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Código Logístico 57113 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6373-4 9 788538 763734 A geografia tem como objeto de estudo o espaço geográfico, que é formado por sistemas de objetos e ações por vezes expressos nos meios urbano e rural. Sua organização se dá por intermédio de especificidades presentes nesses meios. Desse modo, pensar o espaço rural não se restringe a analisar as atividades econômicas ali desenvolvidas, mas consiste também em pensar nas relações sociais, culturais, nas formas de organização espacial e nas relações com o meio ambiente ali presentes. A área da Geografia que trata da relação entre o campo e o homem engloba diferentes abordagens teórico-conceituais. Alguns estudiosos se referem a ela como geografia rural, outros como geografia agrária, outros, ainda, como geografia agrícola ou até mesmo como geografia da agricultura. Este livro procura esclarecer esses diferentes conceitos e abordagens, além de apresentar um panorama sobre a estrutura agrária brasileira e sua relação com o desenvolvimento econômico e social do país. G E O G R A F IA R U R A L Jo n n a s G o n ça lves S o a res | M a n o ella d e S o uza S o a res Geografia rural IESDE BRASIL S/A 2018 Jonnas Gonçalves Soares Manoella de Souza Soares Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ S654g Soares, Jonnas Gonçalves Geografia rural / Jonnas Gonçalves Soares, Manoella de Souza Soares. - [2. ed.]. - Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2018. 160 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6373-4 1. Geografia agrícola. 2. Agroindústria. 3. Agropecuária. 4. Brasil - Condições rurais. I. Soares, Manoella de Souza. II. Título. 18-50365 CDD: 630.981 CDU: 63(81) © 2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: kongjongphotostock/iStockphoto Jonnas Gonçalves Soares Mestre em Informações Espaciais (Geoprocessamento) pelo Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Bacharel em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), licenciado em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Tem experiência e interesse nas seguintes áreas: geografia agrária, cartogra- fia, geoprocessamento, limites territoriais em litígio, MDE, representação do espaço, sensoriamen- to remoto, sistemas de informações geográficas e geociências. Manoellla de Souza Soares Mestre e doutoranda em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), na linha de pesquisa de Paisagem e Análise Ambiental, graduada em Bacharelado e em Licenciatura em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Participante do Laboratório de Hidrogeomorfologia da UFPR, com pesquisas em geoarqueologia, análise micromorfológica em arqueologia, geoquímica, análises arqueométricas, como Raman e MEV, uso de Fetch para delimi- tação de áreas de interesse de análise de processos erosivos e impactos de reservatórios em sítios arqueológicos em faixa de depleção. Com experiência na preparação de materiais didáticos, é au- tora de uma obra para alunos do Ensino Fundamental. Sumário Apresentação 7 1 Perspectivas teóricas e metodológicas 9 1.1 Histórico dos estudos agrários 9 1.2 Conceitos 12 1.3 Abordagens teórico-metodológicas 14 2 A propriedade da terra e suas relações de produção 21 2.1 Propriedade da terra 21 2.2 Grilagem de terras 23 2.3 Propriedade de terras por estrangeiros 27 3 A formação histórica do espaço agrário brasileiro 33 3.1 Espaço agrário colonial-escravista 33 3.2 Espaço agrário capitalista 35 3.3 Desigualdades sociais e regionais 38 4 A renda fundiária, o agronegócio e a produção brasileira de grãos 49 4.1 Renda fundiária 49 4.2 O agronegócio 53 4.3 A produção brasileira de grãos 56 5 Estrutura agrária brasileira 65 5.1 Latifúndio 65 5.2 Pequenas propriedades 69 5.3 Povos da terra 71 6 Os movimentos sociais do campo brasileiro, a reforma agrária e a luta pela terra no Brasil 81 6.1 Movimentos sociais rurais brasileiros 81 6.2 Reforma agrária 85 6.3 Conflitos pela terra 89 7 As relações sociais de produção no espaço rural brasileiro 97 7.1 A formação e as transformações do espaço rural brasileiro: uma visão histórica 97 7.2 Os principais processos transformadores do espaço rural brasileiro 102 7.3 O espaço rural: aspectos demográficos de interesse 104 8 Agricultura familiar e monocultura 111 8.1 Agricultura familiar: resistência ao mercado e às pressões sistêmicas 111 8.2 Monocultura: das questões econômicas e territoriais ao problema socioambiental 115 8.3 Geografia da fome: uma visão socioespacial da segurança alimentar 118 9 Novas ruralidades e relação campo-cidade 125 9.1 Rural e urbano: reflexões para além da contraposição de espaços 125 9.2 As novas ruralidades do espaço rural brasileiro 128 9.3 Brasil: um país realmente urbano? 130 10 Instituições e políticas públicas para o desenvolvimento rural 137 10.1 O Estado brasileiro na transformação do espaço rural 137 10.2 O desenvolvimento no espaço rural: reflexões e apontamentos 142 10.3 Espaço rural e meio ambiente 143 Gabarito 151 7 Apresentação A geografia tem como objeto de estudo o espaço geográfico, que é formado por sistemas de objetos e ações por vezes expressos nos meios urbano e rural. Sua organização se dá por in- termédio de especificidades presentes nesses meios. Desse modo, pensar o espaço rural não se restringe a analisar as atividades econômicas ali desenvolvidas, mas consiste também em pensar nas relações sociais, culturais, nas formas de organização espacial e nas relações com o meio ambiente ali presentes. A área da geografia que trata da relação entre o campo e o homem engloba diferentes abor- dagens teórico-conceituais. Alguns estudiosos se referem a ela como geografia rural, outros como geografia agrária, outros, ainda, como geografia agrícola ou até mesmo como geografia da agricul- tura. Para esclarecer esses diferentes conceitos e abordagens, subdividimos esta obra didaticamente em dez capítulos. O Capítulo 1 apresenta as relações de perspectiva dos estudos agrários, buscando identificar as abordagens teórico-metodológicas que embasam a área. No Capítulo 2, reflete-se sobre as rela- ções entre a propriedade da terra e o campo, incluindo o fenômeno da grilagem de terras, prática fraudulenta e recorrente no campo brasileiro. O Capítulo 3 pretende esclarecer sobre a formação do espaço agrário brasileiro, assim como as desigualdades sociais e regionais, advindas dos contextos colonial-escravista e capitalista. O Capítulo 4, por sua vez, caracteriza as relações de poder entre a renda fundiária, o agronegócio e a produção brasileira de grãos. No Capítulo 5, pretende-se analisar a formação da estrutura agrária brasileira e suas desigualdades, com a distinção entre latifúndios e pequenas propriedades. No Capítulo 6 são enfocados os movimentos sociais do campo brasileiro, na busca pela igualdade e a luta pela reforma agrária. No Capítulo 7, é feita uma reflexão sobre as diversas re- lações sociais de produção existentes no espaço rural do Brasil. O Capítulo 8 trata da agricultura familiar, das monoculturas e da segurança alimentar no país. No Capítulo 9, são abordadas as novas perspectivas do campo no século XXI e a relação atual entre campo e cidade, com seus movimentos e a exploração do turismo rural e ecológico. Por fim, o Capítulo 10 apresenta a importância das instituições e políticas públicas para o desenvolvi- mento rural sustentável. Boa leitura! 1 Perspectivas teóricas e metodológicas Jonnas Gonçalves Soares A agricultura está em constante evolução. Isso ocorre desde que surgiramas primeiras civi- lizações organizadas, e o ser humano deixou de ser nômade para se fixar em locais com abundante disponibilidade hídrica e solos férteis para desenvolver a agricultura e alimentar um número cada vez maior de indivíduos. O desenvolvimento de metodologias de observação e o advento das técnicas e ferramentas fez com que surgissem, entre os séculos XVIII e XIX, estudos na área da ciência agrária. À medida que esses estudos se desenvolveram, diferentes conceitos e distintas abordagens – propostas por pensadores clássicos e estudiosos da área – enriqueceram o debate sobre o tema, que é notabili- zado por sua importância política, econômica e social. Assim, para adentrarmos no universo da geografia agrária, conheceremos neste capítulo as abordagens clássicas desse campo. 1.1 Histórico dos estudos agrários Como já mencionamos, a agricultura surge quando o ser humano deixa de ser nômade para se fixar em uma região. Não se sabe o momento exato em que ocorreu essa transição, mas estima-se que a prática da agricultura, assim como a domesticação de animais tenha se iniciado por volta de 10.000 a 3.000 a.C. (GOSDEN, 2012). Essas atividades se estabelecem conforme a sociedade acu- mula condições para tirar proveito das potencialidades de um determinado meio natural. Nesse período, a agricultura apenas complementava o consumo alimentar das populações, pois a maior parte da alimentação ainda era proveniente da pesca, da caça e da coleta. Essa nova forma de sustento – aliada ao desenvolvimento de ferramentas – possibilitou a sedentariedade, principalmente em locais em que o meio natural ofertava condições favoráveis ao desenvolvimento de plantas e animais, isto é, áreas com terrenos aluviais1 e ao longo de cursos d’água com grande disponibilidade hídrica (OLIVEIRA JR., 1989). A fixação das populações propiciou ainda a criação de animais, que, ao serem capturados vivos, eram mantidos presos para consumo futuro. Esses animais se reproduziam, fato que facilitou a domesticação para a alimentação e diminuiu a necessidade de longas saídas para caça. O Quadro 1 mostra-nos o conjunto de animais e plantas característicos de cada região: 1 Terrenos compostos por “detritos ou sedimentos clásticos de qualquer natureza, carregados e depositados pelos rios. Esse material é arrancado da margem e das vertentes, sendo levado em suspensão pela água dos rios, que o acu- mulam em bancos, constituindo os depósitos aluvionares” (GUERRA, 1993, p. 22). Geografia rural10 Quadro 1 – Plantas e animais característicos de cada região Oriente Médio Cereais: trigo e cevada Leguminosas: lentilha, ervilha e fava Têxtil: linho Animais: bovinos, ovinos, caprinos e aves (galinhas) Europa Ocidental Cereais: trigo, cevada, aveia e centeio Leguminosas: lentilha, ervilha e fava Têxtil: linho Animais: bovinos, ovinos, caprinos e aves (galinhas) América Central Cereais: milho Leguminosas: feijão Têxtil: algodão Animais: porcos Amazônia Cereais: milho Leguminosas: feijão Tubérculos: mandioca Região andina Cereais: milho Leguminosas: feijão Tubérculos: batata China Cereais: arroz Leguminosas: soja Fonte: Adaptado de Oliveira Jr., 1989, p. 12. Baiardi (2004) organiza a origem do pensamento agrário em seis momentos epistemológi- cos. O autor considera o apogeu da Antiguidade Clássica até o início da Era Cristã – um período de aproximadamente cinco séculos – o primeiro momento epistemológico da origem do pensamento agrário. É nessa época que a produção do conhecimento das ciências agrárias traz suas primeiras contribuições, baseadas em estudos da sociedade ocidental ao longo dos séculos XVIII e XIX. Segundo Corazza e Martinelli Jr. (2002), na Grécia e Roma antigas, a agricultura é considerada a atividade econômica mais importante e é base econômica da família, movida pelo trabalho escravo. Também na Antiguidade, a Escola de Alexandria – localizada no Egito e que revelou nomes como Erastóstenes (276-194 a.C.) e Ptolomeu (100-170 d.C.) – exerce o papel de centro de cultura irradiador de métodos e conhecimentos. Nessa escola, a obra de Columela (4-70 d.C.) obtém gran- de reconhecimento social ao abordar o sistema agrário Romano com base em registros, observa- ções e experiências da época. O segundo momento epistemológico influencia as contribuições dadas à ciência na Idade Média. As produções dessa época são embasadas em visões e padrões determinados pela busca do saber de acordo com a perspectiva cosmológica-dogmática da Igreja católica. Nelas, buscava-se evitar o rompimento entre fé e ciência com a união do pensamento de Aristóteles (384-322 a.C.) e o cristianismo. Essa fusão de ideias, presente nos escritos de Tomás de Aquino (1225-1274), afirmava que a razão e a fé não são indissociáveis, pois ambas descenderiam de Deus. Perspectivas teóricas e metodológicas 11 A Igreja católica acreditava que as ideias de Tomás de Aquino contemplavam ao mes- mo tempo o entendimento de uma ordem natural estabelecida por Deus e a busca pelo saber. Em virtude disso, todas as novas descobertas científicas que contrariavam o eixo de pensamento tomista foram desqualificadas, fato que prejudicaria por tempos o desenvolvimento de estudos que deu início à geografia agrária. Para prosseguir com os estudos e buscar outras explicações (diferentes da Igreja), é neces- sário se aprofundar em aspectos presentes no próprio método aristotélico, como a observação, a experiência e a teorização. Com base nesse caminho, é possível aprofundar o conhecimento científico, inclusive o agronômico (BAIARDI, 2004). A agricultura ainda continuava como a principal atividade responsável pela manutenção e sustento do feudo, realizado pelo trabalho servil. No entanto, a atividade agrícola era voltada para a subsistência da sociedade, sem fins lucrativos. Embora a Igreja não condenasse a riqueza, essa mentalidade impedia o desenvolvimento de atividades econômicas que visassem a algum ganho material (CORAZZA; MARTINELLI JR., 2002). O terceiro momento epistemológico se dá a partir do século XIV – principalmente no Renascimento –, caracterizado pela rejeição das ideias de Aristóteles e valorização dos preceitos de Tomás de Aquino. No Renascimento, o conhecimento vai além do ponto de vista aristotélico (BAIARDI, 2004). Nesse momento, a experimentação assume outra função, além do empirismo puro, ela se torna um método sujeito à prova. O novo procedimento pela busca do conhecimento – o método empírico, proposto por pesquisadores como Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630) –, baseia-se em relações quantitativas determinadas numericamente e abandonava métodos sem comprovação empírica e cientificamente questionáveis. As ciências agrárias também se beneficiaram dessa nova metodologia, na qual “entomologistas, microbiologistas e agrônomos italianos [...] lançam as ba- ses para o conhecimento do ciclo de vida dos micro-organismos e dos insetos, o que traz grande avanço às técnicas de proteção das plantas (ROSSINI, VANZETTI, SALTINI, 1984; ROSA, 1883 apud BAIARDI, 2004). Nos séculos XV, XVI e XVII, o mercantilismo intensifica a mudança do papel da agri- cultura na sociedade e deixa de ser uma atividade de subsistência. Juntamente com o comércio, torna-se responsável pela geração do excedente econômico e da riqueza. Essa é uma longa etapa de transição em que são criadas condições para o surgimento do modo capitalista de produção (CORAZZA; MARTINELLI JR., 2002). No quarto momento epistemológico, a revolução científica amadurece a ideia de René Descartes (1596-1650) acerca da necessidade de um sistema filosófico coerente que almeje muito mais do que uma pura e simples interpretação do cristianismo. Nesse momento, a agronomia é impulsionada em termos de mecanização e manejo do solo; de seleção de animais e plantas; e de proteção às colheitas. Esses aspectos favoreceram a vida urbana e o mercantilismo (ROSSINI, VANZETTI, SALTINI, 1984; ROSA, 1883 apud BAIARDI, 2004). Ehlers (2017)ressalta que, com o avanço do conhecimento científico, surge, no século XVIII, a agricultura moderna que inaugura a primeira revolução agrícola. Essa ocorre quando os Geografia rural12 produtores passam a cultivar as pastagens para o gado, isto é, unem duas atividades que até então eram completamente separadas: a agricultura e a pecuária. O quinto momento epistemológico ocorre na primeira Revolução Industrial (1760-1860). Nesse período, o empirismo e o racionalismo fortalecem a ideia da valorização do real e da repre- sentação do concreto, em que ambos são igualmente dependentes da observação e da experiên- cia. Essa noção, existente na obra de Immanuel Kant (1724-1804) e presente até os dias de hoje, reconhece a importância de ambas abordagens. Suas concepções influenciaram as gerações de teóricos posteriores, como Georg Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883). De acordo com Baiardi (2004), o século XX vivencia o quinto momento epistemológico. A segunda revolução agrícola – também chamada de revolução verde, ocorrida na segunda metade do século – proporcionou o uso da experimentação e observação, em grande parte pelos agrôno- mos que resistiam a colocar em prática preceitos com base em crenças populares (PETERSEN et al., 2009). Os avanços empreendidos no âmbito das ciências agrárias, relacionados ao uso e manejo de solos pesados e à irrigação e drenagem aplicadas à agricultura, ocorrem por experimentações. O monocultivo em larga escala – devido a avanços da química agrícola, genética convencional e nutrição das plantas – dá sustentação à expansão industrial. Por fim, o sexto momento epistemológico – caracterizado pelo pensamento científico contemporâneo – tem influência do positivismo, impulsionado pelas obras de Auguste Comte (1798-1957). Essa forma de pensamento valoriza os preceitos da ciência moderna, com base na observação e na experiência para a produção do conhecimento (BAIARDI, 2004). Os trabalhos de Bertrand Russell (1872-1970), sobre a função da lógica no conhecimento; os pensadores do Círculo de Viena2, sobre a linguagem ideal e o empirismo lógico; ou, ainda, os trabalhos de Karl Popper (1902-1994), em que ele critica o empirismo, são contribuições que possibilitaram o surgimento de outras abordagens metodológicas nas ciências agrárias e fizeram com que o pensamento agronômico recebesse novas contribuições e influências. Essas e outras abordagens a continuam a influenciar as ciências agrárias à medida que o fim do século se aproxima, sendo corroboradas pela revolução científico-tecnológica, iniciada a partir da década de 1970. Essa revolução propõe uma abordagem sistêmica da investigação científica e apresenta as bases das abordagens interdisciplinares, que, no âmbito das ciências agrárias, trazem avanços significativos, como a agricultura de precisão, a modificação genética de plantas e animais e outras inovações que remetem cada vez mais para a perspectiva da segurança alimentar em um cenário de sustentabilidade da relação solo-homem-plantas. 1.2 Conceitos A área da geografia que trata da relação entre o campo e o homem tem diferentes aborda- gens teórico-conceituais. Costuma ser classificada por alguns estudiosos de acordo com o grau de profundidade – como geografia agrária, geografia rural, geografia agrícola ou em alguns casos 2 Grupo de pensadores de diversas áreas do conhecimento que se reuniam na Universidade de Viena, Áustria, no início do século XX. Perspectivas teóricas e metodológicas 13 até como geografia da agricultura. Segundo Ferreira (2002), a definição dos conceitos utilizados é baseada no ponto de vista de cada área de atuação, como economia, ciências sociais, solos, entre outras. O termo geografia agrária passou a ser utilizado nos últimos 60 anos por diversos autores. Migliorini (1950) é um dos primeiros estudiosos a dissertar sobre as diferentes visões do conceito de geografia agrária, definindo-a em sua obra A geografia agrária no quadro da ciência geográfica como um campo de estudo, a paisagem rural, isto é, a fisionomia concreta que deriva de um determinado tratamento da superfície terrestre, pela coordenação sobre ela de todos os aspectos espaciais, o que dá lugar à utilização agrária do solo; assim como a repartição das culturas e das sistematizações dos terrenos em relação às suas viabilidades e aos seus mercados. (MIGLIORINI, 1950, p. 1.081) Gribaudi (apud Megale, 2011) compreende a paisagem rural como um objeto da geografia agrária que carrega as evidências da ocupação do solo pelo homem, de onde é retirado seu susten- to. Já U. Toschi (apud Megale, 2011) acredita que é função da geografia agrária o reconhecimento da distribuição da economia rural em suas variadas formas sobre a superfície da terra, e a pesquisa das relações entre economia rural e o ambiente em seu sentido geográfico. Otremba (1955) considera a geografia agrária como parte da geografia econômica. Para o autor, trata-se da ciência da terra modificada pela agricultura no todo, assim como em suas diver- sas partes, isto é, em seu aspecto exterior, interior e suas ramificações. Já Rochefort (1964) defende que a geografia agrária é o estudo da integração dos elementos do complexo agrário. Esses elementos devem ser analisados como um todo e não separadamente. O autor, para estabelecer o campo de estudo da geografia agrária, faz a seguinte reflexão: Num determinado meio natural, dividido em função do quadro jurídico e social das propriedades e dos regimes de trabalho, um grupo humano, dispondo de certas técnicas, explora esse meio natural, seja para se alimentar seja para ven- der os produtos de sua atividade. Esta combinação agrária traduz-se por certa produção e uma determinada paisagem. (ROCHEFORT, 1964, p. 133) Para Rochefort, o conceito de agrário traz tantos componentes sociais quanto políticos, como relações de trabalho, relações fundiárias e econômicas. Já o conceito de agrícola está associado às práticas técnicas como plantio, trato, colheita, entre outros. Em outras palavras, esses conceitos estão relacionados à produção e à produtividade agrícola (THOMAZ JR., 2010). Silva (1980, p. 11) afirma que as duas concepções, agrária e agrícola, estão intrinsecamente relacionadas. Isso ocorre, em grande parte, devido à proximidade espacial e cotidiana que ambas têm, estando, portanto, propensas às mesmas adversidades ou crises, mas que nem sempre ocor- rerão ao mesmo tempo, fazendo com que um problema possa intensificar o outro. Em síntese, a questão agrícola é relacionada a aspectos ligados às mudanças na produção em si mesma “o que se produz, onde se produz e quando se produz”, já a questão agrícola ocorre no âmbito das transfor- mações das relações de produção. Por fim, Thomaz Jr. (2010) define o conceito de rural como uma delimitação territorial cria- da pelo Estado que pode conter tanto o aspecto agrário quanto a questão agrícola. Isso acontece quando se estipula o que se produz em cada área previamente demarcada. Geografia rural14 1.3 Abordagens teórico-metodológicas As concepções geográficas ligadas às questões agrárias passam por diferentes abordagens e têm como base os pensamentos filosóficos dominantes no período. Esses constituem, segundo Diniz (1984) correntes como a geografia agrária paisagística, a geografia agrícola, a teoria da com- binação agrícola, as comissões da União Geográfica Internacional (UGI), a geografia nomotética e a geografia marxista. Por mais divergentes que sejam, todas buscam respostas para questões agrá- rias pertinentes à época. O autor destaca cinco escolas principais nos estudos agrários: a primeira relacionada à geo- grafia tradicional e a estudos da paisagem; a segunda com base econômica e que estuda a distribui- ção e comercialização dos produtos; a terceira com influência estruturalista; a quarta baseada nas mudanças ocorridas nas comissões da União Geográfica Internacional e a quinta relacionada aos estudos da ciência nomotética e a enfoques ideológicos. 1.3.1Geografia agrária paisagística É a mais antiga corrente, cujas ideias foram utilizadas até meados do século XX. Para os autores dessa vertente, a paisagem agrária consiste na reação do homem ao meio em que vive. Assim, toda atividade humana é uma reação às influências do meio, cabendo ao geógrafo agrário observar esses fatores e, por meio da observação, buscar a síntese e a totalidade das paisagens. A geografia agrária paisagística foi influenciada pelas ideias do geógrafo francês Paul Vidal de La Blache (1845-1918), que defendia a teoria segundo a qual o ser humano tem possibilidade de se adaptar ao meio (DINIZ, 1984). Essa concepção, chamada possibilismo, surge como contraponto ao determinismo ambiental, em que se acredita nas atividades dos homens condicionadas à ação da natureza. Das atividades que exercia no meio, “surgiriam gêneros de vida, técnicas, hábitos e processos que permitem ao homem sua subsistência” (DINIZ, 1984, p. 37). A história ganha importância na observação e síntese da paisagem agrária. Para os autores dessa vertente, a ciência histórica é importante para a análise temporal e identificação das formas de campo. Essas formas dividem-se em campos fechados, correspondentes a hábitos individualis- tas, por meio de cercamentos; e campos abertos, de domínio de práticas comunitárias. Entretanto, o habitat rural é elemento central para a observação da evolução da paisagem. As formas de campo se modificam, porém as habitações e instalações permanecem. O habitat, além de ser o primeiro fator de ocupação no processo de transformação da paisagem física é também um dos últimos que sofre alterações – em termos de estrutura – no espaço rural (BERNARDES apud DINIZ, 1984). Em outras palavras, para os teóricos, os assentamentos rurais estão na base do processo de ocupação do espaço pelo homem e mostram as formas de apropriação da terra. 1.3.2 Geografia agrícola Nessa vertente, o fator econômico é a base analítica da agricultura. Seu objetivo é o estudo de fatores agrícolas como produção, transporte e comercialização de produtos, desconsiderando-se nomotética: ciência na qual medições são observadas em uma amostra rela- tivamente grande e com um caráter mais geral. Perspectivas teóricas e metodológicas 15 a paisagem agrária. A distribuição espacial da produção é vinculada a fenômenos naturais, princi- palmente o clima, ou seja, os meios físicos são relacionados à utilização de recursos (DINIZ, 1984). A geografia econômica ganha destaque nessa escola, fato que aumenta a dicotomia com a geografia humana. Devido a essa dicotomia, o estudo da agricultura com base na economia é de- nominado de geografia agrícola, cujo objetivo é investigar a diversidade de recursos básicos e ativi- dades produtivas ocorridas no mundo e avaliar os efeitos que as diferenças do meio físico exercem sobre a utilização desses recursos (BENGSTON; ROYEN apud DINIZ, 1984). Os trabalhos se relacionam à descrição da distribuição espacial de produtos e rebanhos, o que permite ao geógrafo definir as áreas de produção de cada produto. As descrições da dis- tribuição de cada produto ocorrem de maneira isolada para maximizar semelhanças e diminuir diferenças, com a finalidade de descobrir padrões de distribuição. A agricultura passa a ser classifi- cada de acordo com os fenômenos físicos, como fronteiras climáticas, tipos de solos, vegetação etc. Com base nessa classificação, surgem as regiões agrícolas, que permitem uma imagem total da organização agrária e expõem a síntese geográfica da agricultura. Assim, cada autor classifica as regiões com base em critérios naturais e de distribuição de produtos. Alguns teóricos, como Valkenburg, regionalizam por meio de tipos de produtos com variáveis naturais, como clima e relevo. Outros, como Becker, classificam as regiões de acordo com os tipos de clima e suas influências nos tipos de produto. Para Diniz (1984), a escola econômica da agricultura tem uma lógica determinista que transfere as relações biológicas para a agricultura. 1.3.3 Teoria da combinação agrícola Baseada nas ideias de André Cholley (1886-1968), essa vertente pode ser considerada uma evolução da teoria de síntese geográfica para a noção de combinação. As combinações devem sa- tisfazer os princípios de totalidade, transformação e autorregulação. Segundo essa teoria, a observação da paisagem fica em segundo plano, pois os teóricos con- sideram que essa abordagem dá mais ênfase aos aspectos do passado em detrimento das marcas do presente. Para a teoria da combinação agrícola, as relações agrícolas se dão entre seus elementos de combinação, que são de ordem: • Física e biológica: refere-se à área em que é exercida a atividade agrícola (solo, relevo, clima etc.). • Humana: consiste na densidade populacional rural, que também engloba elementos de ordem jurídica e modos de exploração da área agrícola, como trabalho, técnicas de cultivo e povoamentos. • Política e econômica: representa os elementos externos alheios à parte agrária, que, no entanto, podem influenciar os outros elementos. Nessa esfera, estão o sistema político, o sistema econômico vigente, as cooperativas etc. (DINIZ, 1984). Inicialmente, Cholley (apud DINIZ, 1984) sustentou a ideia de que os elementos de combina- ção são inter-relacionados, ou seja, quando se modifica um deles, todos passam por transformações. dicotomia: dois conceitos geral- mente contrários e complementares. Geografia rural16 Após críticas, ele reformulou sua teoria, passando a classificar como retardadores os elementos do passado que atrasam as transformações totais. As dinâmicas temporais das combinações dependem dos resultados econômicos dos pro- dutos. Desse modo, se algum produto não for rentável, deve ser substituído por outro mais rentável. A capacidade de manter e sustentar a população na terra também contribui para essa dinâmica. Assim, uma combinação jovem é mais fácil de manter a população rural; uma com- binação adulta é equilibrada e uma velha combinação contém grandes riscos de ocorrer êxodos rurais (DINIZ, 1984). 1.3.4 As comissões da União Geográfica Internacional Entre as décadas de 1950 e 1960, a União Geográfica Internacional (UGI) cria duas co- missões para estudar e estabelecer regras para a Geografia, porém suas ideias são consideradas impraticáveis. Para Diniz (1984), as comissões não rompem com as ideias da geografia tradicional. A primeira comissão criada é a de levantamento de utilização da terra, para estabelecer nor- mas para o levantamento mundial e constituir mapas. Essa estabelece uma etapa de classificação preliminar para levantamentos que consistem na/em: • Forma de utilização da terra, resumida na ocupação de cada cultivo. • Sujeito de utilização da terra, que representava as propriedades agrícolas. • Modos e técnicas de utilização da terra. • Orientação de utilização da terra; proporção das formas. Embora essa comissão não tenha conseguido aplicar suas ideias, ela é de extrema importân- cia para a ciência geográfica, uma vez que aumenta o campo de observação e de atuação do geó- grafo. É após o trabalho organizado por essa comissão que imagens aéreas passaram a ser utilizadas para a construção dos mapas e projetos de desenvolvimento agrícola. A segunda comissão estuda e estabelece critérios para as tipologias de agricultura. Para tan- to, é feito um levantamento por meio de questionários, que contêm conceitos e técnicas de tipolo- gia, direcionados a especialistas da área. A finalidade consiste em criar estudos regionais sobre os tipos de agricultura, porém a complexidade do estudo não obtém êxito. 1.3.5 Geografia nomotética e a geografia marxista A quinta escola, traçada por Diniz (1984), teve início na década de 1970 e engloba duas cor- rentes com embasamentos teóricos ideológicos distintos. A primeira, conhecida como nomotética, com enfoque positivista quantitativo, e a segunda escola, com enfoque marxista. A escola de geografia agrária nomotética conta commétodos quantitativos que transfor- mam associações espaciais em padrões, modelos e leis. Ela ocupa-se em explicar a variedade de atividades agrícolas em diversas partes do mundo e para tal basea-se na teoria geral dos sistemas, que possibilita explicar de maneira eficiente a relação entre os elementos dos fenômenos agrícolas e seu dinamismo. Perspectivas teóricas e metodológicas 17 Já a escola com influência marxista se preocupa com as condições de vida da população rural, a apropriação de terras e conflitos provenientes de disputa por elas, a exploração do traba- lhador do campo e outros temas, sempre com vistas a questões sociais e rurais. 1.3.6 Trajetória teórica e metodológica da geografia agrária no Brasil No Brasil, é predominante a orientação positivista-funcionalista-culturalista, influenciada por geógrafos como Pierre Monbeig (1908-1987) e Deffontaines (1984-1978). Ambos ajudam a criar os primeiros cursos de geografia no país, na Universidade de São Paulo (USP) em 1934 e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1935 (BRAY, 2008). Entre as décadas de 1930 e 1960, a geografia agrária no Brasil prioriza os estudos descritivos dos gêneros de vida e investiga as paisagens agrárias e os tipos de agricultura, com isso, estudara-se os modos de vida de criadores e agricultores (THOMAZ JR., 2010). Os geógrafos agrários devem estudar a vida agrícola e definir os diferentes modos de vida para depois compará-los. Para tanto, é preciso a observação e análise minuciosa das paisagens, isto é, uma postura positivista-empirista (BRAY, 2008). Essa orientação teórica-metodológica segue doutrinas prontas, embasadas na realidade eu- ropeia, fato que ocasiona contradições, pois não se leva em conta as particularidades e a realidade do campo brasileiro (BRAY, 2008). Nos primeiros anos da geografia no Brasil, estudam-se os fenô- menos agrários, e não movimentos agrários referenciados por Monbeig Deffontaines. Entretanto, Thomaz Jr. (2010) afirma que para a construção da ciência geográfica no país são necessários a descrição e os conhecimentos das paisagens, pois ainda existe muitas paisagens desconhecidas. Já na década de 1970 – por influência da geografia norte-americana –, as instituições ade- rem à metodologia neopositivista para explicar as relações capitalistas do campo e de sua indus- trialização à tipologia agrícola (THOMAZ JR., 2010). Com os geógrafos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) à frente, discursos objetivos e rigorosos são priorizados por meio do tratamento de dados e modelos matemáticos e explicativos. Assim, encontra-se uma neutralidade no aspecto político da ciência geográfica, o que a torna ainda mais distante da realidade brasileira (BRAY, 2008). No início década de 1980, os geógrafos direcionam seus estudos para a modernização agrí- cola que o país está vivendo. Com o passar dos anos, o engajamento político e a luta para a rede- mocratização influenciam a entrada dos movimentos sociais, com isso, seus conflitos entram nos estudos da geografia (BRAY, 2008). Essa mudança, centrada no materialismo histórico e dialético marxista, não é somente teórica e metodológica, mas também está presente no debate sobre qual sociedade almeja-se para o Brasil (THOMAZ JR., 2010). A partir da década de 1990, os estudos da área ocupam-se de aspectos relacionados aos movimentos sociais da terra e conflitos do campo. Temas como concentração fundiária, assenta- mentos rurais, expansão do agronegócio, construção de barragens hidrelétricas, reforma agrária e soberania alimentar são os mais estudados na geografia agrária brasileira. Geografia rural18 Considerações finais Os estudos relativos ao campo sempre são pautados ao longo da história da humanidade. Eles saem da simples relação da discussão de técnicas e meios de produção da agricultura – que sempre são motivo de preocupação, pois a manutenção das sociedades dependem desses fatores – e avançam de acordo com as necessidades e demandas sociais. Assim como quase todos os ramos da ciência, a geografia agrária evolui, agrega, produz conhecimento e se fortalece como uma das áreas mais importantes das ciências humanas. Seus es- tudos têm o importante papel na compreensão da sociedade e o entendimento das transformações que ocorrem no campo, bem como a relação campo-cidade-sociedade. Ampliando seus conhecimentos Santilli (2009), em sua obra Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores retrata a história da agricultura no Novo Mundo, em que antigas civilizações tinham agriculturas bastante desen- volvidas. Vários produtos agrícolas, como milho, batata, mandioca, cacau e feijão foram cultivados pelos indígenas americanos. Essas civilizações foram dizimadas por colonos europeus. Contribuição dos povos indígenas das Américas para a herança agrícola da humanidade (SANTILLI, 2009, p. 45-47) [...] Na América do Sul, o império Inca foi o herdeiro das civilizações hidroagrícolas que haviam começado a se desenvolver havia mil anos, na costa desértica do Pacífico e nos vales da cordi- lheira dos Andes. As civilizações pré-incaicas dominavam técnicas aperfeiçoadas de irrigação: canais e aquedutos de quilômetros de comprimento abasteciam de água os oásis costeiros, e os vales andinos eram dispostos em terraços, irrigados ou não, em grandes altitudes. O Império Inca se baseou na herança hidroagrícola dessas antigas civilizações para construir pontes, aquedutos e canais de irrigação, que subiam e desciam montanhas altíssimas. [...] À civilização olmeca floresceu na América Central e no México entre 1200 a.C. e 400 d.C. A eles se atribuem os primeiros sistemas de irrigação, as primeiras pirâmides e as primeiras formas de escrita do Novo Mundo. [...] A civilização Maia ocupou uma região onde se situam hoje o México (península de Yucatán, no sul do país), a Guatemala e Honduras, e sua economia era essencialmente agrícola, com complexos sistemas de irrigação. [...] O Império Asteca conquistou um vasto território que corresponde hoje ao México e ao norte da América Central (Guatemala e Nicarágua). Perspectivas teóricas e metodológicas 19 [...] Grande parte dos 80 mil quilômetros quadrados do valo do México, núcleo do império Asteca, era composta por colinas, lagoas e zonas pantanosas que foram adaptadas à agricul- tura mediante aplicação de engenhosas técnicas de preparo de terreno para cultivo, drenagem e aterro. Uma das mais interessantes era a construção de canteiros flutuantes – as chinampas – que constituíam no empilhamento de galhos de árvore, barro e limo, que se fixavam nos fundos dos lagos. [...] Atividades 1. Assim como a maioria das ciências, a geografia agrária também passou por um momento de estagnação durante a Idade Média. Aponte as intervenções realizadas pela Igreja católica para manter a vanguarda dos estudos do campo. 2. No ramo da geografia que estuda as relações do campo e da agricultura existem três princi- pais conceitos. Indique e diferencie cada um deles. 3. Para os geógrafos agrários da corrente paisagística, a paisagem agrária representava as formas de reações e adaptações do homem ao meio. Indique os dois fatores que são ob- servados na paisagem agrária e disserte sobre a importância deles para a observação da evolução humana. 4. As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas pelos avanços da modernização agrícola e da urbanização do campo. Foi justamente nesse período que cresceu a influência marxista na geografia agrária. Contextualize o período citado e discuta sobre a expansão ideólogica mar- xista na geografia agrária brasileira. Referências BAIARDI, A. 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As correntes teóricas na geografia agrária brasileira: uma contribuição à crítica teórica, sem a prioris. Revista terra livre, São Paulo, v. 2, n. 35, p. 35-52, jul./dez. 2010. Disponível em: <http://www. agb.org.br/publicacoes/index.php/terralivre/article/view/416/395>. Acesso em: 16 fev. 2018. WAIBEL, L. Capítulos de geografia tropical e do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE/CNG, 1958. 2 A propriedade da terra e suas relações de produção Jonnas Gonçalves Soares A desigualdade na distribuição de terras no Brasil é estrutural e acompanha o país desde sua formação até os dias atuais. Esse contraste é responsável por grande parte da desigualdade de ren- da, que reflete nas condições e qualidade de vida da maioria da população. A grilagem de terras1 foi e continua sendo o principal instrumento de legalização fraudulenta de terras públicas e privadas, principalmente no interior do país, onde a aquisição de propriedades por estrangeiros se tornou um assunto preocupante. Isso ocorre em virtude do aumento da procura de terras para grandes projetos agrícolas fomentados por empresas florestais e do ramo sucroalcooleiro. Neste capítulo, vamos estudar sobre a propriedade de terra e conhecer suas relações de produção. 2.1 Propriedade da terra O Brasil é um país com elevados índices de desigualdade (WORLD BANK GROUP, 2017), fato que pode ser observado nas discrepâncias existentes em áreas como educação, saúde, distri- buição de renda e de terras. Parte dessas disparidades são oriundas do período colonial e inten- sificaram-se no decorrer da história. Do século XVI ao XIX, todas as terras pertenciam à Coroa portuguesa, a qual por meio do sistema de capitanias hereditárias, conferia a algum donatário uma parte do território, que deveria manter produtiva para permanecer com a concessão; caso contrá- rio, o governo poderia concedê-la para outro donatário. A doação ocorria por meio da sesmaria, conhecida como a primeira forma de legalização de terras no Brasil. Para obtê-la, era necessário cumprir uma série de exigências, sendo a principal delas garantir a produção agrícola na terra. Os proprietários eram livres para produzir da maneira que considerassem melhor. Nesse sistema, utiliza-se o trabalho escravo e o regime de servidão (INCRA, 1999). De acordo com Abreu (1997), as doações das sesmarias ocorriam sempre com base em um ponto de comando (uma vila ou cidade); assim, quanto mais próximas desse centro, maior era a chance de que já estivessem ocupadas. Em razão disso, as terras disponíveis para as doações esta- vam cada vez mais distantes do centro dos núcleos de povoamento, o que dificultava a fixação de colonos recém-chegados. Embora esses colonos tivessem recursos materiais para solicitar a doação de sesmarias, as terras ficavam distantes dos portos ou próximas às tribos indígenas e desinteres- savam potenciais donatários. A procura por terras com melhor localização ocasionou negociações que levaram os sesmeiros mais antigos a arrendar ou até mesmo supervalorizar terras próximas aos centros de povoamento/portos para os colonos que chegaram depois. 1 A grilagem é uma atividade ilegal em que se falsificam documentos para tomar posse de terras devolutas ou de terceiros, bem como prédios ou prédios indivisos (comum a diversas pessoas, em compropriedade, sem divisão das respectivas partes). sesmaria: lote de terra abandonado que a Coroa portu- guesa cedia a novos donatários. Geografia rural22 Desde a Independência, em 1822, até 1850, não houve avanços na legislação brasileira para a regularização de terras. Foi somente com a Lei de Terras2 (BRASIL, 1850) que se regula- rizou a aquisição de propriedades por meio de compra. Esse foi um período favorável à posse, principalmente de grandes extensões (ALCÂNTARA FILHO; FONTES, 2009). A Lei legitimou as sesmarias e estabeleceu a demarcação de terras devolutas. As propriedades não regulamen- tadas passaram a ser consideradas devolutas, ou seja, desocupadas. Ross (2008) afirma que a determinação de aquisição de terras públicas mediante pagamen- to em dinheiro restringiu o acesso aos camponeses e aos escravos recém-libertos já no final do século XIX. Em 1891, a responsabilidade pela regulamentação das propriedades – realizada pela União – é repassada para cada estado da Federação. Isso dificultou ainda mais o levantamento de propriedades privadas e públicas no Brasil (ALCÂNTARA FILHO, FONTES, 2009). Até 1964, a questão da estrutura fundiária do país foi posta em segundo plano. Era permiti- do a qualquer brasileiro ou estrangeiro naturalizado comprar mais de 10 mil hectares de terras de- volutas (ROSS, 2008). Somente no governo de João Goulart3 (1918-1976) é que se iniciou o debate para a reforma de base e a desconcentração de terra por meio da reforma agrária. No entanto, com o Golpe Militar de 1964, o novo governo reformula regras e leis, entre as quais podemos destacar o Estatuto da Terra. Esse Estatuto – regido pela Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964 – determina os níveis de produtividade da terra e caracteriza o seu uso social: § 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relaçõesde trabalho entre os que a possuem e a cultivem. (BRASIL, 1964) Alcântara Filho e Fontes (2009) pontuam que o Estatuto representa uma dualidade, pois embora tenha definido a reforma agrária, pouco se fez para colocá-la em prática. Além disso, essa lei aborda questões sobre a modernização do campo e a supervalorização de fatores econô- micos em detrimento de fatores sociais, favorecendo os latifundiários, uma vez que essas pro- priedades eram consideradas mais propícias à modernização. Esse documento também limitou a compra de propriedade da terra para até 3 mil hectares de terras devolutas, entretanto, esse número poderia ser maior caso o Senado Federal aprovasse. Tal medida continuou a favorecer latifundiários (ROSS, 2008). Amorim (2012) elucida que as terras devolutas pertencem ao poder público, porém não são utilizadas, isto é, não são do domínio privado, mas também não há destinação ao uso público. Para Feliciano (2016), as terras devolutas são, impreterivelmente, terras públicas, seja porque nunca 2 A Lei de Terras foi uma iniciativa com o objetivo de organizar a propriedade privada no Brasil. Nela se determinava que as terras só poderiam ser adquiridas por meio de compra e venda ou doação do Estado. 3 João Belchior Marques Goulart foi presidente do Brasil de 24 de janeiro de 1963 a 31 de março de 1964. hectares: unidade de medida para superfícies agrárias. Um hectare (ha) é correspondente a 10.000m2. A propriedade da terra e suas relações de produção 23 passaram ao domínio particular, seja por terem obtido apenas aparentemente essa condição, fazen- do com que elas voltem a ser devolutas. Com a Constituição de 1988, esperava-se que a estrutura fundiária brasileira fosse modifica- da, visto que o novo conjunto de leis passou a ter um papel fundamental para o direito de moradia e ressaltou a função social da propriedade, principalmente das posses. Mas pouco se avançou nesse sentido e, em alguns pontos, até existiu uma regressão, como no caso da desapropriação de terras acima do limite de módulos fundiários permitidos. Na década de 1990, a concentração fundiária no Brasil aumentou, baseada no crescimento do agronegócio. Esse histórico de aquisição e concentração da propriedade de terra se reflete atuais condições fundiárias do país. Menos de 2% dos imóveis registrados no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) têm mais de 1.000 hectares, entretanto, esses representam mais de 40% de toda ocupação do território brasileiro. A maioria das propriedades registradas têm menos de 100 hectares e equivalem a menos de 3% de ocupação do país (ALCÂNTARA FILHO; FONTES, 2009). As grandes propriedades de terra aglutinam terras vizinhas e marginais que resultam na expulsão do camponês, tornando-o sem-terra e assalariado. Assim, as propriedades ficam cada vez maiores e eleva-se o contingente de mão de obra assalariada disponível. Agrava ainda mais esse cenário a aquisição de terras para fins especulativos, visando à reserva financeira e acúmulo de capital, deixando os fins produtivos em segundo plano. Atualmente, as grandes propriedades cumprem o papel de recursos financeiros, ao contrário do que acontecia antes, quando as propriedades eram ocupadas por camponeses e a produção era direcionada ao mercado interno, para a alimentação da população, com itens como mandioca, feijão e legumes. Hoje os cultivos são destinados principalmente ao beneficiamento industrial e à exportação de itens como soja, cana-de-açúcar e milho. Com isso, constitui-se o que os estudiosos chamam de complexo agroindustrial (GONÇALVES, 1989 apud SANTOS, 2007). Essa concentração produtiva ocorreu de maneira desigual no Brasil. O Centro-Oeste e a Amazônia são as regiões com maior concentração de grandes propriedades, o que ocasiona muitos conflitos para o acesso à terra e aumenta cada vez mais a violência no campo. 2.2 Grilagem de terras A grilagem é uma das formas mais poderosas de concentração fundiária brasileira. Para o Incra, trata-se de “toda ação ilegal que objetiva a transferência de terra públicas para patrimônio de terceiros” (INCRA, 1999, p.12, grifo nosso) e a fraude de títulos de propriedade é um modo de criar e aumentar os latifúndios. Como já mencionamos, a ocupação de terras públicas no Brasil foi impulsionada pelas ca- pitanias hereditárias. Após a Independência, posseiros ocupam parte das terras brasileiras, princi- palmente no sertão. No entanto, os chamados grileiros4, com suas práticas de envelhecimento de 4 A expressão grilo surgiu em virtude do método utilizado para falsificar títulos de propriedade da terra, no qual o documento era posto em uma caixa repleta de grilos e permanecia ali por muitos dias. Os dejetos dos grilos davam à documentação um visual amarelo-ferruginoso, que dava a impressão de ação do tempo. Geografia rural24 títulos, expulsaram os posseiros e formaram os latifúndios. Ainda no século XIX, os grileiros – de diversas maneiras e com o apoio do poder público e de cartórios – utilizaram-se da força para ex- pulsar posseiros e indígenas das terras (INCRA,1999). Após a promulgação da Lei de Terras (1850), as terras públicas só podiam ser vendidas em grandes lotes com pagamento em dinheiro, o que valorizava grandes propriedades e lavouras de exportação. De acordo com Feliciano (2016), essa foi uma forma de o governo retomar o contro- le das terras brasileiras que estavam sendo tomadas pela iniciativa privada. Tendo isso em vista, criou-se uma base jurídica para o ordenamento da propriedade de terra. Contudo, a discriminação das terras não se consolidou, pois, muitas propriedades já estão em posse dos grileiros. No período da Ditadura Militar (1964-1985), a grilagem passa a ser legalizada, dificultando muito mais a fiscalização de terras públicas e apropriadas. De modo a manter-se no poder, a classe dominante – isto é, os latifundiários – alia-se então aos militares, a fim de combater o comunismo e desenvolver a agroindústria. Segundo Prieto (2017), a grilagem foi apoiada pelo governo militar e tornou-se a estraté- gia para o modelo de desenvolvimento a ser seguido. Para o autor, a valorização da ideologia da propriedade privada é utilizada pela classe dominante para instaurar o medo da reforma agrária e deslegitimar a luta do campesinato brasileiro. O governo do presidente Castello Branco5 (1897-1967) apresentou o Estatuto da Terra como uma verdadeira reforma agrária, afirmando que a lei atenderia aos interesses dos trabalhadores rurais sem afetar a produção agrícola. O Estatuto também privilegiaria a classe média rural e contribuiría para o desenvolvimento fundamentado nas mudanças do uso e da posse da terra. Contudo, o do- cumento em questão não considerava as origens sociais dos problemas agrários (PRIETO, 2017). Para Martins (1980 apud PRIETO, 2017), o Estatuto da Terra é uma grande farsa histórica que serviu apenas para “legalizar” a grilagem e manter a manutenção da concentração fundiária brasileira e a agricultura empresarial de latifúndio. Embora o documento dê à propriedade de terra um caráter de função social, não se questionava quando esta não desempenhava esse papel. Desse modo, institucionalizou-se um projeto de modernização rural baseado em grandes fazen- das e na ampla grilagem de terra. Jones (2003) afirma que no Estatuto da Terra foram determinadas as regras que possibili- taram um processo ilegítimo – porém aparentemente legal – da expulsão de posseiros das terras. Isso porque a legitimação de posse passa a ser feita por meio de uma licença de ocupação e não mais pelo fornecimento do título da propriedade de terra do Estado. Para o pequeno posseiro con- seguir a licença era necessário que ele constituísse morada permanente e cultura efetiva, não fosse proprietário rural e sua propriedade não podia ultrapassar 100 hectares. A Lei n. 6.383 – sobre o processo discriminatório de terras devolutas – elucida essa questão em seu artigo 29, II: § 1° A legitimação da posse [...] consistiráno fornecimento de uma licença de ocupação, pelo prazo de no mínimo 4 (quatro) anos, findo o qual, o ocupante terá a preferência para a aquisição do lote, pelo valor histórico da terra nua, 5 Humberto de Alencar Castello Branco foi presidente do Brasil de 15 de abril de 1964 a 15 de março de 1967. A propriedade da terra e suas relações de produção 25 satisfeitos os requisitos de morada permanente e cultura efetiva e comprovada a sua capacidade para desenvolver a área ocupada. (BRASIL, 1976) Essa lei – revogada em 2009 – foi considerada uma afronta ao ordenamento jurídico brasilei- ro, que assegurava o direito da terra em caso de posse pacífica e mansa6 explorada pelo posseiro e sua família. Jones (2003) ressalta que se tratou de uma estratégia do governo militar para assegurar os direitos e privilégios dos grandes posseiros, pois, para propriedades de até 3.000 hectares, a alie- nação de terras era feita por meio dessa modalidade de posse. Para esses casos era necessário ter moradia habitual e cultura efetiva, no entanto, era concedido o direto de pagamento sobre a terra pública pelo valor da terra nua e a isenção de licitação. Essas medidas não consistiam em assegurar o direito de posse, mas sim em manter pri- vilégios daqueles que podiam adquirir a propriedade de terra, em outras palavras: uma seleção de clientes. O preço cobrado era irrelevante para grileiros e grandes posseiros, mas praticamente inacessível aos pequenos posseiros. Esse fato ficou marcado como legitimação da grilagem e teve como justificativa a proteção dos projetos pioneiros da Amazônia (JONES, 2003). Foi justamente para o desenvolvimento agrícola da região amazônica que o Estado realizou a manutenção da concentração fundiária por meio da grilagem. As agências criadas na ditadura para regularização da terra e para reforma agrária foram utilizadas para desenvolverem o processo de grilagem e venda de terras com a ajuda de funcionários públicos e oficiais de cartórios. Para burlar a lei, utilizavam laranjas7 para comprar áreas maiores que as permitidas pela Constituição (de até 3.000 hectares) (PRIETO, 2017). Dessa maneira, o governo militar impulsionou o avanço do desenvolvimento agrícola, a exploração das riquezas pela Amazônia e atraiu investidores estrangeiros. Além de contar com a ajuda das instituições públicas para burlar as leis, o Estado ainda oferecia incentivos fiscais e em- préstimos a grandes empresários e grupos econômicos nacionais e internacionais. Nesse período, desenvolveu-se um projeto político em aliança com os latifundiários com a justificativa de moder- nizar a economia do país. Apesar de não ter sido criada na Ditadura Militar, a grilagem foi o mais importante modo de apropriação utilizado nesse período. Essa prática era muitas vezes disfarçada de outros meios de aquisição, como compra e venda, uma vez que havia um elevado número de falsificações e nenhu- ma fiscalização por parte do governo. De acordo com Prieto (2017), essa forma de apropriação de terras se dá em todos os momentos da história brasileira e permite a existência da classe de grandes proprietários de terra, que contam com poder político, social e econômico. A Constituição de 1988 mantém a mesma noção do período da ditadura. No artigo 188, consta que “a destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional da reforma agrária” (BRASIL, 1988). Com base nessa proposição, o Incra elaborou estratégias para favorecer o agronegócio e indicar um caminho de legalidade para a grilagem. 6 Configura-se a posse pacífica e mansa de um imóvel quando ela ocorre sem oposições e de maneira ininterrupta. (BRASIL, 2016). 7 Os chamados laranjas são pessoas que emprestam seu nome, às vezes até sem saber, para transações financeiras criminosas que ocultam a identidade do responsável pelo crime. nua: valor que não agrega os investi- mentos feitos na terra. Geografia rural26 De acordo com alguns estudos realizados pelo Instituto (1999), é muito difícil fazer um levantamento das terras griladas no Brasil, mas estima-se que elas passem dos 200 milhões de hectares. Isso acontece devido às posses concedidas pela União e pequenas glebas de usucapião se transformarem em grandes latifúndios, muitas vezes registrados em nome de laranjas, ou até mesmo por já terem sido vendidas para terceiros, o que dificulta inclusive a investigação policial. Até hoje, a ocorrência da grilagem é facilitada por cartórios e brechas institucionais. Há muitos registros de terras sobrepostas e, muitas vezes, com tamanhos bem maiores que sua real extensão (INCRA, 1999). De acordo com Treccani (2014), diversas propriedades são registradas com tamanhos que ultrapassam a dimensão do município e até do estado em que estão localizadas, isto é, “têm mais papel do que terra”. Essa prática serve para garantir a propriedade do imóvel nas quais a maioria das vezes são terras devolutas. Ross (2008) explica que latifundiários se utilizam de laranjas ou nomes de pessoas da pró- pria família para entrar com processos nos órgãos fundiários do Estado para adquirir propriedade de terra. Assim, eles conseguem comprar vários hectares de terras públicas e devolutas em nomes diferentes e falsificar procurações, laudos e declarações. Isso faz com que propriedades pertencen- tes a posseiros e povos tradicionais sejam passadas para o domínio privado8. Para combater essa prática, o Incra (1999) propõe que todos os órgãos federais e estaduais criem um cadastro único, por meio de uma base cartográfica, que discrimine terras públicas de terras privadas. Nesse cadastro, devem ser exigidos: a prova do domínio com base da cadeia do- minial; certidões de órgãos fundiários e ambientais que comprovem que não há nenhum crime; a confirmação de que a terra não é ocupada tradicionalmente por nenhum povo indígena; além de outras medidas administrativas de acordo com preceitos constitucionais. Treccani (2014) acrescenta que é preciso agilizar o cadastro fundiário, previsto em lei, de coleta do detentor do imóvel, o uso deste, integrando dimensões do imóvel por meio da base cartográfica. Ele defende ainda o georreferenciamento9 para o cruzamento de dados e facilidade no monitoramento dos registros de terra. Segundo dados do Incra (1999), os estados que mais possuem terras griladas são Amazonas, Pará e Mato Grosso, influenciados pelo avanço do agronegócio. Além disso, a fiscalização da região amazônica é muito difícil em virtude de sua dimensão, o que dá aos grileiros a certeza da impu- nidade. Como mostra Prieto (2017, p. 12), “só no estado do Amazonas estima-se que, de um total de 157 milhões de hectares, cerca de 55 milhões, portanto aproximadamente um terço, foi e está sendo grilado. No estado do Pará ao menos 12 milhões de hectares já teriam sido grilados até 2001”. Como consequência do aumento de fraudes em títulos de propriedade da terra, inclusi- ve com a participação de órgãos e funcionários públicos, observa-se uma crescente violência. Diante dessa realidade, torna-se imprescindível que o artigo 51 da Constituição seja efetivo: 8 Com a Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), passou-se a exigir declarações para comprovar que na terra requi- sitada como bem privado não há posseiros e/ou indígenas (ROSS, 2008). 9 Georreferenciar um imóvel é definir a sua forma, dimensão e localização, por meio de procedimentos cartográficos e do registro das coordenadas de todos os vértices do polígono mapeado. Dependendo da dimensão da área, pode ser necessária a realização de levantamentos topográficos e/ou a utilização de dados provenientes de sensores remotos. A propriedade da terra e suas relações de produção 27 “Serão revistos [...] todas as doações, vendas e concessões de terras públicas com área supe- rior a três mil hectares, realizadas no período de 1º de janeiro de 1962 a 31 de dezembro de 1987” (BRASIL, 1988). Entretanto, até hoje o Congresso não providenciou essa revisão. Segundo Oliveira(2009), grileiros tentam impedir que o Estado faça essas discriminações, pois a maioria das terras griladas são maiores do que o permitido por lei. 2.3 Propriedade de terras por estrangeiros A propriedade de terras por estrangeiros é um assunto bastante discutido no Brasil e no mundo e ainda permanece polêmico. Os investimentos realizados por empresas estrangeiras no campo brasileiro aumentaram a partir do ano de 1994, com a implantação do Plano Real e dis- pararam na década de 2000, quando o capital externo aumenta sua participação no investimento e produção nos setores florestal (papel e celulose) e sucroalcooleiro. Muitas áreas de fronteiras agrícolas dos estados de Tocantins, Maranhão, Piauí, Bahia e Mato Grosso receberam vultuosos investimentos para a produção de grãos e algodão, contribuindo para a rápida expansão da oferta desses produtos no mercado internacional (HAGE et al., 2012). Recentemente, essa temática vem ganhando maior destaque, principalmente após o aumen- to do preço de produtos agrícolas no ano de 2007, caracterizado como agroinflação. Mesmo com a crise econômica internacional de 2008, os preços continuaram a aumentar e interferir seriamente na segurança alimentar e na renda das famílias. A inflação agrícola atinge diretamente, em médio e longo prazos, países importadores de alimentos; trata-se, portanto, de um problema global. De acordo com Hage et al. (2012) a agroinflação pode ser explicada por meio de alguns acontecimentos ocorridos nos últimos anos, como: • forte crescimento econômico de alguns países emergentes, que contam com grande mer- cado consumidor; • aumento dos preços internacionais do petróleo, que ocasiona a elevação dos custos em toda a cadeia produtiva dependente • de combustíveis; • desenvolvimento da produção de biocombustíveis e, consequentemente, diminuição de áreas agricultáveis disponíveis para produção de alimentos; • efeitos climáticos naturais que são prejudiciais à produção e à produtividade; • baixos estoques de alimentos no mundo, baseados na busca de empresários para a menor perda possível e maior lucro; e • expectativa de elevado crescimento populacional para os próximos anos. Esses (e outros) fatores estão relacionados à aquisição de terras por estrangeiros, principal- mente em regiões de países pobres e/ou em desenvolvimento. Trata-se de um modo de reduzir os efeitos negativos do processo inflacionário no mercado para garantir o acesso privilegiado aos alimentos e, simultaneamente, reduzir a pobreza e o crescimento econômico (HAGE et al., 2012). Geografia rural28 No Brasil, a aquisição de imóvel rural por estrangeiro residente no país ou pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no país foi regulamentada pela Lei n. 5.709, de 7 de outubro de 1971, que prevê o controle da compra de terras no território brasileiro, sejam elas públicas ou privadas. Em seu terceiro artigo, é estabelecido que a aquisição de imóvel rural por pessoa física estrangeira não pode exceder a 50 módulos (hectares) de exploração indefinida10, em área contínua ou descontínua (BRASIL, 1971). Esse mesmo artigo dispõe que a aquisição de imóveis inferiores a três módulos é livre, isto é, não depende de qualquer licença ou autorização. Porém, o estrangeiro que deseja adquirir proprie- dades entre três e 50 módulos deve obter autorização por órgãos do governo. Ademais, o presidente da República pode aumentar esse limite, mediante parecer do Conselho de Segurança Nacional. Com o objetivo de manter a segurança do país, a aquisição de qualquer propriedade situada em faixa de fronteira ou em região considerada de segurança nacional só é possível mediante a au- torização do Conselho de Segurança Nacional, conforme estabelecido no artigo 7º (BRASIL, 1971). Para um controle mais efetivo sobre a aquisição e cadastro de terras, os artigos 10 e 11 estabelecem atribuições aos cartórios, que devem manter um cadastro especial para imóveis adquiridos por estrangeiros. Além disso, os cartórios de registro de imóveis devem apresentar trimestralmente relações de aquisições de terras feitas por estrangeiros à Corregedoria da Justiça dos Estados a que estiverem subordinados e ao Ministério da Agricultura, sob pena de perda do cargo caso haja o descumprimento dessa determinação (BRASIL, 1971). Além disso, a soma das áreas rurais adquiridas por estrangeiros não pode ultrapassar 25% da área do município onde se situem, exceto quando as propriedades não ultrapassarem três módulos. Estrangeiros de uma mesma nacionalidade não podem adquirir mais de 40% desse limite estipu- lado de 25% da área total do município permitido para a aquisição. Essa regra não se aplica para as propriedades que tenham sido adquiridas antes de 1969 e aos compradores que tenham filho(s) brasileiro(s) ou sejam casados com uma pessoa de naturalidade brasileira. A Lei deixa claro que caso haja interesse do governo federal, sob a perspectiva do interesse público, os limites de aquisição de terras podem ser modificados mediante autorização, com a análise particular de cada caso. A partir de 2008, passa a ocorrer no Brasil um elevado crescimento de aquisição de terras por estrangeiros. Em 2010, esse crescimento levou, inclusive, a Advocacia Geral da União (AGU) a interferir em uma nova interpretação da legislação vigente, com o propósito de limitar o acesso às propriedades fundiárias brasileiras. 10 Módulo de exploração indefinida é aquele que não tem a natureza de sua exploração especificada, em contra- posição àqueles classificados nas seguintes categorias: de lavoura permanente; de lavoura temporária; de explora- ção pecuária; de exploração hortigranjeira e de exploração florestal. A unidade de medida é expressa em hectares e definida para cada imóvel rural inexplorado ou com exploração não definida, em função da Zona típica de módulo do município de situação do imóvel. Varia de 5 a 100 ha. As Zonas típicas de módulo são regiões delimitadas pelo Incra, com características ecológicas e econômicas homogêneas, baseada na divisão microrregional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), considerando as influências demográficas econômicas de grandes centros urbanos (HAGE, 2012, p. 8). A propriedade da terra e suas relações de produção 29 Essa intervenção sucedeu por intermédio do Parecer n. LA 01, de 19 de agosto de 2010. A decisão da AGU teve caráter estratégico, tendo em vista a crise mundial de alimentos, o aumento da demanda por biocombustíveis e outros fatores. De acordo com esse Parecer, a ausência de con- trole das aquisições de terras por estrangeiros pode levar às seguintes consequências: a) expansão da fronteira agrícola com o avanço do cultivo em áreas de proteção ambiental e em unidades de conservação; b) valorização desarrazoada do preço da terra e incidência da especulação imo- biliária gerando aumento do custo do processo desapropriação voltada para a reforma agrária, bem como a redução do estoque de terras disponíveis para esse fim; c) crescimento da venda ilegal de terras públicas; d) utilização de recursos oriundos da lavagem de dinheiro, do tráfico de drogas e da prostituição na aquisição dessas terras; e) aumento da grilagem de terras; f) proliferação de “laranjas” na aquisição dessas terras; g) incremento dos números referentes à biopirataria na Região Amazônica; h) ampliação, sem a devida regulação, da produção de etanol e biodiesel; i) aquisição de terras em faixa de fronteira pondo em risco a segurança nacional. (BRASIL, 2010) A emergência da AGU em intervir nesse cenário decorre do crescimento de casos de aqui- sição de imóveis rurais por pessoas jurídicas, a maioria com capital social sob controle de estran- geiros e sustentada por uma decisão do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo que recomenda a todos os cartórios de registro de imóveis do Brasil dispensar o cumprimento da Lei n. 5.709/71. Em seu parecer, a AGU assegura que a Lei seja cumprida e que a restrição à compra de terras no Brasilpor estrangeiros também se estenda às empresas brasileiras com maioria de capital inter- nacional, garantindo assim a efetivação da proteção dos imóveis rurais contra projetos de grandes multinacionais do agronegócio. Essa é uma questão polêmica, que envolve a soberania nacional. O controle de grandes áreas por estrangeiros em solo brasileiro pode ameaçá-la. O Parecer n. LA 01 reforça o cumprimento da Lei, porém, não impede que haja uma nova interpretação, a revogação de alguma parte ou ainda a criação de uma nova lei, legitimada por interesse do governo ou de quem estiver no poder. Considerações finais Neste capítulo, pudemos perceber que a aquisição de terras no Brasil é desorganizada e falha. A Lei de Terras (1850) poderia ter reparado esse processo que é desigual. Já o Estatuto da Terra (1964) é dúbio: prometia a reforma agrária e ao mesmo tempo incentivava a moderni- zação do campo. A grilagem de terras ocorre até hoje, em razão da negligência do Estado e da ausência de leis combativas. A aquisição de terras por estrangeiros é um tema recorrente nas po- líticas agrárias de países pobres. Embora haja uma lei que a regulamente, não impede o próprio Judiciário de facilitá-la. Essas questões ainda estão distantes de serem resolvidas. Ainda assim, é imprescindível a atuação do Estado para o combate de ações ilegais. Geografia rural30 Ampliando seus conhecimentos O texto a seguir mostra de maneira sucinta o avanço da grilagem em uma região na qual o ecossistema está ameaçado e, ao mesmo tempo, é fundamental para a geopolítica e a economia nacional: a Amazônia. É importante ressaltar que com a expansão da fronteira agrícola, essa região se tornou alvo de grileiros nas últimas décadas. A evolução da grilagem na Amazônia (IPAM, 2006, p. 28-31) Durante quatro séculos, a Amazônia passou por vários ciclos econômicos e por aquisição de terras por meio da posse. Assim, no período compreendido entre o século XVII e o início do século XX, ainda não havia a necessidade da garantia jurídica da propriedade da terra ou vigoraram alguns sistemas que, nos dias atuais, favoreceram a falsificação de documentos, a grilagem. No Pará, vários ciclos econômicos propiciaram a ocupação territorial através da migração. [...] Em relação ao ciclo da borracha, Fernandes (1999) afirma que muitos trabalhadores ligados a essa produção buscaram a terra após a decadência da atividade. Os imigrantes de outras regiões do país também ocupavam as terras devolutas sem nenhuma formalidade antecipada, não entenderam a titulação dada pelo poder público como necessária à garantia da proprie- dade jurídica da terra. [...] A partir da década de 50, as políticas de ocupação e desenvolvimento da Amazônia implemen- tadas pelo governo federal [...] trouxeram uma ideia de desenvolvimento direcionada para a ocupação com especulação de terras, exploração dos recursos florestais e migração desordenada. [...] Ainda na década de 60 e no início da década de 70, a população do oeste paraense viven- ciou o ciclo do ouro, em que as terras eram demarcadas por picadas, indicando apenas o potencial mineral nelas existente. Segundo matéria publicada na revista Época (edição 315, de 31/05/2004), havia extrema facilidade na aquisição de riqueza na região, através do domínio da terra. [...] Atividades 1. O Estatuto da Terra de 1964 prevê duas ações contraditórias em sua implantação: a reforma agrária e a modernização do campo. Na prática como ocorre essa dualidade? 2. É notório que desde o período colonial não existe no Brasil um projeto político efetivo para o controle de vendas e aquisições de propriedades rurais, públicas e privadas, principalmente em áreas mais afastadas dos grandes centros. Como os grileiros se beneficiam da negligência dos governos para efetivarem suas práticas ao longo de todos esses anos? A propriedade da terra e suas relações de produção 31 3. O Estatuto da Terra é uma proposta jurídica formada por leis de reforma agrária, porém que entram em total contradição em relação aos projetos dos latifundiários. Explique como esse estatuto contribuiu para institucionalizar práticas de grilagem durante o governo militar. 4. A aquisição de terras por estrangeiros sempre é um tema polêmico e preocupante no Brasil. A Lei n. 5.709, de 7 de outubro de 1971, delimita essas regras. Com base nessa informação, explique por que a aquisição de terras aumentou significativamente na década de 2000. Referências ABREU, M. A. A apropriação do território no Brasil Colonial. In: CASTRO, I. E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L. (Org.) Explorações Geográficas: percursos no fim do século. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. ALCANTARA FILHO, J. L.; FONTES, R. M. O. A formação da propriedade e a concentração de terras no Brasil. Revista Heera, Juiz de Fora, v. 4, n. 7, p. 63-85, jul./dez. 2009. Disponível em: <http://www.ufjf.br/heera/ files/2009/11/ESTRUTURA-FUNDI%C3%81RIA-ze-luispara-pdf.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2018. BRASIL. Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. 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Séculos depois, o Brasil utilizou uma nova forma de produção, ainda embasada nas mesmas extensas propriedades – concentradas nas mãos de poucos – e no cultivo de monoculturas e exportação. A modernização do campo, iniciada na década de 1960, acentuou as disparidades no (já de- sigual) campo brasileiro. Com o discurso de aumentar a produção e a produtividade por meio da tecnologia, insumos agrícolas, fertilizantes e novas máquinas, o governo brasileiro criou uma série de incentivos que viriam a nortear a produção no campo. Neste capítulo, vamos conhecer alguns aspectos da formação do espaço agrário brasileiro e discorrer sobre as desigualdades presentes nesse espaço. 3.1 Espaço agrário colonial-escravista Com a chegada dos colonizadores portugueses, a soberania do território brasileiro passa ser da Coroa portuguesa. Para Jones (2003), é justamente nesse momento que se inicia a história da propriedade da terra brasileira. De acordo com o autor, quando o acesso e a exploração da terra passam a ser mediados pelo governo português, acontece uma transferência de direitos. Segundo Valverde (1985), o território brasileiro foi organizado como uma colônia de explo- ração para proporcionar produtos primários não encontrados no continente europeu, como açúcar, algodão, ouro, café e cacau. Nesse processo – ocorrido nos séculos XVI e XVIII –, as terras consi- deradas melhores e mais acessíveis foram substituídas por grandes plantações de cana-de-açúcar e representaram a primeira grande riqueza agrícola da Colônia. Posteriormente, no século XVIII, o café torna-se um importante produto para Coroa; no entanto, é no século XIX que a produção café atinge seu apogeu e torna-se um dos principais produtos para exportação. Abreu (1997) ressalta que as formas de apropriação territorial do Brasil tiveram origem em normas instituídas no passado. Para usufruir do território brasileiro, Portugal estabeleceu um pro- cesso de ocupação e exploração específico, que possibilitou à nobreza portuguesa povoar e explo- rar a Colônia (JONES, 2003). Os portugueses se aproveitaram do fato de a Coroa espanhola estar ocupada com a exploração de ouro e prata na região dos Andes para se apropriarem do máximo de áreas e expandir o território brasileiro. Como consequência dessa expansão ocorre uma ocupação descontínua, com inúmeras glebas doadas pela Coroa: as sesmarias (VALVERDE, 1985). O sistema de sesmaria é replicado no Brasil com a mesma legislação vigente de Portugal, onde foi criado em um momento de crise – causado pela peste e pela fuga – que resultou no abandono da Geografia rural34 terra, na falta de alimento e de mão de obra. No Brasil, esse sistema é implantado em virtude da neces- sidade de colonizar, com o objetivo de achar metais preciosos e inserir a colônia no âmbito mercantil (JONES, 2003). As sesmarias foram adotadas em conjunto com as Capitanias Hereditárias, caben- do ao capitão repartir as terras para quem quisesse produzir nelas. Contudo, essas concessões esta- vam sujeitas à confirmação real, o que permitia maior controle sobre a ocupação territorial (JONES, 2003). Metade da capitania era livre de tributos (exceto a obrigação com a Coroa, comum a todos, para o pagamento do dízimo à Ordem de Cristo1). Os donatários tinham poderes políticos nas terras que lhes eram entregues, embora elas pertencessem à Coroa, que consentia apenas a posse. As cláusulas para a concessão eram rigorosas, exigindo moradia habitual e cultura perma- nente. Era proibida a concessão de mais de uma sesmaria para um concessionário ou alguém da sua família e sua extensão não poderia ser superior à sua capacidade de produção. Esses critérios tinham função social: caso a terra não fosse cultivada, ela era transferida para quem a lavrasse e semeasse. Caso ocorresse o arrendamento da terra para terceiros, ela poderia ser tomada do dona- tário (JONES, 2003). No entanto, era difícil cumprir os requisitos exigidos, pois muitas terras não conseguiam ou demoravam para desenvolver o processo de cultivo em razão da rebeldia indígena, que dificultava até mesmo a ocupação das terras. Assim, eram comuns casos de desistência por parte dos beneficiários (ABREU, 1997). A abundância de terras fazia com que houvesse a necessidade de produzir em grandes quan- tidades para atender ao mercado externo. Para tanto, formavam-se latifúndios e utilizava-se da mão a obra escrava; o mercado açucareiro fez nascer assim um modelo econômico escravista e monocultor. Para suprir a grande demanda da produção era preciso cada vez mais de áreas exten- sas (ABREU, 1997). Tal necessidade desencadeou alguns fatores, como: • aumento da extensão territorial da Colônia; • necessidade de ocupar e povoar a Colônia; • baixo nível das técnicas agrícolas; • necessidade de inserir a Colônia no mercado exportador mundial; • utilização de mão de obra indígena e africana escravizada para atuar como força de trabalho. A legislação era uma tentativa de controle de todas as terras, mesmo aquelas doadas em regi- me de concessão. Ainda assim, isso não impediu a existência de propriedades ilegítimas na Colônia, porque não foram registradas (tombadas), conforme as exigências da legislação vigente no período; ou, ainda, porque tiveram as suas áreas acrescidas de terras livres, para além das concedidas formalmente; ou, finalmente, por se tratarem de sesmarias e concessõescaídas em comisso, pelo não cumprimento das cláu- sulas resolutivas. (JONES, 2003, p. 39) Ainda no século XVI, o fracasso das capitanias hereditárias fez com que fosse instituído o Governo Geral, responsável pela distribuição e análise das concessões das sesmarias. As exigências passaram a ser mais rígidas: o governo cobrou com mais afinco a moradia habitual e o cultivo 1 Pagar o dízimo para a Ordem de Cristo era o mesmo que pagar para a Coroa, já que ambas eram interligadas. A Ordem, que tinha como grão-mestre o rei lusitano, financiava as conquistas expansionistas, enquanto a Coroa cobrava o dízimo com o pretexto de financiar os cultos e sustentar a religião (ABREU, 1997). A formação histórica do espaço agrário brasileiro 35 das terras e proibiu os donatários de alienar as terras antes do período de três anos da concessão. Exigiu-se também que as terras destinadas à produção de açúcar tivessem seus próprios engenhos (ABREU 1997). Para Jones (2003), esse tipo de concessão só podia ser oferecido a pessoas com posses. Abreu (1997) pactua da mesma opinião: a exigência da comprovação de recursos para prover a terra com base na quantidade de número de escravos era claramente um incentivo aos privilegiados e à con- centração fundiária. As demarcações das terras ocasionaram muitos conflitos, pois eram muitas vezes superficiais/inexistentes e inseridas erroneamente em outras terras, o que gerava tensões. A partir do século XVII, a Coroa intervém cada vez mais no território. O Governo Geral in- seriu na lei de sesmarias um foro pago sobre a terra e não mais sobre a produção, e a doação passou a ser feita depois de uma demarcação. Essas duas novas exigências causaram resistências por parte dos colonos e por isso demoraram a serem postas em prática (ABREU, 1997). O sistema de sesmarias permaneceu no Brasil até a sua independência, em 1822. A posse predominou até a Lei de Terras, em 1850, que, conforme comentamos no capítulo anterior, reco- nheceu as antigas sesmarias, regulamentou as posses e instituiu a compra como única forma de adquirir terras. Assim, não era possível obter propriedades por meio da simples ocupação de terras desocupadas e, o Estado detinha o domínio de todo o território. Segundo Valverde (1985), somente no século XIX os pequenos proprietários conseguiram ocupar áreas que não eram de interesse dos latifundiários, como terrenos de difícil acesso. 3.2 Espaço agrário capitalista A implementação de uma agricultura moderna e capitalista é apoiada, segundo Frank (2005), no discurso de que o Brasil e a América Latina permanecem em um feudalismo agrário. Assim, justifica-se a ideia de que o campo é atrasado e é preciso modernizá-lo. Entretanto, para Wright (2005), a ideia de um Brasil feudal é um mito, pois o modo de produção colonial em si já é capitalista, uma vez que o trabalhador não era dono das terras e os proprietários não trabalhavam nela, ou seja, as relações naquele período já eram burguesas. Além disso, as relações na agroindústria canavieira – nos séculos XVI e XVIII – eram clara- mente capitalistas. A produção em escala industrial, com valor de troca para o mercado mundial, propiciava a acumulação de capital. As relações de propriedade no Brasil, mesmo na agricultura, sempre foram burguesas, pois o conjunto da produção agrária sempre esteve subordinado aos mer- cados interno e externo (WRIGHT, 2005). Os países europeus – que acumularam capital por vários séculos por meio da imposição de sua organização mercantil – encontraram em suas colônias terras prontas para serem exploradas. Com o fortalecimento industrial, as regiões em desenvolvimento foram forçadas a produzir mais matéria-prima e alimentos não produzidos nas metrópoles. Enquanto os países periféricos ainda eram essencialmente agrícolas, os países centrais, detentores dos meios de produção, desenvol- viam-se por meio da indústria. Geografia rural36 Frank (2005, p. 65) ressalta que “a agricultura brasileira só pode ser compreendida como resultado do desenvolvimento-subdesenvolvimento capitalista mundial”. Seu caráter é de su- bordinação desde o período colonial, pois sempre forneceu produtos para o comércio europeu, como açúcar, fumo e algodão. Para Marini (2005), a reminiscência do campo brasileiro não é feudal, mas sim escravista. Wright (2005) ressalta que a escravidão é de suma importância para a formação capitalista do ponto de vista econômico. Como já vimos, ela era adotada por falta de mão de obra na Colônia. Essa relação não é antagônica ao capitalismo, mas sim uma forma de trabalho subordinada a ele. Para Marx (apud WRIGHT, 2005), a escravidão é uma categoria econômica e faz parte do suporte da indústria, assim como as máquinas e o crédito. Assim, não haveria indústria moderna se não houvesse escravidão. De acordo com o pensador, essa forma de trabalho é recorrente nas instituições dos povos, mesmo quando “tem sabido disfarçar a escravatura em seus próprios países, impuseram-na sem disfarce ao Novo Mundo” (MARX apud WRIGHT p.111). O escravo é vendido com a sua força de trabalho para o proprietário, contudo, ele não vende sua força de trabalho, ou seja, há uma troca de compra e venda, mas o trabalhador não participa dessa troca, e sim se torna a mercadoria (WRIGHT, 2005). A escravidão é utilizada como “forma bruta de acumulação de capital e de aumento dos seus lucros” (WRIGHT, 2005, p.113). Ela não integra e nem é compatível com o sistema capita- lista, pois tem baixa produtividade e grande investimento, porém isso não impede os capitalistas de recorrerem a ela. De acordo com Wright (2005), “as relações desenvolvidas no Brasil-colônia eram, por isso, as relações capitalistas possíveis de serem desenvolvidas numa economia situada de forma subordinada ao sistema capitalista mundial, dentro da divisão internacional do trabalho” (WRIGHT, 2005, p.113). Valverde (1985) observa que os brasileiros herdaram a organização do espaço rural dos tem- pos da Colônia. Para o autor, a agropecuária mercantil ainda é essencial à economia brasileira. Ela transforma-se em indústria, ou seja, na produção de mercadorias (WRIGHT, 2005). O monopólio se instituiu com base no modo capitalista. Ele ocorre quando uma regra es- tabelecida é subvertida por uma pessoa (ou um grupo) e os privilégios obtidos são estendidos, por exemplo, para filhos e netos. O monopólio da terra tem a mesma lógica: uma pessoa ou um grupo minoritário recebe privilégios acima dos demais (e das leis), enquanto para o restante da sociedade a forma de obtê-los seria apenas por meio do rigoroso ordenamento jurídico. No Brasil, o monopólio de terra, legalmente, é um fenômeno relativamente recente – proveniente dos séculos XIX e XX –, se considerarmos a ocupação efetiva na região Oeste e na Amazônia (WRIGHT, 2005). O monopólio não é necessariamente privado, muitas vezes ele é estatal (WRIGHT, 2005). Desde o período colonial o Estado tem controle das propriedades, hoje mantidas por meio de im- postos e créditos cedidos principalmente na agropecuária: O sistema de crédito domina quase totalmente a agropecuária brasileira [e] mantém a propriedade indireta (através da hipoteca e outros artifícios ban- cários) sobre grande parte das terras dedicadas à pecuária, ao cultivo do café, da cana [...] não existe somente esse controle e a propriedade indireta sobre a A formação histórica do espaço agrário brasileiro 37 grande propriedade fundiária, como também existe sobre a média e a pequena propriedade [...] (WRIGHT, 2005, p.113-114) O capitalismo na agricultura também está nas relações de trabalho, aquelas que não são monetárias, ou seja, que são utilizadas para subsistência – por meio da simples reprodução do trabalho – e não são consideradas capitalistas; já as que envolvem dinheiro com objetivo de usar a terra visando ao lucro e ao mercado são capitalistas (FRANK, 2005; WRIGHT, 2005). No Brasil, as relações de trabalho agrícola são variadas: em uma mesma fazenda pode haver diferentes relações,de acordo com as condições econômicas, tecnológicas e até mesmo concepções de quem a detém. Outro fator importante para as relações de trabalho capitalistas é a “variação do que se pro- duz e a quantidade e estabilidade de mão de obra disponível” (FRANK, 2005, p. 52). Quanto maior for a variação da produção e mais disponível for a mão de obra, menos tempo permanecerá o tra- balhador na terra, tornando-o parte do proletariado. No Brasil observa-se diversas relações de trabalho. Uma delas, além das citadas, é a de parce- ria, que encoberta o assalariamento; nesse sentido, o pagamento é considerado parte da produção, isto é, o uso da terra faz parte do salário. Para Wright (2005), a relação de parceria é uma superex- ploração do trabalhador. É comum empresas utilizarem essa forma de trabalho, cedendo suas propriedades para que os agricultores produzam de acordo com seus interesses. Parte dessas mercadorias pertencem ao produtor, o restante é vendido para outras empresas. Esse excedente também pode ser vendido para outros mercados, visto que, normalmente, não é um produto de subsistência. De acordo com Wright (2005), essa é uma forma de iludir o agricultor dando-lhe a sensação de autonomia. Na rea- lidade, a empresa não compra o que já é dele, pois ela paga o produto como forma de salário sem se preocupar com leis trabalhistas. Com o incentivo ao desenvolvimento capitalista no campo, diversas áreas destinadas à agro- pecuária cresceram, principalmente após a década de 1940, acarretando um crescimento popu- lacional, impulsionado por novas oportunidades de emprego. Fato esse que pode ser observado mesmo com a substituição dos plantations para modernização do campo, o que elevou o índice de liberação de mão de obra. (VALVERDE, 1985). Para Frank (2005), o desenvolvimento econômico capitalista aumentou a concentração fundiária. Durante a expansão econômica, grandes proprietários e empresas compraram muitas ter- ras. Para o autor, fica evidente que o desenvolvimento capitalista não leva a uma distribuição de terra justa e não contribui para a solução do problema da terra do país. As novas formas de produção, com máquinas, adubos, ferramentas para irrigação exigem maior capital e menor de mão de obra. Assim, aumentam-se os empregos sazonais, isto é, subempregos. Essas novas formas de agricultura só têm a modernização na técnica, pois as condições de trabalho ainda são de países subdesenvolvidos. Com a modernização do campo, as grandes fazendas se expandem e passam a exigir um menor número de mão de obra. Valverde (1985) explica que, em alguns estados – como o Espírito Santo –, compostos por pequenas propriedades, as lavouras foram substituídas por áreas de pastoreio, oca- sionando emigrações. Mesmo em regiões como o Sul, onde a colonização foi feita, em alguns casos, plantations: Sistema de produção agrícola baseado na monocultura e utilização de mão de obra escrava em latifúndios. Geografia rural38 por meio de pequenas propriedades que cultivavam uma grande diversidade de produtos, obser- va-se um aumento de desemprego pela mecanização do campo devido à valorização de culturas como as de trigo e soja. Essas culturas são produções mecanizadas e sua estrutura fundiária não se distancia do restante do Brasil. As pequenas propriedades brasileiras acabam ficando dispersas em “ilhas” entre os latifúndios, que predominam no ambiente rural.Essas propriedades raramente possuem título legalizado e seus moradores vivem em precárias condições de vida. Os latifúndios podem ser considerados propriedades feudais, porém apenas uma grande propriedade que apresente relações de trabalho classificadas como escravista, feudal ou capita- lista (WRIGHT, 2005). No Brasil, esses territórios são uma ferramenta para o desenvolvimento capitalista, com o pretexto de que maiores propriedades produzem mais. Contudo, as pequenas propriedades ainda são mais produtivas, pois possuem mais trabalhadores e geram mais renda. Não é incomum encontrar em grandes propriedades solos desgastados, agricultura itinerante e subutilização da terra (FRANK, 2005). Nas proximidades da Transamazônica e de outras rodovias da região, inauguradas na década de 1970, o Incra organizou uma ocupação em massa e lá instalou mais de 3 mil famílias. A abertura dessas rodovias possibilitou a entrada de posseiros na Amazônia, grande parte provenientes de es- tados da Região Nordeste, de Minas Gerais e de Goiás. No entanto, em pouco tempo de ocupação essas pessoas foram expulsas por grileiros, por meio de medidas jurídicas ou até mesmo violência. Nesse sentido a ocupação da Amazônia não foi capaz de manter o homem na terra, nem de melho- rar sua qualidade de vida (VALVERDE, 1985). A instabilidade dos posseiros na Amazônia aumentou a partir da década de 1980, em ra- zão do incentivo e financiamento subsidiados pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) para projetos agropecuários que privilegiavam empresas nacionais e estran- geiras. Sem controle e fiscalização, diversas áreas foram desmatadas e tornaram-se pastos e planta- ções, medida que contribuiu para o desemprego rural (VALVERDE, 1985). Nem mesmo a expansão da fronteira agrícola para a Amazônia se diferenciou da concen- tração fundiária do país, mesmo sendo feita por posseiros. Como já mencionamos, essa região foi a base para a expansão do desenvolvimento capitalista e a manutenção da concentração fundiária por intermédio da grilagem de terras. Desse modo, podemos dizer que a agricultura brasileira nunca foi feudal, mas sim capita- lista. Esse sistema rompeu com a relação da propriedade da terra e o trabalho e estabeleceu como principal forma de propriedade o latifúndio e o trabalho assalariado (WRIGHT, 2005). 3.3 Desigualdades sociais e regionais Segundo Silva (2015), a partir da década de 1960, a modernização do campo causou uma série de modificações com a introdução de novas máquinas e processos produtivos no campo brasileiro. A modernização se consolidou com a vinda de multinacionais produtoras de insu- mos/implementos agrícolas e empresas fabricantes de maquinários de alta tecnologia. Esse fluxo A formação histórica do espaço agrário brasileiro 39 se intensificou por meio de incentivos governamentais, programas de financiamento e início das pesquisas agropecuárias em instituições públicas e privadas. Embora a modernização tenha iniciado década de 1960, foi apenas na década seguinte que o país a implementou significativamente. Os pacotes tecnológicos – oriundos principalmente dos Estados Unidos e da Europa Ocidental – passaram a ser amplamente utilizados por grandes e médios agricultores. Entre os insumos, estavam fertilizantes, sementes, mudas melhoradas, imple- mentos, maquinários, calendários agrícolas etc. (MARTINE; GARCIA, 1987). O Estado teve papel crucial na implementação das novidades agrícolas, pois foi com base em incentivos que muitas indústrias ligadas à agricultura tiveram acesso ao crédito, facilitações e baixas taxas de juros para a compra de maquinário e insumos: O processo de modernização da agricultura brasileira na década de 1960 provocou o aumento da produção e da produtividade, mas foi um proces- so profundamente desigual e contraditório. Mais do que conservadora, essa modernização foi permeada pela repressão política do período ditatorial e pela desigual distribuição dos recursos. Os investimentos governamentais em infraestrutura (especialmente a abertura de estradas) e os incentivos fis- cais tornaram rentável a compra e/ou apropriação de grandes extensões de terras, materializando uma aliança entre militares e latifundiários. (OXFAM BRASIL, 2016, p. 4) Esse processo foi pensado por um governo com ligações próximas às elites agrárias brasileiras, por isso não modificou as relações de trabalho e a estrutura fundiária já existente. Como resultado da modernização, em curto e médio prazos, acontece a expropriação e expulsão de camponeses que não tinham as mesmas condições que médiose grandes produtores. A violência no campo e os conflitos entre trabalhadores rurais sem terra e latifundiários se intensificaram (SILVA, 2015). De acordo com o Informe publicado pela Oxfam Brasil2 (2016), a modernização desigual acar- retou o deslocamento de famílias – principalmente do Sul e Nordeste brasileiro – em direção a cida- des das regiões Centro-Oeste e Norte. A concessão de incentivos por parte do Estado para empresas e latifundiários da região Centro-Sul acentuou ainda mais a desigualdade de renda e de terras. 3.3.1 Estrutura agrária A estrutura fundiária refere-se à organização dos estabelecimentos rurais segundo seu nú- mero, tamanho e distribuição pelo país. De acordo com dados do último Censo Agropecuário (2006) realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a concentração de ter- ras se mantém relativamente estável no Brasil desde a década de 1980. Em 1985, o Índice de Gini3 era de 0,856 e, em 2006, de 0,872. As disparidades entre as propriedades podem ser observadas quando analisamos a Tabela 1. 2 A Oxfam é uma organização não governamental (ONG) internacional que atua na ajuda humanitária para pessoas em situações de emergência no mundo. Ela é uma confederação de 20 organizações presentes em 94 países e que atuam pela redução da pobreza, erradicação da fome e das desigualdades. Para saber mais, acesse: <https://www. oxfam.org.br/>. Acesso em: 22 fev. 2018. 3 Criado pelo matemático italiano Corrado Gini (1884-1965), o Índice de Gini é uma ferramenta que mede o grau de desigualdade em um determinado grupo. Numericamente o índice varia de zero a um. O valor zero representa a situação de igualdade; já o valor é 1 representa completa desigualdade (WOLFFENBÜTTEL, 2004). Geografia rural40 Tabela 1 – Área dos estabelecimentos rurais segundo o estrado de área (1985-2006) Estrato de área Área dos estabelecimentos rurais (hectares) 1985 1995 2006 menos de 10 hectares 9 986 637 7 882 194 7 798 607 de 10 hectares a menos de 100 hectares 69 565 161 62 693 585 62 893 091 de 100 hectares a menos de 1 000 hectares 131 432 667 123 541 517 112 696 478 1 000 hectares e mais 163 940 667 159 493 949 146 553 218 Total 374 924 421 353 611 246 329 941 393 Fonte: Adaptado de IBGE, 2009. A Tabela 1 exemplifica a relação de desigualdade entre grandes e pequenas propriedades ao indicar que a taxa dos estabelecimentos rurais com menos de 10 hectares é inferior a 2,7% da área total ocupada, enquanto a área ocupada pelos estabelecimentos com mais de 1000 hectares concen- tra mais de 43% da área total (IBGE, 2009). A disparidade também é presente nos estabelecimentos rurais brasileiros também pode ser observada no gráfico a seguir. Gráfico 1 – Distribuição dos estabelecimentos agropecuários segundo os estratos de área (1985-2006) 1 ha = 10.000 m² Total Menos de 10 hectares De 10 a menos de 100 hectares De 100 a menos de 1 000 hectares De 1 000 a mais hectares 400 000 000 350 000 000 300 000 000 250 000 000 200 000 000 150 000 000 100 000 000 50 000 000 0 Área total 1985 Área total 1996 Área total 2006 Fonte: Adaptado de IBGE, 2009. As disparidades continuam na relação quantidade/tamanho das propriedades rurais. De acordo o Censo, os grandes estabelecimentos somam 0,91% das propriedades rurais brasileiras, no entanto, concentram cerca de 45% de toda área rural do país. Em contraposição, as proprieda- des com áreas menores que 10 hectares representam mais de 47% do total de propriedades rurais brasileiras e ocupam aproximadamente 2,3% da área total. A formação histórica do espaço agrário brasileiro 41 Nas faixas intermediárias do Gráfico, a variação do número de propriedades registradas nos últimos três censos agropecuários (1985, 1996 e 2006) no estrato de 10 a menos de 100 hecta- res variou 37,2%, 39,4% e 38%, respectivamente. Já no estrato de 100 a menos de 1000 hectares a variação foi de 9% em 1985, manteve-se igual em 1996 e registrou 8,2% no último levantamento. Com base nesses números podemos perceber uma tímida variação do perfil fundiário brasileiro no que diz respeito à mudança da quantidade de propriedades rurais (IBGE, 2009). A desproporção da distribuição de terras pode ser constatada também por meio do Índice de Gini, como mostra a Tabela 2. Tabela 2 – Evolução do Índice de Gini por estados (1985-2006) UF Evolução do índice de Gini 1985 1995 2006 Brasil 0,857 0,856 0,872 Rondônia 0,655 0,765 0,717 Acre 0,619 0,717 0,716 Amazonas 0,819 0,808 0,837 Roraima 0,751 0,813 0,664 Pará 0,827 0,814 0,822 Amapá 0,864 0,835 0,852 Tocantins 0,714 0,726 0,792 Maranhão 0,923 0,903 0,864 Piauí 0,896 0,873 0,855 Ceará 0,815 0,845 0,861 Rio Grande do Norte 0,853 0,852 0,824 Paraíba 0,842 0,834 0,822 Pernambuco 0,829 0,821 0,825 Alagoas 0,858 0,863 0,871 Sergipe 0,858 0,846 0,821 Bahia 0,84 0,834 0,84 Minas Gerais 0,77 0,772 0,795 Espírito Santo 0,671 0,689 0,734 Rio de Janeiro 0,815 0,79 0,798 São Paulo 0,77 0,758 0,804 Paraná 0,749 0,741 0,77 Santa Catarina 0,682 0,671 0,682 Rio Grande do Sul 0,763 0,762 0,773 Mato Grosso do Sul 0,86 0,822 0,856 Mato Grosso 0,909 0,87 0,865 Goiás 0,766 0,74 0,776 Distrito Federal 0,767 0,801 0,818 Fonte: Adaptado de IBGE, 2009. Os dados sobre a distribuição de terras demonstradas na Tabela 2 permitem constatar diferenças consideráveis entre as regiões. Os estados do Nordeste em geral têm índices próximos ao nacional, grande parte em razão do processo de ocupação do seu território, que remonta o período colonial. Geografia rural42 A Região Centro-Oeste também apresenta índices próximos ao nacional, com exceção de Goiás, que está um pouco abaixo. As desigualdades acompanham o processo de inserção no mer- cado exterior de commodities4 e a modernização produtiva. O fato de essa região ser grande pro- dutora nacional de grãos, em especial nas últimas décadas, intensifica desigualdades já existentes, principalmente por ser historicamente ocupada para pecuária ultraextensiva. A Região Sul destaca-se por ter uma melhor distribuição de terras, devido a seu proces- so de colonização, realizado em maior parte por povos europeus, sobretudo alemães e italianos. A divisão de terras baseia-se no padrão das propriedades rurais europeias, organizadas em peque- nas propriedades e força de trabalho baseada na agricultura familiar. A Região Norte também apresenta grandes contrastes em sua distribuição, com as terras de ribeirinhos organizadas em pequenas propriedades. Nessas áreas, as principais atividades são a pesca e a lavoura de subsistência. Por outro lado, há a presença de grandes propriedades na cres- cente fronteira agrícola nos arredores da floresta amazônica. Finalmente, a Região Sudeste também engloba áreas de grande contraste, com a presença de alta, média e pequena desigualdades de concentração de terras (IBGE, 2009). A produção agrícola ocorre principalmente nos estados de Minas Gerais e São Paulo, enquanto nos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo prevalecem pequenas produções agrícolas e atividades de pesca, em detri- mento dos pequenos agricultores e produtores, que muitas vezes são deixados de lado. 3.3.2 Políticas agrícolas A questão do acesso aos incentivos públicos e recursos técnicos e financeiros foi determi- nante para a intensificação da desigualdade presente no campo brasileiro. Devido à facilidade de acesso ao fomento para o aumento da produção, os grandes proprietários obtêm parte expressiva desses incentivos, em detrimento dos pequenos agricultores e produtores, que muitas vezes são deixados de lado. Todo produtor rural pode ter acesso ao crédito rural. Esse direito é garantido pela Lei n. 4.829, de 5 de novembro de 1965, que institucionalizou o crédito rural para estimular investimentos na pro- dução agropecuária em todas as etapas, desde a plantação até a comercialização de produtos (BRASIL, 1965b). De acordo a Lei, os principais beneficiados devem ser pequenos e médios produtores, a fim de incentivar a utilizaçãode métodos racionais de produção e buscar o fortalecimento do produtor rural, bem como o aumento da produtividade e a melhoria das condições de vida da população rural. Porém, isso não acontece na prática. De acordo com Silva (2015), o crédito oficial rural é veementemente seletivo e seu acesso é privilégio dos médios e grandes produtores. Para obter o crédito, o sistema financeiro impõe uma série de exigências, as quais muitos pequenos produtores não conseguem cumprir. As principais dificuldades são: a obtenção de assistência técnica; o cumprimento da legislação ambiental e de exigências fundiárias; a preparação da documentação solicitada; o conhecimento sobre linhas de 4 Entendemos por commodities todo produto (matéria-prima em estado bruto) produzido em larga escala que é co- mercializado na bolsa de valores. Alguns exemplos são petróleo e a produção agrícola. A formação histórica do espaço agrário brasileiro 43 crédito disponíveis; e o recebimento de crédito a tempo para a produção. O Quadro 1 detalha cada uma dessas situações. Quadro 1 – Principais dificuldades encontradas por pequenos produtores para o acesso ao crédito rural Obtenção de assistência técnica Os bancos exigem que os produtores utilizem técnicos especializados para a elabo- ração de um projeto para a concessão de créditos. Em agências públicas de servi- ços de extensão e assistência técnica faltam equipes e recursos (tais como veículos de transporte e recursos administrativos). Os serviços de agências privadas são, na maioria das vezes, caros ou indisponíveis. Cumprimento de legislação ambiental Os bancos exigem o cumprimento das legislações ambientais, especialmente para o fornecimento de crédito com baixas taxas de juros. Aos olhos dos produtores, a legis- lação é geralmente confusa e, em alguns casos, conflitante. Os custos associados ao cumprimento das leis ambientais (por exemplo, refloresta- mento) são elevados e impedem os produtores de alcançar a conformidade ambiental. Cumprimento de exigências fundiárias Os bancos fazem exigências de título comprovado da terra e podem solicitar a própria terra como garantia para que seja efetuado o empréstimo. Os produtores, especial- mente os médios e pequenos, sofrem para consegui-lo em razão da disputa de título entre um ou mais donos e/ ou em função de áreas protegidas estabelecidas por lei. Além disso, tal processo pode levar anos e custa caro. Preparação da documentação necessária Os bancos solicitam a apresentação de uma extensa documentação (título/ proprie- dade da terra, histórico de crédito, conformidade ambiental etc.), obtida em diferentes órgãos (cartórios, agências governamentais, entre outros). Reunir esses documentos é tarefa árdua, que também pode sair caro para o produtor. Conhecimento sobre linhas de crédito disponíveis As agências bancárias usualmente não têm equipe suficiente e/ou treinada para divulgar as linhas de crédito e auxiliar os produtores a adquirir a linha mais adequada a seu perfil agrícola. Recebimento de crédito a tempo para a produção O tempo entre solicitar o crédito e efetivamente recebê-lo varia consideravelmente. Em alguns casos os produtores precisam esperar até um ano a partir do momento em que submetem sua aplicação de crédito até realmente ter o crédito liberado. Esse atraso pode impedir todo um ciclo de produção, caso o produtor não tenha recursos financeiros disponíveis no início do ciclo agrícola. Fonte: Elaborado pelo autor com base em Lopes et al., 2016. A última dificuldade apontada no Quadro 1 fica evidente quando se analisa os valores do orçamento do crédito destinado ao Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR). De acordo com Lopes et al. (2015), entre julho de 2015 e junho de 2016, o orçamento de recursos destinados pelas instituições financeiras para crédito rural foi de 216,6 bilhões de reais. Desses, 187,7 bilhões seriam destinados para a agricultura empresarial e 28,9 bilhões para a agricultura familiar. Esses números mostram qual categoria de produtores rurais realmente é beneficiada no SNCR. Apesar dessa discrepância, o acesso a créditos com juros mais baixos para pequenos pro- dutores tem aumentado nas duas últimas décadas. Segundo o Informe da Oxfam Brasil (2016), o Brasil conta desde 1995 com uma política direcionada para o estímulo da agricultura familiar e assentados da reforma agrária. Nesse mesmo ano, o governo federal criou o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) para financiar projetos individuais e coletivos com baixas taxas de juros, visando ao custeio da safra ou da atividade agropecuária e investimen- tos em maquinário, infraestrutura de produção e serviços. Geografia rural44 Ainda de acordo com o Informe, “na safra de 1999/2000, o Pronaf abrangia 3.403 municípios, com 3,3 bilhões disponibilizados para financiamento e com taxa de execução de 66%. Em 2007/2008, foram atendidos 5.379 municípios e o montante disponibilizado no ano seguinte chegou a 10 bilhões, com taxa de execução de 84%” (OXFAM BRASIL, 2016, p. 12). O Gráfico 2 mostra um panorama do acesso ao crédito por pequenos produtores de acordo com o tamanho da propriedade. Gráfico 2 – Percentual de propriedades rurais que obtiveram acesso de crédito rural (2006) ha: hectares 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% Produtor sem área De 0 a 0,1 ha De 0,1 a 0,2 ha De 0,2 a 0,5 ha De 0,5 a 1 ha De 1 a 2 ha De 2 a 3 ha De 3 a 4 ha De 4 a 5 ha De 5 a 10 ha De 10 a 20 ha De 20 a 50 ha Fonte: Adaptado de IBGE, 2009. A disparidade está presente também na distribuição dos valores de acordo com o tamanho das propriedades. Os estabelecimentos com 1.000 hectares ou mais receberam, em 2006, 44,10% do total do crédito rural, enquanto 80% dos estabelecimentos menores receberam entre 13,18% e 23,44%. Essa desigualdade tem origem nos valores destinados aos financiamentos para os estabe- lecimentos menores que 20 hectares, que não chega a 10 mil reais. Nos estabelecimentos entre 20 e 100 hectares o valor não chega a 20 mil reais, enquanto nos estabelecimentos com 2.500 hectares ou mais o valor médio ultrapassa mais de 1,9 milhões. Dessa forma, é possível constatar que o sistema agrícola do Brasil ainda se encontra concen- trado nas mãos de uma minoria detentora de enormes terras. Como mencionamos, essas minorias têm uma série de privilégios na destinação/obtenção de recursos e políticas públicas e contribuem cada vez mais para a desigualdade no campo brasileiro. Coniderações finais As decisões tomadas há mais de 500 anos e ratificadas ao longo dos séculos explicam gran- de parte da estrutura fundiária altamente desigual presente no Brasil. Apesar de a história bra- sileira ter passado por momentos distintos – sesmarias, implantação do pensamento capitalista na produção agrícola; e avanços nos últimos 50 anos –, as desigualdades da estrutura fundiária ecoam no âmbito social e ainda são crescentes devido à utilização de uma série de “modernidades” A formação histórica do espaço agrário brasileiro 45 proporcionadas por grandes indústrias químicas e de tecnologia. No próximo capítulo, veremos como essas relações interferem na renda fundiária e no agronegócio. Ampliando seus conhecimentos A desigualdade na distribuição de terras está diretamente relacionada ao crescimento e à manutenção das desigualdades sociais, que tornam essas disparidades maiores à medida que o tempo passa. O fragmento a seguir exemplifica essa constatação. O caso de Correntina, na Bahia (OXFAM BRASIL, 2016, p. 16) Um dos municípios classificados no grupo dos 1% com maior concentração fundiária e que atende ao critério de relevância agropecuária utilizado neste estudo é Correntina, na Bahia [...]. Os dados do Censo Agropecuário 2006 apontam que Correntina apresenta os maiores índi- ces de PIB municipal (R$ 786.118.000) e PIB per capita (R$ 25.096,34) entre o grupo de maior concentração fundiária. A população rural compõe 59,67% da população total dacidade. O índice de Gini para concentração fundiária teve uma pequena redução entre os Censos, passando de 0,940 em 1996 para 0,927 em 2006 (ou seja, ainda muito próximo a 1, o índice máximo de concentração). Dados do Cadastro Nacional de Imóveis Rurais do Incra mostram que os latifúndios ocu- pam 75,35% da área total dos estabelecimentos agropecuários no município. Informações do Cadastro Único para Programas Sociais de 2012 demonstram que a pobreza atinge 45% da população rural e 31,8% da população geral. [...] No município, também há histórico de empregadores flagrados com trabalhadores em condições análogas à de escravo. Entre 2003 e 2013, 249 trabalhadores foram resgatados nestas condições. Atividades 1. A inserção da Colônia no mercado açucareiro fez nascer o modelo de agricultura de latifún- dio, monoculturas e escravista. Como essa afirmação de Abreu (1997) pode ser explicada no contexto da formação do espaço agrário colonial-escravista? 2. Até hoje a modernização do campo é justificada como uma solução para o Brasil sair de sua condição feudal. Alguns movimentos defendem que o país vive nesse sistema até hoje, em razão da existência de grandes propriedades (latifúndios) e a utilização de trabalho es- cravo. Porém, como vimos neste capítulo, alguns autores defendem a ideia de que o Brasil sempre fez parte do sistema capitalista, mesmo com o latifúndio e a mão de obra escrava. Geografia rural46 Quais são os argumentos utilizados por esses autores para classificar o sistema agrário brasileiro como capitalista? 3. A modernização do campo foi tratada pelo governo como uma oportunidade para desen- volver o campo brasileiro. A chegada de novas máquinas, tecnologias, sementes e mudas melhoradas geneticamente eram consideradas indispensáveis a esse processo. De qual ma- neira o Estado incentivou a implantação desses pacotes de modernidades vindos de países desenvolvidos? 4. A desigualdade na distribuição de terras no Brasil remonta ao período colonial e ainda é crescente em alguns locais. Os três últimos Censos Agropecuários – realizados nos últimos 30 anos pelo IBGE – indicam, por meio do índice de Gini, que a desigualdade na distribui- ção de terras aumentou. Por que a concentração de terras ainda é desigual no país, particu- larmente em alguns estados? Referências ABREU, M. A. A apropriação do território no Brasil Colonial. In: CASTRO, I. E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L. (Org.) Explorações Geográficas: percursos no fim do século. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. BRASIL. Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Livro 1º dos Actos Legislativos, Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 2 out. 1850. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm>. Acesso em: 14 mar. 2018 ______. Lei n. 4.829, de 5 de novembro de 1965. Institucionaliza o crédito rural. 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São Paulo: Expressão Popular, 2005. 4 A renda fundiária, o agronegócio e a produção brasileira de grãos Jonnas Gonçalves Soares O conceito de renda fundiária foi estudado em meados do século XVIII por Adam Smith (1723-1790), que percebeu que a renda gerada pela terra é um dos elementos primordiais para o desenvolvimento de uma sociedade. Thomas Malthus (1766-1834) criticou esse conceito de Smith e criou sua própria teoria, focando no excedente gerado pelos produtos agrícolas para defendê-la. Por sua vez, David Ricardo (1772-1823) trouxe sua contribuição com a criação da Lei da Renda Fundiária. Em meados do século XIX, Karl Marx (1818-1883) ampliou essa concepção de Ricardo, aprofundando-a. Com a geração da renda fundiária surgem outros fatores, como o agronegócio. A lógica dese perfil de negócio foi reestruturada e aperfeiçoada nas últimas décadas, com o objetivo de aumentar a produção, a produtividade, a renda e os lucros. Neste capítulo, vamos compreender como essas relações entre renda fundiária, agronegócio e a produção brasileira de grãos se constituem. 4.1 Renda fundiária Muitos teóricos discutem o conceito renda fundiária. Adam Smith – criador do liberalismo econômico – é considerado o primeiro a abordá-la. Em sua obra A riqueza das nações (1776), ele define renda fundiária como “o preço pago pelo uso da terra ao seu proprietário” (SMITH, 1996, p. 187). Para ele, o desenvolvimento da sociedade depende da renda da terra, que seria o único recurso capaz de garantir riqueza. Smith (1996) ainda afirma que a sociedade evoluída, isto é, uma sociedade desenvolvida, divide-se em três grupos de pessoas: aquelas que sobrevivem da renda da terra, aquelas que sobre- vivem de salário e, por fim, aquelas que sobrevivem do lucro do capital. Ele assevera que os interes- ses dos proprietários das terras estão intimamente ligados aos das duas primeiras classes, pois não precisam se preocupar em gerar renda com a terra. Isso acontece naturalmente, sem a necessidade de o proprietário da terra executar nenhum trabalho. Além disso, para esse filósofo a renda da terra é o excedente apropriado pelo proprietário de terras em razão de ter o monopólio da exploração da propriedade fundiária. De acordo comLenz (2008), Smith considera a renda da terra um “excedente imerecido”, pois não é obtido por meio do trabalho e é apropriado pelo proprietário de terras. É claro para Smith que a renda da terra repre- senta um preço a ser pago pela propriedade privada. Geografia rural50 Thomas Malthus discorda de Smith e cria sua própria teoria, na qual busca explicar as causas do excedente do preço dos produtos agrícolas sobre os custos de produção. Ele define renda fun- diária como “a parcela do produto total que fica para o proprietário da terra depois de pagas todas as despesas, de qualquer tipo, referentes ao seu cultivo, inclusive os lucros do capital empregado, estimados segundo a taxa usual e ordinária de lucro do capital agrícola no período considerado” (MALTHUS, 1996, p. 81). Para o autor, o excedente do preço dos produtos agrícolas sobre os custos de produção en- globa três elementos: a qualidade da terra em si, o caráter inerente de seu produto – que cria sua própria demanda e força sua expansão – e a escassez relativa de terras mais férteis (MALTHUS, 1984 apud LENZ, 2008). Desses três elementos, o primeiro é mais relevante do que o fator de mo- nopólio, reconhecido por Smith como fator preponderante. Malthus ainda considera a qualidade da terra um “presente da natureza” ao homem. Para ele, a fertilidade da terra resulta na capacidade de produzir renda e uma quantidade de bens indispensáveis que excede as necessidades de subsis- tência dos próprios agricultores (MALTHUS, 1996). Malthus também analisa os motivos que causam a elevação ou a redução da renda fundiária ao longo do processo de desenvolvimento de uma sociedade. Fatores como a diminuição do capi- tal e da população, sistemas ruins de cultivo e o baixo preço do mercado de produtos agrícola são determinantes (MALTHUS, 1996). David Ricardo é outro pensador que trouxe importantes contribuições. Contemporâneo de Smith e Malthus, ele também formulou sua própria teoria de renda fundiária, a qual a definiu como “a parte do valor do produto total que resta ao proprietário após o pagamento de todas as despesas de qualquer espécie correspondente ao cultivo” (RICARDO, 1988, p.194). Essas despesas consistem também nos lucros do capital empregado. Ricardo estabelece a teoria da Lei da Renda Fundiária e argumenta que os produtos oriun- dos de terras férteis são produzidos com um menor custo, mas comercializados pelo mesmo preço dos demais, independentemente de como e onde tenham sido produzidos. Seria dessa diferen- ça – produção de menor custo e produtos comercializados com o mesmo preço dos demais – que o proprietário de terras férteis obteria a renda fundiária. Em outras palavras, o êxito da renda fundiária é obtido em virtude da fertilidade das terras. Caso todas as terras tivessem as mesmas características, seu uso nada custaria, exceto se possuíssem vantagens especiais em razão de sua lo- calização. Nessa lógica, é por meio das terras de fertilidade secundária que surgem imediatamente as terras de primeira qualidade. A renda fundiária dependeria da diferença de qualidade das duas (RICARDO, 1988). Ricardo também desenvolveu o conceito de renda diferencial, que depois foi estudado por Karl Marx. Esse novo conceito se baseia em sua ocorrência: nas palavras de Lenz (2008, p. 4), “na medida em que se desdobra o processo, a taxa de lucro diminui, ao passo que aumenta a renda, seja porque novas terras dão origem a rendas diferenciais, seja porque aumentam as rendas onde elas já se registravam”. Smith, Malthus e Ricardo produziram importantes contribuições para a estruturação da teo- ria da renda fundiária, no entanto, a mais significativa foi a de Marx. No terceiro volume do capital, A renda fundiária, o agronegócio e a produção brasileira de grãos 51 Marx aprofunda a concepção ricardiana, discute as diferenças conceituais entre valor1 e preço de produção2 e constata o nivelamento da taxa de lucro média3 (LENZ, 2008). Embora considere que as contribuições de Ricardo tenham elevado o tema a um novo patamar, Marx discorda quando o pensador afirma que a renda diferencial é causada pela produtividade acres- cida do trabalho humano, desenvolvido por meio das condições naturais disponíveis. Além disso, Marx não considera a propriedade privada como uma das causas da renda diferencial: para ele, a existência dessa renda apenas capacita o proprietário a apropriar-se da terra (LENZ, 2008). Nesse sentido, uma de suas contribuições é constatar que a relação entre capital e terra se tra- ta de uma relação social. Além disso, para Marx, na reprodução social capitalista não existe apenas a renda capitalista da terra ou feudal, que ainda eram comuns na Europa do século XIX. Criticando [...] outros autores, Marx procura demonstrar que a renda da terra só pode ser adequadamente compreendida pela análise da relação social entre capital e terra: trata-se de uma relação distorcida, se comparada com o que acon- tece na indústria em geral, pela condição de acesso à terra. Consequentemente, a mais-valia é apropriada sob várias formas de renda (que só podem ser distin- guidas analiticamente) e, quaisquer que sejam os níveis atingidos pela renda da terra, a propriedade fundiária tem um efeito sobre o desenvolvimento daquelas indústrias que dependem particularmente da terra como meio de produção. (BOTTOMORE, 2001) A teoria de Marx diferencia-se de quase todas as outras quando considera que a renda gerada com base na terra materializa-se nas relações de classe agrárias. Nessa teoria, a renda não é entendi- da como uma propriedade da terra, embora seja influenciada pela sua qualidade e disponibilidade. A terra é vista como uma propriedade das relações sociais (BOTTOMORE, 2001). Desse modo, baseado no argumento de que todas as formas de renda se fundamentam no monopólio de classe social, Marx classifica a renda pré-capitalista em: renda em trabalho, em produto e em dinheiro. Além disso, ele categoriza a renda capitalista oriunda da terra em quatro tipos: • Renda diferencial I: é relacionada ao nível de fertilidade do solo, sua capacidade de produ- ção e, consequentemente, seu potencial agrícola. Nesse tipo de renda evidencia-se também a relação da terra com o mercado direto. De maneira mais simplificada, pode-se dizer que a renda diferencial I é atrelada a dois fatores: fertilidade do solo e sua localização. • Renda diferencial II: refere-se a investimentos realizados para melhorar a qualidade do solo e, consequentemente, sua fertilidade. Esse tipo de renda também está relacio- nado com investimentos feitos para minimizar os problemas de localização das terras, como transporte de cargas e pavimentação de estradas para facilitar deslocamentos e reduzir distâncias. 1 O valor é determinado pela quantidade de trabalho necessário para a produção. Esse trabalho não é empregado pelo capitalista, mas pago por ele, sendo executado por máquinas e por operários em um sistema de mais-valia que subvaloriza a força de trabalho para o aumento de ganho financeiro. 2 Equivale ao custo capitalista de produção, ou seja, os gastos de capital constante e variável devido aos salários dos funcionários e à manutenção de equipamentos. 3 É baseada na mais-valia proveniente do trabalho dos operários. Geografia rural52 • Renda absoluta: Essa renda surge como um tributo pago aos proprietários de terra como resultado da exploração da atividade agrícola em uma relação de mais-valia. Quando os preços de mercado não são satisfatórios, os proprietários de terras decidem não colocar todas as terras à disposição da atividade agrícola até que o preço de merca- do seja satisfatório. • Renda de monopólio: ocorre quando a sociedade, ou parte dela, aceita pagar preços que se distanciam da realidade do mercado, geralmente preços maiores, para adquirir um produto ou serviço que é produzido/oferecido de maneira reduzida. Assim, o desejo de possuir um produto de oferta restrita faz com que o produtor obtenha um lucro elevado. Como já mencionamos,as contribuições de Smith, Ricardo e Marx foram precursoras no debate sobre o conceito de renda fundiária. É com base no pensamento desses autores que ocorre uma mudança paradigmática no Brasil e no mundo, na qual suas teorias servem de fundamento a uma nova fase das ciências agrárias. No Brasil, Ariovaldo Oliveira, teórico da geografia agrária, tem desenvolvido estudos sobre renda fundiária. Suas concepções aproximam-se da corrente estabelecida por Marx. Ele a denomi- na renda territorial ou da terra e a define como “um lucro extraordinário, suplementar, permanen- te, que ocorre tanto no campo como na cidade” (OLIVEIRA, 2007, p. 73). Para Oliveira, a renda fundiária pode ser entendida como produto do trabalho excedente, ou seja, fração da mais-valia. O trabalho excedente, por sua vez, é definido como a parcela do processo de trabalho que o trabalhador dá ao capitalista. Isso vai além do trabalho necessário para adquirir os meios para subsistência. Na forma pré-capitalista, a renda da terra é diretamente produto excedente. Ela pode ser, por exemplo, parte da produção entregue pelo servo como pagamento ao utilizar a terra para cultivo. Já no modo capitalista de produção, a renda fundiária é sempre a sobra acima do lu- cro – resultante da atividade econômica –, consequência da mais-valia, isto é, do trabalho exce- dente. Em outras palavras, a renda da terra quando resulta da concorrência é renda diferencial; quando ela resulta do monopólio, é renda absoluta (OLIVEIRA, 1986). A renda diferencial é resultado do caráter capitalista da produção e não da propriedade do solo, já a renda absoluta é fruto da posse privada do solo. A renda absoluta é efeito das contradi- ções presentes nos interesses de proprietários fundiários e da coletividade. Ela também consiste no fato de a propriedade ser monopólio de uma classe que cobra tributos de toda a sociedade para sua produção. Fundamentado na obra de Marx, Oliveira (2007) se aprofunda na renda da terra em di- nheiro, que resulta da conversão da renda da terra em produto. A renda da terra em dinheiro caracteriza-se pelo pagamento em dinheiro de uma parcela da produção do camponês (geralmente familiar) que é entregue ao proprietário de terra. Em virtude disso, é importante que os produtores diretos, ou seja, os agricultores, convertam sua produção em mercadoria. O autor destaca ainda que é por meio dessa relação que ocorre o desenvolvimento da sociedade, afinal, a renda da terra sem dinheiro significa um retorno ao modo de renda “pré-(não)capitalista”. mais-valia: lucro retido pelo capita- lista resultante da diferença entre o que é pago ao trabalhador e o valor cobrado pelo produto produzido pela mão de obra. A renda fundiária, o agronegócio e a produção brasileira de grãos 53 A relação de renda da terra em dinheiro tem sido recorrente nos últimos anos. Ela é consi- derada uma prática comum, facilmente encontrada no campo em razão do aumento das relações monetárias entre camponeses e proprietários de terras. Junto dessa prática surge outro problema, que afeta seriamente o pequeno camponês que não dispõe de terras próprias. Geralmente, nas relações de renda da terra em dinheiro, os proprietários não aceitam dividir os prejuízos de uma eventual safra ruim, como acontece no caso da renda da terra em produto, no qual que se exige o repasse obrigatório de uma quantia fixa em dinheiro pela cessão da terra. Isso é um problema, uma vez que nem sempre o camponês consegue preços competitivos para seus produtos. Nesse caso, ele fica impossibilitado de pagar a renda da terra e, consequentemente, acaba deixando de cultivá-la e procura outra forma de sobreviver. Esse cenário favorece o surgimento dos capitalistas arrendatá- rios, ou seja, que arrendam a terra para a produção de produtos por meio do trabalho assalariado. Desse modo, nota-se a transformação da renda da terra em pagamentos ao arrendatário capitalista (OLIVEIRA, 2007). Em muitos lugares do Brasil, os camponeses autônomos que arrendam terras para traba- lhar com a família são chamados de rendeiros, enquanto os arrendatários capitalistas têm como único objetivo produzir, explorando os trabalhadores por meio do trabalho assalariado. O Censo Agropecuário (IBGE, 2009) engloba em um mesmo grupo censitário camponeses autônomos e arrendatários capitalistas, o que impossibilita o conhecimento da quantidade real dos dois tipos de arrendamento. No entanto, os camponeses rendeiros, mesmo com o descaso e a falta de políticas públicas, permanecem no campo brasileiro. 4.2 O agronegócio Para Santos e Souza (2013), o conceito de agronegócio é empregado para definir a moderni- zação e industrialização do campo que engloba agricultura, mercado, indústria e finanças. Trata-se de uma linha do sistema capitalista que anseia dominar todos os setores de produção. Oliveira (2009 apud SANTOS; SOUZA, 2013) acrescenta a essa definição a ideia de interdependência e o entrelaçamento de elementos que formam uma cadeira produtiva. O agronegócio é um complexo industrial a montante e a jusante4 da cadeia produtiva, pois fornece insumos, mas também define técnicas, fluxos comerciais e até mesmo preços. É por meio dele que se desconstrói toda relação territorial de sobrevivência do campo e se impõe o trabalho a favor do capital. Santos e Souza (2013) apontam que o agronegócio é também gerador de empregos e de maior produtividade e tecnologia, porém, o que ocasiona a acumulação de riqueza é a explo- ração do trabalhador. Para Goodman, Sorj e Wilkinson (2008): A indústria gradativamente apropriou-se de atividades relacionadas com a produ- ção e o processamento que, em conjunturas passadas, eram encarados como ele- mentos integrais do processo de produção rural, baseado na terra. É precisamente 4 Termos usuais da geografia física utilizados por geógrafos também para descrever outras situações. De acordo com Guerra (1993), jusante refere-se a uma área que fica abaixo de outra, já montante é um lugar situado acima de outro. Fernandes e Welch (2008 apud SANTOS; SOUZA, 2008) utilizam essas noções para explicar que o agronegócio ocupa essas duas posições ao mesmo tempo. Geografia rural54 nesta fase, nos setores industriais constituídos por estas apropriações, que ativi- dades previamente “rurais” são subordinadas ao capital, removendo as barreiras à acumulação. (GOODMAN; SORJ; WILKINSON, 2008, p. 7) No Brasil, a partir de 1964, com os governos militares, o agronegócio foi incentivado por meio da atuação de empresas estrangeiras e da implementação de um projeto para moderniza- ção do campo. Os estabelecimentos agropecuários contaram com incentivos dos governos para modernizar o latifúndio e expandir o sistema, principalmente nas regiões Norte e Centro-Oeste (ADAS, 2004). Palheta (2001) afirma que, na década de 1970, o governo pregava a modernização do campo e da cidade. Os camponeses foram submetidos à expropriação da terra e explorados para garantir a concentração do capital. Dessa forma, o desenvolvimento do modo de produção ocorre de maneira desigual e traz o aumento das disparidades sociais. Na década de 1980, os investimentos estatais utilizados para expandir o agronegócio, prin- cipalmente o crédito rural, diminuem e a economia entra em declínio. De acordo com Matos e Pessôa (2014), essa foi uma década perdida para a economia e para a expansão do agronegócio. No entanto, ocorreu também o aumento da produção nos estabelecimentos já existentes. Na década seguinte, os incentivos financeiros passam a ser do capital privado e o Estado fi- nancia mudanças na infraestrutura e transporte. O racionamento do crédito rural reforça a impor- tância de o setor privado financiar a agricultura brasileira; as tradings mundiais surgem para suprir essa necessidade. Nessa forma de financiamento, objetiva-se o atendimento à agricultura moderna, isto é, a integração com a produção agroindustrial (MATOS; PESSÔA, 2014). O agronegócio propicia o surgimento de um agricultor maisindustrializado e uma agricul- tura mais científica. Para Balsan (2006), a modernização da agricultura ocasiona tanto prosperida- de econômica, em virtude da exportação de um produto, quanto decadência, em razão da perda do mercado do produto. Segundo a autora, a modernização ocorre de modo parcial, beneficia poucos produtos e poucas regiões. Esse processo provoca diferenças estruturais no espaço rural brasileiro, no qual produtos para exportação são valorizados por permitir o crescimento econômico de ma- neira mais rápida. A intenção do agronegócio é produzir para que o retorno seja grande e rápido. Para que isso aconteça, há a valorização da grande propriedade de terra e da monocultura. Ele é voltado para o consumo de capital e tecnologia estrangeira, que fornece máquinas, insumos, sementes etc. No Brasil, esse novo tipo de desenvolvimento econômico estimula pesquisas tecnológicas e propor- ciona novas formas de empregos, mesmo que indiretamente. No entanto, não deixa de ocasionar desigualdades e impactos de ordem socioeconômica e ambiental (ADAS, 2004). 4.2.1 Impactos e consequências da modernização do campo A modernização do campo prega a sua especialização, em que a produção é considerada comercial e valoriza as monoculturas. As monoculturas minimizam a mão de obra e maximizam a tecnologia com o objetivo de aumentar a produção. O cultivo de apenas uma planta aumenta as chances de pragas, e, para combatê-las, é necessária a utilização de agrotóxicos (BALSAN, 2006). tradings: empresas que atuam como intermediárias entre empresas fabri- cantes e empresas compradoras em processos de impor- tação ou exportação. A renda fundiária, o agronegócio e a produção brasileira de grãos 55 Esse sistema gera impactos na diversidade de espécie e também na variedade genética dos produtos, que criam resistências às doenças e aos agrotóxico. Com isso, o uso de insumos químicos se intensifica, porém também há o fortalecimento de pragas. Dessa forma, o homem compromete sua própria sustentabilidade (SANTILLI, 2009). Para Matos e Pessôa (2014), a valorização de monoculturas e da produção para a exportação prejudica a produção de alimentos, deixa em segundo plano o abastecimento do mercado interno e privilegia produtos como soja, milho, algodão e cana-de-açúcar. A produção ocorre de maneira centralizada, já que as empresas cultivam os produtos de acordo com as necessidades internacionais. Santilli (2009) afirma que a alta produtividade das monoculturas não significa variedade de produtos. Adas (2004) indica que há um mito no Brasil que leva à valorização das grandes proprie- dades de terra. Defende-se que nelas produz-se a baixos custos e se emprega mais. Entretanto, a produção no latifúndio é direcionada para produtos agroindustriais e para o mercado externo. Isso mais uma vez contribui para o aumento da concentração fundiária que sempre existiu no Brasil e também o agronegócio. O agronegócio faz a agricultura depender da indústria (MATOS; PESSOA, 2014), que por sua vez necessita das inovações tecnológicas para aumentar a produtividade e encurtar o ciclo de produção. A agricultura torna-se, portanto, passa a depender cada vez menos das condições natu- rais, visto que é reproduzida artificialmente e supera as barreiras naturais. A adoção desse sistema como principal corrente de desenvolvimento econômico do Brasil modifica as relações de trabalho, pois a tecnologia diminui a necessidade de trabalhadores, preca- riza as condições de trabalho e subordina o trabalhador rural ao capital (MATOS; PESSÔA, 2014). Desse modo, podemos dizer que a agroindústria aumenta o subemprego, acentua a pobreza e o êxodo rural, fazendo com que os camponeses se instalem nas periferias das cidades brasileiras. Além disso, esse sistema causa vários impactos para o meio ambiente, como a erosão do solo e a perda da fertilidade, a contaminação das águas, e, ainda, a destruição de vários bio- mas. O Cerrado é o bioma mais impactado pelo crescimento do agronegócio no Brasil, já que a expansão da fronteira agrícola ocorre em direção Centro-Oeste, a qual, comumente desmata a vegetação para a cultura agropecuária. Para Santilli (2009), o agronegócio é caracterizado pela baixa produtividade agrícola, pela utilização de insumos químicos e adubos sintéticos com base tecnológica e mecânica. Os valo- res dos produtos são ditados pelo capital internacional, com grande fortalecimento de empresas agroindustriais. Assim, os rumos da pesquisa e dos créditos rurais favorecem o agronegócio. A modernização da agricultura combina o capital privado nacional e internacional com o capital público. Faz com que a economia incorpore o agro e industrialize tanto a cidade quanto o campo. Todas as atividades passam a subordinarem-se ao capital ao criar alianças com o Estado (PALHETA, 2001). Tanto Adas (2004) quanto Santilli (2009) afirmam que o agronegócio é a base econômica do país, além de ser determinante para elevar o superavit comercial brasileiro, pois ele representa um terço de toda produção brasileira. Adas (2004) indica que 30% do produto interno bruto (PIB) brasileiro é originário da exportação do agronegócio. Geografia rural56 Portanto, os autores explicam que há a grande valorização do agronegócio, posto que é colo- cado como solução para alavancar a economia e resolver o problema da fome no país. Entretanto, com os privilégios às grandes propriedades e às monoculturas, o que se vê é um grande direciona- mento para a exportação de produtos agrícolas, a geração de impactos socioeconômicos ou am- bientais e o surgimento de grandes empresas rurais. 4.3 A produção brasileira de grãos O setor agrícola do Brasil é responsável por parte das exportações brasileiras. A moderni- zação da agricultura a partir da década de 1960 ocasionou o aumento significativo da produção de gêneros agrícolas, especialmente grãos, expandindo as áreas de cultivo. A expansão da fronteira agrícola, incentivada pelo governo, ofereceu créditos a juros baixos, permitiu a abertura de estra- das e estimulou a colonização em áreas interioranas, principalmente na Amazônia e no Cerrado. Na década seguinte, a agricultura acompanhou o grande crescimento econômico do Brasil: o país se destacou na produção de grãos destinados ao mercado externo. Na década de 1980, o crédito rural tornou-se o principal instrumento de política agrícola brasileira e contribuiu para a consolidação da produção capitalista. Esse cenário se instaurou com o aumento da inflação, a redução da disponibilidade de crédito rural e a elevação das taxas de juros conduzidos pelo governo. Mesmo com dificuldades, o setor agrícola se destacou em relação aos demais e cresceu 3,1%. Tal índice superou inclusive a indústria (SILVA et al., 2008). Inserida na lógica do capitalismo mundializado, a produção agrícola foi organizada com base em três fatores: a produção de commodities, as bolsas de mercadorias e os monopólios mun- diais (OLIVEIRA, 2012 apud RIBEIRO et al., 2015). Como exemplo de commodities, podemos citar soja, milho, trigo, arroz, algodão, cacau, café, açúcar, suco de laranja etc. (RIBEIRO et al., 2015). A produção de alimentos passa ser adquirida no mercado mundial e deixa de ser essen- cialmente nacional. A mundialização da agricultura trouxe para o campo brasileiro uma prática também en- contrada em outras economias inseridas nessa lógica: a atuação de empresas multinacionais. Essas empresas detêm o controle de todos os processos de produção das commodities: plantação, colheita, beneficiamento, transporte, distribuição e consumo. 4.3.1 Safra brasileira De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a estimativa de produ- ção de grãos para a safra 2017/2018 é de 224,17 a 228,11 milhões de toneladas. Apesar de esses números serem elevados, calcula-se que haja redução na produção de 6% a 4,3% em relação à afra anterior. A área plantada está prevista para situar-se entre 60,89 e 62,02 milhões de hectares, ou seja, chegando a umcrescimento de 1,8% em relação à safra 2016/2017 (CONAB, 2017a). A Conab é uma empresa pública, vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que produz mensalmente avaliações e levantamentos da safra brasi- leira de grãos. Ela fornece informações para a elaboração e gestão das políticas agrícolas de A renda fundiária, o agronegócio e a produção brasileira de grãos 57 abastecimento, de segurança alimentar e nutricional. Por meio desses relatórios, é possível acompanhar as safras passadas, atuais e até mesmo as projeções futuras com base em dados de preços e expectativas de mercado. As principais culturas de verão de grãos produzidos no Brasil são: algodão; amendoim (duas safras por ano); arroz; feijão (três safras no ano); girassol; mamona; milho (duas safras por ano); soja e sorgo. As principais culturas de inverno são: aveia; canola; centeio; cevada; trigo e triticale. Na Tabela 1, a seguir, é possível verificar o total de grãos produzidos no Brasil na safra 2016/2017 de cultura de verão, assim como a estimativa para a safra 2017/2018: Tabela 1 – Produção de grãos de cultura de verão no Brasil (em 1.000 toneladas) Culturas de verão Safras 2016/2017 2017/2018 Previsão máxima Previsão mínima Algodão – caroço 2.298,3 2.409,4 2.633,2 Amendoim (total) 466,2 449,1 450,6 Arroz 12.327,8 11.752,5 11.857,4 Feijão (total) 3.399,5 3.304,5 3.345,5 Girassol 103,7 98,0 98,0 Mamona 13,1 13,3 14,4 Milho (total) 97.817,0 92.195,8 93.604,1 Soja 114.075,3 106.007,8 108.257,5 Sorgo 1.864,8 1.803,2 1.808,1 Subtotal 232.365,70 218.033,60 222.068,80 Fonte: Adaptado de Conab, 2017a, p. 32. Na Tabela 2, é possível acompanhar o total de grãos produzidos no Brasil na safra 2016/2017 de cultura de inverno, assim como a estimativa para a safra seguinte: Tabela 2 – Produção de grãos de cultura de inverno no Brasil (em 1.000 toneladas) Culturas de inverno Safras 2016/2017 2017/2018 Previsão máxima Previsão mínima Aveia 787,7 787,7 787,7 Canola 61,6 61,6 61,6 Centeio 8,0 8,0 8,0 Cevada 341,7 341,7 341,7 Trigo 4.881,3 4.881,3 4.881,3 Triticale 60,8 60,8 60,8 Subtotal 6.141,1 6.141,1 6.141,1 Fonte: Adaptado de Conab, 2017a, p. 32. Geografia rural58 De acordo com a Conab (2017b), a soja e o milho permanecem como as culturas mais cultivadas no Brasil. Os dois respondem por aproximadamente 89% de todas as culturas de grãos produzidos. Na tabela 3, é possível observar os dados de área plantada (por mil hectares), produtividade (em quilos por hectare) e produção (em mil toneladas) por estado e região para a safra 2016/2017 e a previsão para a safra 2017/2018 para as seguintes culturas: caroço de algodão; amendoim (pri- meira e segunda safras); arroz; aveia; canola; centeio; cevada; feijão (primeira, segunda e terceira safras); girassol; mamona; milho (primeira e segunda safras); soja; sorgo; trigo; e triticale. Tabela 3 – Comparativo de área, produtividade e produção Região/UF Área (em mil hectares) Produtividade (em kg/hectares) Produção (em mil toneladas) Safra 2016/2017 Safra 2017/2018 Safra 2016/2017 Safra 2017/2018 Safra 2016/2017 Safra 2017/2018 Total Previsão mínima Previsão máxima Total Previsão total Total Previsão mínima Previsão máxima Norte 2.934,90 2.952,20 3.047,20 3.246 3.161 9.527,50 9.337,70 9.627,20 RR 54,8 54,8 54,8 4.210 4.093 230,7 224,3 224,3 RO 553 551,1 560,4 3.371 3.434 1.864,00 1.893,70 1.923,00 AC 46,8 46,8 46,8 1.976 2.004 92,5 93,8 93,8 AM 19,2 19,2 19,2 2.214 2.214 42,5 42,5 42,5 AP 23,5 23,5 23,5 2.498 2.434 58,7 57,2 57,2 PA 861,5 886,5 914,7 3.129 2.972 2.696,00 2.635,40 2.718,10 TO 1.376,10 1.370,30 1.427,80 3.301 3.202 4.543,10 4.390,80 4.568,30 Nordeste 7.852,40 7.909,60 8.103,80 2.315 2.147 18.180,30 16.939,90 17.437,80 MA 1.565,30 1.581,70 1.598,20 3.061 2.912 4.790,70 4.606,20 4.653,20 PI 1.476,80 1.471,20 1.493,40 2.469 2.115 3.645,50 3.107,90 3.162,60 CE 932 932 932 591 501 550,4 467,2 467,2 RN 67,6 67,6 67,6 426 454 28,8 30,7 30,7 PB 179,5 179,5 179,5 393 378 70,5 67,9 67,9 PE 344,3 344,3 344,3 329 382 113,4 131,6 131,6 AL 80,1 80,1 80,1 790 754 63,3 60,4 60,4 SE 193 193 193 4.335 3.325 836,6 641,7 641,7 BA 3.013,80 3.060,20 3.215,70 2.681 2.557 8.081,10 7.826,30 8.222,50 (Continua) A renda fundiária, o agronegócio e a produção brasileira de grãos 59 Região/UF Área (em mil hectares) Produtividade (em kg/hectares) Produção (em mil toneladas) Safra 2016/2017 Safra 2017/2018 Safra 2016/2017 Safra 2017/2018 Safra 2016/2017 Safra 2017/2018 Total Previsão mínima Previsão máxima Total Previsão total Total Previsão mínima Previsão máxima Centro-Oeste 24.963,60 25.039,00 25.459,30 4.145 3.953 103.462,00 99.142,20 100.487,00 MT 15.119,10 15.185,00 15.461,60 4.100 3.909 61.986,50 59.481,50 60.322,50 MS 4.441,30 4.464,70 4.531,30 4.232 3.980 18.796,40 17.793,80 18.007,90 GO 5.241,50 5.226,70 5.302,70 4.173 4.017 21.873,10 21.009,80 21.290,70 DF 161,7 162,6 163,7 4.985 5.280 806 857,1 865,9 Sudeste 5.486,00 5.430,40 5.611,90 4.220 4.019 23.152,60 21.820,70 22.557,30 MG 3.372,70 3.298,40 3.449,00 4.175 4.031 14.080,00 13.290,70 13.906,50 ES 24 24 24 2.058 1.942 49,4 46,6 46,6 RJ 4,8 4,8 4,8 1.938 1.958 9,3 9,4 9,4 SP 2.084,50 2.103,20 2.134,10 4.324 4.028 9.013,90 8.474,00 8.594,80 Sul 19.653,80 19.556,70 19.793,90 4.283 3.940 84.184,40 76.934,00 78.100,50 PR 9.734,10 9.766,80 9.766,80 4.208 3.858 40.960,50 37.682,70 37.682,70 SC 1.312,80 1.259,30 1.312,70 5.318 4.698 6.981,50 5.886,00 6.196,80 RS 8.606,90 8.530,60 8.714,40 4.211 3.919 36.242,40 33.365,30 34.221,00 Brasil 60.890,70 60.887,90 62.016,10 3.917 3.681 238.506,80 224.174,50 228.209,80 Fonte: Adaptado de Conab, 2017b, p. 33. Por meio desses dados, podemos perceber que o Centro-Oeste desponta como a região com maior produtividade agrícola, com o estado do Mato Grosso com produção mais proeminente. A Região Sul aparece em segundo lugar; o estado do Rio Grande do Sul se destaca com maior produtividade, seguido, respectivamente, pelo estado do Paraná e pelo estado de Santa Cantarina, com participação discreta. A Região Norte é a que menos contribui com a produção agrícola; isso se deve à presença da Amazônia, que cobre grande parte do território. A seguir, detalhamos as principais culturas agrícolas brasileiras de grãos, correspondentes a quase 90% de toda a produção no campo brasileiro. 4.3.2 Milho Na Figura 1, é possível observar a variação da área de milho plantada no Brasil nas últimas 13 safras e a previsão para a safra 2017/2018. Geografia rural60 Gráfico 1 – Desempenho da área de milho entre as safras de 2004/2005 e 2017/2018 -4,7% 7,0% -1,6% 1,5% -3,8% -16,7% -1,1% -1,0% -10,3% -2,4% -7,2% -12,3% 1,8% -6,3% -10,3% -20,0% -15,0% -10,0% -5,0% 0,0% 5,0% 10,0% 04/05 05/06 06/07 07/08 08/09 09/10 10/11 11/12 12/13 13/14 14/15 15/16 16/17 17/18 V ar ia çã o en tr e sa fra s Ano safra Fonte: Conab. Fonte: Conab, 2017b, p. 17. Em relação à produtividade, estima-se uma redução de 8,2%. Mesmo com esses números, a produtividade esperada é a segunda maior desde a safra 2003/2004, o que indica um cresci- mento acumulado. Gráfico 2 – Produtividade do milho entre as safras de 2004/05 e 2017/2018 3.334 3.026 3.295 3.855 4.148 3.630 4.412 4.576 4.481 5.097 4.783 4.898 4.799 5.556 5.100 3.000 3.500 4.000 4.500 5.000 5.500 6.000 03/04 04/05 05/06 06/07 07/08 08/09 09/10 10/11 11/12 12/13 13/14 14/15 15/16 16/17 17/18 Pr od ut iv id ad e (e m k g/ ha ) Ano safra Fonte: Conab, 2017b, p. 16. 4.3.3 Soja De acordo com Conab (2017b), a soja tem exercido um papel de destaque na produção brasileira de grãos nas últimas duas décadas. Devido à capacidade de gerar melhor rentabilidade e melhor liquidez no mercado em relação a outras culturas, há a expectativa de aumento da área de produção, que poderá atingir entre 34,5 e 35,2 milhões de hectares na safra 2017/2018, aproxima- damente 2,7% em comparação à safra anterior.Gráfico 3 – Desempenho da área de soja entre as safras de 2004/2005 e 2017/2018 9,0% -2,4% -9,1% 3,0% 2,0% 7,9% 3,0% 3,6% 10,8% 8,8% 6,4% 3,6% 2,0% 1,7% 3,8% -15,0% -10,0% -5,0% 0,0% 5,0% 10,0% 15,0% 04/05 05/06 06/07 07/08 08/09 09/10 10/11 11/12 12/13 13/14 14/15 15/16 16/17 17/18 V ar ia çã o en tr e sa fra s Ano safra Fonte: Conab, 2017b, p. 19. A renda fundiária, o agronegócio e a produção brasileira de grãos 61 Com exceção da excepcional safra 2016/2017, a produtividade da soja brasileira ficou entre 2,5 e 3 mil kg/ha nos últimos dez anos. Para a próxima safra é prevista queda de produtividade, mesmo com a previsão de aumento na área de produção. Gráfico 4 – Produtividade da soja entre as safras de 2004/2005 e 2017/2018 2.329 2.245 2.419 2.823 2.816 2.629 2.927 3.115 2.651 2.938 2.854 2.999 2.870 3.364 3.075 2.000 2.200 2.400 2.600 2.800 3.000 3.200 3.400 3.600 03/04 04/05 05/06 06/07 07/08 08/09 09/10 10/11 11/12 12/13 13/14 14/15 15/16 16/17 17/18 Pr od ut iv id ad e (e m k g/ ha ) Ano safra Fonte: Conab, 2017b, p. 29. Todos esses dados fornecem informações acerca da dinâmica espacial da produção agríco- la no Brasil, fundamentais para análises geográficas de caráter agrário, econômico e estratégico, tendo em vista que as principais commodities brasileiras são agrícolas. Esses dados também aju- dam o professor de Geografia na construção do conhecimento e na desconstrução de discursos pré-concebidos daqueles que desconhecem a origem da verdadeira riqueza do país. Considerações finais A renda gerada pela terra é um dos alicerces da economia de um país e repercute direta- mente na distribuição de terras e, consequentemente, na distribuição de renda. As desigualdades podem ser explicadas em parte pelo fato de a terra concentrar-se nas mãos de uma pequena par- cela da população. Essas desigualdades se aprofundam à medida que os processos produtivos do campo são aperfeiçoados e se maximiza a produção. A produção, cada vez mais crescente, ocorre em espaços cada vez menores e em terras que antes não eram consideradas adequadas para plantio e que agora são incorporadas à lógica do agronegócio. No próximo capítulo, vamos conhecer um pouco mais sobre a estrutura agrária brasileira e discutir aspectos relacionados aos latifúndios, às pequenas propriedades e aos povos da terra. Ampliando seus conhecimentos Ross (2008) discute, no texto a seguir, a importância do estado de São Paulo para a reorgani- zação agrícola do país. Com a participação efetiva desse estado nas decisões da produção agrícola, notamos a aproximação da indústria com o espaço agrário brasileiro. Fica claro também que a produção agrícola no país hoje é voltada para o capital. Geografia rural62 A importância de São Paulo para a produção agrícola do Brasil (ROSS, 2008, p. 518) [...] A forte concentração industrial e metropolitana de São Paulo articula hoje quase toda a pro- dução agrícola brasileira. São Paulo sedia não só a bolsa de cereais oficial como também sua similar clandestina, a “bolsinha”, na região da rua da Cantareira, próximo ao Mercado Central da cidade. Além dessas duas, São Paulo conta também com a bolsa de mercadorias e futu- ros, que atua fortemente no mercado das commodities (mercadorias tais como: café, soja, boi gordo, etc.). Se não bastassem essas duas bolsas, capazes por si sós de centralizar na metrópole paulistana a principal parte da comercialização dos produtos de origem agrária do país, em São Paulo encontra-se também a principal unidade de comercialização de produtos hortifrutigranjeiros do país: o CEAGESP (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais do estado de São Paulo). Nesse entreposto forma-se praticamente a base de todos os preços nacionais desses produtos, conferindo-lhe capacidade de centralização e decisão sobre essa parcela da produção agrícola. Assim, São Paulo articula ambas as produções, capitalista e camponesa, no campo brasileiro. Essa articulação faz com que o país vá criando áreas de certas especializações do ponto de vista produtivo. As regiões da grande São Paulo, Campinas, Jundiaí e a porção sul da região de Sorocaba têm se especializado na produção hortifrutigranjeira. [...] Atividades 1. Adam Smith e Thomas Malthus foram precursores no debate sobre o conceito de renda fundiária. Entretanto, suas teorias divergem em diferentes aspectos. Discorra sobre essas diferenças e relacione as principais ideias desses autores. 2. No Brasil, a produção agrícola sempre teve características de um complexo industrial. No en- tanto, no século XX o Estado intensificou os incentivos para o crescimento do agronegócio e estimulou latifúndios, monoculturas, insumos químicos e tecnologias. Qual foi o argumento utilizado por governantes e latifundiários para a manutenção desse modo de produção? 3. O agronegócio provoca a especialização da agricultura ao valorizar somente um produto, escolhido de acordo com interesses internacionais. Nesse sistema, para abastecer o mercado mundial utilizam-se monoculturas. Cite consequências ocasionadas pela modernização e adoção do sistema monocultor. 4. A produção agrícola no Brasil é direcionada para a exportação desde o período colonial. A produ- ção de alimentos, principalmente para o abastecimento nacional, sempre foi secundária. É possível perceber, por meio de dados de produção e exportação, que os principais produtos brasileiros são grãos: milho, soja, trigo, centeio, entre outros. Nesse sentido, de quais maneiras o Brasil pode con- solidar a produção desse tipo de produto? A renda fundiária, o agronegócio e a produção brasileira de grãos 63 Referências ADAS, M. A fome: crise ou escândalo? 2. ed. São Paulo: Moderna, 2004. BALSAN, R. Impactos decorrentes da modernização da agricultura brasileira. Campo-território: revista de geografia agrária, Uberlândia, v. 1, n. 2, p. 123-151, ago. 2006. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index. php/campoterritorio/article/view/11787/8293>. Acesso em: 28 fev. 2018. BRASIL. Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Livro 1º dos Actos Legislativos, Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 2 out. 1850. 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São Paulo: Nova Cultural, 1996. 5 Estrutura agrária brasileira Jonnas Gonçalves Soares A estrutura agrária brasileira é heterogênea e ao mesmo tempo desigual. Essa desigualdade se configurou nas primeiras décadas de colonização, por meio de decisões tomadas pela Coroa portuguesa ainda no século XVI. Essas medidas resultaram na formação de grandes extensões de terras concentradas nas mãos de poucas pessoas e favoreceram a criação de latifúndios. A maior parte das terras rurais brasileiras ainda é constituída de grandes propriedades, porém, as pequenas propriedades têm papel fundamental na agricultura nacional: são elas que abastecem o mercado interno. Neste capítulo, vamos discutir sobre essas pequenas propriedades, os povos que vivem dela (povos da terra) e as características relacionadas ao latifúndio. 5.1 Latifúndio Como já mencionamos, uma das características mais marcantes da estrutura agrária brasi- leira é a concentração de terras nas mãos de poucos proprietários. Esse processo se iniciou com a instalação da Colônia e com a concessão de sesmarias no século XVI. A Lei de Terras (1850), que poderia ter contribuído para uma distribuição de terras mais igualitária, institucionalizou a propriedade privada, cuja compra era permitida apenas em dinheiro, fato que privilegiou somente aqueles que detinham grande poder aquisitivo. Mais recentemente, o Estatuto da Terra (1964) previu a reforma agrária e a modernização do campo por meio da inserção de um pacote de modernidades, oriundo de países europeus e dos Estados Unidos. Além da reforma agrária não ter sido posta em prática como previsto, a moder- nização se concentrou no cultivo de monoculturas em grandes propriedades para exportação e deixou de lado a maioria dos pequenos produtores. O latifúndio surgiu no Brasil como consequência de uma ideia que contrapunha a mentalidade burguesa em ascensão, porque os portugueses se tornaram “senhores de terra”, mas não burgueses. Para os portugueses, não havia outra opção de produção agrícola que não fosse aquela pautada em latifúndios e em mão de obra escrava, assim como não havia a preocupação em aprimorar as técnicas e o trabalho. O projeto de latifúndio predatório/exportador/monocultor/escravocrata implementado no Brasil foi suficiente para suprir as necessidades da metrópole portuguesa. A escravidão impediu a sociedade brasileira de evoluir na direção de uma nação moderna (COSTA, 2006), isto é, um modelo baseado na mão de obra assalariada, que produz, mas que também consome: Como esperar transformações profundas em país onde eram mantidos os fun- damentos tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar? Enquanto per- durassem intatos e, apesar de tudo, poderosos os padrões econômicos e sociais herdados da era colonial e expressos principalmente na grande lavoura servida Geografia rural66 pelo braço escravo, as transformações mais ousadas teriam de ser superficiais e artificiosas. (HOLANDA, 1976, p. 46) Para Holanda (1976 apud COSTA, 2006), o fortalecimento do latifúndio trouxe alguns ma- les, como a produção sem diversificação, o esgotamento dos solos, a necessidade da escravidão e a influência desse modelo na organização social do país. Além disso, foi desse modo que “o latifún- dio sustentou o iberismo1 no Brasil; eliminá-lo seria uma forma de eliminar a mentalidade arcaica, ou seja, a herança ibérica” (HOLANDA, 1976 apud COSTA, 2006, p. 20). O Estatuto da Terra (BRASIL, 1964) definiu como latifúndio o imóvel rural que excede 600 ve- zes o módulo médio da propriedade rural (módulo rural). O módulo médio é assim chamado quando sua área corresponde à área média dos imóveis rurais da região em que está localizado. O módulo ru- ral é estabelecido pelas dimensões da propriedade familiar, que por sua vez é definida como o imóvel rural que é explorado pelo agricultor e sua família. Essa classificação leva em consideração condições ecológicas, sistemas agrícolas regionais e a finalidade à qual se destina a terra. O módulo fiscal é medido em hectares e determina os parâmetros para a classificação do imóvel rural quanto a sua dimensão. Segundo o Incra (2018), ele “é estabelecido para cada muni- cípio, e procura refletir a área mediana dos módulos rurais dos imóveis rurais do município”. Sua instituição está na Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, na qual há a regulamentação e concei- tuação de imóvel rural e de pequena e média propriedade: Art. 4º Para os efeitos desta lei, conceituam-se: I – Imóvel Rural – o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial; II – Pequena Propriedade – o imóvel rural: a) de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcela- mento; (Redação dada pela Lei n. 13.465, de 2017) III – Média Propriedade – o imóvel rural: a) de área superior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos fiscais; (BRASIL, 1993). O Incra (2017) define ainda como grande propriedade o imóvel rural que tenha acima de 15 módulos fiscais. De acordo com a Lei n. 6.746, de 10 de dezembro de 1979, para se instituir o módulo fiscal de cada município levam-se em consideração fatores como o tipo de exploração pre- dominante no município (hortifrutigranjeira, cultura permanente, cultura temporária, pecuária e florestal); a renda obtida no tipo de exploração predominante; outras atividades rurais dentro do município (que, mesmo não predominantes, sejam significativas em função da renda gerada ou da área utilizada); ou, ainda, o conceito de propriedade familiar. O último levantamento de módulos fiscais foi realizado no ano de 2013 pelo Incra e pelo IBGE. Essa pesquisa mostra diferenças entre os módulos fiscais existentes no país. O estado do Rio de Janeiro, por exemplo, possui uma extensão territorial relativamente pequena em relação aos demais estados brasileiros. Um módulo fiscal na capital desse estado tem 5 hectares, já nomunicípio de Santo Antônio de Pádua, interior fluminense, um módulo fiscal possui 35 hectares. 1 Tratava-se da aspiração de união política dos países ibéricos (Portugal e Espanha). Estrutura agrária brasileira 67 Em Curitiba – capital do estado do Paraná – um módulo fiscal também tem 5 hectares, já os mu- nicípios de Cerro Azul, Querência do Norte e Adrianópolis dispõem de 30 hectares. Esses são os municípios paranaenses com maiores módulos fiscais. No Amazonas – maior estado brasileiro em extensão territorial – o módulo rural da capi- tal Manaus é de 10 hectares. Porém, a maioria de seus municípios contam com módulos rurais de 100 hectares. No estado do Acre, a capital Rio Branco tem a menor medida em hectares para cada módulo fiscal: 70 hectares; dos 21 municípios restantes, 18 dispõem de 100 hectares em cada módulo fiscal. Por meio desses exemplos, notamos que nas Regiões Sul e Sudeste os módulos fiscais dispõem de limites máximos menores – aproximadamente 35 hectares –, enquanto na região da Amazônia grande parte dos municípios têm módulos fiscais maiores, que podem chegar até 100 hectares. Os levantamentos evidenciam o fato de que a extensão territorial dos estados não é parâme- tro para definir o tamanho de um módulo fiscal. Outro indicador que diz respeito à classificação das propriedades rurais no Brasil é o módulo rural, também medido em hectares. De acordo com o Estatuto da Terra, sua finalidade é “estabele- cer uma unidade de medida que exprima a interdependência entre a dimensão, a situação geográ- fica dos imóveis rurais e a forma e condições do seu aproveitamento econômico” (BRASIL, 1965). O conceito de módulo rural originou-se da concepção de propriedade familiar, imóvel rural explorado pelo agricultor e sua família. É dela que o trabalhador obtém seu sustento e o progresso social e econômico. Essa propriedade tem área máxima fixada para cada região e o tipo de exploração definido. Eventualmente, o trabalho familiar pode contar com a ajuda de terceiros (BRASIL, 1965). O módulo rural caracteriza e classifica os imóveis rurais baseado em algumas variáveis para determinar o seu tamanho. O Decreto n. 55.891, de 31 de março de 1965, em seu artigo 11, pará- grafo único, define: A fixação do dimensionamento econômico do imóvel que, para cada zona de características ecológicas e econômicas homogêneas e para os diversos tipos de exploração, representará o módulo, será feita em função: a) da localização e dos meios de acesso do imóvel em relação aos grandes mercados; b) das características ecológicas das áreas em que se situam; c) dos tipos de exploração predominantes na respectiva zona. (BRASIL, 1965) Com base nesse decreto, o módulo rural pode ser classificado de acordo com o tipo de atividade explorada nas terras: hortigranjeiras; lavouras permanentes e temporárias; pecuária de animais de médio e grande porte; e exploração de florestas naturais e cultivadas. A dimensão dos módulos é calculada de acordo com cada propriedade, isto é, ela é variável; também são considera- das as características da produção agropecuária da região. Por meio do módulo rural é ainda possível obter o módulo de exploração indefinida (MEI). Segundo o Incra (2017), o MEI é uma unidade de medida expressa em hectares derivada com base no conceito de módulo rural para imóveis com exploração não definida. Ele é utilizado para Geografia rural68 controlar a aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, que não pode ultrapassar 50 módulos de exploração indefinida em área contínua ou descontínua (BRASIL, 1971). O tamanho do módulo de exploração indefinido para cada município é estabelecido pelo Incra. A dimensão pode variar de 5 a 100 hectares, de acordo com a Zona Típica de Módulo (ZTM) do município onde o imóvel rural está localizado. A última divulgação dos tamanhos dos MEI foi em junho de 2014 (INCRA, 2017). Nas Tabelas 1 e 2 é possível observar a definição do tamanho em hectares dos MEI basea- dos em dimensões e também em hectares dos módulos rurais de acordo com o tipo de produção agropecuária. Os dados são baseados na Instrução Especial n. 5-a, de 6 de junho de 1973 do Incra. Por meio dessa Instrução, são definidos os tipos de Zonas Típicas de Módulo (ZTM) que indicam o tamanho do módulo rural e valores dos MEI. Tabela 1 – Definição de Zona Típica de Módulo (ZTM) de acordo com o tipo de produção agropecuária (em hectares) ZTM Hortigran jeira Cultura permanente Cultura temporária Pecuária Florestal MEI A1 2 10 13 30 45 5 A2 2 13 16 40 60 10 A3 3 15 20 50 60 15 B1 3 16 20 50 80 20 B2 3 20 25 60 85 25 B3 4 25 30 70 90 30 C1 4 30 35 90 110 55 C2 5 35 45 110 115 70 D 5 40 50 110 120 100 Legenda: Zonas Típicas • Zona Típica “A” – engloba zonas homogêneas com potencial demográfico médio superior a 100.000 (cem mil) habitantes/quilômetro. • Zona Típica “B” – engloba zonas homogêneas com potencial demográfico médio entre 60.000 (sessenta mil) e 100.000 (cem mil) habitantes/ quilômetro. • Zona Típica “C” – engloba zonas homogêneas com potencial demográfico médio entre 30.000 (trinta mil) e 60.000 (sessenta mil) habitantes/quilômetro. • Zona Típica “D” – engloba as demais zonas homogêneas. Subgrupos • Subgrupos “A1” e “B1” – englobam zonas homo- gêneas que contêm núcleos urbanos com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes. • Subgrupos “A2” e “B2” – englobam zonas homo- gêneas que contêm núcleos urbanos com mais de 50.000 (cinquenta mil) habitantes, mas não com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes. • Subgrupos “A3” e “B3” – englobam as demais zonas homogêneas das zonas típicas “A” e “B”. • Subgrupos “C1” – englobam zonas homogêneas que contêm núcleos urbanos com mais de 5.000 (cinco mil) habitantes ou são contíguas a zonas homogêneas que contêm esses núcleos. • Subgrupos “C2” – englobam as demais zonas homogêneas da Zona Típica “C”. Fonte: Adaptado de Incra, 1973. Seguindo os mesmos exemplos das cidades citadas anteriormente, os valores dos módulos fiscais, módulo de exploração indefinida e zona típica de módulos são os seguintes: Estrutura agrária brasileira 69 Tabela 2 – Valores dos módulos fiscais, módulo de exploração indefinida (MEI) e zona típica de módulo (ZTM) Município Unidade da Federação Valor do módulo fiscal (hectares) Valor do MEI (hectares) ZTM Rio de Janeiro RJ 5 5 A1 Santo Antônio de Pádua RJ 35 15 A3 Curitiba PR 5 5 A1 Adrianópolis PR 30 15 A3 Cerro Azul PR 30 15 A3 Querência do Norte PR 30 10 A2 Manaus AM 10 5 A1 São Gabriel da Cachoeira AM 100 55 C1 Rio Branco AC 70 30 B3 Cruzeiro do Sul AC 100 55 C1 Fonte: Adaptado de Incra, 2011. É importante ressaltar que esses valores em hectares são passiveis de alteração para os próxi- mos anos, em razão de o governo federal ter autorizado o georreferenciamento de imóveis rurais. Tal medida pode alterar as atuais definições de módulos fiscais, MEI e ZTM, porém o Incra con- firmará as mudanças somente quando forem analisados todos os georreferenciamentos realizados. 5.2 Pequenas propriedades A instituição da Lei de Terras dificultou mais ainda o desenvolvimento das pequenas pro- priedades. A produção voltada para o mercado externo e a acumulação de commodities tornou a economia brasileira dependente dessa forma de produção até os dias atuais (PAULANI, 2013). Entretanto, grande parte dos produtos alimentícios são importados, pois a produção interna direcionada para o abastecimento nacional é pequena. E são exatamente as pequenas propriedades de terra as responsáveis por essa produção de alimentos – como mandioca, feijão, tomate, trigo em grão, bananas, batata, hortaliças, entre outros – e pela criação de empregos e renda. As pequenas propriedades não produzem exclusivamente gêneros alimentícios, pois tam- bém contribuem para a geração de commodities para o mercado externo, embora sejam minoria. Há uma produção significativa para exportação em pequenas propriedades de algodão, café, banana etc. A definição de pequena propriedade tem iníciono Estatuto da Terra de 1964 ao definir pro- priedade familiar. O Estatuto utiliza o módulo rural para determinar a área da propriedade; sua parcela deve ser suficiente para a família produzir e se sustentar. Dessa forma, levam-se em consi- deração a produtividade, os tipos de produtos e os custos de produção de cada região. O Incra fica encarregado de fixar a quantidade de módulos fiscais de cada região. Os crité- rios utilizados para determinar essas quantidades são os tipos de produção, os tipos de cultura (fixa ou temporária) e se a região é agropecuária ou florestal. Geografia rural70 Somente com a Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 – sobre a regulamentação dos dispositivos referentes à reforma agrária –, é que se estabelece o significado de pequena pro- priedade rural. O artigo 4º a define como aquela que possui de um a quatro módulos fiscais. A lei também determina que essas propriedades são insuscetíveis a desapropriações para re- forma agrária e não podem ser penhoradas para cobrança de dívidas, afinal, são a moradia do devedor e de onde ele tira seu sustento e o de sua família (BRASIL, 1993). Essa definição passa a ser assumida em todas as instâncias e os módulos fiscais são considerados a melhor maneira para definir pequenas propriedades. Para o Incra (2017), o módulo rural é calculado para cada imóvel, individualmente, e de acordo com sua produção e sua região. Já os módulos fiscais são estabelecidos com base em cada município e refletem a média de seus módulos rurais. 5.2.1 A origem das pequenas propriedades Apesar de os latifúndios produtores de monoculturas baseados no trabalho escravo te- rem sido por muito tempo o tipo de propriedade rural predominante no Brasil, a partir dos sé- culos XVIII e XIX houve um grande crescimento da produção de camponeses não escravagistas (ERTHAL, 2000). Gorender (1978) classificou esses pequenos agricultores como aqueles que apresentavam um modo de produção específico, indo contra a corrente predominante de produção de monocul- turas voltada ao autoconsumo e à comercialização dos excedentes. Apesar disso, as pequenas uni- dades tinham um importante papel na economia colonial, sobretudo na produção de alimentos. As pequenas propriedades de terra no Brasil tomaram maiores proporções a partir da che- gada dos imigrantes europeus no país, nas primeiras décadas do século XIX. As terras doadas pelo governo daquela época eram chamadas de colônia e se concentravam principalmente na Região Sul. A partir desse momento, a produção de alimentos para abastecimento nacional e até para ex- portação passou a ser valorizada nas pequenas propriedades. O incentivo à criação de pequenas propriedades no Sul ocorreu em razão de a Coroa portu- guesa não considerar que essa região fosse favorável para o desenvolvimento de produtos tropicais (SANTOS; FERREIRA, 2009). No início da ocupação, o uso da terra era rotativo: abriam-se clarei- ras na mata, faziam-se queimadas e, depois, com o desgaste, abriam-se outras em locais diferentes. Esse modo de produção – chamado de coivara – foi herdado de indígenas e caboclos (ETGES, 2012). Após melhoras nas condições econômicas das colônias, introduziu-se novas técnicas, como arado e tração animal. Entretanto, ainda continuou a prática de rotatividade da terra, porém com- binada com a criação de gado. Nessa etapa final do desenvolvimento agrícola, tudo “girava” em torno do gado. Novas culturas foram introduzidas (como a do leite) e a população rural se tornou mais próspera (ETGES, 2012). Até a década de 1940, poucas colônias haviam chegado a essa fase final; a maioria se encon- trava estagnada na segunda etapa do desenvolvimento. Até hoje parte dos colonos europeus apli- cam o sistema extensivo de rotação da terra. Esse sistema, para Etges (2012), ocorre quando a terra se torna mais importante que o trabalho. Junto às características da terra, o sistema extensivo acaba Estrutura agrária brasileira 71 por ocasionar condições de vida precárias. Como é executado em pequenas propriedades, o solo se desgasta mais rápido e com isso não há espaço suficiente para que ele descanse por mais tempo. Hoje, as pequenas propriedades rurais continuam à margem do sistema agrícola, situação agravada pela vinculação da agricultura com o setor industrial, pois valoriza-se o desenvolvimento das grandes propriedades por meio da maior liberação de créditos. Assim, as pequenas proprieda- des mal recebem auxílio do Estado e ficam, muitas vezes, sem condições de produção para susten- tar o produtor e sua família (SANTOS; FERREIRA, 2009). 5.3 Povos da terra A unidade camponesa é aquela dedicada à produção agrícola autônoma na qual se utiliza da força de trabalho familiar. A produção é voltada para suprir as necessidades de subsistência e geração de renda excedente para a aquisição de produtos que não são produzidos dentro da uni- dade. “As práticas agrícolas ultrapassam claramente o nível horticultor, já que a subsistência da comunidade familiar depende em forma essencial da produção agrícola” (MAESTRI, 2005, p. 219). A trajetória do campesinato brasileiro é caracterizada por uma grande mobilidade espacial e uma variedade de formas sociais: do agricultor, do criador de gado, do pescador etc., mas sem- pre com relação ao trabalho familiar. As formas de acesso à terra são diversas, como posseiros, pequenos proprietários, arrendatários, entre outros, contudo, há elementos em comum entre os camponeses brasileiros: a família e o trabalho na terra (MARQUES, 2008a). Para Maestri (2005), a formação da classe camponesa brasileira teve cinco vias: nativa, cabocla, escravista, quilombola e colonial. Discutiremos cada uma delas a seguir. 5.3.1 Comunidades nativas As sociedades aldeãs brasileiras na terra a caça, a coleta e a pesca como base da sua econo- mia. Somente os tupis-guaranis tinham uma agricultura diferenciada. Ao contrário das comuni- dades aldeãs do restante da América Latina, que tinham uma agricultura consolidada e intensiva com modos de produção simples – à vezes, com irrigação e silagem –, cultivada por homens e mulheres, nas comunidades nativas tupi-guarani a horticultura era de responsabilidade feminina (MAESTRI, 2005). Nas florestas tropicais se encontravam aldeias com maior número de pessoas graças à agricul- tura de coivara e à pesca. Essas comunidades não possuíam uma organização política bem definida e seguiam a organização por parentesco. Já as civilizações andinas tinham sistemas políticos e religio- sos centralizados em chefes supremos e eram estratificadas em classes sociais (FAUSTO, 2010). Essa diferença social entre as comunidades americanas estabeleceu-se em função da den- sidade demográfica dessas civilizações. Fausto (2010) defende que quanto maior é a população, mais necessidades surgem, fato que demanda uma administração da produção dos recursos. Isso é essencial para que haja uma distribuição igualitária para todos. O litoral brasileiro tinha o solo mais fértil de todo o território. Estima-se que ano de 1500 havia mais de 600 mil tupis-guaranis, praticando agricultura parcelar, familiar e de subsistência Geografia rural72 extensiva. Para essa prática, a aldeia necessitava de mais ou menos 45 km² de terreno. A horticul- tura precisava ser itinerante por razões geoecológicas e do próprio modo de vida. Dessa maneira, quando a caça e a coleta se tornavam escassas e as condições higiênicas da aldeia degradavam, mudava-se de localidade (MAESTRI, 2005). Para os nativos trata-se de algo simples de ser feito, já que para a prática de horticultura uti- lizava-se somente da força humana e do fogo, isto é, aplicava-se a técnica coivara e também planta- ções de ciclo curto que podiam ser retiradas somente na hora do consumo. A mandioca – principal produto dos nativos e considerada fonte de energia – era a única que se mantinha por mais tempo na terra. Assim, quando havia necessidade de mudança, levavam-se poucos pertences. Para Maestri (2005), a sociedade tupi-guaranie sua horticultura pouco contribuíram na formação social e econômica do campesinato brasileiro. Sua frágil organização social e parca lide- rança foi destruída pela escravidão e pela expansão da fronteira agrícola colonial. Hoje ela é restrita a comunidades nativas que vivem em reservas. 5.3.2 Caboclos No início da nova sociedade latifundiária, alguns nativos se adaptaram, por meio da supera- ção e da alteração de suas culturas aldeãs. O nativo semiaculturado passa a ser denominado cabo- clo. Posteriormente, integraram essa nova sociedade alguns escravos libertos e também imigrantes europeus. Os caboclos tinham como base a economia familiar e a agricultura de subsistência em regiões florestais (MAESTRI, 2005). A relação de posse da terra era frágil, pois eles a ocupavam temporariamente; quando a fronteira agrícola colonial expandia, eles eram expulsos de suas terras. Suas habitações eram feitas com recursos naturais e seus instrumentos de trabalho eram simples para facilitar suas mudanças. De acordo com Maestri (2005, p. 234): A pobreza material objetiva da sociedade cabocla e a fragilidade de seus la- ços aldeões ensejaram também produção cultural-ideológica muito pobre, que contribuiu igualmente para sua debilidade social, diante da maior consistência cultural-ideológica da produção latifundiária e colonial-camponesa. Poucas eram as resistências por parte dos caboclos na luta pela terra. As que ocorreram tiveram motivações religiosas, como o movimento de Canudos (1896-1897), na Bahia, e a Guerra do Contestado (1912-1916), em Santa Catarina. Esses conflitos apresentaram expressões sociais, econômicas e ideológicas para além da questão religiosa, como a resistência para não perder suas poucas terras. Hoje os caboclos encontram-se nas periferias das fronteiras agrícolas mercantis. 5.3.3 O modo de produção escravista Para instituir o modo de produção latifundiária e de monocultura, o trabalho livre do cam- ponês foi considerado inviável, pois com instrumentos simples e com muitas terras conseguia-se apenas a produção para subsistência. Assim, impôs-se o trabalho forçado, isto é, o trabalho es- cravo. A justificativa para utilizar o africano como mão de obra escrava era a de que não se podia utilizar os índios, por questões culturais e os europeus, por questões biológicas, visto que estes Estrutura agrária brasileira 73 eram considerados incapazes de trabalhar no clima tropical. Dessa maneira, por mais de 300 anos a formação social brasileira foi baseada no modo de produção escravista colonial (MAESTRI, 2005). O Brasil foi a nação que mais importou trabalhadores negros escravizados. Ao chegar ao terri- tório brasileiro, somente o homem trabalhava nas lavouras, ao contrário do que ocorria em seus locais de origem, onde as mulheres se responsabilizavam por essas atividades. Os instrumentos utilizados eram rústicos, principalmente o enxado pesado, pois não se conhecia no período colonial o arado. A agricultura de subsistência praticamente inexistia, praticada apenas em fronteiras de fa- zendas e de maneira desorganizada. Quando a produção das fazendas acelerava, abandonava-se o cultivo de subsistência para cumprir as exigências do mercado (MAESTRI, 2005). O vínculo do escravo com a terra, principalmente com a posse, praticamente não existia. A maior parte dos povos escravizados lutava pela liberdade e não pelo direito à terra. Após a abolição da escravatura, em 1888, muitos desses povos foram para as cidades, outros serviram de mão de obra para as fazendas e alguns se juntaram aos caboclos (MAESTRI, 2005). Leite (2000) ressalta que negros e índios lutam juntos, desde o início da exploração colonial até os dias atuais, contra a expropriação dos seus direitos à propriedade de terra. Com a Lei de Terras de 1850, os negros foram excluídos da categoria de brasileiro e inseridos na categoria de libertos. Por isso, muitos foram expulsos de suas terras, mesmo daquelas doadas em cartório por seus antigos senhores. 5.3.4 As comunidades quilombolas Os quilombos foram formados por escravos fugitivos, mas alguns até aceitaram nativos e homens livres pobres. Essas comunidades localizavam-se em áreas mais ou menos próximas às sedes de produção. A maioria tinha como base a agricultura, porém também se praticava o extrati- vismo e, em quilombos próximos às minas, a mineração e exploração do ouro. Plantava-se milho, feijão, batata doce, amendoim, entre outros produtos, além da criação de pequenos animais para subsistência. Alguns excedentes eram vendidos a mascates, porém em pouca quantidade, já que existia o perigo de os quilombos serem descobertos (MAESTRI, 2005). Leite (2000, p. 336) define os quilombos como resistências dos negros ao escravismo colo- nial e revela a a origem do termo quilombo: “acampamento guerreiro na floresta”. Já o Conselho Ultramarino Português (1740) os definia como “toda habitação de negros fugidos que passe de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (apud LEITE, 2000, p. 366). Para Maestri (2005), um problema enfrentado dentro do quilombo era a pouca quantidade de mulheres, já que grande parte dos escravos fugitivos eram homens. Desse modo, sequestravam- -se mulheres nativas, libertas e livres. A expansão vegetativa das comunidades era restrita; além de a maioria dos habitantes serem homens, as relações com outras comunidades eram difíceis devido à clandestinidade. A economia baseava-se na produção de subsistência, com plantas de ciclo rápido e técnica coivara. As comunidades quilombolas não constituíam laços profundos com a terra, que podia Geografia rural74 ser abandonada sem grandes perdas. Dentre as dificuldades encontradas, destacam-se também a estrutura produtiva, a expansão demográfica, a clandestinidade, a repressão policial e a expansão da fronteira agrícola. Segundo Maestri (2005, p. 247), esses fatores debilitaram estruturalmente a reprodução das comunidades quilombolas, já pouco numerosas na época da abolição. Para Leite (2000), os quilombos eram destruídos pelos capitães do mato – homens que ca- çavam escravos fugidos –, no entanto, ressurgiam em outros lugares desconhecidos. Após a abo- lição de 1888, as populações quilombolas passaram a reivindicar – em conjunto com os caboclos e trabalhadores livres – o direito à terra e protestar contra latifundiários. No entanto, essa luta se tornou mais homogênea e nesse processo a memória de muitos quilombos acabou sendo perdida (MAESTRI, 2005). Leite (2000) destaca que os quilombolas, além de lutarem pelo reconhecimento de proprie- dade da terra – em razão de ser sua moradia e subsistência –, também lutam para exercer suas crenças e práticas específicas. Mesmo após a Constituição de 1891 (BRASIL, 1891), as populações caboclas, nativas e quilombolas foram expulsas de suas terras, muitas vezes de maneira violenta, por parte do Estado e de latifundiários. Foi apenas com a Constituição de 1988 que se reconheceu o direito de propriedade da terra das comunidades quilombolas. O artigo 68 do “Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” garante que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas ter- ras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988). Marques e Gomes (2013, p. 138) ressaltam que remanescentes quilombolas são grupos so- ciais que se mobilizam por organizações políticas, religiosas e sociais para o seu reconhecimento como um grupo específico. Para os autores, as certificações de propriedade da terra já dadas estão aquém da quantidade existente de quilombolas. Tal dificuldade de reconhecimento se dá pelo fato de a cidadania ser considerada uma “instituição política”. Maestri (2005) defende que é preciso manter a integridade histórica dos quilombos e não denominar qualquer comunidade negra como quilombola. Afinal, após a abolição da escravatura, muitos negros se juntaram a caboclos e receberam terras doadaspor seus antigos senhores. Marques e Gomes (2013) acreditam que é preciso superar a definição histórica, uma vez que ela causa arbitrariedades. Para os autores, é preciso redefinir os quilombos que têm características ligadas à escravidão, vínculo territorial extenso, origens em comum, rituais e religiões comparti- lhadas etc. Dessa forma, essas comunidades passam a autorreconhecer-se como próprios atores envolvidos. Leite (2000) também defende que essas comunidades devem ser reconhecidas por suas características atuais, não apenas por um passado rememorado. 5.3.5 Colônias: a formação do campesinato brasileiro por meio da imigração europeia O campesinato nacional surgiu à margem do processo de exploração do território brasileiro. As policulturas produzidas em pequenas propriedades de imigrantes ocorreram em áreas que o latifúndio ainda não tinha alcançado. Estrutura agrária brasileira 75 Nos séculos XIX e XX, imigrantes suíços, alemães, italianos e poloneses chegaram ao Brasil com a intenção de formar um novo império lusitano, já que a Coroa portuguesa transferiu-se para o Rio de Janeiro, formando (posteriormente) um império. Prometeu-se a eles propriedade de ter- ras maiores do que eles possuíam na Europa, além de sementes, pequenos animais e instrumentos (MAESTRI, 2005). Algumas colônias tinham caráter homogêneo, principalmente no Sul do Brasil, e eram ocupadas por somente um grupo étnico. Já outras eram mistas, com habitantes de vários gru- pos étnicos, vindos de lugares distintos. Esse último tipo de colonização foi estabelecido após a Proclamação da República, com o objetivo de impedir quistos étnicos. Até hoje notamos nessas localidades a influência europeia em práticas alimentares, religiosas etc. (MANTELLI, 2010). Mantelli (2010) afirma que em meio à mata se formava um “novo mundo” onde várias lín- guas e diversas culturas se encontravam. Para a autora, esse processo se deu sem uma preocupação com a preservação ambiental, já que os colonos derrubavam matas para abrir as áreas de roçado. A policultura praticada pelos imigrantes tinha como objetivo abastecer as cidades e os lati- fúndios. Além disso, almejava-se a criação de um campesinato brasileiro com homens livres para servir no exército e ocupar todo o território. A apropriação de terras não utilizadas pertencentes a latifundiários por imigrantes era uma estratégia adotada pelo Estado. Tal prática não contava com o apoio daqueles que eram contra a instituição de pequenas propriedades e a favor da concentração de recursos estatais destinados unicamente para a agricultura mercantil (MAESTRI, 2005). As unidades de terra utilizadas por imigrantes podiam ser colônias, glebas, linhas e sedes. A colônia era toda terra devoluta coberta por floresta e administrada pelo poder central enquanto não havia o poder municipal. As glebas consistiam em demarcações de vinte hectares na planta. As linhas englobavam conjuntos de glebas com extensão entre seis e doze quilômetros. Por fim, a sede era o local em que se encontrava a administração, o comércio e os serviços. Sua delimitação se dava por ruas, lotes urbanos e praças no terreno mais plano da própria colônia (MAESTRI, 2005). O modo de produção dos imigrantes europeus era rústico, e, para Maestri (2005), no Brasil esse processo sofreu uma involução. Entretanto, esse modo de produção pode ser considerado avançado quando comparado com a produção da agricultura escravista, cabocla e nativa vigente no Brasil naquela época. A produção voltava-se para abastecer as necessidades das famílias por meio de hortas, roça, criação de pequenos animais e também produtos artesanais como vinhos, manteigas, salame, entre outros. O excedente era destinado ao mercado regional e vendido para financiar o pagamento de im- postos e comprar produtos não fabricados nas glebas, como algumas vestimentas, sal, ferramentas etc. Com a pressão dos latifundiários, a determinação de que a propriedade de terras somente poderia ser obtida por meio de compra, como previsto na Lei de Terras, fez com que os imigrantes passassem a servir como mão de obra nos latifúndios e substituíssem o tráfico de escravos, que é cada vez menor. Já em 1880, muitos desses imigrantes foram deslocados para São Paulo, para substituir os povos escravizados nas plantações de café. Os colonos recebiam casas, terras entre os cafezais para quistos étnicos: espaços em que os imigrantes exercem a sua identidade. Geografia rural76 plantações de subsistência e remuneração anual, em troca de cuidarem dos cafezais. Após certo tempo de remuneração muitos desses colonos conseguiram comprar pequenas propriedades, a maioria dedicada à cafeicultura, formando assim o campesinato nacional (MAESTRI, 2005). Esses povos chegaram ao Brasil com poucos filhos, em virtude da contenção demográfica europeia; entretanto, houve no país uma explosão demográfica em razão das fartas terras e da falta de mão de obra. Os filhos eram considerados força de trabalho e todos os membros da família aju- davam nas atividades, indiferentemente da idade (MAESTRI, 2005). Depois de consolidadas, as unidades de produção coloniais exerceram uma agricultura se- mi-intensiva e intensiva, com as ferramentas um pouco mais desenvolvidas e a utilização do arado e da tração animal. Os colonos passaram a cultivar plantas de ciclos breves e longos, como alguns cereais (arroz, milho, trigo etc.) e melhoram o armazenamento com a construção de celeiros e paióis (MAESTRI, 2005). Desse modo, pode-se dizer que os colonos se diferenciaram das outras categorias de produ- tores rurais. Eles podem ser definidos como camponeses típicos, distintos do caboclo, do caipira, do roceiro e do peão de estância. Sua tradição é diversa, assim como seu relacionamento com o próprio meio e com a sociedade nacional. Além disso, não são dependentes de patrões e de outros proprietários de terra (AZEVEDO, 2001 apud MAESTRI, 2005). 5.3.6 Campesinato na modernidade O campesinato deve ser considerado como uma classe social, e não como um setor da eco- nomia ou um modo de vida. Embora exista uma relação de subordinação com o capitalismo, o camponês não organiza suas formas de produção. Para esses grupos, a família, a terra e o trabalho são valores morais fundamentados em ordens religiosas, principalmente no catolicismo. Toda a sua produção é baseada no trabalho familiar (MARQUES, 2008a). A partir da década de 1970, estudiosos passaram a utilizar o termo pequeno produtor para se referir ao camponês e articulá-lo ao novo cenário de modernização. Contudo, essa denominação não mostra as especificidades dessa classe social, assim, ambas designações passaram a ser utiliza- das de maneira articulada. Na década de 1980, surgiram movimentos sociais que lutaram pelo direito à terra. Nesse perío- do também houve uma preferência em denominar os camponeses por categorias, como atingidos por barragens, sem-terra e assentados. Marques (2008a) indica que já na década de 1990 muitos autores pas- saram a adotar o termo agricultor familiar, em vez de camponês. Essa noção persiste até os dias atuais, entretanto, a autora compreende que essa designação é muito distinta do conceito de camponês. A agricultura familiar é uma profissão totalmente integrada ao mercado e não representa qualquer conflito com o desenvolvimento capitalista, posto que ser camponês é um modo de vida (MARQUES, 2008a). Em contrapartida, movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se autointitulam camponeses ligados à Via Campesina, uma organização internacional que luta pelos direitos dos camponeses. Estrutura agrária brasileira 77 Considerações finais Desde o século XVI, as atividades econômicas implementadas no Brasil utilizam grandes propriedades apoiadas na mão de obra escrava como força de trabalho. Inicialmente, o estímulo à ocupação do território acontecia com a justificativa de produzir e cultivar além da utilização das terras para a pecuária. Esse tipo de atividadese perpetuou nos séculos seguintes e perdura até os dias atuais. No entanto, a participação na produção oriunda das pequenas propriedades com base na mão de obra familiar vem se consolidando no cenário nacional desde o século XVIII, princi- palmente na produção de alimentos. Esse acréscimo e consolidação contam com a importante contribuição dos chamados povos da terra, que incrementam o modo de produção com seus co- nhecimentos técnicos e práticos obtidos ao longo do tempo em seus locais de origem. Ampliando seus conhecimentos O fragmento de texto a seguir justifica, em parte, o problema da concentração fundiária e a consequente formação e perpetuação dos latifúndios. Além disso, discute sobre o impedimento do progresso das políticas públicas de reforma agrária no Brasil. A criação da União Democrática Ruralista (UDR) e a instituição dos “ sindicatos do crime organizado” (ROSS, 2008, p. 493) [...] Centro-Oeste e a Amazônia representam uma espécie de “paraíso” do latifúndio, e por isso também, nessas regiões, é crescente a luta dos posseiros pelo acesso à terra. Dessa luta resulta a violência expressa no número elevados de assassinatos no campo, praticados sobretudo depois da formação União Democrática Ruralista (UDR), a organização de latifundiários que tem como objetivo lutar contra a reforma agrária. Na região do Bico do Papagaio (sul do Pará e Maranhão e norte do Tocantins), por exemplo, “sindicatos do crime organizado” divulgam impunemente as tabelas de preços cobrados para assassinar trabalhadores, religiosos, lideran- ças políticas e sindicais. A imprensa de São Paulo tem divulgado a tabela de preços de pisto- leiros: 1000 dólares para matar um agricultor; 1500 dólares pela morte de um advogado; 2000 dólares por um padre e 4000 dólares pelo assassinato de um deputado. Seguramente, foi devido à ação da UDR que o governo da Nova República, presidido pelo Sr. José Sarney, não realizou nem 10% da proposta de reforma agrária anunciada no início do seu governo. Foi também devido à ação da UDR que, na votação da Constituição de 1988, a proposta de reforma agrária foi praticamente impedida de se tornar realidade para milhões de camponeses sem terra no Brasil. [...] Geografia rural78 Atividades 1. Os conceitos de módulo fiscal e módulo rural são abordados em discussões que envolvem a conceituação e caracterização de imóveis rurais. Defina e diferencie essas duas concepções. 2. Os quilombos contribuíram para a formação camponesa brasileira. As comunidades qui- lombolas conquistaram o reconhecimento da propriedade da terra somente na Constituição de 1988, entretanto, ainda há muitas comunidades sem essa certificação. Um dos obstáculos para aumentar as certificações de propriedade da terra é justamente a noção de quilombo nos dias atuais. Diante disso, disserte sobre essas comunidades e por que é preciso redefini-las. 3. Os imigrantes europeus receberam incentivos da Coroa portuguesa para vir ao Brasil e for- mar um campesinato brasileiro. Como esses povos contribuíram para a formação campo- nesa no Brasil e quais foram outras razões que levaram a Coroa a incentivar essa imigração? 4. No Estatuto da Terra de 1964, as pequenas propriedades foram compreendidas como pro- priedades familiares (aquelas exploradas pelo agricultor e sua família). Somente na Consti- tuição de 1988 a pequena propriedade foi definida de maneira mais específica. Qual foi essa definição, que é a utilizada até os dias atuais? Referências BRASIL. 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Atualmente, devido às mu- danças ocorridas no sistema agrário brasileiro, em que a modernização agrícola foi o estopim, o camponês (que sustenta sua família por meio do trabalho na terra) precisa se organizar para continuar a exercer suas atividades, que são resultado de experiências adquiridas ao longo de várias gerações. Essas mudanças atuais têm sido a principal causa do êxodo rural e forçam o trabalhador a muitas vezes tornar-se assalariado na cidade ou, até mesmo, no próprio campo. Assim, surgem os movimentos sociais rurais, cujo objetivo é lutar pela reforma agrária e pelo direito de cultivar a ter- ra e dela viver. Neste capítulo, vamos estudar sobre esses movimentos, entender a luta pela reforma agrária e os conflitos provenientes dela. 6.1 Movimentos sociais rurais brasileiros Nas relações de trabalho no campo, a figura do camponês é antiga e perpassa diferentes modos de produção e momentos históricos. Sua força de trabalho esteve presente em sociedades organizadas sob os modos de produção feudal, capitalista e socialista. O camponês também foi tratado com base em várias perspectivas e classificado de diversas maneiras: como um obstáculo para o desenvolvimento da sociedade, como um “bárbaro”, uma classe social, entre outras visões, devido à intensificação das relações capitalistas (FABRINI, 2006). De acordo com Shanin (2005), o camponês pode ser definido e distinguido de acordo com seis características. A primeira se refere comportamento da economia camponesa, sendo dividida em quatro pilares: 1. Forma extensiva de ocupação autônoma (trabalho familiar): o camponês concentra seu trabalho em várias frentes de produção, com base em seu conhecimento acumulado e sendo apoiado no trabalho familiar, no qual cada membro da família tem uma ou mais funções no processo produtivo. 2. Controle dos próprios meios de produção: o camponês detém todos (ou quase todos) os meios de produção e é o responsável por adquiri-los, realizar manutenções, gerenciá-los e manuseá-los. 3. Economia de subsistência: o camponês produz o alimento (de origem animal e vegetal) para a família e comercializa o excedente. Geografia rural82 4. Qualificação ocupacional multidimensional: o camponês realiza diversas tarefas durante o processo de produção. Em geral, ele não desempenha funções específicas, como acontece em grandes unidades de produção. Em muitos casos, também é o responsável pelo transporte e a comercialização da mercadoria excedente. A produção e o modo de vida camponês se misturam com o ecossistema local e coexistem em equilíbrio com a agricultura, com as atividades extrativas e com o artesanato. Não há um pen- samento empresarial no que se refere ao planejamento da produção ou ao cálculo do desempenho. A relação com o controle da propriedade e com os direitos de posse é diferente para os não cam- poneses contemporâneos e ocorre quando o proprietário mantém o direito sobre a terra, ainda que outra pessoa a utilize. A segunda característica definida por Shanin (2005) refere-se à organização política dos camponeses, que demonstra padrões e tendências semelhantes em várias regiões do mundo. Como exemplo, podemos citar o sistema de intermediação e apadrinhamento, a segmentação vertical, o facciosismo e a guerrilha. Trata disso também a terceira característica, sobre as semelhanças entre camponeses de di- ferentes lugares que acabam influenciando as formas de produção e a vida social. Já a quarta característica reconhece o funcionamento da organização social camponesa. De acordo com Shanin (2005), os padrões internos de interação/exploração dentro das pequenas comunidades que os camponeses compartilham com trabalhadores rurais, artesões etc., são carac- terísticos e repetitivos, “assim como a posição subserviente geral das unidades sociais camponesas, dentro da rede mais ampla de dominação política, econômica e cultural” (SHANIN, 2005, p. 3). O autor revela que a quinta característica está ligada ao modo de vida, em que a produção das necessidades materiais, dos atores humanos e do sistema de relações sociais mostram o padrão específico e homogêneo do cotidiano camponês e retratam o ciclo natural. Incluem-se nisso todas as atividades desenvolvidas ao longo do ano, sejam referentes ao trabalho ou às re- lações interpessoais. Na sexta característica, Shanin (2005) destaca a mudança estrutural – relacionada à forma de produção, aos sistemas de fluxo de capital, às mercadorias etc. – que está ocorrendo nas últimas décadas nas sociedades nacionais e nos sistemas internacionais. Para o autor, o camponês também faz parte dessa mudança, refletindo alterações genéricas e específicas. Quando se fala em relações camponesas, é comum ouvir o termo campesinato. Para Wanderley (2014), o campesinato pode ser entendido como uma forma social de produção de caráter familiar, em que atividade produtiva é voltada para a subsistência e o modo de organização do trabalho con- sidera a cooperação entre os membros. Representa uma maneira de trabalhar e viver no campo que transcende a produção e se traduz como uma cultura e um modo de vida. O campesinato brasileiro está inserido em uma agricultura historicamente marcada pela produçãobaseada na grande propriedade monocultora e no trabalho escravo. Esse padrão se man- teve mesmo após o fim dos períodos colonial e imperial e da abolição da escravatura. No entan- to, ainda com o panorama totalmente desfavorável para o desenvolvimento de um modo de vida Os movimentos sociais do campo brasileiro, a reforma agrária e a luta pela terra no Brasil 83 camponês fundamentado na agricultura familiar, houve a expansão dessa forma de produção e cultura. De acordo com Wanderley (2014, p. 27), essa conquista do campesinato é resultado “das estratégias de resistência camponesa ao modo como se estruturou a atividade agrícola no país, desde seus primórdios, sob o domínio dos grandes empreendimentos e de sua capacidade de criar espaços para uma outra agricultura, a de base familiar e comunitária”. A organização do modo de vida camponês de agricultura familiar teve expansão com a ins- talação de famílias de trabalhadores em pequenas áreas no interior das fazendas. Nos séculos XVI e XVII, cultivava-se cana-de-açúcar na Região Nordeste e, a partir da segunda metade do século XIX, plantava-se café na Região Sudeste. Autorizados pelo proprietário das terras, os camponeses podiam cultivar produtos e man- ter pequenos animais para sua própria subsistência no entorno de sua moradia. Entretanto, isso estava vinculado ao trabalho na cultura principal, em que se podia receber ou não um salário, conforme condições combinadas previamente com o patrão (ANDRADE, 1964). 6.1.1 Movimentos sociais De acordo com Fabrini (2002), não há espaço para o camponês em uma sociedade na qual a intensificação das relações capitalistas no campo é crescente. Para o autor, essas relações acabam aos poucos com o modo de vida camponês, expulsam-no para a cidade e o transformam em um trabalhador assalariado. Diante desse cenário, o princípio do desenvolvimento desigual e a conse- quente luta de classes são as únicas possibilidades para a continuidade do modo de vida camponês, pois “apontam para o entendimento de campesinato pela resistência, luta e o conflito entre as clas- ses” (FABRINI, 2002, p. 78). Nesse sentido, o camponês encontra-se em uma situação na qual é necessário lutar para não ser “devorado” pelas relações capitalistas. Para Scherer-Warren (1999), os movimentos sociais se moldam no cotidiano das lutas desse grupo e podem ser compreendidos como ações coletivas que reagem diretamente aos contextos sociais e históricos nos quais estão inseridos. Esses movimen- tos ainda podem se manifestar por intermédio de protestos/denúncias e apresentar características contestadoras, propositivas e solidárias, com o objetivo de desenvolver mudanças e projetos alter- nativos com parceria e cooperação para a solução de problemas sociais. Para Gohn (1999), existem alguns paradigmas acerca de estudos sobre movimentos sociais, sendo que o paradigma marxista se destaca por suas importantes contribuições. Nomes como Antonio Gramsci (1891-1937), Lenin (1870-1924), Mao Tsé-Tung (1893-1976), Rosa Luxemburgo (1871-1919) e Leon Trotsky (1879-1940) basearam seus estudos na fundamentação, no conflito de classes e no poder revolucionário dos trabalhadores rurais para a transformação social, tendo em vista em modificações no modo de produção. 6.1.2 Origem dos movimentos sociais rurais no Brasil De acordo com Fabrini (2006), o embrião do que viria a se tornar a luta dos trabalhadores rurais organizados sem-terra se originou no final da década de 1970, constituído por trabalhadores expulsos e excluídos do processo de modernização agrícola implementado em grande parte da produção brasilei- ra. Como forma de resistência, esses trabalhadores ocuparam grandes propriedades rurais improdutivas Geografia rural84 e resistiram à possibilidade do trabalho assalariado na cidade e no campo, opondo-se ainda ao desloca- mento para a Amazônia, oferecido pelo governo para expansão e povoamento da região. Os movimentos pioneiros surgiram de maneira isolada, com ocupações consumadas no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, no Paraná, no Mato Grosso do Sul e em São Paulo. As primeiras ocupações contaram com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), fundada em 1975 com o objetivo de colaborar com a luta camponesa. Os movimentos sociais rurais ganharam notoriedade ao afirmar que a reforma agrária é o modo pelo qual os trabalhadores rurais podem atingir a cidadania e se inserir no conjunto das lutas pela redemocratização do país. De acordo com Marques (2008b), A emergência da luta pela reforma agrária é resultado de conflitos desencadea- dos no campo numa fase caracterizada pelo forte crescimento econômico do país, associado ao avanço da industrialização e da oferta de trabalho urbano, com mudanças significativas na cidade. Sua ampla disseminação se dá, porém, quando o país reafirma a sua opção por um modelo de agricultura extremamen- te excludente e as oportunidades de trabalho na cidade tornam-se mais restritas. A reforma agrária surge como alternativa de trabalho, morada e reprodução social para um número crescente de trabalhadores pobres que, dada a sua baixa qualificação em relação às atuais exigências do mercado, dificilmente encontra- riam melhor forma de inserção produtiva. (MARQUES, 2008b, p. 63) Esses grupos também sofreram transformações influenciadas pelas mudanças ocorridas no campo brasileiro a partir da década de 1970. Além dos trabalhadores que viviam no campo (e que não tinham terras para cultivo), outros grupos foram incorporados à luta, como trabalhadores urbanos empregados e desempregados, muitos destes oriundos do desemprego causado pela me- canização da produção agrícola, ou ainda aqueles que sobreviviam com subempregos. Esses grupos desejavam construir uma vida por meio de um trabalho digno e afastar-se de problemas urbanos/a periferia, como da violência (MARQUES, 2008b). 6.1.3 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) De acordo com Caldart (2001), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – conhe- cido também pela sigla MST ou por “movimento dos sem-terra” – nasceu em razão das contra- dições existentes na questão agrária brasileira. O MST foi idealizado no período de 1979 a 1984 e fundado durante o Primeiro Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais e Sem Terra, realizado na cidade de Cascavel, PR, no ano de 1984. Entre os objetivos definidos pelo grupo, até hoje cons- tam: lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar pela construção de uma sociedade mais justa, em que não haja explorados nem exploradores. Segundo dados divulgados na homepage do MST, o movimento está presente em 24 estados e nas cinco regiões brasileiras. Ao longo de mais de 30 anos de atuação, aproximadamente 350 mil famílias tiveram acesso à terra por meio dessas lutas (MST, 2017). Marques (2008b) afirma que, após sua fundação, o MST logo se estruturou como organi- zação e movimento social autônomo. Na década de 1990, já demonstrava poder de mobilização e ganhou projeção nacional. Para a autora, a trajetória bem-sucedida do MST está vinculada ao Os movimentos sociais do campo brasileiro, a reforma agrária e a luta pela terra no Brasil 85 surgimento de outros movimentos de trabalhadores sem-terra pelo país, que agregaram e ajuda- ram a fortalecer a luta. 6.2 Reforma agrária A reforma agrária é importante para o desenvolvimento socioeconômico, uma vez que transformações no uso da terra impulsionam a exploração agropecuária. Para Jones e Guiducci Filho (2000), é preciso haver uma reforma na estrutura agrária brasileira que reorganize o processo de produção em áreas ocupadas. Para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a reforma agrária é o “conjunto de medidas para promover a melhor distribuição da terra mediante modificações no regime de posse e de uso, a fim de atender os princípios de justiça social, desenvolvimento rural sustentável e aumento de produção” (INCRA, 2017). Segundo Carvalho et. al (2009) e o Incra (2017), a reforma agrária contribuipara a diver- sidade da produção agrícola, fortalece a comunidade, expande o mercado de trabalho, combate a fome e a miséria, reduz o êxodo rural e promove a justiça social. Contudo, além do acesso à terra, é preciso fornecer infraestrutura e suporte para realizar uma verdadeira reforma no setor agrope- cuário brasileiro. Alguns autores como Jones (2003) e Maestri (2005) – e até o próprio Incra (2017) – consi- deram o Estatuto da Terra (BRASIL, 1964) a tentativa mais eficaz para a consolidação da reforma. Tal condição se justifica em virtude da instituição da função social da terra, citada na Constituição Federal de 1988: Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simul- taneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em leis, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (BRASIL, 1988) O Estatuto da Terra autorizou o poder público a interferir na estrutura fundiária para uma distribuição justa e igualitária de terra. Entretanto, essa lei foi elaborada para fortalecer o desen- volvimento rural tendo em vista a modernização agrícola, e não a real distribuição de terra e o combate à pobreza rural (JONES, 2003). Maestri (2005) afirma que a obrigatoriedade de indenização pela desapropriação é um gran- de entrave para a democratização da posse da terra. No parágrafo segundo do artigo 19 do Estatuto, ficam claras as formas das desapropriações: § 2º Para efeito de desapropriação observar-se-ão os seguintes princípios: a) para a fixação da justa indenização, na forma do artigo 147, § 1°, da Constituição Federal, levar-se-ão em conta o valor declarado do imóvel para Geografia rural86 efeito do Imposto Territorial Rural, o valor constante do cadastro acrescido das benfeitorias com a correção monetária porventura cabível, apurada na forma da legislação específica, e o valor venal do mesmo; b) o poder expropriante não será obrigado a consignar, para fins de imissão de posse dos bens, quantia superior à que lhes tiver sido atribuída pelo proprietá- rio na sua última declaração, exigida pela Lei do Imposto de Renda, a partir de 1965, se se tratar de pessoa física ou o valor constante do ativo, se se tratar de pessoa jurídica, num e noutro caso com a correção monetária cabível; c) efetuada a imissão de posse, fica assegurado ao expropriado o levantamento de oitenta por cento da quantia depositada para obtenção da medida possessó- ria. (BRASIL, 1964) Para Jones (2003), o Estado se utiliza do discurso de que a reforma agrária tem um custo elevado, em razão justamente das indenizações. O autor afirma que, para realizar essa reforma, é preciso desapropriar terras e, para isso, a indenização é inevitável. Entretanto, a desapropriação de terras e o gasto decorrente dela são questionáveis. Isso porque todas as terras do Brasil são de origem pública. Assim, em qualquer forma de apropriação e ocupação particular, deve constar claramente no título de posse da terra o consentimento do poder público, pois, caso contrário, as terras continuam sendo públicas (JONES, 2003). A indenização em dinheiro é defendida justamente por aqueles que mais se beneficiam com a grilagem de terras e a indústria de posse. No Brasil, a alienação de terras desde o período colo- nial privilegiou (e ainda privilegia) a ilegalidade na ocupação territorial e nos registros. Fernandes (2010) ressalta que o pagamento das indenizações feito por meio de títulos de dívida agrária (TDA) e benfeitorias em dinheiro se tornou um negócio lucrativo para latifundiários e grileiros. Jones (2003) propõe que, antes de debater a desapropriação e estipular valores para tal, é necessário saber se essas desapropriações são cabíveis, ou seja, deve haver uma análise da legiti- midade do título, principalmente investigando as cadeias dominiais1, para que não haja dúvidas da sua legalidade. Com essas investigações, os custos com indenizações serão menores do que os estipulados pelo Estado, pois toda terra sem título legítimo é terra pública. Além disso, há resis- tência à reforma agrária por parte da opinião pública (influenciada por ruralistas organizados politicamente), por se acreditar que as terras ocupadas são propriedades privadas legítimas e, portanto, a reforma estaria indo de encontro ao pilar da propriedade privada. Do Estatuto da Terra de 1964 até a Lei n. 8.6292, de 25 de fevereiro de 1993, considerava-se apenas o uso da terra e a função social para título de reforma agrária. Até o governo de Fernando Henrique Cardoso3, as ocupações tornaram-se a maneira mais eficaz para conseguir fazer a refor- ma agrária, porém o governo criou medidas para criminalizá-las. O Banco Mundial (instituição financeira que efetua empréstimos a países em desenvolvimento), com o objetivo de solucionar os 1 De acordo com o Incra (2018), cadeia dominial é a relação dos proprietários de determinado imóvel rural, desde a titulação original pelo poder público até o último dono (atual proprietário). 2 A Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1993). 3 Fernando Henrique Cardoso (1931-), popularmente conhecido como FHC, foi presidente do Brasil de 1º de janeiro de 1995 a 1º de janeiro de 2003. Os movimentos sociais do campo brasileiro, a reforma agrária e a luta pela terra no Brasil 87 conflitos pela propriedade da terra, tentou colocar em prática a reforma agrária econômica, isto é, uma reforma agrária de mercado (FERNANDES, 2010). Essa nova política assumida por FHC e seguida, posteriormente, por Luiz Inácio Lula da Silva4 reconceitualizou a noção de reforma agrária. Os dois governos mantiveram a desapropriação e intensificaram a regularização de terra e a formação de assentamentos (FERNANDES, 2010). Coca (2013) conceitua a reforma agrária com base nos tipos de assentamentos e de aqui- sição de terra. O autor afirma que no Brasil há dois modelos de reforma agrária. O primeiro é o chamado modelo convencional, que engloba doação, desapropriação, confisco e transferência. A doação é a forma menos empregada nesse modelo, uma vez que depende de o proprietário doar suas terras para o governo federal, enquanto a desapropriação é a mais recorrente. Já o segundo modelo, chamado de reforma agrária de mercado, é feito por bancos e programas do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que oferecem créditos fundiários. Para Coca (2013), reforma agrária convencional apresenta 12 programas e 20 tipos de as- sentamentos, como o quilombola, o extrativista, o florestal, o federal, o estadual, o municipal etc. Os assentamentos federais e estaduais são os mais encontrados no Brasil, pois são oriundos das lutas dos camponeses sem-terra por meio das ocupações. Vale dizer que, no governo Lula, foi promovida a criação de assentamentos extrativistas para preservação ambiental. Ainda acordo com Coca (2013), a Região Nordeste tem o maior número absoluto de assenta- mentos. Quanto ao número de famílias assentadas, na Região Norte se encontra a maior parte delas e também a maior variedade de assentamentos. Esse cenário se formou ainda no período do governo militar, quando o Estado fomentou a colonização do Norte do país, na década de 1970. Após possei- ros ocuparem essas áreas, o Estado incentivou que empresas privadas negociassem as terras. Já a reforma agrária de mercado foi realizada no governo FHC e intensificada no governo Lula (COCA, 2013). A proposta consistiu em promovê-la sem precisar desapropriar terras, ofere- cendo linhas de crédito para camponeses. Os financiamentos foram ofertados de acordo com as especificidades de cada região. Segundo Coca (2013), na Região Nordeste, por exemplo,os créditos foram associados a uma linha de combate à pobreza rural, enquanto na Região Sul eles se destina- ram ao fortalecimento da agricultura familiar. Esses modelos ganharam força com o II Plano Nacional de Reforma Agrária (BRASIL, 2004), documento elaborado no governo de Lula, com um trabalho conjunto de técnicos, servi- dores, movimentos sociais e acadêmicos. O plano destinou-se aos trabalhadores rurais sem-terra e assentados, aos posseiros, aos pequenos agricultores, aos extrativistas, à população ribeirinha, entre outros. No documento, destaca-se o potencial da reforma agrária em transformar a sociedade brasi- leira e promover emprego, renda e segurança alimentar. Além disso, a reforma é considerada uma importante ferramenta para o planejamento de uma nação moderna e soberana (BRASIL, 2004). 4 Luiz Inácio Lula da Silva (1945-), popularmente conhecido como Lula, foi presidente do Brasil de 1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro de 2011. Geografia rural88 O plano também defende que desconcentrar a propriedade da terra não é suficiente para corrigir completamente os males da atual conjuntura da estrutura agrária brasileira. Tal medida deve ser combinada com ações e investimentos que assegurem a qualidade dos assentamentos, como incentivos a créditos, seguros agrícolas, assistências técnicas e políticas de comercialização (BRASIL, 2004). Carvalho et al. (2009, p. 70) partilham da mesma opinião e mencionam a importância da produção própria de alimentos e a criação de empregos proporcionada pela reforma agrária: A produção própria de alimentos e a garantia de emprego em sua própria terra contribuem para o papel estratégico do autoconsumo reduzindo a possibilidade de os agricultores familiares passarem fome ou ficarem desempregados. A re- forma agrária também beneficia os trabalhadores rurais assalariados, pelo fato de as pequenas propriedades demandarem muita mão-de-obra externa; além de setores não agrícolas, na medida em que a renda advinda da terra é gasta na aquisição de bens produzidos localmente. Entretanto, Coca (2013) destaca que a reforma por meio de políticas de assentamento e regularização fundiária não é suficiente. Para o autor, a legitimação de posse e o reconhecimento das áreas de conservação como maior parte das terras públicas não solucionam o problema da con- centração da propriedade de terras no Brasil. Com isso, não há uma mudança na estrutura agrária por meio da desapropriação (como está prevista na legislação), e sim uma regularização fundiária. Fernandes (2010) afirma que política alguma de reforma agrária conseguiu modificar a es- trutura fundiária brasileira, nem mesmo o Índice de Gini. Isso porque a política de regulamentação, utilizada para título de reforma agrária, é a que menos impacta na reestruturação agrária do país. O II Plano Nacional de Reforma Agrária, de 2003, reforçou a ideia de sustentabilidade am- biental. O documento conduz para a “[...] sustentabilidade ambiental para garantir o acesso a direitos e a promoção da igualdade – objetivos integrados a uma perspectiva de desenvolvimento territorial sustentável” (BRASIL, 2004, p. 15). O plano também consolidou e ampliou os atuais conceitos rela- cionados à reforma agrária, como a regularização e o crédito fundiário. Por meio dele, criaram-se vários programas para democratizar o acesso à terra, um novo modelo de desenvolvimento territorial e novos assentamentos, tendo por objetivo a integração produtiva e o desenvolvimento sustentável com a regulação fundiária. Carvalho et al. (2009) corroboram a ideia de que a política de reforma agrária brasileira pode ser um estímulo para o desenvolvimento sustentável. Entretanto, segundo os autores, a con- centração fundiária impede tal desenvolvimento, assim como obstrui a promoção da justiça social. Leroy e Pacheco (2004) ressaltam que há várias modalidades de conservação da natureza, as quais, além de proteger, também garantem o desenvolvimento do território. O extrativismo, as terras indígenas, os quilombos, entre outros, ampliam as possibilidades da reforma agrária. Assim, quem luta pela reforma é também defensor da conservação ambiental. Para os autores, a reforma combina estratificação ambiental, cobertura vegetal e zoneamento agroecológico. Dessa maneira, deve haver linhas de crédito, apoio técnico e certificação para que ela aconteça. Leroy e Pacheco (2004) definem que a missão da reforma agrária é reconstruir o território, a nação e a cidadania. Os modos como as forças dominantes coordenam o território geram cada Os movimentos sociais do campo brasileiro, a reforma agrária e a luta pela terra no Brasil 89 vez mais desigualdades, com um projeto neoliberal que forma um território homogeneizado, artificial e pobre. Essa realidade pode ser enfrentada e transformada com a reforma agrária. 6.3 Conflitos pela terra Os conflitos são ações de resistência e enfrentamento presentes no campo (e no contexto social) que envolvem a luta pela terra, a luta pela água, a luta pelos direitos e a luta pelos meios de produção. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2016), esses conflitos ocorrem entre classes sociais, trabalhadores e por motivações diversas, como a ausência de políticas públicas. Os conflitos pela terra são aqueles em que as lutas pela posse e o uso da terra e da proprie- dade se dão pelo acesso aos recursos naturais. Já os conflitos pela água são resistências coletivas que buscam garantir o uso e a preservação desse bem tão necessário à sobrevivência. Há ainda os conflitos trabalhistas, que compreendem a relação trabalho versus capital e sua superexploração. (PORTO-GONÇALVES; CUIN, 2013). Para Porto-Gonçalves e Cuin (2013), o conflito é inerente às relações sociais e de poder. As classes sociais têm concepções e práticas diferentes para um mesmo tema e objetivo, isto é, “o conflito é a contradição social em estado prático” (p. 18). Nos últimos anos, mesmo com a diminuição de ocupações de latifúndios, nota-se o aumen- to da violência e o acirramento da luta por áreas ligadas ao agronegócio e de setores minerais e energéticos. Percebe-se que as áreas com mais recursos naturais (como água e minério) são as que demandam mais ocorrências de disputas política e econômica (CLEPS JÚNIOR, 2014). Boff (2016) considera que os conflitos são originários da existência humana. Dessa forma, por mais que uma sociedade seja equilibrada, sempre existirão conflitos. O autor ainda ressalta que a violência no Brasil é proveniente de sua formação social. De acordo com Moreira e Resende (2004), o Tratado de Tordesilhas5, assinado em 1494, consentiu que a propriedade da terra pertencesse àqueles que nem mesmo a conheciam. Para tan- to, praticou-se o genocídio de povos indígenas, povos africanos foram escravizados e, posterior- mente, ocorreu o aprisionamento das terras por meio da Lei de Terras (BRASIL, 1850), a fim de manter esses povos sem direito à propriedade. Boff (2016) traça quatro bases históricas para a violência brasileira: o passado colonial, o ge- nocídio indígena, a escravidão e a Lei de Terras. Segundo ele, todo processo de colonização (primei- ra base histórica) é violento, visto que implica em invadir terras, impor culturas e dominar povos – e no Brasil não foi diferente. Na segunda base histórica – o massacre dos povos indígenas –, grande parte dessa popula- ção foi extinguida. Além disso, até hoje se observa imensa discriminação contra esses povos. Para Boff (2016), a terceira base histórica é a mais sombria de todas: a escravidão. Os povos africanos foram trazidos ao Brasil de maneira violenta para integrarem o processo de produção 5 O Tratado de Tordesilhas foi assinado entre Portugal e o Reino de Castela para estabelecer a divisão das terras descobertas por Cristóvão Colombo (1450-1506) em 1492. Geografia rural90 do país. Criou-se uma relação entre casa-grande e senzala que formou a classe de senhorial, presente até hoje no grupo dominante, formado por grandes donos deterras. O autor aponta algumas consequências históricas desse processo, como a falta de respeito com a população ne- gra, o preconceito com a cultura africana e a negação de direitos fundamentais a essa população. Foi no escravismo ainda que surgiu a divisão entre poucos ricos (que comandam a política e a economia) e muitos pobres (a maioria explorada). Isso fez do Brasil um país com altos índices de desigualdade, que se refletem até hoje em aspectos sociais (WORLD BANK GROUP, 2017). A quarta base histórica elencada por Boff (2016) é considerada pelo autor a responsável pela maioria dos conflitos existentes no campo. Como já mencionamos, a Lei de Terras (BRASIL, 1850) estipulou que a propriedade de terra poderia ser adquirida apenas por meio de compra, fato que excluiu a maioria da população (pobres e afrodescendentes). Para Moreira e Resende (2004), essa lei deu início à mercantilização da terra e favoreceu o surgimento da propriedade privada no Brasil: De lá para cá, inúmeros decretos possibilitaram aos ocupantes de terras de- volutas (ou grileiros) acumularem riqueza e poder. Assim surgiu o coronel, o latifundiário e o agronegócio. Resguardado cada momento histórico, todas essas categorias trataram de promover a violência no campo, ceifando vidas humanas, destruindo o meio ambiente, concentrando renda, aumentando seus lucros e o tamanho de suas áreas. (MOREIRA; RESENDE, 2004, p. 35) Quando a terra se torna mercadoria, percebe-se a divisão de classes sociais. A diferença passa a ser econômica, e não mais étnica; o predomínio é daquele que tem maior poder de compra. Para o trabalhador, só resta vender sua força de trabalho (LOPES, 2008). Boff (2016) faz uma interessante analogia de que o Brasil nasceu como uma empresa trans- nacional, à serviço dos colonizadores europeus. Essa noção não mudou nem mesmo com a in- dependência política, pois o país esteve sempre dependente do “grande negócio mundial”, como exportador de commodities. O projeto de latifúndio só foi levado em frente por meio de muita violência. Moreira e Resende (2004) defendem que o surgimento dele ocorreu à margem das leis, quando foram to- madas propriedades de pequenos posseiros e houve o avanço sobre terras de populações indíge- nas e de camponeses. Na década de 1970, ocorreu uma reafirmação do poder das oligarquias e a configuração de um novo modelo de poder tecnológico, financeiro, latifundiário, midiático: o agronegócio. Nesse mesmo período, providenciou-se o despejo das populações camponesas, fato que consequentemente contribuiu para o aumento do número de trabalhadores rurais sem-terra. Com medo de perder suas terras por desapropriação, latifundiários se utilizaram da pro- paganda do agronegócio e impuseram o modelo de modernização do campo. Assim, em vez de o trabalho ser realizado por camponeses por meio da agricultura familiar, instaurou-se a cultura do gado, com suas áreas de capim. As terras também passaram a ser repletas de monoculturas (enquanto milhares de famílias encontram-se em acampamentos), nas quais ainda hoje se impõe o trabalho informal e sem direitos (MOREIRA; RESENDE, 2004). O Estado tem sido conivente com a estrutura agrária brasileira. Muitos conflitos se dão em terras devolutas e os poderes só agem a favor da propriedade privada de poucos, sem colocar em prática a função social da terra. empresas transnacionais: também conhecidas como multinacionais, são empresas que têm matriz em um país e atuam em vários outros. Os movimentos sociais do campo brasileiro, a reforma agrária e a luta pela terra no Brasil 91 Boa parte da violência no campo é praticada pelo poder privado, em ação direta de grileiros, fazendeiros e empresários, que agem na contramão da lei (PORTO-GONÇALVES; CUIN, 2013). Caberia ao poder público respeitar valores do campo e ser imparcial para resolver os conflitos nesse ambiente. No entanto, para Porto-Gonçalves e Cuin (2013, p. 22), a ação do poder público ainda é parcial e responde apenas à “reivindicação de proprietários ou de pretensos proprietários (grileiros)”. Para Boff (2016), o crescimento da violência no campo não está atrelado ao aumento de ocupações e assentamentos, pois nos últimos anos essas ações têm diminuído, porém, a violência ainda se mantém. De acordo com o autor, no ano de 2007 ocorreram 28 casos de assassinato no campo, já em 2016 foram registrados 61. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (apud PORTO-GONÇALVES; CUIN, 2013), os povos tradicionais (indígenas e quilombolas) são aqueles que mais sofrem violências no campo, seguidos por trabalhadores sem-terra e posseiros. Boa parte dos assassinatos é de integrantes de grupos que lutam pela permanência na terra; a violência ocorre junto à expropriação. Tal expropriação ocorre quando o Estado se interessa pela terra do pequeno proprietário para a construção de grandes empreendimentos, como barragens e usinas. Ela aumenta a explora- ção do trabalhador, pois ele passa a vender sua força de trabalho (ROSSINI, 2009). Alguns trabalhadores expropriados das regiões Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil migram para o Norte e trabalham informalmente, enquanto outros lutam pela posse da terra. Para Rossini (2009), a Região Sul é a que apresenta maior resistência para permanência na terra. Isso remete à afirmação de Porto-Gonçalves e Cuin (2013), ao dizerem que os conflitos e a violência no campo são distribuídos de maneira desigual no país. Segundo os autores, na Amazônia há um altíssimo índice de conflitos no campo devido à grande expansão do capital, que traz consequências sociais e ambientais para a região. Já na Região Nordeste os estados de Pernambuco e da Paraíba comportam os maiores índices. O Centro-Sul apresenta conflitos em estados com maior expansão da modernização agrícola, principalmente o Mato Grosso do Sul. A Amazônia teve oito dos seus nove estados com Índices Alto e acima de Alto em 2013, a saber: AP (Excepcionalmente Alto), AC (Altíssimo), RO e TO (Muito Alto) e MA, MT, PA e RR (Alto). Isso evidencia que a expansão do capital sobre a Amazônia traz enormes consequências sociais e ambientais. No Nordeste dois estados se destacaram – PE e PB – com Índice Alto e na região Centro-Sul, Mato Grosso do Sul apresentou Índice Altíssimo de áreas em conflitos. (PORTO- GONÇALVES; CUIN, 2013, p. 20) Para o capital, a terra é um negócio do qual ele se apropria para crescer; para o agricultor, a terra é o meio de ele obter seu sustento e o de sua família. Rossini (2009) afirma que é exata- mente essa a divergência responsável pelos conflitos. Portanto, a modernização conservadora e os avanços tecnológicos reafirmam o latifún- dio como o pilar da reprodução do poder e que comanda o processo de acumulação de capital. A violência étnico-racial e de classe é característica do padrão de poder do latifundiário brasilei- ro, entretanto, o aumento da modernização faz crescer ainda mais as injustiças sociais e a violência ( PORTO-GONÇALVES; CUIN, 2013). Geografia rural92 Lopes (2008) afirma que a modernização do campo foi dolorosa, pois aumentou o acúmulo de terra nas mãos de poucos e também a expropriação de pequenos produtores. Assim, as lutas são contra pastagens, monoculturas e especulações imobiliárias. Para Boff (2016, p. 31), “nos en- contramos num ambiente de guerra civil no campo, com inseguranças, ameaças, espancamentos, ciladas, perseguições, invasão e destruição de pequenas propriedades (deixar que bois entrem nos roçados) e muitos assassinatos”. A principal saída para resolver os conflitos é fazer a reforma agrária, já prevista na Constituição de 1988 (BOFF, 2016). Ainda assim, o Estado se mostra afastado dos movimentos sociais e de suas reivindicações. A reforma está vai além da partilha da terra, pois é também uma importante aliada da agricultura familiar e ecológica, da política de crédito, da segurança alimen- tar, da educação do campo e do cooperativismo. Portanto, a questão agrária não está somente no campo, elaenvolve a sociedade inteira. A luta do campo é um problema político que abrange o poder judiciário, o poder público, a política nacional e a política local (MOREIRA; RESENDE, 2004). Considerações finais A luta pela terra no Brasil, principalmente por meio da reforma agrária, intensificou-se nas últimas décadas. Ao mesmo tempo, o crescimento da força e do poder dos grandes proprietários também foi proporcional. Ainda assim, os camponeses se organizaram e constituíram movimentos sociais rurais com o objetivo de democratizar o acesso às terras, distribuí-las para famílias rurais e fazer valer seu uso social. Ainda hoje, o campesinato luta pelo direito à terra e ao trabalho, ao mesmo tempo que os grandes latifundiários e as empresas de monocultura avançam sobre seu território. Essa luta não é uma característica exclusiva do campesinato brasileiro, ela é empreendida também por diversos povos, de diferentes etnias. Ampliando seus conhecimentos Medeiros (1989) relata a seguir os conflitos ocorridos entre trabalhadores rurais sem-terra e grileiros/proprietários nas cidades de Formoso, estado de Minas Gerais, e Trombas, em Goiás. O caso de Formoso e Trombas (MEDEIROS, 1989, p. 35-38) A região onde o conflito se desenvolveu situa-se no meio norte de Goiás. Ocupada nos anos 40 por migrantes vindos de diversos pontos do país, muitos atraídos pela propaganda em torno da Cango (Colônia Agrícola Nacional de Goiás), em Ceres; a partir do início dos anos 50, a área tornou-se objeto de grilagem. Os posseiros, ameaçados de despejo, resolveram resistir. A notícia dos problemas vividos pela região chegou a uma das reuniões preparatórias do II Congresso Camponês de Goiás e, a partir daí, foi feito um primeiro contato com forças Os movimentos sociais do campo brasileiro, a reforma agrária e a luta pela terra no Brasil 93 políticas de Goiânia. Logo depois, alguns quadros do PCB foram deslocados para a região para auxiliar a resistência. [...] A associação e os conselhos foram o sustentáculo da defesa e da organização de piquetes contra as investidas da polícia e dos grileiros que se tornavam cada vez mais frequentes e violentos. [...] Para aqueles homens pobres que faziam a sua pobre semeadura de subsistência a terra era mais do que a vida; era a sobrevivência imediata. Por isso pegavam em armas, vigilantes, atentos ao menor ruído, suportando dias e noites de chuvas ininterruptas. Já em 1957 a região estava toda organizada e sob controle dos posseiros que impediam a entrada dos jagunços, dos grileiros e da polícia na área. Finalmente conseguiram um acordo com o governo do Estado, que retirou a polícia e se comprometeu a titular as posses, sendo a associação a intermediária na indicação dos verdadeiros posseiros. [...] Atividades 1. As relações de trabalho entre o camponês e a produção se modificaram drasticamente no Brasil a partir da década de 1970, quando foram implementados pacotes de modernização oriundos dos Estados Unidos e da Europa. Quais medidas foram adotadas para minimizar a perda do controle do agricultor camponês para a agricultura capitalista? 2. Boff (2016) defende que há quatro bases históricas que influenciam o conflito no campo brasileiro até hoje. Explique sobre elas e suas consequências. 3. Coca (2013) defende que há dois tipos de reforma agrária: a convencional (considerada de natureza política e social) e a de mercado (com caráter voltado à economia). Explique a di- ferença entre esses modelos. 4. O II Plano Nacional de Reforma Agrária (BRASIL, 2003) debate a reforma agrária e questões essenciais para além da desapropriação de terras. Cite um dos fatores defendidos no docu- mento e faça um contraponto com o posicionamento crítico dos autores discutidos no item 6.2 deste capítulo. Referências ANDRADE, M. C. A terra e o homem no Nordeste. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1964. BOFF, L. Conflitos no campo, suas causas e possíveis saídas. In.: CANUTO, A.; LUZ, C. R. S.; ANDRADE, T. V. P. (Org.). Conflitos no campo: Brasil 2016. Goiânia: CPT Nacional, 2016. 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Uma caracterização demográ- fica e dos principais processos transformadores também irá introduzir importantes problemáticas que subsidiarão as reflexões dos capítulos seguintes. 7.1 A formação e as transformações do espaço rural brasileiro: uma visão histórica Se definirmos o espaço rural de maneira antagônica ao urbano, estaremos simplificando e negligenciando sua complexidade. Do mesmo modo, não se pode considerá-lo como lugar de pro- dução das atividades agropecuárias sem o entender também como espaço de vida, com a dimensão do pertencimento à terra e das relações sociais que ali se estabelecem. Historicamente, o espaço rural brasileiro foi analisado de maneira economicista. Ele foi visto como lugar de produção de matérias-primas, alimentos e mão de obra para o espaço urbano e os processos de industrialização (ELESBÃO, 2007). Assim, o espaço rural estabeleceria relações em função das demandas do urbano, que delimitaria necessidades de produtos alimentícios, matérias- -primas (madeira, minérios etc.) e liberação de mão de obra para a industrialização, ocasionando fluxos migratórios de grande relevância (como o êxodo rural), a geração de capital pela exportação de produtos agrícolas e a criação de um mercado interno para absorver a produção industrial in- terna (ALBUQUERQUE; NICOL, 1987). É preciso lembrar que a formação do território brasileiro, após a ocupação portuguesa em 1500, aconteceu predominantemente em âmbito rural. As diversas populações indígenas que ha- bitavam o atual Brasil apresentavam, em sua maioria, formas diversas de agricultura, com melho- ramento de espécies e manejo da floresta. Com a chegada dos portugueses, a primeira atividade econômica nos moldes ocidentais se estabeleceu com o extrativismo vegetal, principalmente do pau-brasil, madeira que, além de dar nome ao país, era a principal fonte de pigmentos vermelhos desse período. 1 O conceito é abordado por Milton Santos (1992) e representa os elementos físicos que formam o espaço, como edifi- cações, estradas, vegetação e relevo, ou seja, tudo o que tem sua materialidade palpável aos sentidos. Geografia rural98 O ciclo do pau-brasil teve seu auge entre 1503 e 1550 e foi responsável pelas primeiras ex- pedições que vieram ao território brasileiro e, consequentemente, causaram desmatamentos de maiores proporções, comona Mata Atlântica. Com a crescente ocupação do litoral nordestino, foram implementadas as primeiras plan- tações intensivas de cana-de-açúcar. O clima quente, as grandes áreas disponíveis para o plantio e o crescente mercado consumidor do açúcar proporcionaram a transformação do espaço rural brasileiro, em particular o nordestino, no período de 1550 a 1650. O ciclo do açúcar modificou o uso e a cobertura do solo na região (com o estabelecimento dos primeiros latifúndios) e também mudou as relações sociais com o surgimento de uma elite (os co- ronéis do açúcar) e dos sistemas de objetos que foram criados para que ela se estabelecesse. Ou seja, as imponentes sedes de fazendas e as construções exuberantes nas cidades em formação, a criação dos primeiros engenhos e o início do uso da mão de obra escrava vinda dos países africanos contri- buíram para que essa classe social se estabelecesse econômica e politicamente (FURTADO, 1964). Nesse período, a ocupação do território brasileiro ainda era esparsa e desconexa, assim como a configuração do espaço rural, que era destinado à subsistência e à criação de gado. Isso era feito próximo de áreas de maior produção de cana-de-açúcar, como parte do próprio processo de manutenção dessa atividade, já que necessitava da tração animal nos engenhos e da alimentação. Nas regiões Sul e Sudeste, a pesca de baleia, usada para a produção de óleo tanto na iluminação quanto na construção civil, fez parte das modificações do espaço rural litorâneo. Em 1693, foi encontrado ouro no interior do atual estado de São Paulo, dando início ao ciclo da mineração (que duraria até o ano de 1760), propagado para toda a Região Sudeste, principal- mente para Minas Gerais e o território do atual estado de Goiás. A presença de ouro e diamante na superfície e no leito de rios modificou a dinâmica de ocupação, dando origem a grandes fluxos migratórios para as regiões produtoras. A geração de altos valores de renda pela mineração fez surgirem as primeiras cidades interioranas. Entretanto, a produção de açúcar de cana em outras colônias e o surgimento do açúcar de beterraba geraram a contínua decadência da cultura açuca- reira. Somado a isso, o esgotamento das reservas minerais de superfície proporcionou um cenário de instabilidade econômica no fim do século XVIII. Nessa época, a Região Norte foi marcada pelo ciclo da borracha, que modificou a estrutu- ra do espaço rural, com a criação de uma elite nas cidades de Manaus e Belém – potencializada com o uso de navios a vapor após 1853. A borracha foi ainda responsável pelo primeiro grande fluxo migratório para a Região Norte, com a mão de obra de migrantes vindos, em sua maioria, da Região Nordeste. No entanto, foi o ciclo do café que marcou a estrutura das relações sociais do espaço rural do Brasil – e, consequentemente, ainda hoje há resquícios desse processo. A inclusão do café no siste- ma agrícola brasileiro modificou a organização territorial e as estruturas sociais por meio da con- solidação dos barões do café e da economia nacional. Com as melhores condições climáticas para a produção cafeeira na Região Sudeste, a supremacia da produção no atual estado de São Paulo ocorreu pelo contingente de mão de obra livre de imigrantes – como os italianos, em substituição As relações sociais de produção no espaço rural brasileiro 99 à mão de obra escrava – e em razão da criação da rede de ferrovias que cortava o estado, ligando o interior ao Porto de Santos. Políticas governamentais – como a Lei de Terras, de 1850, que proibiu a ocupação de ter- ras devolutas – incentivaram o desenvolvimento de latifúndios e a concentração de propriedades. Essa forma de organização permanece na atualidade e apresentou importantes reflexos na popula- ção rural e na agricultura familiar. O século XIX também ficou marcado pelo aumento do número de quilombos. Em períodos anteriores, já haviam sido estabelecidas algumas unidades, mas, com a proximidade do fim da escravidão e a falta de políticas de inserção dessa população na sociedade, os antigos quilombos e as novas unidades foram as principais alternativas. Somente nas últimas décadas políticas públicas foram realmente criadas para a garantia de manutenção dessas comunidades e surgiram territórios quilombolas como espaços de reprodução cultural, social e econômica desses grupos étnicos. O ciclo do café perdurou até a década de 1930, quando a combinação de diversos fatores, como a crise de 1929 e uma supersafra que ocasionou grande queda nos preços, declinou a hege- monia da produção brasileira (ELESBÃO, 2007). A Figura 1, a seguir, mostra uma síntese de todos esses ciclos. Figura 1 – Esquema síntese das principais mudanças regionais no espaço rural brasileiro até o fim do século XIX • Consolidação da Região Sudeste no cenário econômico e político nacional. • Latifúndio como modelo de organização fundiária. • Mudança da mão de obra escravizada para imigrantes, em grande parte italianos. • Sistema de objetos favorável, ferrovias e Porto de Santos. Ciclo do café • Modificação do espaço rural da Região Norte, sobretudo nas cidades de Manaus e Belém. • Migração interna (principalmente de nordestinos) para trabalhar com a retirada da borracha. • Transporte por navios a vapor. Ciclo da borracha • Ocupação do interior das regiões Sudeste e Centro-Oeste. • Ouro e diamantes em reservas superficiais. • Desenvolvimento de cidades de apoio às atividades. • Subciclos – como o ciclo do gado na Região Sul, para alimentação, vestuário e tração animal. • Reconfiguração socioespacial da Região Nordeste. • Mão de obra escravizada. • Fazendas e engenhos. Ciclo do açúcar Ciclo da mineração • Extração vegetal. • Desmatamento da Mata Atlântica. • Sem mudanças sociais relevantes. Ciclo do pau-brasil • Diversas populações indígenas praticavam a agricultura.Antes de 1500 Fonte: Elaborada pela autora com base em Buescu, 2011. Geografia rural100 Quando analisamos a distribuição espacial dos grandes estabelecimentos de terra em 1940 (Mapa 1), percebemos uma hegemonia desses latifúndios nos principais polos de produção brasi- leiros, como Minas Gerais (ouro, café e leite) e Rio Grande do Sul (pecuária), tanto em termos de área quanto em número de estabelecimentos, sendo que neste último quesito também se destacam São Paulo (café) e Bahia (açúcar e algodão). Mapa 1 – Espacialização dos estabelecimentos agropecuários com áreas superiores a 1.000.000 ha e números de estabelecimentos desse porte para os estados da federação no ano de 1940 Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 20. Até a contemporaneidade, mudanças pontuais nesse panorama foram identificadas. Porém, poucos projetos de reforma agrária efetiva e delimitação de áreas quilombolas e indígenas foram elaborados e, por isso, é possível identificar o mesmo cenário de espacialização desses estabeleci- mentos no censo agropecuário de 2006, conforme mostra o Mapa 2 (IBGE, 2009). As relações sociais de produção no espaço rural brasileiro 101 Mapa 2 – Espacialização dos estabelecimentos agropecuários com áreas superiores a 1.000.000 ha e números de estabelecimentos desse porte para os estados da federação no ano de 2006 Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 20. O fim do ciclo do café marcou uma ruptura no modelo econômico nacional, o de primá- rio-exportador. Esse processo foi longo e descontínuo e, por mais que na década de 1930 tenha acontecido o fim do grande ciclo econômico do café, em algumas regiões ele se manteve, como no norte paranaense, até meados da década de 1970. As dimensões continentais do território brasileiro, as diferenças de condições socioculturais das regiões e a concentração das ações governamentais e de capital em poucos centros urbanos contribuíram para que os processos econômicos e territoriais se disperssassem de maneira hete- rogênea. Assim, enquanto o fim do ciclo do café no estado de São Paulo aconteceu em virtude da substituição de mão de obra pela industrialização, no norte do Paraná,uma série de geadas (em particular a geada negra de 1975) culminou com a perda de inúmeros cafezais. Em função disso, esses processos distinguiram-se por especificidades locais. A diminuição da exportação teve reflexos no potencial de importação, gerando meios para o desenvolvimento de uma industrialização com a finalidade de substituir os produtos que ante- riormente eram importados. Furtado (1964) relaciona o período, pós-Segunda Guerra Mundial a uma intensa dinâmica interna da economia. Com a revolução técnico-científica, acontece a chamada Revolução Verde, que proporcionou as bases para a agropecuária retomar com seu Geografia rural102 papel exportador na economia. O Brasil, como um país periférico, sentiu os reflexos dessa revo- lução tardiamente em relação aos EUA e aos países da Europa, entre 1960 e 1970, e, ainda assim, de maneira heterogênea. 7.2 Os principais processos transformadores do espaço rural brasileiro Na década de 1950, principiava-se a modernização do campo por meio da utilização em grande escala de insumos químicos para combater pragas e potencializar a produção agrícola. Embora no Brasil esse processo tenha se intensificado apenas entre 1960 e 1970, ele ocorreu em âmbito mundial e ficou conhecido como Revolução Verde. Consistia na introdução de técnicas de melhoramento genético, mecanização das atividades, redução dos custos de produção e o intensivo uso de insumos químicos. Essas ações modificaram o espaço rural, que passou a se desenvolver sob influência de meios técnicos, científicos e informacionais. Milton Santos aponta que: ciência, tecnologia e informação fazem parte dos afazeres cotidianos do campo modernizado, através das sementes especializadas, da correção e fertilização do solo, da proteção às plantas pelos inseticidas, da superposição de um calendário agrícola inteiramente novo, fundado na informação e que o meio técnico-cien- tífico-informacional é a nova cara do espaço e do tempo. É aí que se instalam as atividades hegemônicas, aquelas que têm relações mais longínquas e participam do comércio internacional, fazendo com que determinados lugares se tornem mundiais. (SANTOS, 1994, p. 45) Assim, o processo de modernização do campo ocorre concentrado de modo socialmente excludente e espacialmente seletivo (SANTOS, 1994). Com base nessa proposta de regionalização do território brasileiro, o meio técnico-científico-informacional surge continuamente nos espaços rurais da região concentrada2 (estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) e como manchas desconectadas nas outras regiões. Se considerarmos o uso de tração mecânica como forma de correlação desse processo, verificaremos que essa distribuição desigual ainda acon- tece na atualidade. Essa modernização, iniciada na década de 1960, pode ser considerada conservadora, em razão de as relações fundiárias e de poder permanecerem inalteradas (ELESBÃO, 2007). Moreira (1999) relaciona esse processo à participação de uma elite agrária, proprietária de grandes latifún- dios, que intensificam e aprofundam suas condições hegemônicas amparados pelas ações públi- cas e de mercado, e seus impactos sociais e espaciais são fundamentalmente desiguais. Para Elias (2006, p. 31), esse processo de reestruturação da agropecuária brasileira, isto é, [...] [de] intensificação do ca- pitalismo no campo, com todas as possibilidades advindas da revolução tecno- lógica, processou-se de forma socialmente excludente e espacialmente seletiva. Diante disso, manteve intocáveis algumas estruturas sociais, territoriais e polí- ticas incompatíveis com os fundamentos do verdadeiro significado do conceito 2 Nesse caso, o termo região concentrada é usado para analisar a concentração de capitais, de industrialização, de me- canização, ou seja, refere-se a uma região na qual o desenvolvimento acontece de maneira concentrada, diferentemente daquelas em que ocorre de modo disperso, por exemplo. As relações sociais de produção no espaço rural brasileiro 103 de desenvolvimento. Isso significa que privilegiou determinados segmentos sociais, econômicos e os espaços mais rapidamente suscetíveis de uma reestru- turação sustentada pelas inovações técnico-científicas e pela globalização da produção e consumo. Complexo e desigual, o espaço rural brasileiro apresenta-se como uma sucessão de ati- vidades e usos. As relações entre agentes ligados ao agronegócio, políticas públicas, agricultura familiar e urbano/rural serão tratadas nos próximos capítulos, entretanto podemos adiantar que a pluriatividade se apresenta como importante fenômeno de ressignificação do espaço rural. Para Schneider (1999), a pluriatividade sintetiza as novas formas de obtenção de renda, com a diversificação do trabalho dentro e fora das propriedades. Entre essas diferentes formas de apropriação do espaço rural, destaca-se a criação de con- domínios de classe média alta nas áreas próximas a cidades médias e regiões metropolitanas, para aproximação do estilo de vida rural, sob uma óptica bucólica, segura e próxima à natureza. A forma de apropriação dos conceitos de natureza e lugar é exaltada nesses locais. Por vezes, esses condomí- nios são como ilhas de mansões desconexas da realidade rural que os circundam. Seus moradores tendem a ser aposentados e profissionais liberais com alto poder aquisitivo que desejam manter distância de centros urbanos. O lazer e o turismo estimulam a criação de áreas de preservação e conservação, não neces- sariamente as que estão sob a tutela jurídica dos parques e unidades federais, mas aquelas refe- rentes ao ecoturismo, como chácaras, hotéis-fazendas e pesque-pagues. Ações de fomento a essas atividades vêm crescendo, como o projeto Acolhida na Colônia, desenvolvido no estado de Santa Catarina. Nele, um grupo de agricultores familiares de pequenas propriedades organizaram-se para a criação de roteiros, atividades e serviços de atendimento ao turista. Com o objetivo de apre- sentar o modo de vida do campo, são oferecidas refeições, práticas de manejo das criações, colheita de frutas e hortaliças, entre outras atividades. A formação de um setor terciário (comércio e serviços) é outro importante movimento de modificação do espaço rural brasileiro. Juntamente com a oferta de lazer e turismo, atividades re- lacionadas a esse setor da economia propiciam os meios econômicos para a população do campo permanecer em sua região de origem. Entre elas, pode-se citar o atendimento das demandas das atividades agropecuárias (como agrônomos, veterinários e técnicos para o maquinário e os insumos agrícolas) e os serviços relacionados à logística de escoamento de produção ou de atendimento à população residente (como venda de roupas e eletrodomésticos, bancos e cooperativas de crédito). Assim, a emergência de novos valores, novas maneiras de ressignificar e compreender o espaço rural – que ultrapassam o meio físico para o desenvolvimento das atividades da agrope- cuária – é necessária. A percepção das qualidades de um ambiente natural, ligadas diretamente ao espaço rural (como a beleza paisagística, a água e o ar puro), é um importante aspecto para o que é caracterizado como neo-ruralismo (GIULIANI, 1990). Apesar de iniciativas para modificar as relações dentro do espaço rural (com novas rurali- dades) e do espaço rural-urbano (com lazer e turismo rural), elas esbarram em dificuldades logís- ticas. Uma forma de compreender essa dificuldade é analisando os meios de comunicação, como pluriatividade: nesse contexto, o termo refere-se à múltipla atividade de produtores rurais familiares fora da propriedade. Geografia rural104 telefonia móvel e internet, que são os principais da atualidade. A falta de acesso a esses meios no espaço rural dificulta as relações comerciais, como a reserva em hotéis e para passeios. Como consequência, o Brasil apresenta ainda um sistema de serviços (ligados à globalização e à modernidade) desigual no espaço rural. As propriedades rurais comacesso à internet, mesmo nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, estão concentradas em poucos municípios. 7.3 O espaço rural: aspectos demográficos de interesse A definição de população rural perpassa a classificação de espaço rural e urbano. Oficialmente, o IBGE, por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2015, revelou que 84,72% da população brasileira vive em área urbana. Na Região Sudeste, esse valor sobe para 93,14%. Dessa forma, apenas 15,28% da população brasileira pode ser considerada rural. Além disso, sua distribuição é extremamente desigual (como mostra o Mapa 3) e está diretamente ligada à organi- zação do espaço rural, principalmente no modo de relação com a propriedade e o trabalho familiar ou não familiar e, consequentemente, com o tamanho dos estabelecimentos. Mapa 3 – Distribuição da população rural brasileira de acordo com dados do censo demográfico de 2010 Fonte: Adaptado de IBGE, 2013, p. 51. As relações sociais de produção no espaço rural brasileiro 105 Para Singer (1998), a mobilidade da população acontece em consequência de desigualdades regionais. Historicamente, a década de 1960 foi um marco para a análise demográfica brasileira. Nessa época, aconteceu a implementação de técnicas e insumos provenientes da Revolução Verde, além de grandes fluxos migratórios resultantes da falta de trabalho no campo e, em contrapartida, a demanda por mão de obra nas áreas em industrialização. Nesse período, o sonho de enriquecer nas grandes cidades fez com que muitos deixassem suas terras em busca de oportunidades. Gaspar (1970) analisa os dados da época e enfatiza o gran- de número de pessoas vindas do interior – de pequenas cidades e, consequentemente, do espaço rural – para as cidades emergentes. Nesse contexto, a população das principais cidades brasileiras dobrou em menos de 20 anos, conforme mostra a Tabela 1 a seguir. Tabela 1 – População das principais cidades entre os anos de 1950 e 1968 Cidades 1950 1960 1968 São Paulo 2.041.857 3.825.351 5.835.000 Rio de Janeiro 2.303.065 3.707.163 4.230.000 Recife 512.370 796.234 1.087.000 Belo Horizonte 338.585 693.328 1.087.000 Fonte: Adaptada de Gaspar, 1970, p. 125. Esse “inchaço” das grandes cidades causou importantes impactos tanto no meio urbano quanto no rural. No primeiro, a falta de planejamento urbano para receber tamanho contingen- te populacional gerou a formação de comunidades periféricas, sem acesso a qualidade de vida e emprego, sendo negligenciadas pelos governantes. No espaço rural, o esvaziamento causou o abandono de terras – como na região do polígono da seca, no Nordeste – e a impossibilidade de reprodução das atividades em pequenas propriedades familiares. A modernização do campo é um processo fragmentado e desigual, marcado pela presença de novas tecnologias, insumos agrícolas e aspectos técnicos cada vez mais desenvolvidos. Diante dessa realidade, o grau de instrução do trabalhador rural influencia diretamente o modo como ele se apropria dessas novas ferramentas. Segundo a Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar de 2015 (IBGE, 2016), a taxa de analfabetismo no espaço rural era de 19,8%, contra 5,9% no espaço urbano. Entretanto, a Região Nordeste apresentava 16,2% de analfabetos, o dobro da média brasi- leira, que era de apenas 8%. O mapa a seguir traz mais informações sobre o analfabetismo no meio rural, conforme o IBGE. Geografia rural106 Mapa 4 – Distribuição de analfabetos no espaço rural sem orientação técnica – em 2006. O C E A N O A T L Â N T I C O -30° -10° O C E A N O -30° TRÓPICO DE CAPR ICÓRNIO -40°-50°-60°-70° EQUADOR -20° -30° -70° -60° -50° -40° -30° -20° -10° 0° P A C Í F I C O 0° Pessoa que não lê e escreve - sem orientação técnica Dados organizados por municípios. Dirigentes analfabetos e que não possuem orientação técnica até 100 101 a 300 301 a 500 501 a 1000 1001 a 4274 Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 105. Ainda para Singer (1998), os processos de expulsão da população do espaço rural podem ser compreendidos por fatores de duas ordens: (1) mudanças relacionadas ao processo de produção capitalista, como a redução do nível de emprego; e (2) estagnação social e econômica, em decor- rência da pressão populacional sob uma área limitada de terra cultivada, o que modifica a estrutura familiar no trabalho rural. Considerações finais O espaço rural brasileiro é formado por diferentes agentes sociais. Além disso, várias relações econômicas e políticas se desenvolvem para o estabelecimento de delimitações, configurações e re- configurações do espaço rural brasileiro, que ainda é fortemente influenciado pela análise economis- ta de um espaço de produção. E, por ambiguidades da delimitação dos espaços rurais e urbanos, a análise estatística de dados vinculados ao espaço rural precisa de atenção e reflexão. Cabe ao pesquisador e ao geógrafo ter claro qual aspecto da realidade pretende compreen- der, a fim de relativizar definições oficiais e dados como “o Brasil é um país 85% urbano”. Nos próximos capítulos, buscaremos aumentar nossas ferramentas teóricas para melhor compreender essa especificidade e complexidade do espaço rural brasileiro. As relações sociais de produção no espaço rural brasileiro 107 Ampliando seus conhecimentos Para sintetizar parte das informações apresentadas neste capítulo, sugerimos a leitura crítica do trecho da publicação escrita por Claudia Silva (2006). O espaço rural brasileiro e o meio técnico-científico-informacional (SILVA, 2006, p. 9-10) [...] É claro que esse “transbordamento” para as áreas rurais de técnicas, padrões e valores sociocul- turais característicos das cidades e que atualmente também tem se manifestado pela presença de atividades não agrícolas no espaço rural, decorrente, sobretudo, de formas de lazer, como o turismo rural, é percebido com maior intensidade nos países desenvolvidos, onde o modo de produção capitalista se distribuiu de forma mais homogênea. No que concerne aos países periféricos, como o Brasil, marcado por uma estrutura agrária extremamente concentrada e pela implementação de um modelo de modernização da agricultura excludente, o que se tem é a expansão do meio técnico-científico-informacional de forma bastante desigual, verificada tanto pela difusão de objetos técnicos e informacionais de forma pontual, assim como pela expansão de valores urbano-industriais de forma diferenciada. Para Carneiro (1998), na medida em que as medidas modernizadoras sobre a agricultura, mol- dadas no padrão de produção e vida urbano-industrial, não se distribuíram de forma homo- gênea pelo espaço rural, este último, assim como as diferentes categorias de produtores não estariam sendo afetados da mesma forma e com a mesma intensidade pelos impactos promo- vidos pelos processos de industrialização e urbanização. [...] O fato, portanto, da difusão desse meio técnico-científico-informacional ocorrer de forma desigual não impede que suas consequências, sobretudo as negativas, obtenham um maior alcance. Ao contrário da difusão dos objetos técnicos pelo espaço rural nacional que promo- veria o aumento da produção e da produtividade agropecuária de forma bastante pontual, a degradação ambiental, o êxodo rural, o desemprego e a permanência de uma grande quan- tidade de terras improdutivas, ou seja, a face perversa da expansão da atual lógica global, assumiria maiores proporções. A exclusão, uma das características principais da globalização, se faz presente em todo o território nacional, contribuindo para a existência de um espaço complexo e heterogêneo que é o meio rural brasileiro atualmente. Muitos são os interesses em jogo e somente alguns (agentes sociais e lugares) detêm o poder de decisão, no entanto [...] “pelo fato de ser técnico-científico-informacional o meio geográfico tende a ser universal. Mesmo onde se manifesta pontualmente, ele assegura o funcionamentodos processos encadeados a que se está chamando de globalização” (SANTOS, 1999, p. 191). Atividades 1. Historicamente, a formação do território brasileiro perpassa relações sociais e políticas que configuram o espaço rural e as diferentes produções agropecuárias. De que modo podemos verificar o papel dos agentes formadores do espaço rural nas dinâmicas territoriais brasileiras? Geografia rural108 2. A Revolução Verde foi um importante processo de inserção de mecanização e insumos químicos na produção agropecuária. Seus reflexos ultrapassaram as questões produtivas e modificaram demográfica e espacialmente o território brasileiro. Exemplifique as principais modificações, contextualizando-as. 3. Na contemporaneidade, é possível verificar um retorno de parte da população ao meio rural. Que processos estão vinculados a esse fluxo migratório? Quais são os reflexos disso na orga- nização do espaço geográfico rural? 4. A delimitação do espaço rural, por vezes, perpassa uma visão economicista da realidade. Sendo assim, é compreendido como um espaço de produção do setor primário e atualmente é cenário de uma industrialização vinculada aos produtos não duráveis, em especial alimen- tícios. Do ponto de vista do desenvolvimento econômico capitalista, que consequências tem uma economia baseada nesse tipo de produção? Referências ABREU, J. C. Capítulos de história colonial (1500-1800). 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Acesso em: 13 mar. 2018. 8 Agricultura familiar e monocultura Manoella de Souza Soares Os termos agricultura familiar e monocultura não devem ser interpretados como antônimos. Agricultura familiar está vinculada, em primeira análise, à forma de organização do trabalho den- tro da propriedade rural – nesse caso, baseado no trabalho familiar; e, em segunda análise, refere- -se a uma classe social que se reproduz de maneira dialética dentro do sistema capitalista. A questão da agricultura familiar nesta obra será analisada sob a óptica dos documentos ofi- ciais, de acordo com definições estabelecidas por leis e informações obtidas por metodologias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – órgão oficial de geração de informações –, em especial pelo Censo Agropecuário de 2006 (IBGE, 2009). A palavra monocultura, por sua vez, refere-se à especialização da propriedade rural na pro- dução de uma determinada variedade, sendo a soja e a cana-de-açúcar os principais produtos brasileiros. Neste capítulo, iremos apresentar e discutir temáticas dessas duas categorias de análise e entender suas relações com a segurança alimentar sob a perspectiva da geografia da fome. 8.1 Agricultura familiar: resistência ao mercado e às pressões sistêmicas A criação de um termo não reflete a origem da categoria de análise. A expressão agricultor familiar como a compreendemos na atualidade é um importante exemplo desse descompasso entre realidade e vocabulário científico. O que antes era compreendido como agricultor de subsistência, ribeirinho ou pequeno produtor, passou a ser uma categoria de análise denominada agricultor familiar, que, por meio de critérios previamente estabelecidos, indica o grau de integração dessa população rural ao sistema capitalista. Os termos sãocategorias analíticas, utilizadas por pesquisadores para compreender deter- minados aspectos da realidade. Na geografia, especificamente na rural ou agrária, importantes debates epistemológicos são realizados sobre o uso da expressão agricultor familiar. A questão está no uso do termo agricultor familiar em oposição ao de camponês, que emerge com um peso histórico, como classe social e forma de vivenciar o espaço rural. O perigo está na substituição do termo em um sentido ideológico e desenvolvimentista, no qual o agricultor fami- liar seria totalmente integrado ao mercado, como realmente um pequeno produtor, enquanto o camponês estaria alheio ao sistema capitalista. Sobre esse aspecto, Bombardi (2003, p. 112) afirma: a classificação do quão o camponês está ou não vinculado ao mercado para deixar de sê-lo (camponês) não tem sentido teórico, pois não explica. Ou seja, o que interessa são as relações sociais estabelecidas, pois [...] vinculado ao mer- cado ele sempre esteve. Geografia rural112 A produção de conhecimento científico, cabe ressaltar, tem forte relação teórico-ideológica. Cada terminologia utilizada deve ser compreendida em sua origem e aplicação, principalmente quando nos referimos a populações historicamente negligenciadas não apenas pelas políticas go- vernamentais, mas também por meio de sua voz ativa diante da sociedade organizada e da ciência. Assim, entender o momento histórico em que a expressão agricultor familiar é introduzido se faz necessário. Após o período de redemocratização brasileira, na década de 1990, a pungência de movimentos e organizações sociais por direitos civis e econômicos culminou na criação de leis e políticas públicas voltadas à população rural (BOMBARDI, 2003). Nesse contexto social e de debates internacionais sobre segurança alimentar, direito de populações oprimidas e movimentos sociais organizados foi criada, no ano de 1996, a primeira política nacional específica tendo em vista o pequeno produtor rural: o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), voltado às políticas públicas para o espaço rural. Em relação à valorização do agricultor familiar, Wanderley (2000, p. 36) revela que: Dois fatos de grande importância marcaram as transformações recentes do mundo rural brasileiro. Por um lado, pela primeira vez na história, a agricul- tura familiar foi oficialmente reconhecida como um ator social. [...] Por outro lado, a forte e eficaz demanda pela terra se traduz hoje pela emergência de um setor de assentamentos de reforma agrária. Uma das principais consequências destes dois movimentos é a revalorização do meio rural como lugar de trabalho e de vida, que se expressa na retomada da reivindicação pela permanência ou retomo à terra. Esta “ruralidade” da agricultura familiar, que povoa o campo e anima sua vida social, se opõe, ao mesmo tempo, à relação absenteísta, despo- voadora e predatória do espaço rural, praticada pela agricultura latifundiária, à visão “urbanocentrada” dominante na sociedade e à percepção do meio rural sem agricultores. Com a finalidade de aumentar a inserção dessa população no mercado, por meio da adoção de técnicas vinculadas à Revolução Verde, em 2004 foi criada a Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. Entretanto, foi apenas em 2006, com a Lei n. 11.326/06 (BRASIL, 2006), que se estabeleceram os critérios para definir agricultor familiar ou empreendedor rural familiar. Conforme essa definição, o produtor rural deve atender aos seguintes requisitos: • Não possuir propriedade rural maior que quatro módulos fiscais1. • Haver predomínio de mão de obra familiar nas atividades econômicas desenvolvidas. • Ter a principal renda econômica vinculada às atividades desenvolvidas no interior da propriedade rural. 1 “Módulo fiscal é uma unidade de medida, em hectares, cujo valor é fixado pelo Incra para cada município, levan- do-se em conta: (a) o tipo de exploração predominante no município (hortifrutigranjeira, cultura permanente, cultura temporária, pecuária ou florestal); (b) a renda obtida no tipo de exploração predominante; (c) outras explorações existentes no município que, embora não predominantes, sejam expressivas em função da renda ou da área utilizada; (d) o conceito de ‘propriedade familiar’. A dimensão de um módulo fiscal varia de acordo com o município onde está localizada a propriedade. O valor do módulo fiscal no Brasil varia de 5 a 110 hectares” (BRASIL, 2018). Por exemplo, um módulo fiscal em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, é de 110 hectares, enquanto em Mogi das Cruzes, no estado de São Paulo, é de apenas 5 hectares. Agricultura familiar e monocultura 113 • Dispor de controle administrativo da propriedade ou do empreendimento relacionado ao círculo familiar. Além disso, ainda são considerados agricultores familiares os produtores que se encaixam nos seguintes critérios: Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreen- dedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: [...] § 1º O disposto no inciso I do caput deste artigo não se aplica quando se tratar de condomínio rural ou outras formas coletivas de propriedade, desde que a fração ideal por proprietário não ultrapasse 4 (quatro) módulos fiscais. § 2º São também beneficiários desta Lei: I – silvicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo, cultivem florestas nativas ou exóticas e que promovam o manejo sustentável daqueles ambientes; II – aquicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo e explorem reservatórios hídricos com superfície total de até 2ha (dois hectares) ou ocupem até 500m³ (quinhentos metros cúbicos) de água, quando a exploração se efetivar em tanques-rede; III – extrativistas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput deste artigo e exerçam essa atividade artesanalmente no meio rural, excluídos os garimpeiros e faiscadores; IV – pescadores que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos I, II, III e IV do caput deste artigo e exerçam a atividade pesqueira artesanalmente. V – povos indígenas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput do art. 3º; [...] VI – integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais que atendam simultaneamente aos incisos II, III e IV do caput do art. 3º. (BRASIL, 2006) Apesar da variação municipal – e consequentemente regional – dos tamanhos dos módu- los fiscais rurais, a limitação estabelecida para as propriedades familiares fica evidente quando a comparamos com os grandes latifúndios, vinculados diretamente ao agronegócio. Nos gráficos a seguir, a relação entre número de propriedades e áreas totais é díspar. Gráfico 1 – Distribuição percentual do número de estabelecimentos agropecuários não familiares e fami- liares no Brasil, de acordo com o Censo Agropecuário de 2006. Familiares Não familiares Número 16% 84% Fonte: IBGE, 2011, p. 115. Geografia rural114 Gráfico 2 – Distribuição percentual de área de estabelecimentos agropecuários não familiares e familiares no Brasil, de acordo com o Censo Agropecuário de 2006. Área Familiares Não familiares 24% 76% Fonte: IBGE, 2011, p. 115. Quando compreendemos a espacialização dessas propriedades (como mostra o Mapa 1, a seguir), observamos também a disparidade regional e sua relação com a produção vinculada ao agronegócio, sobretudo na Região Centro-Oeste e em partes do Sudeste e do Sul. A Região Nordeste apresenta altos índices de propriedades familiares, em função de questões históricas de ocupação das áreas do sertão e de condicionantes ambientais, como a necessidade de irrigação de empreendimentos em grande escala. Já a Região Norte apresenta como disparidade a presen- ça de atividadesextrativistas, enquanto a Floresta Amazônica ainda se mantém bem preservada em algumas áreas. Mapa 1 – Distribuição espacial dos estabelecimentos rurais familiares, de acordo com o Censo Agropecuário de 2006. Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 119. Agricultura familiar e monocultura 115 Assim, compreender a espacialidade e as especificidades dos pequenos produtores rurais é essencial para analisar o espaço rural brasileiro. A noção por vezes difundida de espaço rural alta- mente integrado ao sistema capitalista, principalmente pela produção de commodities e presença de indústrias de beneficiamento de carnes e alimentos, não pode ser compreendida como uma totalidade absoluta. Disparidades sociais e regionais fazem com que recortes em diferentes escalas analíticas sejam realizados, a fim de se aproximar de uma interpretação do espaço rural brasileiro. 8.2 Monocultura: das questões econômicas e territoriais ao problema socioambiental Como vimos, a classificação de agricultor familiar está vinculada ao grau de interação, ao mercado e aos processos do agronegócio. Dessa forma, o modo de uso e a ocupação do solo rural, as técnicas de cultivo e criação não estão estabelecidos na categoria de agricultores fami- liares. Isso não os impede de desempenhar uma única atividade em sua propriedade, como o plantio de soja em grande escala. Porém, a necessidade de mão de obra familiar e as condições sociais, culturais e econômicas fazem com que esse tipo de uso do solo não seja predominante nas propriedades familiares (OLIVEIRA, 1991). Ao analisarmos o termo monocultura, compreendemos que ele se refere a grandes proprie- dades, latifúndios intimamente ligados à produção de commodities – no caso brasileiro, são grãos como soja e milho e a cana-de-açúcar, com destaque para a produção de biocombustível e áreas de reflorestamento para a indústria de papel e celulose. As áreas de monocultura priorizam aspectos econômicos de alta rentabilidade, ou seja, a maior área possível é cultivada com uma dada espécie, previamente selecionada a fim de gerar a máxima produção para aquele tipo de solo, sob certas condições climáticas e com o uso de insumos agrícolas. Desse modo, podemos compreender a monocultura como o sistema fabril do agronegócio, no qual a máxima produção e rentabilidade da terra é extraída (OLIVEIRA, 1991), movimentando uma cadeia produtiva ao redor por meio do uso de grandes maquinários (a fim de preparar a terra e plantar), além de sistemas de irrigação e colheitadeiras. Também existe a necessidade de mão de obra especializada para o manuseio desses maquinários, escolhas agropecuárias, análises de ferti- lidade e, consequentemente, de produtos para “correção do solo”. O uso das aspas anteriormente enfatiza que a correção do solo se trata de uma necessidade do sistema agrícola, ou seja, não é biológica. Assim, essa expressão está relacionada à modificação de características químicas (e, às vezes, físicas) para um tipo de manejo. A utilização de insumos agrícolas para fertilidade e de defensivos agrícolas para fungos e insetos faz parte da cadeia produ- tiva, que inclui a indústria química e de produção de sementes. A seleção de espécies, por vezes geneticamente modificadas, está relacionada aos produtos aplicados durante seu desenvolvimento. Na busca do controle de variáveis ambientais, historica- mente há um grande entrave na produção agrícola: a implementação de sistemas complexos de irrigação, demandando grande consumo de água. A Agência Nacional de Águas (ANA) aponta que, em 2013, a irrigação correspondia a 72% do consumo de água no país (ANA, 2015). Geografia rural116 Essa busca pela máxima produção tem suas consequências. Uma economia baseada em gran- des latifúndios, predominantemente sob manejo de monocultura, acarreta graves problemas so- cioambientais. O uso indiscriminado de fertilizantes e defensivos agrícolas causa danos na fauna e flora, contaminação de corpos-d’água e do solo, além de doenças relacionadas ao consumo de água contaminada e que também afetam a população que maneja esses produtos sem a proteção adequada. As mudanças no uso e na cobertura do solo, como a retirada de florestas, modifica o ciclo hi- drológico, destrói habitats naturais, potencializa processos erosivos e causa a perda de solo – como fica evidente na comparação entre o Mapa 2 e o Mapa 3. O impacto social desse tipo de produção acontece em diferentes escalas, por exemplo, com a concentração de terras e a incapacidade da participação de pequenos produtores, acarretando grande desigualdade social no meio rural (uma das maiores causas de migração). Mapa 2 – Distribuição de terras degradadas (erodidas, desertificadas e salinizadas), conforme o Censo Agropecuário de 2006. Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 61. Agricultura familiar e monocultura 117 Mapa 3 – Distribuição das propriedades rurais com mais de 2.500 hectares, conforme o Censo Agropecuário de 2006. O C E A N O A T L Â N T I C O -30° -10° O C E A N O -30° TRÓPICO DE CAPR ICÓRNIO -40°-50°-60°-70° EQUADOR -20° -30° -70° -60° -50° -40° -30° -20° -10° 0° P A C Í F I C O 0° 2.500 ha e mais Número total (%) até 1 2 a 5 6 a 17 18 a 53 Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 30. Políticas públicas de fomento e legislações específicas são criadas a fim de garantir a reprodução da ocupação do solo por monoculturas, com um discurso de necessidade desse tipo de produção para a cadeia alimentícia. Entretanto, a produção vem sendo escoada para exportação. A soja, por exemplo, apesar de usada em parte pela indústria alimentícia e para a produção de ração animal, não afeta na qualidade alimentar da população diretamente. Costa (2016, p. 155) analisa: O resultado imediato é a concentração de terras, desaparecimento ou encolhi- mento das pequenas propriedades agrícolas e por consequência a diminuição na oferta de alimentos. De fato constata-se que o crescimento do agronegócio se traduz numa clara ameaça à segurança e soberania alimentar do mundo, pois, em muitos países, há regiões inteiras em que se observa apenas uma espécie plantada como a soja, a cana-de-açúcar, eucalipto, a acácia etc. Soma-se a isso o intenso uso de agrotó- xico e espécies transgênicas que apresentam risco à saúde humana. Além disso, esse tipo de ocupação do espaço rural pressiona os pequenos produtores (res- ponsáveis por grande parte dos produtos alimentícios, como leguminosas, hortaliças e frutas) a esse uso e coloca em risco a segurança alimentar dos próprios agricultores familiares e das popula- ções adjacentes (ZIMMERMANN, 2009). Geografia rural118 8.3 Geografia da fome: uma visão socioespacial da segurança alimentar Geografia da fome é o título de uma das obras mais importantes da geografia brasileira. Nela, Josué de Castro (1984) aborda importantes questões (muitas negligenciadas) sobre a segu- rança alimentar e sua relação espacial e sociocultural no espaço geográfico brasileiro. A fome é não apenas encarada como a ausência de uma alimentação diária, mas também relacionada ao direito individual de nutrição, influenciando diretamente as condições físicas, sociais, culturais e econô- micas do indivíduo. A restrição de nutrientes, de uma alimentação que dê subsídios para o pleno desenvolvimento, duplamente exclui esse indivíduo. Dessa maneira, a fome passa de uma questão sanitarista e adquire uma abordagem socioeconômica e cultural da população. Nas palavras do autor, a obra se propõe a: analisar os hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos ligados a deter- minadas áreas geográficas, procurando, de um lado, descobrir as causas natu- rais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com suas falhas e defeitos característicos, e, de outro lado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferentes grupos estudados. Assim fazendo,acreditamos poder trazer alguma luz explicativa a inúmeros fenômenos de natureza social até hoje mal compreendidos por não terem sido levados na devida conta os seus fundamentos biológicos. (CASTRO, 1984, p. 35) O Brasil só conseguiu sair do Mapa Mundial da Fome no ano de 2014, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Entre 2002 e 2013, 82% da população brasileira deixou a situação de subalimentação (FAO, 2018). Apesar disso, grande parte ainda apresenta risco de deficit nutricional. O IBGE (2013) pontua os graus de segurança alimentar, de acordo com o Quadro 1 a seguir. Quadro 1 – Descrição dos graus de (in)segurança alimentar. Situação de segurança alimentar Descrição Segurança alimentar A família/domicílio tem acesso regular e permanente a alimentos de qua- lidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais. Insegurança alimentar leve Preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro; qualidade inadequada dos alimentos resultante de estratégias que visam a não comprometer a quantidade de alimentos. Insegurança alimentar moderada Redução quantitativa de alimentos entre os adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre os adultos. Insegurança alimentar grave Redução quantitativa de alimentos entre as crianças e/ou ruptura nos pa- drões de alimentação resultante da falta de alimentos entre as crianças; fome (quando alguém fica o dia inteiro sem comer por falta de dinheiro para comprar alimentos). Fonte: IBGE, 2013. Com base nessa classificação, e apesar de estar fora do Mapa Mundial da Fome, o Brasil apre- senta especificidades culturais, econômicas e regionais, em que 22,6% da população ainda está na si- tuação de insegurança alimentar, como mostra o Gráfico 3 (IBGE, 2013). Programas governamentais Agricultura familiar e monocultura 119 e avanços econômicos das classes menos remuneradas, principalmente as classes D e E (R$ 0,00 a R$ 2.004,00), vêm modificando esses dados. Gráfico 3 – Distribuição percentual dos domicílios particulares por situação de segurança alimentar – entre 2004 e 2013. Segurança alimentar Insegurança alimentar moderada Insegurança alimentar leve Insegurança alimentar grave 90,00% 80,00% 70,00% 60,00% 50,00% 40,00% 30,00% 20,00% 10,00% 0,00% 2004 2009 2013 18,00% 18,70% 14,80% 4,60%3,20% 9,90% 6,90% 6,50%5,00% 65,10% 69,80% 77,40% Fonte: IBGE, 2013. Mas, em um país com forte influência da agropecuária na economia, como é possível que tantos brasileiros ainda tenham tamanha insegurança alimentar? Essa é uma importante questão a ser levantada nos debates relacionados à produção do espaço rural brasileiro. Como vimos, grande parte da produção nacional está voltada às commodities e aos biocombustíveis, não privilegiando a produção de alimentos para a população. E há dificuldade para a reprodução dos pequenos produ- tores e das atividades familiares (CASTRO, 1984). Entre as especificidades regionais, podemos destacar a mandioca e o milho como impor- tantes alimentos na mesa dos brasileiros. Quando analisamos suas produções em relação ao tipo de propriedade, familiar ou não (conforme mostram os gráficos 4 e 5), percebemos o importante papel desses alimentos na nutrição e na alimentação dos próprios produtores e seus familiares. Gráfico 4 – Quantidade de mandioca produzida por tipo de propriedade, conforme o Censo Agropecuário de 2006. Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Agricultura não familiar Agricultura familiar 0 1 2 3 4 1 000 000 000 kg Fonte: IBGE, 2011. Geografia rural120 Gráfico 5 – Quantidade de milho produzido por tipo de propriedade, conforme o Censo Agropecuário de 2006. Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Agricultura não familiar Agricultura familiar 0 5 10 15 20 1 000 000 000 kg Fonte: IBGE, 2011. Novas demandas por produtos orgânicos, com baixo impacto socioambiental, estão mudan- do a forma de produção de alimentos no campo e estabelecendo novas ruralidades. A ressignifica- ção do espaço rural perpassa por mudanças nos padrões de consumo. A valorização da produção familiar e a compreensão dos impactos gerados pelo agronegócio em larga escala são importantes motores de influência na contemporaneidade (COSTA, 2016). Considerações finais É pungente a emergência de debates sobre a importância das políticas voltadas aos peque- nos produtores rurais quanto à valorização de sua reprodução como agentes de mercado e classe social. As pressões territoriais às quais essas populações estão submetidas têm consequências que ultrapassam os limites estabelecidos do espaço rural. As problemáticas do campo devem ser ana- lisadas de maneira holística, sem negligenciar suas especificidades, mas também considerando-as como parte da totalidade do espaço geográfico brasileiro, seja pela migração da população rural, pela baixa produção de alimentos das áreas periféricas a centros urbanos ou por questões sociais de valorização dos direitos. Ampliando seus conhecimentos Considerado um marco na geografia, o livro Geografia da fome, de Josué de Castro, é um clássico. Essa obra tem de ser lida em sua completude sempre que possível. Para complementar nosso debate sobre segurança alimentar, seguem alguns trechos do prefácio da primeira edição, no qual o autor sintetiza algumas ideias. Geografia da fome: o dilema brasileiro – pão ou aço (CASTRO, 1984, p. 108-113) Quais são as causas ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Será por simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o interesse dos Agricultura familiar e monocultura 121 espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não cremos. O fenômeno é tão mar- cante e se apresenta com tal regularidade que, longe de traduzir obra do acaso, parece condi- cionado às mesmas leis gerais que regulam as outras manifestações sociais de nossa cultura. Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido ou, pelo menos, pouco aconselhável de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a esta espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômeno da fome, tanto a fome de alimentos como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta humana. [...] Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se proces- sar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos – dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses econômicos – e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública. E a dura verdade é que as mais das vezes esses interesses eram antagônicos. [...] Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao problema da ali- mentação dos povos reside exatamente no pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais. A maior parte dos estudos científicos sobre o assunto se limita a um dos seus aspec- tos parciais, projetando uma visão unilateral do problema. São quase sempre trabalhos de fisiólogos, de químicos ou de economistas, especialistas em geral limitados por contingência profissional ao quadro de suas especializações. Atividades 1. O termo agricultor familiar foi amplamente empregado a partir da década de 1990. Em que contexto nacional se dá esse surgimentoe como ele pode ser compreendido? 2. A geografia da fome ultrapassa o debate da geografia rural por se relacionar simplesmente com a produção de alimentos. Descreva ao menos três problemáticas contidas na geografia da fome que também podem ser percebidas na geografia rural. 3. A monocultura é o modo de produção predominante do agronegócio, vinculado à exporta- ção de commodities. Comente as principais problemáticas ambientais da adoção desse tipo de ocupação e uso do solo rural. 4. Neste capítulo, trouxemos três importantes mapas. O primeiro aponta a distribuição de pro- priedades familiares; o segundo, as áreas com solo degradado; e o terceiro, os empreendi- mentos rurais com mais de 2.500 hectares. Analise-os de maneira integrada e produza um texto crítico sobre a relação agricultura familiar × monocultura × degradação do solo. Geografia rural122 Referências ABRAMOVAY, R. Agricultura familiar e desenvolvimento territorial. Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária, Brasília, v. 28, n. 1, jan./dez. 1998. Disponível em: <http://ricardoabramovay.com/ agricultura-familiar-e-desenvolvimento-territorial>. Acesso em: 14 mar. 2018. ABRAMOVAY, R. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo: Hucitec, 1992. ANA – Agência Nacional de Águas. ANA e Embrapa concluem levantamento sobre irrigação com pivôs centrais no Brasil. ANA, 4. mar. 2015. Disponível em: <http://www2.ana.gov.br/Paginas/imprensa/noticia. aspx?id_noticia=12669>. Acesso em: 15 mar. 2018. BOMBARDI, L. M. 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Com base em novas ruralidades e formas de vivenciar o espaço rural, a complexidade e as especificidades do campo ganharam novos contornos. Além disso, a distinção entre rural e urbano vem adquirindo novas percepções teóricas e interpretativas, modificando a visão até há pouco tempo hegemônica de o Brasil ser um país urbano. 9.1 Rural e urbano: reflexões para além da contraposição de espaços A delimitação das zonas rurais e urbanas é de competência municipal, de acordo com o Decreto-Lei n. 311, de 2 de março de 1938 (BRASIL, 1938). Ou seja, compete ao Legislativo de cada município delimitar os perímetros urbanos. Entretanto, observamos que as modificações no espa- ço geográfico acontecem em descompasso com a formulação da legislação, que não é realizada de forma participativa e, em consequência, fica defasada em relação aos processos de espacialização demográfica e econômica e às novas territorialidades locais. Mas como delimitar onde começa um espaço e termina o outro? Essa transição acontece de forma abrupta ou contínua? Esse é um importante debate na caracterização do espaço rural e urbano, principalmente em países como o Brasil, nos quais o processo de urbanização acontece de forma tardia e em ondas, ou seja, não como um processo contínuo e uniforme. Assim, no auge dos processos de urbanização, em meados do século XIX, a principal visão se baseava nessa dicotomia (rural/urbano) e na exclusão. Nesse ponto de vista, é rural o que não é urbano. Mas o que é urbano? Ou melhor, qual é o grau de urbanização suficiente para a mudança completa de classe? Nesse modo de caracterizar os espaços rural e urbano, havia indivíduos que assumiam uma postura de negação ao urbano e os que consideravam a urbanização um grau elevado de desen- volvimento. Assim, a diminuição de áreas rurais era por vezes lamentada, e o estilo de vida do campo, idealizado; em contraposição, a urbanização era um indicador de progresso, modernização e inovação. O processo de urbanização, porém, não se dá de forma homogênea e abrupta. As mudanças nas estruturas econômicas, sociais e culturais do espaço rural, denominadas de novas ruralidades, contribuem para uma compreensão das continuidades ou das transições entre os espaços. Geografia rural126 Apesar das relações econômicas ou edificações e serviços urbanos, quando o espaço rural permanece com uma paisagem rural ou com modos de vida vinculados ao meio rural, poderia ele ser simplesmente atribuído ao urbano? Em relação a esse questionamento, conforme Sposito (2010), uma interpretação que visa compreender continuidades parece promissora, embora não existauma área bem delimitada onde claramente urbano e rural são antagônicos ou unidades espaciais distintas. Independentemente da visão teórica abordada, como se dá essa classificação? Quais ele- mentos são considerados principais? Atualmente, o principal critério para o urbano baseia-se na concentração populacional, enquanto a dispersão populacional caracteriza o rural. Mas então o urbano seria apenas uma aglomeração de pessoas? Dois grandes problemas estão vinculados a essa perspectiva. No primeiro, não são considerados os vazios demográficos dentro do espaço urbano, passando a falsa impressão de homogeneidade da ocupação no espaço rural. O segundo é não considerar a distribuição populacional no espaço urbano que, por vezes, acontece de maneira organizada em vilas e povoados e sua dispersão é relativa. Para auxiliar na análise desses espaços, podemos buscar critérios complementares. Conforme Veiga (2003), o rural é territorial e não setorial e as atividades e formas de ocupação econômicas das populações auxiliam nessa classificação. As novas ruralidades dificultam esse critério com a industrialização do setor primário e o crescente ramo de comércio e serviços que subsidiam as atividades agropecuárias no espaço rural (WANDERLEY, 2000). Outro critério muito analisado consiste na morfologia urbana, ou seja, a forma como ar- ruamentos, uso do solo, loteamentos e edificações são arranjados no espaço. Assim, quanto mais complexa e diversa a morfologia, maior o grau de urbanização. Essa abordagem tem problemas ao ser usada nas áreas periféricas de centros urbanos, onde a morfologia não expressa o grau de urbanização, mas sim a exclusão social da população urbana menos favorecida. Além disso, perí- metros urbanos em meio rural camuflam, por meio desse sistema de objetos, formas de ruralidade que apenas o modo de vida pode expressar. Este, por sinal, é outro fator de análise que pode ser interpretado pela divisão do trabalho, pela complexidade e heterogeneidade social e pela forma de vivenciar o lugar e a paisagem na qual se está inserido. Figura 1 – A distinção entre espaço rural e urbano pode ser baseada em diferentes critérios que enfatizam a complexidade e as especificidades inerentes dessas formas de organização do espaço geográfico. Atividades econômicas Densidade demográfica Morfologia urbana Modo de vida Espaço urbano Fonte: Elaborada pela autora. Novas ruralidades e relação campo-cidade 127 Ao analisarmos o mapa a seguir, observamos a concentração de municípios rurais na adjacên- cia de regiões com altos índices de desenvolvimento econômico. Esse seria um modelo de ocupação populacional desigual (IBGE, 2017) e evidencia um dinamismo e uma complementaridade entre o campo e a cidade, desconstruindo a suposta dependência do rural diante do urbano. Maria Caetano O’Neill, tratando da relação rural-urbano, no Atlas do espaço rural brasileiro, afirma: Cabe observar, no entanto, que grande parte das pequenas cidades brasileiras podem se inserir no chamado “Brasil profundo”, isto é, com suas característi- cas territoriais e sociais impregnadas pela paisagem e pelas atividades rurais, notadamente em relação à natureza das atividades econômicas e aos aspectos populacionais. A função da cidade, em particular as de menor tamanho, é a expressão de um modo de vida urbano que organiza, administra e integra a sociedade local, esteja ela na própria cidade ou no campo, fortalecendo a visão de interdependência entre o rural, o urbano e a economia (IBGE, 2011, p. 142). Mapa 1 – A tipologia rural-urbana dos municípios Fonte: Adaptado de IBGE, 2017, p. 62. Assim, compreender as novas formas do rural, ou seja, as novas ruralidades, é de extre- ma importância para o debate de definição dos espaços rurais e urbanos. É por meio das novas Geografia rural128 ruralidades que a noção de continuidade se estabelece e discursos sobre um Brasil urbano, por exemplo, podem ser debatidos com mais coerência. Nesse contexto, é essencial a participação dos geógrafos no debate teórico e prático, dadas as especificidades vinculadas aos conceitos de lugar, paisagem e território, ferramentas analíticas próprias da geografia. 9.2 As novas ruralidades do espaço rural brasileiro A sociedade contemporânea se expressa de modo espacialmente distinto dos padrões his- tóricos anteriores. A globalização modifica a forma de se relacionar com os indivíduos e com o meio; novas territorializações se estabelecem e escalas antes muito dicotômicas, como local/global, são aproximadas. Esse é um fenômeno que se desenvolve de forma desigual e em movimentos, ou seja, não acontece uma única vez no espaço geográfico brasileiro. As modificações no espaço rural são expressas pelas novas ruralidades, evidenciando mudanças econômicas, sociais e de estrutura urbana, fortalecendo percepções de paisagem rural, pertencimento ao campo e modos de vida (CARNEIRO, 2005). Com a nova ruralidade, atividades periféricas às relacionadas ao setor primário ganham destaque. Silva (1996) reconhece que o novo rural se expressa de maneira mais próxima à prestação de serviços do que diretamente à produção primária, em consequência de uma nova população no meio rural, visando a tranquilidade cotidiana perdida nos centros urbanos. Assim, uma análise mais aprofundada em relação aos tipos de comércio e serviços é de fundamental importância para uma compreensão das novas ruralidades. As modificações produtivas do campo, após a Revolução Verde, geraram novas deman- das, antes restritas ao setor industrial. A inclusão de insumos químicos, como fertilizantes e agrotóxicos, fez emergir um comércio especializado desses produtos, bem como consultorias de químicos, engenheiros agrônomos e ambientais. O maquinário utilizado, cada vez com mais tecnologia incorporada, como o uso de navegadores GPS e cabines climatizadas para os opera- dores, necessita de manutenções e peças de reposição. A presença de maior contingente popu- lacional também modifica localmente o comércio de serviços de atendimento, como mercados, lojas de vestuário e alimentação. A nova ruralidade pode ser apreendida por estes dois fluxos: o da população rural – prin- cipalmente a vinculada a agricultores familiares – , que busca ampliar seu leque de atividades por meio da produção primária e da prestação de serviços, incluindo o turismo rural; e o dos pequenos empreendimentos de familiares de beneficiamento da produção, gerando um mercado consumi- dor e de influência desses produtores. Em outro sentido, há um retorno demográfico para o meio rural que, apesar de buscar tran- quilidade, vivência do campo, necessita de serviços e comércios antes restritos ao meio urbano. Esse retorno, influenciado pela demanda de serviços especializados, formado por pessoas com Novas ruralidades e relação campo-cidade 129 maior grau de instrução, busca nas cidades de menor porte produtos e serviços antes consumidos apenas em grandes centros urbanos. Outro contingente populacional se dedica à preservação do meio ambiente, seja em áreas de preservação, como parques e reservas, seja com formas alternati- vas de produção de alimentos, por exemplo, os orgânicos e os produtos agroflorestais. Sobre essa mudança no espaço rural, Silva (1996, p. 27) pontua alguns tipos de ocupações: Podemos dizer que o mundo rural brasileiro não pode mais ser tomado apenas como o conjunto das atividades agropecuárias e agroindustriais. O meio rural ganhou, por assim dizer, novas funções e “novos” tipos de ocupações: propiciar lazer nos feriados e fins de semana (especialmente às famílias de renda média/baixa que têm transporte próprio), através dos pesque-pagues, hotéis-fa- zenda, chácaras de fins de semana etc.; dar moradia a um segmento crescente da classe média alta (condomínios rurais fechados nas zonas suburbanas); desenvolver atividades de preservação e conservação que propiciem o surgimen- to do ecoturismo, além da criação de parques estaduais e estações ecológicas; abrigarum conjunto de profissões tipicamente urbanas que estão se proliferan- do no meio rural em função da urbanização do trabalho rural assegurada com a igualdade trabalhista obtida na Constituição de 1988 (motoristas de ônibus para transporte de trabalhadores rurais, mecânicos, contadores, secretárias, digitadores, trabalhadores domésticos). Entre as atividades desenvolvidas nesse meio, o turismo rural como pluriatividade se destaca pelo potencial de agregar valor às propriedades familiares e como forma de manutenção de áreas preservadas e da paisagem rural. Por isso, podemos distinguir duas maneiras de produção do tu- rismo no meio rural: o agroturismo e o ecoturismo. No agroturismo, as atividades relacionadas às propriedades ganham destaque. São comuns hotéis-fazenda nos quais o turista pode vivenciar o dia a dia dos agricultores, como a colheita da produção, os cuidados com a criação e a ordenha. O modo de vida do meio rural ganha uma di- mensão mercadológica, em que a vivência se torna um produto a ser comercializado. Em alguns casos, parte da produção da pequena propriedade é escoada por meio da comercialização direta entre proprietário e turista. Diferentemente do senso comum, a paisagem rural não se configura somente como natural, intocada, mas é construída e transformada. Os diferentes usos e ocupações do solo modificam a paisagem rural e a transformam em cultural. Às vezes, ela é vista com valores históricos; em outras, ela é considerada marco do poder de transformação do ser humano sobre o meio ambiente, por meio de represamento e mudanças dos cursos de rios, retirada da vegetação nativa, inserção de plantas exóticas e construções de edificações, que podem ser de silos para armazenagem de grãos a grandes casarões tombados pelo patrimônio histórico. A região da Coxilha Rica, no município de Lages, no estado de Santa Catarina, é um exem- plo de paisagem rural modificada, cujo valor histórico atualmente gera renda para a população por intermédio do turismo. Essa região é marcada pela presença de grandes fazendas e casarões com Geografia rural130 muros de taipa. Era ponto de parada de tropeiros que transportavam os gados entre o estado do Rio Grande do Sul e a Região Sudeste. A paisagem de Coxilha Rica marca as modificações estrutu- rais ali realizadas e as relações que se estabeleciam, assim como o valor histórico das atividades já desenvolvidas naquele espaço. No ecoturismo, por sua vez, a busca pela natureza deve sempre ser contextualizada. Milton Santos (1994) debate sobre a compreensão da natureza, quando ela é apropriada de forma ingênua, ou seja, como algo intocado ou sem modificação humana. Para o autor, o conceito de natureza deve ser encarado como elemento da totalidade do espaço geográfico, por isso apresenta especifi- cidades, entre elas novos sistemas de compreensão e apropriação da natureza. Ou seja, mesmo que uma área não tenha sido modificada em sua forma, por exemplo, quando sua vegetação é primária, não houve contaminação ou ocupação, o modo como a compreendemos se modificou ao longo da história e da formação de conhecimento. Logo, essa área “intocada” deixaria de ser uma natureza pura, primária, e passaria a ser uma segunda natureza, pois, segundo Santos (1994, p. 90), “Nesse nosso mundo se estabelece, por isso mesmo, um novo sistema da natureza, uma natureza que, gra- ças exatamente ao movimento ecológico, conhece o ápice de sua desnaturalização”. Apesar desse debate acadêmico e relevante para geógrafos, o ecoturismo busca apropriar-se de áreas preservadas, ou com bons índices de recuperação ambiental, para estudar, conscientizar e proporcionar a contemplação da paisagem natural. A criação de parques ambientais e áreas de preservação tem gerado grande fluxo de turismo para essas áreas. Variando o nível de preservação, atividades de turismo são permitidas no interior dos parques ou em seus arredores, incentivando o desenvolvimento de pequenas agências e atividades de guias entre os habitantes da região. Essas novas formas de ruralidades também refletem-se em programas e políticas públicas para os produtores de agricultura familiar e para a preservação do meio ambiente. Mudanças do espaço rural brasileiro têm alterado a relação da população do campo com seu lugar e a maneira que agentes públicos, como os governos municipais, geram recursos e planejam o desenvolvimento rural em seus municípios. Essa íntima relação, no caso do Estado brasileiro, entre políticas públicas e modificações no espaço rural, será objeto de reflexões no próximo capítulo. 9.3 Brasil: um país realmente urbano? O Brasil oficialmente é considerado um país urbano. O IBGE (2016) assinala: 85% da po- pulação é urbana; contudo, esse dado precisa ser reinterpretado. Após analisarmos as formas de classificação dos espaços rural e urbano e debatermos sobre as novas ruralidades e formas de apro- priação do espaço rural, afirmar que o país é urbano requer maior reflexão. Quando lemos a frase “o Brasil é um país urbano”, não devemos associar essa informação a um processo homogêneo e regionalmente equilibrado. A urbanidade penetrou o meio rural para subsidiar, em grande parte, a reprodução dessa população e das pluriatividades desenvolvidas. Novas ruralidades e relação campo-cidade 131 Assim, importantes cidades com peso metropolitano podem ter sua economia baseada no setor terciário e na industrialização, com população predominantemente urbana e morfologia bem- -delimitada. Ainda assim, regionalmente sua influência pode ser reprodução do meio rural que a circunda. Diante disso, podemos analisar a região metropolitana e a cidade de Ribeirão Preto. Uma das principais regiões metropolitanas do estado de São Paulo e do país, ela tem sua economia ba- seada no setor de comércio e serviços e na indústria alimentícia e de beneficiamento da cana-de- -açúcar. O Censo Agropecuário de 2006 (IBGE, 2009) relata que menos de 1% população estava empregada no setor primário. Ainda assim, a relação com o meio rural regionalmente se expressa na associação com o agronegócio (IBGE-Cidades, 2018). Figura 2 – Vista aérea da cidade de Ribeirão Preto, no estado de São Paulo. É o mais importante município de uma principais regiões metropolitanas do país e parte de sua economia está vinculada ao agronegócio da cana-de-açúcar. Pa ul oV ile la /i St oc kp ho to Em contraposição, temos municípios periféricos a capitais que ainda mantêm a expressão do meio rural, seja pela paisagem, seja pela economia ou modo de vida. Um exemplo é o muni- cípio de São Bonifácio, em Santa Catarina. Esse pequeno município da região metropolitana de Florianópolis tem parte do seu território preservado pelo Parque Estadual da Serra do Tabuleiro e aproximadamente 61% de sua população está empregada no meio rural. Com forte influência da mão de obra familiar, o município expressa uma paisagem rural e um modo de vida tradicio- nal, vinculado aos agricultores descendentes de imigrantes europeus na produção de legumes e laticínios (IBGE, 2018). Geografia rural132 Figura 3 – O município de São Bonifácio, no estado de Santa Catarina, pertence à região metropolitana de Florianópolis e é um exemplo de espaço rural periférico ao centro urbano, reafirmando a paisagem e o modo de vida do campo. E du ar do K ra us /W ik im ed ia C om m on s A complexidade inerente ao espaço geográfico ganha uma dimensão ainda mais multifa- cetada quando analisada à luz do espaço rural e urbano. Dessa maneira, dados estatísticos muito generalizados, como o número 85% urbano, devem sempre ser vistos com cautela. Para Veiga (2003), parte desse urbano, de fato, não passa de “cidades imaginárias”. Não cabe aqui desquali- ficar o papel do urbano sobre essas áreas, mas enfatizar que a materialidade do rural precisa ser flexibilizada. Visões cartesianas sobre essa problemática tendem a gerar mais incertezas do que abordagens pós-modernas. Devemos sempre problematizar essa definição no que se refere àclassificação entre rural e urbano como diferentes urbanidades e ruralidades de expressão da produção do espaço geográfico. Considerações finais As mudanças territoriais e vinculadas às expressões das novas ruralidades são cada vez mais dinâmicas e complexas. A globalização e urbanização tendem a penetrar o meio rural, modificando suas expressões, sem alterar o espaço geográfico em sua totalidade. Especificidades vinculadas à paisagem e ao lugar fazem desse novo rural uma continuidade e não uma ruptura. Compreender e analisar essas sutilezas é um desafio para planejadores, urbanistas, governantes e geógrafos que se propõem a gerar conhecimento sobre essas áreas sem deixar de dar voz às po- pulações historicamente negligenciadas no discurso acadêmico e governamental, porque esses indivíduos têm suas vidas modificadas pelas mudanças territoriais, por vezes diante da ausência de reafirmação de suas próprias escolhas. Novas ruralidades e relação campo-cidade 133 Ampliando seus conhecimentos No debate sobre o grau de urbanização brasileira, Jose Eli da Veiga é um dos principais pesquisadores a abordar essa temática de forma questionadora e reflexiva. Aqui, trazemos um trecho da obra Cidades imaginárias, uma provocação sobre a relação urbana no espaço rural brasileiro. Sempre que for possível, leia a obra completa. Cidades imaginárias: O Brasil é menos urbano do que se calcula (VEIGA, 2003, p. 43-49) É absolutamente compreensível que poucos saibam que um terço da população brasileira é rural e que essa proporção poderá não diminuir nas próximas décadas. Todos somos vítimas dessa ficção oficial de que o Brasil será 90% urbano por volta de 2010 e inteiramente urbano por volta de 2030. Mas ninguém tem direito de desconhecer a imensa desigualdade que existe entre o Brasil urbano e o Brasil rural. Uma desigualdade que se manifesta principalmente nas oportunidades, nas escolhas, nas opções e, sobretudo, nos direitos que podem ser efetivamente exercidos por essas duas partes da população. [...] O rural é necessariamente territorial, e não setorial como os programas dos órgãos governa- mentais. O grande desafio está, portanto, em propor uma estratégia realista que possa viabilizar uma factível transição de ações setoriais para uma articulação horizontal das intervenções. Há risco, contudo, de que propostas muito bem-intencionadas sirvam para perpetuar e reforçar o viés setorial dos programas existentes, em vez de ajudarem a promover a referida transição. A solução retorica para esse problema já foi encontrada há muito tempo, com a popularização do discurso sobre o “desenvolvimento local”. O que ainda não existe é um plano que reduza a distância entre esse tipo de discurso e a natureza ainda setorial de praticamente todas as ações dos governos federal e estaduais, mesmo nos casos em que tais políticas já romperam com o velho padrão centralizador. Atividades 1. Oficialmente, como acontece a distinção entre rural e urbano? Qual é o principal critério de delimitação e quais reflexões podemos fazer sobre esse critério? 2. As teorias que buscam compreender e definir os espaços rurais e urbanos tendem a se apro- ximar de duas linhas teórico-metodológicas: uma vinculada à oposição/exclusão e outra à continuidade. Explique e problematize cada uma delas. 3. Entre as inúmeras pluriatividades desenvolvidas no espaço rural como expressão de novas ruralidades se destaca o turismo rural. Faça uma reflexão crítica sobre os poten- ciais dessa atividade. Geografia rural134 4. Quando discutimos a relação rural-urbano, costumamos exaltar a influência do urbano no meio rural, assim como as mudanças estruturais e econômicas. Porém, na contemporanei- dade, esse movimento tem se expressado também no sentido contrário. O rural tem cada vez mais penetrado o espaço urbano e adjacências. Assim, que tipo de atividades vem ganhando força no espaço rural? Comente de forma crítica. Referências ABRAMOVAY, R. (Org.). O futuro das regiões rurais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. _________. Funções e medidas da ruralidade no desenvolvimento contemporâneo. Texto para Discussão, Rio de Janeiro, n. 702, jan. 2000. Disponível em: <http://ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/ td_0702.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2018. BERNARDELLI, M. L. F. H. 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Para isso, abordaremos o espaço rural sob a óptica da territorialidade, na qual o Estado se configura como importante agente formador e modificador desse espaço. A compreensão de desenvolvimento rural também será trabalhada e problematizaremos a re- lação entre espaço rural e meio ambiente, distinguindo os termos paisagem natural e paisagem rural, que por vezes são vistos como sinônimos. Por meio da leitura de mapas e dados do Censo Agropecuário, discutiremos ainda as modificações nos biomas brasileiros que foram influencia- das pelas atividades agropecuárias. 10.1 O Estado brasileiro na transformação do espaço rural Quando buscamos uma base para a análise do espaço rural brasileiro, encontramos as rela- ções de poder estabelecidas para a formação e modificação desse espaço. Assim, nossa análise está subsidiada na compreensão de que o espaço rural brasileiro não deve ser explicado sob uma pers- pectiva estática. Afinal, ele é resultado de condicionantes físicas, históricas, econômicas e culturais que se configuram e reconfiguram constantemente. Kageyama (2008, p. 67) revela: O desenvolvimento rural tem de específico o fato de referir-se a uma base ter- ritorial, local ou regional, na qual interagem diversos setores produtivos e de apoio. [...] A função produtiva, antes restrita à agricultura, passa a abranger di- versas atividades, o artesanato e o processamento de produtos naturais e aque- las ligadas ao turismo rural e à conservação ambiental; a função populacional, que, nos períodos de industrialização acelerada, consistia em fornecer mão de obra para as cidades, agora inverteu-se, requerendo-se o desenvolvimento de infraestrutura, serviços e oferta de empregos que assegurem a retenção de população na área rural; a função ambiental passa a receber mais atenção após as fases iniciais da industrialização (inclusive do campo), e demanda do meio rural a criação e proteção de bens públicos e quase-públicos, como paisagem, florestas e meio ambiente em geral. Dentre os principais agentes relacionados ao espaço rural, podemos destacar os seguintes: • os pequenos produtores e agricultores familiares, com baixo poder sistêmico de modificação; • os grandes produtores, vinculados ao agronegócio e aos grandes latifúndios, detentores de grande concentração fundiária e de capitais; • as empresas de insumos agrícolas, sementes e mecanização; • os mercados consumidores (no caso agroexportador brasileiro), como a bolsa de valores, dispondo do controle do preço das commodities; Geografia rural138 • os movimentos sociais, que buscam, por intermédio da organização social e de manifes- tações, articular os interesses dos pequenos produtores diante das opressões sistêmicas; • a bancada ruralista no Congresso e no Senado, formada por parlamentares vinculados ao agronegócio, influenciando a criação de leis e investimentos para o setor; • o Estado brasileiro, por meio de instituições de financiamento e fomento e políticas públi- cas direcionadas ao desenvolvimento rural. A noção de desenvolvimento rural está baseada na ampliação e reprodução de capitais sob a óptica do modo capitalista de produção. Pequenas diferenças entre planos de governo podem amenizar ou potencializar disparidades regionais e de classes sociais e também pode haver maior incentivo a pequenos produtores ou privilégios ao agronegócio. Apesar de ocorrerem mudanças após a década de 1990 nessa balança, o agronegócio e a hegemonia fundiária dessa classe ainda dominam as ações governamentais (ALENCAR; MENEZES, 2009). Entretanto, de modo geral, a inserção nas práticas da Revolução Verde ainda é um processo recorrente. Para Brum (1983, p. 55), A chamada Revolução Verde foi um programa que tinha por objetivo explícito contribuir para o aumento da produção e da produtividade agrícola no mundo, através do desenvolvimento de experiências no campo da genética vegetal para a criação e multiplicação de sementes adequadas às condições dos diferentes solos e climas e resistentes às doenças e pragas, bem como da descoberta e aplicação de técnicas agrícolas ou tratos culturais mais modernos e eficientes. Deu seus primeiros passos por volta de 1943, ainda durante a 2ª Grande Guerra Mundial, quando a vitória para os aliados, sob a liderança dos EUA, já se deli- neava no horizonte. Desde a década de 1960, quando as principais políticas públicas voltadas ao espaço rural começaram a ser idealizadas, o Estado brasileiro buscou em linhas de financiamento e fomento modernizar a agricultura, objetivando um desenvolvimento econômico baseado no agronegócio. Durante os anos de ditadura militar, as políticas estavam concentradas na melhoria de logística de escoamento, com predomínio do modal rodoviário, da redistribuição populacional e de capital pelo território nacional, potencializando a ocupação da Região Centro-Oeste, até hoje a grande fronteira agrícola brasileira (GONÇALVES NETO, 1997; MEDEIROS, 2003; LOCATEL, 2005). Nesse período, destacou-se o Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED), do governo Costa e Silva (1968-1970). O PED incentivou a industrialização da agricultura por meio do crédi- to e seguro rural, modificando a produtividade agrícola, o que elevou a produção. Vale dizer que poucas propostas sociais eram realizadas, sendo mínimas as de reforma agrária ou o atendimento a demandas de pequenos produtores. Instituições e políticas públicas para o desenvolvimento rural 139 No auge do regime militar, durante o governo de Médici, a expressão reforma agrária che- gou a ser abolida dos textos governamentais (GONÇALVES NETO, 1997; MEDEIROS, 2003; LOCATEL, 2005). Sobre esse período, Marques (2002, p. 96) argumenta: O projeto de desenvolvimento rural adotado ao longo de décadas no país tem como principal objetivo a expansão e consolidação do agronegócio, tendo al- cançado resultados positivos, sobretudo em relação ao aumento da produtivida- de e à geração de divisas para o país via exportação. No entanto, esta opção tem implicado custos sociais e ambientais crescentes. Após a redemocratização, questões sociais (entre elas a reforma agrária como ferramenta constitucional de reorganização fundiária) voltam à cena governamental. Assim, os primeiros anos pós-ditadura ainda foram marcados por fortes repressões a movimentos sociais e poucas desapro- priações foram realizadas. Após a década de 1990, foram promulgadas leis de reconhecimento de direitos fundamentais, como a função social da propriedade estabelecida pela Lei n. 8.629, de 1993 (BRASIL, 1993). Além disso, houve a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, desvin- culado do Ministério da Agricultura, com o objetivo de dar visibilidade aos pequenos produtores e à população de menor renda no espaço rural. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) é um dos mais importantes programas de financiamento para o desenvolvimento da agricultura familiar, benefi- ciando produtores, assentados da reforma agrária, indígenas, quilombolas e comunidades tradicio- nais. Criado em 1996, no governo de Fernando Henrique Cardoso, o programa surge no momento em que a expressão agricultura familiar é introduzida no debate agrário. Os financiamentos são concedidos com taxas inferiores à inflação e podem ser realizados de modo individual ou coletivo, visando à inserção desses agricultores no mercado por meio da modernização das atividades, nos moldes da Revolução Verde. Até o início dos anos 2000, as políticas públicas estavam voltadas a algumas linhas de crédito rural. A partir de 2003, com a mudança do Plano Safra, novos projetos foram destinados para a agri- cultura familiar, passando a contar com a assessoria de profissionais como engenheiros-agrônomos e médicos-veterinários. Assim, a AssistênciaTécnica e Extensão Rural (Ater) e o Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Animal (Suasa) auxiliam na implementação de agroindústrias. Entretanto, ainda é grande a parcela da população rural que não recebe assistência técnica nas regiões Norte e Nordeste, demonstrando a disparidade regional (conforme aponta o Mapa 1, a seguir). Geografia rural140 Mapa 1 – Distribuição dos municípios em que os produtores rurais não recebem orientação técnica, segundo o Censo Agropecuário de 2006. Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 152. Com a ineficiência dos projetos de reforma agrária, muito aquém das necessidades dos produtores rurais, alguns programas relacionados à questão fundiária foram desenvolvidos, também sob influência do governo Lula (2003-2011) e das modificações estabelecidas pelo Plano Safra de 2003, entre elas o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), que permite a aquisição de imóveis rurais por meio de financiamento. Além disso, o Programa Terra Legal, criado em 2009 pela cooperação entre governo federal, estados e municípios, busca legalizar a titulação de terras públicas federais na região da Amazônia Legal, que por vezes era apropriada por alguns latifundiários. Somado a esses, também existe o Programa de Cadastro de Terra e Regularização Fundiária, auxiliando na titulação de posse dos imóveis rurais dos agricultores familiares. Instituições e políticas públicas para o desenvolvimento rural 141 Outro grupo de políticas está direcionado para o escoamento da produção dos agricultores familiares. Com a Lei n. 11.947/2009 (BRASIL, 2009b), ficou instituído o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o qual estipula que os alimentos servidos na rede pública de ensino devem ser ao menos 30% provenientes da produção familiar. Outra iniciativa é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que facilitou a aquisição direta de alimentos com os pequenos pro- dutores para auxiliar programas públicos relacionados à segurança alimentar e nutricional, além de ações ligadas ao Programa Fome Zero, que visa a erradicar a fome da população mais carente. A infraestrutura de produção também passou por modificações nas últimas décadas. O acesso à energia elétrica é um importante limitador para a produção, a armazenagem e o bene- ficiamento da produção. Com o programa Luz para Todos, o cenário brasileiro se modificou entre os anos de 1996 e 2006, como se pode observar nos mapas 2 e 3. Mapa 2 – Propriedades rurais com acesso à energia elétrica no Censo Agropecuário de 1996 Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 141. Geografia rural142 Mapa 3 – Propriedades rurais com acesso à energia elétrica no Censo Agropecuário de 2006 Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 141. Como vimos, a pluriatividade faz parte da nova ruralidade brasileira, principalmente na agricultura familiar. Essas atividades, por vezes, são desempenhadas pelas mulheres, como é o caso da produção e comercialização de artesanatos e alimentos (queijos, geleias, biscoitos etc.). Entretanto, as desigualdades de gênero estão arraigadas na sociedade brasileira e o espaço rural não está imune a isso. Dessa forma, para estimular a autonomia social e econômica da mulher do campo, foi criado o Programa de Organização Produtiva de Mulheres Rurais, em 2008, promo- vendo a capacitação de produtoras rurais por meio de cursos, bem como a organização delas em grupos e cooperativas. 10.2 O desenvolvimento no espaço rural: reflexões e apontamentos A noção de desenvolvimento rural é diferente conforme suas variáveis teóricas, notadamente as macroeconômicas. Entretanto, no sistema capitalista, quando essa expressão é usada, evoca a melhoria de indicadores socioeconômicos das populações rurais, principalmente no que diz res- peito à inserção no mercado. Navarro (2001) defende que as grandes distinções entre as principais propostas de desenvolvimento rural consistem nas prioridades, em como são hierarquizadas e pro- cessadas e pelos aspectos metodológicos para se alcançar esses objetivos. Assim, apesar de pequenas variações nas políticas públicas, o desenvolvimento rural foi compreendido pelo aumento da capitalização do produtor rural, a fim de melhorar os parâmetros Instituições e políticas públicas para o desenvolvimento rural 143 socioeconômicos e a inclusão no sistema capitalista. Entre 1960 e 1970, isso significava a moderni- zação do campo e a inserção na Revolução Verde. Atualmente, a inclusão de pequenos produtores na cadeia produtiva de alimentos e da agroindústria delimita metas a serem cumpridas. Grande parte dos conflitos acontece justamente entre os interesses das classes menos favo- recidas, e aquilo que o Estado estabelece como meta de desenvolvimento. Isso ocorre em especial quando governos de Estado estão vinculados ao mercado agroexportador, cujos interesses se so- brepõem aos aspectos social e ambiental. Cabe aqui retomarmos a discussão sobre o emprego do termo agricultor familiar, em detrimento de campesino. Este último emerge de uma questão histó- rica vinculada à classe social, tendo interesses de naturezas distintas às puramente economicistas, como estabelecer uma relação entre o trabalhador rural e a propriedade da terra, ter a autonomia de reprodução do modo de vida tradicional, do uso de técnicas e sementes de valor sociocultural. Especificidades relacionadas ao modo de apropriação do espaço rural pela população do campo raramente são consideradas em planos de desenvolvimento. Porém, como vimos, o espaço rural não pode ser restrito a um espaço produtivo. Maia (2016, p. 290) evidencia que: o espaço local (espaço-território) e a articulação entre as várias escalas espaciais (do local ao global), em alternativa à representação em uma única escala, a nacional, permitiu revelar fenômenos econômicos, sociais, políticos e culturais importantes que antes estavam escondidos, ou eram ignorados, ou tomados como vestígios do passado, entraves ao processo irreversível de nacionalização do espaço. O desenvolvimento rural deve assim, necessariamente, perpassar questões que ultrapassem: a melhoria de indicadores socioeconômicos, atingindo, por exemplo, a autonomia de propriedade e o manejo da terra; a possibilidade de reprodução social e cultural com base em formas tradi- cionais de produção e representação; a preservação de áreas naturais e a melhoria de indicadores ambientais, tendo em vista questões ambientalistas e de saúde da população rural, que por vezes é vítima do uso inadequado de defensivos agrícolas e da desnutrição. Compreender o desenvol- vimento rural é assimilar a complexidade do espaço rural brasileiro e entender as disparidades regionais e de interesses de cada agente territorial. 10.3 Espaço rural e meio ambiente Os aspectos naturais da paisagem rural, como plantas, rios, ausência de edificações e arrua- mento, não devem ser encarados como um sinônimo de paisagem natural. A paisagem rural é em si fortemente humanizada e sua alteração acontece no campo da forma, com modificações da cober- tura vegetal e geomorfológicas, tanto no terraceamento e nas alterações nos cursos dos rios quanto na ressignificação de elementos com valores histórico-culturais. A paisagem rural representa a atividade econômica ali desenvolvida, transmite um modo de vida, uma formação socioespacial que cria rugosidades1 (SANTOS, 1996). 1 “As rugosidades não podem ser apenas encaradas como heranças físico-territoriais, mas também como heranças socioterritoriais ou sociogeográficas. A diferença entre rugosidade e reverse salient vem, neste último caso, do caráter quase absoluto do valor em si de uma existência técnica [...]. O valor de um dado elemento do espaço, seja ele o objeto técnico mais concreto ou mais performante, é dado pelo conjunto da sociedade, e se exprime através da realidade do espaço em que se encaixou” (SANTOS, 1996, p. 43). Geografia rural144 Os impactos sobre o meio ambiente variam conforme o manejo, o tamanho da proprie- dade, o tipo de atividade e o bioma noqual a produção é desenvolvida. A resiliência, ou seja, a capacidade de restauração do bioma, varia conforme algumas especificidades. Por exemplo, o Pantanal é um bioma com forte influência do regime hídrico, oscilando entre momentos de cheias e secas, e, por isso, interferências nos rios da região causariam danos irreversíveis para o habitat de diversas espécies. Como já vimos em outros momentos, a modificação do uso e ocupação do solo pelo agro- negócio baseado na produção de monoculturas em grandes latifúndios afeta diretamente o meio ambiente local e regional. A substituição da cobertura vegetal diminui a diversidade de fauna e flora, além de gerar zonas que podem ser consideradas verdadeiros desertos vegetais, em consequência dessa única cultura. A soja, por exemplo, serve de alimento para poucos animais da fauna brasileira. A frente de ocupação do espaço rural brasileiro é marcada por uma transição de usos do solo que consiste na derrubada da mata nativa para a comercialização de madeira e abertura de pastagens para a criação de gado, fomentando o desmatamento. Quando analisamos a evolução do efetivo de rebanhos entre 1995 e 2006 (conforme os mapas 4 e 5), fica evidente o avanço da fronteira agrícola do cerrado sobre a Amazônia. Mapa 4 – Efetivo de bovinos em 1995 Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 64. Instituições e políticas públicas para o desenvolvimento rural 145 Mapa 5 – Efetivo de bovinos em 2006 Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 64. Diante da demanda por commodities e do alto valor no mercado internacional, parte signi- ficativa das pastagens é substituída pelo plantio de soja. Adaptado ao clima tropical e ao cerrado brasileiro, o grão produz safras cada vez maiores, além de uma segunda safra anual, que o torna a principal cultura do país. O plantio está avançando para a Região Norte, na Amazônia, e na Região Nordeste, sobre o cerrado ao sul dos estados de Maranhão e Piauí (como mostram os mapas 6 e 7). Geografia rural146 Mapa 6 – Área plantada de soja em 1995 Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 64. Mapa 7 – Área plantada de soja em 2006 -30° -30° Área plantada (ha) 8700 a 21500 21501 a 43800 43801 a 90400 90401 a 235000 235001 a 600000 Fonte: Adaptado de IBGE, 2011, p. 64. Instituições e políticas públicas para o desenvolvimento rural 147 A retirada da vegetação nativa, o uso de métodos de irrigação e a mecanização no preparo do plantio e na colheita fazem da agricultura em grande escala uma das principais causas de degradação do solo. Dos condicionantes ambientais, recursos biológicos, hídricos e climáticos, o solo é conside- rado o mais difícil de se recuperar, pois seu tempo de formação é extremamente lento, em função dos processos pedogenéticos, como decomposição das rochas, formação de argilominerais e estru- turas porosas. Isso demonstra que a degradação desse recurso deve ser encarada criteriosamente. Além das questões ambientais diretamente relacionadas à potencialidade de recuperação dos solos, a degradação dessa superfície acarreta erosão de rios e reservatórios, diminuindo a vida útil de repre- sas e exigindo o aumento do uso de insumos agrícolas. Nos últimos anos, são crescentes as pressões por mudanças na legislação ambiental para favorecer o agronegócio. Nesse sentido, verifica-se um retrocesso das políticas ambientais no que diz respeito às áreas de preservação permanentes de cursos-d’água, à quantidade de reserva legal por propriedade e ao licenciamento ambiental para grandes empreeendimentos agropecuários. Considerações finais Neste capítulo, pudemos vislumbrar a complexidade do espaço rural em um crescente pro- cesso de globalização no qual novas ruralidades e dimensões rurais-urbanas fragmentam e recon- figuram o campo constantemente. Apesar dessa dinamicidade, esse processo não é homogêneo, tanto espacial quanto temporalmente, em todo o território brasileiro. A concentração fundiária e de capital nas propriedades vinculadas ao agronegócio ainda representa um importante degrau econômico e social entre a classe trabalhadora rural e as elites agrárias. Além das problemáticas socioculturais inerentes ao sistema capitalista e à luta de classes, o espaço rural brasileiro é marcado por impactos ambientais causados por esse modelo agroexpor- tador sobre os biomas. Assim, cabe à sociedade organizada a exigência de controles e mudanças nos padrões de consumo, a fim de preservar e minimizar os efeitos das modificações ambientais. Ampliando seus conhecimentos O texto de Maria Tereza de Alencar e Ana Virgínia Costa de Menezes apresenta importantes reflexões sobre o papel do Estado brasileiro como agente transformador do espaço rural. Ação do Estado na produção do espaço rural: transformações territoriais (ALENCAR; MENEZES, 2009, p. 144-145) A análise das políticas agrícolas atuais levam a crer que o Estado é um importante elemento no processo de desenvolvimento do capital. Essa entidade, têm assumido ao longo do processo de evolução capitalista, diferentes formas de intervenção na relação entre capital e trabalho, mas sempre com o fito de manutenção da ordem econômica vigente. Assim, a consolidação e intervenção do Estado tem sido necessárias em todas as fases de evolução do capitalismo e do capital nos âmbitos político, econômico, social e espacial. Geografia rural148 A “intervenção espacial” do Estado é ao mesmo tempo ação de cunho regulador que visa garantir hegemonia política aos grupos de poder e reproduzir e ampliar o capital no espaço. Isso ocorre através da construção de infraestrutura e serviços apresentados, em primeira mão, como interesse coletivo, que somente o Estado é capaz de prover. Assim, o espaço passa a pertencer ao conjunto de forças produtivas, desempenhando papel cru- cial no conjunto das relações sociais, demonstrado na formulação notória: é em parte por meio do espaço que a sociedade se reproduz, pois, por exemplo, a ordem espacial pode servir para controlar as contradições estruturais do capitalismo em benefício dos segmentos dominantes. Exatamente como outras mercadorias ele representa ao mesmo tempo um objeto material e um processo que envolve relações sociais. Mas, ao contrário de outras mercadorias o espaço recria continuamente relações sociais ou ajuda a reproduzi-las. É, portanto, ao mesmo tempo objeto material ou produto, o meio de relações sociais e o reprodutor de objetos materiais e relações sociais. Para a compreensão do espaço rural e do espaço urbano como par dialético que jamais serão homogêneos mesmo sob a interferência do Estado, do capital privado local, nacional e inter- nacional, faz-se necessário compreender a produção do espaço e do território como totali- dade, com suas relações sociais de trabalho e formas de produzir contraditórias. Disso decorre, que no Brasil não houve política pública voltada para o espaço rural e sim para as atividades agrícolas. As políticas agrícolas apresentadas pelos dois últimos governos brasi- leiros, PLANAF e PRONAF, como instrumentos de transformação do espaço rural do país não conseguiram dar solução aos problemas decorrentes da excludente estrutura agrária brasileira. Através dessas políticas o Estado continuou servindo a reprodução e ampliação do capital, tentando trazer para o núcleo desse sistema, o camponês um elemento que dele faz parte, mas é ao mesmo tempo fundamento de sua resistência. [...] Atividades 1. A agropecuária vinculada ao agronegócio está fortemente arraigada à degradação ambiental. Com base nas reflexões sobre essa questão e na análise dos mapas 5, 6 e 7, produza um texto crítico destacando os principais impactos do sistema agroexportador brasileiro no meio ambiente. 2. Sob a óptica da geografia agrária, o que significa afirmar que as principais políticas públicas brasileiras estão direcionadas para a agropecuária, e não para o espaço rural? 3. Qual processo histórico de modificação da agricultura mundial influenciou no redimensio- namento de políticas públicas voltadas aoagronegócio? Como isso se refletiu nas modifica- ções do espaço rural brasileiro? 4. Qual é a importância de analisarmos as políticas públicas direcionadas ao espaço rural por meio de uma análise territorial do campo? Instituições e políticas públicas para o desenvolvimento rural 149 Referências ALENCAR, M. T; MENEZES, A. V. C. Ação do Estado na produção do espaço rural: transformações territo- riais. 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Esses pensamentos prejudicaram por tempos o desenvolvimento de estudos que da- riam início à geografia agrária. 2. O conceito rural indica a delimitação de uma área feita pelo Estado de acordo com suas leis. Já o conceito agrário tem componetes das relações socias, como: a estrutura fundiária, os conflitos do campo, a relação de trabalho e a apropriação da terra. Por fim, o conceito agrícola engloba todas as relações de produtividade do campo, em outras palavras, essa con- cepção está vinculada às técnicas de produção, como plantio e colheita de produtos. 3. A ciência histórica é de suma importância para os estudos agrários, pois traz uma percepção temporal do campo. Junto com a geografia, tem-se uma visão complexa e sintética da natureza. Já os habitats rurais, ou seja, habitações e instalações agrícolas, são importantes para analisar a evolução da paisagem. Na descrição de uma paisagem rural, a caracte- rização do habitat mostrará as mudanças culturais/econômicas e consistirá na última a passar por transformações do campo. Por meio dos habitats rurais observa-se os modos de apropriação da terra. 4. Nas décadas de 1970 e 1980, a Ditadura Militar estava no auge da repressão e de seu plano de desenvolvimento ecocômico, com incentivos à modernização do campo e à utilização de tecnologias para o aumento da produção. Nesse contexto, a geografia foi influenciada pelo neopositivismo e defendeu modelos matemáticos para o estudo agrícola. Entretanto, mo- vimentos na luta contra a ditadura e o avanço no modelo agrícola também influenciaram a geografia agrária. Muitos teóricos defendiam que a geografia agrária deveria estudar os conflitos e movimentos da terra com base em presupostos marxistas. 2 A propriedade da terra e suas relações de produção 1. O Estatuto da Terra determinou os níveis de produtividade da terra, caracterizou seu uso social e propôs a reforma agrária e a modernização do agrícola. O documento, redigido no início do governo militar (1964), tinha como objetivos: a regularização de conflitos; a distribuição de terras; e a modernização do campo. No entanto, os militares priori- zaram a economia e deixaram aspectos sociais e a reforma agrária em segundo plano. Geografia rural152 Essa medida beneficiou latifundiários, uma vez que suas propriedades eram mais propí- cias à modernização, e autorizava a aquisição de propriedades acima de 3 mil hectares de terras devolutas, desde que validadas pelo Senado Federal. 2. A prática da grilagem no Brasil remonta à época colonial, quando o procedimento das ses- marias era adotado para estimular a ocupação de terras devolutas. No entanto, esse termo era cunhado após a Independência do Brasil,em 1822, quando grileiros – por meio da prá- tica de envelhecimento de títulos – expulsavam indígenas e posseiros que ali instalavam-se. À medida em que esses eram expulsos, os grileiros, com documentos falsos e ajuda de car- tórios, formavam latifúndios. 3. O Estatuto da Terra foi proposto por Humberto Castello Branco para impulsionar o desen- volvimento rural, por meio do uso e posse da terra. No entanto, esse estatuto ocupou-se do desenvolvimento capitalista em detrimento da reforma agrária. Durante o governo mi- litar, a valorização da ideologia da propriedade privada foi exaltada, pensamento que foi utilizado pela classe dominante para instaurar o medo da reforma agrária e desqualificar a luta dos trabalhadores do campo. Ademais, o Estatuto não considera as origens sociais dos problemas agrários, muito menos a reforma em si. Ele serviu para institucionalizar e lega- lizar a grilagem com o consentimento do Estado por meio cartórios. Essa medida manteve a concentração de terras, baseada na agricultura empresarial de latifúndio. 4. Em busca de países com legislação frágil – principalmente latino-americanos, africanos e asiáticos –, empresas estrangeiras de países desenvolvidos desembarcaram, a partir de 2007, no Brasil para investir seu capital com vistas ao aumento dos preços agrícolas. Esse aumento causou a agroinflação, justificada por alguns acontecimentos, como: • forte crescimento econômico de alguns países emergentes, que contam com grande mer- cado consumidor; • aumento dos preços internacionais do petróleo, que ocasionou a elevação dos custos em toda a cadeia produtiva dependente de combustíveis; • desenvolvimento da produção de biocombustíveis e, consequentemente, diminuição de áreas agricultáveis disponíveis para produção de alimentos; • efeitos climáticos naturais prejudiciais à produção e à produtividade; • baixos estoques de alimentos no mundo, baseados na busca de empresários para a menor perda possível e maior lucro; e • expectativa de elevado crescimento populacional para os próximos anos. 3 A formação histórica do espaço agrário brasileiro 1. O modelo adotado no período colonial do Brasil serviu para atender os interesses da metrópole. Inicialmente, o principal foco da Coroa portuguesa era ocupar suas novas terras e inserir o Brasil no comércio mercantil. Para isso, foi preciso ocupar grandes propriedades de terra, já que o território brasileiro é extenso, e também produzir em Gabarito 153 grande escala. Para competir no mercado externo, a produção era focada em apenas uma cultura, primeiro a cana-de-açúcar e depois o café. O sistema adotado para alcançar esses propósitos era o de sesmarias, adaptado para as condições territoriais, econômicas e polí- ticas do Brasil. Para colocar esse objetivo em prática, adotou-se a escravidão como forma de trabalho, pois não havia trabalhadores locais suficientes. Assim, formou-se a estrutura agrária no Brasil, que, mesmo com a modernização e algumas mudanças nas leis, conti- nuou incentivando o latifúndio como forma de propriedade, a monocultura como forma de cultivo e a escravidão (mesmo proibida) como forma de trabalho. 2. O Brasil, mesmo como colônia, já nasceu capitalista, pois sua produção era voltada para o mercado externo e a acumulação de capital. Em outras palavras, o Brasil como nação nasceu para abastecer o comércio mundial com matéria-prima e alimentos. Wright (2005) destaca que as relações de trabalho escravistas fazem parte do sistema capitalista, embora sejam uma maneira cara, de baixa produtividade e encarada pelos capitalistas como um método brutal de acumulação de capital. A modernização da agricultura ocorre em grandes propriedades para aumentar a produção direcionada para a exportação. Desse modo, podemos afirmar que as relações de trabalho no campo atuais são totalmente capitalistas, pois visam ao uso da terra para a geração de lucro. 3. A modernização agrícola no Brasil, embasada nos modelos do Estados Unidos e da Europa Ocidental, objetivava aumentar a produção, a produtividade, a inserção de novas tecnologias, assim como a melhoria da vida do camponês brasileiro. Sem o auxílio do Estado, a implanta- ção desse modelo não teria sido bem-sucedida. O Estado, por meio do estímulo às instituições financeiras, oferece empréstimos e financiamentos a juros baixos. Porém, muitos dos peque- nos produtores não conseguem atender todos os requisitos para obtê-los. Em resumo, tanto a modernização quanto os estímulos oferecidos pelas instituições financeiras favorecem grandes proprietários de terras. 4. A desigualdade na distribuição das terras ainda é crescente em alguns estados como Amazo- nas, Pará, Tocantins, Bahia, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul. O aumento da concentração de terra nesses estados ocorreu em grande parte devido à expansão da fronteira agrícola e do o incentivo à modernização do campo. Com isso, houve a expansão das áreas de mono- culturas, como milho, soja, algodão e áreas de pastoreio. Observa-se também que há nesses estados um significativo acréscimo no tamanho das propriedades rurais, muitas pertencentes a grileiros que expulsaram posseiros e indígenas para expandir suas plantações e pastos. 4 A renda fundiária, o agronegócio e a produção brasileira de grãos 1. Para Adam Smith, a renda fundiária é um valor excedente não merecido, pois foi obtido sem a força de trabalho; o proprietário da terra apropria-se dela. Assim, esse excedente é pago pela simples existência da propriedade privada da terra. Para Thomas Malthus, esse excedente é gerado após o pagamento de todas as despesas de cultivo, inclusive o lucro do capital. O autor Geografia rural154 dá ênfase para a fertilidade da terra, uma vez que a considera fundamental para o aumento da produção, e, consequentemente, o aumento da renda fundiária. 2. Os defensores do agronegócio argumentam que o modo de produção agrícola industrial é necessário para maior produção de alimentos, criação de empregos e desenvolvimento de tec- nologias. Dessa forma, valoriza-se os latifúndios com a justificativa de que quanto maior a terra, maior será a produção. Entretanto, a maior parte da produção do agronegócio não é direcionada a produtos alimentícios, e sim para produção industrial. Além disso, trata-se de uma produção mercantil, ou seja, para exportação. Com o incentivo para o desenvolvimento desse modo de produção, a criação de tecnologias e o apoio, aumenta-se as pesquisas no país. Porém, a substituição do trabalho humano por essas novas tecnologias ocasiona o desemprego e até mesmo subempregos, como boias-frias e trabalhadores temporários. 3. A cultura de apenas um produto é realizada para suprir necessidades e interesses do capital nacional e internacional. Essa forma de produção minimiza a utilização de mão de obra e potencializa o uso de tecnologias. A monocultura causa impactos também na diversidade de espécie e, consequentemente, no empobrecimento genético delas. Com isso, as plantas se tornam mais voláteis às pragas. A solução para esse problema é a utilização de agrotóxico, entretanto, com o passar do tempo, as próprias pragas se tornam resistentes a esses insumos e, com isso, precisa-se aumentar cada vez mais sua utilização. Outro impacto ocasionado pela valorização das monoculturas é que elas afetam a produção de alimentos no país, já que os produtos escolhidos geralmente não compõem a base alimentar do país e são exportados. 4. A maior parte da produção agrícola do Brasil é ditada pela indústria e pelo mercado. Os grãos são altamente valorizados no mercado mundial, principalmente pela produção de commodities. Assim, em razão das características naturais do Brasil – fartura de terra; relevos favoráveis à mecanização e ao clima; frágeis leis ambientais; leis de incentivos de créditos fiscais e uso de fertilizantes –, o país dispõe de condições para ser o maior expor- tador de grãos do mundo. 5. Estrutura agrária brasileira 1. Módulo fiscal é uma unidade de medida, apresentada