Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
9 Habilidades Seções de estudo Capítulo 1 Seção 1: O surgimento da sociedade Seção 2: Egito Antigo: o desenvolvimento do estado teológico Seção 3: Grécia Antiga: a descoberta do homem através da política Seção 4: Roma Antiga: a política só existe na prática Com a leitura deste capítulo você desenvolverá as habilidades de: compreender a passagem dos homens do estado primitivo para a sociedade, e as implicações políticas desse processo; discernir a organização política presente no Egito Antigo, um dos mais duradouros impérios da Antiguidade; compreender o pensamento político dos gregos antigos, aos quais se costuma atribuir a “invenção da política”; identificar as principais instituições políticas legadas pelos romanos, que conferiram à política um significado eminentemente prático. Política na Antiguidade QUERIQUELLI, Luiz Henrique Milani. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Palhoça: UnisulVirtual, 2014. 10 Capítulo 1 Seção 1 O surgimento da sociedade A população humana passa a se chamar humanidade a partir do momento em que deixa de enfrentar apenas a sobrevivência e se depara com outro problema crucial para sua espécie: a convivência. Desse período inicial da história dos homens, além do desenvolvimento das mais diversas técnicas que transformaram sua relação com a natureza, podemos destacar a atividade que os homines sapientes, servindo-se da capacidade cognitiva que os distingue, elevaram a uma condição de existência: a política. Com o passar do tempo, algumas sociedades conseguiram mais estabilidade que outras e, assim, puderam chegar a níveis de desenvolvimento impressionantes, considerados insuperáveis por muitos estudiosos sob certos aspectos. Tal feito coincide com a percepção de que a política não consiste apenas em uma arte, mas – dadas as suas regularidades – também se propõe como ciência. O surgimento das grandes civilizações que caracterizaram a Antiguidade está, pois, relacionado a uma nova concepção de política. Em outras palavras, as grandes civilizações antigas só puderam se desenvolver porque seus governantes perceberam a necessidade de pensar sobre o exercício do governo. Não são poucos os pensadores políticos clássicos que se dedicaram a explicar as razões pelas quais o homem primitivo sai de sua condição original, na qual só lhe interessa a sobrevivência, e passa a viver em um estado no qual sua existência depende da relação com seus semelhantes. Apesar das divergências, podemos afirmar que todos concordam em um ponto: os homens decidem entrar em sociedade a fim de resolver os conflitos que a convivência traz no estado natural. Isto é, os homens optam por viver em um modo de vida ordenado, em que as pessoas submetem-se a regras, basicamente em busca de justiça, já que, no estado primitivo, cada um julga seus atos e os atos alheios conforme lhe convém. Esse princípio está expresso em um provérbio secular, muito recorrente entre os romanos: Ubi homo, ibi societas. Ubi societas, ibi jus. Onde há homem, há sociedade. Onde há sociedade, há direito. 11 Ciência Política e Teoria Geral do Estado 1.1 A cidade, o comércio e a escrita Na Pré-História, o aprimoramento do homem sobre a natureza caminhou lado a lado com o aprimoramento do homem sobre sua própria natureza. O maior exemplo disso é o surgimento da cidade, talvez o maior símbolo político: a primeira cidade só pôde surgir porque os homens já haviam desenvolvido a técnica de manipulação da argila, que lhes permitiu as edificações, e – principalmente – porque haviam chegado à consciência de que um grande agrupamento de pessoas necessitava organização. A cidade mais antiga já descoberta pela Arqueologia é a cidade de Çatalhüyük, cuja fundação deu-se por volta de 6700 a.C. Ela está localizada ao sul da atual Turquia, no Oriente Médio. Çatalhüyük teve cerca de cinco mil habitantes. Suas casas, feitas de cerâmica, eram construídas uma ao lado da outra, sem espaço para circulação. O trânsito dava-se pelo telhado das casas, o que pode estar ligado a questões de segurança. As bases de sua economia eram a agricultura e o comércio de pedras vítreas de vulcão, um item valioso à época. Figura 1.1 - Sítio arqueológico da antiga cidade de Çatalhüyük, na Turquia Fonte: Quinlan (2009). O exemplo de Çatalhüyük já nos apresenta dois elementos fundamentais à transição das sociedades arcaicas para as grandes civilizações que marcaram a Antiguidade: trata-se da cidade e do comércio. Um terceiro elemento fundamental nesse processo foi a invenção da escrita. Os fatores decisivos que ocasionaram este evento foram, ao mesmo tempo, econômicos e políticos. À certa altura, com o crescimento das cidades, percebeu-se a necessidade de: • contabilizar os funcionários públicos, os impostos arrecadados e os produtos comercializados; e • fazer um levantamento da estrutura das obras, o que exigiu a criação de um sistema numérico para a realização dos cálculos geométricos. 12 Capítulo 1 Com a invenção da escrita, os homens puderam registrar os seus conhecimentos e, assim, transmiti-los não mais apenas de forma oral, mas, agora, de maneira muito mais perene e segura. Sua origem deu-se por meio de desenhos que representavam coisas ou conceitos. Esses desenhos, ou símbolos gráficos, são chamados ideogramas. O desenho de uma maçã denotaria a própria fruta, já o desenho de duas pernas poderia representar o conceito de andar. A letra M, por exemplo, presente no alfabeto latino, deriva de um hieróglifo egípcio que retratava ondas na água e representava o som produzido por elas. A propósito, as formas de escrita mais antigas já conhecidas são a escrita cuneiforme e os hieróglifos. O surgimento de ambas deu-se por volta de 3500 a.C., e acredita-se que uma não influenciou a outra, isto é, seu desenvolvimento foi autônomo. A primeira esteve associada à Mesopotâmia e a segunda, ao Egito Antigo, duas das maiores civilizações antigas – uma prova da importância da escrita no processo civilizatório. A Mesopotâmia, onde se originou a escrita cuneiforme, é considerada o berço da civilização. Seu nome, que significa “entre rios”, deriva dos termos gregos meso (entre) e pótamos (rios). Localizada entre os rios Tigre e Eufrates, no Oriente Médio, esta região abrigou uma série de cidades surgidas durante a chamada Revolução Neolítica, o mesmo período em que foi fundada a já mencionada Çatalhüyük. Datam do III milênio a.C. as fundações de importantes cidades mesopotâmicas, tais como Lagash, Umma, Kish, Ur, Uruk, Gatium e Elam. 1.2 Cidade-estado Os mesopotâmicos não se caracterizaram pela formação de uma unidade política. Cada cidade controlava seu próprio território e sua própria rede de irrigação; tinha governo e burocracia próprios e era independente em relação às outras. Segundo Pierre Lévêque (1990, p. 15), “o Estado mesopotâmico é, antes de tudo, uma cidade, à qual o príncipe está ligado por estreitos laços; é igualmente uma dinastia, o que dá legitimidade ao seu poder.” Por estes motivos, isto é, por concentrar todas as dimensões da vida política de um povo no território de uma única cidade, tais cidades são chamadas de cidades-estado. Escrita cuneiforme e os hieróglifos A primeira era feita com o auxílio de objetos em forma de cunha, de onde vem o seu nome (cuneiforme). O nome da segunda deriva da junção de dois termos gregos: hierós (sagrado) e glýphein (escrita). Revolução Neolítica A Revolução Neolítica, ocorrida entre 9000 e 3000 a.C., marca o fim dos povos nômades e o início da sedentarização do homem, com o aparecimento das primeiras cidades. 13 Ciência Política e Teoria Geral do Estado Em certas ocasiões, no entanto, devido a eventuais guerras, formaram-se alianças entre as cidades e, assim, surgiram os chamados estados maiores: monarquias em que o poder real era imbuído de origem divina. Tais alianças, porém, eram temporárias. Apesar de independentes politicamente, as cidades- estado mesopotâmicasdependiam umas das outras na economia, o que gerava uma dinâmica atividade comercial. Diversos povos nômades passaram pela Mesopotâmia, mas apenas alguns se estabeleceram ali. Os primeiros foram os sumérios, seguidos, em ordem cronológica, pelos acádios, amoritas (ou antigos babilônios), assírios, elamitas e caldeus (ou novos babilônios). O período dos amoritas (2000-1750 a.C.) foi um dos mais prósperos. Nesse período, as cidades mesopotâmicas constituíram o Império Babilônico, cujo fundador e mais importante líder foi Hamurabi I (1810- 1750 a.C.). A fama de Hamurabi deve-se, sobretudo, à criação do primeiro código de leis já registrado na história, promulgado por volta de 1700 a.C. e conhecido como Código de Hamurabi. Conforme Pettit (1976, p.22): O Código de Hamurabi, achado em Susa, em 1902, é um dos mais belos documentos da história universal. De um lado, é ele a codificação de um direito natural e consuetudinário em vigor nos territórios conquistados e em via de evolução. De outro, é a compilação de diversos códigos sumerianos, obras de Urucagina e de Chulgui. Mais tarde, um Código assírio, achado em 1920, cuja criação se deu entre os séculos XV-XIII a.C., mostraria que o de Hamurabi é mais sistemático que as leis sumerianas, mais evoluído e menos bárbaro que as leis assírias, as quais, entretanto, nele se inspiraram. Segundo o Código, a sociedade divide-se em três classes desiguais, os homens livres (awilu), os subalternos ou inferiores (muchkenu) e os escravos; a origem da classe intermediária constituiu-se num problema: tratar-se-ia de antigos servos presos Figura 1.2 - Monólito com o Código de Hamurabi Fonte: Boumaza (2011). Consuetudinário Baseado nos costumes. 14 Capítulo 1 à gleba no tempo do regime senhorial e libertados pelos progressos do poder real, já na época de Urucagina (2630 a.C.). O direito penal repousa no talião, quando a vítima é livre, e numa compensação em dinheiro, se ela pertence às classes inferiores. O casamento apoia-se na inalienabilidade do dote, na repressão brutal ao adultério e no divórcio por iniciativa do marido. As questões dos juros são minuciosamente tratadas, o que atesta o papel do dinheiro e da terra nesta civilização de produtores e de comerciantes: as disposições são precisas e equitativas, os castigos expeditivos e matizados, com uma tendência à dureza comum a todas as civilizações recentemente saídas da iniciativa privada. A partir de então, a justiça, em todos os setores, passa às mãos de juízes de Estado, agindo sob inspiração do deus (Marduc ou Chamach), segundo um processo escrito, audição de testemunhas e recurso ao juramento. Endossando as palavras de Pettit, o Código de Hamurabi constitui um marco na história universal, especialmente no que diz respeito ao direito e, consequentemente, à política. Representou o ponto alto dos primeiros esforços da humanidade na busca de garantir paz, justiça e ordem à convivência entre os homens. Se um dos grandes méritos da civilização mesopotâmica foi conseguir, através do planejamento urbano, superar as adversidades naturais impostas pela geografia da região e as adversidades impostas pelo convívio entre os homens, o Código significou a coroação dessa superação. Seção 2 Egito Antigo: o desenvolvimento do estado teológico Não muito longe da Mesopotâmia, a oeste do Mar Vermelho, outro povo também soube aproveitar a dádiva trazida por um rio em meio ao deserto: os egípcios. O Rio Nilo, que nasce de uma confluência de rios africanos e corta o nordeste do Saara até desembocar no Mar Mediterrâneo, esteve para o Egito Antigo, assim como o Tigre e o Eufrates estiveram para a Mesopotâmia: nem uma e nem outra civilização teria existido sem suas águas. Por esta razão, a região que compreende os territórios dessas duas antigas civilizações ficou conhecida como Crescente Fértil. O nome foi dado no final do séc. XIX, pelo arqueólogo James Henry Breasted (1865-1935), que enxergou no contorno da região o desenho de uma lua crescente – um símbolo apropriado para a fertilidade. Talião Pena antiga pela qual se vingava o delito, infligindo ao delinquente o mesmo dano ou mal que ele praticara. É mais conhecida como “olho por olho, dente por dente”. Adversidades naturais Junto das cidades, os mesopotâmicos desenvolveram um complexo sistema hidráulico que favorecia a utilização dos pântanos, evitava inundações e garantia o armazenamento de água para as estações mais secas. 15 Ciência Política e Teoria Geral do Estado Figura 1.3 - Região do Crescente Fértil Fonte: Einstein (2005). O Tigre e o Eufrates, em função do relevo que os envolve, correm de noroeste para sudeste, em um sentido oposto ao rio Nilo. Isto teve uma implicação significativa para o desenvolvimento daqueles povos: as enchentes na Mesopotâmia, devido ao comportamento de seus rios, foram muito mais violentas, o que demandou um grande esforço por parte de seus habitantes no desenvolvimento de sistemas de irrigação. 2.1 A unidade política egípcia e a burocracia de oficiais Por outro lado, a uniformidade e a regularidade apresentadas pelo Nilo deram ao povo egípcio tranquilidade para fazerem prospectos mais ambiciosos. O reflexo mais claro dessa condição deu-se no plano político: enquanto os mesopotâmicos não chegaram a uma unidade política, tendo passado por diversas reformulações político-territoriais, a relativa estabilidade climática oferecida pelo Nilo pode ter dado ao povo egípcio a oportunidade de conceber um governo forte e unificado, como aconteceu desde o princípio. 16 Capítulo 1 Quadro 1.1 - Governos do Antigo Egito Períodos (os algarismos romanos se referem às dinastias) Duração Período pré-dinástico 4500-3200 a.C. Período protodinástico 3200-3100 a.C. Época Tinita: I e II. 3100-2700 a.C. Império Antigo: III, IV, V e VI. 2700-2300 a.C. 1º Período Intermediário: VII, VIII, IX, X e XI. 2300-2000 a.C. Império Médio: XI e XII. 2000-1780 a.C. 2º Período Intermediário: XIII, XIV, XV, XVI, XVII. 1780-1570 a.C. Império Novo: XVIII, XIX e XX. 1550-1070 a.C. 3º Período Intermediário: XXI, XXII, XXIII, XXIV e XXV. 1070-664 a.C. Época Baixa: XXVI, XXVII, XXVIII, XXIX, XXX e XXXI. 664-332 a.C. Período Greco-romano (dinastias macedônica e ptolomaica) 305-30 a.C. Período Romano A partir de 30 a.C. Fonte: Elaboração do autor (2009). Conforme indica o quadro apresentado, costuma-se dividir a história política do Egito Antigo em doze períodos, dos quais nove correspondem às dinastias genuinamente egípcias, que garantiram àquela nação sua longa estabilidade, apesar das crises e intermitências. A primeira delas iniciou-se há cerca de cinco mil anos, quando uma cadeia de cidades-estado situadas à beira do Nilo ganhou um governo central. O faraó – como se chamava o rei egípcio – detinha, então, o controle completo das terras e de seus recursos. Ele era o supremo comandante militar e também a cabeça do governo. No entanto, não era exatamente um déspota, pois dividia sua autoridade com uma burocracia de oficiais. A administração ficava a cargo de seu segundo comandante, o tjati, uma espécie de primeiro-ministro que coordenava a inspeção das terras, o tesouro, os projetos das obras, o sistema legal e os arquivos. O Império era dividido em 32 províncias, chamadas nomos, e cada uma delas era governada por um nomarca, que ficava sob a jurisdição do tjati. Tjati Este cargo, que surge na IV dinastia, é comumente chamado de vizir, o que, segundo Gardiner (1957), constitui um erro, visto que os vizires só apareceriam mais tarde, nas dinastias islâmicas. 17 Ciência Política e Teoria Geral do Estado 2.2 Religião, governo e economia A religião era o principal sustentáculo do governo. Divindade e política foram dois assuntos tão imbricados no Egito Antigo que é comum admiti-lo como o primeiro autêntico estado teológico da história. Os templos, por exemplo, formavam a espinha dorsal da economia, pois nãoeram apenas casas de adoração, mas também estabelecimentos responsáveis por recolher e armazenar a riqueza da nação. Figura 1.4 - Deus Rá, portando símbolos de poder, recebe as oferendas de um humano (peça do séc. X a.C.) Fonte: Blanchard (2004). Eles constituíam um sistema de silos e tesouros, e eram administrados por inspetores, que redistribuíam os grãos e os bens. O faraó era visto como uma personificação do deus Hórus, enquanto que seu antecedente era associado ao pai de Hórus, o deus Osíris. A partir da V dinastia, os faraós também passaram a se apresentar como filhos de Rá, o deus do sol. Certamente os monarcas egípcios perceberam a conveniência dessa associação, já que o sol – além de ser um evidente símbolo de poder – tinha uma importância para a agricultura, a base econômica da nação. A maior parte da economia era centralizada e estritamente controlada. Entretanto, segundo Shaw (2002), os antigos egípcios não tiveram uma moeda oficial até o Império Antigo (2700 a.C.). Antes do estabelecimento da moeda, foi desenvolvido um tipo de sistema 18 Capítulo 1 monetário baseado no escambo, em que havia um saco de grãos padrão e o deben, um anel de cobre ou prata que pesava cerca de 90 gramas e representava um denominador comum nas trocas. Os trabalhadores eram pagos em grãos. Um simples trabalhador ganhava 5½ sacos de grãos por mês, enquanto que um capataz chegava a ganhar 7½ sacos. Os preços eram fixos em todo o país e ficavam registrados em listas, para facilitar o comércio. Uma camisa, por exemplo, custava 5 deben de cobre, enquanto que uma vaca custava em torno de 140 deben. Figura 1.5 - Deben egípcio, que significa literalmente “anel de metal” Fonte: Smith (2013). Os grãos poderiam ser comercializados por outros bens, de acordo com a lista de preços fixada. Durante o século V a.C., o dinheiro em forma de moeda foi introduzido no Egito, vindo de fora. No princípio, as moedas foram usadas mais como peças de metal precioso padronizadas do que, de fato, como dinheiro; nos séculos seguintes, mercadores internacionais vieram a dar confiabilidade ao sistema monetário. 2.3 Estratificação social e sexual A sociedade egípcia foi altamente estratificada, e o status social era expressamente exibido. Os agricultores compunham a maioria da população, mas a produção agrária era apropriada diretamente pelo estado, pelo templo ou pela família nobre que possuía a terra. Eles também ficavam sujeitos a uma taxa de trabalho e eram convocados a trabalhar em projetos de irrigação ou construção. Estratificada Dividida em estratos (camadas) sociais rígidos. 19 Ciência Política e Teoria Geral do Estado Artistas e artesãos tinham um status mais alto que os agricultores, mas também ficavam sob o controle estatal, trabalhando em tendas vinculadas aos templos, financiadas diretamente pelo tesouro do estado. Os escribas e os oficiais formavam uma classe superior, que se distinguia das demais através de vestes brancas. Esta classe demarcou sua proeminência social na arte e na literatura. Abaixo da nobreza estavam os sacerdotes, médicos e engenheiros, cada qual com sua especialidade. Sabe-se que a escravidão existiu no Egito Antigo, mas a extensão e a prevalência desta prática ainda não foram plenamente esclarecidas. Homens e mulheres – incluindo pessoas de todas as classes (exceto os escravos) – eram essencialmente iguais perante a lei, e até mesmo a um ínfimo camponês era permitido solicitar ao tjati e sua corte algum tipo de reparação. Tanto os homens como as mulheres tinham o direito de adquirir e vender propriedades, fazer contratos, casar e divorciar, receber herança e recorrer aos tribunais. Os casais que estabelecessem matrimônio poderiam adquirir propriedades em conjunto e proteger-se do divórcio por meio de contratos que previam comunhão de bens. Em comparação com os Gregos e os Romanos, e até mesmo com outros povos modernos, as antigas mulheres egípcias tiveram uma gama de oportunidades muito maior para a sua autorrealização. Mulheres como Hatchepsut (séc. XV a.C) e Cleópatra (69-30 a.C.) chegaram a se tornar faraós, ao passo que outras possuíram grande poder enquanto Esposas Divinas de Amon – o mais alto grau de uma sacerdotisa. Apesar destas liberdades, as mulheres no Egito Antigo não assumiram cargos oficiais na administração, tendo cumprido apenas funções secundárias nos templos. Além disso, a educação que recebiam não era a mesma dada aos homens. 2.4 O direito egípcio Oficialmente, o faraó era a cabeça do sistema legal, responsável por promulgar as leis e julgar sua aplicação, mantendo assim a lei e a ordem, um conceito ao qual os egípcios se referiam pelo termo Ma’at. Entretanto, no Egito, não havia códigos legais, como o de Hamurabi, na Mesopotâmia. Os registros dos tribunais egípcios mostram que a lei era baseada em uma visão do bem e do mal advinda do senso comum, que enfatizava a obtenção de acordos e a resolução de conflitos mais do que qualquer adesão estrita a uma série de estatutos. Amon O deus da vida, considerado o rei dos deuses. 20 Capítulo 1 O conselho local dos anciãos, conhecido no Império Novo como Kenbet, era responsável por julgar casos que envolvessem pequenas reivindicações e disputas menores. Casos mais sérios, que envolvessem assassinato, transações de grandes porções de terra e roubo de tumbas, cabiam ao Grande Kenbet, que era presidido pelo tjati ou pelo faraó. Perceba que os egípcios tinham uma tendência ao direito consuetudinário, isto é, baseado nos costumes, enquanto que os mesopotâmicos preferiam a lei codificada. Essas duas tendências permanecem no mundo atual. A partir do Império Novo, os oráculos – divindades que respondiam a consultas e orientavam os crentes – desempenharam um papel maior no sistema legal, respondendo pela justiça tanto nos casos civis quanto nos criminais. O procedimento consistia em fazer uma pergunta à divindade, pedindo-lhe “sim” ou “não” como resposta, a fim de saber que lado estava certo e que lado estava errado em um determinado caso. Amparado por um grupo de sacerdotes, o oráculo escolhia uma das duas opções e, assim, dava seu julgamento. Ele podia indicá-lo simplesmente movendo-se para frente, ou para trás, ou apontando para uma das respostas escritas em um pedaço de papiro ou em um óstraco. Figura 1.6 - Cena de consulta a um antigo oráculo egípcio Fonte: Bukerova (2006). As características da vida política egípcia apresentadas até aqui sequer nos permitem vislumbrar a complexidade daquela sociedade. Tudo o que já se conseguiu resgatar da antiga civilização egípcia espanta qualquer um, seja leigo ou especialista, por uma questão óbvia: como aquele povo, egresso da pré-história, pôde conceber um arranjo político tão eficiente, capaz de mantê- Óstraco O termo advém do grego ostrakon, que significa concha ou fragmento de cerâmica, usado como cédula de votação. 21 Ciência Política e Teoria Geral do Estado lo próspero por quase cinco milênios? Em nossa avaliação, pudemos ver que o faraó e sua máquina administrativa encontraram meios de conciliar religião, economia e justiça, atendendo aos desejos mais sensíveis de seus súditos. Seção 3 Grécia Antiga: a descoberta do homem através da política É muito comum encontrarmos teóricos que atribuem aos gregos antigos a “invenção da política”. Por tudo o que já estudamos até aqui, isto é, considerando todas as invenções políticas realizadas por povos anteriores aos gregos, parece impróprio confirmar esta afirmação. Em outras palavras, será mesmo possível afirmar que os gregos inventaram a política? Por incrível que pareça, a partir de certa perspectiva, a resposta é sim. Já dissemos que as grandes civilizações só puderam existir porque seus governantes perceberam que a política não consiste apenas em uma arte – ou seja, em uma atividade prática – mas também, dadas as suas regularidades, apresenta-se como uma ciência. Obviamente, homens anteriores à antigacivilização grega tiveram esta percepção, caso contrário, Hamurabi, por exemplo, não poderia condensar séculos de experiências políticas em seu código; e os egípcios, como vimos, não seriam capazes de elaborar um sistema de administração pública tão eficaz. No entanto, o que faz dos gregos inventores da política enquanto ciência é a maneira como eles a puseram no centro de sua existência. Para os gregos antigos, a política era uma nova forma de pensar, de sentir e, sobretudo, de relacionamento entre as pessoas. Como nos lembra Kenneth Minogue (1996, p. 19), “os cidadãos eram diferentes uns dos outros em riqueza, beleza e inteligência, mas eram iguais enquanto cidadãos, porque eram racionais e a única relação adequada entre os seres racionais é a persuasão.” A persuasão difere do comando – ato emblemático dos regimes despóticos – porque parte do princípio da igualdade entre o orador e o ouvinte, isto é, entre aquele que defende a sua ideia e aquele que o julga. 22 Capítulo 1 O uso da razão – aquela faculdade que o ser humano tem de avaliar, julgar, ponderar ideias universais – era, portanto, uma condição primária para que um grego tivesse uma vida política. Platão (428-347 a.C.), em seu diálogo Críton, narra o fim daquele que se tornou o maior exemplo de homem e cidadão para a humanidade. Segundo ele, o filósofo Sócrates, tendo sido condenado à morte, acusado de corromper a juventude, recusou a oferta de ajuda para fugir de Atenas, argumentando que a fuga não seria condizente com seu empenho pela cidade, à qual havia dedicado sua vida. A própria execução de Sócrates ilustra a convicção que os gregos tinham de que a violência não era uma forma aceitável de convivência: deram-lhe uma taça de cicuta, que ele bebeu enquanto seguia conversando com seus amigos, da mesma forma como fez durante toda a vida. Os gregos obedeciam às leis da polis por vontade própria, e não por imposição. Isto é, eles seguiam a lei livremente, e tinham orgulho nisto. O pior que podia acontecer a um grego antigo era o exílio, que representava uma forma de morte cívica. Em Atenas – uma das duas principais cidades-estado gregas, ao lado de Esparta – surgiu uma convenção chamada ostracismo, um tipo de banimento temporário que os cidadãos votavam, quando viam em alguém uma ameaça aos interesses públicos. 3.1 A civilização grega antiga Mas quem foram os gregos antigos? Antes de seguirmos tratando dos ideais políticos de seu povo, vale situarmos a Grécia Antiga no tempo e no mapa. No que se refere ao tempo, podemos dividir a antiga história grega em seis períodos, conforme indica o seguinte quadro: Cicuta Veneno extraído de uma planta que leva o mesmo nome. Polis Termo grego que significa cidade e é a raiz da palavra política, o que sugere que a política diga respeito à cidade ou, ainda, ao convívio na cidade. 23 Ciência Política e Teoria Geral do Estado Quadro 1.2 - Períodos da antiga história grega Período Duração Civilização Egeia Antes de 1600 a.C. Grécia Micênica 1600-1200 a.C. Idade das Trevas 1200-800 a.C. Grécia Antiga 800-338 a.C. Período Helenístico 338-146 a.C. Período Greco-Romano 146 a.C.-330 d.C. Fonte: Elaboração do autor (2009). Alguns historiadores incluem a Civilização Egeia (ou Minóica), a Grécia Micênica e a Idade das Trevas na chamada Grécia Antiga. No entanto, a maioria prefere usar este termo para designar um período específico, em que a civilização grega conheceu seu esplendor. A Grécia Antiga, assim compreendida, subdivide-se em dois outros períodos: o Arcaico (800-500 a.C.) e o Clássico (500-338 a.C.). O Período Arcaico foi uma fase de formação, durante a qual surgiram os principais modelos de cidade grega, o alfabeto fonético, as tendências artísticas e literárias e todos os demais aspectos que constituiriam a base cultural das conquistas clássicas. Além disso, também se observa nesse período um notável progresso econômico, com a expansão da divisão do trabalho, do comércio e da indústria, paralelamente aos processos de urbanização e colonização. No Período Clássico, as invenções das mais diversas ordens iniciadas no Período Arcaico estavam plenamente desenvolvidas. As já mencionadas Atenas e Esparta eram, na época, as principais cidades gregas, mas, além delas, também havia outras importantes cidades, como Tebas, Corinto e Siracusa. Durante este período, aconteceu uma série de conflitos externos, denominados Guerras Médicas (500-448 a.C.), e também a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), um conflito interno entre as duas principais potências gregas de então: Esparta, de tradição oligárquica, e Atenas, de tradição democrática. Essa guerra, fatídica para o mundo grego, foi iniciada por Esparta, que temia a ascensão de Atenas. Esparta venceu a guerra e, por um breve período, dominou todo o mundo grego, porém, em 371 a.C., as outras cidades-estado insurgiram contra a tirania espartana e derrubaram seu domínio. Com relação ao território, o mapa a seguir representa a Grécia no século VIII a.C. Idade das Trevas Período em que a Grécia foi invadida pelos povos aqueus, dóricos, eólios e jônicos. 24 Capítulo 1 Figura 1.7 - Grécia no século VIII a.C. Fonte: Albuquerque (1977). 3.2 Liberdade na polis Em Atenas – o centro civilizacional do mundo no século V – encontramos a maioria das condições da liberdade: uma vida vivida entre iguais, sujeitos apenas às leis, governando e sendo, por sua vez, governados. Referindo-se à liberdade de que gozavam os cidadãos atenienses, Minogue (1996, p. 20) é enfático ao explicar por que os gregos antigos são considerados os inventores da política: Os gregos foram o primeiro povo na história a criar sociedades deste tipo; foram, certamente, os primeiros a criar uma literatura que explorou essa forma de vida como experiência. A política era a atividade específica para essa nova figura chamada “cidadão”. Podia revestir muitas formas, mesmo aviltantes, de tirania e usurpação, mas numa coisa os últimos clássicos da Grécia foram inflexíveis: para eles o despotismo oriental não era política. 25 Ciência Política e Teoria Geral do Estado Em se tratando de religião, costumes ou concepção de vida humana, são muitas e profundas as diferenças entre nós, modernos, e os gregos clássicos. Apesar deste abismo cultural, quando lemos sua literatura é fácil enxergá-los como nossos contemporâneos. Por meio de seu racionalismo, os gregos atravessam os milênios e se comunicam conosco com uma fluência espantosa. A concepção de vida dos gregos era essencialmente humanista, no entanto seu humanismo não era igual ao nosso – transformado pelo cristianismo. Os gregos antigos consideravam o homem um animal racional e o significado da vida humana encontrava-se no exercício dessa racionalidade. Para os gregos, sucumbir às paixões era o mesmo que rebaixar-se à condição de um animal irracional. O segredo da vida consistia no autoconhecimento e no equilíbrio das próprias capacidades. A maneira mais elevada que um grego poderia encontrar para expressar-se a si mesmo era deliberar sobre as leis e os assuntos públicos, o que só podia ocorrer na cidade. 3.3 Humanismo cruel e cidadania Este humanismo, contudo, também tinha seu lado cruel. Uma vez que alguém só é humano quando é racional, e uma vez que uns são menos racionais que outros, os humanistas gregos mais astutos achavam-se no direito de escravizar seus semelhantes “inferiores”. Entretanto, os que defendiam esse ponto de vista, entre eles o filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), sabiam que, intelectualmente, muitos escravos eram superiores aos seus senhores, o que nos leva à outra importante conclusão. Em última instância, os princípios humanistas serviam apenas para dar uma base racional às instituições políticas criadas pelas elites gregas. Os elitistas gregos, fossem oligarcas ou aristocratas, acreditavam que, além dos escravos, também as mulheres eram menos racionais do que os homens. Eles sabiam que, sobretudonaquela época, política e guerra estavam intimamente ligadas, e – considerando que as mulheres, por sua natureza física, não têm tanto vigor para lutar em guerras – apoiavam-se também nesse argumento para impedir a participação feminina nos assuntos públicos. A cidadania grega, portanto, estava restrita aos adultos livres do sexo masculino e, em algumas cidades, nem sequer a todos estes. 26 Capítulo 1 As leis e as políticas (ações governamentais) provinham não do palácio de um déspota, mas de uma praça pública, onde os cidadãos discutiam todo tipo de questão que importasse à cidade. Na ágora – como essa praça era chamada na Grécia Antiga (o equivalente ao fórum romano) – os cidadãos gozavam de isonomia (igualdade perante a lei) e de iguais oportunidades para se pronunciar em uma assembleia. Evidentemente, em grandes cidades, como Atenas, onde milhares de pessoas compareciam a uma assembleia, era impossível que cada participante se pronunciasse, de modo que o privilégio recaía sobre os que dominavam a arte da palavra (geralmente os aristocratas) e sobre os grandes líderes, que tinham notável apoio popular. Figura 1.8 - Reconstituição da ágora ateniense em 479 a.C. Fonte: Tsalkanis (2012). Os cidadãos que participavam das assembleias na ágora pertenciam a casas de família (oikia), que consistiam em unidades produtivas básicas daquele mundo antigo. A oikos – de onde vem o termo economia – foi descrita por Aristóteles como um sistema de subordinação: a mulher era subordinada ao homem, os filhos eram subordinados aos pais e os escravos aos senhores. Era o espaço em que os gregos desfrutavam a vida familiar e realizavam a maior parte de suas necessidades materiais, como alimentação, conforto, procriação, etc. Em outras palavras, era a esfera privada do mundo grego. Para os gregos, a “casa de família” representava o mundo da natureza, enquanto que a ágora, por exemplo, representava o lado artificial – embora necessário – da cidade. Quando se tornava adulto, o jovem grego podia sair da “casa de família” para a ágora, a fim de encontrar a liberdade e superar suas necessidades naturais, assumindo responsabilidades, proferindo palavras nobres e realizando feitos que, de alguma maneira, o imortalizariam. Oikos está no singular e oikia no plural. 27 Ciência Política e Teoria Geral do Estado De acordo com Finley (1998), os gregos do período clássico estavam suficientemente conscientes de si mesmos para se reconhecerem como uma cultura diferente, e foi ao construírem um entendimento histórico de si próprios e do seu mundo que eles ofereceram possibilidades absolutamente novas de experiência humana. “A política e a história nasceram, assim, juntas, porque partilham o mesmo conceito do que é um ser humano e daquilo que vale a pena ser recordado.” (FINLEY, 1998, p. 35). A história, que é feita de atos e palavras, tem nas próprias palavras o seu veículo. Daí a importância que os gregos deram à retórica – a arte das palavras. Eles entenderam que apenas com termos bem pensados, argumentos devidamente construídos, voltados para o público que os julgaria, teriam sucesso nas assembleias. Entenderam que apenas com discursos bem elaborados poderiam fazer história. Parece natural, hoje em dia, que a política se realizasse daquela maneira, mas, pela primeira vez na história, as decisões públicas eram tomadas à luz do dia, sujeitas a críticas de toda a gente. A busca da primazia nos discursos levou a uma perversão desta prática. Jovens aristocratas ambiciosos, instruídos por professores chamados sofistas, que haviam codificado a arte da retórica, vieram a manipular as palavras conforme os seus interesses, desviando o sentido da política. Em sua História da Guerra do Peloponeso, Tucídides (460-400 a.C) registrou uma série de discursos proferidos pelos participantes daquele conflito, os quais Minogue (1996, p. 24) ironiza: “no seu conjunto, estes discursos constituem um manual completo da sabedoria e também da estultícia políticas.” 3.4 A reforma de Sólon e a separação dos poderes A perversão da retórica estava ligada a um engano cometido pelos gregos, que nós modernos repetimos até hoje: a falsa convicção de que o mundo resulta de um plano deliberado. O mundo nem sempre funcionava conforme os gregos queriam, imaginavam e prescreviam em suas assembleias. Estultícia Estupidez. 28 Capítulo 1 Figura 1.9 – “Sólon, legislador de Atenas”, quadro de Merry-Joseph Blondel (1828) Fonte: Förlag (2013). Em algumas oportunidades, eles perceberam que seus projetos haviam falhado. O caso mais famoso ocorreu no século VII a.C., quando os atenienses pediram a Sólon (640-560 a.C.) que concebesse uma reforma nas leis da cidade. Entre as características desta reforma, duas merecem destaque, por exemplificarem o essencial da política grega. Sólon baseou a política ateniense em unidades territoriais, em que se misturavam diversas lealdades de clã ou tribo, a fim de desagregá-las e encorajar a defesa de interesses gerais, partilhados por toda a comunidade. Isto é reproduzido até hoje: o círculo eleitoral moderno agrega uma população heterogênea que habita uma determinada área, a fim de captar seus interesses como um todo. Após estabelecer sua reforma, Sólon ausentou-se de Atenas por dez anos, para que a constituição fosse posta em prática por outras pessoas. Com isso, Sólon sugeriu que quem concebe a lei não pode pô-la em prática, pois, caso contrário, dará margem a arbitrariedades. Esse princípio seria retomado pelos modernos sob o título de separação dos poderes. 29 Ciência Política e Teoria Geral do Estado 3.5 A constituição O conjunto de cargos que formavam o governo da polis e as leis que estabeleciam suas relações representavam a constituição. A constituição, para os gregos, tinha uma importância particular: sem ela, um governo não teria o tipo específico de limitação moral que distingue a atividade política. Os gregos clássicos acreditavam que um governo sem constituição não possuía legitimidade. As constituições têm duas funções básicas: • delimitar o poder daqueles que detêm os cargos; (e, assim,) • criar um mundo previsível (embora não rígido e fixo), no qual os cidadãos podem orientar suas vidas. Podemos afirmar que a constituição representa o principal objeto da ciência política, pois ela é a expressão formal das regularidades que esta atividade apresenta. Diversos pensadores gregos dedicaram-se a estudar as formas que as constituições tomaram. Durante o período clássico, as duas formas constitucionais que predominaram foram a oligarquia, que favorecia os ricos e os poderosos, e a democracia, que atendia aos interesses dos pobres e demonstrava-se violenta e instável. Talvez por este motivo, os principais pensadores deste período, Platão e Aristóteles, criticaram os inconvenientes dessas duas formas, apontando a república como solução. 3.6 Teoria dos ciclos recorrentes Mais tarde, Políbio (203-120 a.C), de um ponto de vista histórico mais privilegiado, complementaria a análise de seus antecessores ao propor a teoria dos ciclos recorrentes. Reunindo as contribuições da ciência política grega, Políbio estudou as constituições e generalizou a relação entre a natureza humana e as associações políticas. Para ele, as monarquias tendem a degenerar em tirania, as tiranias são destronadas pelas aristocracias, estas degeneram em oligarquias exploradoras da população, que são derrubadas pelas democracias, as quais, por sua vez, degeneram numa instabilidade intolerável; aparece então um líder poderoso que se impõe como monarca, e o ciclo recomeça. Mais de um milênio depois, o renascentista Maquiavel retomaria a teoria de Políbio e a complementaria, acrescentando a ela uma distinção entre anarquia e democracia e enfatizando a república como uma combinação das formas puras. Além disso, Maquiavel, amante da Antiguidade Clássica, também se posicionaria em relação à outra questão proposta pelos gregos antigos.Aristóteles, em particular, acreditava que o elemento democrático era essencial em uma 30 Capítulo 1 constituição equilibrada, que ele chamou de politeia. Para ele, todo tipo de mudança na forma de governo, isto é, todo tipo de revolução política é motivada por uma causa apenas: a exigência da igualdade. Ora preocupado com a ética, ora com a política, Aristóteles fez, a si mesmo e à humanidade como um todo, a seguinte pergunta: um bom cidadão pode ser um bom homem? Ao responder a essa pergunta, Maquiavel faria nascer a Ciência Política moderna. No entanto, este assunto extravasa nossas pretensões nesta seção. Por ora, fiquemos com este breve panorama do pensamento político desenvolvido pelos gregos antigos, certamente o primeiro povo a descobrir a essência humana através da política. Seção 4 Roma Antiga: a política só existe na prática A maioria dos estudiosos atribui uma merecida importância aos gregos antigos, porém costuma subestimar seus sucessores e conquistadores, os romanos, tomando-os apenas como meros reprodutores dos modelos gregos. Há alguma verdade nisso; no entanto, ao imitar seus mestres gregos, os romanos, ao menos na prática, vieram a superá-los. Essencialmente pragmáticos, voltados para a ação e apoiados em valores nobres, os romanos deram à sua civilização uma vida longa e próspera, que durou mais de mil anos, sendo meio milênio só de república. Se o termo política deriva da língua grega, os termos civilidade, cidadão e civilização derivam da língua dos romanos, o latim – um sinal da influência que Roma exerce sobre a tradição política ocidental. Todavia, os romanos consideravam-se ligados aos gregos em todos os sentidos. A própria epopeia, que explica as origens do povo romano – a Eneida, de Virgílio – narra a aventura de Eneias, herói do povo troiano, que, após ter sua cidade tomada e destruída pelos gregos, conduz os sobreviventes de seu povo até a região do Lácio, na Itália, onde seria fundada a cidade de Roma. Ou seja, os romanos criaram a sua própria história, de modo que ela fosse vista como uma continuação direta da clássica civilização grega. Epopeia Epopeias são poemas longos acerca de um assunto grandioso e heroico. Toda língua ou nação costuma possuir uma epopeia que exalte suas origens. É o caso da Ilíada, de Homero, e de Os Lusíadas, de Camões. 31 Ciência Política e Teoria Geral do Estado Figura 1.10 – “Eneias foge de Tróia em chamas”, quadro de Federico Barocci (1598) Fonte: Krén e Marx (2012). Na mitologia romana, após estabelecer-se no Lácio, Ascânio, filho de Eneias, funda a cidade de Alba Longa. Os descendentes de Ascânio governam Alba Longa por cerca de 400 anos, até que uma briga pela sucessão no trono abala a estabilidade da dinastia. Numitor, filho do rei Procas e legítimo herdeiro do trono, é deposto por seu ambicioso irmão Amúlio. Este obriga a esposa de Procas, Reia Sílvia, a tornar-se uma vestal e fazer um voto de castidade. O deus Marte, no entanto, seduz a legítima princesa, que engravida e dá a luz a dois gêmeos homens, chamados Rômulo e Remo. Amúlio ordena que os gêmeos sejam mortos, mas o escravo incumbido desiste da tarefa de matá-los e os abandona no rio Tibre. A cesta com os bebês vai parar nas margens do rio, entre os montes Palatino e Capitolino, onde são encontrados, adotados e amamentados por uma loba. Os gêmeos crescem e decidem, então, fundar uma nova cidade. Mas novamente a ambição pelo poder abala a fraternidade e faz com que eles entrem em conflito. Rômulo prevalece e, em homenagem a seu nome, funda a cidade de Roma, tornando-se seu primeiro rei. Com o governo de Rômulo, Roma inicia a sua primeira fase política, o Reino, que vai de 753 a 509 a.C. Nesse período, foram estabelecidas suas bases políticas. Ainda durante o período monárquico, o povo romano expressou sua inclinação republicana, instituindo a Assembleia Curial, que elaborava e aprovava as leis e escolhia os reis; e o Senado Romano (ou Conselho dos Anciões), que possuía o direito de aprovar, ou não, as leis e políticas propostas pelo rei. Vestal Sacerdotisa virgem, consagrada à deusa Vesta. Assembleia Curial Relativo à Cúria – a corte pontifícia, composta pelos supremos sacerdotes da cidade. 32 Capítulo 1 Além disso, durante o Reino, Roma também exibiu sua tendência expansionista, que ficaria evidente durante o período republicano e, principalmente, durante o Império. Em seus 243 anos de duração, a monarquia romana impôs o seu domínio no Lácio, conquistando Alba Longa e estendendo seu território até a foz do rio Tibre. Durante o período monárquico, estratificaram-se as cinco principais classes que perdurariam na sociedade romana: • Patrícios - cidadãos romanos, que detinham o poder econômico e político; • Plebeus - homens livres, porém sem direitos políticos; • Clientes - pessoas ligadas a uma família patrícia, que se subordinavam ao seu patrono e seguiam-no na política e na guerra, além de assumir, também, obrigações econômicas; • Escravos - geralmente, pessoas recrutadas entre os derrotados da guerra, consideradas meros instrumentos, sem nenhum direito político; • Marinos - carpinteiros e marceneiros ligados aos plebeus. Nesse intervalo, houve apenas sete reis, o que dá uma média de 35 anos por reinado – uma estabilidade muito maior do que qualquer dinastia já havia atingido até então. Em algum momento desta época, o trono romano passou a ser ocupado por reis etruscos, o que colidia diretamente com os interesses da aristocracia romana: manter a hegemonia na região do Lácio, que também era composta de cidades etruscas. Isso motivou os membros da elite a derrubar a monarquia e – ao invés de estabelecer uma aristocracia – fundar a República Romana, que duraria de 509 até 29 a.C. 4.1 A república romana: uma constituição equilibrada Curiosamente, e confirmando o que dissemos no começo desta seção, através da República os romanos, de alguma forma, realizaram um ideal aristotélico que os gregos não chegaram a realizar plenamente: a politeia. A constituição da República Romana previa um elemento monárquico (os cônsules), um elemento aristocrático (o senado) e – o mais importante – um elemento democrático (o tribuno da plebe). Ao garantir o elemento democrático, os romanos criaram uma espécie de válvula de escape para os anseios de igualdade, fazendo com que nenhum cidadão jamais se sentisse ignorado e, assim, desigual em relação aos mais poderosos. 33 Ciência Política e Teoria Geral do Estado A forte base oferecida pelo governo republicano permitiu que Roma, de uma pequena cidade-estado, fosse transformada em um império. No século III a.C., os exércitos romanos já haviam tomado todas as cidades etruscas, conquistando o domínio completo da península itálica. Entre os séculos III e II a.C., Roma iniciou sua expansão para além da península. O primeiro passo foi conquistar os territórios dos cartagineses, que tinham sua capital no norte da África e haviam colonizado toda a costa setentrional daquele continente, além da Sicília, Sardenha, Córsega e Península Ibérica. Enquanto acabavam de liquidar os púnicos, os romanos voltaram seus olhos para o oriente, onde o Império de Alexandre Magno (356-323 a.C.) se havia diluído. Em menos de um século, Roma dominou a maior parte do território macedônico, além da Grécia e do Egito. Figura 1.11 - Expansão do território romano, desde o Reino até o início do Império Fonte: Albuquerque (1977, p. 77). Púnicos Como os romanos chamavam os cartagineses. Daí o nome “Guerras Púnicas”. 34 Capítulo 1 No final do século II a.C., a civilização romana já era a maior potência mundial. Àquela época, o território dos romanos estendia-se por quatro mil quilômetros, indo da Espanha até a Ásia Menor. Seu ímpeto expansionista, entretanto, não cessou. Pelo contrário, apenas aumentou: em meados do século I a.C., o general Júlio César (100-44 a.C.), patrício de grande influência, conquistou acobiçada Gália, e assim fez crescer seu prestígio entre a população romana. Naquele momento, o Senado, temendo seu populismo, tentou enfraquecê-lo. César, entretanto, voltou-se contra a elite aristocrática e declarou-se Imperador Romano, pondo um fim ao período republicano e dando início ao Império Romano (27 a.C.- 476 d.C.), que viria a revolucionar para sempre toda a estrutura política, geográfica e econômica da Europa. 4.2 Sincretismo e patriotismo Parte do sucesso romano deve-se, sem dúvida, à sua postura civilizatória. Sempre que os romanos conquistavam um grande povo, como fizeram com os gregos, os egípcios e os cartagineses, ao invés de destruírem toda a produção cultural de seu inimigo, eles preservavam-na, procurando absorver o que havia de melhor nela. Os estudiosos dão a esta prática o nome de sincretismo, que consiste em fundir elementos culturais diferentes, ou até antagônicos, em um só elemento, continuando perceptíveis alguns sinais originários. Um dos maiores reflexos desta postura sincretista está na maneira como os romanos absorveram e transformaram o humanismo grego. Se a política dos gregos baseou-se na razão, a dos romanos baseou-se no amor – um amor ao país, um amor à própria Roma. Os romanos, de fato, inventaram o patriotismo, e esta é uma das grandes chaves de seu sucesso. Eles consideravam-se uma espécie de família e viam em Rômulo, seu fundador, um antepassado comum. Talvez tenha sido Agostinho de Hipona (mais conhecido como Santo Agostinho), um dos maiores pensadores cristãos, que viveu durante a fase final do Império Romano (354-430 d.C.), o primeiro a perceber o patriotismo como a paixão orientadora dos romanos; em parte porque viu em tal paixão uma prefiguração do amor que animava os cristãos. No entanto, é do poeta Horácio (65-8 a.C.) o verso que, por muito tempo, representou o mais nobre dos sentimentos políticos: “dulce et decorum est pro patria mori” (morrer pela pátria é maravilhoso e digno). Este sentimento perderia seu valor após a II Guerra Mundial, devido aos horrores causados pelo patriotismo exagerado dos nazistas. 35 Ciência Política e Teoria Geral do Estado 4.3 Poder e autoridade Como afirma Minogue (1996, p. 32), “quando os romanos pensavam no poder, utilizavam duas palavras, a fim de marcarem uma diferença importante: potentia significava poder físico, enquanto potestas significava o direito e o poder legais inerentes a um cargo.” O conjunto total dos poderes à disposição do estado constituía o imperium. Além disso, essas duas formas de poder diferiam de outro conceito legado pelos romanos, muito caro à tradição política: a auctoritas. Auctoritas (autoridade) representava a reunião da política com a religião romana, implicava a veneração das famílias e, portanto, dos antepassados. Um auctor (autor) era o fundador ou o iniciador de qualquer coisa – fosse uma cidade, uma família, ou mesmo um livro ou uma ideia. Se o Senado foi a mais importante instituição romana, é porque seus membros eram considerados os autores daquela sociedade. Daí o respeito que qualquer cidadão tinha por um senador, confiando a esta figura a condução da res publica (a coisa pública). O estandarte do exército trazia o símbolo militar da nação, a águia, e a sigla do seu lema principal: Senatus Populusque Romanus (Senado e Povo Romano) – um sinal da estima que o povo tinha por esta instituição, o senado. Além do patriotismo e da autoridade, o sucesso romano teve outro fator decisivo: sua força moral. Na Roma Antiga, o suborno de um funcionário público era um crime capital. Ademais, podia-se confiar em um romano: eles eram famosos por honrar seus compromissos. A causa desta inerente probidade também era religiosa: os romanos acreditavam em superstições sobre castigos na vida após a morte. Os judeus, quando entraram em contato com os romanos, por volta do século II a.C., assim como os gregos, sentiram grande admiração por aquele povo tão correto e o consideraram um aliado equilibrado. Entretanto, embora tivessem crescido apoiados em uma moralidade sólida, com o passar do tempo o sucesso e a riqueza corromperam os romanos, que acabaram por cair sob o domínio daquelas formas despóticas de governo que, antes, repudiavam. Figura 1.12 - Réplica do estandarte romano Fonte: Steendam (2007). 36 Capítulo 1 No século I d.C., após os tempos gloriosos de Otávio Augusto (63 a.C.-14 d.C.), os governos que se estabeleceram, ainda que sejam inclusos no período clássico da história romana, não fizeram por merecer. Os imperadores da Dinastia Júlio- Claudiana, especialmente os tiranos Calígula (12-37 d.C.) e Nero (37-68 d.C.), ao imergir Roma em um mar de vícios, fizeram de sua época um período de decadência anunciada. Figura 1.13 – “Os romanos da decadência”, de Thomas Couture (1879) Fonte: Lewandowski (2006). Todavia, se queremos fazer da política uma ciência, não cabe a nós julgar os períodos críticos da história romana. Assim como fizeram aqueles que prosperaram nas terras pantanosas do Lácio, devemos analisar friamente o que fez a política funcionar e o que a prejudicou. A política ocidental distingue-se de outras formas de ordem social pelo desenvolvimento da tese de que, “para além da harmonia que resulta de todos saberem qual é o seu lugar, existe uma outra harmonia na qual os conflitos são resolvidos através da discussão livre e da aceitação plena dos resultados, sejam eles quais forem, de procedimentos constitucionais.” (MINOGUE, 1996, p. 35). Se podemos tirar alguma lição da experiência romana, é a de que a política só existe na prática.
Compartilhar