à síntese de ceru- loplasmina, bem como no trato biliar. Foram detectadas mais de 200 mutações do gene envolvido na doença de Wilson, as quais resultam no comprometimento da função da ATP7B e em acúmulo intracelular de cobre (Langner, 2004). Nos hepatócitos, o excesso de cobre no meio intracelular acaba se depositando nos lisossomos e induzindo reações com radicais livres, incluindo peroxidação lipídica e instabilidade da membrana. O dano hepático resultante pode levar à hepatite crônica ativa, à cirrose ou, mais raramente, à insuficiência hepática fulminante. Além disso, esteatose e inflamação também podem ocorrer como resul- tado dessa condição. O cobre se deposita no SNC, em especial no núcleo lenticular dos gânglios basais, causando doença neuropsiquiátrica. Pode, ainda, depositar-se na borda da íris, onde forma os conhecidos anéis de Keyser-Fleischer. O diagnóstico da doença de Wilson é feito com base em achados clínicos e laboratoriais típicos, tais como níveis baixos de ceruloplas- mina no soro - que podem ser quantificados tanto por imunoensaio como por ensaio enzimático -, aumento da excreção urinária de cobre e aumento do conteúdo hepático de cobre. Enquanto a ceru- loplasmina encontra-se caracteristicamente diminuída na doença de Wilson, fatores que provocam o aumento de sua síntese (p. ex., cito- cinas, gravidez, estrógenos) podem fazer com que os níveis da prote- ína permaneçam normais em até 150/o dos pacientes, de uma forma global, bem como em 35% dos pacientes que apresentam manifesta- ções hepáticas da doença de Wilson (Dufour, 1997), particularmente hepatite wilsoniana aguda (Berman, 1991). O teste genético é o modo mais confiável de estabelecer o diagnóstico, apesar da dificuldade para realizá-lo, uma vez que foram identificadas mais de 200 muta- ções causadoras da doença. Fatores de coagulação Como já mencionado, à exceção do fator de von Willebrand, que é produzido por células endoteliais e megacariócitos, as prote- ínas da coagulação são sintetizadas no fígado. Além disso, os inibi- dores da coagulação (como antitrombina Ili, a 2-macroglobulina, a 1-antitripsina, inibidor de esterase Cl e proteína C) também são sintetizados nesse órgão. Além disso, os produtos da degradação da fibrina são catabolisados no fígado. A diminuição da síntese de anti- trombina III em pacientes cirróticos e com hepatite pode ser causada pelo aumento do consumo ou por uma alteração do fluxo transca- pilar (Kelly, 1987). A coagulopatia mais comumente observada na insuficiência hepática (i. e., cirrose e insuficiência hepática fulmi- nante aguda) é a coagulopatia intravascular disseminada (CID). Esse assunto é discutido no Capítulo 8 e ao longo da Parte V deste livro. Essa condição é caracterizada pelo aumento do consumo dos fatores de coagulação e das plaquetas, causando trombocitopenia e elevações dos tempos de protrombina (PT) e de tromboplastina parcial (PTT). O mecanismo postulado foi a diminuição da síntese dos fatores de inibição da coagulação, a diminuição da depuração dos fatores de coagulação ativados ou a liberação de tromboplastina tecidual pelos hepatócitos (Kelly, 1986). A quebra dos produtos da fibrina, detectada na CID, foi encontrada em até 80% dos pacientes com doença hepá- tica que não apresentavam evidências de fibrinólise (Van de Water, 313 1986). É importante que o diagnóstico da CID seja confirmado pela detecção da elevação dos níveis sanguíneos de D-dímero, como des- crito na seção que aborda a hemostasia e a trombose (Parte V). Em alguns casos de insuficiência hepática, as contagens plaquetárias estão diminuídas em decorrência do sequestro em um baço aumentado, em consequência de hepatoesplenomegalia. Essa condição, combinada à elevação de PT e PTT causada pela síntese diminuída dos fatores de coagulação, pode estar mascarada e se apresentar como CID. Em tais circunstâncias, os níveis de D-dímero não se encontram elevados e, portanto, excluem esse diagnóstico. Conforme descrito na Parte V, o teste de PT e a determinação asso- ciada da proporção de sensibilidade internacional talvez constituam o teste laboratorial requisitado com maior frequência para detecção de anormalidades da coagulação associadas ao fígado. O PT mede a efi- cácia do sistema de coagulação extrínseco em que o fator VII é ativado pelo fator tecidual. Uma vez que o fator VII é sintetizado exclusiva- mente no fígado, sua quantificação pode ser empregada para avaliar o status da função hepática. Muitas vezes, o PT é computado como INR ( international normalized ratio) - a proporção padronizada inter- nacional que tenta padronizar todas as quantificações de PT em fun- ção do método considerado "padrão-ouro" para determinação desse parâmetro, utilizando o índice de sensibilidade internacional (ISI), conforme descrito na Parte V. Algumas ressalvas quanto à utilização do PT e do INR para avaliar a função hepática. Como PT e PTT determinam o status das cascatas de coagulação (extrínseca e intrínseca, respectivamente), quaisquer distúrbios da coagulação produzirão respostas anormais de PT e/ou PTT, independentemente da função hepática. Além disso, em pacien- tes com colestase (i. e., doença do trato biliar) sem nenhuma disfun- ção hepatocítica (p. ex., cirrose ou insuficiência hepática fulminante), a absorção intestinal de vitamina K lipossolúvel pode estar compro- metida, em razão dos baixos níveis de sais biliares que permitem seu transporte através da membrana. Uma vez que a biossíntese dos fato- res li, VII, IX e X pela via da carboxilação depende da vitamina K, anomalias envolvendo a coagulação são frequentes. Por esse motivo, em pacientes com colestase, é possível detectar níveis séricos normais das formas precursoras inativas desses fatores de coagulação, confor- me discutido adiante. A correção do PT pela administração de vita- mina K usualmente é viável quando o paciente com doença hepática colestática apresenta fator V normal. Da mesma forma, o uso de INR na avaliação da função hepática pode conduzir a resultados errôneos. Como discutidona Parte V, o INR se baseia nos valores de PT para pacientes tratados com coumadi- na (que bloqueia principalmente o sistema extrínseco). Sendo assim, sua adequação à avaliação de coagulopatias não induzidas por cou- madina tem sido questionada, especialmente diante da constatação de que o PT aumenta bem menos com um ISI menor em pacientes com doença hepática submetidos ao tratamento com coumadina (Kovacs, 1994; Ts'ao, 1994; Johnston, 1996; Robert, 1996). Os PTs são empregados no cálculo do escore MELD. O PT é parte integral do escore do modelo de doença hepática em estágio terminal (MELD, model for end-stage tiver disease) utilizado na avaliação da prio- ridade do transplante de fígado na doença hepática (Trotter, 2004). Esse escore é um número calculado com base nos valores de bilirrubina, creatinina e INR. Embora pareça predizer com acurácia a mortalida- de de 3 meses para pacientes que aguardam um transplante de fígado (Farnsworth, 2004), o escore deve ser utilizado com cautela, seja porque os intervalos de referência dos analitos diferem entre os laboratórios e, assim, dificultam sua padronização, seja por causa das ressalvas quanto ao uso dos valores de INR, como descrito anteriormente. Des-y-carboxiprotrombina (DCP) Os fatores de coagulação dependentes de vitamina K (II, VII, IX, X) são sintetizados no fígado e requerem uma modificação pós-tra- ducional mediada por essa vitamina (y-carboxilação de um deter- minado número de resíduos terminais de ácido glutâmico em ácido y-carboxiglutâmico). Tal modificação deve ocorrer antes da secreção no sangue, a qual é necessária à atividade funcional desses fatores na cascata de coagulação. O precursor não modificado da protrombina (DCP) é detectado em alta concentração no soro de pacientes com C1:l u ·- ·- C1:l > <( ,.. N o ...J ::::> ,l- o.. 6 314 carcinoma hepatocelular. O DCP é quantificado utilizando-se dois anticorpos monoclonais (19B7 e MU-3). A elevação dos níveis de DCP em tais pacientes é preditiva da diminuição do tempo de sobre- vida (Nagaoka, 2003). Entretanto, os ensaios para DCP não apre- sentam o mesmo uso geral da a-fetoproteína (discutido a seguir) no diagnóstico e acompanhamento dessa doença. Testes de lesão hepática Níveis de enzimas plasmáticas Como células de alta complexidade metabólica, os hepatócitos con- têm concentrações elevadas de inúmeras enzimas. Quando há uma lesão hepática, pode haver vazamento dessas enzimas para o plasma e, portanto, sua detecção é útil ao diagnóstico e monitoramento da lesão hepática. Embora tais enzimas sejam discutidas de modo mais comple- to no Capítulo 20, uma compreensão de sua localização celular e dos padrões de alterações enzimáticas torna-se indispensável ao entendi- mento dos achados associados a diversos tipos de doença hepática. Localização celular das enzimas Junto ao hepatócito, as enzimas mais comumente quantificadas são encontradas em locais específicos. O tipo de lesão hepática determi- na o padrão de alterações enzimáticas. A Figura 21.3 ilustra os locais onde são encontradas as enzimas hepatocíticas mais importantes. As enzimas citoplasmáticas são LDH, AST e ALT. As enzimas mitocon- driais, como a isozima mitocondrial da AST, são liberadas diante do dano à mitocôndria. Processos obstrutivos elevam os níveis das enzi- mas canaliculares, como ALP e GGT. Mecanismos de liberação de enzimas As enzimas são liberadas dos hepatócitos como resultado de lesões à membrana celular que causam diretamente a extrusão do conteú- do citoplasmático. Além disso, agentes como o etanol provocam a liberação de AST mitocondrial a partir dos hepatócitos, bem como sua expressão na superfície celular (Zhou, 1998 a). O acúmulo dos sais biliares com obstrução canalicular causa liberação de fragmen- tos de membrana que contêm enzimas ligadas (Schlaeger, 1982; Moss, 1997). Pode haver aumento da síntese de GGT e, em menor grau, de ALP com o uso de medicação indutora da síntese de enzi- mas microssomais, notavelmente etanol, fentoína e carbamazepina (Aldenhovel, 1988). Aminotransferases (transaminases). Nessa categoria, existem duas enzimas que possuem grande utilidade diagnóstica: AST - também conhecida como glutamato oxaloacetato transaminase sérica (SGOT, serum glutamate oxaloacetate transaminase) - e ALT- anteriormente denominada glutamato piruvato transaminase sérica (SGPT, serum glutamate pyruvate transaminase). Essas enzimas catalisam a transfe- rência reversível de um grupo amino de aspartato (AST) ou de alani- na (ALT) ao a-cetoglutarato para formar glutamato mais o cetoácido correspondente do aminoácido inicial (i. e., oxaloacetato ou piruvato, respectivamente). Ambas as enzimas requerem piridoxal fosfato (vita- mina B6) como cofator. Adotando a ALT como exemplo: a alanina reage com o piridoxal fosfato para formar piruvato e piridoxina. Esta, por sua vez, reage com a-cetoglutarato para formar glutamato mais piridoxal fosfato regenerado. No cerne dessas reações, reside o cofator piridoxal fosfato (vitami- na B6). Em muitos ensaios séricos para ALT e AST, considera-se que o soro do paciente forneça a devida complementação de piridoxal fosfato - uma circunstância que não se aplica. Ilustrando esse aspecto com um caso mais pungente: um paciente, sabidamente alcoólatra, foi admitido em um hospital com provável diagnóstico de hepatite alcoólica (con- dição pormenorizada adiante). Seu perfil bioquímico clínico obtido no momento da admissão hospitalar acusava níveis séricos normais a bai- xos de ALT e AST. Esse achado é incomum em casos de hepatite alco- ólica, uma vez que os níveis de ambas as enzimas encontram-se signi- ficativamente elevados, conforme já discutido, com a concentração de AST ainda mais alta que a de ALT. No decorrer das 24 horas seguintes, o paciente recebeu tratamento para essa condição e, aparentemente, apre- sentou melhora clínica. No entanto, a repetição do perfil de função hepá- tica apontou uma elevação marcante dos níveis de ambas as enzimas e ASTc e ALT e ALP e ASTm O GGT • • •••• •• • • ••• • •• • • • • • • Figura 21 .3 Localização das enzimas hepatocelulares. As principais enzimas hepatocelulares uti lizadas para fins diagnósticos localizam-se em vários sítios no interior dos hepatócitos e dão origem a diferentes padrões de liberação de enzimas associados a diferentes causas de lesão. A alanina aminotransferase (AL T) e a isozima citoplasmática da aspartato aminotransferase (ASTc) são encontradas primariamente no citosol. Diante de uma lesão na membrana, como ocorre na hepatite virai ou induzida por agentes químicos, essas enzimas são liberadas e entram nos sinusoides, elevando a atividade plasmática de AST e Al T. A enzima aspartato aminotransferase mitocondrial (ASTm) é liberada primariamente em caso de lesão mitocondrial, como aquela causada pelo etanol na hepatite alcoólica. A fosfatase alcalina (ALP) e a y-glutamil transferase (GGT) são encontradas primariamente na superfície canalicular do hepatócito. Na colestase, os ácidos biliares se acumulam e d issolvem os fragmentos de membrana, liberando no plasma as enzimas anteriormente ligadas. A GGT também é encontrada nos microssomos (anéis). Fármacos indutores de enzimas microssomais, como fenobarbita l e d ilantina, também podem induzir aumento da síntese e da atividade plasmática da GGT. (acima de 200 UI/L). Tais resultados deram lugar a um dilema diagnósti- co, o qual foi resolvido somente quando se percebeu que, como parte do protocolo para tratamento da hepatite alcoólica, o paciente havia rece- bido suplementos com vitaminas B6 e B12• Considerando que os ensaios para AL Te AST requerem, ambos, o fornecimento de vitamina B6 a par- tir do soro do paciente, e que o paciente alcoólatra apresentava defici- ência dessa vitamina (um achado comum entre alcoólatras), conclui-se que os ensaios detectaram níveis normais a baixos dessas enzimas em decorrência da falta de vitamina B6• Sob intervenção terapêutica,quando as vitaminas foram administradas, o paciente apresentou níveis séricos de vitamina B6 que permitiram a atividade enzimática total. Essa história clínica ilustra o papel central do piridoxal fosfato na catálise enzimática daAST e daALT, bem como a importância da compreensão da base bio- química dos ensaios enzimáticos. No sangue, a AST e a AL T apresentam meias-vidas de 17 e 4 7 horas, respectivamente, e valores máximos de referência em torno de 40 UI/L (ver no Cap. 20 a definição de unidades internacionais ou UI). A AST é encontrada tanto dentro como fora da mitocôndria, enquanto a ALT localiza-se no espaço extramitocondrial. A isozima da AST mitocondrial possui meia-vida de 87 horas (Panteghini, 1990). A AST encontra-se ubiquamente distribuída pelos tecidos corporais, mesmo no coração e nos músculos, enquanto a ALT é encontrada primaria- mente no fígado, ainda que quantidades significativas da enzima este- jam presentes nos rins. A AST citoplasmática total apresenta elevada atividade nos hepató- citos, cujo conteúdo de AST é aproximadamente 7.000 vezes superior ao do plasma. A AL T também é encontrada em grande concentração nos hepatócitos, onde seus níveis são cerca de 3.000 vezes mais altos que no plasma. Na deficiência de piridoxal fosfato, a síntese de ALT está comprometida. Um fenômeno similar ocorre na fibrose hepática e na cirrose. As alterações enzimáticas observadas na lesão hepática podem ser prontamente explicadas pelos diferentes níveis de atividade e meias-vidas das enzimas hepáticas. Na maioria das formas de lesão hepatocelular aguda, como a hepatite, os níveis de AST inicialmente se elevam mais que os de AST, em razão da maior atividade de AST nos hepatócitos. Em 24 a 48 horas, principalmente diante de um dano em curso, os níveis de ALT passam a ser maiores que os de AST, em decorrência de sua meia-vida maior. Uma exceção a essas observações ocorre na lesão hepática aguda induzida por álcool, como no caso da hepatite alcoólica. Estudos sugerem que o álcool induz dano mitocondrial, com consequente liberação de AST a partir das mitocôndrias. Essa AST, além de ser a forma predominante da enzima nos hepatócitos, possui meia-vida significativamente maior que a AST extramitocondrial e a ALT. Como resultado, os níveis de AST frequentemente se tornam maiores que os de AL T e produzem um quociente AL T / AST - também denominado proporção de DeRitis - igual a 3 a 4: 1 na doença hepática. Ainda há quem discorde de que a suspensão do consumo de álcool seja capaz de reduzir essa proporção. Em um estudo inicial, os níveis séricos de AST mitocondrial foram quantificados em pacientes cirróticos e não cirróticos que consumiam álcool de modo abusivo (Nalpas, 1986). Pacientes alcoólatras crônicos, independentemente da doença hepá- tica subjacente que apresentavam, demonstraram elevações mais consistentes dos níveis de AST mitocondrial que os demais pacientes. Esses valores duplicaram em mais de SOO/o dos pacientes que permane- ceram em abstinência por mais de 1 semana. Por outro lado, em estu- dos mais recentes envolvendo mais de 300 pacientes, descobriu-se que uma elevada proporção AST / AL T é sugestiva da existência de doença hepática alcoólica em estágio avançado (Nyblom, 2004). Também é importante notar que muitos indivíduos alcoólatras são deficientes em vitamina B6 e, em consequência, apresentam taxas diminuídas de síntese de ALT e supressão da atividade de ALT preexistente. Na lesão crônica do hepatócito, em especial na cirrose, os níveis de ALTelevam-se mais comumente que os deAST. Entretanto, à medida que a fibrose progride, é comum observar a queda da atividade dessa enzima, enquanto a proporção AST/ALT aumenta gradativamente. Desse modo, quando a cirrose se instala, os níveis de AST frequente- mente estão mais altos que os de ALT (Williams, 1988; Sheth, 1998). Contudo, no estágio final da cirrose, os níveis de ambas as enzimas, em geral, não estão elevados e podem mesmo ser baixos, em razão da massiva destruição tecidual. Na insuficiência hepática fulminante aguda, como se discute adiante e no Capítulo 8, os níveis séricos de ambas as aminotransferases encontram-se notavelmente elevados, de modo que a proporção AST:ALT muitas vezes é significativamente maior que 1 (Sunheimer, 1994). Em termos globais, a atividade da ALT é mais especifica para detec- tar a presença de uma doença hepática em pacientes não alcoólatras e assintomáticos. Elevações discretas são detectadas com frequência na hepatite C. A AST é utilizada para monitorar a terapia com fármacos potencialmente hepatotóxicos. A detecção de concentrações três ou mais vezes maiores que o limite normal máximo da enzima deve ser considerada uma indicação de que a terapia precisa ser suspendida. A elevação crônica das atividades das aminotransferases em pacien- tes assintomáticos pode ter várias causas, entre as quais consumo de álcool ou uso de medicação, hepatite viral crônica ou doença hepática gordurosa não alcoólica. A redução de peso pode diminuir os níveis de ALT nos pacientes com excesso de peso em que a concentração da enzima esteja elevada (Palmer, 1990). O ácido ursodeoxicólico abai- xa os níveis de ALT, bem como de GGT (ver adiante), quando estes encontram-se elevados em doadores de sangue (Bellentani, 1989). Ensaios para AST e AL T. Existem diversas variantes de ensaios para detecção dessas enzimas. Em uma delas, adiciona-se alanina para detecção de ALT ou aspartato para detectar AST, de modo a forçar o deslocamento da reação para a direita e a produção de glutamato. Em seguida, essa produção de glutamato é acoplada à adição da enzima glutamato desidrogenase (reação indicadora), resultando na forma- ção de a-cetoglutarato. Nessa reação, o NAD é convertido a NADH, e este é quantificado como um aumento da absorbância a 340 nm. A avaliação dessas reações não deve se estender por muito tempo, pois um dos substratos das enzimas, o a-cetoglutarato, é regenerado pela reação indicadora. Outra variante de ensaio para AST envolve o acoplamento do oxaloacetato (OAA), que se forma a partir do aspartato na reação, à malato desidrogenase. Essa enzima converte o OAA em malato e tam- bém NADH em NAD, cuja concentração é quantificada como uma diminuição da absorbância a 340 nm. No caso da ALT, a conversão 315 da alanina em piruvato permite o acoplamento ao complexo piruvato desidrogenase, onde o piruvato é convertido em acetil coenzima A e o NAD é convertido em NADH, cuja concentração pode ser diretamente medida como um aumento da absorbância a 340 nm. Como já mencio- nado, é essencial que o piridoxal fosfato esteja presente em quantidade suficiente para possibilitar a ocorrência dessas reações. Lactato desidrogenase. Conforme descrito no capítulo 20, essa enzima glicolítica citosólica catalisa a oxidação reversível do lactato em piruva- to. Existem cinco isozimas de LDH principais, as quais são constituí- das por dois tipos de tetrâmeros: H e M. O tetrâmero H apresenta alta afinidade pelo lactato, enquanto o tetrâmero M tem afinidade elevada pelo piruvato. Progressivamente, de HHHH para MMMM, as cinco isozimas possíveis identificadas são LDH1 a LDH5• LDH1 e LDH2 pre- dominam em músculo cardíaco, rim e eritrócitos. LDH4 e LDH5 são as principais isozimas encontradas no fígado e no músculo esquelético. O limite superior do intervalo de referência para a atividade da LDH sérica é de aproximadamente 150 UI/L (ver no Cap. 20 a definição de unida- des internacionais ou UI). Os níveis séricos de LDH se elevam na hepa- tite. Com frequência, essa elevação é passageira e os níveis da enzima já estão normalizados quando ocorre a manifestação clínica (Dufour, 1988 e; Fuchs, 1998; Singer, 1995), visto que as isozimas oriundas do fígado (LDH4 e LDH5) apresentam atividade relativamente baixa nos hepatócitos, em comparação à atividade detectada no plasma (cerca de 500 vezes maior), e meia-vida em torno de 4 a 6 horas. O aspecto mais importanteé o grande aumento dos níveis de LDH total, que chegam a ser> 500 UI/L, combinado à elevação significa- tiva da concentração de ALP (discutida adiante e no Cap. 20) a valo- res > 250 UI/L, na ausência de outras anomalias graves dos níveis das enzimas envolvidas na função hepática, especialmente AST e ALT. Tais aumentos seletivos muitas vezes acompanham lesões hepáticas extensas, como o carcinoma metastático, carcinoma hepatocelular primário, ou lesões benignas, como hemagiomas, mais raramente. A fonte de LDH, mais comumente LDH 5, é incerta, podendo ser tanto hepatócitos como tumores, ou ambos. A elevação dos níveis de ALP se deve ao bloqueio dos duetos e canalículos locais por massas pre- sentes no fígado, conforme discutido adiante. Os ensaios para LDH são descritos no Capítulo 20. Enzimas que refletem primariamente a lesão canalicular Conforme mostra a Figura 21.3, essas enzimas localizam-se predo- minantemente na membrana canalicular do hepatócito. São elas: ALP, GGT e 5' -NT. Contrastando com a atividade das enzimas citoplasmá- ticas, as atividades enzimáticas canaliculares junto aos hepatócitos são tipicamente baixas. Uma lesão focal afetando os hepatócitos raramen- te produz elevações significativas dos níveis de enzimas canaliculares. Fosfatase alcalina. A fosfatase alcalina está presente em diversos teci- dos, tais como fígado, ossos, rim, intestino e placenta. Cada um desses tecidos contém isozimas distintas que podem ser separadas por eletro- forese. O conteúdo de ALP total do soro encontra-se principalmente sob a forma não ligada e, em menor extensão, sob a forma complexada às lipoproteínas ou, mais raramente, às Igs. A ALP hepática, cuja meia-vida é de cerca de 3 dias, é uma enzima hepatocítica encontrada na superfície canalicular e, portanto, atua como marcador de disfunções biliares. A isozima óssea é particularmente ter- mossensível, e essa característica permite sua distinção dentre as outras formas importantes. Além disso, a ALP encontrada no intestino e na placenta diferem, em termos de antigenicidade, da ALP encontrada no fígado, osso e rim. O conjunto de ALP sérica em pacientes normais é constituído das formas hepática e óssea. Uma obstrução do trato biliar causada pela presença de cálculos nos duetos ou ductulos, ou processos infecciosos que resultem em colangite ascendente ou, ainda, a existência de lesões extensivas são todos fato- res que promovem elevação dos níveis da ALP biliar. Essa elevação se dá rapidamente, sendo que os níveis da enzima podem se tornar até 10 vezes mais altos que o limite máximo considerado normal. O motivo que explica esse aumento provavelmente é uma combinação da síntese elevada com a diminuição da excreção da enzima. Na colestase obstru- tiva, a concentração de ALP mais comumente aumenta duas ou mais vezes em relação ao limite normal máximo, a grosso modo, em para- lelo com a velocidade com que sobem os níveis de bilirrubina sérica. C1:l u ·- ·- C1:l > <( ,.. N o ...J ::::> ,l- o.. 6 316 Se a obstrução é parcial, a concentração de ALP costuma aumentar do mesmo modo que na obstrução total, muitas vezes não correspon- dendo, em termos de proporção, ao aumento da bilirrubina conjuga- da (icterícia dissociada). A congestão hepática passiva ocasionalmente pode resultar em elevação moderada dos níveis de ALP, mais que em níveis de bilirrubina anormais. A ALP também encontra-se elevada na maioria dos casos de icterícia resultante de lesão hepática. Quando a consequente colestase é aliviada, os níveis séricos de ALP retornam ao normal mais devagar que os níveis de bilirrubina. Uma ALP de alto peso molecular é detectada no soro de pacien- tes com colestase. Essa ALP está ligada a fragmentos de membrana canalicular. Os sais biliares solubilizam as enzimas a partir das mem- branas sinusoidais e canaliculares. No soro, as enzimas acopladas à membrana agregam-se a lipídeos e lipoproteínas. Essa característica pode explicar a relação que tem sido observada, por exemplo, com a lipoproteína X (LpX) (ver Cap. 17). Outra forma de ALP de alto peso molecular, que apresenta migração eletroforética diferenciada da migração da isozima descrita, foi detectada na doença maligna com envolvimento do fígado (Viot, 1983). Os níveis de ALP intestinal são maiores em uma variedade de dis- túrbios do trato intestinal e também na cirrose. A forma intestinal da ALP é detectada em mais de 800/o dos pacientes cirróticos, compara- tivamente a sua detecção em 10% dos controles normais. O uso da determinação da atividade dessa enzima foi sugerido como método para discriminar as formas intra- e extra-hepática de icterícia, uma vez que a ALP intestinal pode não ser detectada na obstrução extra- hepática, contudo não apresenta o grau de sensibilidade e especifi- cidade adequado (Collins, 1987). O Capítulo 20 descreve os ensaios empregados na detecção da ALP. y-glutamil transferase (GGT). Essa enzima regula o transporte de aminoácidos através das membranas celulares, catalisando a trans- ferência de um grupo glutamil da glutationa para um aminoácido livre. Seu principal uso se dá na discriminação da fonte de elevação dos níveis de ALP (i. e., se a ALP estiver elevada e os níveis de GGT aumentarem de modo correspondente, então a fonte mais provável da elevação dos níveis de ALP será o trato biliar). Os valores mais altos, frequentemente acima de 10 vezes o limite máximo considerado nor- mal, podem ser detectados em pacientes com colestase crônica decor- rente de cirrose biliar primária ou colangite esclerosante. Do mesmo modo, também encontra-se aumentada em 60 a 70o/o dos indivíduos alcoólatras, havendo uma correlação aproximada entre a quantidade de álcool consumida e a atividade de GGT (Whitehead, 1978). Por vezes, os níveis da enzima declinam devagar na abstenção do álcool, permanecendo elevados pelo menos durante 1 mês após o início da abstinência (Belfrage, 1977; Moussavian, 1985). A GGT possui meia- -vida de 10 dias, no entanto esse tempo de meia-vida pode ser de até 28 dias durante a recuperação do consumo abusivo de álcool. Seus níveis tendem a ser mais altos em casos de distúrbio obstrutivo e de lesões hepáticas que ocupam espaço, comparativamente ao observado nos casos de lesão dos hepatócitos (Kim, 1977). O gene da GGT humana foi clonado, e a sequência de nucleotíde- os foi identificada (Rajpert-De Meyts, 1988). É possível detectar três tipos principais de GGT no soro (Wenham, 1985), apesar de ainda não haver métodos prontamente disponíveis para tanto. Existe uma forma de alto peso molecular que é encontrada no soro normal, bem como na obstrução biliar e, mais frequentemente, na infiltra- ção maligna do fígado. Uma forma de peso molecular intermediário é constituída por duas frações: a maior delas é detectada nas doen- ças hepáticas, enquanto a outra é encontrada na obstrução biliar. Os métodos de determinação dessas formas da enzima carecem do devi- do grau de sensibilidade e especificidade que fazem sua execução valer a pena (Collins, 1987). A terceira forma da GGT é um composto de baixo peso molecular, cuja importância é desconhecida. Durante a gravidez, os níveis séricos de GGT e de ALP diferem entre si, sendo que os de GGT permanecem normais mesmo quando a mãe apresenta colestase. A GGT com frequência está aumentada em pacientes alcoólatras, mesmo naqueles que não apresentam doença hepática. Essa elevação também é detectada em indivíduos obesos e naqueles que consomem doses elevadas de certos fármacos terapêuti- cos, como acetaminofeno e fentoína, além da carbamazepina (os valo- res chegam a exceder até 5 vezes os limites de referência), mesmo na ausência de qualquer tipo de lesão hepática aparente. É possível que as elevações do conteúdo de GGT sejam uma tentativa do organismo de restaurar a glutationa utilizada no metabolismo desses fármacos, explicando, assim, a elevada atividade de GGT detectada nos ensaios. A glutationa é conjugada a essas substâncias
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