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Como mudar o curso da história 
humana 
(pelo menos na parte que já aconteceu) 
 
David Graeber 
David Wengrow 
29 October 2019 
A história que temos contado a nós mesmos sobre nossas origens 
está errada e perpetua uma ideia de desigualdade social 
inevitável. David Graber e David Wengrow se perguntam por que 
o mito da “Revolução Agrária” permanece tão persistente e 
argumentam que há muito mais coisas que podemos aprender de 
nossos ancestrais. 
 
Obra de arte de Banksy (título desconhecido). Fonte: Flickr 
 
1. No começo havia a palavra. 
Por séculos nós temos contado a nós mesmos uma história simples sobre as origens 
da desigualdade social. Durante a maior parte de sua história, os humanos viveram 
em minúsculos bandos igualitários de caçadores-coletores. Então veio a agricultura, 
https://www.eurozine.com/authors/david-graeber/
https://www.eurozine.com/authors/wengrow-david/
https://www.flickr.com/photos/ciw/246293516/in/photolist-nLjtW-nS81ST-GFaLD-qnd5Vf-qnd5Zd-6ZnDZT-awhDA8-q7WutC-6W2VR1-psuZ1w-ohVk5y-pLEpfa-9tV3MT-e4TtLv-9tV6gZ-23fXKg-VCeW3K-VPJDxR-oJukbL-4ARchy-9tY4Wj-psJtcz-5tapC-oe4ijS-24ayP-8tGNU8-9tY3C3-8pBzop-9tY1JW-uGQ9f-fDwAJe-8qR4BL-psJu6i-5m6TsR-5MXVV-bE4q3N-c6yJ5j-7m5PSF-7m9GEb-4M6HaF-6JghZ-VyUTJJ-VPDspZ-c6AiLh-XU6yYN-4iwZgz-XzLxTq-WyWEaj-4iu3qg-4iu862
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que trouxe com ela a propriedade privada, e então o surgimento das cidades, que 
significou a emergência da civilização propriamente dita. Civilização significava 
muitas coisas ruins (guerras, impostos, burocracia, patriarcado, escravidão…), mas 
também tornou possível a literatura, a ciência, a filosofia e muitos outros grandes 
feitos humanos. 
Quase todo mundo conhece essa história em seus traços gerais. Desde pelo menos 
os dias de Jean-Jacques Rousseau, ela moldou o que acreditamos ser a forma geral e 
a direção da história humana. Isso é importante porque essa narrativa também 
define o nossa percepção do que é possível politicamente. A maioria das pessoas 
veem civilização e, portanto, a desigualdade como uma necessidade trágica. Alguns 
sonham com o retorno a alguma utopia do passado, a descoberta de um equivalente 
industrial do “comunismo primitivo”, ou mesmo, em casos extremos, a destruição 
de tudo e a volta à condição de caçador-coletor. Mas ninguém desafia a estrutura 
básica daquela história. 
Há um problema fundamental com essa narrativa. 
Ela não é verdadeira. 
Evidências esmagadoras da arqueologia, da antropologia e de disciplinas afins estão 
começando a nos dar uma ideia bem clara de como realmente teriam sido os últimos 
40.000 anos da história humana e, em quase nada, ela lembra a narrativa 
convencional. Nossa espécie, de fato, não passou a maior parte de sua história em 
minúsculos bandos; a agricultura não marcou um limite irreversível na evolução 
social; as primeiras cidades frequentemente eram robustamente igualitárias. Ainda 
assim, mesmo quando pesquisadores chegam gradualmente a um consenso sobre 
essas questões, eles permanecem estranhamente relutantes em anunciar suas 
descobertas para o público – ou mesmo para estudiosos de outras disciplinas – para 
não falar da ausência de reflexões sobre suas implicações políticas mais amplas. 
Como resultado, aqueles escritores que estão pensando sobre as “grandes questões” 
da humanidade – Jared Diamond, Francis Fukuyama, Ian Morris e outros – ainda 
tomam a pergunta de Rousseau (“qual é a origem da desigualdade social?”) como 
seu ponto de partida, e assumem que a narrativa maior vai começar com algum tipo 
de queda da inocência primordial. 
Propor a questão desta forma simplesmente significa fazer uma série de suposições, 
como a de que (1) existe algo chamado “desigualdade”, (2) que isso é um problema, 
e (3) que houve um tempo em que ela não existia. Desde o crash financeiro de 2008, 
evidentemente, e dos levantes sociais que se seguiram, o “problema da desigualdade 
social” esteve no centro do debate político. Parece haver um consenso entre classes 
políticas e intelectuais de que os níveis de desigualdade social entraram numa 
espiral de descontrole e que, de uma forma ou de outra, a maior parte dos problemas 
é resultado disso. Apontar isso tem sido visto como um desafio às estruturas globais 
de poder, mas é possível comparar essa situação com a forma com que questões 
similares teriam sido discutidas em uma geração anterior. Diferentemente de 
termos como “capital” ou “poder de classe”, é quase como se a palavra “igualdade” 
tivesse sido concebida para conduzir a medidas parciais e a compromissos. Pode-se 
imaginar a derrubada do capitalismo ou a quebra do poder do Estado, mas é muito 
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difícil imaginar a eliminação da “desigualdade”. De fato, não fica óbvio até mesmo o 
que fazê-lo significaria, uma vez que as pessoas não são todas idênticas e ninguém 
particularmente gostaria que fossem. 
Desigualdade é uma forma de conceber os problemas sociais apropriada para 
reformadores tecnocratas, o tipo de gente que presume que qualquer visão real de 
transformação social foi retirada da mesa de negociação política há muito tempo. O 
conceito permite brincar com números, argumentar a respeito de coeficientes de 
Gini e limites de disfunção, reajustar regimes fiscais ou mecanismos de bem-estar 
social, ou mesmo chocar o público com cifras mostrando quão ruins as coisas estão 
(“vocês podem imaginar? 0,1% da população mundial controla acima de 50% da 
riqueza!”); tudo isso sem lidar com qualquer dos fatores dos quais as pessoas 
realmente reclamam no que diz respeito a tais arranjos sociais desiguais: por 
exemplo, que alguns conseguem transformar sua riqueza em poder sobre outros; ou 
que algumas pessoas são ensinadas que suas necessidades não são importantes e 
que suas vidas não tem nenhum valor intrínseco. Esse último caso, nós somos 
levados a acreditar, é somente o efeito inevitável da desigualdade e que a 
desigualdade é o resultado inevitável de se viver em qualquer sociedade grande, 
complexa, urbana e tecnologicamente sofisticada. Essa é a real mensagem política 
enviada pelas invocações sem fim de uma era de inocência imaginária, anterior à 
invenção da desigualdade: de que se nós quisermos nos livrar inteiramente de tais 
problemas, nós teríamos de nos livrar de alguma maneira também de 99,9 % da 
população da Terra e retornar a sermos minúsculos bandos de caçadores-coletores. 
Por outro lado, o melhor que podemos esperar é ajustar o tamanho da bota que vai 
pisar em nossos rostos eternamente, ou talvez forçar um pouco mais de espaço de 
manobra para que pelo menos alguns de nós fiquemos, temporariamente, fora do 
caminho dela. 
As correntes dominantes das Ciências Sociais parecem agora mobilizadas para 
reforçar essa sensação de falta de esperança. Quase mensalmente somos 
confrontados com publicações que tentam projetar a atual obsessão com 
distribuição de renda de volta até a Idade da Pedra, nos encaminhando para uma 
busca por “sociedades igualitárias” definidas de tal forma que elas nunca poderiam 
ter existido fora de um minúsculo bando de caçadores-coletores (e possivelmente, 
nem mesmo ali). O que nós vamos fazer neste ensaio será, então, duas coisas. 
Primeiro, nós vamos passar um tempo selecionando o que parecem ser opiniões 
fundamentadas sobre tais questões, de forma a revelar como o jogo tem sido jogado, 
como mesmo os mais sofisticados estudiosos aparentemente terminam 
reproduzindo ideias convencionais, ainda no mesmo formato com que foram 
produzidas, digamos, na França e na Escócia de 1760. Em seguida, vamos tentar 
estabelecer as fundações iniciais para uma narrativa inteiramente diferente. Este 
será quase inteiramente um trabalho de limpeza de terreno. As questões com as 
quais estamos lidando são tão enormes e os assuntos tão importantes que anos de 
pesquisas e debates serão necessários para se começar a entender as suas totais 
implicações. Mas insistimos em uma coisa. Abandonar a narrativa da queda de uma 
inocência primordialnão significa abandonar os sonhos de emancipação da 
humanidade – isto é, de uma sociedade em que ninguém pode transformar seu 
direito à propriedade numa forma de escravizar outros, e na qual ninguém terá de 
ouvir que sua vida ou necessidades não importam. Pelo contrário. A História 
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Humana se torna um lugar muito mais interessante, apresentando muitos 
momentos mais de esperança do que fomos levados a imaginar, uma vez que 
aprendemos a jogar fora nossas correntes conceituais e a perceber o que realmente 
está ali. 
2. Visões de autores contemporâneos sobre as origens da desigualdade 
social; ou, o eterno retorno de Jean-Jacques Rousseau 
Comecemos com um esboço da sabedoria convencional no que diz respeito ao curso 
em linhas gerais da história humana. Ele se parece mais ou menos com o que se 
segue: 
Conforme as cortinas se abrem para a história humana – digamos, por volta de 
aproximadamente duzentos mil anos atrás, com o aparecimento do Homo sapiens 
anatomicamente moderno – nós encontramos nossa espécie vivendo em minúsculos 
bandos móveis que tinham de vinte a quarenta indivíduos. Eles buscavam territórios 
ótimos para a caça e a coleta, seguindo rebanhos, colhendo nozes e frutas silvestres. 
Se os recursos se tornavam escassos, ou se tensões sociais cresciam, eles reagiam 
por meio do abandono do lugar e da ida para outra área. A vida para estes humanos 
iniciais – nós podemos pensar esse momento como a infância da humanidade – é 
cheia de perigos, mas também de possibilidades. As posses materiais são poucas, 
mas o mundo é um lugar convidativo e imaculado. A maioria trabalha apenas 
algumas horas por dia e o tamanho pequeno dos grupos sociais lhes permite manter 
um tipo de fácil companheirismo, sem estruturas formais de dominação. Rousseau, 
escrevendo no século XVIII, referiu-se a isso como “O Estado de Natureza”, mas hoje 
em dia se pressupõe que ele abrangeu realmente a maior parte da história da nossa 
espécie. Também é pressuposto que foi a única época em que os seres humanos 
conseguiram viver em genuínas sociedades de iguais, sem classes, castas, líderes 
hereditários ou governos centralizados. 
Infelizmente, esse estado das coisas tinha de chegar ao fim. Nossa versão 
convencional da história do mundo coloca esse momento por volta de 10.000 anos 
atrás, com o encerramento da última Idade do Gelo. 
Neste ponto, nós encontramos nossos atores humanos imaginários espalhados ao 
redor dos continentes do mundo, começando a cultivar suas próprias plantações e a 
criar seus próprios rebanhos. Quaisquer que sejam as causas locais (que são 
bastante discutidas), os efeitos são decisivos e, basicamente, os mesmos em toda 
parte. Anexações territoriais e a posse privada de propriedade se tornam 
importantes em formas previamente desconhecidas e, com elas, também os conflitos 
esporádicos e as guerras. A agricultura garante um excedente de alimentos, o que 
permite a alguns acumular riquezas e influência para além do seu grupo imediato 
de parentesco. Outros usufruem a liberdade de não ter de procurar comida para 
desenvolver novas habilidades, como a invenção de ferramentas, veículos, 
fortificações e armas mais sofisticadas, ou a busca pela política e pela religião 
organizada. Consequentemente, estes “agricultores neolíticos” rapidamente 
entenderam o caráter de seus vizinhos caçadores-coletores e começaram a eliminá-
los ou a absorvê-los em seu novo e superior – embora menos igual – estilo de vida. 
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Para tornar as coisas ainda mais difíceis, ou assim segue a narrativa, a agricultura 
garante um aumento global nos níveis populacionais. Conforme as pessoas 
adentram concentrações populacionais cada vez maiores, nossos ancestrais 
involuntariamente dão mais um passo irreversível em direção à desigualdade, e, por 
volta de 6.000 anos atrás, as cidades aparecem – e nosso destino fica selado. Com as 
cidades vêm a necessidade de governo centralizado. Novas classes de burocratas, 
sacerdotes e guerreiros-políticos se instalam permanentemente em seus cargos de 
forma manter a ordem e garantir o suave fluxo de recursos e serviços públicos. As 
mulheres, tendo outrora usufruído um papel preponderante nos feitos da 
humanidade, são sequestradas ou aprisionadas em haréns. Prisioneiros de guerra 
são reduzidos a escravos. A desigualdade plena chegou e não há como se livrar dela. 
Mesmo assim, os contadores de histórias sempre nos asseguram, nem tudo que diz 
respeito ao desenvolvimento da civilização urbana é ruim. A escrita foi inventada, 
primeiro para manter a contabilidade estatal, mas isso permitiu que avanços 
excepcionais ocorressem na ciência, tecnologia e artes. Pelo preço da inocência, nós 
nos tornamos nossas versões modernas e agora só podemos observar com pena e 
inveja aquelas poucas sociedades “primitivas” e “tradicionais” de que alguma forma 
perderam o barco. 
Essa é a narrativa que, como dissemos, forma a fundação de todo o debate 
contemporâneo sobre a desigualdade. Se, digamos, um expert em relações 
internacionais, ou um psicólogo clínico deseja refletir sobre essas questões, é 
provável que eles simplesmente tomem como certo que, durante a maior parte da 
história humana, nós vivemos em minúsculos bandos igualitários ou que o 
aparecimento das cidades significou também o aparecimento do Estado. O mesmo é 
verdade para a maioria dos livros recentes que tentam esboçar um olhar 
panorâmico da pré-história, de forma a tirar conclusões políticas pertinentes à 
nossa vida contemporânea. Consideremos The Origins of Political Order: From 
Prehuman Times to the French Revolution de Francis Fukuyama: 
Em seus estágios iniciais, a organização política humana é similar à sociedade no 
nível dos bandos observável nos primatas mais avançados, como os chimpanzés. 
Isso pode ser considerado como uma forma pré-definida de organização social. … 
Rousseau apontou que a origem da desigualdade política estaria no 
desenvolvimento da agricultura e nisso ele estava bastante correto. Uma vez que as 
sociedades em nível de bando são pré-agrárias, não há propriedade privada em 
qualquer sentido moderno. Como os bandos de chimpanzés, os caçadores-coletores 
habitam uma extensão territorial que guardam e pela qual ocasionalmente têm de 
lutar. Mas eles têm menos incentivos do que os agricultores para demarcar um 
pedaço de terra e dizer “isto é meu”. Se o território deles é invadido por outro grupo, 
ou se é infiltrado por predadores perigosos, as sociedades em nível de bando podem 
ter a opção de simplesmente se mudar para outro lugar por causa das baixas 
densidades populacionais. Sociedades em nível de bando são altamente 
igualitárias… A liderança é investida em indivíduos com base em qualidades como 
força, inteligência e confiabilidade, mas isso tende a migrar de um indivíduo para 
outro. 
Jared Diamond, em World Before Yesterday: What Can We Learn from Traditional 
Societies?, sugere que tais bandos (nos quais ele acredita que humanos ainda viviam 
“até um período tão recente quanto 11.000 anos trás”) incluíam “apenas algumas 
dúzias de indivíduos”, a maior parte deles biologicamente aparentada. Eles levavam 
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uma existência bastante pobre, “caçando e coletando quaisquer animais e plantas 
selvagens que eventualmente vivessem em um acre de floresta” (Por que apenas um 
acre, ele nunca explica). E suas vidas sociais, de acordo com Diamond, eram 
invejavelmente simples. Chegava-se às decisões por meio de “discussões cara-a-
cara”; havia “poucas posses pessoais” e não havia “nenhuma liderança política 
formal ou especialização econômica forte”. Diamondconclui que, infelizmente, é 
apenas dentro de tais agrupamentos primordiais que humanos alguma vez 
alcançaram algum grau significativo de igualdade social. 
Para Diamond e Fukuyama, assim como para Rousseau alguns séculos antes, o que 
põe um fim naquela igualdade – em toda a parte e para sempre – foi a invenção da 
agricultura e dos níveis populacionais mais altos que ela sustentou. A agricultura 
causou a transição de “bandos” para “tribos”. A acumulação de excedente de 
alimentos sustentou o crescimento populacional, levando algumas “tribos” a se 
desenvolver em sociedades hierarquizadas conhecidas como “chefaturas”. 
Fukuyama pinta um quadro quase bíblico, um abandono do Éden: “Conforme 
minúsculos bandos de seres humanos migraram e se adaptaram a diferentes 
ambientes, eles começaram a sair do estado de natureza ao desenvolver novas 
instituições sociais”. Eles fizeram guerras por recursos. Aquelas sociedades, 
desengonçadas e púberes, estavam à procura de encrenca. 
Era o momento de crescer, o tempo certo para escolher uma liderança adequada. 
Em pouco tempo, chefes se declararam reis, até mesmo imperadores. Não havia 
sentido em resistir. Tudo isso se tornou inevitável assim que os humanos adotaram 
formas complexas e grandes de organização. Mesmo quando os líderes começaram 
a agir de formas ruins – surrupiar o excedente agrícola para favorecer seus parentes 
e asseclas, fazer com que os estatutos sociais se tornassem permanentes e 
hereditários, coletar como troféus crânios e haréns de meninas escravas, ou 
arrancar o coração de rivais com facas de obsidiana – não haveria retorno. “As 
grandes populações”, opina Diamond, “não podem funcionar sem líderes que tomem 
decisões, executivos que as implementam e burocratas que administram as decisões 
e as leis. Infelizmente, para todos vocês leitores que são anarquistas e sonham em 
viver sem qualquer Estado governante, estas são as razões pelas quais seu sonho é 
irreal: vocês terão de encontrar um minúsculo bando ou tribo disposto a aceita-los, 
onde ninguém é um estranho e onde reis, presidentes e burocratas são 
desnecessários”. 
Uma conclusão deplorável, não apenas para anarquistas, mas para qualquer um que 
algum dia se perguntou se haveria alguma alternativa para o atual status quo. Mas a 
coisa mais notável é que, a despeito do tom arrogante, tais pronunciamentos não se 
baseiam em qualquer tipo de evidência científica. Não há razão para acreditar que 
grupos em pequena escala sejam especialmente dispostos a serem igualitários, ou 
que os de grande escala devam necessariamente ter reis, presidentes ou 
burocracias. Esses são apenas preconceitos apresentados como fatos. 
No caso de Fukuyama e Diamond, pode-se, pelo menos, notar que ambos nunca 
receberam treinamento nas disciplinas relevantes (o primeiro é um cientista 
político, o outro tem um doutorado em fisiologia da vesícula biliar). Ainda assim, 
quando antropólogos e arqueólogos se arriscam a compor narrativas “em um 
quadro geral”, eles têm a estranha tendência a concluir seus ensaios com alguma 
pequena variação daquela de Rousseau. Em The Creation of Inequality: How our 
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Prehistoric Ancestors Set the Stage for Monarchy, Slavery, and Empire, Kent Flannery 
e Joyce Marcus, dois acadêmicos eminentemente qualificados, apresentam cerca de 
quinhentas páginas com estudos de caso etnográficos e arqueológicos tentando 
resolver o enigma. Eles admitem que nossos ancestrais da Idade do Gelo tinham 
alguma familiaridade com instituições hierárquicas e servidão, mas insistem que 
eles as vivenciaram principalmente em suas relações com o sobrenatural (espíritos 
ancestrais e coisas afins). A invenção da agricultura, eles propõem, levou à ascensão 
de “clãs” demograficamente extensos ou “grupos de parentesco” e, conforme isso foi 
feito, o acesso aos espíritos e aos mortos se tornou uma rota para poder terreno 
(como exatamente, nunca fica claro). De acordo com Flannery e Marcus, o próximo 
grande passo no caminho da desigualdade veio quando certos membros dos clãs de 
talento ou renome incomuns – curandeiros e guerreiros habilidosos, ou outros tipos 
de figuras super esforçadas – conseguiram o direito de transmitir seus estatutos 
para seus descendentes, independentemente dos talentos e habilidades desses 
últimos. Isso definitivamente plantou as sementes e significou que, daí para frente, 
era só uma questão de tempo até que surgissem as cidades, a monarquia, a 
escravidão e o império. 
A coisa curiosa sobre o livro de Flannery e Marcus é que apenas com o nascimento 
de Estados e impérios eles realmente apresentam alguma evidência arqueológica. 
Todos os momentos realmente cruciais em seu relato sobre a “criação da 
desigualdade” se apoiam, contrariamente, em descrições relativamente recentes de 
grupos de pequena escala de caçadores-coletores, pastores e agricultores, como os 
hadzas da Grande Fenda na África oriental, ou os nambiquaras da Floresta 
Amazônica. Relatos sobre tais “sociedades tradicionais” são tratados como se 
fossem janelas para o passado paleolítico ou neolítico. O problema é que eles não 
são nada do tipo. Os hadzas ou os nambiquaras não são fósseis vivos. Eles estiveram 
em contato com Estados e impérios, saqueadores e comerciantes por milênios, e as 
instituições sociais deles foram decisivamente moldadas pelas tentativas de se 
relacionar com eles ou evitá-los. Apenas a Arqueologia pode nos dizer o que, se 
houver algo, eles têm em comum com sociedades pré-históricas. Assim, enquanto 
Flannery e Marcus oferecem vários tipos de intuições interessantes a respeito de 
como as desigualdades podem ter aparecido em sociedades humanas, eles nos dão 
poucas razões para acreditar que essa foi a forma que isso de fato aconteceu. 
Finalmente, vamos levar em consideração Foragers, Farmers, and Fossil Fuels: How 
Human Values Evolve de Ian Morris. Morris persegue um projeto intelectual 
levemente diferente: colocar os achados da Arqueologia, da História Antiga e da 
Antropologia em diálogo com o trabalho de economistas, como Thomas Pikety, 
sobre as causas da desigualdade no mundo moderno, ou o trabalho mais orientado 
para políticas governamentais de Sir Tony Atkinson, Inequality: What can be Done?. 
O “tempo profundo” da história humana, Morris afirma, tem algo a nos dizer sobre 
tais questões – mas apenas se nós estabelecermos primeiro uma medida uniforme 
de desigualdade aplicável através de todo a duração desse tempo. Ele consegue isso 
por meio da tradução dos valores dos caçadores-coletores da Idade do Gelo e 
agricultores neolíticos para termos familiares aos economistas dos dias de hoje, e 
em seguida os usa para estabelecer coeficientes de Gini, ou índices formais de 
desigualdade. No lugar das desigualdades espirituais ressaltadas por Flannery e 
Marcus, Morris nos dá uma visão inapelavelmente materialista, dividindo a história 
humana nos três grandes F’s do título do livro.1Todas as sociedades, ele sugere, tem 
https://www.eurozine.com/como-mudar-o-curso-da-historia-humana/#footnote-1
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um nível ótimo de desigualdade social – um “nível espiritual” embutido para usar o 
termo de Pickett e Wilkinson – que é apropriado para seus modos predominantes 
de extração de energia. 
Em um artigo de 2015 para o New York Times, Morris, na verdade, nos dá números, 
receitas primordiais quantificadas em dólares americanos e fixadas em relação aos 
valores correntes de 1990. 2Ele também pressupõe que os caçadores-coletores da 
primeira Idade do Gelo vivessem em sua maior parte em minúsculos bandos móveis. 
Como resultado, eles consumiam muito pouco, o equivalente, ele sugere, a cerca de 
U$1,10 por dia. Consequentemente, eles também apresentariamum coeficiente de 
Gini de cerca de 0,25 – isto é, um nível quase tão baixo quanto é possível ir – uma 
vez que há pouco excedente ou capital que pudesse ser tomado por alguma possível 
elite. Sociedades agrárias – e para Morris isso inclui tudo, desde Çatalhöyük, a aldeia 
neolítica de 9.000 anos atrás, até a China de Kublai Khan ou a França de Luís XIV – 
eram mais populosas e bem sucedidas, com um consumo médio entre U$1.50-$2.20 
por dia por pessoa, e uma propensão à acumulação de excedentes de riqueza. Mas a 
maioria das pessoas trabalhava ainda mais duro, sob condições claramente 
inferiores, de forma que sociedades agrárias tenderiam a níveis muito maiores de 
desigualdade. 
Sociedades com combustível fóssil deveriam ter transformado tudo isso ao nos 
libertar dos esforços do trabalho manual e ao nos levar de volta na direção de 
coeficientes de Gini mais razoáveis, mais próximos daqueles dos ancestrais 
caçadores-coletores – e por um tempo pareceu que isso estava começando a 
acontecer, mas por alguma estranha razão, que Morris não entende completamente, 
as coisas entraram novamente em marcha ré, e a riqueza está novamente sendo 
sugada e caindo nas mãos da minúscula elite global. 
Se os desdobramentos da história econômica nos últimos 15.000 anos e a vontade 
popular servem de algum tipo de guia, o nível “correto” de desigualdade após o 
imposto de renda parece se localizar entre 0,25 e 0,35, e o nível de desigualdade de 
riqueza entre 0,70 e 0,80. Muitos países estão neste momento no limite superior 
destas faixas ou acima delas, o que sugere que o senhor Piketty está de fato correto 
ao prever problemas futuros. 
Está claramente na ordem do dia invencionices tecnocráticas! 
Deixemos as prescrições de Morris de lado e olhemos apenas para uma cifra: a renda 
paleolítica de U$ 1,10 por dia. De onde exatamente ela veio? Aparentemente, o 
cálculo está baseado no valor calórico de consumo alimentar diário. Mas se estamos 
comparando isso às rendas diárias de hoje, não deveríamos também incluir na conta 
todas as outras coisas que os caçadores-coletores conseguiam de graça, mas pelas 
quais nós mesmos temos de pagar: segurança, resolução de litígios, educação 
primária, cuidado dos mais velhos, medicina, todos gratuitos, sem mencionar os 
custos do entretenimento, da música, da narrativa de histórias, e dos serviços 
religiosos? Mesmo quando se trata de comida, nós devemos considerar a qualidade: 
afinal, nós estamos falando de uma produção 100% orgânica,3lavada com a mais 
pura água mineral de fontes naturais. Muito da renda contemporânea é absorvida 
por hipotecas e aluguéis, mas se considerarmos os preços das melhores áreas 
reservadas para acampamento no Paleolítico ao longo da Dordonha ou do Vézère, 
sem mencionar as valiosíssimas aulas de pintura em rochas murais e de escultura 
https://www.eurozine.com/como-mudar-o-curso-da-historia-humana/#footnote-2
https://www.eurozine.com/como-mudar-o-curso-da-historia-humana/#footnote-3
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em marfim – e todos aqueles casacos de pele! Certamente tudo isso deve custar 
insanamente acima daqueles U$ 1,10 por dia, mesmo em dólares de 1990. Não é por 
acaso que Marshall Sahlins se referia aos caçadores-coletores como “a sociedade 
afluente original”. Uma vida dessas hoje não seria barata. 
Isso tudo é assumidamente um pouco tolo, mas é esse mesmo o nosso ponto: ao se 
reduzir a história do mundo a coeficientes de Gini, necessariamente se sucederão 
coisas tolas. E também coisas deprimentes. Morris ao menos demonstra que algo 
está fora do lugar com os recentes aumentos crescentes da desigualdade global. Em 
contraste, Walter Scheidel levou o estilo Piketty de interpretações da história 
humana até as últimas e infelizes consequências em seu livro de 2017, The Great 
Leveler: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First 
Century, chegando à conclusão de que não há realmente nada que se possa fazer com 
relação à desigualdade. A Civilização invariavelmente coloca uma pequena elite no 
poder que vai comendo cada vez mais e mais do bolo. A única coisa que em qualquer 
época foi capaz de os derrubar foi a catástrofe: guerras, doenças, alistamento em 
massa, sofrimento e morte indiscriminados. Medidas parciais nunca funcionaram. 
Então, se não se deseja voltar a viver em cavernas, ou morrer em um holocausto 
nuclear (que também se pressupõe que resulte nos sobreviventes vivendo em 
cavernas), é necessário aceitar a existência de Warren Buffet e Bill Gates. 
A alternativa liberal? Flannery e Marcus, que abertamente se identificam com a 
tradição de Jean-Jacques Rousseau, terminam sua investigação com a seguinte 
sugestão benéfica: 
Uma vez nós tratamos deste assunto com Scotty McNeish, um arqueólogo que 
passou 40 anos estudando evolução social. Nós perguntamos como a sociedade 
poderia se tornar mais igualitária? Depois de uma breve consulta a seu velho amigo 
Jack Daniels, McNeish respondeu: “Coloque os caçadores e coletores no comando”. 
3. Mas nós realmente corremos para nossas correntes de ferro? 
A coisa realmente estranha no que diz respeito essas invocações sem fim do inocente 
Estado de Natureza de Rousseau e a queda do estado de graça é que Rousseau nunca 
afirmou que o Estado de Natureza realmente aconteceu. Era tudo um experimento 
intelectual. Em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre 
os homens (1754), de onde se origina a maior parte da narrativa que estamos 
contando (e recontando), ele escreveu: 
As pesquisas com as quais nós vamos nos debruçar nesta ocasião não devem ser 
vistas como verdades históricas, mas apenas como raciocínios hipotéticos e 
condicionais, mais adequados a ilustrar a natureza das coisas do que a mostrar a sua 
origem verdadeira. 
O “Estado de Natureza” de Rousseau nunca foi pensado para ser um estágio do 
desenvolvimento. Não era para ser o equivalente da “Selvageria”, que inicia os 
esquemas evolucionários dos filósofos escoceses como Adam Smith, Ferguson, 
Millar, ou, mais tarde, de Lewis Henry Morgan. Estes estavam interessados em 
definir níveis de desenvolvimento social e moral, correspondendo a transformações 
históricas nos modos de produção: caça e coleta, pastoralismo, agricultura, 
indústria. O que Rousseau apresentou foi, em contraste, mais próximo de uma 
parábola. Como ressaltou Judith Shklar, a renomada cientista política de Harvard, 
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Rousseau estava realmente tentando explorar o que ele considerava ser o paradoxo 
da Política humana: que, de alguma forma, nosso impulso inato para a liberdade nos 
leva, repetidamente, a uma “marcha espontânea em direção à desigualdade”. Nas 
palavras do próprio Rousseau: “Todos correram para suas correntes de ferro, 
acreditando assegurar sua própria liberdade, pois, embora tivessem razão suficiente 
para ver as vantagens das instituições políticas, eles não tinham a experiência 
necessária para prever os perigos que dali viriam”. O imaginário Estado de Natureza 
é apenas uma forma de ilustrar o argumento. 
Rousseau não era um fatalista. O que os seres humanos fazem, assim pensava, eles 
podem desfazer. Nós poderíamos nos libertar das correntes, só não seria fácil. Shklar 
sugere que a tensão entre “possibilidade e probabilidade” (a possibilidade da 
emancipação dos seres humanos, a probabilidade de que nós nos coloquemos 
novamente sob alguma forma de servidão voluntária) era a força impulsora central 
dos escritos sobre desigualdade de Rousseau. Tudo isso pode parecer um pouco 
irônico uma vez que, depois da Revolução Francesa, muitos críticos conservadores 
responsabilizaram pessoalmente Rousseau pela guilhotina. O que trouxe o Terror, 
eles diziam, foram precisamente a sua fé ingênua na bondade inata da humanidade 
e sua crença que uma ordem social mais igualitária poderia simplesmenteser 
imaginada por intelectuais e imposta sobre a “vontade geral”. Mas pouquíssimos 
dentre aqueles personagens do passado, agora ridicularizados como românticos e 
utópicos, eram realmente ingênuos. Karl Marx, por exemplo, mantinha que o que 
nos faz humanos é nosso poder de reflexão imaginativa – diferentemente das 
abelhas, nós imaginamos as casas nas quais gostaríamos de viver e só então 
começamos a construí-las – mas ele também acreditava que não se poderia fazer o 
mesmo com a sociedade, tentando impor sobre ela um modelo arquitetônico. Fazer 
isso seria cometer o pecado do “socialismo utópico”, pelo qual ele só nutria 
desprezo. Em lugar disso, revolucionários deveriam apreender o sentido das forças 
estruturais mais amplas que moldavam o curso da história mundial e fazer uso das 
suas contradições subjacentes: por exemplo, o fato de que indivíduos proprietários 
de fábricas precisam desfalcar seus trabalhadores para competir, mas se todos eles 
forem muito bem sucedidos ao fazê-lo, ninguém será capaz de pagar pelo que as 
fábricas produzem. Ainda assim, tamanho é o poder de dois mil anos de Escrituras 
que, mesmo quando realistas teimosos começam a falar sobre o vasto panorama da 
história humana, eles retornam a alguma variação do Jardim do Éden – a Queda do 
Estado de Graça (usualmente, como no Gênesis, por causa de uma busca 
inconsequente pelo Conhecimento); a possibilidade de Redenção. Os partidos 
políticos marxistas rapidamente desenvolveram sua própria versão da narrativa, 
fundindo o Estado de Natureza de Rousseau e a ideia de desenvolvimento por etapas 
do Iluminismo escocês. O resultado foi uma fórmula para a história do mundo que 
começa com o “comunismo primitivo”, superado pela aurora da propriedade 
privada, mas que está destinado a retornar algum dia. 
Devemos concluir que os revolucionários, mesmo com todos os seus ideais 
visionários, não tenderam a ser particularmente imaginativos, especialmente 
quando se tratou de vincular o passado, o presente e o futuro. Todos insistem em 
continuar contando a mesma narrativa. Provavelmente não é coincidência que, hoje, 
os movimentos revolucionários mais vitais e criativos na aurora do novo milênio – 
os zapatistas de Chiapas e os Curdos de Rojava são apenas os exemplos mais óbvios 
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– são aqueles que simultaneamente se enraízam em um passado profundamente 
tradicional. Em lugar de imaginar alguma utopia primordial, eles podem se 
alimentar de uma narrativa mais complexa e mista. De fato, parece haver um 
reconhecimento crescente, em círculos revolucionários, de que liberdade, tradição 
e imaginação sempre estiveram e estarão entrelaçadas de maneiras que nós não 
entendemos completamente. É hora do resto de nós os alcançarmos e começarmos 
a considerar o que seria uma versão não-bíblica da história da humanidade. 
4. Como o curso da história (passada) pode mudar agora 
O que, então, a pesquisa arqueológica e antropológica realmente nos ensinou do 
tempo de Rousseau até agora? 
Bom, a primeira coisa é que perguntar-se sobre “as origens da desigualdade social” 
é provavelmente o lugar errado para se começar. Com efeito, nós não temos 
nenhuma ideia de como era a maior parte da vida social humana antes do início do 
chamado Paleolítico superior. Muito da evidência disponível inclui fragmentos 
dispersos de rochas, ossos e alguns outros materiais duráveis trabalhados. 
Diferentes espécies de hominídeos coexistiam; não está claro se qualquer analogia 
etnográfica seria aplicável. A imagem começa a ficar um pouco mais focalizada 
durante o próprio Paleolítico superior, que começa por volta de 45.000 anos atrás e 
engloba o ápice da glaciação e do esfriamento global (c. 20.000 anos atrás) 
conhecido como Último Máximo Glacial. Esta última grande Era do Gelo foi seguida 
pelo início de condições mais quentes e pela retração gradual das camadas de gelo, 
levando à nossa atual época geológica, o Holoceno. Condições mais clementes se 
seguiram, criando o estágio no qual o Homo Sapiens – tendo já colonizado muito do 
Velho Mundo – completou sua marcha para o Novo, alcançando as costas 
meridionais das Américas por volta de 15.000 anos atrás. 
E o que nós realmente sabemos sobre este período da história humana? Muito das 
evidências substanciais mais remotas sobre a organização social humana no 
Paleolítico deriva da Europa, onde nossa espécie se estabeleceu ao lado do Homo 
neanderthalensis, antes da extinção deste último, por volta de 40.000 a.C. (muito 
provavelmente a concentração de dados nesta parte do mundo reflete mais uma 
distorção histórica da investigação arqueológica, do que qualquer coisa de 
excepcional no que diz respeito à própria Europa). Naquela época, e durante o 
Último Máximo Glacial, as partes habitáveis da Europa na Idade do Gelo pareciam 
mais como o Parque Nacional de Serengeti na Tanzânia do que qualquer habitat 
europeu atual. Ao sul das camadas de gelo, entre a tundra e os litorais florestais do 
Mediterrâneo, o continente estava dividido entre vales e estepes cheios de animais 
para caça, atravessados sazonalmente por rebanhos migratórios de veados, bisões 
e mamutes lanosos. Estudiosos da pré-história vem há décadas chamando a atenção 
– com, aparentemente, pouco efeito – que os grupos humanos habitando esses 
ambientes não tinham nada em comum com aqueles bandos alegremente simples, 
igualitários, de caçadores-coletores, ainda rotineiramente imaginados como sendo 
nossos ancestrais remotos. 
Para começar, há a existência incontestável de alguns ricos enterramentos, datando 
desde as profundezas da Idade do Gelo. Alguns destes, como as covas de 25.000 anos 
de idade de Sungir, a leste de Moscou, são conhecidas há muitas décadas e são 
correspondentemente famosas. Felipe Fernandez-Armesto, que resenhou Creation 
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of Inequalty para o Wall Street Journal, 4expressa um compreensível espanto com a 
omissão: “embora eles saibam que o princípio hereditário precede a agricultura, o 
Sr. Flannery e a Sra. Marcus não conseguem se livrar da ilusão rousseauniana de ele 
teria começado com a vida sedentária. Consequentemente, eles desenham um 
mundo sem herança de poder antes de cerca de 15.000, ignorando, ao mesmo 
tempo, um dos mais importantes sítios arqueológicos para esse propósito”. Pois, 
enterrado no permafrost sob o assentamento paleolítico de Sungir estava a cova de 
um homem de meia idade, como observa Fernandez Armesto, com “sinais 
estonteantes de honra: braceletes de marfim de mamute polido, uma diadema ou 
chapéu de dentes de raposa e quase 3.000 contas de marfim laboriosamente 
esculpidas e polidas. Alguns metros dali, em uma cova idêntica, “estavam duas 
crianças, com cerca de 10 e 13 anos de idade, respectivamente, adornadas com 
presentes funerários comparáveis – incluindo, no caso da mais velha, 5.000 contas 
tão finas quanto as do adulto (embora levemente menores) e uma lança maciça 
esculpida a partir de marfim”. 
 
Sítio funerário do Paleolítico Superior em Sungir, Rússia. Fonte Wiki Commons. 
Tais achados parecem não ter um lugar significativo em quaisquer dos livros 
considerados até agora. Menosprezá-los, ou reduzi-los a notas de rodapé, seria mais 
perdoável se Sungir fosse um achado isolado. Não é. Enterramentos ricos 
comparáveis são agora verificados desde os abrigos nas rochas e assentamentos 
abertos do Paleolítico superior através de toda a Eurasia ocidental, do rio Don até a 
Dordonha. Entre eles nós encontramos, por exemplo, a Dama de Saint-Germain-la-
Rivière, com 16.000 anos de idade, revestida de ornamentos feitos de dentes de 
jovens cervos caçados a 300 km de distância, no país Basco; e os enterramentos da 
costa ligúria – tão antigos quanto Sungir – incluindo “O Príncipe”, um jovem homem 
cujos enfeites incluem um cetro de pederneira exótica, bastões de chifres de alce e 
um cocar ornado comconchas perfuradas e dentes de veado. Tais achados 
apresentam estimulantes desafios de interpretação. Fernandez-Armesto está 
correto ao dizer que estas são provas de “poder hereditário”? Qual seria o estatuto 
social desses indivíduos durante suas vidas? 
Não menos intrigante é a evidência esporádica mas tentadora de que a arquitetura 
monumental data do Último Máximo Glacial. A ideia de que alguém possa medir a 
“monumentalidade” em termos absolutos é certamente tão tola quanto a ideia de 
https://www.eurozine.com/como-mudar-o-curso-da-historia-humana/#footnote-4
https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Sungir#/media/File:Sunghir-tumba_paleol%C3%ADtica.jpg
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quantificar o gasto em dólares e centavos na Idade do Gelo. É um conceito relativo, 
que faz sentido apenas dentro de uma escala particular de valores e experiências 
anteriores. O Pleistoceno não tem equivalentes diretos na escala das Pirâmides de 
Gizé ou do Coliseu romano. Mas ele tem edifícios que, pelos padrões da época, só 
poderiam ser considerados trabalhos públicos, implicando projetos sofisticados e a 
coordenação do trabalho em uma escala impressionante. Entre eles estão as 
chocantes “casas mamute”, construídas com couro estendido sobre armações feitas 
de presas, exemplos – datando desde 15.000 anos atrás – que podem ser 
encontrados ao longo do transepto da franja glacial que alcança todo o caminho da 
atual Cracóvia até Kiev. 
Ainda mais espantosos são os templos rochosos de Göbekli Tepe, escavados ao longo 
de 20 anos atrás na fronteira entre a Turquia e a Síria e ainda objetos de um furioso 
debate científico. Datados de cerca de 11.000 anos atrás, precisamente no final da 
Idade do Gelo, eles incluem pelo menos 20 recintos megalíticos construídos sobre 
os agora desérticos flancos das planícies de Harã. Cada um deles era construído com 
pilares de pedra calcária com mais de 5m de altura e pesando até uma tonelada 
(padrões dignos Stonehenge, mas 6.000 anos antes). Quase todos pilares em Göbekli 
Tepe são notáveis obras de arte, com inscrições em relevo de animais ameaçadores 
se projetando da superfície, com seus genitais masculinos ferozmente expostos. 
Aves de rapina esculpidas aparecem combinadas com imagens de cabeças humanas 
decapitadas. As esculturas comprovam habilidades escultóricas, sem dúvida 
elaboradas num meio mais maleável que seria a madeira (outrora amplamente 
disponível nas bases das Montanhas Tauro), antes de serem aplicadas ao leito 
rochoso de Harã. Intrigantemente e a despeito do seu tamanho, cada uma dessas 
estruturas maciças teve um tempo de vida relativamente curto, concluído com um 
grande banquete e o preenchimento rápido de suas paredes: hierarquias elevadas 
aos céus, só para serem imediatamente demolidas. E os protagonistas neste desfile 
pré-histórico com banquetes, construções e destruições, eram caçadores-coletores, 
de acordo com nossos melhores conhecimentos, vivendo apenas com recursos 
selvagens. 
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As escavações em Göbekli Tepe. Fonte: Flickr 
O que, então, devemos retirar disso tudo? Uma resposta dos estudiosos tem sido 
abandonar completamente a ideia de uma Idade do Ouro igualitária, e concluir que 
o autointeresse racional e a acumulação de poder são forças duradouras por trás do 
desenvolvimento social humano. Mas isso também não funciona. As evidências para 
desigualdade institucional nas sociedades da Idade do Gelo, seja na forma de 
grandes enterramentos, seja na de construções monumentais, é apenas esporádica. 
Os enterramentos aparecem separados literalmente por séculos e por centenas de 
quilômetros. Mesmo se responsabilizarmos a irregularidade da evidência por isso, 
ainda temos de nos perguntar por que a evidência é tão irregular, afinal, se qualquer 
um desses “príncipes” da Idade do Gelo tivessem se comportado como, digamos, os 
“príncipes” da Idade do Bronze, estaríamos encontrando fortificações, armazéns, 
palácios – todos os aparatos de Estados emergentes. Em lugar disso, ao longo de 
dezenas de milhares de anos, nós vemos monumentos e magníficos enterramentos, 
mas pouca coisa que indique o desenvolvimento de sociedades hierarquizadas. Além 
disso, há outros fatores, ainda mais estranhos, como o fato de que a maior parte 
desses funerais “principescos” incluem indivíduos com notáveis anomalias físicas, 
que hoje seriam considerados gigantes, corcundas ou anões. 
Uma observação mais ampla da evidência arqueológica sugere uma chave para 
desvendar o dilema. Ela está nos ritmos sazonais da vida social pré-histórica. A 
maior parte dos sítios paleolíticos discutidos até aqui estão associados a evidências 
de períodos anuais ou bienais para reuniões, conectados à migração dos rebanhos 
dos animais de caça – sejam mamutes lanosos, bisões das estepes, renas, ou (no caso 
de Göbekli Tepe) gazelas – assim como ciclos de pesca e colheita de nozes. Em 
momentos menos favoráveis do ano, sem dúvida, pelo menos alguns dos nossos 
ancestrais da Idade do Gelo realmente viviam e caçavam e coletavam em bandos 
minúsculos. Mas há evidências esmagadoras mostrando que em outros momentos 
https://www.flickr.com/photos/rstiller/6372415473/in/photolist-aH7i7i-aH7g2z-aH7m6p-aH7pZR-aH7hd4-oQsomZ-oNGgdQ-oNGoPm-pHZf1p-pHLi2G-qELkAa-oyerhi-pHM7ps-dQCZ1W-dQCXU9-dQxmK4-oNGmcY-pHKZPL-pHZJfR-oQJ7S4-pHLChq-qEB1AR-oQGFBd-pHLbAW-qEBiY6-oQsoTv-dQxnMr-oyevM1-RBTbBt-dQxoXn-dQxpCK-dQxn2z-dQxoNc-nfctQM-qfJB8f-dQxnjX-dQCX6Y-dQxqa2-C43cN7-dQxnZ6-dQCZFJ-oyfcic-dQxnep-dQxpoi-dQD21G-nfcwxR-oQsqrv-pJ12pv-WgttUH-XsUSWJ
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eles se congregavam em massa dentro do tipo de “micro-cidades” encontradas por 
Dolní Věstonice na bacia da Morávia ao sul de Brno, banqueteando-se com a 
superabundância de recursos selvagens, e praticando complexos rituais, 
empreendimentos artísticos ambiciosos e comércio de longa distância com 
minerais, conchas marinhas e peles de animais. Os equivalentes europeus ocidentais 
destes sítios de reuniões sazonais seriam os grandes abrigos rochosos do Périgord 
francês e da costa da Cantábria, com suas famosas pinturas e inscrições, que 
similarmente formavam parte de uma rota anual de encontro e dispersão. 
Tais padrões de vida social persistiram até muito tempo depois da “invenção da 
agricultura” supostamente ter mudado tudo. Novas evidências têm mostrado que 
alternações desse tipo podem ser a chave para entender os famosos monumentos 
neolíticos das planícies de Salisbury, e não apenas em termos do simbolismo do 
calendário. Stonehenge, ao que parece, era apenas a última em uma sequência bem 
longa de estruturas rituais, erigidas em madeira assim como em pedra, conforme as 
pessoas convergiam para a planície vindo de cantos remotos das Ilhas Britânicas, 
em momentos significativos do ano. Escavações cuidadosas têm mostrado que 
muitas dessas estruturas – agora plausivelmente interpretadas como monumentos 
aos progenitores de poderosos dinastias neolíticas – eram desmontadas depois de 
poucas gerações de suas construções. Ainda mais espantosamente, esta prática de 
erigir e desmontar grandes monumentos coincide com um momento em que os 
povos da Britânia, tendo adotado a economia agrária neolítica da Europa 
continental, parecem ter deixado para trás pelo menos um aspecto crucial dela, 
abandonando a produção de cereais e revertendo – por volta de 3.000 a.C. – para a 
coleta de castanhas como fonte básica de alimentos. Mantendo seus rebanhos de 
gado, com os quais eles se banqueteavam sazonalmente na região próxima de 
Durrington Walls, os construtores de Stonehenge provavelmente não eram nem 
caçadores-coletores, nem agricultores, mas sim um tipo de meio-termo. E, se algum 
tipo de corte real tinha domínio sobre a temporada festiva, quando eles se 
encontravam em grandes números, ela necessariamente teria de estar dissolvida 
durante a maior parte do ano, quando as mesmas pessoas retornavam ao estado de 
dispersão por todaa ilha. 
Por que essas variações sazonais são importantes? Porque elas revelam que, desde 
o início, os seres humanos estavam experimentando de forma consciente com 
diferentes possibilidades sociais. Antropólogos descrevem sociedades desse tipo 
como possuindo uma “morfologia dupla”. Marcel Mauss, escrevendo no começo do 
século XX, observou que a sociedade dos inuítes circumpolares, “assim como muitas 
outras sociedades…possui duas estruturas sociais, uma no verão, outra no inverno, 
e que ela tem paralelamente dois sistemas de leis e de religião”. Nos meses de verão, 
os inuítes se dispersavam em pequenos bandos patriarcais em busca de pesca em 
água fresca e renas, cada um deles sob a autoridade de um único ancião homem. A 
propriedade era possessivamente demarcada e os patriarcas exerciam um poder 
coercitivo, algumas vezes até mesmo tirânico, sobre seus semelhantes. Mas durante 
os longos meses de inverno, quando as focas e as morsas se arrebanhavam pelos 
litorais do Ártico, outra estrutura social inteira assumia o controle conforme os 
inuítes se reuniam para construir grandes casas de encontro de madeira, ossos de 
baleias e pedras. Dentro delas, as virtudes da igualdade, altruísmo e vida coletiva 
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prevaleciam; a riqueza era compartilhada; maridos e esposas trocavam de parceiros 
sob a égide de Sedna, a Deusa das Focas. 
Outro exemplo eram os caçadores coletores nativos da costa noroeste do Canadá, 
para quem o inverno – não o verão – era o tempo em que a sociedade se cristalizava 
em sua forma mais desigual, de forma espetacular. Palácios feitos de placas de 
madeira apareciam ao longo da costa da Columbia Britânica, com nobres 
hereditários sendo cortejados por pessoas comuns e escravos, organizando os 
grandes banquetes conhecidos como potlatch. Contudo, essas cortes aristocráticas 
se dispersavam para o trabalho na temporada de pesca durante o verão, se 
transformando em formações menores de clãs, ainda com hierarquias, mas com uma 
estrutura diferente e menos formal. Neste caso, as pessoas ainda adotavam nomes 
diferentes durante o verão e o inverno, literalmente se transformando em outras 
pessoas, dependendo da época do ano. 
Talvez o mais impressionante, em termos de reversões políticas, sejam as práticas 
das confederações tribais do século XIX nos Grandes Planaltos Americanos – ex-
agricultores ou agricultores ocasionais que adotavam uma vida nômade de 
caçadores. No fim do verão, pequenos e móveis bandos de Cheyenne e Lakota iriam 
se congregar em grandes assentamentos para organizar as preparações logísticas 
para a caçada de búfalos. Nesse momento mais sensível do ano, eles escolhiam uma 
força policial que detinha plenos poderes coercitivos, incluindo o direito de 
aprisionar, chibatar, ou multar quaisquer ofensores que pusessem os 
procedimentos em perigo. E ainda assim, como o antropólogo Robert Lowie 
observou, esse “inequívoco autoritarismo” operava em uma base estritamente 
temporária e sazonal, sendo substituído por formas mais ‘anárquicas’ de 
organização uma vez que a temporada de caça – e os rituais coletivos que a seguiam 
– estivesse encerrada. 
A academia nem sempre avança. Algumas vezes ela anda para trás. Cem anos atrás, 
a maior parte dos antropólogos entendia que aqueles que vivem principalmente de 
recursos naturais e selvagens não estavam, normalmente, restritos a “bandos” 
minúsculos. Essa ideia é realmente um produto dos anos 1960, quando 
bosquímanos Kalahari e pigmeus Mbuti se tornaram a imagem preferida da 
humanidade primordial tanto para a audiência da televisão quanto para 
pesquisadores. Como resultado, nós vimos o retorno das etapas evolucionárias, não 
tão diferentes da tradição do Iluminismo escocês: essa é, por exemplo, a fonte de 
onde vem a inspiração de Fukuyama, quando eles escreve que a sociedade está 
evoluindo estavelmente de “Bandos”, para “Tribos”, “Chefaturas” e finalmente o tipo 
de “Estados” complexos e estratificados em que nós vivemos hoje – usualmente 
definidos pelo monopólio “do uso legítimo da força coercitiva”. Por essa lógica, 
contudo, os Cheyenne e os Lakota deveriam estar “evoluindo” de bandos 
diretamente em Estados a cada novembro, e então “involuindo” outra vez na 
primavera. A maior parte dos antropólogos agora reconhece que essas categorias 
são inadequadas, e ainda assim, ninguém propôs uma forma alternativa para pensar 
sobre a história mundial em termos mais amplos. 
De forma bem independente, as evidências arqueológicas sugerem que nos 
ambientes altamente sazonais da última Idade do Gelo, nossos ancestrais remotos 
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estavam se comportando de formas amplamente similares: alternando entre 
diferentes arranjos sociais, permitindo o aparecimento de estruturas autoritárias 
durante certas épocas do ano, sob a condição de que elas não poderiam durar; a 
partir do entendimento de que nunca qualquer ordem social em particular seria fixa 
ou imutável. Dentro da mesma população, seria possível, às vezes, viver no que 
pareceria ser, à distância, um bando ou uma tribo, e outras vezes, uma sociedade 
com muitas das características que nós identificamos agora com os Estados. Com tal 
flexibilidade institucional vem a capacidade de sair das fronteiras de qualquer 
estrutura social dada; de fazer e desfazer os mundos políticos em que vivemos. Se 
nada mais, isso ao menos explica os “príncipes” e “princesas” da última Idade do 
Gelo, que aparecem, em seu magnifico isolamento, como personagens de algum tipo 
de conto de fadas ou drama de época. Talvez eles fossem isso mesmo de forma quase 
literal. Se eles realmente reinaram, talvez tenha sido com os reis e rainhas de 
Stonehenge, apenas durante uma temporada. 
5. Tempo para repensar 
Os autores modernos tem a tendência de usar a pré-história como uma tela para 
trabalhar problemas filosóficos: os humanos são fundamentalmente bons ou maus, 
cooperativos ou competitivos, igualitários ou hierárquicos? Como resultado, eles 
também tendem a escrever como se 95% da história da nossa espécie, as sociedades 
humanas tivessem sido essencialmente iguais. Mas mesmo 40.000 anos é um 
período de tempo muito, muito longo. Parece inerentemente possível, e a evidência 
confirma, que os mesmos humanos pioneiros que colonizaram a maior parte do 
planeta também experimentaram uma enorme variedade de arranjos sociais. Como 
frequentemente era apontado por Claude Levi-Strauss, os Homo sapiens iniciais não 
eram apenas fisicamente iguais aos humanos modernos, eles também eram nossos 
pares intelectuais. Na verdade, a maioria era provavelmente mais consciente dos 
potenciais da sociedade do que as pessoas são em geral hoje em dia. Em lugar de 
ficar inertes em algum tipo de inocência primordial, até que de alguma forma o gênio 
da desigualdade fosse retirado da lâmpada, nossos ancestrais pré-históricos 
parecem ter tido sucesso em trazê-lo para fora e para dentro regularmente, 
restringindo a desigualdade a encenações de época, construindo deuses e reinos da 
mesma forma que faziam com seus monumentos, e então alegremente os 
desconstruindo uma vez mais. 
Se é assim, então a questão real não é “quais são as origens da desigualdade social?”, 
tendo vivido tanto tempo de nossa história variando entre diferentes sistemas 
políticos, mas sim “como foi que ficamos tão presos?”. Isso é bem distante da ideia 
de que as sociedades pré-históricas vagaram cegamente em direção a correntes 
institucionais que as aprisionaram. Também está bem longe das profecias 
desanimadoras de Fukuyama, Diamond, Morris e Scheidel, nas quais qualquer forma 
“complexa” de organização social significa necessariamente que elites minúsculas 
assumam o controle dos recursos fundamentais e comecem a espezinhar todas as 
outras pessoas. A maior parte das ciências sociais trata estes prognósticos sombrios 
como verdades auto-evidentes. Mas elas claramente não têm base. Então é razoável 
que nos perguntemos: quais outras preciosas verdades devem ser agoraatiradas na 
lata de lixo da história? 
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Um bom número, na verdade. Nos anos 1970, o brilhante arqueólogo David Clarke 
predisse que, com a pesquisa moderna, quase todos os aspectos do velho edifício da 
evolução humana, “as explicações sobre o desenvolvimento do homem moderno, 
domesticação, metalurgia, urbanização e civilização – podem se revelar como 
armadilhas semânticas e miragens metafísicas”. Aparentemente ele estava certo. 
Informações agora transbordam de todos os cantos do globo, baseada em 
cuidadosos trabalhos de campo com caráter empírico, técnicas avançadas de 
reconstrução climática, datação cronométrica e análises científicas de restos 
orgânicos. Os pesquisadores estão examinando materiais etnográficos e históricos a 
partir de uma nova luz. E quase toda essa nova pesquisa vai contra a narrativa 
familiar da história mundial. Ainda assim, as mais notáveis descobertas 
permanecem restritas ao trabalho de especialistas, ou têm de ser expostas à força 
por meio da leitura nas entrelinhas das publicações científicas. Vamos então 
concluir com algumas das nossas próprias manchetes: apenas algumas, para 
apresentar um pouco daquilo com que a nova, a emergente, história mundial está 
começando a se parecer. 
A primeira bomba na nossa lista diz respeito às origens e à difusão da agricultura. 
Não há mais qualquer apoio à visão de que ela marcou uma transição maior para as 
sociedades humanas. Naquelas partes do mundo em que animais e plantas foram 
inicialmente domesticados, não houve de fato qualquer “troca” discernível do 
caçador-coletor paleolítico para o agricultor neolítico. A “transição” de uma vida a 
partir de recursos naturais e selvagens para uma vida baseada na produção de 
alimentos levava, tipicamente, um período de tempo da ordem de três mil anos. 
Enquanto a agricultura permitia a possibilidade de uma concentração mais desigual 
de riqueza, na maioria dos casos, isso só começou a acontecer milênios depois do 
seu início. Nesse meio tempo, as pessoas em áreas tão distantes como a Amazônia e 
o Crescente Fértil, no Oriente Médio, experimentavam com diferentes amplitudes de 
práticas agrícolas, um “jogo agrário” se vocês quiserem, alternando anualmente 
entre modos de produção, da mesma forma que eles alternavam suas estruturas 
sociais. Além disso, a “difusão da agricultura” para áreas secundárias, como a Europa 
– tão frequentemente descrita em termos triunfalistas, como o início de um declínio 
inevitável na caça e na coleta – parece ter sido um processo altamente tênue, que 
algumas vezes falhava, levando ao colapso demográfico dos agricultores, não dos 
caçadores-coletores. 
Claramente não faz mais sentido usar sentenças como “a Revolução Agrária” ao lidar 
com processos com duração e complexidade tão desmedidas. Uma vez que não 
houve um estado edênico, do qual os primeiros agricultores teriam dado seus 
primeiros passos no caminho da desigualdade, faz ainda menos sentido falar da 
agricultura como a demarcação das origens da hierarquia e da propriedade privada. 
Pelo contrário, é entre as populações – os povos mesolíticos – que recusaram a 
agricultura ao longo dos séculos quentes do Holoceno inicial que nós encontramos 
um fortalecimento da estratificação; ao menos, se enterramentos opulentos, guerras 
predatórias e a construção de monumentos são sinais de alguma coisa. Em alguns 
dos casos, como no Oriente Médio, os primeiros agricultores parecem ter 
conscientemente desenvolvido formas alternativas de comunidade, que 
acompanhassem os modos de vida com trabalho mais intensivo. Essas sociedades 
neolíticas pareciam notavelmente igualitárias quando comparadas às dos vizinhos 
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caçadores coletores, com um aumento dramático na importância econômica e social 
das mulheres, claramente refletida na vida ritual e na arte (contraste-se aqui as 
representações femininas de Jericó e Çatalhöyük com as esculturas hiper-
masculinas de Göbekli Tepe). 
Outra bomba: “civilização” não chega em um pacote fechado. As primeiras cidades 
do mundo não emergiram simplesmente em um punhado de lugares, junto com 
sistemas de governo centralizado e controle burocrático. Na China, por exemplo, 
sabemos agora que, por volta de 2500 a.C., assentamentos de 300 hectares ou mais 
existiram nas partes inferiores do rio Amarelo, mais de mil anos antes da fundação 
da primeira dinastia real (Shang). Do outro lado do Pacífico, e mais ou menos na 
mesma época, centro cerimoniais de magnitude impressionante foram descobertos 
no vale do Rio Supe no Peru, notavelmente no sítio de Caral: restos enigmáticos 
de plazas e plataformas monumentais submergidas, quatro milênios mais antigas do 
que o Império Inca. Tais descobertas recentes indicam quão pouco ainda se sabe 
realmente sobre a distribuição e a origem das primeiras cidades, e quão mais antigas 
essas cidades podem ser em relação aos sistemas de governo autoritário e de 
administração letrada que outrora se presumiu serem necessárias para sua 
fundação. E nas terras mais estabelecidas do coração da urbanização – 
Mesopotâmia, o Vale do Indo, a Bacia do México – há evidências crescentes de que 
as primeiras cidades foram conscientemente organizadas em linhas igualitárias, 
com conselhos municipais mantendo autonomia significativa em relação aos 
governos centrais. Nos primeiros dois casos, cidades com sofisticadas 
infraestruturas cívicas floresceram durante mais de meio milênio, sem qualquer 
traço de enterramentos reais ou monumentos, exércitos permanentes ou quaisquer 
outros meios de coerção em larga escala, nem qualquer sugestão de controle 
burocrático direto sobre as vidas da maioria dos cidadãos. 
Não obstante Jared Diamond, não há absolutamente qualquer evidência de que 
estruturas de governo de cima para baixo são a consequência necessária de 
organizações em larga-escala. Não obstante Walter Scheidel, simplesmente não é 
verdade que classes governantes, uma vez estabelecidas, só podem ser retiradas do 
poder por meio de catástrofes. Para tomar apenas um exemplo bem documentado: 
por volta de 200 d.C. a cidade de Teotihuacan no vale do México, com uma população 
de 120.000 (uma das maiores do mundo na época), parece ter passado por uma 
transformação profunda, abandonando templos-pirâmides e sacrifícios humanos e 
se reconstruindo como uma vasta coleção de villas confortáveis, todas quase do 
mesmo tamanho. Ela permaneceu assim talvez por cerca de 400 anos. Mesmo na 
época de Cortés, o México central era ainda residência de cidades como Tlaxcala, 
governada por um conselho eleito no qual os membros eram periodicamente 
chibatados pelos cidadãos para serem lembrados de quem estava no comando em 
última instância. 
As peças estão todas aí para se criar uma história mundial inteiramente diferente. 
Na maior parte do tempo, nós estamos excessivamente cegos por nossos 
preconceitos para ver as implicações. Por exemplo, quase todo mundo hoje em dia 
insiste que a democracia participativa ou a igualdade social pode funcionar em uma 
pequena comunidade ou em um grupo de ativistas, mas não pode ser ampliada para 
qualquer coisa como uma cidade, uma região ou um Estado-nacional. Mas a 
evidência ante nossos olhos, se escolhermos olhar para ela, sugere o oposto. Cidades 
igualitárias, ou mesmo confederações regionais são lugares comuns do discurso 
histórico. Famílias e unidades domésticas 5 igualitárias não são. Uma vez que se 
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tome o veredito histórico, nós veremos que as perdas mais dolorosas de liberdades 
humanas começaram em pequena escala – no nível das relações de gênero, de 
grupos etários, da servidão doméstica – o tipo de relações que contém de uma vez 
só a maior intimidadee as formas mais profundas de violência estrutural. Se 
realmente queremos entender como inicialmente se tornou aceitável para alguns 
transformarem riqueza em poder e para outros terem de escutar que suas 
necessidades e suas vidas não importam, é aqui que devemos procurar. Aqui, 
também, nós prevemos, é onde vai ter de ser realizado o mais difícil trabalho para 
criar uma sociedade emancipada. 
Esta tradução em português é cortesia de Uiran Gebara da Silva. 
 
 
1 
NT: em português perde-se o trocadilho: Caçadores-coletores, 
Agricultores e Combustíveis fósseis. 
2 
‘To Each Age Its Inequality’ by Ian Morris. New York Times, 9 July 2015. 
Cf. https://www.nytimes.com/2015/07/10/opinion/to-each-age-its-inequality.html 
3 
NT: “organic Free range produce” no original. 
4 
‘It's Good To Have a King’ by Felipe Fernández-Armesto. Wall Street 
Journal, 10 May 2012. 
Cf. https://www.wsj.com/articles/SB10001424052702304363104577389944241796150 
5 
NT: household, que não tem uma tradução convencional na língua 
portuguesa. 
 
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https://www.nytimes.com/2015/07/10/opinion/to-each-age-its-inequality.html
https://www.eurozine.com/como-mudar-o-curso-da-historia-humana/#anchor-footnote-3
https://www.eurozine.com/como-mudar-o-curso-da-historia-humana/#anchor-footnote-4
https://www.wsj.com/articles/SB10001424052702304363104577389944241796150
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