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TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança
e adolescente no Brasil
 
DISTRIBUIÇÃO:
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
TRABALHO
INFANTIL:
a negação do ser criança
e adolescente no Brasil
José Geraldo Ramos Virmond
Presidente da OAB/SC
Paulo Roberto de Borba
Presidente da CAASC
Francisco José Pereira
Salézio Costa
Editores
Rodrigo Dias Pereira
Capa e Projeto Gráfico
Janaina H. da Costa
Secretária Executiva
Conselho Editorial
Dr. Cesar Luiz Pasold (Presidente)
Dr. Edmundo José de Bastos Júnior
Dr. José Isaac Pilati
Dr. Orides Mezzaroba
Dr. Osvaldo Ferreira de Melo
Dr. Ubaldo Cesar Balthazar
Dr. Umberto Grillo
Catalogação na publicação: Bibliotecária Cristina G. de Amorim CRB -14/898
 
Rua Paschoal Apostolo Pitsica, 4.860
88025-900 – Agronômica
Florianópolis, SC - Brasil
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DISTRIBUIÇÃO
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www.clc-sc.com.br – e-mail: clc@clc-sc.com.br
312 páginas
A HISTÓRIA
Quando te encontrei
Contei para ti histórias de fadas
de castelos encantados.
Falei das flores
da música
da poesia.
Mergulhastes neste mundo
e nele passaste a ser princesa.
Porém, à medida que crescias
vias ao teu redor
histórias de morte,
barracos empilhados,
florestas destruídas,
versos de dor.
Teus olhos imaculados indagavam-me:
“Onde está a verdade?”
Foi quando te respondi:
“Se quiseres e se teu sonho for
grande o suficiente
farás do mundo uma poesia de amor
E os encantos das histórias infantis
serão a verdadeira história”.
Sorriste então
e depois de um forte abraço
correste para a roda.
(Josiane Rose Petry Veronese)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................. 11
1. RETRATOS DA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
NA HISTÓRIA DO BRASIL ................................................................. 15
1.1 Para começar a história ....................................................... 15
1.2 As crianças também chegaram trabalhando nas
 embarcações portuguesas ........................................................ 17
1.3 Os jesuítas e a primeira experiência de educação
 no Brasil .................................................................................. 21
1.4 A Roda dos Expostos e a marca da institucionalização da
 infância brasileira .................................................................... 24
1.4 Mudanças no século XIX ...................................................... 27
1.6 As páginas da escravidão ..................................................... 31
1.7 Os aprendizes e marinheiros: trabalho e disciplina militar ..... 35
1.8 O recrutamento infantil pelas fábricas ................................. 39
1.9 A república e as primeiras décadas no novo século XX ........... 44
1.10 O Código de Menores de 1927 e a ditadura no Brasil ........... 61
1.11 A transição dos anos 80 e as novas conquistas.................... 73
1.12 Mas enfim, será possível erradicar o trabalho infantil? ........ 83
2. CAUSAS DO TRABALHO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE .............. 85
2.1. Primeiras linhas ................................................................. 85
2.2. As múltiplas causas ........................................................... 86
3. CONSEQÜÊNCIAS DO TRABALHO INFANTIL ................................. 105
3.1. A anulação da infância ..................................................... 105
3.2. Alimentando um círculo vicioso ......................................... 114
4. A PROTEÇÃO CONTRA A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
NO DIREITO BRASILEIRO ............................................................... 121
4.1 Considerações Iniciais ...................................................... 121
4.2 Definindo os conceitos operacionais .................................. 125
4.3 A questão da capacidade jurídica para o trabalho ............... 132
4.4 Condições para o exercício do trabalho .............................. 149
5. CARACTERÍSTICAS ESPECÍFICAS DE PROTEÇÃO CONTRA A
EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL ........................................... 155
5.1 O trabalho perigoso ........................................................... 155
5.2 O trabalho insalubre .......................................................... 161
5.3 O trabalho penoso ............................................................. 169
5.4 Trabalho noturno ............................................................... 172
5.5 O trabalho prejudicial à moralidade .................................... 174
5.6 O trabalho realizado em locais e horários que
prejudicam à freqüência à escola ............................................ 177
5.7 Os trabalhos prejudiciais ao desenvolvimento, físico,
psicológico, moral e social ...................................................... 178
6. A PROTEÇÃO INTERNACIONAL CONTRA A EXPLORAÇÃO
DO TRABALHO INFANTIL ................................................................ 181
6.1 A proteção internacional ................................................... 181
6.2 A OIT e o Direito Internacional do Trabalho .......................... 181
6.3 A origem, os objetivos e a estrutura da OIT ......................... 182
6.4 A OIT e seus instrumentos normativos ................................. 184
6.5 O Tratado Internacional no Direito Brasileiro ...................... 185
6.6 Considerações históricas sobre os limites de idade
mínima para o trabalho no direito internacional ........................ 187
6.7 A origem do Direito do Trabalho e as primeiras leis sobre
idade mínima .......................................................................... 187
6.8. A Organização Internacional do Trabalho e a idade mínima
para o trabalho ....................................................................... 188
6.9. O Brasil e as Convenções sobre idade mínima da OIT .......... 191
6.10. A Convenção nº 138 e a Recomendação nº 182,
da Organização Internacional do Trabalho, sobre limites
de idade mínima para o trabalho .............................................. 192
6.11 A Convenção nº 182 e a Recomendação nº 190,
da Organização Internacional do Trabalho, sobre piores
formas de trabalho infantil ...................................................... 211
7. ASPECTOS DESTACADOS DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO E ERRADICAÇÃO DO TRABALHO
INFANTIL NO BRASIL ..................................................................... 219
7.1 Os Fóruns de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil .. 219
7.2 As Diretrizes para uma Política Nacional de Combate
ao Trabalho Infantil ................................................................. 224
8. A PROFISSIONALIZAÇÃO DO ADOLESCENTE ............................... 237
8.1. Considerações iniciais ..................................................... 237
8.2. Considerações conceituais ............................................... 241
8.3. A capacitação profissional do adolescente ........................ 243
8.3.1. A construção de um conceito de capacitação
profissional ....................................................................... 243
8.3.2. Algumas reflexões sobre capacitação profissional ..... 245
8.4. Aspectos legais da capacitação profissional
do adolescente ....................................................................... 249
8.4.1. A capacitação profissional no direito internacional ... 249
8.4.2. A capacitação profissional no direito brasileiro ......... 262
8.5. A aprendizagem ............................................................... 277
8.6. O trabalho educativo ........................................................ 284
CONCLUSÃO ................................................................................ 297
REFERÊNCIAS .............................................................................. 301
11
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
INTRODUÇÃO
Construir uma históriada criança explorada no Brasil é
uma tarefa desafiadora, permanente e, praticamente, infin-
dável. A opção pela reconstrução dessa história foi possível
a partir de alguns retratos que demarcaram um perfil da
infância ao longo dos séculos.
Não se pretende transformar a infância em mero objeto
de estudo, muito menos acreditar na precisão das imagens
resgatadas no passado, nas quais as crianças geralmente
poucas oportunidades tiveram para registrar suas falas, sen-
timentos e desejos.
A própria origem latina da expressão infância está liga-
da a ausência de fala ou àquele que ainda não fala. Não há
como negar que a construção social da infância no Brasil foi
secularmente reproduzida pelo olhar adulto, geralmente
elitista e reprodutor das condições de desigualdade históri-
ca colocando a criança no lugar específico e necessário à
imposição de seu poder.
A história da infância no Brasil foi construída pela voz
adulta de juristas, médicos, policiais, legisladores, comerci-
antes, padres, educadores exigindo do historiador uma pos-
tura crítica na interpretação destes fatos com vistas a supe-
rar a visão hegemônica e idealizada de infância brasileira.
12
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
A relação e o lugar ocupado pela criança na história nem
sempre foi o mesmo, mascarado pelos estigmas impostos
por uma sociedade em mudança. A criança brasileira já foi
objeto de muitas designações: órfã, exposta, abandonada,
delinqüente, escrava, menor, trabalhadora; mas também
pura, ingênua, bela e até promessa de futuro.
Esta abordagem procurou estabelecer uma específica
atenção sobre os retratos da criança trabalhadora e como
ela foi percebida ao longo da história brasileira. Não se tra-
ta da história de todas as crianças, mas daquelas represen-
tativas do universo infantil que emprestaram significado
decisivo para cada um dos momentos históricos.
É a oportunidade de dar voz à criança explorada, resgatá-
la como sujeito histórico que um dia alcançaria o status de
sujeito de direitos, mas que em sua maior parte foi tratada
como objeto, vítima de violência, negligência e opressão.
O resgate da imagem infantil requer um exercício de
outras dimensões teóricas e conceituais que venham suprir,
ainda que parcialmente, a necessidade de compreensão
dessa história ainda obscura e, talvez, o resgate de alguns
retratos do trabalho da criança seja um dos caminhos ainda
pouco percorridos.
A compreensão do que atualmente se denomina explo-
ração do trabalho infantil ou mesmo trabalho precoce que,
em outros tempos foi chamado de exploração de menores,
não pode ser compreendida divorciada da realidade social
que lhe emprestou conteúdo ao longo da história brasileira.
A análise histórica foi realizada mediante incursão nas
13
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
diversas etapas de desenvolvimento e da legislação relati-
va ao disciplinamento do trabalho infantil através dos tem-
pos, considerando-se, inclusive, alguns referenciais norma-
tivos internacionais. A importância desta breve noção his-
tórica funda-se na sua instrumentalidade, pois fornece sub-
sídios para a reflexão da realidade social e jurídica pelo qual
perpassaram gerações de crianças e adolescentes.
Os limites desta obra não permitem uma reconstrução
histórica exaustiva e sistemática do trabalho da criança e
do adolescente no Brasil, mas pretende, ao menos, resgatar
momentos, que afirmaram uma imagem social da infância,
especialmente àquelas representativas da exploração no tra-
balho.
15
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
1. RETRATOS DA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO DA
CRIANÇA NA HISTÓRIA DO BRASIL
1.1 Para começar a história
A compreensão do trabalho da criança e do adolescente
no Brasil merece vários olhares, ou seja, torna necessária
uma leitura interdisciplinar: História, Sociologia, Antropo-
logia e Direito se impõem como norteadoras para a análise
deste tema.
Evidentemente, a história brasileira não começa com a
invasão portuguesa. No entanto, para o estudo do tema este
limite foi fixado em razão de um marco importante: a cul-
tura européia da exploração de crianças no trabalho che-
gou ao Brasil através dos hábitos e costumes que atravessa-
ram o atlântico nas embarcações portuguesas. Esta cultura
letrada irá possibilitar os primeiros registros da infância no
Brasil, embora a imagem do que hoje se concebe por infân-
cia ainda não fosse muito nítida para os europeus que aqui
chegavam.
A Carta de Pero Vaz de Caminha registrou pela primei-
ra vez a infância no Brasil. Esta carta enviada para Portugal
ao Rei Dom Manuel em 1500 descreve a presença de uma
mulher com uma criança atada com um pano aos peitos, na
qual apenas as perninhas infantis apareciam.
16
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JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
A imagem da criança ainda aparecia como algo periférico
nas imagens e com pouca nitidez. Segundo Marisa Lajolo “é
uma imagem fragmentada da criança, metonimicamente en-
trevista como só pernas a que comparece ao texto, meio como
que de passagem, quase que apenas para realçar, por oposi-
ção aos panos que a recobrem, a nudez da mãe. Surge, assim,
encoberta e incompreendida, a primeira personagem infantil
de nossa história, protagonizando o registro inaugural do que
poderia um dia vir a ser a história da infância brasileira.”1
Se por um lado, as crianças não atuavam como persona-
gens significativos no imaginário social, por outro sua pre-
sença foi marcante e representativa na construção de uma
história protagonizada pelos conquistadores portugueses.
No período colonial, o ingresso das crianças no mundo do
trabalho era extremamente precoce. Informa Mary Del Priore
que a partir dos sete anos as crianças já desenvolviam “pe-
quenas atividades, ou estudavam a domicílio, com precep-
tores ou na rede pública, por meio das escolas régias, cria-
das na segunda metade do século XVIII, ou, ainda aprendi-
am algum ofício, tornando-se ‘aprendizes’”.2
O trabalho infantil estava inserido num conjunto de có-
digos repassados ao longo das gerações que relacionam
desenvolvimento/autonomia com responsabilidade/
aprendizado, fatores determinantes para a inserção preco-
ce das crianças no mundo adulto.
1 LAJOLO, Marisa. Infância de papel e tinta. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). História
Social da Infância no Brasil. 2 ed. São Paulo: Cortez/USF, 1999. p. 230.
2 PRIORE, Mary Del. O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império. In:
PRIORE, Mary Del (org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p. 84-5.
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a negação do ser criança e adolescente no Brasil
1.2 As crianças também chegaram trabalhando nas
embarcações portuguesas
As embarcações portuguesas trouxeram as crianças na
condição de trabalhadores. Grumetes e pagens desempenha-
ram papéis importantes nas travessias ao Atlântico rumo
às novas terras.
Os grumetes geralmente realizavam todas as tarefas rea-
lizadas por adultos, mas recebiam a metade da remunera-
ção de um marujo da mais baixa hierarquia da marinha
portuguesa. Também eram atribuídas aos grumetes as ta-
refas mais perigosas e penosas, pois entendiam que perder
um miúdo seria melhor que estar desamparado da força
adulta nas travessias ao Atlântico.
O recrutamento dos pequenos grumetes variava entre o
rapto de crianças judias e a condição de pobreza vivencia-
da em Portugal. Eram os próprios pais que alistavam as cri-
anças para servirem nas embarcações como forma de ga-
rantir a sobrevivência dos pequenos e aliviar as dificulda-
des enfrentadas pelas famílias.
O período do expansionismo europeu é marcado pela
exploração do trabalho infantil, tanto que “nos séculos XVI
e XVII, pelo menos 10% da tripulação das caravelas, urcas e
galeões, fossem elas de guerra, mercantes ou de corsários,
era constituída por meninos com menos de 15 anos.”3
Neste cenário, a expectativa de vida das crianças era
3 VENÂNCIO, Renato Pinto. Aprendizes da Guerra. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das
Criançasno Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p. 193.
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JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
brevíssima, em torno dos quatorze anos, isto num contexto
em que, dentre os que nasciam com vida, cerca de cinqüen-
ta por cento morriam antes mesmo de completar os sete anos
de idade. De acordo com Fábio Pestana Ramos “isto fazia com
que, principalmente entre os estamentos mais baixos, as cri-
anças fossem consideradas como pouco mais que animais,
cuja força de trabalho deveria ser aproveitada ao máximo
enquanto durassem suas curtas vidas.”4
O trabalho infantil nas embarcações era especialmente
útil, já que fornecia uma mão-de-obra ágil, de baixo custo e
consumidora de poucos alimentos; fator que incentivava o
recrutamento entre as famílias portuguesas que sofriam com
a fome, mas também o recolhimento de órfãos, desabrigados
e pedintes era uma prática habitual.
Além do alívio nas responsabilidades com a família, al-
guns ainda viam o recrutamento de grumetes como uma for-
ma de aumento da renda familiar, pois os pais recebiam sol-
dos em nome das crianças mesmo que estas morressem em
alto mar. A opção pelo uso de mão-de-obra infantil nas em-
barcações foi uma opção tipicamente portuguesa visando
solucionar problemas urbanos. As crianças das áreas rurais
eram preservadas do recrutamento. Alguns países, como a
Inglaterra, supriam a falta de mão-de-obra nas embarcações
de outras formas, tais como o uso de escravos negros.
O recrutamento era dirigido especialmente aos meninos,
pois a presença de mulheres nas embarcações era proibida
4 RAMOS, Fábio Pestana. A história trágico-marítima das crianças nas embarcações. In: PRIORE,
Mary Del (org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p. 20.
19
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a negação do ser criança e adolescente no Brasil
e rara. Grumetes e pagens eram obrigados a aceitar abusos
sexuais dos marujos rudes e violentos. Crianças, mesmo
acompanhadas dos pais, eram violentadas. As órfãs eram
preservadas, guardadas e vigiadas cuidadosamente a fim
de manter-se virgens, pelo menos, até que chegassem à
Colônia.5
A exploração do trabalho das pequenas crianças consis-
tia em prática habitual e permanente, especialmente àque-
las em piores condições econômicas. No transcorrer da Ida-
de Moderna, crianças órfãs, enjeitadas ou mesmo pobres,
oriundas sobretudo das “comunidades de pescadores, fo-
ram recrutadas quase sempre sem nenhuma preparação ou
treinamento prévio. A rude vida do mar era sua escola, sua
família e seu destino.”6
Os meninos grumetes eram vítimas de toda ordem de
privações; além das pesadas jornadas de trabalho, sua ali-
mentação era deficiente provocando doenças graves que
podiam levar a morte como inanição e escorbuto. Também
não tinham espaços de privacidade, sendo objeto de abu-
sos e violências provocados pelos adultos. Assim, quando
embarcados não deixavam para trás somente a sua terra,
mas todas as possibilidades de viver uma infância feliz e
saudável.
Outro papel relevante desempenhado pelas crianças nas
embarcações portuguesas era o de pagem. Os pagens eram
embarcados para prestar serviços aos nobres e oficiais du-
5 RAMOS, Fábio Pestana. Op. Cit. p. 19.
6 VENÂNCIO, Renato Pinto. Op. Cit. p. 195.
20
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JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
rante as travessias, seus serviços tinham características mais
leves e podia até possibilitar a ascensão aos cargos da Mari-
nha. Cabia ao pagem satisfazer as vontades da nobreza; ser-
viam as mesas, arrumavam os camarotes e organizavam as
camas, preocupando-se especialmente com as condições de
conforto dos oficiais nas viagens, o que podia possibilitar
uma condição privilegiada em relação aos demais marujos
caso ganhassem a simpatia de seus superiores.
Os pagens também eram recrutados junto às famílias
pobres, mas “a maioria, contudo, provinha de setores mé-
dios urbanos de famílias protegidas pela nobreza ou de fa-
mílias de baixa nobreza pois, para essas, inserir um filho no
contexto da expansão ultramarina como pagem era a forma
mais eficaz de ascensão social.”7
A travessia do Atlântico era um desafio, as dificuldades
em alto mar aliadas as duras tarefas impostas permitia a
sobrevivência de poucos. Mesmo aqueles que chegavam por
aqui com vida, pereciam diante das dificuldades como as
condições climáticas, a fome, a rígida disciplina e falta de
cuidado por parte dos adultos, que os colocava em risco
diante dos ataques dos nativos.
Portanto, a travessia do Atlântico realizada pelas embar-
cações portuguesas a partir do século XVI trouxe consigo a
violência e exploração contra as crianças e a cultura do traba-
lho infantil, penoso e perigoso e, também, da submissão, do
desvalor da infância, representando fielmente uma história
de exclusão que irá se repetir ao longo dos séculos seguintes.
7 RAMOS, Fábio Pestana. Op. Cit. p. 31.
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TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
1.3 Os jesuítas e a primeira experiência de
educação no Brasil
A experiência mais significativa para a infância no Bra-
sil quinhentista foi a implantação de um sistema de edu-
cação pelos Jesuítas. A convergência de interesses volta-
dos à expansão da Igreja e do domínio português propor-
cionou o cenário adequado para a implantação dessa iné-
dita experiência.
Segundo Rafael Cambouleyron, “é bem verdade que a in-
fância estava sendo descoberta nesse momento no Velho
Mundo, resultado da transformação nas relações entre in-
divíduo e grupo, o que ensejava o nascimento de novas for-
mas de afetividade e a própria ‘afirmação do sentimento da
infância’ na qual Igreja e Estado tiveram um papel funda-
mental.”8 Foi justamente esta novidade que fez com que a
Companhia de Jesus optasse em trabalhar a criança indíge-
na, esta compreendida como o “papel em branco” ou a “cera
virgem”, passível, portanto, de toda inscrição e modelagem.9
Neste novo projeto societário, a infância surge como o
espaço necessário para a impressão dos valores europeus
cristãos tão necessários à época para a construção de uma
nova sociedade. Por isso, nos primeiros momentos a compa-
nhia dedicou-se às crianças portuguesas que habitavam o
Brasil e, mais tarde, descobre as crianças indígenas com a
pureza necessária para inscrever os novos valores almejados
indispensáveis a consolidação da conquista portuguesa.
8 CAMBOULEYRON, Rafael. Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In: PRIORE, Mary
Del (org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p. 58.
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No Brasil colonial, o ensino dos jesuítas proporcionou
mudanças significativas na cultura indígena representan-
do mais um espaço de avanço e domínio dos portugueses
sobre os nativos. Foi a partir das crianças, que aprendiam a
doutrina, a leitura, a música, a escrita e, muitas vezes, um
ofício, que padres jesuítas construíram uma educação emi-
nentemente baseada no catolicismo e um modo de vida ti-
picamente cristão, pois “com os adultos cada vez mais arre-
dios, toda a atenção se voltava aos filhos destes, explicava o
então irmão José de Anchieta aos padres e irmãos de
Coimbra, em finais de abril de 1557.”10
As mudanças na cultura indígena foram profundas. Se-
gundo Raquel Zumbano Altman, “tão forte é a tentação de
aprender a cantar, que os tupizinhos fogem, às vezes, dos
pais para se entregarem às mãos dos jesuítas.”11 Desta for-
ma, acreditavam os jesuítas, que “ocorreria assim, algo que
poderíamos chamar de ‘substituição de gerações’: os meni-
nos ensinados na doutrina, em bons costumes, sabendo fa-
lar, ler e escrever em português terminariam ‘sucedendo
seus pais’.”12
Com a intervenção dos jesuítas há a construção de uma
nova cultura “pelas manhãs, os meninos iram pescar ‘para
si e par seus pais que não se mantêm de outra coisa, relata o
padre Nóbrega, em julho de 1559. À tarde, voltavam os
9 CAMBOULEYRON, Rafael. Op. Cit. p. 58.
10 CAMBOULEYRON, Rafael. Op. Cit. p. 58.
11 ALTMAN, Raquel Zumbano. Brincando na História. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das
Criançasno Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p. 241.
12 CAMBOULEYRON, Rafael. Op. Cit. p. 60.
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TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
meninos para a escola, havia doutrina para todos da aldeia
que acabava ‘com Salve, cantada pelos meninos e a Ave
Maria.”13
Entre as novidades trazidas pelos padres estavam as
punições corporais. Tais medidas não consistiam em ne-
nhum fato novo no cotidiano da Colônia, uma vez que as
correções disciplinares haviam sido introduzidas pelos pa-
dres jesuítas, no século XVI. No entanto, este modelo de
correção deixava horrorizada a população indígena que não
tinha o costume de bater nas crianças.
Estas novidades também fizeram os padres jesuítas en-
frentarem muitas resistências e dificuldades, pois as novas
práticas nem sempre tiveram os resultados esperados. Em
alguns momentos, cogitavam até que tudo aquilo poderia
não resultar em nada.
Entre as novidades implantadas na incipiente experiên-
cia de ensino aos indígenas está um rígido sistema de disci-
plina e controle que envolvia práticas de vigilância cons-
tante, delação e castigos corporais, de sorte que era comum
o fato de se construir, nas aldeias administradas pelos jesu-
ítas, o tronco e o pelourinho.
A Companhia de Jesus olhava para uma formação cristã
e uma educação diferenciada aos nativos, mas admitiam
que seria até capaz de promover a organização de um clero
nativo no Brasil, a partir da identificação dos meninos com
maiores habilidades.
13 CAMBOULEYRON, Rafael. Op. Cit. p. 62.
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ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
A educação jesuítica teve o papel significativo na cons-
trução inicial de uma primeira imagem concreta da criança
no Brasil. A descoberta da infância como algo diferente do
adulto tornará a educação o elemento capaz de focalizar,
pela primeira vez, a atenção e cuidados ao desenvolvimen-
to físico e psicológico da criança.
1.4 A Roda dos Expostos e a marca da
institucionalização da infância brasileira
Ainda no século XVI surgem as primeiras ações de cará-
ter assistencial no Brasil. A Santa Casa de Misericórdia do
Rio de Janeiro, criada em 1582, de iniciativa católica, esta-
belece-se com a missão de atender a todos não fazendo di-
ferenças de idade, sexo, credo e condição. Até os escravos e
estrangeiros poderiam ser amparados pelo asilo para enjei-
tados, que abrigavam meninos no Botafogo até a idade con-
siderada adequada para ser encaminhados a uma profis-
são. As meninas aprendiam a ler, escrever, costurar, mas
viviam em outro estabelecimento no centro da cidade. Ini-
ciativas semelhantes serão criadas ao longo do tempo em
outros agrupamentos urbanos do Brasil colonial.
Das ações realizadas pelas Santas Casas surgem a pri-
meira iniciativa assistencial de grande abrangência por es-
tas terras, a Roda do Expostos. Não há dúvida que o grande
problema social da infância dos primeiros séculos no Brasil
é denominada orfandade. A Roda dos Expostos será a al-
ternativa encontrada para a solução do problema que so-
25
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
breviverá ao longo dos séculos. Iniciada ainda no período
colonial, seus serviços serão prestados até as primeiras dé-
cadas da República.
A origem da expressão Roda dos Expostos denota o pró-
prio procedimento para o acolhimento das crianças. Na
parede da instituição instalava-se um receptáculo circular
com uma almofada em sua base que permitia o depósito do
bebê e ao ser girado garantia a preservação do anonimato
extra-muro. Ao girar o cilindro a criança era entregue à ins-
tituição e a Rodeira era advertida por uma sineta, que avisa
a chegada de uma nova criança.
Ao receber o novo bebê, a rodeira geralmente encami-
nhava para uma casa de ama-de-leite até a idade de três
anos e estimulava a manutenção da guarda da criança pa-
gando um pequeno valor até os sete anos. Neste momento,
já estaria autorizada a exploração o trabalho da criança de
forma remunerada ou em troca de casa e comida.14
Por isso, o acolhimento de crianças órfãs e abandonadas
acontecia principalmente através de famílias substitutas, já
que havia especial interesse no trabalho prestado pelas cri-
anças, mas mesmo assim a institucionalização de crianças
foi uma prática de longa freqüência.
Seja nas Rodas dos Expostos ou na recepção da criança
abandonada pela família, o interesse pelo trabalho da cri-
ança vigorava como regra ocultada pela caridade e legiti-
mada pela suposta assistência.
14 MARCILIO, Maria Luiza. A roda dos expostos e a criança abandonada no Brasil. 1726-1950.
In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). História Social da Infância no Brasil. 2 ed. São Paulo:
Cortez/USF, 1999. p. 72.
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JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
No Brasil, a primeira Roda dos Expostos foi implantada
em Salvador em 1726, a segunda no Rio de Janeiro em 1738
e a terceira em Recife, em 1789, na Santa Casa de Misericór-
dia, portanto, todas ainda no período colonial.
As Rodas dos Expostos são uma invenção européia para
salvar as crianças abandonadas e órfãs da morte, mas os
atuais estudos apresentam dados significativos de doenças
e mortalidade de crianças nessas instituições, evidencian-
do a contradição do papel institucional da roda. De acordo
com Miriam Moreira Leite, asilos de órfãos e projetos de re-
generação dos pobres e ‘vagabundos’ pelo trabalho e pelo
serviço militar já preocupavam os capitães gerais e os go-
vernadores das províncias.15
As péssimas condições em que as crianças eram subme-
tidas nas Rodas provocou muito tempo depois, um movi-
mento para sua extinção. Movimento este que foi muito mais
fraco no Brasil do que na Europa. Tanto que ao findar do
século XIX ainda existiam muitas destas instituições. Infor-
ma Maria Luiza Marcílio que a roda do “Rio de Janeiro foi
fechada em 1938, a de Porto Alegre em 1940, as de São Pau-
lo e de Salvador sobreviveram até a década de 1950, sendo
as últimas do gênero existente nessa época em todo o mun-
do ocidental.”16
15 LEITE, Miriam L. Moreira. A infância no século XIX segundo memórias e livros de viagem. In:
FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). História Social da Infância no Brasil. 2 ed. São Paulo: Cortez/
USF, 1999. p. 18.
16 MARCILIO, Maria Luiza. Op. Cit. p. 66.
27
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
1.5 Mudanças no século XIX
Enquanto no Brasil, no início do século XIX ainda não
havia uma preocupação especial com a proteção das crian-
ças contra a exploração no trabalho, a Inglaterra editava a
primeira lei em 1802, denominada Act for preservation of health
and moral apprentices employed in cotton and others mills.17
É neste contexto que o século XIX consolida a descoberta
humanista de que a infância e a adolescência, com suas es-
pecificidades, contemplam idades da vida. “Os termos cri-
ança, adolescente e menino, já aparecem nos dicionários da
década de 1830. Menina surge primeiro como tratamento
carinhoso e, só mais tarde, também como designativo de
“’creança’ ou pessoa do sexo feminino que está no período
da meninice.”18 Ao passo que o termo adolescente, ainda
que já existente, não tinha uso comum no século XIX. O
período cronológico que demarcava a adolescência situa-
va-se entre 14 e 25 anos de idade; utilizavam-se como sinô-
nimo as expressões juventude ou mocidade.19
Neste período, as crianças da elite já recebiam tratamen-
to diferenciado sendo privilegiado o acesso à educação, pois,
em regra, distinguia-se a forma de educar aplicada às me-
ninas daquela voltada aos meninos. Para as primeiras, va-
lorizavam-se os atributos manuais, ao passo que para os
segundos, os intelectuais. O tempo de duração também era
17 OLIVEIRA, Oris de. O trabalho da criança e do adolescente. São Paulo: LTr, 1994. p. 24.
18 MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o Império. In: PRIORE, Mary Del
(org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p. 140.
19 MAUAD, Ana Maria. Op. Cit. p. 140.
28
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
diferenciado. Os meninosoriundos da elite, iniciavam sua
instrução aos sete anos e só a concluíam com o recebimento
do título de doutor (leia-se advogado), obtido no Brasil ou
no exterior.20
Por outro lado, persistiam as dúvidas sobre as condições
e responsabilidades acerca das crianças abandonadas, pois
na medida em que crescia o sentimento de dor pela perda
(morte) de uma criança, de igual modo se desenvolve uma
preocupação pela sua sobrevivência. Isto desencadeou uma
série de procedimentos, de cuidados especiais com os re-
cém-nascidos até que completassem sete anos. No entanto,
restava intocável a questão: quem era o responsável por zelar
pela criança brasileira?21
Para as crianças pobres parece que mesmo “com a inde-
pendência do Brasil continuaram a funcionar as três rodas
coloniais. Da mesma forma vigoravam ainda as Ordena-
ções Filipinas, pelas quais toda a assistência aos expostos
era obrigação das câmaras municipais.”22
Mas não se tratava de uma situação pacífica, pois as Câ-
maras resistiam à tarefa de assistir as crianças desvalidas.
Tanto que em 1828, editaram uma lei, designada Lei dos
Municípios, que abria uma possibilidade para as Câmaras
desincumbirem-se desta função. Assim, nas cidades em que
existisse uma Casa de Misericórdia, a Câmara poderia utili-
zar seus serviços para a instalação da roda e assistência às
20 MAUAD, Ana Maria. Op. Cit. p. 152.
21 MAUAD, Ana Maria. Op. Cit. p. 160.
22 MARCILIO, Maria Luiza. Op. Cit. p. 60.
29
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
crianças enjeitadas. Nesta parceria, seria a Assembléia Le-
gislativa provincial, e não mais a Câmara, quem entraria
com o subsídio para auxiliar o trabalho da Misericórdia. De
certa forma, estava-se oficializando a roda dos expostos nas
Misericórdias e colocando estas a serviço do Estado. Per-
dia-se, assim, o caráter caritativo da assistência, para inau-
gurar-se sua fase filantrópica, associando-se o público e o
particular. Algumas rodas foram criadas por meio dessas
disposições e por decisão superior.”23
Enquanto isso os nobres preocupavam-se com uma edu-
cação disciplinada, mas livre do trabalho para sua prole.24
Mas as respostas aos pobres eram diferenciadas, tendo
sempre o trabalho como finalidade. Registra Maria Luiza
Marcílio que, por exemplo em Santa Catarina, foi criada em
1828 uma roda de expostos na capital, Desterro, hoje Flori-
anópolis. Nesta localidade, quem tomou para si o encargo
de cuidar dos expostos – na ausência da Casa de Misericó-
rida – foi a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos. Os
estatutos da casa foram aprovados em 1840. Segundo tal
compromisso, a Irmandade “‘se comprometteo tratal-os com
todo desvelo e caridade, como filhos da irmandade, fazen-
do-os visitar a miúdo por seu Mordomo dos expostos, so-
23 MARCILIO, Maria Luiza. Op. Cit. p. 60.
24 Segundo Ana Maria Mauad (Op. Cit. p. 167.), “a dura disciplina de estudos das princesas
era estabelecida pelo pai, Dom Pedro II. Iniciando-se às sete horas da manhã e estendendo-
se até às nove da noite com aulas de inglês, francês, alemão, religião, física, botânica, grego,
piano, literatura, latim e mais tarde fotografia. O tempo era tão regulamentado e os passeios
tão limitados, que a irmã de Dom Pedro II, D. Francisca, a princesa de Joinville, escreveu-lhe:
Tema bem sentido de não as cansar e que não falte recreação no meio do trabalho [...] Isto é
muito importante para a sua saúde, que sem ela nada é possível fazer-se de verdadeiro traba-
lho intelectual.”
30
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
correndo-os até que fossem engajados para aprenderem
arte, ou officio, fazendo as possíveis diligencias para que
desde a idade de 6 annos mandade arranjar as expostas ao
serviço de famílias honestas, promovendo-lhes casamen-
tos, e agenciar-lhes dotes, ou esmolas para principio de
um estabelecimento’.”25
Enquanto no Brasil ainda não se registra especial preo-
cupação com as conseqüências dos trabalhos realizados
pelas crianças, continua-se o processo de exploração como
requisito necessário à subsistência. Por outro lado, na Euro-
pa surgem as primeiras divergências; começava-se a apon-
tar os malefícios do uso da mão-de-obra infantil como de-
generação da classe trabalhadora.26
Mas por aqui, mesmo dez anos mais tarde, a cultura do
trabalho continuava a vigorar como valor e norma, pois “em
1838, o marquês de Itahem, ‘instrui os mestres a ministra-
rem uma educação de acordo com o gênio natural dos fi-
lhos do paiz. Com um documento composto por 12 artigos
que versavam sobre: 9. Ensinar o monarca a incentivar o
trabalho produtivo; 10. Trabalho como princípio e virtude
maior;...”27
A declaração da independência do estado brasileiro irá
25 MARCILIO, Maria Luiza. Op. Cit. p. 63.
26 MORAES, Antônio Carlos Flores de. O direito à profissionalização e a proteção no trabalho.
In: PEREIRA, Tânia da Silva. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado - Lei 8.069/90 -
“Estudos sócio-jurídicos”. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 227. Conforme este autor, “[...] em
1828, o Rei da Prússia recebeu do General Von Horn um informe oficial em que declarava: ‘A
utilização das crianças esgota prematuramente o material humano e não está longe o dia em
que a atual classe trabalhadora não tenha mais substitutivo do que uma massa fisicamente
degenerada.’”
27 MAUAD, Ana Maria. Op. Cit. p. 151.
31
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
assinalar um novo perfil nas práticas assistenciais às crian-
ças brasileiras. Tanto que a partir de 1830 inicia-se uma nova
forma de assistência. Abandonam-se as ações municipali-
zadas e as obras laicas. As Províncias são obrigadas a assu-
mir a assistência e a estabelecer contratos com as Santas
Casas e/ou ordens religiosas (femininas) que passariam a
ser as responsáveis em cuidar das crianças que haviam sido
abandonadas nas Rodas.28
A ascensão do liberalismo na Europa em busca do pro-
gresso, da ordem e a fé na ciência provocará mudanças sig-
nificativas na visão política e imagem das crianças pavimen-
tando o caminho para a instalação de uma república na qual
a infância será vista como o futuro do país.
1.6 As páginas da escravidão
No século XIX, a criança brasileira continuou marcada
pelo estigma da escravidão legitimado por um sistema eco-
nômico concentrador que ignorava os ideais libertários vi-
gentes na Europa em mudança e reproduzia uma radical
desigualdade de classes.
Segundo Mary Del Priore, “enquanto pequeninos, filhos
de senhores e escravos compartilham os mesmos espaços
privados: a sala e as camarinhas. A partir dos sete anos, os
primeiros iam estudar e os segundos trabalhar’.”29 Portan-
to, os meninos das elites recebiam como companheiro para
as brincadeiras um menino indígena (curumim) e depois um
28 MARCILIO, Maria Luiza. Op. Cit. p. 66.
29 PRIORE, Mary Del. Op. Cit. p. 101.
32
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
menino negro (muleque) que seria para tudo: do amigo ao
cavalo de montaria.30
Embora a imagem da infância burguesa obtivesse um
início de atenção, o tratamento às demais crianças continu-
ava diferenciado, brincava-se com elas como se fossem pe-
quenos animais de estimação.31
As conseqüências da reprodução do sistema apontaram
efeitos de longo prazo, pois a dualidade de uma sociedade
dividida entre brancos (senhores) e negros (escravos) foi a
responsável por inúmeras distorções, que se perpetuaram
para muito além deste período histórico. Anotemos para a
questão do trabalho infantil: “Dos escravos desembarcados
no mercado do Valongo, no Rio de Janeiro do início do sé-
culo XIX, 4% eram crianças. Destas, apenas um terço sobre-
vivia até os dez anos. A partir dos quatro anos, muitas de-
las já trabalhavam com os pais ou sozinhas, pois perder-se
de seus genitores era coisa comum. Aos 12 anos, o valor de
mercado das crianças já tinha dobrado. E por quê? Pois con-
siderava-se que seu adestramento já estava concluído e nas
listas dos inventários já aparecem com sua designação esta-
belecida: Chico ‘roça’, João ‘pastor’,Ana “mucama”, trans-
formados em pequenas e precoces máquinas de trabalho.”32
30 ALTMAN, Raquel Zumbano. Op. Cit. p. 243.
31 PRIORE, Mary Del. Op. Cit. p. 96.
32 PRIORE, Mary Del. Op. Cit. p. 12. Ainda sobre este tema, José Roberto de Góes e Manono
Florentino registram que “apenas 4% dos africanos desembarcados no Valongo, naquela épo-
ca, possuíam menos de dez anos de idade. [...] no Brasil o ingresso no mundo dos adultos se
dava por outras passagens; em vez de rituais que exaltavam a fertilidade e a procriação, o
paulatino adestramento no mundo do trabalho e da obediência ao senhor.” (GÓES, José Roberto
de, FLORENTINO, Manolo. Crianças escravas, crianças dos escravos. In: PRIORE, Mary Del
(org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p. 178.)
33
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
Embora o trabalho seja a marca principal imposta à in-
fância escravizada, o interesse especial dos senhores estava
associado aos adultos. As mulheres, por exemplo, eram
agregados aos diversos tipos de trabalho, nas plantações e
na casa grande, lugares igualmente freqüentados pelas cri-
anças que ajudavam em todos os tipos de trabalho.
A inserção precoce de crianças no trabalho era estabeleci-
da sem maiores questionamentos sobre os prejuízos ao seu
desenvolvimento. A freqüente mortalidade de crianças era
naturalizada numa sociedade que pouco valorizou a vida na
escravidão.
O interesse pela criança escravizada estava centrado no seu
valor econômico, determinado pelas habilidades desenvolvi-
das, à medida que uma criança escrava já sabia executar tare-
fas domésticas como: lavar, passar, servir, além de outras tare-
fas como consertar sapatos, manejar com a madeira, pastorear,
ou mesmo na lavoura, o seu preço no mercado se elevava. A
partir dos quatro até os onze anos, a criança passaria a ter, de
forma gradual, o tempo ocupado pelo trabalho. Aprendia a
ter um ofício ao mesmo tempo em que aprendia a ser escravo.
Neste contexto, a “pedagogia senhorial” tinha como atuação
privilegiada o trabalho. “Assim é que, comparativamente ao
que valia aos quatro anos de idade, por volta dos 11, chegava
a valer até duas vezes mais. Aos 14 anos a freqüência de garo-
tos desempenhando atividades, cumprindo tarefas e especi-
alizando-se em ocupações era a mesma dos escravos adultos.
Os preços obedeciam a iguais movimentos.”33
33 GÓES, José Roberto de, FLORENTINO, Manolo. Op. Cit. p. 184-5.
34
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
Neste modelo societário podemos visualizar três ques-
tões interessantes: a utilização de mão-de-obra escrava, uma
educação fundamentada na informalidade e um descaso
com a vida humana em si, por isso altíssimos eram os índi-
ces de mortalidade.34
A reprodução das condições de escravidão passava ne-
cessariamente por um controle estabelecido desde a infân-
cia, ou seja, toda a estrutura de um adulto escravo formava-
se em uma criança que havia sido escravizada.
Geralmente todos os trabalhos pesados, sujos e penosos
eram feitos pelos escravos, alguns trabalhos exigiam até o
aprendizado de ofícios específicos e muitos se tornaram
habilidosos nas suas atividades, condição que acentuava o
valor na mercancia escravista do século XIX.
Por outro lado, a educação não era acessível, uma vez
que inexistia para a criança escrava qualquer tipo de ins-
trução, de modo que suas habilidades intelectuais não eram
estimuladas. Eram os escravos mantidos numa espécie de
eterna infância, pois o despontar para a vida, a sua consci-
entização, poderia ser muito perigosa para o sistema.
No entanto, ainda durante a escravidão continuam sur-
gindo novas instituições de atenção à infância. Em 1855, no
Maranhão, foi criada a Casa dos Educandos Artífices; em
1861, no Rio de Janeiro, o Instituto dos Menores Artesãos; em
1882, em Niterói, funda-se o Asilo para a Infância Desvali-
da. Também a partir de 1860 foram criadas Colônias Agrí-
colas orphanologicas, as quais seguiram os modelos da Fran-
34 LEITE, Miriam L. Moreira. Op. Cit. p. 22-3.
35
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
ça (Colônia de Mettray) ou da Inglaterra (Colônia Red
Hill), em São Luís do Maranhão (1888); na Bahia, Forta-
leza e Recife.35
A ideologia do trabalho como elemento fundamental de
uma sociedade associa-se, no Brasil, ao período de transi-
ção do trabalho escravocrata para o livre, isto por volta da
metade do século XIX. O que equivale afirmarmos que o
trabalho escravo, com o fim do sistema escravagista, foi
transformado em trabalhador livre, no entanto, continuaria
sendo a figura chave do mercado capitalista em que o tra-
balho constituía-se assalariado.36
Portanto, a transição da escravidão para o trabalho livre
não viria significar a abolição da exploração das crianças bra-
sileiras no trabalho, mas substituir um sistema por outro con-
siderado mais legítimo e adequado aos princípios norteado-
res da chamada modernidade industrial. O trabalho precoce
continuará como instrumento de controle social da infância
e de reprodução social das classes, surgindo, a partir daí,
outras instituições fundadas em novos discursos.
1.7 Os aprendizes e marinheiros: trabalho e
disciplina militar
Como já foi exposto, o trabalho nas embarcações nunca
foi novidade no Brasil, desde a invasão portuguesa com os
grumetes e pagens a prática fora habitual. No entanto, a
35 MARCILIO, Maria Luiza. Op. Cit. p. 75.
36 RIZZINI, Irene, RIZZINI, Irma, HOLANDA, Fernanda Rosa Borges de. A criança e o adoles-
cente no mundo do trabalho. Rio de Janeiro: USU/Amais, 1996. p. 30.
36
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
idéia de aprendizagem e a figura do aprendiz remanescentes
da Idade Média da Europa serão incorporados na realida-
de brasileira como alternativa para a consolidação de uma
estrutura militar nacional articulada com a experiência ini-
cial de assistência brasileira.
A aprendizagem já era realizada nas Rodas dos Expos-
tos quando as famílias buscavam crianças para trabalha-
rem como aprendizes. Os meninos geralmente aprendiam
profissões como ferreiro, sapateiro, caixeiro, balconista, tais
como as corporações medievais de ofício realizavam e para
as meninas era reservado o serviço doméstico.
As Companhias de Aprendizes Marinheiros ou Apren-
dizes do Arsenal de Guerra foram constituídas a partir da
profissionalização das crianças, especialmente aquelas
oriundas de famílias de pequenas posses e, principalmen-
te, dos abandonados e desvalidos.
Na época inserir o menino nas Companhias de Aprendi-
zes era uma possibilidade de garantir ao Estado o trabalho
disciplinar controlado pela rígida estrutura hierárquica
militar.
Como continuidade da prática de utilização de crianças
nos navios, além das Companhias de Aprendizes, muitos
também trabalhavam em navios mercantes, geralmente sem
qualquer tipo de preparação ou formação em ofício.
No entanto, as Companhias foram a principal inovação
reproduzida da cultura européia e, extremamente valori-
zada pelas elites militares, políticas e econômicas como es-
tratégia de controle social durante o império.
37
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
O desejo de transformação sistemática dos meninos aban-
donados se fazia através da prática disciplinar, mas pouco
sucesso teve em provocar mudanças estruturais ao longo
do tempo.
Os meninos com idades geralmente entre dez e dezessete
anos, cidadãos brasileiros, eram recrutados e muitas vezes,
deslocados para longe de sua família e comunidade. Ainda
assim, muitos registros apontam a presença de meninos com
menos de dez anos participando das ações militares, como
por exemplo, aqueles que serviram na Guerra do Paraguai.
Da mesma forma, que havia estímulo às famílias de
grumetes no período colonial, o Brasil imperial também re-
compensava financeiramente as famílias, o que poderia aos
pais parecer um bom negócio, pois os pequenos teriam tam-
bém uma oportunidade de acesso ao ensino gratuito nas
instituições militares.
Neste período, de acordocom Miriam L. Moreira Leite,
“tendo em mente que a infância não é uma fase biológica
da vida, mas uma construção cultural e histórica, compre-
ende-se que as abstrações numéricas não podem dar contar
de sua variabilidade. Dos 8 aos 12 anos, os meninos são con-
siderados adultos-aprendizes e vestem-se (de acordo com
a camada social) como tais.”37
O recrutamento forçado operou como estratégia neces-
sária ao controle da infância no século XIX. Isso foi possível
em função de toda uma estratégia montada, na qual a polí-
tica tinha um papel de extrema relevância.38
37 LEITE, Miriam L. Moreira. Op. Cit. p. 19.
38 VENÂNCIO, Renato Pinto. Op. Cit. p. 204.
38
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
O recrutamento através das ações policiais e das oficinas
de aprendizes artífices foi um instrumento importante para
classificação e escolha do perfil infantil que se deseja incor-
porar ao sistema. Ao final, encontrava-se uma farta fonte
de mão-de-obra barata e, muitas vezes, gratuita que se de-
dicava aos mais variados todos os tipos de serviço, tais como
a limpeza das embarcações até os desejos de conforto dos
oficiais, da mesma forma que no período colonial.
A guerra foi o caminho traçado aos meninos empobreci-
dos no século XIX. Garotos eram recolhidos das ruas, ou
praticamente retirados de suas famílias para serem subme-
tidos ao perigo das batalhas, como, por exemplo, a guerra
contra o Paraguai.39
Havia interesse especial no trabalho das crianças, uma vez
que a construção de embarcações tornava imperiosa a pre-
sença de um grande número de trabalhadores, especializa-
dos ou não. O que forçava a instalação de oficinas para crian-
ças expostas a fim de iniciá-las em ofício de marceneiro, entre
outros. Além do que, no interior do estaleiro, a criança con-
vivia com adultos: presos, escravos, degredados.40
Portanto já no século XIX, a aprendizagem consolida-se
como instituto voltado à inserção precoce de crianças
empobrecidas no trabalho, submetendo os pequenos mari-
nheiros as mais variadas condições de perigo, insalubrida-
de e penosidade, mascarada pelo discurso moralizador do
trabalho.
39 VENÂNCIO, Renato Pinto. Op. Cit. p. 208.
40 MARCILIO, Maria Luiza. Op. Cit. p. 74.
39
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
1.8 O recrutamento infantil pelas fábricas
O início da primeira experiência de industrialização no
Brasil, ainda no século XIX, articulada com a suposta aboli-
ção da escravatura irá conduzir contingente significativo de
crianças as fábricas, agora sob o discurso que o trabalho da
criança ajuda a família.
No século XIX, portanto, era comum o emprego de mão-
de-obra infantil, sob a justificativa que somente o trabalho
moldaria o caráter da criança. E assim, o sentido da infân-
cia foi realmente consumido em muitas fábricas, minas e
lavouras.41
Ao final do século XIX, com o início do nosso processo
de industrialização, tivemos a entrada de um número sig-
nificativo de imigrantes. Neste período, configura-se uma
nova imagem: de crianças nas fábricas. Estas crianças subs-
tituíam por um baixíssimo custo o trabalho dos escravos. 42
Esta situação provocava uma vitimização da infância nos
acidentes de trabalho, em razão de estarem realizando tare-
fas totalmente inadequadas para a sua idade, das próprias
instalações da fábrica que eram precárias, sem segurança
alguma, tornando impróprias tais funções.43
Ao passo que as crianças eram exploradas nas fábricas,
41 RIZZINI, Irene, RIZZINI, Irma, HOLANDA, Fernanda Rosa Borges de. Op. Cit. p. 31.
42 PRIORE, Mary Del. Op. Cit. p. 13. Na mesma passagem, exemplo interessante da exploração
do trabalho no início do processo de industrialização: “[...] os pequenos imigrantes passavam 11
horas frente às máquinas de tecelagem, tendo apenas vinte minutos de ‘descanso’.”
43 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Crianças operárias na recém-industrializada São
Paulo. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999.
p. 260.
40
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
ao mesmo tempo instalava-se um sistema educacional no
Brasil, voltado especialmente às elites em ascensão.
A implantação da indústria e sua expansão cooptaram a
mão-de-obra infanto-juvenil, fenômeno este que não ocor-
reu apenas no Brasil, como também em outros países. Em
meados da década de 1870, multiplicaram-se na imprensa
de São Paulo anúncios que solicitavam o trabalho de crian-
ças e adolescentes nas fábricas, em especial, no setor têxtil.44
Interessante, neste processo de “surto industrial” é o
fato que a partir deste momento a infância tornava-se “vi-
sível”, uma vez que exposta em um ambiente que não é o
domiciliar.
As condições de trabalho nas quais foram submetidas
essas crianças nessa época eram realmente desumanas, pois
além de uma jornada estafante de trabalho muito além das
capacidades físicas de um adulto, as crianças eram subme-
tidas, já desde cedo, à convivência com locais insalubres e
perigosos, que muitas vezes abreviavam a própria vida.
Essas duras condições serviram como alerta para a neces-
sidade de disciplinamento jurídico do trabalho infantil.
Segundo Irma Rizzini, muitas casas (asilos) de caridade
foram transformadas em escolas profissionais, patronatos
agrícolas e institutos. São fundadas instituições – por in-
dustriais – que tinham por objetivo preparar uma mão-de-
obra a ser ocupada na produção artesanal e fabril. “Foi o
caso do Seminário dos Meninos, que em 1874 tornou-se o
Instituto de Educandos Artífices, em São Paulo, oferecendo
44 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 262.
41
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
ensino profissional para alfaiates, marceneiros, serralheiros
e seleiros.”45
O trabalho infantil evidentemente será reforçado pela
ideologia do trabalho moralizador, necessário a subsistên-
cia e que, supostamente manteria as crianças afastadas dos
vícios e da criminalidade presente em uma sociedade em
mudança. O próprio surgimento de um novo Código Penal
(o primeiro da República), de 1890, o qual criminalizava a
“vadiagem”, explicitava a ideologia que valorizava o traba-
lho. Ao analisarmos a sociedade brasileira neste período, cons-
tatamos que o descaso do Estado para com a educação públi-
ca está diretamente associado à ideologia que considerava o
trabalho como suporte dignificador das classes pobres.
A maciça inserção de crianças nas fábricas e as degra-
dantes condições de trabalho provocaram a edição da pri-
meira norma brasileira a determinar um limite de idade mí-
nima para o trabalho ainda no século XIX. A primeira norma
brasileira a determinar o limite de idade mínima para o tra-
balho foi o Decreto 1.313, de 17 de janeiro de 1891, que fixou
o limite em doze anos, mas que nunca foi regulamentado.
Segundo Oris de Oliveira, a primeira lei que disciplinou a
matéria do trabalho infantil, na Capital Federal, estabele-
ceu o limite mínimo de doze anos, “salvo a título de aprendi-
zado, nas fábricas de tecidos as que se acharem compreendidas
45 RIZZINI, Irma. Pequenos trabalhadores do Brasil. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das
Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p. 378-379. Descreve Esmeralda Blanco Bolsonaro
de Moura que “...em 1890, segundo a Repartição de Estatística e Arquivo do Estado, aproxima-
damente 15% do total da mão-de-obra absorvida em estabelecimentos industriais da cidade
eram crianças e adolescentes.” (MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 262.)
42
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
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entre aquela idade e a de oito anos incompletos. Esta exceção
infirmou todo o alcance da norma geral porque o ramo in-
dustrial têxtil, era, de longe, o mais numeroso na Capital da
República e em todo o Brasil no final do século XIX”.46
Ora, se existiu a necessidade de uma legislação específi-
ca regulando o trabalho infanto-juvenil, esta, evidentemen-
te, resultou da mobilização social e política constituída a
partir da verificação quanto à violaçãoda integridade das
crianças e adolescentes no decorrer da história.
A formulação de uma legislação de cunho predominan-
temente protetor, estava atenta a garantia da integridade
física do trabalhador de modo que fosse suficiente para re-
produzir novos trabalhadores operários. A preservação da
saúde e higiene decorre especialmente da preocupação de
médicos e educadores influenciados pelos ideais higienis-
tas europeus.
Após o início do primeiro processo de industrialização
no Brasil, a exploração do trabalho infantil começou a pro-
vocar o interesse e a preocupação das autoridades públicas,
que percebiam as péssimas condições de trabalho das cri-
anças nas fábricas, temiam que dentro de pouco tempo, o
próprio sistema capitalista que se instalava poderia ser com-
prometido.
Neste momento, diversas iniciativas surgiram, em busca
de um disciplinamento jurídico que possibilitasse a deter-
minação dos primeiros limites de idade mínima para o tra-
balho. Essas iniciativas iniciaram nos países europeus du-
46 OLIVEIRA, Oris de. O trabalho da criança, Cit. 1994. p. 64.
43
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
rante transição para o século XIX, simultaneamente ao pro-
cesso de industrialização, momento este em que se delinea-
va o próprio direito do trabalho.
O surgimento dos movimentos operários em virtude das
aviltantes e desumanas condições a que eram submetidos
os trabalhadores no início do novo modelo econômico de
produção irá produzir mudanças importantes como expe-
riências iniciais de controle dos abusos contra os trabalha-
dores no século XIX.
Neste contexto, a dura realidade da exploração das cri-
anças, que assolava a Europa do século XIX, proporcionou
que a França em 1841 proibisse o trabalho para menores de
oito anos e limitasse em 12 horas o trabalho para menores
de doze anos. Seguindo o exemplo, a Áustria adotou uma
lei em 1855 e a Suíça editou uma disciplina específica em
1877. Igualmente, em 1882, a Rússia expediu sua primeira
lei de proteção e a Bélgica adotou, em 1888, um conjunto de
medidas protetoras ao menor trabalhador. Em 1891, Portu-
gal proíbe o trabalho infantil e a Alemanha adota o seu Có-
digo Industrial que, igualmente, prevê proteção às crianças
envolvidas em atividade laboral.47
No entanto, no Brasil as mudanças ainda serão sentidas
posteriormente. A proclamação da República trará um novo
olhar em torno da infância, mas a efetiva proteção jurídica
contra a exploração no trabalho ainda percorreria algumas
décadas para ser consolidada apenas no final do século XX.
47 COLOMBO FILHO, Cássio. Algumas considerações sobre o trabalho de crianças e adoles-
centes. In: Revista TRT 9a. Região. Curitiba: TRT, v. 28, 1993, p. 109.
44
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
1.9 A república e as primeiras décadas no novo
século XX
A construção de um estado nacional embasado nos no-
vos princípios republicanos, os ideais positivistas de ordem
e progresso, a especialização de uma perspectiva de ciência
promovida pelo movimento higienista, a organização do
movimento sindical e de uma política internacional de pro-
teção aos trabalhadores são apenas alguns aspectos da nova
sociedade que seria desenhada na passagem do século XIX
para o século XX no Brasil.
O término do sistema escravocrata e o início da Repúbli-
ca exige a construção de uma nova identidade nacional. Sob
a égide das teorias positivistas, tinha a elite brasileira de
igualar o nosso país às nações européias. Isto posto, o assis-
tencialismo filantrópico particular ou a caridade provinda
das ordens religiosas já se revelavam insuficientes para um
período marcado por profundas mutações. Tornava-se im-
periosa a ação estatal. De acordo com Cleverton Elias Vieira,
“Neste processo de publicização do atendimento à popula-
ção infanto-juvenil carente, foi determinante a junção da
mentalidade higienista que defendia medidas profiláticas
para enfrentar as mazelas sociais com os ideais positivistas
de progresso.”48 Assim, de um certo modo, a República pro-
vocou uma resignificação da infância, uma vez que no
ideário republicano, estaria na criança a renovação social.
48 VIERA, Cleverton Elias; VERONESE, Josiane Rose Petry. Limites na educação: sob a pers-
pectiva da Doutrina da Proteção Integral, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006. p. 19.
45
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
Inicia-se um período de regulação do espaço e das rela-
ções urbanas. Em 1894, o Decreto Estadual n.º 233 estabele-
ce em 12 anos o limite para o início em atividades laborais
nas fábricas e oficinas; no entanto, as autoridades compe-
tentes poderiam fazer certas exceções, em atividades aces-
síveis para crianças de 10 a 12 anos de idade. 49
As mobilizações em defesa dos direitos dos trabalhadores
já começavam a incorporar a defesa das crianças exploradas
no trabalho. Por ocasião das festividades do Dia do Trabalho,
em maio de 1898, o trabalhadores reivindicavam: proibição
do trabalho para os menores de 14 anos; de todo trabalho no-
turno, independente da questão da idade, e até mesmo para
os adultos naquilo que fosse possível, e que dever-se-ia dis-
pensar um cuidado especial até os 16 anos de idade.50
Se por um lado surge a preocupação contra a exploração
do trabalho infantil, por outro começa se estabelecer o dis-
curso da profissionalização.51
A infância passa a ter uma importância especial no olhar
da nova república, instala-se uma política jurídica associa-
da a uma higienista, que tinha por objetivo a formação tan-
to de trabalhadores quanto de cidadãos sadios.52
49 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 272. Nesta época, segundo Irma Rizzini,
“levantamentos estatísticos realizados pelo Departamento Estadual de Trabalho de São Paulo a
partir de 1894 demonstram que a indústria têxtil foi a que mais recorreu ao trabalho de menores
e mulheres no processo de industrialização do país. Em 1894, 25% do operariado proveniente
de quatro estabelecimentos têxteis da capital eram compostos por menores.” (RIZZINI, Irma.
Op. Cit. p. 377.)
50 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 279.
51 RIZZINI, Irma. Op. Cit. p. 379. Na passagem, a autora anota que “em 1899 é criado o Instituto
Professora Orsina da Fonseca para o preparo profissional de operárias, de oito a 18 anos.”
52 ABREU, Martha. Op. Cit. p. 290.
46
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
Com a passagem do século XIX para o XX, os jornais
paulistanos registravam as reivindicações do operariado,
sensível, sobretudo, à situação da infância explorada nas
fábricas. A imprensa, em especial a que era escrita pela classe
operária, denunciava as condições precárias, desumanas a
que eram submetidos os trabalhadores nas oficinas e fábri-
cas, as quais se assemelhavam ao cativeiro dos escravos.
“O passado de senhores e escravos de alguns empresários
industriais era lembrado e mestres e contramestres confi-
guravam a versão moderna dos antigos feitores.”53
Já no início do século XX, surgiu uma nova forma de
filantropia, não mais a do modelo caritativo, mas uma ba-
seada na ciência, portanto, em consonância com a nova rea-
lidade que também despontava no sistema social, político e
econômico.
A ciência, deste modo, passou a desempenhar papel im-
portante no novo cenário social brasileiro. Sob a égide
positivista, os indivíduos eram classificados, tipificados,
segundo uma base tida por científica, uma vez que embasa-
da em observações e experimentos, procurava-se fazer uma
leitura dos corpos e, assim, classificá-los como normais,
anormais e degenerados. “Era classificar o tipo segundo
divisões inscritas na natureza, que repartiam e hierarquiza-
vam a humanidade. E era – ao que indica a recorrência da
tópica da degeneração – operar com parâmetros postos pelas
teorias raciais que, desde finais do século anterior, vinham-
se constituindo na linguagem principal dos intelectuais bra-
53 MOURA, EsmeraldaBlanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 279.
47
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
sileiros, no seu afã de pensar as possibilidades de progres-
so para o país e legitimar as hierarquias sociais.”54
É a partir desta perspectiva que as primeiras décadas do
século XX registram o surgimento de instituições, como é o
caso do Instituto Disciplinar, fundado em 1902, o qual de-
fendia a concepção de que ao institucionalizar tinha-se a
possibilidade de “regenerar por meio do trabalho e para o
trabalho a infância e a adolescência que a pobreza estrutu-
ral, matriz do abandono, legava à convivência das ruas.”55
O Instituto Disciplinar com sua pedagogia do trabalho
será o avesso das reivindicações dos trabalhadores por ga-
rantias contra a exploração de crianças nas fábricas.
Na realidade, a prática da institucionalização nunca foi no-
vidade no Brasil, pois em São Paulo, por exemplo, já no século
XIX, havia uma série de institutos privados de recolhimento
de infratores, fundados por ordens religiosas ou pela filantropia
ligada à indústria e ao comércio, como o Lyceu do Sagrado
Coração de Jesus, o Abrigo de Santa Maria, o Instituto D. Ana
Rosa e o Instituto D. Escholastica Rosa, da cidade de Santos.
Estes institutos, em regra, tinham por enfoque o ensino profis-
sional dos filhos de comerciantes e operários.56
54 CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Quando a história da educação é a história da disciplina
e da higienização das pessoas. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). História Social da Infân-
cia no Brasil. 2 ed. São Paulo: Cortez/USF, 1999. p. 275.
55 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 277. E ainda: “são comuns nas décadas
iniciais deste século, as referências à necessidade de aumentar a capacidade do instituto – que
só recebia menores da capital – de estabelecer similares nas cidades do interior, bem como de
enfrentar a questão pelo prisma das meninas e adolescentes do sexo feminino, a cujo respeito
o Estado mantinha-se omisso.” (MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 278.)
56 SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE,
Mary Del (org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p. 222.
48
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
Mas a República traz uma nova justificativa para a insti-
tucionalização o combate à ociosidade e a criminalidade
como duas faces da mesma realidade, controlados especi-
almente pelas instâncias do poder judiciário, uma vez que
a internação de jovens nos institutos disciplinares tinha por
fundamento uma sentença judicial, a qual determinava, in-
clusive, o tempo de permanência na instituição. A base
positivista destas casas determinava que o trabalho, o com-
bate ao ócio seriam as fórmulas da regeneração.
Registra Marco Antonio Cabral dos Santos que a rotina dos
internos era toda cercada de um complexo de atividades,
estabelecidas com rigorosa disciplina: o horário de acordar
era às cinco e meia da manhã e, mesmo no inverno, era obri-
gatório tomar um banho frio e ir para o trabalho, cuja jorna-
da era das seis da manhã às cinco e meia da tarde. No ve-
rão, acordavam ainda mais cedo – às cinco horas – e traba-
lhavam até às cinco horas da tarde. Durante tal jornada es-
tavam incluídas as horas que seriam ocupadas com as au-
las e com o descanso após as refeições. Não havia nos regu-
lamentos nenhuma previsão para o lazer, “o que era causa
de constantes protestos e conseqüentes punições. As brin-
cadeiras e jogos não eram tolerados, o que impelia os me-
nores a praticá-los às escondidas, mesmo durante o regime
de trabalho.”57
A legitimação dos interesses capitalistas pela exploração
do trabalho infantil passou a ser realizada pela perspectiva
do combate à criminalidade utilizando-se o conceito da ca-
57 SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Op. Cit. p. 226.
49
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
pacidade de discernimento e de trabalho para o traço da
política criminal.
 No Brasil, desde 1830, com o Código Criminal do Impé-
rio, os menores de quatorze anos não eram julgados como
criminosos pelos atos que praticavam (art. 10, § 1º). Se fos-
se provado que os que infringiam as normas penais com
idade inferior a quatorze anos apresentavam discernimen-
to sobre os crimes praticados, estes eram recolhidos às Ca-
sas de Correção, pelo tempo que o juiz entendesse, contanto
que tal recolhimento não excedesse os dezessete anos de
idade (art. 13). Na realidade, o que temos neste contexto
trata-se de uma imputação, só que diferenciada, assim, já
podemos visualizar aí os germes originários do menorismo
O primeiro Código Penal da República de 1890, foi ain-
da mais severo, pois ao tratar da responsabilidade crimi-
nal, dispôs no art. 27 que os menores de nove anos comple-
tos não seriam criminosos, como também, os maiores de
nove e menores de quatorze anos, que tivessem agido sem
discernimento. Se os de idade entre nove e quatorze anos
tivessem praticado atos compreendidos como delituosos
com discernimento, seriam recolhidos a estabelecimentos
disciplinares industriais, pelo tempo que o juiz julgasse con-
veniente, desde que não excedesse os dezessete anos de ida-
de (art. 30). Este mesmo Código considerava a menoridade
como circunstância atenuante, nas hipóteses de ter o agente
idade inferior a vinte e um anos (art. 42, §11).
O Código Penal da República previa o crime de vadia-
gem, principal argumento para as estratégias de controle
50
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
social da infância. “As ruas da cidade, repletas de trabalha-
dores rejeitados pelo mercado formal de mão-de-obra e ocu-
pados com atividades informais, era palco de inúmeras pri-
sões motivadas pelo simples fato de as ‘vítimas’ não conse-
guirem comprovar, perante a autoridade policial, sua ocu-
pação.”58
Enquanto a política criminal, institucionalizava a infân-
cia, o movimento dos trabalhadores continuava a denunci-
ar a exploração e reivindicar uma proteção mínima, como
redução da jornada de trabalho; aumento salarial, sendo que
esta última reivindicação tinha por objetivo possibilitar aos
filhos instrução e, conseqüentemente, ascensão social.
Reforçava-se neste período toda uma crítica à explora-
ção da mão-de-obra infanto-juvenil nas fábricas. Esta críti-
ca, que se manifestava na imprensa paulistana, tinha como
alvo não apenas o empresário, mas também o serviço sani-
tário, uma vez que era este que deveria fiscalizar.
Ainda neste contexto, também os pais foram submeti-
dos a duras críticas, sob o argumento de que estariam ex-
plorando seus filhos. Mesmo que na grande maioria dos
casos o uso da mão-de-obra de infantes nas oficinas e fábri-
cas tinha por causa principal a própria situação de misera-
bilidade do operariado num todo, alguns indivíduos apon-
tavam que para além desta questão em si, associava-se a
exploração dos filhos por parte de seus próprios pais.59
Merece referência a relação trabalho e criminalidade que
58 SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Op. Cit. p. 222.
59 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 281.
51
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
passa a se constituir já no início do século XX. A idéia de
correção associava-se à pedagogia do trabalho. Símbolo disto
é a metáfora atribuída a Washington Luiz (então Secretário
de Segurança Pública – 1906), para o qual: “questão social é
uma questão de polícia.” 60
Se havia todo um discurso a favor do trabalho, a realida-
de apresentava um quadro nebuloso: as fábricas repletas
de crianças e, fora delas, um número expressivo de adultos
desocupados. As estatísticas apontavam que, no começo da
década de 1910, nas fábricas têxteis da cidade de São Paulo,
30% das vagas eram ocupadas por infantes. O que dava a
entender que não existia nenhum tipo de legislação que vi-
sasse proteger a pessoa do infante ou adolescente trabalha-
dor. Mas isto não era verdade, o que não havia era um de-
sejo que tal legislação fosse aplicada.“Os dispositivos que
regulamentavam a atividade de crianças e adolescentes nas
fábricas e oficinas estavam diluídos no conteúdo de um cor-
po legislativo mais amplo, os Códigos Sanitários do Estado
e consistiam de fato, em medidas restritas.”61
Verifica-se que na década de 1910, do Decreto Estadual
n.º 2.141/1911, Lei Estadual n.o 1596/1917, com o seu sanci-
onamento em 1918, a legislação possibilita o trabalho no-
turno aos menores de 18 anos de idade. Sendo que o citado
60 SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Op. Cit. p. 222. “Em seu relatório de 1904, o chefe de
polícia Antônio Godoy defendia: a pena específica da vagabundagem é incontestavelmente o
trabalho coato. E é uma pena específica, porque realiza completamente as duas funções que
lhe incumbem; tem eficácia intimidativa, porque o vagabundo prefere o trabalho à fome; tem o
poder regenerativo, porque submetido ao regime das colônias agrícolas ou das oficinas, os
vagabundos corrigíveis aprendem a conhecer e a prezar as vantagens do trabalho voluntaria-
mente aceito.” (SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Op. Cit. p. 228.)
61 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 271.
52
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
Decreto Estadual n.º 2.141, estabelecia em 10 anos o limite mí-
nimo para ingresso no trabalho; no entanto, entre os 10 e os 12
anos, a criança poderia executar somente serviços leves.62
Irma Rizzini indica que “em 1912, de 9.216 empregados
em estabelecimentos têxteis na cidade de São Paulo, 371 ti-
nham menos de 12 anos e 2.564 tinham de 12 a 16 anos. Os
operários de 16 a 18 anos eram contabilizados como adul-
tos. Do número total de empregados, 6.679 eram do sexo
feminino.”63
Ao analisarmos o período histórico da República Velha,
constatamos que o trabalho realizado por crianças e adoles-
centes constituiu uma imagem fiel do baixo nível econômi-
co das famílias pertencentes à classe operária, que viviam
com salários irrisórios num contexto de vida com custos
altíssimos. O quadro geral era de uma odiosa exploração:
os salários do trabalhador adulto do sexo masculino eram
comprimidos; exploração do trabalho feminino e o valor da
mão-de-obra das meninas e adolescentes era ainda mais
reduzido, o que demonstra claramente uma dupla discri-
minação, isto é, de idade e de sexo. Enfim, este quadro era
uma resultante do objetivo do empresariado em manter a
produção com custos baixos.64
Ainda no início do século XX , ocorreram outras tentati-
vas com vistas à regulamentação do trabalho infantil, como
o Projeto Parlamentar no. 4-A, de 1912; o Decreto Municipal
62 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 272.
63 RIZZINI, Irma. Op. Cit. p. 377.
64 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 262.
53
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
no. 1.801, de 1917, que tentavam regulamentar, na cidade
do Rio de Janeiro, o trabalho dos então designados menores,
mas estas iniciativas resultaram, praticamente, infrutíferas.65
Registra Marta Maria Chagas de Carvalho que sob o im-
pacto do movimento operário e greves, ao final da década
de 1910, somado ao refluxo da imigração provocado pela
Primeira Grande Guerra, cai por terra o mito da imigração.
Tal fenômeno teve como efeito permitir que as populações,
até então excluídas, fossem escolarizadas, como pos-
sibilidade de um efetivo progresso. “Não é outro sentido
da ‘descoberta’ feita pelos entusiastas da educação na déca-
da de 1920: a de que a educação era o ‘grande problema
nacional’ por sua capacidade de ‘regenerar’ as populações
brasileiras, erradicando-lhes a doença e incutindo-lhes há-
bitos de trabalho.”66
No que se refere a uma maior proteção à criança contra a
exploração no trabalho, somente em 1917 inicia-se um mo-
vimento que visa em particular esta questão. Por exemplo,
em São Paulo, o Centro Libertário (ainda do movimento
anarquista), criou o Comitê Popular de Agitação contra a
Exploração dos Menores nas Fábricas. Fazendo uso de ma-
nifestações públicas contra tal exploração, como também
defendendo o descumprimento das raras disposições legais
sobre a questão. Também os pais eram “chamados” a se
inscreverem na luta de forma a exigir melhores salários e
condições de trabalho, de sorte a poder sustentar com dig-
65 MORAES, Antônio Carlos Flores de. Op. Cit. 1992, p. 230.
66 CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Op. Cit. p. 283.
54
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
nidade suas famílias, sem precisar explorar a mão-de-obra
dos filhos.67
Já a partir de abril de 1917 a imprensa pouco noticiava as
ações do comitê mencionado acima. De qualquer modo, toda
a movimentação anarquista gerou um processo de insatis-
fação que se alastrava em São Paulo, a tal ponto que resul-
tou na greve geral de julho quando, além das muitas reivin-
dicações da classe operária, fazia-se presente uma que de-
fendia como requisito para a admissão nas oficinas e fábri-
cas fosse a idade mínima de 14 anos e que para os menores
de 18 anos fosse proibido o trabalho noturno. Entre as de-
núncias levantadas, uma delas referia-se ao descumprimen-
to das normas, como, por exemplo, do Decreto n.º 13.113,
de 17 de janeiro de 1891, o qual proibira que crianças traba-
lhassem na faxina e nas máquinas em movimento.
Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura registra já nesta épo-
ca o discurso de que “‘o lugar desses menores é a escola’,
argumentava Cazemiro da Rocha no ano de 1917, em ses-
são da Câmara dos Deputados em São Paulo.”68
Deste período, podemos apontar algumas normas que
visavam à proteção contra a exploração do trabalho de cri-
anças:
67 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 282. Neste período, de acordo com
Edson Passetti, “nos centros urbanos diversas e expressivas greves foram acontecendo em
reivindicação de direitos trabalhistas até que em julho de 1917, eclodiu uma greve geral parali-
sando os setores industriais, comerciais e de transportes em São Paulo. A denúncia a respeito
da exploração do trabalho infantil teve muita repercussão. O jornal A Plebe, de 9 de junho de
1917, no seu número 1, noticiou que o Comitê Popular de Agitação contra a Exploração de
Menores tem promovido reuniões em vários bairros com o fim de organizar as ligas operárias
que, dentro em breve, reconstruirão a união geral dos trabalhadores.” (PASSETTI, Edson. Op.
Cit. p. 351.)
68 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 281.
55
TRABALHO INFANTIL:
a negação do ser criança e adolescente no Brasil
 - Lei Estadual n.º 1.596, de 1917: fixa a jornada de traba-
lho em cinco horas diárias, para os trabalhadores na
faixa etária de 12 a 15 anos;
 - Decreto Estadual n.º 233, de 1894: jornada de doze ho-
ras para o trabalhador adulto. Este decreto determi-
nava intervalos para que o trabalhador fizesse as re-
feições e proibia para os meninos menores de 15 anos
e para as meninas (também mulheres), com menos de
21 anos, o trabalho noturno além das nove horas;
 - Lei Estadual n.º 1.596, de 1917 e Decreto n.º 2.918, de
1918: exigiam a apresentação de certificado de presen-
ça anterior em escola primária e atestado médico de
capacidade física. Além do que, de acordo com esses
dispositivos, os menores que tivessem entre doze e
quinze anos de idade não poderiam trabalhar em fá-
bricas de bebidas alcoólicas (fermentadas ou destila-
das), em estabelecimentos industriais insalubres ou
perigosos, como também não podiam executar funções
que resultassem em grande exaustão, riscos de aciden-
tes, que exigissem conhecimento e atenção específicos
e ainda os que fosse lesivos à sua formação moral.69
Embora as mobilizações de 1917 tenham surtido efeito
com a aprovação de algumas legislações protetoras à infân-
cia, a efetividade ainda estava distante, tanto que em 1919
foi realizado um levantamento em 194 indústrias de São
69 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Op. Cit. p. 272.
56
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE
Paulo, o qual verificou que 25% da mão-de-obra emprega-
da era constituída por operários com idade inferior a de 18
anos,

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