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M quina Artificial X M quina Viva - Terra-P tria!

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O desenvolvimento descontrolado e cego da tecnociência 
 
Nosso devir é mais do que nunca animado pela dupla dinâmica do desenvolvimento 
das ciências e do desenvolvimento das técnicas, que se alimentam um ao outro; essa 
dinâmica propulsa sobre o Globo o desenvolvimento industrial e o desenvolvimento 
civilizacional, os quais por sua vez a estimulam. Assim, a tecnociência conduz há um 
século o mundo. São seus desenvolvimentos e suas expansões que operam os 
desenvolvimentos e as expansões das comunicações, das interdependências, das 
solidariedades, das reorganizações, das homogeneizações que levam adiante a era 
planetária. Mas são também esses desenvolvimentos e essas expansões que 
provocam, por efeitos retroativos, as balcanizações, as heterogeneizações, as 
desorganizações, as crises de hoje. 
A fé na missão providencial da tecnociência alimentou a certeza do progresso, as 
grandiosas esperanças do desenvolvimento futuro. 
A tecnociência não é apenas a locomotiva da era planetária. Ela invadiu todos os 
tecidos das sociedades desenvolvidas, implantando de forma organizadora a lógica da 
máquina artificial até na vida cotidiana, expulsando da competência democrática os 
cidadãos em proveito dos experts e especialistas. Ela operou suas fraturas no 
pensamento ao impor-lhe disjunções e reduções. 
A tecnociência é, assim, núcleo e motor da agonia planetária. 
 
A invasão pela lógica da máquina artificial 
 
O que é que distingue uma máquina artificial de uma máquina viva? 
A máquina artificial é composta de elementos extremamente fiáveis. No entanto, a 
máquina em seu conjunto é muito menos fiável que cada um de seus elementos 
tomados isoladamente. Basta uma alteração local para que o conjunto se bloqueie, 
entre em pane, e a máquina só pode ser reparada por intervenção externa. A máquina 
artificial não pode tolerar nem integrar a desordem. A máquina artificial obedece 
estritamente a seu programa. A máquina artificial é feita de elementos altamente 
especializados e está voltada a tarefas especializadas. Só muito recentemente os 
computadores lhe deram uma inteligência geral, capaz de se aplicar a diversos 
problemas. 
A máquina viva, por sua vez, é constituída de elementos pouco fiáveis que se 
degradam rapidamente (as proteínas), mas o conjunto é muito mais fiável que seus 
elementos. Ela é capaz de produzir constituintes novos que substituam os que se 
degradam (moléculas) ou morrem (células), e portanto é capaz de se auto-regenerar; 
ela é capaz de se auto-reparar quando lesada localmente. Se a morte é o inimigo da 
organização viva, suas forças de destruição são utilizadas para permitir a regeneração. 
Enquanto a máquina artificial só é capaz de programa, a máquina viva é capaz de 
estratégia, ou seja, de inventar seus comportamentos na incerteza e na eventualidade. 
Há portanto, na máquina viva, um vínculo consubstancial e complexo entre 
desorganização e reorganização, desordem e criatividade. 
Além disso, a máquina viva compreende não apenas órgãos especializados, mas órgãos 
multifuncionais. Seu sistema generativo (genético) comporta não apenas genes 
especializados, mas genes polivalentes em conjuntos de genes, eles próprios 
polivalentes. A máquina artificial não é senão uma máquina. A máquina viva é também 
um ser auto-eco-organizador. Esse ser é um indivíduo-sujeito. 
Todas essas qualidades do ser-máquina viva são levadas a seu mais alto grau no ser 
humano, no qual se manifestam a qualidade de sujeito e a capacidade de escolha 
(liberdade). 
A lógica da máquina artificial, quando aplicada ao humano, desenvolve o programa em 
detrimento da estratégia, a hiperespecialização em detrimento da competência geral, 
a mecanicidade em detrimento da complexidade organizacional: a estrita 
funcionalidade, a racionalização e a cronometrização que impõem a obediência dos 
seres humanos à organização mecânica da máquina. Esta ignora o indivíduo vivo e sua 
qualidade de sujeito, portanto as realidades humanas subjetivas. 
A lógica da máquina artificial se impôs inicialmente na indústria onde, apesar de liberar 
os músculos humanos dos trabalhos pesados, sujeitou o trabalhador a suas normas 
mecânicas e especializadas, bem como a seu tempo cronometrizado. A máquina 
subjugada às necessidades humanas subjugou ao mesmo tempo os humanos às suas 
necessidades mecânicas. Ao mesmo tempo que se tornou um apêndice da atividade 
humana, fez do trabalhador seu apêndice. 
A lógica da máquina artificial espalhou-se para fora do setor industrial, notadamente 
no mundo administrativo onde sua organização já estava prefigurada na organização 
burocrática. Apoderou-se de numerosos domínios da atividade social: como disse 
Giedeon, a mecanização assume o comando. Ela se torna mestra primeiro no mundo 
urbano, depois no mundo rural onde transforma os camponeses em agricultores e 
torna suburbanos burgos e aldeias. 
A lógica da máquina artificial - eficácia, predizibilidade, calculabilidade, especialização 
rígida, rapidez, cronometria - invade a vida cotidiana: regula viagens, consumo, lazeres, 
educação, serviços, consertos, e provoca o que George Ritzer chama a 
"macdonaldização da sociedade". 
A urbanização, a atomização, a anonimização vão de par com a aplicação generalizada 
da lógica da máquina artificial aos seres humanos e às suas relações. 
A noção de desenvolvimento, tal como se impôs, obedece à lógica da máquina artificial 
e a difunde pelo planeta. Assim, a tomada de posse da técnica torna-se ao mesmo 
tempo tomada de posse pela técnica. Acredita-se racionalizar a sociedade em favor do 
homem, racionaliza-se o homem para adaptá-lo à racionalização da sociedade. 
 
Reinado do pensamento mecânico e parcelar 
 
A extensão da lógica da máquina artificial em todos os domínios da vida humana 
produz o pensamento mecanicista parcelar que adquire forma tecnocrática e 
econocrática. Tal pensamento não percebe senão a causalidade mecânica, quando 
tudo obedece cada vez mais à causalidade complexa. Ele reduz o real a tudo que é 
quantificável. A hiper-especialização e a redução ao quantificável produzem cegueira 
não apenas em relação à existência, ao concreto, ao individual, mas também em 
relação ao contexto, ao global, ao fundamental. Elas provocam, em todos os sistemas 
tecnoburocráticos, um parcelamento, uma diluição e finalmente uma perda da 
responsabilidade. Favorecem nesses sistemas tanto a rigidez da ação quanto o laxismo 
da indiferença. Contribuem fortemente para a regressão democrática nos países 
ocidentais, onde todos os problemas, agora técnicos, escapam aos cidadãos em 
proveito dos especialistas, e onde a perda da visão do global e do fundamental dá livre 
curso não apenas às ideias parcelares mais fechadas mas também às ideias globais 
mais ocas, às ideias fundamentais mais arbitrárias, inclusive e sobretudo entre os 
próprios técnicos e cientistas. 
As devastações da racionalidade fragmentária e fechada se manifestam na concepção 
dos grandes projetos tecnoburocráticos que esquece sempre uma ou várias dimensões 
dos problemas a tratar (...). Na verdade, a racionalidade fechada produz 
irracionalidade. Ela é evidentemente incapaz de enfrentar o desafio dos problemas 
planetários. 
 
Nova barbárie 
 
Há sofrimentos humanos que resultam dos cataclismos naturais, secas, inundações, 
escassez de alimentos. Outros resultam de formas antigas de barbárie que não 
perderam sua virulência. Mas há outros, finalmente, que procedem de uma nova 
barbárie tecno-científica-burocrática, inseparável do domínio da lógica da máquina 
artificial sobre os seres humanos. 
A ciência não é apenas elucidadora, é também cega sobre seu próprio devir e contém 
em seus frutos, como a árvore bíblica do conhecimento, ao mesmo tempo o bem e o 
mal. A técnica, juntamente com a civilização, traz uma nova barbárie, anônima e 
manipuladora. A palavra razão significa não somente a racionalidade crítica, mastambém o delírio lógico da racionalização, cego aos seres concretos e à complexidade 
do real. O que tomávamos por avanços da civilização são ao mesmo tempo avanços da 
barbárie. 
Walter Benjamin viu claramente que havia barbárie na origem das grandes civilizações. 
Freud viu claramente que a civilização, longe de anular a barbárie recalcando-a em 
seus subterrâneos, preparava novas erupções dela. É preciso ver hoje que a civilização 
tecnocientífica, embora sendo civilização, produz uma barbárie que lhe é própria. 
 
A incapacidade de efetuar a mutação meta-técnica 
 
O mito do progresso hoje desmorona, o desenvolvimento está enfermo; todas as 
ameaças para o conjunto da humanidade têm pelo menos uma de suas causas no 
desenvolvimento das ciências e técnicas (ameaça das armas de aniquilamento, 
ameaças ecológicas à biosfera, ameaça de explosão demográfica). 
No entanto, os próprios desenvolvimentos tecnocientíficos permitiriam reencontrar 
competências gerais, substituir o trabalho hiper-especializado por robôs e máquinas e 
pelo controle informático, organizar uma economia distributiva que suprimisse a 
escassez e a fome do terceiro mundo e integrasse os excluídos, substituir os sistemas 
rígidos de ensino por uma educação para a complexidade. 
Uma civilização meta-técnica é concebível, justamente com a ajuda e a integração da 
técnica, o controle da lógica atual das máquinas artificiais por normas humanas, a 
introdução progressiva de uma lógica complexa nos computadores e, deste modo, no 
mundo das máquinas artificiais. 
A incapacidade de efetuar a grande mutação tecnológica/econômica/social não se 
deve apenas à insuficiência de conhecimentos técnicos e econômicos, mas à própria 
deficiência do pensamento dominante tecno-econômico. Deve-se também à 
debilidade do pensamento político que, após o colapso do marxismo, é incapaz de 
praticar um pensamento complexo e de considerar um grande projeto. Há 
incapacidade de sair da crise do progresso por um outro progresso, em sair da crise da 
modernidade por outra coisa que não um pobre pós-modernismo. 
 
Corrida cega 
 
A corrida da tríade que se encarregou da aventura humana, ciência/técnica/indústria, 
é descontrolada. O crescimento é descontrolado, seu progresso conduz ao abismo. 
A visão eufórica de Bacon, Descartes e Marx, em que o homem senhor da técnica se 
tornava senhor da natureza, sucede a visão de Heisenberg e Gehlen, em que a 
humanidade se torna o instrumento de um desenvolvimento meta-biológico animado 
pela técnica. Precisamos abandonar os dois mitos maiores do Ocidente moderno: a 
conquista da natureza-objeto pelo homem sujeito do universo, o falso infinito para o 
qual se lançavam o crescimento industrial, o desenvolvimento, o progresso. 
Precisamos abandonar as racionalidades parciais e fechadas, as racionalizações 
abstratas e delirantes que consideram como irracional toda crítica racional dirigida a 
elas. Precisamos nos livrar do paradigma pseudoracional do Homo Sapiens Faber 
segundo o qual ciência e técnica assumem e levam a cabo o desenvolvimento humano. 
A tragédia do desenvolvimento e o subdesenvolvimento do desenvolvimento, a corrida 
desenfreada da tecnociência, a cegueira que o pensamento parcelar e redutor produz, 
tudo isso nos lançou na aventura descontrolada.(...) 
 
 TERRA-PÁTRIA!!! 
 
Dominar a natureza? O homem é ainda incapaz de controlar sua própria natureza, cuja 
loucura o impele a dominar a natureza perdendo o domínio de si mesmo. Dominar o 
mundo? Mas ele é apenas um micróbio no gigantesco e enigmático cosmos. Dominar a 
vida? Mas mesmo se pudesse um dia fabricar uma bactéria, seria como copista que 
reproduz uma organização que jamais foi capaz de imaginar. E acaso ele saberia criar 
uma andorinha, um búfalo, uma otária, uma orquídea? O homem pode massacrar 
bactérias aos milhares, mas isso não impede que bactérias resistentes se multipliquem. 
Pode aniquilar vírus, mas está desarmado diante de vírus novos que zombam dele, que 
se transformam, se renovam... Mesmo no que concerne às bactérias e aos vírus, ele 
deve e deverá negociar com a vida e com a natureza. O homem transformou a Terra, 
domesticou suas superfícies vegetais, tornou-se senhor de seus animais. Mas não é o 
senhor do mundo, nem mesmo da Terra. Cigano do cosmos, itinerante da aventura 
desconhecida, esse é o destino antropológico que se revela e surge das profundezas no 
quinto século da era planetária, após milênios de encerramento no ciclo repetitivo das 
civilizações tradicionais, nas crenças na eternidade, nos mitos sobrenaturais: o homem 
lançado aí, dasein, nesta Terra, homem da errância, do caminhar sem caminho prévio, 
da preocupação, da angústia, mas também do impulso, da poesia, do êxtase. Esse é o 
Homo sapiens demens, inacreditável "quimera... novidade... monstro... caos... sujeito 
de contradição, prodígio! Juiz de todas as coisas, imbecil verme da terra; depositário 
do verdadeiro, cloaca de incerteza e de erros; glória e escória do universo", como dizia 
Pascal', esse é o homem já reconhecido por Heráclito, Ésquilo, Sófocles, Shakespeare e 
certamente muitos outros, em outras culturas. Esse homem deve reaprender a 
finitude terrestre e renunciar ao falso infinito da onipotente técnica, da onipotência do 
espírito, de sua própria aspiração à onipotência, para se descobrir diante do 
verdadeiro infinito que é inomeável e inconcebível. Seus poderes técnicos, seu 
pensamento, sua consciência devem doravante ser destinados, não a dominar, mas a 
arrumar, melhorar, compreender. Precisamos aprender a ser aí (dasein), no planeta. 
Aprender a ser é aprender a viver, a partilhar, a comunicar, a comungar; é isso que se 
aprendia nas e pelas culturas fechadas. Precisamos doravante aprender a ser, viver, 
partilhar, comunicar e comungar enquanto humanos do planeta Terra. Não mais 
apenas a ser de uma cultura, mas a ser terrestres. 
 
 
Extraído de Terra-Pátria, EdgarMorin e Anne Brigitte Kern, Ed. Sulinas, para fins didáticos.

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