Prévia do material em texto
CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE LEITURA E ESCRITA Cláudia Gewehr CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE LEITURA E ESCRITA 2ª Edição | 2022 3 APRESENTANDO O AUTOR CLÁUDIA GEWEHR A autora possui mestrado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e graduação em Letras, habilitação em Língua Portuguesa e Língua Inglesa e suas respectivas literaturas, pela Unilasalle. Atuou na Gestão Pedagógica do Ensino Fundamental e da Educação Infantil na Secretaria Municipal de Educação de Canoas/RS. Como professora convidada, atuou ainda nos cursos de Graduação e Pós-graduação da Unilasalle. Recentemente foi Coordenadora da Educação Básica do Estado do Rio Grande do Sul e Coordenadora Estadual de Etapas Finais do Programa Federal Pró-BNCC/MEC. Sua experiência se consolida na área da educação, com ênfase nos seguintes temas: alfabetização, letramento, discursos, avaliação, prática pedagógica e educação infantil. 4 SINOPSE Este e-book trata sobre a temática Concepções contemporâneas da leitura e escrita, buscando compreender como os fenômenos de comunicação e de linguagem contemporâneos estabelecem relação com o processo de leitura e escrita. Nesse sentido, aborda os conceitos de autoria e coautoria a fim de provocar reflexões acerca do contexto educacional atual. Além disso, discorre sobre o papel social da leitura para a construção da identidade. A proposta de estudo deste material objetiva, sobretudo, pensar sobre como organizar e o que privilegiar no tocante à leitura e à escrita, considerando a premissa de alfabetizar letrando como uma necessidade social. 5 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr 1. O Trabalho Escolar e a Linguagem na Contemporaneidade As crianças iniciam sua trajetória escolar por volta dos dois e três anos de idade. Nesse momento, têm seus primeiros contatos com a cultura escrita, por meio de desenhos, letras, palavras e textos. Essa relação desde esse período até o momento da alfabetização, por volta dos 6 a 8 anos, apresenta-se de diversas formas e finalidades. Conforme Colello (2004), a escrita seria a forma mais adequada de expressão. O registro gráfico que se concretiza no ato de escrever seria a extensão das diversas possibilidades comunicativas – por exemplo, a fala – que se adaptaram e organizaram numa nova linguagem. Não podemos negar que o mundo é gráfico. As experiências com a escrita, seja individualmente, seja coletivamente, são particulares para cada um de nós, porém cabe destacar o quanto na prática social tais experiências são mais ricas. Não se trata, no entanto, de desconsiderar o valor dos conhecimentos individuais, mas de entendê-los nas práticas de usos sociais, como destacou Britto (2005). Assim, apresentaremos as esferas de uso da leitura e da escrita nos contextos de inserção social correspondentes às diferentes formas de utilização da linguagem, cujos vínculos estão na cultura, na economia e na política. São sete esferas: da vida doméstica, da vida pessoal, da vida social, da informação e da participação, da vida profissional, da formação e instrução, e do lazer e entretenimento, conforme podemos ver no Quadro 1. 6 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr Quadro 1 – Esferas de uso da leitura e da escrita e as formas de utilização da linguagem ESFERAS DE USO DA LEITURA E DA ESCRITA FORMAS DE UTILIZAÇÃO DA LINGUAGEM Esfera das ações domésticas listas, catálogos, produtos, rótulos, receita, bula de remédios, manual de instalação de um aparelho; elaboramos lista de compras, bilhetes, avisos, recados, copiamos receitas, organizamos pasta de contas a pagar e caixa de documentos. Esfera da vida pessoal produções individuais, como escrita de diários, cadernos de anotações, cartas, bilhetes, cópias de poemas, letras de músicas, fotografias e suas legendas, recortes de jornais, revistas, folhetos místicos, santinhos, poemas e mensagens. Esfera da vida social atividades de leitura e escrita estão diretamente ligadas às relações que as pessoas mantêm socialmente, nos clubes, associações, círculos de amizade, igreja, sindicato. Esfera da informação e da participação ações de leitura e escrita, seja pelos jornais impressos ou telejornais, rádio e revistas (leitura direta de textos escritos); seja através do diálogo com os familiares, amigos e colegas (leitura indireta). Esfera de formação e instrução caracteriza a educação escolar, sendo esse o processo formal de formação pelo qual as pessoas têm acesso à leitura, à escrita e à diversidade de textos. Esfera do lazer e do entretenimento que se aprende pela brincadeira, lendo revistas, jornais, história em quadrinhos, fazendo palavras cruzadas. Esfera da vida profissional o uso da escrita é delimitado tendo em vista os modelos e a burocracia rigorosa. Fonte: Souza (2016)1 Brito (2005) aponta a existência de instâncias que privilegiam e legitimam a produção e a circulação de conhecimento, tais como: as universidades, os centros de pesquisa, a escola, o poder público, as instituições sociais e a indústria da informação. Esses espaços priorizam a produção de conhecimento para uma nova geração, denominada por alguns como geração “Y”, que a cada dia produz e coloca em circulação conhecimentos por meio das redes sociais, dando-lhes autonomia e protagonismo. Vale destacar que não falamos naturalmente, aprendemos por meio da interação social com a língua falada dos pais, irmãos, tios etc. Quanto maior e melhor for essa interação no ambiente familiar, melhor será o desenvolvimento linguístico (oral) da criança. Muitas crianças têm acesso à escrita e à leitura antes mesmo de ingressar na escola. Porém, é na escola que tais conhecimentos se intensificam, que aprendemos a partir de ensinamentos sistemáticos a Norma Padrão da escrita. Diante da realidade de que muitas pessoas fazem uso das tecnologias e seus aplicativos, pontos relacionados à Norma Padrão da Escrita sinalizam uma preocupação por parte dos estudiosos, que seria a configuração de uma nova 1SOUSA, Harley Gomes de. Fundamentos Metodológicos e Prática de Alfabetização. Sobral, 2016. Disponível em: http://gg.gg/jbuns. Acesso em: 08 abr. 2020. 7 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr língua. Os usuários das tecnologias optam pela economia temporal, ou seja, não querem perder tempo digitando textos extensos e, por isso, as abreviações estão se naturalizando na língua escrita. Outro fator seria a necessidade de pertencimento, pelos usuários, ao grupo dos que estão totalmente engajados nessa nova língua. De qualquer modo, essa configuração da linguagem pela geração “Y” é um caminho de mão única. O internetês ou netspeak, como foi determinada essa linguagem, caracteriza-se por ser uma linguagem simples e informal, dando rapidez à comunicação, por meio do uso de códigos, abreviaturas, estrangeirismos e ainda valendo-se do uso de emoticons e bordões. Indubitavelmente, essa linguagem não considera a Norma Padrão da Língua Portuguesa, mas cumpre com sua função comunicativa. Cumprir com a função comunicativa insere esses sujeitos em contextos sociais de leitura e escrita, e esse seria um dos pontos fundantes no conceito de letramento. Ao pensarmos sobre a escrita no processo de alfabetização, precisamos considerar que: [...] a escrita não é a transcrição real da fala, apenas alguns elementos representam a oralidade, portanto, a escrita por natureza é uma representação simbólica que se codifica através dos sons da fala. Essa relação de representação denomina-se de princípio alfabético, pois congrega as percepções dos sons da oralidade na escrita, por isso que é comum quando uma criança começa a escrever, ela confunde-se com a grafia das palavras por pensar que existe uma exata relação entre a fala e a escrita. (SOUSA, 2016, p. 56-57) Para Ferreiro (2010), uma prática que potencializa a escrita e coloca a criança frente ao seu pensamento é a escrita espontânea, no entanto,destaca que os professores que se dizem aptos a trabalhar essa atividade são poucos, pois desconsideram as garatujas (rabiscos) como tentativas de escrita das crianças. A autora defende a ideia de que, quando as crianças escrevem de maneira espontânea, elas acionam esquemas conceituais que não podem ser vistos como reprodução da escrita, mas que tais esquemas compõem um processo construtivo, que considera no pensamento as informações do meio, bem como as suas reflexões. Outro aspecto interessante sobre o princípio alfabético é que a escrita não pode considerar toda variação linguística, ou seja, os dialetos, pois, dessa forma, a escrita teria inúmeras formas e seria impraticável. “O que temos de perceber é a funcionalidade da convenção ortográfica e que nós falamos de um jeito e escrevemos de outro, mesmo que permaneça valendo o princípio alfabético” (BRITTO, 2005, p. 64-65). O autor ainda salienta que a diferença entre a fala e a escrita está no plano formal, na representação e na simples codificação. 8 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr Para Britto, eis alguns aspectos da escrita que merecem destaque: A escrita: • É bidimensional [...] permite representações com dupla entrada, o que significa formas adicionais de organização do pensamento; • Pressupõe o afastamento espaço-temporal dos interlocutores, o que implica reorganização da forma do discurso; • Constitui-se como sistema discursivo, funcionando como um complemento da oralidade [...]; • Tem função documental e legislativa, de registro e veiculação de valores culturais e saberes científicos e de organização dos espaços públicos; • Supõe um elemento intermediador – os suportes de texto, cuja materialidade não pode ser desconsiderada, [...] não existe compreensão do texto, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele atinge o leitor (BRITTO, 2005, p. 69). O autor menciona os espaços em que se dá o trabalho de leitura e escrita e os divide em dois: o público e o privado. O espaço público estaria vinculado à coletividade, respondendo a necessidades imediatistas de compreender o mundo, e as interações aconteceriam não presencialmente, ou seja, com interlocutores desconhecidos, privilegiando, assim, modalidade escrita. Já o espaço privado está no âmbito individual, atendendo aos objetivos imediatos para satisfazer as necessidades básicas, cujas interações acontecem presencialmente, com a presença de interlocutores conhecidos, privilegiando a oralidade. Quando um sujeito é capaz de ler e escrever, de interagir oralmente, participando da vida social, exercendo sua cidadania, é fato que esse sujeito não apenas está alfabetizado, mas também letrado. Nesse sentido, a instituição escolar torna-se um espaço privilegiado para que a formação de sujeitos letrados seja de fato um direito. É uma ação política a promoção da leitura, pois no ato de ler o que se promove não é a leitura isoladamente, mas valores e conhecimentos essenciais para a constituição da humanidade. As políticas de formação de leitores, em projetos sociais ou até mesmo nas escolas, não têm produzido os efeitos esperados. Para Britto (2005), a formação do leitor passa pelo modo de ser dos sujeitos, indo muito além do ato de conhecer o código escrito e dominar os usos sociais de base escrita. Nesse modo de ser, o sujeito se envolve com a leitura, reflete sobre seus pensamentos e seus processos de aprendizagem – ou seja é metacognição (motivação de si mesmo, regular seus processos psicológicos): dirigir seus 9 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr objetivos de modo consciente. As atividades metacognitivas geralmente se realizam apoiadas na escrita, implicando o letramento do sujeito, evidenciando suas habilidades de leitura e escrita. Em outras palavras, sua autonomia intelectual. Conforme Sousa, A autonomia intelectual de que fala o autor diz respeito a uma organização de leitura, delineado sobre alguns passos – planejamento, monitoração, revisão e correção. Assim, o sucesso de uma leitura depende de alguns passos (organização de leitura): sublinhar/marcar o texto; fazer comentário marginal; fazer recortes e selecionar fragmentos; arquivar o texto, identificar palavras-chaves; nomear parágrafos com título síntese, reescrever tópicos, ou fragmentos do texto; elaborar questões sobre o texto; reorganizar o texto em perguntas; elaborar destaques, enumerar argumentos que chamaram à atenção; utilizar setas para indicar trechos importantes, marcar com o ponto de interrogação parágrafos polêmicos, indicar retomados nos textos e fazer referências. Enfim, seja estudar ou ler, requer do leitor atitude coerente com as práticas de letramento que o conduzam ao exercício da cidadania. (SOUSA, 2016, p. 59) 2 Revisitando Conceitos 2.1 Autoria e Coautoria A noção de autoria está diretamente ligada a uma concepção de sujeito. Até meados dos anos 50 (SOARES, 1998), predominou no ensino a concepção mentalista da linguagem, que vê o sujeito como uma consciência individual autossuficiente, que controla o discurso e é único responsável pela construção do sentido. Já a concepção estruturalista, que imperou a partir da década de 70 no ensino, após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1971, considera o sujeito como assujeitado a um determinado jogo de forças sociais e ideológicas. Nessa perspectiva, o indivíduo não é dono de seu discurso, tampouco de sua vontade. Nessa concepção, há uma negação da autoria, visto que o sujeito não é capaz de construir seu próprio discurso. Sendo a língua entendida como lugar de interação, o sujeito é agente, ativo na construção do sentido. Nem totalmente livre para dizer o que quer, nem totalmente assujeitado, mas responsável pela forma com que enuncia seu pensamento. Para Foucault (1992), a autoria estaria relacionada à noção de obra. Assim, só há autor se existir uma obra a ele associada. Não há obra se não existir a quem se atribuir o que foi dito ou escrito. Vale destacar o que afirma Possenti: 10 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr [...] para Foucault, a noção de autor é discursiva (isto é, o autor é de alguma forma construído a partir de um conjunto de textos ligados a seu nome, considerado um conjunto de critérios, dentre eles sua responsabilidade sobre o que põe a circular, um certo projeto que se extrai da obra e que se atribui ao autor, etc.), daí porque ele distingue tão claramente a noção de autor da de escritor. (POSSENTI, 2002, p. 107) Com relação à produção de textos de estudantes, interessa-nos a definição de autoria defendida por Possenti (2002). Para ele, a noção de autoria está intimamente ligada à construção de efeitos de sentido, isto é, às estratégias utilizadas pelo locutor para que o interlocutor construa o sentido do texto. O sujeito é autor quando consegue trazer outras vozes e inscreve sua posição na cadeia discursiva, encontrando uma forma única de se fazer presente no texto. Dessa maneira, a autoria está articulada às noções de intersubjetividade, de singularidade e estilo, ainda que o sujeito esteja no início de sua vida escolar. Conforme Possenti (2002), a autoria, no que tange à produção textual, está em como o texto é planejado e construído pelo sujeito, de forma mais ou menos pessoal, a partir da utilização de diferentes recursos da língua para a construção do sentido. Já uma obra em coautoria seria aquela em que os sentidos são negociados ou, ainda, pactuados por dois ou mais autores. 2.2 Leitura e Construção de Identidade como Sujeito Leitor Na atualidade, a leitura é concebida como uma atividade que depende de um processamento individual, mas que está inserida em um contexto social e envolve disposições atitudinais, capacidades relativas à decifração do código escrito e capacidades relativas à compreensão e à produção de sentido. Especificamente, no que tange aos anos iniciais,cabe ressaltar que a leitura abrange desde capacidades necessárias ao processo de alfabetização até aquelas que habilitam os alunos a participar efetivamente nas práticas de leitura que contribuem para o letramento. O letramento pressupõe a participação efetiva das pessoas em práticas sociais de leitura e escrita. Por isso, a convivência em situações de leitura prevê sujeitos verdadeiramente envolvidos, compartilhando ideias e pontos de vista, aceitando ou discordando dos argumentos postos pelo autor, produzindo assim sentido em relação ao que é lido. Ler não é uma atividade natural, na qual a criança se capacita sozinha. Cabe ao docente o papel de desenvolver no estudante o gosto pela leitura a partir de uma aproximação significativa com os livros. Na formação do leitor, precisamos efetivar uma leitura estimulante, reflexiva, crítica, diversificada, ensinando aos alunos a usarem a leitura para viverem melhor. 11 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr O docente precisa fazer de sua sala uma sala de leitura, em que os mais diversos suportes e tipos de textos estejam presentes e de fato sejam utilizados pelos estudantes, tanto em momentos formais de leitura, quanto em momentos informais, quando os estudantes escolherão as leituras a serem realizadas. Os momentos de leitura livre são tão importantes quanto os de leitura dirigida, pois, nesses momentos, os estudantes podem manifestar suas preferências e, ainda, podem explicitar essas preferências, podendo ser um ponto de aproximação entre professores e estudantes. Esse e outros procedimentos contribuem para que o estudante seja introduzido, simultaneamente, no mundo da escrita e do letramento, e atue nele não apenas como leitor, mas como alguém que atribui significado importante para a comunicação em sua vida. É na dimensão dialógica e discursiva que a leitura precisa ser experienciada na alfabetização, como um ato social em que autor e leitor participam interativamente, situação na qual o primeiro escreve para ser entendido pelo segundo. Esse processo depende tanto da habilidade do autor no registro das suas ideias, quanto da habilidade do leitor na compreensão de tudo aquilo que o autor colocou no texto. Por fim, a produção de significados, que envolve uma relação dinâmica entre autor/leitor, acontece de forma compartilhada, configurando-se como uma prática ativa, transformadora e crítica que deve envolver os diferentes tipos de textos e gêneros textuais. Embasado nisso, o docente deverá planejar uma ação pedagógica que contemple que os estudantes não somente leiam, mas também produzam textos dentro dos gêneros trabalhados, uma vez que leitura e escrita são práticas que caminham juntas. 12 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr 3 Metodologia e Aprendizagem da Leitura e da Escrita: uma Abordagem Pertinente Vimos nascer um forte discurso na contramão dos tradicionais métodos de alfabetização, a partir dos trabalhos da Psicogênese da Língua Escrita, bem como da defesa de uma prática embasada na teoria psicogenética da aprendizagem da escrita. Esse movimento defendia que a apropriação do Sistema de Escrita Alfabética se dava, sobretudo, a partir da interação com os diferentes textos escritos em atividades significativas de leitura e escrita desde a Educação Infantil. A força de tal discurso se intensificou a partir da década de 90, incorporando um novo conceito à alfabetização: o do letramento. Em nosso país, o termo letramento não substitui o termo alfabetização, mas aparece associado a ele, ou seja, seriam processos distintos, mas um sendo potencializador do outro. Considerando a produtividade dos discursos sobre as novas concepções de alfabetização e de mudanças nas práticas de ensino da leitura e da escrita embasadas nas novas perspectivas teóricas, muitos estudantes continuaram a concluir o primeiro ano e até o primeiro segmento do Ensino Fundamental sem ler e escrever, como se pode observar nas avaliações em larga escala – PISA, SAEB e a extinta Prova Brasil. Soares (2004), ao abordar as facetas da alfabetização, analisa que os problemas da atualidade referentes a essa fase da escolarização poderiam estar relacionados, entre outras coisas, a uma certa perda da especificidade do processo de alfabetização, chamado pela autora de “desinvenção da alfabetização”. Segundo ela, esse movimento seria provocado principalmente pela mudança conceitual a respeito da aprendizagem da leitura e da escrita, que se difundiu em nosso país a partir de meados dos anos 1980, com a divulgação da pesquisa de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, materializada na Psicogênese da Língua Escrita. Mesmo considerando a incontestável contribuição dessa mudança paradigmática na área da alfabetização, a autora pontua alguns equívocos e falsas inferências surgidos com a transposição dessa abordagem para a prática pedagógica da alfabetização. São eles: privilégio da faceta psicológica sob a faceta linguística – fonética e fonológica; incompatibilidade entre os métodos de alfabetização e o paradigma conceitual psicogenético; e o pressuposto, amplamente divulgado, de que o convívio intenso com o material escrito que circula na sociedade seria suficiente para as crianças se alfabetizarem. Porém, vale lembrar que pensar a alfabetização como processo de apropriação do sistema de escrita convencional com suas regras específicas foi ofuscado pelo processo de letramento, pois “[...] este acabou por frequentemente prevalecer sobre aquela, que, como consequência, perde sua especificidade” (SOARES, 2004, p. 9). 13 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr A autora defende a importância do trabalho específico de ensino do Sistema de Escrita Alfabética inserido nas práticas de letramento. Assim, propõe a distinção entre os termos alfabetização e letramento, destacando que o primeiro implicaria a ação de ensinar a aprender a ler e escrever, e o segundo seria o estado ou a condição de quem, não apenas sabe ler e escrever, mas também exerce as práticas sociais que usam a escrita, conforme ela afirma: [...] alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas não inseparáveis, ao contrário, o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado. (SOARES, 1998. p. 47) Algumas pesquisas desenvolvidas podem servir ao nosso estudo, pois dão visibilidade ao modo como os docentes constituem práticas de alfabetização na perspectiva de alfabetizar letrando. Assim, permitem a investigação da relação dessas práticas com a forma que os estudantes aprendem. Vamos citar aqui duas pesquisas significativas para nosso estudo. A primeira pesquisa foi conduzida por Albuquerque, Morais e Ferreira (2008), cujo corpus se compôs por um grupo de nove professoras que atuavam em turmas de 1º ano do 1º ciclo da Secretaria de Educação do Recife. Dentre os procedimentos metodológicos, estavam observações semanais e encontros mensais com as professoras, a fim de discutir as práticas observadas e refletir sobre alguns aspectos constitutivos do processo de alfabetização. Considerando as análises realizadas, foi possível constatar que um grupo de professoras desenvolvia uma prática sistemática de alfabetização e contemplava diariamente atividades de reflexão sobre o Sistema de Escrita Alfabética, enquanto o outro grupo priorizava o trabalho de leitura e produção coletiva de textos. Após a realização de um ditado com os estudantes, evidenciou-se que a maioria das crianças que compunham o primeiro grupo concluíram o ano letivo na hipótese alfabética da escrita, sendo que, nos outros grupos, um número maior de alunos conclui o ano em hipóteses menos avançadas de escrita. Cruz (2008) desenvolveu a segunda pesquisa que apresentamos aqui, cujo foco estava em verificar as práticas de ensino da leitura eda escrita desenvolvidas por professores dos três primeiros anos do Ensino Fundamental e a relação dessas práticas com a aprendizagem dos estudantes, no tocante ao domínio do Sistema Alfabético de Escrita em relação à capacidade de produção textual. O corpus da pesquisa era composto por três professoras (uma de cada ano do 1º ciclo) e 60 estudantes (15 do 1º ano, 20 do 2º ano e 25 do 3º ano) de uma escola da Rede Municipal de Ensino de Recife. Os procedimentos metodológicos adotados foram observações de aulas e atividades diagnósticas com os estudantes (escrita do nome de figuras e reescrita de um texto). A análise dos dados indicou que a maioria dos estudantes das turmas concluiu o ano letivo na fase alfabética da escrita, demonstrando razoável domínio das correspondências fonográficas diretas. No que se refere à produção textual, algumas crianças do 1º ano concluíram o ano produzindo textos legíveis e elaborados. Tal resultado 14 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr aponta a possibilidade de alunos do 1º ano do 1º ciclo se apropriarem do Sistema de Escrita Alfabética e simultaneamente ampliarem suas experiências de letramento, desde que lhes sejam oportunizadas atividades de análise e reflexão sobre o Sistema de Escrita Alfabética, bem como atividades de leitura e produção de textos, como era o caso dessa turma, nessa pesquisa. Leal e Morais (2010) definem os conhecimentos necessários para que os sujeitos compreendam o Sistema Alfabético da Escrita, conforme podemos ver no Quadro 2. Quadro 2 – Conhecimentos sobre o Sistema Alfabético da Escrita. se escreve com letras que não podem ser inventadas, que têm um repertório finito e que são diferentes de números e outros símbolos; as letras têm formatos fixos e pequenas variações produzem mudanças de identidade das mesmas (p, q, b, d), embora uma letra assuma formatos variados (P, p, P, p); a ordem das letras é definidora da palavra e, juntas, configuram-na, e uma letra pode se repetir no interior de uma palavra e em diferentes palavras; nem todas as letras podem vir juntas de outras e nem todas podem ocupar certas posições no interior das palavras; as letras notam a pauta sonora e não as características físicas ou funcionais dos referentes que substituem; todas as sílabas do português contêm uma vogal; as sílabas podem variar quanto às combinações entre consoantes, vogais e semivogais (CV, CCV, CVSv, CSvV, V, CCVCC...), mas a estrutura predominante é CV(consoante-vogal); as letras notam segmentos sonoros menores que as sílabas orais que pronunciamos; as letras têm valores sonoros fixos, apesar de muitas terem mais de um valor sonoro e certos sons poderem ser notados com mais de uma letra. Fonte: Leal e Morais (2010).2 A partir dessa perspectiva, é preciso oportunizar às crianças, desde muito cedo, atividades que as levem à reflexão acerca das características do nosso sistema de escrita, de forma lúdica e de modo que estejam inseridas em atividades de leitura e escrita de diferentes textos. Vale destacar, nesse sentido, a importância de considerar que a apropriação da escrita alfabética não significa que o sujeito esteja alfabetizado. Tal aprendizado é fundamental, porém, para que os indivíduos possam ler e produzir textos com autonomia, é necessário que sejam consolidadas as correspondências grafofônicas e que, simultaneamente, vivenciem atividades de leitura e produção de textos. 2 LEAL, Telma; MORAIS, Artur. O aprendizado do Sistema de Escrita Alfabética: uma tarefa complexa, cujo funcionamento precisamos compreender. In: LEAL, Telma; ALBUQUERQUE, Eliana; MORAIS, Artur (orgs). Alfabetizar letrando na EJA: fundamentos teóricos e propostas didáticas. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. 15 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr Considerando o exposto até este momento, vale mencionar o quanto precisamos planejar para fazermos escolhas coerentes, organizando nossas rotinas, tendo a clareza dos nossos objetivos, sabendo onde queremos chegar e o que precisamos ensinar aos nossos estudantes. Para planejar o processo de alfabetização e ensino/aprendizagem da Língua Portuguesa, tomamos quatro eixos norteadores: leitura, produção de texto escrito, oralidade e análise linguística, incluindo a apropriação do Sistema de Escrita Alfabética – SEA. Abordaremos aqui o eixo da leitura e da produção de texto escrito, a fim de contemplarmos o que este estudo se propõe. Antes, vale pontuar que: As práticas de letramento fora da escola têm objetivos sociais relevantes para os participantes da situação. As práticas de letramento escolares visam ao desenvolvimento de habilidades e competências no aluno e isso pode, ou não, ser relevante para o estudante. Essa diferença afeta a relação com a língua escrita e é uma das razões pelas quais a língua escrita é uma das barreiras mais difíceis de serem transpostas por pessoas que vêm de comunidades em que a escrita é pouco usada. (KLEIMAN, 2005, p. 33) Talvez um dos grandes desafios que se coloca aos docentes hoje seja oportunizar às crianças na fase de alfabetização vivências em que a leitura, a produção de texto escrito, a produção e compreensão de textos orais e a apropriação do Sistema de Escrita Alfabética se deem como práticas relevantes e interessantes. Para tanto, é preciso considerar os textos que circulam nos diferentes grupos sociais. 3.1 Leitura O ato de ler compreende a aprendizagem de várias habilidades, tais como: o domínio da mecânica que implica na transformação dos signos escritos em informações; a compreensão das informações específicas e implícitas do texto lido e a construção de sentidos. Tais habilidades estão inter-relacionadas e não pressupõem uma ordenação hierárquica. É muito importante que as crianças nessa fase de escolarização tenham ricas experiências no sentido de ouvir e ler textos. Quanto maior for esse tipo de experiência, maior será a capacidade de produção de sentido por parte do leitor. No início do processo de apropriação do Sistema de Escrita Alfabética, cabe ao docente ser o mediador entre as crianças e o texto escrito, auxiliando os estudantes seja na elaboração de objetivos e expectativas de leitura, seja na criação de hipóteses antes e durante a leitura, relacionando os conhecimentos prévios dos estudantes com aqueles que surgirão, implícita ou explicitamente, no texto. 16 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr Ler para as crianças é a principal prática para despertar o gosto e o desejo pela leitura. Cabe destacar que ler não é contar histórias, ainda que essa seja uma prática fundamental na escola. A leitura de histórias é fundamental para o desenvolvimento do vocabulário e para a compreensão de conceitos, bem como para a linguagem escrita dos livros. Além disso, a leitura em voz alta se constitui num meio para que elas entendam as funções e a estrutura da linguagem escrita, podendo se constituir, ainda, em uma ponte entre linguagem oral e linguagem escrita. Precisamos tomar como base para o ensino e trabalho com a leitura as práticas sociais que vivenciamos em nossas ações de leitores competentes, nas quais lemos para obter informações sobre um assunto específico, para localizarmos uma rua, para seguirmos prescrições médicas, para nos distrairmos, etc. É preciso diminuir as atividades artificiais de leitura e proporcionar mais intensamente atividades próximas das práticas sociais de letramento. 3.2 Escrita – Produção de Texto Escrito Quando abordamos a temática da escrita, principalmente no 1º ano do Ensino Fundamental, é comum associarmos essa atividade a uma escrita alfabética, à produção textual (geralmente, um texto narrativo), fato esse que muitas vezes remete ao adiamento desse tipo de atividade. Concebemos que a escrita da criança poderá ser breve ou mais longa, conhecida ou desconhecida, podendo ser a letra de uma cantiga, uma quadrinha, um poema, uma história, um bilheteou até mesmo um cartaz. A escolha do que será escrito dependerá diretamente da proposta de situação comunicativa pela professora. Acreditamos que a criança deva realizar escritas desde as primeiras semanas de aula. Todavia, é necessário o entendimento de que copiar não é escrever, apesar de ser uma habilidade importante a ser desenvolvida durante a alfabetização. Quando possibilitamos que a criança escreva “do jeito que ela acha que é” é uma forma de viabilizar que ela busque estratégias para transpor por meio da sua escrita o que quer informar ao seu leitor. Em outras palavras, proporcionamos que reflita sobre a escrita e busque soluções para questões que se colocam acerca da apropriação do sistema de escrita. O papel do professor, como revisor de texto, é fundamental, pois, por meio dessa interação, a criança pode aprender que existe uma convenção social que dita as regras da escrita, que serão apreendidas no decorrer dos anos. 17 Concepções contemporâneas da leitura e escrita | Cláudia Gewehr Escrever nem sempre é um fato presente na vida das crianças e suas famílias, então, despertar nelas o desejo de escrever acaba se tornando uma tarefa da escola. Porém, escrever para o professor corrigir não costuma ser uma prática muito atrativa. É importante ter o que dizer e a quem dizer, pois esses dois aspectos caracterizam os primeiros passos para a formação de produtores de textos. A produção textual na escola pode se dar de diferentes maneiras: coletivamente, individual, por meio de um escriba (que geralmente é o professor), em dupla. Quando o professor assume esse papel de escriba, ele ensina aos estudantes as diferenças entre a linguagem oral e escrita, a organização de ideias, a importância da revisão do que se escreve, a desenvolver suas próprias estratégias de registro e a se assumirem como autores. Outro recurso metodológico muito produtivo é a escrita em dupla, pois permite a interação entre as crianças, trocando informações e resolvendo conflitos, aspectos que favorecem a participação mais efetiva de ambos no processo de escrita. Ao escrever em dupla, as crianças confrontam suas hipóteses, negociam a melhor forma de fazer o registro, tanto a respeito do sistema de escrita, quanto no que tange à própria organização do texto. Escrever um texto que sabe de cor possibilita à criança refletir acerca do Sistema de Escrita Alfabética: que letra usar para escrever tal palavra, onde incluir os espaços em branco para delimitar as palavras etc. Atividades como essa são importantes para as crianças, mas cabe lembrar que é preciso variar as situações de produção quanto às dimensões da escrita a serem contempladas: a) registro de textos que se sabe de cor; b) reescrita de textos, situação em que se sabe o conteúdo do texto, mas é preciso recuperá-lo e reescrevê-lo de outro modo, pensando em “como vai dizer”; e escrita autoral de textos, na qual as crianças precisam definir o que vão dizer e para quem vão dizer. 18 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, Eliana B. C.; MORAIS, Artur G.; FERREIRA, Andrea T. B. As práticas cotidianas da alfabetização: o que fazem as professoras? In: Revista Brasileira de Educação. v. 13, n. 38, maio-ago., 2008. BRITTO, L. P. L. Letramento no Brasil. Curitiba: IESDE (Instituto Educacional e Sistema de Ensino), 2005. COLELLO, S. M. G. Alfabetização em questão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. CRUZ, Magna do Carmo Silva. Alfabetizar letrando: alguns desafios do 1º ciclo do Ensino Fundamental. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2008. FERREIRO, Emília. Reflexões sobre Alfabetização. 25. ed. São Paulo: Cortez, 2010 FOUCAULT, M. O que é um autor. Lisboa: Vega, 1989. KLEIMAN, Angela B. Preciso ensinar o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever? CEFIEL/IEL/UNICAMP. Ministério da Educação. Governo Federal, 2005. LEAL, Telma; MORAIS, Artur. O aprendizado do Sistema de Escrita Alfabética: uma tarefa complexa, cujo funcionamento precisamos compreender. In: LEAL, Telma; ALBUQUERQUE, Eliana; MORAIS, Artur (orgs). Alfabetizar letrando na EJA: fundamentos teóricos e propostas didáticas. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. POSSENTI, Sírio. Indícios de autoria. Perspectiva, v. 20. n. 1, p.105-124, jan./jun. 2002. SOARES, M. Concepções de linguagem e o ensino da língua portuguesa. In: BASTOS, N. B. (org.). Língua Portuguesa: história, perspectivas, ensino. São Paulo: EDUC, 1998, p. 53-60. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação. Jan/fev/mar/abr, n. 25, 2004. SOUSA, Harley Gomes de. Fundamentos Metodológicos e Prática de Alfabetização. Sobral, 2016. Disponível em: http://gg.gg/jbvcx. Acesso em: 08 abr. 2020. Av. Victor Barreto, 2288 | Canoas - RS CEP: 92010-000 eadproducao@unilasalle.edu.br