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Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-65-5821-019-1 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 1 9 1 Código Logístico 59844 Temas sociais e educacionais contemporâneos Graziella Rollemberg IESDE BRASIL 2021 © 2021 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa:Blan-k/ Rainbow Black/ Receh Lancar Jaya/ Kate_gr/ art of line/ Somjai Jathieng/ Bloomicon/ Maria Ion/Shutterstock Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R656t Rollemberg, Graziella Temas sociais e educacionais contemporâneos / Graziella Rollem- berg. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2021. 176 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-019-1 1. Educação ambiental. 2. Meio ambiente. 3. Desenvolvimento susten- tável. I. Título. 21-70382 CDD: 363.7 CDU: 502.1 Graziella Rollemberg Mestre em Educação Profissional e Tecnológica pelo Instituto Federal de Sergipe (IFS). Especialista em Docência do Ensino Superior pela Universidade Norte do Paraná (Unopar). Licenciada em Sociologia pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi). Bacharel em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Docente e coordenadora editorial de coleções didáticas e paradidáticas para Ensino Fundamental e Ensino Médio. Autora de obras didáticas para Educação Básica e Educação Superior e de obras paradidáticas para Educação Básica das redes pública e privada há 25 anos. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Educação ambiental e consumo responsável 9 1.1 Compreendendo conceitos 10 1.2 Preservação e conservação do meio ambiente 13 1.3 Novas tendências de sustentabilidade 23 1.4 Educação ambiental 28 2 Educação financeira: um aprendizado para a vida 37 2.1 Sistemas econômicos e racionalidade econômica 37 2.2 Relações de produção e de trabalho 45 2.3 Economia solidária 50 2.4 Educação financeira e fiscal 56 3 Educação científica e inclusão digital 65 3.1 O que é conhecimento? 65 3.2 A ciência 71 3.3 A tecnologia 83 3.4 Ciência, tecnologia e educação 89 4 Promoção da saúde na escola 103 4.1 Saúde integral e qualidade de vida 104 4.2 Prevenção de doenças e de riscos 118 4.3 Promoção da saúde integral na escola 127 5 Respeito à diversidade na sociedade 139 5.1 Direitos humanos, igualdade e diversidade 139 5.2 Desigualdade e exclusão 153 5.3 Diversidade cultural: multiculturalismo e interculturalismo 159 Gabarito 171 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! Esta obra pretende subsidiar a abordagem, no contexto escolar, dos Temas Transversais Contemporâneos (TCTs), propostos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), articulando conteúdos conceituais e encaminhamentos didático-pedagógicos, no sentido de contribuir para a formação integral do estudante e de fortalecer o exercício das funções sociais da escola. Segundo a BNCC, os TCTs podem explicitar a ligação entre os diferentes componentes curriculares de maneira integrada e relacioná-los com situações vivenciadas pelos estudantes em suas realidades sociais, contribuindo para agregar contexto e contemporaneidade aos objetos do conhecimento recomendados. No primeiro capítulo, serão abordados conceitos como natureza e meio ambiente, conservação e preservação ambiental, ética ambiental e desenvolvimento sustentável, bem como educação para o consumo responsável. Serão apresentados, também, elementos para a construção de práticas em educação ambiental e de intervenções no contexto escolar e local, a fim de promover hábitos de consumo sustentável e uma cultura de conservação do meio ambiente da comunidade. O segundo capítulo trará conceitos básicos relativos ao funcionamento dos sistemas econômico e financeiro e orientações gerais sobre gestão da vida financeira, visando formar cidadãos cientes das relações econômicas nas quais estão inseridos e capazes de administrar suas finanças com responsabilidade individual, social e ética, o que contribui para a saúde financeira de toda a sociedade. No terceiro capítulo, serão vistos os conceitos básicos da ciência e da tecnologia e seus métodos próprios, assim como noções da sua aplicação à análise da realidade e à interpretação das informações às quais temos acesso no cotidiano, buscando formar cidadãos capazes de selecionar, compreender e interpretar criticamente essas informações, assim como de construir sua visão de mundo e suas ações por meio do conhecimento acumulado pela humanidade. APRESENTAÇÃO Vídeo 8 Temas sociais e educacionais contemporâneos O quarto capítulo tratará das várias dimensões ligadas ao conceito de saúde integral, que fundamenta as políticas públicas para a área de saúde no Brasil, abordando as dimensões da saúde física, mental e social. O objetivo é construir estratégias para a adoção de hábitos saudáveis que contribuam para reduzir o risco de desenvolvimento de doenças, físicas ou mentais, como hábitos alimentares saudáveis, atividade física regular, sono de qualidade, interação social saudável, gerenciamento do estresse, redução de riscos e doenças, eliminação do tabagismo, bons hábitos posturais, entre vários outros que devem fazer parte das orientações voltadas para a formação integral dos alunos no contexto escolar. Por fim, o quinto capítulo abordará conceitos essenciais para a construção de sociedades democráticas mais igualitárias e inclusivas – por exemplo, diversidade, igualdade, desigualdade, equidade, alteridade, multiculturalismo, cidadania e direitos humanos –, no intuito de contribuir para a construção de práticas inclusivas de tolerância e respeito à diversidade na escola, bem como para a mobilização da comunidade escolar na luta pela promoção da igualdade de acesso aos direitos básicos e à cidadania plena. Bons estudos! Educação ambiental e consumo responsável 9 1 Educação ambiental e consumo responsável Você já deve ter ouvido muitas vezes o termo meio ambiente em contextos que destacavam a necessidade de proteger recursos na- turais, como florestas, rios e mares, ou preservar espécies animais e vegetais, ou ainda cuidar da vida do planeta em face do aquecimen- to global etc. O tema do meio ambiente é frequente em jornais e revistas, nas notícias veiculadas na televisão e no rádio, em vídeos, postagens e discussões nas redes sociais. Está presente também na escola e em outros locais nos quais há diálogo sobre temas importantes para a sociedade. Os movimentos ambientalistas vêm ganhando cada vez mais espaço na mídia, e a preservação do meio ambiente tem se torna- do uma grande luta social em todo o mundo, principalmente para a geração mais jovem. Mas o que é o meio ambiente? Por que é tão importante preservá-lo? É possível protegê-lo e, ainda assim, extrair subsistên- cias e riquezas da natureza? Como gerar desenvolvimento para a sociedade sem prejudicar o meio ambiente? O que pode acontecer se algumas daspráticas que prejudicam o meio ambiente não fo- rem repensadas? Neste capítulo você vai compreender os conceitos de nature- za e meio ambiente, conservação e preservação ambiental, ética ambiental e desenvolvimento sustentável e estudará um pouco a educação para o consumo responsável. Com esses conhecimen- tos, poderá responder às questões apresentadas aqui e a várias outras, o que contribuirá para a construção de suas práticas em educação ambiental e para suas intervenções no contexto escolar, no sentido de promover hábitos de consumo sustentável e uma cultura de conservação do meio ambiente da comunidade. sarayut_sy/Shutterstock 1.1 Compreendendo conceitos Vídeo Natureza e meio ambiente são conceitos que se transformaram ao longo da história e que podem ter diferentes significados dependendo da área de conhecimento e dos autores escolhidos. De uma maneira simples, a natureza pode ser definida como um conjunto de elementos presentes no mundo natural, como rios, ma- res, montanhas, árvores, animais etc. Em geral, ela costuma ser vista como algo externo aos indivíduos e muitas vezes como uma coleção de recursos que servem à sobrevivência humana, o que sugere certa oposição entre os seres humanos e o mundo natural, o qual precisaria ser dominado e explorado em benefício das pessoas. Uma definição simples de meio ambiente é: conjunto de fatores fí- sicos, biológicos e químicos que cerca os seres vivos, influenciando-os e sendo influenciado por eles (ONU, 1972). Nessa concepção o ser hu- mano nem é citado. Outra forma mais complexa de conceituar o meio ambiente é: con- junto de unidades ecológicas que funciona como um sistema natural, mesmo com uma intensa intervenção humana e de outras espécies do planeta, incluindo toda a vegetação, os animais, os micro-organismos, o solo, as rochas, a atmosfera e os fenômenos naturais que podem ocorrer em seus limites (LIMA, 2010). Percebemos que o meio ambiente costuma ser considerado algo que engloba, além da natureza, todos os seres vivos e não vivos que existem nela, sendo os humanos apenas um de seus integrantes, com importân- cia equivalente à dos animais, das plantas, dos minerais etc. A relação entre os seres humanos e a natureza assume as- pectos diferentes dependendo da época, do local e do tipo de organização social, cultural e econômica de cada grupo humano. Ao longo da história, em alguns contextos, a natureza foi vista como algo a ser conquistado e explorado e, em outros, como algo a ser contemplado e respeitado, quase como um paraíso na Terra. Segundo Gonçalves (2000), o termo natureza não é um conceito natural, mas sim inventado pelos se- 1010 Temas sociais e educacionais contemporâneosTemas sociais e educacionais contemporâneos res humanos, e depende muito da cultura e das intenções de cada grupo social. Para o autor: toda sociedade, toda cultura, cria, inventa, institui uma deter- minada ideia do que seja a natureza. Nesse sentido, o con- ceito de natureza não é natural, sendo na verdade criado e instituído pelo ser humano. Constitui um dos pilares atra- vés do qual os homens e as mulheres erguem as suas rela- ções sociais, sua produção material e espiritual, enfim, a sua cultura. (GONÇALVES, 2000, p. 23) Se a noção do que é a natureza foi construída pelo ser humano e não é sempre a mesma em todas as culturas, épocas e lugares, é im- portante conhecermos a história das interações humanas com ela. Va- mos recuar um pouco no tempo: como nossos antepassados da época pré-histórica interagiam com o ambiente que os cercava, com a nature- za e com seus elementos? Os seres humanos sempre exploraram de alguma forma o meio ambiente para obter recursos e garantir sua sobrevivência. Itens como água, alimentos e abrigo estavam disponíveis na natureza, mas era preciso enfrentar alguns desafios para obtê-los, como percorrer longas distâncias, lutar ou fugir de predadores, proteger-se de eventos climá- ticos, entre muitos outros. No início da história dos grupos humanos no planeta, a natureza era vista como fonte de sobrevivência, mas também como força poderosa e impossível de ser dominada pelos seres humanos. Gradativamente, porém, isso foi se modificando. Nossos antepassados foram aprenden- do com as experiências e, com base no que vivenciavam no cotidiano, entendendo como evitar plan- tas venenosas e locais perigosos, lutar com determinados animais e fugir de outros, obter melho- res alimentos, proteger-se me- lhor do frio, da chuva ou do calor excessivo etc. Gorodenkoff/Shutterstock 1111Educação ambiental e consumo responsávelEducação ambiental e consumo responsável 12 Temas sociais e educacionais contemporâneos Esses conhecimentos adquiridos pela interação com o meio foram sendo transmitidos de geração em geração. Com o tempo, a natureza se tornou mais do que fonte de sobrevivência, passando a representar também fonte de riquezas. Sua exploração foi então se ampliando e começou a gerar consequências negativas, como a progressiva degra- dação do meio ambiente. Entretanto, se no início os grupos humanos eram pouco numerosos e nômades, isto é, quando a caça e a coleta no local em que se encontravam começavam a ficar escassas, migravam para outro ambiente que pudesse oferecer alimento por mais um pe- ríodo. No decorrer do tempo essa situação foi se transformando. A partir do período histórico chamado de Neolítico, os grupos hu- manos descobriram como produzir seu próprio alimento por meio da agricultura e da criação de animais. Com isso, passaram a se fixar em um só local e foram crescendo e estabelecendo núcleos de convivência, com moradias fixas, plantações etc. Para isso, era preciso intervir mais ativamente no ambiente, derrubar árvores e arar a terra. Se da t D em ir /S hu tte rs to ck Cidade de Çatalhöyük, Turquia, descrita como uma das mais antigas povoações do período Neolítico. Bem mais à frente, nos séculos XVIII e XIX, com a invenção das máquinas e o estabelecimento das primeiras fábricas, no contexto da Revolução Industrial, a produção aumentou muito. As cidades se ampliaram, e a retirada de matérias-primas da natureza assim como a intervenção no ambiente para a construção de ruas, casas, fábricas, ferrovias etc. aumentaram de modo considerável. Educação ambiental e consumo responsável 13 Essa industrialização trouxe desenvolvimento para os centros urba- nos, transformou os processos produtivos, melhorando a quantidade e a qualidade dos produtos, e gerou lucro para a classe industrial, além de novos postos de trabalho para a população em geral, mesmo que muitas vezes sem a justa remuneração ou as condições adequadas de trabalho e de vida. Basta observarmos as periferias das grandes cida- des para notarmos que a industrialização não trouxe desenvolvimento igual para todos. A industrialização também proporcionou impactos cada vez mais profundos ao meio ambiente, contribuindo para que tenhamos de conviver com o aquecimento excessivo do planeta, o desflorestamento causado por desmatamentos e queimadas, a desertificação, a poluição do ar, do solo, dos rios e dos mares, a produção de enormes quanti- dades de lixo causadas pelo consumo desenfreado, a extinção de es- pécies, a destruição da biodiversidade, o surgimento de epidemias e pandemias em razão da invasão dos seres humanos aos habitat natu- rais de determinadas espécies animais, entre outros impactos negati- vos da ação humana. Vamos a partir de agora ampliar a compreensão de conceitos como preservação e conservação do meio ambiente, ética ambiental e de- senvolvimento sustentável, bem como conhecer os movimentos am- bientais e ecológicos e aprofundar as noções de educação ambiental e consumo responsável. Assim, construiremos as bases de nossas ações educativas na comunidade escolar com relação ao meio ambiente. Uma verdade inconveniente é um famoso documentá- rio, premiado com o Oscar de Melhor documentário em 2007, que mostra a campanha que Al Gore, na época vice-presidentedos Estados Unidos e eco- logista desde a década de 1970, empreendeu pelo país, alertando para os pe- rigos do aquecimento glo- bal e incentivando os de- bates sobre a necessidade de reduzir a emissão de gases provenientes de combustíveis fósseis. Direção: Davis Guggenheim. EUA: Lawrence Bender Productions, 2006. Documentário Como proteger o meio ambiente dos impactos negativos da industrialização e do consumo exagerado e ao mesmo tempo promover os desenvolvimentos econômico e social? Desafio 1.2 Preservação e conservação do meio ambiente Vídeo Há meios de evitar a degradação do meio ambiente sem, no entanto, proibir toda e qualquer exploração de recursos naturais. Para começar- mos a entender melhor esse assunto, vamos conhecer dois conceitos importantes: a conservação e a preservação do meio ambiente. A legislação brasileira considera conservação ambiental a proteção dos recursos naturais por meio da utilização racional, garantindo sua sustentabilidade, ou seja, que continuem disponíveis para as próximas gerações (BRASIL, 1981). O uso racional desses recursos previne tan- 14 Temas sociais e educacionais contemporâneos to a degradação do meio ambiente quanto o desaparecimento deles, contribuindo também para a manutenção da vida humana no planeta. Já a preservação ambiental é tida como a promoção da total integri- dade dos recursos naturais exatamente como são hoje, permanecendo intocados, o que é desejável nos casos em que há risco de perda de biodiversidade, seja a extinção de uma espécie, um ecossistema ou um bioma inteiro (DIEGUES, 2001). As áreas de preservação ambiental são exemplos dessa forma de gestão do meio ambiente. Figura 1 Ativistas em favor do meio ambiente Va lm ed ia / s hu tte rs to ck Jovens do mundo todo inspiraram-se no movimento liderado pela ativista ambiental sueca Greta Thunberg e marcharam, em várias cidades, em defesa do meio ambiente. Tais manifestações culminaram em um protesto com milhares de jovens em Roma e no Vaticano, em abril de 2019. Esses conceitos muitas vezes são usados como sinônimos, mas não têm o mesmo significado, como acabamos de ver. Vamos conhecer um pouco da história dos debates a respeito do meio ambiente, assim com- preenderemos melhor como os conceitos surgiram e se desenvolveram. A noção da necessidade de preservar a natureza, precursora da ideia de preservacionismo, surgiu muito antes de existir o que cha- mamos de movimento ambientalista. Um dos primeiros estudiosos a defender, ainda no século XIX, que a natureza deveria permanecer “intocada” pelos seres humanos foi o naturalista escocês-americano John Muir (1838-1914), cuja sensibilidade ecológica inspirou o ambienta- lismo, movimento que se consolidaria apenas em meados do século XX, O filme Na natureza selvagem se baseia no livro Into the Wild (1996), do escritor, jornalista e alpinista Jon Krakauer, e narra a história verídica de Christopher McCandless, um jovem recém-formado que abre mão de toda e qualquer posse para empreender uma jornada solitária em busca de uma vida de equilíbrio com a natureza e despojada de qualquer tipo de consumo. A trilha sonora premiada de Eddie Vedder e a atuação inspiradora de Emile Hirsch no papel do protagonista imprimem profundidade a esse drama real. Direção: Sean Penn. EUA: River Road Entertainment, 2007. Filme Educação ambiental e consumo responsável 15 após a Segunda Guerra Mundial. Muir afirmava que o ser humano é parte integrante da natureza, por isso não poderia ter direitos mais amplos do que outros animais (MCCORMICK, 1992). Bem mais tarde, essa ideia deu origem à corrente teórica chamada de biocentrismo, uma concepção que considera que todas as formas de vida têm importância equivalente, ou seja, o ser humano não seria mais importante que os outros seres vivos, nem o centro do universo. O preservacionismo pregava que era preciso proteger a natureza do ser humano e, para isso, criar “ilhas” de preservação naturais, como unidades de conservação, parques nacionais etc., nas quais não fosse permitido o manejo de recursos naturais nem para a subsistência. O conservacionismo, por sua vez, surgiu com o objetivo de alertar as pessoas dos impactos negativos da intensificação do consumo nas sociedades capitalistas e das suas consequências, como a exploração exagerada dos recursos naturais, que pode levar à escassez, ao desma- tamento, à contaminação da água e do ar, à superprodução de lixo etc. Gifford Pinchot (1865-1946), engenheiro florestal e político norte- -americano, é considerado o criador do movimento conservacionis- ta. Ele defendia o uso racional dos recursos naturais no intuito de os conservar para as próximas gerações. Também considerava o meio ambiente como fonte de lu- cro e prosperidade, mas alertava para os abusos de sua exploração, que poderiam causar escassez e pobreza. O movimento conservacionista propôs três princípios fundamentais a respeito do meio ambiente: o uso dos recursos natu- rais pela geração presente, a prevenção do desperdício e o uso dos recursos em benefício da maioria dos cidadãos, e não apenas para uma elite econômica (MCCORMICK, 1992; DIEGUES, 2001). 1.2.1 Ética ambiental e desenvolvimento sustentável É possível identificarmos no pensamento preservacionista a essência da ética ambiental, pois essa corrente em geral considera Ricardo Medina C/Shutterstock Curiosidade John Muir era proprietário rural, explorador, botânico, zoólogo e escritor, tendo discutido em suas obras o que atualmente chamamos de filosofia ambiental. Teve papel central na criação das primeiras áreas de proteção ambiental norte-americanas e é considerado um dos precursores do pensamento ecológico e dos movimentos ambientalistas modernos (GRETEL, 2000). 16 Temas sociais e educacionais contemporâneos que o ser humano não tem o direito de destruir outras vidas ou o meio em que vive apenas para benefício próprio e que deve se relacionar de maneira harmônica com tudo que o cerca. Por outro lado, para alguns preservacionistas defensores da filosofia do “especismo”, os animais existiriam apenas para servir ao ser humano. Este, por ser a única espé- cie “racional”, seria eticamente responsável por conservar o ambiente de que todos necessitam para viver. Podemos pensar que a ética com relação ao meio ambiente é algo “intuitivo”, “natural” do ser humano. Talvez tenhamos um impulso natu- ral por apreciar e nos sentir bem em meio à natureza, porém é necessário ensinarmos e aprendermos princípios éticos referentes ao meio ambien- te, assim como a importância de proteger animais e plantas, de manter hábitos de uso racional da água e de outros recursos, sem desperdício, de descartar corretamente o lixo etc. Uma educação centrada na relação com o outro e com tudo o que nos cerca e baseada no respeito a todas as pessoas e a todos os seres vivos abre as portas para o aprendizado da ética ambiental e das ações sustentáveis no cotidiano. Por outro lado, podemos identificar nas bases do que chamamos de sustentabilidade os princípios conservacionistas que influen- ciaram boa parte dos movimentos ambientalistas contemporâneos. Diegues (2001, p. 29) destaca que: [o conservacionismo] foi um dos primeiros movimentos teórico-práticos contra o “desenvolvimento a qualquer custo”; a grande aceitação desse enfoque reside na ideia de que se deve procurar o maior bem para o benefício da maioria, incluindo as gerações futuras, mediante a redução dos dejetos e da ineficiên- cia na exploração e do consumo dos recursos naturais não reno- váveis, assegurando a produção máxima sustentável. A noção conservacionista de que precisamos de um desenvolvimen- to social e econômico sustentável, com base em uma produção de bens e de riquezas que se sustente ao longo do tempo, conservando os recursos em vez de apenas explorá-los até o fim e beneficiando a maioria da sociedade, esteve presente desde os debates ecológicos da décadade 1970 até as grandes conferências mundiais sobre meio am- biente, como a Eco-92. No contexto da ética ambiental surge a ética animal, que fundamenta vários movimentos em defesa dos animais e contra sua exploração irresponsável. Os princípios éticos na criação e no abate de animais, nos experi- mentos científicos que os usam como cobaias e na noção de que o ser humano deveria eliminar completamente o consumo deles inspiram ativistas de vários movimentos ao redor do mundo. Muitos desses denunciam o “especismo”, um tipo de “discriminação” do ser humano em relação às outras espécies, segundo o qual os humanos teriam o direito de explorar e matar outras espécies porque elas seriam “inferiores”. Os ativistas dos direitos dos animais repudiam não só o especismo como também a prática de classificar os seres vivos entre os que sentem (seres sencientes) e os que não possuiriam tal capacidade, tendo uma vida de “menor valor”. Saiba mais Educação ambiental e consumo responsável 17 Essa ideia influenciou as políticas públicas am- bientais de vários países, incluindo o Brasil, que em 1981 já dispunha de uma política nacional para o meio ambiente, garantida por lei, a qual destacava o papel do Estado na sua conservação, no desenvolvi- mento sustentável e na educação ambiental de seus cidadãos. Vamos conhecer um pouco melhor a traje- tória histórica do pensamento e das ações em favor do meio ambiente? A origem dos movimentos ambientalistas da atualidade advém do período pós-Segunda Guerra Mundial. A destruição das cidades japonesas de Hi- roshima e Nagasaki por bombas atômicas levantou uma séria preocupação no mundo todo: será que o ser humano irá em pouco tempo destruir o planeta Terra com uma guerra atômica? O medo de que tanto desenvolvimento tecno- lógico e industrial, tanto “progresso” nas ativida- des humanas acabasse por destruir o mundo e com ele a espécie humana se tornou presente no imaginário coletivo. Inspirado no pensamento con- servacionista, começou a surgir na Europa e nos No livro Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas, a professora brasileira Sônia Felipe, doutora em filosofia moral e teoria política pela Universidade de Konstanz, Alemanha, constrói uma rica rede argumentativa contra a ex- perimentação científica em animais vivos, partin- do de quatro diferentes perspectivas morais: as tradições religiosas antigas, as filosofias moderna e contemporânea, a ciência e a tradição jurídica. A autora também aponta duas noções opostas presentes nessas perspectivas: a de que existe um valor inerente à vida de todas as espécies e a de que o valor das outras espécies só existe à medida que tragam benefícios à espécie humana. Florianópolis: Edufsc, 2014. Livro O documentário Hiroshima: the real story é uma boa dica para saber mais detalhes de um dos mais marcantes eventos do século XX. Direção: Lucy van Beek. UK: Brook Lapping Productions, 2015. DocumentárioEstados Unidos a exigência legal de relatórios de impacto ambiental para os empreendimentos que pudessem poluir ou prejudicar de alguma forma o meio ambiente, como um modo de impor limites ao crescimento industrial e evitar catástrofes ecológicas. Observe uma pequena linha do tempo das iniciativas mundiais para o desenvolvimento sustentável, lembrando que em 2021 realiza-se a Cúpula de Líderes sobre o Clima, organizada pelo Presidente dos EUA Joe Biden, na qual o tema do desmatamento na Amazônia é central. 18 Temas sociais e educacionais contemporâneos 1983 Criação da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. 1992 Conferência Mundial das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-92, no Rio de Janeiro. 1986 O Brasil torna obrigatório o estudo de impacto ambiental para qualquer licenciamento de empreendimentos potencialmente danosos ao meio ambiente. 1997 Assinatura do Protocolo de Quioto. 2002 Conferência Rio+10, em Joanesburgo, na África do Sul. 2012 Conferência Rio+20, no Rio de Janeiro. 2015 Firmado o Acordo de Paris, na França. 2019 Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, em Madri, Espanha. Petr Vaclavek/Shuutterstock Em 2019, em Madri, a Conferência das Nações Unidas sobre Mu- danças Climáticas avaliou o andamento do cumprimento das metas anteriores com relação ao clima e estabeleceu em documento o com- promisso de 70 países com a zero emissão de carbono até 2050. O Brasil foi um dos principais obstáculos à assinatura do documento, ne- gando-se a se comprometer com a não emissão de carbono. Apesar de o país ter recentemente se posicionado de modo contrá- rio aos compromissos mundiais com a conservação ambiental, foi um dos pioneiros, ainda em 1981, do estabelecimento de políticas públicas para o meio ambiente, garantidas por lei. Vejamos o que esclarece o artigo 2º da Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente: Art. 2º - A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambien- tal propícia à vida, visando assegurar, no país, condições ao Educação ambiental e consumo responsável 19 desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios: I - ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo; II - racionalização do uso do solo, do subsolo, da água e do ar; III - planejamento e fiscalização do uso dos recursos ambientais; IV - proteção dos ecossistemas, com a preservação de áreas representativas; V - controle e zoneamento das atividades potencial ou efetiva- mente poluidoras; VI - incentivos ao estudo e à pesquisa de tecnologias orientadas para o uso racional e a proteção dos recursos ambientais; VII - acompanhamento do estado da qualidade ambiental; VIII - recuperação de áreas degradadas; IX - proteção de áreas ameaçadas de degradação; X - educação ambiental a todos os níveis do ensino, inclusive a educação da comunidade, objetivando capacitá-la para participa- ção ativa na defesa do meio ambiente. (BRASIL, 1981) Podemos perceber no texto da lei o reconhecimento do papel do Estado brasileiro no uso racional dos recursos ambientais, na prote- ção e na recuperação de ecossistemas e áreas ameaçadas, no contro- le de atividades com potencial de poluição do meio ambiente e, não menos importante, na educação ambiental, tanto no contexto escolar quanto na comunidade. Sem a educação ambiental de crianças e jo- vens será inviável garantir o desenvolvimento sustentável do país, ou mesmo proteger o meio ambiente de catástrofes ecológicas como te- mos assistido ao longo do tempo, tais como queimadas e desmata- mentos constantes, vazamento de petróleo nos mares, rompimento de barragens e tantas outras. 1.2.2 Educação para o consumo sustentável O sistema econômico capitalista se baseia na produção e no consu- mo. Se não houver consumidores para comprar os produtos fabricados, esse sistema não funciona. E é preciso lembrar que o desenvolvimento sustentável não envolve apenas a produção, que demanda a retirada de recursos da natureza, mas também o consumo, que gera impactos no meio ambiente. Ou seja, todos nós precisamos incorporar princípios éticos com relação ao meio ambiente e modificar nossos hábitos coti- dianos de consumo, contribuindo para que ocorra uma transformação nos padrões de consumo de toda a sociedade. Mas se por um lado a constante compra de objetos, móveis, equi- pamentos, alimentos industrializados, roupas, produtos tecnológicos etc. auxilia a manter as fábricas produzindo, o comércio vendendo os produtos e parte dos trabalhadores em seus empregos, por outro, com a intensificação e aceleração do consumo, estamos assistindo a uma série de consequências negativas parao meio ambiente, a sociedade e a qualidade de vida dos indivíduos. Segundo o instituto Global Footprint Network (TERRA, 2013), se não transformarmos nossos padrões de consumo até 2050, precisaremos de dois planetas Terra para sustentar as necessidades da população mundial. Ou seja, é uma questão de sobrevivência eliminarmos o con- sumo exagerado, o chamado consumismo. Carvalho (2017) aponta que por trás do consumo exagerado está um modelo de pensamento predominante nas sociedades capitalistas contemporâneas – principalmente nas gerações mais recentes, que cresceram sob a aceleração tecnológica – voltado para a satisfação ime- diata dos desejos, sem preocupação com as consequências desse tipo de atitude, seus impactos no meio ambiente, na própria sociedade e na qualidade de vida das pessoas. A autora destaca que a crise ecológica tem raízes também em uma crise educacional. Isto é, precisamos repensar o que tem sido ensinado nas escolas no sentido de evitar o incentivo à cultura do consumismo, do consumo exagerado, do desperdício e do descarte irresponsável. Devemos refletir também sobre como o tema do consumo é tratado nos meios de comunicação e até em nossas famílias. É muito importante inserir na escola e nas famílias as reflexões sobre o consumo para que crianças e adolescentes possam diferenciar a ne- cessidade de adquirir do simples desejo de ter. Uma noção importante que devemos construir com os alunos é a de que existem dois tipos de consumo, um relacionado às necessidades básicas das pessoas e outro à vontade, ao desejo de adquirir determi- nados produtos. É preciso aprender a diferenciar as necessidades das vontades. Que exemplos estamos dando às crianças e aos adolescentes a respeito do consumo e de suas consequências? Para refletir 2020 Temas sociais e educacionais contemporâneosTemas sociais e educacionais contemporâneos Educação ambiental e consumo responsável 21 Há produtos que servem às necessidades básicas dos seres huma- nos, relacionadas à garantia de sua sobrevivência, como ingerir água e alimentos, abrigar-se do frio ou do calor excessivos e descansar em segurança, mas também há inúmeros que não são essenciais à sobre- vivência, apesar de ajudarem de algum modo a tornar as tarefas do cotidiano mais fáceis, por exemplo. Os itens não essenciais, como eletrodomésticos, eletrônicos, rou- pas da moda, objetos de decoração, alimentos refinados, cosméticos e tantos outros, são alvo do desejo das pessoas e muitas vezes têm seu consumo incentivado na sociedade, principalmente pelos meios de comunicação. Quando dizemos que “precisamos” trocar de celular porque o apare- lho está “ultrapassado”, mesmo que ainda esteja funcionando, na verda- de não se trata de uma necessidade, mas sim de um desejo de compra. Somos convencidos pelas propagandas de que é preciso comprar a última novidade tecnológica ou nos sentiremos excluídos. Essa lógica, po- rém, leva ao consumismo irresponsável, pois, ao comprar o novo apare- lho, descartamos o antigo, e ele vai somar-se a toneladas de lixo que se acumulam em todas as regiões do mundo, prejudicando o meio ambiente. Durante a Eco-92 foi assinada a Agenda 21 Global, com metas a se- rem alcançadas no século XXI. O capítulo 4 desse documento trata do consumo sustentável. Leia um trecho desse capítulo, apresentado no portal do Ministério do Meio Ambiente (BRASIL, 2020): O Consumo Sustentável envolve a escolha de produtos que uti- lizaram menos recursos naturais em sua produção, que garan- tiram o emprego decente aos que os produziram, e que serão facilmente reaproveitados ou reciclados. Significa comprar aqui- lo que é realmente necessário, estendendo a vida útil dos produ- tos tanto quanto possível. Consumimos de maneira sustentável quando nossas escolhas de compra são conscientes, responsá- veis, com a compreensão de que terão consequências ambien- tais e sociais – positivas ou negativas. Mudança de comportamento é algo que leva tempo e amadure- cimento do ser humano, mas é acelerada quando toda a socie- dade adota novos valores. O termo “sociedade de consumo” foi cunhado para denominar a sociedade global baseada no valor do “ter”. No entanto, o que observamos agora são os valores de sustentabilidade e justiça social fazendo parte da consciência co- letiva, no mundo e no Brasil. Este novo olhar sobre o que deve Pense na seguinte situação: um eletrodoméstico comprado há apenas dois ou três anos quebra e você, comparando a durabilidade dele com a de um equipamento similar que teve no passado, acha que o antigo pare- ce ter durado muito mais tempo. Já passou por essa situação? É comum ouvirmos relatos como esse, mas será que é apenas uma impressão ou há algum fundamento? Na verdade não é apenas uma impressão, mas um fato, e existe até um nome para ele: obsolescência programada. Trata-se de um conjunto de características que o fabricante desenvolve propositalmente em seu produto para que este se tor- ne ultrapassado ou não funcione mais após determinado tempo, a fim de pressionar o consumidor a comprar um produto novo. Curiosidade ser buscado por cada um promove a mudança de comportamen- to, o abandono de práticas nocivas de alto consumo e desperdí- cio e adoção de práticas conscientes de consumo. Consumo consciente, consumo verde, consumo responsável são nuances do Consumo Sustentável, cada um focando uma dimen- são do consumo. O consumo consciente é o conceito mais amplo e simples de aplicar no dia a dia: basta estar atento à forma como consumimos – diminuindo o desperdício de água e energia, por exemplo – e às nossas escolhas de compra – privilegiando produ- tos e empresas responsáveis. A partir do consumo consciente, a sociedade envia um recado ao setor produtivo de que quer que lhe sejam ofertados produtos e serviços que tragam impactos positivos ou reduzam significativamente os impactos negativos no acumulado do consumo de todos os cidadãos. Agora vamos analisar o que o trecho propõe. De início já temos uma explicação do que é o consumo sustentável. Ele ocorre quando decidimos comprar determinados produtos não apenas por razões ligadas às suas características, ao seu preço ou nos baseando em propagandas sobre ele, mas porque analisamos quais impactos terá no ambiente, incluindo seus efeitos sobre os seres hu- manos. Consumimos de maneira sustentável quando escolhemos pro- dutos considerando o modo como foram produzidos e distribuídos e a forma como serão usados e descartados no ambiente. As decisões de compra para um consumo sustentável envolvem produtos que tenham sido produzidos usando menos recursos da natureza; que foram feitos por trabalhadores que tiveram condições dignas de trabalho; que foram produzidos localmente, para não en- volver transporte de longas distâncias, o que gera poluição e consu- mo de energia não renovável, como o petróleo; que gerarão menos lixo quando forem descartados; e, se possível, que possam ser re- ciclados ou reaproveitados. Photographee.eu/Shutterstock 2222 Temas sociais e educacionais contemporâneosTemas sociais e educacionais contemporâneos Educação ambiental e consumo responsável 23 O trecho mostra que o processo de mudança nos padrões de consu- mo é complexo, mas afirma que é possível modificar os hábitos coleti- vamente por meio da conscientização de cada um sobre a importância de melhorar seu próprio comportamento no cotidiano. Para isso, preci- samos prestar atenção ao que consumimos e por que consumimos, pre- ferindo adquirir produtos de empresas ambientalmente responsáveis, evitando o desperdício de recursos naturais como água, energia etc. Mas como desenvolver padrões de consumo consciente, responsá- vel e sustentável nas novas gerações? Existem algumas alternativas inovadoras que podem inspirar as no- vas gerações e ajudar a mudar seus hábitos de consumo. Há também os caminhos da educação ambiental e da educação para os consumos consciente, responsável e sustentável, que podemos desenvolverpor meio de práticas pedagógicas no âmbito escolar e com intervenções na realidade social da comunidade. 1.3 Novas tendências de sustentabilidade Vídeo A crescente conscientização dos impactos negativos do consumo no meio ambiente gerou novas tendências no cenário contemporâneo. Uma delas, ligada à proposta de consumo sustentável, é o lowsumerism. Esse termo em inglês vem da junção das palavras low (baixo) e consumerism (consumismo), ou seja, baixo consumismo. Essa tendência, adotada principalmente por jovens na Europa e nos Estados Unidos, mas que de várias formas já chegou a outros países como o Brasil, propõe que consumamos menos, buscando alternativas para viver apenas com o necessário, sem exageros, já que o consu- mismo desenfreado é insustentável sob o ponto de vista da sobrevi- vência do planeta. É por isso que alguns estudiosos da área traduzem lowsumerism como consumo equilibrado, representando o contrário de ser consumista. Antes de conhecer melhor essa tendência, vamos refletir sobre uma prática que se tornou comum nas grandes e médias cidades brasileiras: o uso de transporte urbano por aplicativo. Cada vez mais as pessoas deixam de usar seus carros particulares para se locomover nas cida- 24 Temas sociais e educacionais contemporâneos des, e preferem chamar um motorista de aplicativo e até mesmo com- partilhar o veículo para realizar seus trajetos. Por que várias pessoas gastariam altos valores para manter, cada uma, um carro na garagem, disponível para eventuais deslocamen- tos, quando podem compartilhar um mesmo automóvel por aplicati- vo, cada uma conforme suas necessidades, sem arcar com o preço do carro e de sua manutenção? A pesquisa Deloitte Global Automotive Consumer Study (DELOITTE GLOBAL, 2019), um estudo da indústria automotiva sobre tendências de consumo no setor de transportes, publicado em 2019, e que ouviu 25 mil pessoas em 20 países, mostra que as chamadas gerações Y, ou millennials (pessoas hoje com idade entre 26 e 39 anos), e Z (a parce- la de 18 a 25 anos) são as que têm menor interesse de possuir carro próprio, sendo os mais propensos a usar a mobilidade compartilhada. No Brasil não é diferente. A edição de 2017 da mesma pesquisa reve- la que 62% dos millennials brasileiros não deseja comprar um automóvel e opta por serviços de transporte por aplicativos. Essa prática pode ser incluída na tendência do lowsumerism, pois além de trazer praticidade e economia ao consumidor contribui para a redução de automóveis circu- lando – muitas vezes com uma pessoa apenas –, o que diminui a emissão de gases poluentes e os impactos negativos ao meio ambiente. Outra prática que se inclui nessa tendência é preferir o consumo de produtos com melhor qualidade e em menor quantidade. Um exemplo disso é o vestuário: em vez de ter um guarda-roupa cheio, ter poucas peças de qualidade, que durem bastante e combinem bem entre si. Reutilizar ou reciclar embalagens, roupas e objetos, dando outros usos ao que seria descartado, adquirir peças usadas, assim como com- partilhar livros, vestuário e até apartamentos e casas também são prá- ticas ligadas à redução do consumo. É cada vez mais difundida a prática de, em uma viagem, em vez de se hospedar em hotéis ou pousadas, ficar em imóveis compartilhados com os proprietários, pagando menos e tendo uma experiência mais próxima de “viver” naquele lugar. Há hoje uma tendência chamada de moda acessível ou moda sustentável e estabelecimentos conhecidos como guarda-roupa compartilhado, os quais oferecem a oportunidade de adquirir itens para Em Minimalismo: um do- cumentário sobre as coisas importantes, dois amigos de infância percorrem os Estados Unidos buscando fugir do consumismo e levar uma vida de maior liberdade e satisfação pessoal em meio a uma sociedade consumista, em que comprar parece ser a prioridade. O próprio título da pro- dução refere-se a uma visão de mundo em que “menos é mais”, ou seja, uma postura que leva a viver de modo simples, consumindo o menos possível, em equilíbrio com o meio ambiente e sem ceder à tentação de valorizar apenas o “ter” ao invés do “ser”. Direção: Joshua Fields Millburn e Ryan Nicodemus. EUA: Netflix, 2015. Documentário Educação ambiental e consumo responsável 25 uso por períodos curtos, o que evita a compra de pe- ças que ocupam o armário para serem usadas apenas em determinadas ocasiões. Isso reduz os impactos no meio ambiente, já que a indústria da moda é uma das mais poluentes: cerca de 35% das microfibras lança- das nos oceanos vem de têxteis, e as etapas de processamento de roupas emitem 20% do carbono na atmosfera. Tero Vesalainen/Shutterstock 1.3.1 Produção, trabalho e consumo para um mundo sustentável Na sociedade capitalista em que vivemos, muitas vezes a valorização do individualismo, da competitividade e do lucro a qualquer custo preju- dica a percepção da coletividade sobre o que realmente importa: a vida. Assim como é importante valorizarmos a vida de todos os seres vi- vos e do ambiente que possibilita a sobrevivência das espécies, tam- bém é fundamental zelarmos pela qualidade de vida e dignidade do trabalho dos seres humanos, pois é essa a atividade essencial das pessoas para gerar sua própria subsistência. Do mesmo modo que é antiético explorar de modo irresponsável o ambiente, os animais etc., é também antiético explorar as pessoas em processos de produção in- justos ou insalubres. A busca de ampliar cada vez mais a produção e os lucros, como objetivo dos desenvolvimentos industrial e tecnológico, foi vista como o único caminho para o desenvolvimento humano. Entretanto, grada- tivamente está se consolidando a noção de que “progressos” técnico e produtivo nem sempre trazem desenvolvimentos social e econômico para toda a sociedade, e muitas vezes as consequências são a escassez de recursos naturais, a degradação do meio ambiente e até o adoeci- mento da população. Feiras de trocas de roupas, livros e outros objetos também fazem parte da tendência de baixo consumismo ou consumo equilibrado e podem ser facilmente organizadas na comunidade e dentro das esco- las, com a colaboração da comunidade escolar. 26 Temas sociais e educacionais contemporâneos Desenvolvimento sustentável, como a própria expressão diz, é um desenvolvimento que se sustenta no tempo, que não destrói para se estabelecer, pois ao destruir está condenando todos à escassez. Para desenvolver o país de modo sustentável é preciso pensar na melhoria das condições de vida de toda a população e na conservação dos recur- sos do nosso território em benefício de todos. Se pelo lado do consumo a tomada de consciência ambiental já está rendendo bons frutos, por parte da produção também observamos algumas mudanças. As chamadas soluções verdes, novos processos e tecnologias que tornam a produção mais sustentável, reduzindo a ex- ploração de recursos naturais e os impactos no meio ambiente, já es- tão sendo adotadas por vários setores da indústria. Muitas vezes as medidas tomadas para diminuir o potencial poluidor de uma fábrica também geram redução nos custos de produção e agre- gam valor às marcas das empresas, as quais já começam a perceber que o perfil dos consumidores mudou, que muitas pessoas passam a preferir empresas que prezam pelas responsabilidades ambiental e social, e que decidem consumir produtos com menor impacto no meio ambiente. Algumas dessas medidas em busca da sustentabilidade são: • Reutilização de água em processos industriais, evitando a explo- ração continuada das águas dos rios. • Tratamento de resíduos descartados no meio ambiente. • Uso de matrizes energéticas sustentáveis, como a energia eóli- ca e a fotovoltaica, para movimentar máquinas e fazer funcionar equipamentos industriais. • Responsabilidade pela reciclagem de embalagens e outros com- ponentes descartados ligados à produção. • Emprego de substâncias biodegradáveis e substituição de carbo- no derivado de combustíveisfósseis como o petróleo na fabrica- ção de produtos de limpeza e higiene. • Aplicação de tecnologias alternativas no manejo de pragas na agricultura extensiva destinada à indústria de alimentos. • Controle e redução de emissão de gases de efeito estufa em fábricas. Essas e outras iniciativas são exemplos de práticas de produção sus- tentáveis e que contribuem para a conservação ambiental. Educação ambiental e consumo responsável 27 As pequenas empresas também estão começando a aderir às ten- dências de sustentabilidade. Segundo o Sebrae (2018), são seis as prin- cipais tendências para os pequenos negócios: Empreendedorismo com propósito Pequenos empreendedores criam negócios que possam realizar seus propósitos pessoais de acordo com seus valores e suas crenças e preocupados com os desafios socioambientais. Diversidade como vantagem competitiva A percepção de que as chamadas minorias são consumidores em potencial tem gerado interesse de criar pequenos negócios com linhas de produtos e serviços que contemplem esse nicho de mercado que as grandes empresas por vezes não enxergam. Inovação e tecnologia em favor de negócios mais sustentáveis Diante da ameaça de escassez de recursos naturais, a inovação é a resposta para desenvolver produtos com menos impactos ambiental e social. Economia colaborativa como fonte de crescimento Em um cenário em que as pessoas estão ultrainformadas e conectadas e há o desejo de criar soluções inovadoras e contribuir com a coletividade, cresce o papel da colaboração como base de novos pequenos negócios. Economia circular como oportunidade de negócio Com o planeta dando mostras de que não suportará por muito tempo o modelo de desenvolvimento exploratório do sistema capitalista tradicional, surgem negócios que não seguem mais a lógica linear de produção, consumo e descarte, mas a lógica circular do reuso, reciclagem, trocas e compartilhamento. Cidades sustentáveis, ambientes para o empreendedorismo As pequenas empresas têm papel importante na oferta de produtos e serviços adequados às realidades locais, tornando os espaços urbanos mais sustentáveis e garantindo a qualidade de vida. Essas e outras tendências de sustentabilidade para os pequenos negócios podem não só trazer benefícios para o meio ambiente e a qualidade de vida das pessoas, mas também gerar renda direta para as famílias que se dedicam ao empreendedorismo como forma de driblar a falta de oportunidades no mercado de trabalho. A Unilever, empresa multinacio- nal considerada a terceira maior fabricante de bens de consumo do mundo, com produtos pre- sentes em 190 países, anunciou que substituirá 100% do car- bono derivado de combustíveis fósseis de seus produtos de lim- peza e lavanderia por carbono obtido de fontes renováveis ou recicladas (a chamada química verde). A iniciativa é parte de seu programa de inovação e sustentabilidade denominado Futuro Limpo, que também pretende: zerar as emissões líquidas de seus processos de produção até 2039; eliminar os petroquímicos, substituindo-os por matéria-prima vegetal; tornar todos os seus produtos biodegradáveis; diminuir o consumo de água; e reduzir o plástico de uso único nas embalagens, substituindo-o por plástico reciclado e plástico verde provenientes da cana-de-açúcar (UNILEVER..., 2020). Curiosidade 28 Temas sociais e educacionais contemporâneos 1.4 Educação ambiental Vídeo No contexto da Eco-92 foram elaborados documentos importan- tes, como a Carta da Terra, a Convenção sobre Diversidade Biológica, a Convenção sobre Mudanças Climáticas, a Declaração sobre Florestas e a Agenda 21, os quais orientam como promover o desenvolvimento sustentável das sociedades, com melhor qualidade de vida e por meio da preservação dos ecossistemas. Surgiu então uma importante linha de pensamento educacional, que amplia a noção de educação ambien- tal: a ecopedagogia. Gadotti (2005), em seu livro Pedagogia da Terra, trata da ecopedago- gia como uma educação sustentável, voltada para uma relação saudá- vel com o meio ambiente e centrada na noção de que o que realizamos na vida cotidiana e o sentido mais profundo de nossa existência estão ligados diretamente ao futuro da humanidade e do planeta Terra. Na obra o autor desenvolve conceitos importantes a serem traba- lhados no contexto escolar, como a consciência e a cidadania planetá- ria. Ele defende que se inclua no currículo escolar a formação para a cidadania planetária, ou seja, a formação para se situar como parte da humanidade e do planeta como um todo, não apenas como cidadão de determinada região ou país, já que todos vivemos em uma comunida- de que é global e local ao mesmo tempo. Gadotti (2005, p. 19-20) defende que: o desenvolvimento sustentável, visto de forma crítica, tem um componente educativo formidável: a preservação do meio am- biente depende de uma consciência ecológica e a formação da consciência depende da educação. É aqui que entra em cena a ecopedagogia. Ela é uma pedagogia para a promoção da apren- dizagem do sentido das coisas a partir da vida cotidiana. [...] Não aprendemos a amar a Terra lendo livros sobre isso, nem livros de ecologia integral. A experiência própria é o que conta. Plan- tar e seguir o crescimento de uma árvore ou de uma plantinha, caminhando pelas ruas da cidade ou aventurando-se numa flo- resta, sentindo o cantar dos pássaros nas manhãs ensolaradas ou não, observando como o vento move as plantas, sentindo a areia quente de nossas praias, olhando para as estrelas numa noite escura. O belo documentário/ drama Home – Nosso planeta, nossa casa ilustra muito bem as teses de Gadotti sobre a cidadania planetária. Com suas impressionantes imagens aéreas de diversos locais do planeta, faz refletir sobre a trajetória do ser humano na Terra, sua exploração do meio am- biente, seus padrões de consumo e a necessidade de buscar a sustentabi- lidade. Foi dirigido pelo jornalista, fotógrafo e ambientalista francês Yann Arthus-Bertrand, o qual declara, na obra, que sua intenção era mostrar que “o nosso ecossistema não tem fronteiras. Onde quer que estejamos, as nossas ações terão repercussões”. Direção: Yann Arthus-Bertrand. França: EuropaCorp, 2009. Documentário Educação ambiental e consumo responsável 29 Para orientar as práticas pedagógicas dos educa- dores, o autor lista alguns princípios de referência para a ecopedagogia, nos quais podemos reconhecer a influência de Jean Piaget e Paulo Freire: • O planeta como uma única comunidade. • A Terra como mãe, organismo vivo e em evolução. • Uma nova consciência que sabe o que é sus- tentável, apropriado, e faz sentido para a nossa existência. • A ternura para com essa casa. Nosso endereço é a Terra. • A justiça sociocósmica: a Terra é um grande pobre, o maior de todos os pobres. • Uma pedagogia biófila (que promove a vida): envolver-se, comunicar-se, compartilhar, problematizar, relacionar-se, entusiasmar-se. • Uma concepção do conhecimento que admite só ser integral quando compartilhado. • O caminhar com sentido (vida cotidiana). • Uma racionalidade intuitiva e comunicativa: afetiva, não instrumental. • Novas atitudes: reeducar o olhar, o coração. • Cultura da sustentabilidade: ecoformação. Ampliar nosso ponto de vista. (GADOTTI, 2005, p. 26) O papel da escola na construção de uma cultura da sustentabilida- de, o que Gadotti chama de ecoformação, é muito importante. Mais do que educar para a sustentabilidade e mostrar aos alunos que todos nós fazemos parte de um mesmo organismo vivo, a Terra, a escola pre- cisa oferecer cotidianamente exemplos práticos de comportamentos e atitudes sustentáveis e exercitar esses atos de cidadanias ambiental e planetária. Mas como inserir no currículo esse tipo de formação? É justamente a função dos temas transversais, previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), proporcionar a inserção no currículo, demodo transversal, de temas sociais contemporâneos im- portantes para a formação integral de crianças e jovens. Um desses temas é a educação ambiental, que abarca a educação para a susten- tabilidade e o consumo responsável e que pode ser abordada sob a perspectiva da ecoformação de que fala Gadotti. De que adianta falar aos alunos da conservação do meio ambiente, explicar a sustentabilidade e o consumo responsável, mas colocar copos de plástico junto ao bebedouro, por exemplo? Para refletir Rawpixel.com/Shutterstock 30 Temas sociais e educacionais contemporâneos As práticas cotidianas na escola são a melhor forma de estimular comportamentos sustentáveis e novos padrões de consumo. A refle- xão sobre os próprios comportamentos, estimulada durante as aulas por meio de rodas de conversa, palestras de profissionais externos à escola e membros da comunidade, campanhas de conscientização no meio escolar etc., pode ser um bom início para a mudança de atitudes e hábitos na comunidade escolar. Entretanto, é preciso colocarmos em prática os novos hábitos por meio de condutas cotidianas, como evitar o desperdício de recursos, o descarte exagerado de lixo na escola, en- tre outras. Por meio da reflexão e conscientização e da convivência com exem- plos de comportamentos sustentáveis no cotidiano escolar, crianças e adolescentes passam a adotar novos hábitos também em casa e tornam-se divulgadores desses novos padrões em suas famílias. 1.4.1 Atitudes e comportamentos sustentáveis Há comportamentos que precisam ser ensinados e exemplificados diariamente na escola, pois significam o bom uso dos recursos naturais e a conservação do meio ambiente, e devem ser incorporados ao coti- diano familiar dos alunos, tais como: não desperdiçar água; nunca dei- xar torneiras abertas enquanto se ensaboa as mãos, escova os dentes ou realiza qualquer outra atividade; economizar energia – para isso não deixar a luz acesa em espaços que não estão sendo utilizados, preferir a luz solar durante o dia e evitar abrir a geladeira a todo momento; separar o lixo orgânico do reciclável; e tentar reaproveitar embalagens e produtos usados. Para estimular e exemplificar esses comportamentos, podem ser aplicadas estratégias lúdicas como um concurso ou uma gincana per- manente de economia de recursos naturais na escola, em que os alu- nos ganham e perdem pontos conforme economizam ou desperdiçam água e energia. A aferição pode ser feita por meio de estratégias de avaliação conti- nuada com observação e registro do professor e estratégias de autoa- valiação dos alunos, que podem ser implementadas, por exemplo, com base nos princípios da aprendizagem por pares, na qual dois alunos colaboram no registro das ações um do outro. A pontuação pode ser exposta em um ranking da sustentabilidade de cada turma. Ao final do ano, a sala que mais economizou água, energia elétrica etc. pode ganhar uma medalha ou outro prêmio simbólico. Desse modo, os alunos são incentivados a alcançar metas de sustentabilidade coletivamente e acabam adotando as mesmas atitudes em suas casas. Outra estratégia que pode ser divertida e ajuda a construir hábitos sustentáveis é a confecção de lixeiras pelos próprios alunos para desti- nação de cada tipo de lixo reciclável na sala de aula. Isso pode ser feito reaproveitando caixas de papelão, por exemplo, ou com sacos plásti- cos coloridos fixados em painéis na parede ou em suportes. Desse modo o aprendizado da separação correta de lixo, sua des- tinação e reciclagem parecerá mais significativo para os alunos e será mais facilmente aplicado no dia a dia. Lixeiras para destinação separada de lixo, com cores que caracterizam cada tipo de resíduo: amarelo – metais; azul – papel e papelão; marrom – resíduos orgânicos; verde – vidro; vermelho – plástico. ve rs us /S hu tte st oc k Am ar el o Az ul M ar ro m Ve rd e Ve rm el ho Para construir atitudes e hábitos de consumo sustentáveis, respon- sáveis com relação ao meio ambiente, precisamos levar os alunos à reflexão sobre os próprios padrões de consumo, para depois propor- mos mudanças com base na percepção deles mesmos sobre as conse- quências negativas de algumas de suas decisões de compra. Esse trabalho pode ser desenvolvido na sala de aula ou na escola como um todo e envolver toda a comunidade escolar. É necessário explicarmos que, quando se está em um momento de decisão de compra, é importante fazer a si mesmo alguns questiona- mentos importantes antes de comprar, pois ajudam a tomar decisões de consumo mais sustentáveis: Narrado pelo ator inglês Jeremy Irons e grande sucesso de crítica, o documentário investigativo Trashed – Para onde vai o nosso lixo revela o modo como as autoridades da administração pública de países do Hemisfério Norte tratam da desti- nação do lixo industrial desde o final do século XIX até a atualidade, e busca apontar caminhos para o manejo sustentável dos materiais descartados, mostrando a importância da reciclagem do lixo. Direção: Candida Brady. EUA: Blenheim Films, 2012. Documentário Ja co b Lu nd /S hu tte rs to ck A bicicleta é uma opção de meio de transporte mais econômico e com menos impacto sobre no ambiente. 3131Educação ambiental e consumo responsávelEducação ambiental e consumo responsável 32 Temas sociais e educacionais contemporâneos • Eu preciso realmente do produto? • Eu tenho algum produto com as mesmas funções que poderia ser consertado, reformado ou reciclado, evitando a compra de um novo? • Vou usar o produto com muita frequência ou provavelmente fi- cará abandonado em um canto da casa? (Esse questionamento é muito útil com relação a brinquedos). • O produto fará uma diferença real no meu dia a dia ou posso muito bem continuar sem ele? • Eu preciso do produto imediatamente ou posso adiar a compra? • Eu tenho dinheiro sobrando para comprá-lo ou isso trará dificul- dades para o meu orçamento? • Comprar o produto é apenas um desejo de exibi-lo para os ou- tros, de me sentir incluído em um grupo ou de estar “na moda”? • De que modo irei descartar o produto quando não for usá-lo mais? É um item reciclável? • O produto foi produzido tendo alguma preocupação com os impactos ao meio ambiente? • Ele foi produzido localmente ou transportado de muito longe? Esses questionamentos podem ser levantados com alunos de todas as faixas etárias, para que os adotem toda vez que estiverem em uma situação de compra, mesmo que apenas acompanhando familiares. Se a cada compra que pensamos em realizar fizermos essas pergun- tas a nós mesmos e tentarmos responder a elas de maneira honesta, com certeza evitaremos muitas das chamadas compras por impulso, das quais provavelmente vamos nos arrepender. Com as crianças e os adolescentes é a mesma coisa: se aprende- rem a fazer esses autoquestionamentos antes de cada decisão de compra, estarão realizando o que denominamos preciclagem, que é a escolha de um produto em função de seu menor impacto ambiental ou social. Notemos que a reciclagem é feita após o uso de um produto, para reaproveitá-lo de algum modo; já a preciclagem é um processo anterior ao consumo e que o define. Com essa aprendizagem, estudan- tes podem se tornar adultos mais responsáveis com seu consumo e contribuir para o desenvolvimento sustentável da sociedade. Educação ambiental e consumo responsável 33 1.4.2 Intervenção na comunidade escolar Há várias estratégias interessantes de inter- venção na comunidade escolar para incentivar a conscientização da sustentabilidade e estimular comportamentos sustentáveis. Algumas delas são: • Iniciar a primeira aula da semana sempre com uma roda de conversa sobre o que os alunos fize- ram no fim de semana e ajudá-los a analisar suas atitudes com relação ao consumo, à economia de recursos como água e ener- gia e ao descarte de lixo. • Promover campanhas regulares na escola, com cartazes, pales- tras etc. sobre um tema ligado à busca do desenvolvimentosus- tentável: consumo equilibrado, defesa dos animais, conservação de áreas ambientais na comunidade local etc. • Instituir na escola datas comemorativas ligadas à conserva- ção ambiental, como: Dia Mundial da Água (21 de março), Dia Internacional da Biodiversidade (22 de maio), Dia Mundial do Meio Ambiente (5 de junho), Dia do Consumo Consciente (15 de outubro), entre várias outras previstas no calendário. Para esses dias é possível preparar eventos – com a divisão das tarefas entre as turmas de alunos – como mostras culturais e científicas, cam- panhas de conscientização, projeção de filmes e documentários sobre os temas ligados ao meio ambiente etc. • Criar e manter uma horta na escola com a colaboração de toda a comunidade escolar e até dos familiares dos alunos e dos outros membros da comunidade local. A horta é uma excelente estraté- gia para construir conhecimentos práticos relacionados à susten- tabilidade, ao meio ambiente e à alimentação saudável, podendo constituir um eixo permanente na escola para a educação am- biental dos alunos. Mesmo em pequenos espaços é possível criar coletivamente hortas verticais ou pequenos canteiros suspensos, por exemplo. • Promover regularmente na escola feiras de trocas de livros, revis- tas, brinquedos, roupas e outros objetos de interesse dos alunos, conforme cada faixa etária, é uma boa estratégia para educar para o consumo sustentável e passar a reconhecer a qualidade, Robert Kneschke/Shutterstock 34 Temas sociais e educacionais contemporâneos o valor de uso e o valor sentimental dos objetos, e não sua quan- tidade. As feiras de trocas, muito aplicadas como estratégia de ensino de matemática, podem contribuir para a criação de uma cultura de sustentabilidade na escola e até na comunidade local. • Manter coleções de compartilhamento nas salas de aula. Montar coletivamente uma biblioteca comunitária da turma, uma brin- quedoteca coletiva, um guarda-roupa compartilhado etc. contri- bui para a compreensão prática da economia circular, que não se baseia em consumo e descarte, mas no reuso e no compartilha- mento de produtos, para que tenham vida útil mais longa e evi- tem o consumo e o descarte exagerado de lixo no meio ambiente. • Montar uma pequena oficina de reciclagem na escola. Sob orien- tação de docentes e outros membros da comunidade escolar, os alunos, conforme suas capacidades, perfis e idade, podem cole- tar e reciclar embalagens e outros materiais, transformando-os em objetos úteis para os espaços escolares. Garrafas PET, caixas de papelão e de madeira e outras embalagens recicladas podem se tornar suportes para a horta escolar, para as feiras de troca e coleções compartilhadas, assim como podem ser transformadas em brinquedos, utensílios para a sala de aula, entre outras inú- meras funções que a criatividade alcançar. Essas e outras estratégias de intervenção na comunidade escolar para incentivar a conscientização para a sustentabilidade são meios práticos de engajar docentes, funcionários e alunos em ações efetivas e gerar mudanças de hábitos e padrões cotidianos no sentido de formar para a adoção de comportamentos sustentáveis no dia a dia da escola. CONSIDERAÇÕES FINAIS É urgente a conscientização dos impactos causados no meio ambiente do planeta pelos modos de exploração, produção e consumo da socie- dade capitalista, assim como da ação individual de cada um de nós por meio de atitudes, hábitos e comportamentos. A Terra tem mostrado sinais de que não temos mais tempo: precisamos transformar nossos valores e nosso modo de vida antes que sejamos responsáveis pela destruição de nosso habitat e do de inúmeras outras espécies. A busca do desenvolvimento sustentável é mais do que uma tendên- cia, um estilo de vida ou uma opção pessoal: é uma necessidade plane- tária. Antes de sermos cidadãos brasileiros, somos cidadãos do planeta Educação ambiental e consumo responsável 35 Terra e é nossa obrigação contribuir para que o planeta sobreviva, já que dependemos dele para nossa própria sobrevivência. A qualidade da vida em comunidade, das relações de trabalho, da saú- de coletiva e do futuro de todos nós como sociedade depende da conser- vação ambiental, da manutenção dos recursos naturais e da convivência em equilíbrio entre as espécies. Consumir não pode ser mais importante do que assegurar a permanência da vida no planeta. E a chave para isso é a educação: ecopedagogia, ecoformação, for- mação para a cidadania planetária, educação ambiental, educação para a sustentabilidade, educação para o consumo consciente e responsável, educação para o respeito a todas as espécies, educação para a recicla- gem, educação para a economia circular etc. Não importa como chame- mos, a educação passa por todas essas perspectivas e é a solução para a criação de uma cultura da sustentabilidade e para a formação de novas gerações comprometidas com a saúde do planeta e da sociedade como um todo e que respeitem o valor universal da vida. ATIVIDADES 1. Quais são as semelhanças e diferenças entre os conceitos de preservacionismo e conservacionismo? 2. Há um termo que expressa, essencialmente, o modo de proteger o meio ambiente dos impactos negativos da industrialização e do consumo exagerado e, ao mesmo tempo, promover os desenvolvimentos econômico e social. Qual é esse termo? 3. O posicionamento do Estado brasileiro na conferência mundial do meio ambiente de 2019 difere de seus posicionamentos em todas as conferências anteriores. Qual é a principal diferença entre tais posicionamentos? 4. Explique o que é lowsumerism e dê um exemplo dessa tendência. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 31 ago. 1981. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938. htm. Acesso em: 4 dez. 2020. BRASIL. O que é consumo sustentável. Ministério do Meio Ambiente, 2020. Disponível em: https://antigo.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/producao-e-consumo- sustentavel/conceitos/consumo-sustentavel.html. Acesso em: 1 dez. 2020. CARVALHO, I. C. de. M. Educação ambiental: formação do sujeito ecológico. São Paulo: Cortez, 2017. 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Para formar adultos conscientes das relações econômicas em que estão inseridos e capazes de administrar suas finanças com responsabilidade e ética, de modo a proporcionar conforto e tran- quilidade para si e para os outros, é preciso desenvolver deter- minados conhecimentos e habilidades. Essas aprendizagens serão abordadas neste capítulo. 2.1 Sistemas econômicos e racionalidade econômica Vídeo Quando se fala em sistemas econômicos, é provável que nos venha à mente algo relacionado ao sistema que organiza a economia de um país. É comum pensarmos também que esse tipo de sistema é o que promove economia, ou seja, mais ganhos e menos gastos, ou maior produção a um custo menor, gerando maior lucro. Essas ideias estão atreladas àquilo que conhecemos, à maneira como a nossa sociedade está estruturada e ao sistema econômico vi- gente: o capitalista. No entanto, não existe apenas um tipo de sistema econômico em todos os lugares do mundo, assim como já existiram diferentes sistemas econômicos ao longo da história. A base econômica das sociedades, seus modos de produção e suas relações de trabalho se transformam conforme passa o tempo e dife- 38 Temas sociais e educacionais contemporâneos rem entre si. Segundo Godelier (1969, p. 327), a regra econômica de “maximizar a produção e minimizar os custos” só faz sentido no con- texto de uma “hierarquia de necessidades e valores que se impõem aos indivíduos no seio de determinada sociedade e que têm seu funda- mento na natureza das estruturas desta sociedade”. Isso significa que o modo de pensar a economia – ou o que chamamos de racionalidade econômica – nas sociedades capitalistas não faria nenhum sentido nas sociedades pré-industriais ou em outras regiões do mundo que ado- tam sistemas diferentes. De maneira simples, podemos definir sistema econômico como a forma política, social e econômica pela qual uma sociedade se organi- za, incluindo o tipo de propriedade, o modo de produção e distribuição de riquezas, a gestão da economia e a divisão e as relações de trabalho. Dependendo do tipo específico de sistema econômico de que estamos tratando, podemos incluir no conceito os processos de circulação das mercadorias, o consumo e os níveis de desenvolvimento tecnológico da sociedade. Indo além, de modo mais elaborado, temos vários conceitos para sistemas econômicos. Um deles é o do historiador polonês Kula (1970), que os define como um conjunto mais amplo que integra coerente- mente uma série de fatos econômicos e relações de dependência eco- nômica em uma sociedade, durante determinado período histórico. A racionalidade econômica do sistema capitalista baseia-se na lógi- ca de mercado, que considera tudo como recurso – a natureza, o ser humano, o conhecimento, o trabalho –, tudo deve se tornar lucrativo. Sob essa visão, só existe um único modelo de desenvolvimento possí- vel para a sociedade, o qual depende de aumentar cada vez mais a produção e o lucro, o que muitas vezes ocasiona danos irreversíveis ao meio ambiente e à vida das pessoas. Mas existem outras lógicas e visões de mundo. Por exemplo: no Bra- sil, povos indígenas que mantiveram parte significativa de sua cultura e modo de vida, tendo sofrido pouca influência da sociedade capitalista, não possuem a mesma racionalidade econômica que o restante da po- pulação, como esclarece Bonin (2015): um elemento constitutivo das distintas lógicas indígenas é a es- treita relação estabelecida entre os processos e os meios de pro- dução – por isso, a terra é de posse coletiva e não individual; a Educação financeira: um aprendizado para a vida 39 terra não é vista como propriedade privada e sim como espaço de relações sociais lançadas sobre esta base territorial. A nature- za, por sua vez, é entendida como provedora, mas cada ser pre- cisa aprender a respeitar os demais, para não destruir o tecido denso e delicado dessa relação entre as pessoas, os seres e as coisas que, na cultura ocidental, são vistas como inanimadas. Como se vê, o valor simbólico da terra, para os povos indígenas, difere do valor que ela tem numa sociedade capitalista. Para os povos indígenas, a terra não se restringe a um mero recurso, a ser explorado em todo o seu potencial. Do mesmo modo, em períodos históricos passa- dos ou em países com outros sistemas econômicos, a regra de produzir o máximo gastando o mínimo para obter maior lucro, ou de explorar as terras ao máximo, não faria sentido para as pessoas. Ouseja, a lógica capitalista, baseada no lucro, não pode ser aplicada para analisar outros tipos de sistemas eco- nômicos que operam sob diferentes lógicas e racio- nalidades econômicas. Podemos dizer, de uma forma mais genérica, abrangendo as sociedades em várias épocas e lu- gares, que a economia é um conjunto de ativida- des e relações desenvolvidas pelos seres humanos com o objetivo de produzir, distribuir e consumir bens e serviços necessários à sobrevivência e à vida em sociedade. Na maior parte dos casos, as pessoas não têm noção de qual é a “racionalidade econômica” de sua sociedade ou do seu tempo. Quem vivia, por exemplo, sob o sistema econômico feudal, durante a Idade Média, não tinha plena consciência sobre a lógica que regia o sistema econômico da época. São os historiadores, economistas etc. que, com base nas características produtivas e nas relações econômicas de uma sociedade, constroem o que seria seu modelo econômico e o nomeiam. 2.1.1 Sistemas econômicos ao longo da história Vamos, então, conhecer os sistemas econômicos na história? No início da Pré-História, os grupos humanos reuniam poucas pessoas e eram nômades. Como não produziam alimentos e apenas Cmacauley/Wikimedia Commons Mulher e criança Yanomami, no Amazonas, Brasil, 1997. 40 Temas sociais e educacionais contemporâneos caçavam e coletavam frutos, sementes etc. na natureza, precisavam se mudar de local toda vez que os alimentos se tornavam escassos. A divisão do trabalho nesse período era baseada predominantemente em critério de gênero, com homens caçando e mulheres se dedican- do à coleta – apesar de estudos arqueológicos recentes revelarem que não era tão incomum que mulheres também realizassem a caça nessa época. Na fase final da época pré-histórica, no período chamado de Neolítico, com o surgimento da agricultura e, em seguida, a criação de animais, houve uma transformação no modo de vida dos grupos humanos, que passaram a se fixar em um local apenas e foram se ampliando e sobre- vivendo dos alimentos que produziam. Surgiram, então, as primeiras cidades, e a divisão do trabalho passou a ser mais complexa e espe- cializada. Na fase seguinte, a Idade do Bronze, a divisão do trabalho foi se tornando ainda mais complexa e já passaram a ser identificadas desigualdades socioeconômicas nas populações. Posteriormente, na Antiguidade, várias sociedades – como a grega, a romana e a egípcia, que nesse período já contavam com grandes ci- dades e uma variedade de atividades laborais – baseavam seus modos de produção no sistema escravista, que se originou, muitas vezes, de si- tuações de guerra e conquista de território, quando parte do povo con- quistado era privado da liberdade e submetido a trabalhos forçados pelos conquistadores. Nesse tipo de relação de trabalho, não existia remuneração nem direitos básicos para quem trabalhava, o que atual- mente é proibido por lei em quase todo o mundo. Sob esse sistema, a terra e os escravos eram os bens mais valoriza- dos, sendo de propriedade da elite que dominava social, econômica e politicamente a sociedade; assim, as noções de desigualdades socioe- conômicas eram bem diferentes das que temos atualmente. Entretan- to, propriedade e riqueza não eram totalmente ligadas, como são hoje, ao sistema capitalista, no qual quem possui propriedades, como terras, automaticamente tem riquezas. Na Grécia Antiga, por exemplo, segun- do Barros (2012, p. 115): riqueza e propriedade eram noções perfeitamente desentrela- çadas. Portanto, os critérios para a avaliação da desigualdade deveriam considerar cada uma destas noções [...] a proprieda- de significava que o indivíduo possuía concretamente um lugar no mundo e que, portanto, pertencia ao mundo político com os Nos Andes, em um sítio arqueológico do Peru, foi en- contrada uma sepultura, que tinha 9.000 anos, de uma mulher que teria sido caçadora de animais de grande porte. Questionou-se, então: qual se- ria a presença das mulheres na caça nas Américas nessa época? Para obter respostas, foram investigadas as informações sobre indivíduos de outros sítios arqueológicos, onde a equipe de cientistas diz ter encontrado mais dez mulheres caçadoras. Essa não é a primeira vez que se chega à hipótese de que as mulheres no passado caçavam animais de grande porte, mas o artigo científico recentemente publicado na revista Science Advances mostra um padrão da sua participação na caça – isso desafia as hipóteses ante- riores de que a caça era uma tarefa exclusiva dos homens (SERAFIM, 2020). Curiosidade Educação financeira: um aprendizado para a vida 41 consequentes direitos à cidadania (ARENDT, 1989, p. 71). Por isso, a riqueza de um estrangeiro, ou mesmo de um escravo, não substituía esta propriedade que era exclusiva dos cidadãos, e não lhe conferia obviamente um acesso ao mundo político. Per- cebe-se aqui que o poder se entrelaçava com a propriedade, e ambos se situavam em um espaço de conexões em separado da riqueza. Mais tarde, durante a Idade Média, sobretudo na Europa, o sistema vigente foi o feudalismo, um sistema econômico, político e social tam- bém baseado na propriedade de terras (os feudos) por parte da elite (os nobres), que dependia de um tipo de relação de trabalho chamado de servidão. Nessa relação, os camponeses (servos) não podiam deixar as terras e deviam obrigações aos seus proprietários, como impostos e serviços. Ainda existia trabalho escravo na sociedade medieval, mas com a base da produção ocorrendo no trabalho servil, já que a nobreza não trabalhava e apenas administrava os feudos e, quan- do necessário, participava de guerras. A escravidão não se limitou apenas à Antiguidade. No decorrer da Idade Moderna, na América, durante o processo de colonização, o sistema escravista foi amplamente utilizado como base da produção. A es- cravidão indígena e a africana foram a base do sis- tema econômico colonial brasileiro, que se fundava também na propriedade de terras por parte da elite. Na Idade Moderna, entre os séculos XV e XVIII, no contexto da expansão marítima, comercial e colonial dos países europeus e do surgimento das práticas econômicas do mercantilismo, surgiram as bases do capitalismo comercial, considerado o pré-capitalismo. Com a Revolução Industrial, iniciada na metade do século XVIII na Europa – período de grande desenvolvimento tecnológico, ligado à industrialização, com a invenção e o uso de novas máquinas e equi- pamentos, bem como o surgimento das fábricas –, os processos e as re- lações de trabalho sofreram profundas transformações. Pela primeira vez, dezenas de operários trabalhavam juntos em fábricas para fabricar grandes quantidades de produtos, em vez de trabalharem artesanal- So vie te d os P im en ta s/ W ki m ed ia C om m on s Cena agrícola do século XIII. Le Régime des princes. Gilles de Rome, 1279. 42 Temas sociais e educacionais contemporâneos mente, em pequenos grupos, levando bastante tempo para produzir em pequenas quantidades. Entretanto, se os artesãos sabiam produzir cada produto de modo completo, executando todas as etapas de sua produção, nas fábricas os operários passaram a desempenhar tarefas correspondentes apenas a uma pequena etapa da produção, desconhecendo como se davam as demais fases e não sendo capazes de produzir o produto completo, pois as tarefas foram divididas no que, mais tarde, daria origem à cha- mada linha de produção. Essa foi uma das bases do sistema econômi- co capitalista, que só pôde surgir após essa enorme transformação do processo produtivo e das relações de trabalho. Segundo Catani (2011), de uma perspectiva histórica, o capitalismo é um determinado modo de produção de mercadorias, gerado his- toricamente desde o início da Idade Moderna e que encontrou seu auge na Revolução Industrial. Desse modo, o capitalismo seria não apenas um sistema em que se produz mercadorias, mas também no qual a força de trabalho se transforma em mercadoria, como qualquerobjeto de troca. Para que exista capitalismo, é necessária a concentração da proprie- dade dos meios de produção (terras, máquinas, equipamentos etc.) em mãos de uma classe social, bem como a presença de uma outra classe, para a qual a venda da força de trabalho seja a única fonte de sub- sistência. Esses requisitos, como o sociólogo alemão Karl Marx (2011) demonstrou, foram estabelecidos com base no processo histórico que transformou as antigas relações econômicas dominantes no feudalis- mo, destruindo-as ao mesmo tempo que se construía o capitalismo. A posse desses meios de produção pertence aos fazendeiros, in- dustriais etc., enquanto os trabalhadores, que vendem sua força de trabalho em troca de um salário, são os responsáveis por produzir, no campo ou nas fábricas, os produtos que depois de serem distribuídos e vendidos gerarão lucro aos proprietários. É por esse motivo que, de modo simplificado, dizemos que o sistema capitalista se baseia na bus- ca do lucro e da acumulação de riquezas. No sistema capitalista, a circulação de mercadorias ocorre por meio do chamado livre mercado, no qual o Estado interfere pouco ou nada. Esse mercado, segundo as regras clássicas da economia, é regulado pe- las leis da oferta e da procura: quando há muita oferta e pouca procura Educação financeira: um aprendizado para a vida 43 de determinado produto, o preço de mercado dele diminui; por outro lado, quando há pouca oferta e muita procura de um produto por parte dos consumidores, seu preço aumenta. No contexto competitivo do mercado, os consumidores estão sem- pre em busca dos menores preços, e os donos dos meios de produção procuram sempre os maiores lucros. Para isso, por vezes, a solução encontrada é diminuir os salários dos trabalhadores para reduzir os custos de produção. Desse modo, os preços são mantidos atrativos aos consumidores, sem que os lucros diminuam. Quem sai perdendo, nesse caso, são os trabalhadores (MARX, 2011). Fundamentadas nas ideias de Marx, o qual considerava injusta a exploração dos trabalhadores no sistema capitalista e propunha um modelo mais igualitário de sociedade, surgiram ao longo do século XX, em países distintos, várias experiências de implantação de sistemas bastante diferentes do capitalista. São exemplos disso: Rússia (antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), Cuba, Alemanha Oriental, Vietnã do Norte, Coreia do Norte, China, entre outros. Na Rússia, em um contexto de miséria da população sob um regime monárquico, ocorreu a Revolução de 1917, que implantou o sistema socialista, no qual a propriedade privada é substituída pela proprieda- de coletiva dos meios de produção. Com isso, terras, fábricas, equipa- mentos, imóveis etc. passam a ser geridos pelo Estado e distribuídos aos trabalhadores segundo suas necessidades, na busca de promover justiça social e abolir as diferenças entre as classes sociais. Características do sistema econômico capitalista – como a compe- tição entre empresas, as regras de mercado e o lucro como objetivo dos processos produtivos – não fazem parte do sistema econômico so- cialista, o qual privilegia a distribuição igualitária dos bens e coloca a produção a serviço da coletividade, pois não permite lucros individuais. Nesse contexto, a economia é planificada pelo Estado, e os investi- mentos são centralizados por ele e feitos nas áreas que possam criar mais empregos e um maior desenvolvimento para a sociedade como um todo. Para Singer e Machado (2000, p. 27): a quase totalidade dos países que aderiram ao “socialismo real” fizeram-no em situações de penúria, provocadas por guerras. [...] A desapropriação das antigas classes dominantes e a introdução de educação e saúde públicas ensejaram uma O premiado documentá- rio Ilha das Flores – consi- derado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos e o melhor curta- -metragem brasileiro da história – mostra, com uma forma de narrativa pioneira para a época, as bases e o funcionamento do sistema capitalista de modo criativo e didático, por meio do ciclo de produção, distribuição e consumo de um tomate. Direção: Jorge Furtado. Brasil: Nora Goulart; Monica Schmiedt, 1989. Filme 44 Temas sociais e educacionais contemporâneos repartição mais igualitária da renda e uma rápida recuperação das indústrias e da produção agrícola. A maior parte da po- pulação pôde voltar a satisfazer suas necessidades básicas e, crescentemente, outras. A economia centralmente planejada começou a entrar em crise quando a economia superou os efeitos da destruição bélica e a população passou a reclamar um padrão de vida semelhante ao do Primeiro Mundo, que a globalização das comunicações e do turismo trouxe aos lares dos países do “socialismo real”. A economia planificada pelo Estado ainda está presente em al- guns países, como a China, mas, desde a década de 1990, vem sendo mesclada a elementos do sistema capitalista, pois, apesar de ter forte presença estatal e projetar o desenvolvimento com base nas priorida- des nacionais, a economia chinesa incorporou a exploração da mão de obra, as regras de mercado e a busca do lucro. Nas três últimas décadas, esse novo modelo misto tem levado o país a um grande avanço econômico no mercado mundial e o coloca como candidato à liderança econômica mundial. Entretanto, na sociedade chinesa, as desigualdades econômicas e sociais têm se ampliado. O país passou de moderadamente desigual, em 1990, para um dos países mais de- siguais do mundo, em 2018, segundo relatório emitido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Joseph Stiglitz, ganhador do prêmio Nobel de Economia em 2001 e autor com trabalhos pioneiros sobre finanças públicas, crescimento, distribuição de renda e mercados e eficiências das economias capita- listas, é um crítico da globalização e do liberalismo. Ele defende que se revise as regras do sistema capitalista para alcançar o que ele chama de capitalismo progressivo, no qual as desigualdades devem ser reduzidas sob pena de destruírem o próprio sistema. Para Stiglitz (2013), em muitos contextos os mercados não funcio- nam, ou seja, não se autorregulam, como propõem as teorias econômi- cas liberais do livre mercado, já que as decisões econômicas estariam regidas, na realidade, por interesses e bases ideológicas, sendo neces- sário que o governo intervenha seletivamente para auxiliar seu fun- cionamento, estabelecendo um equilíbrio, evitando concentrações excessivas de capital por grandes corporações e agindo na redistribui- ção de renda na sociedade. Como um sistema econômico poderia conseguir, atualmente, reduzir as desigualdades na sociedade e, ainda assim, ter um papel relevante na economia mundial? Para refletir Educação financeira: um aprendizado para a vida 45 2.2 Relações de produção e de trabalho Vídeo Uma definição simples e ampla para o termo trabalho é: execução de tarefas cujo objetivo é a satisfação de necessidades humanas. Esse trabalho pode ser remunerado ou não. O trabalho de uma faxineira ou diarista, que limpe a casa de alguém, por exemplo, se ba- seia em atividades muito parecidas com as que pessoas de uma família precisam dividir quando moram na mesma residência: varrer a casa, lavar os banheiros, espanar os móveis etc. No entanto, o trabalho da faxineira é remunerado, isto é, ela recebe um pagamento pelo dia de trabalho; já o trabalho das pessoas que moram em uma mesma casa e precisam mantê-la limpa não é remunerado. Mas há diferenças fundamentais entre o trabalho não remunera- do voluntário, em que a pessoa desempenha determinadas tarefas de manutenção de sua moradia ou de ajuda a pessoas que precisam, e o trabalho escravo, que é uma forma forçada, na qual um indivíduo é obrigado a trabalhar sem remuneração e em condições por vezes sub- -humanas. Essas diferenças nos fazem pensar sobre o que é o trabalho e qual é o seu significado social. No sistema capitalista, o trabalhoé a base da produção de rique- zas, mas nem sempre essas são bem distribuídas na sociedade. Marx, quando trata especificamente do trabalho remunerado no contexto capitalista, conceitua-o como a atividade sobre a qual o ser humano emprega sua energia (força de trabalho), a fim de produzir os meios para sua subsistência. Para esse autor, é no trabalho que se manifesta a superioridade humana ante os demais seres vivos. Ele seria “a realiza- ção do próprio homem, a fonte de toda riqueza e bem material” (MARX, 2004, p. 80). No entanto, para o sociólogo, quando o trabalhador vende sua for- ça de trabalho aos proprietários dos meios de produção – aos donos de uma indústria, por exemplo –, ele gera uma renda bem maior do que a que lhe é paga como salário, a qual Marx chamou de mais-valia. Essa renda compõe o lucro que o industrial obterá após a venda dos produ- tos que o trabalhador produziu, retirando, é claro, os gastos envolvidos na produção, como a estrutura, os equipamentos, a energia elétrica, entre outros, além do pagamento de impostos e outros tributos. 46 Temas sociais e educacionais contemporâneos Desse modo, para Marx (2004), o trabalhador, na verdade, ganha bem menos do que vale sua força de trabalho, e o valor excedente é o lucro que fica para seu patrão. Para o autor, o justo seria que uma parte desse lucro fosse paga aos trabalhadores que o geraram. Algo semelhante a essa ideia é aplicado nas empresas que concedem aos seus funcionários participação nos lucros. Há organizações que remuneram seus funcioná- rios de maneira justa e cumprem adequadamente suas obrigações le- gais, valorizando as boas condições de trabalho de seus contratados, pois compreendem que dependem deles para ampliar sua produção ou manter sua boa marca no mercado. No entanto, nem sempre é assim. Quando o empregador explora injustamente o trabalho de seus empregados, pagando-lhes muito pouco, exigindo muitas horas de trabalho ou se eximindo de responsabilidade quando o funcionário se acidenta durante a produção, por exemplo, podemos dizer que esse trabalhador está sendo explorado. Essa situação era muito comum no início da industrialização, quando as jornadas diárias de trabalho nas fábricas chegavam a 16 horas e os operários ganhavam pouquíssimo e não tinham nenhum tipo de amparo. Além disso, crianças pequenas também trabalhavam, manejando máquinas perigosas, e não havia pausa para alimentação ou mesmo para ir ao banheiro, e os locais de trabalho eram insalubres. Ao longo do tempo, sobretudo com as lutas dos trabalhadores e sua organização em sindicatos, foram conquistados mais direitos e condições justas de trabalho. Surgiram, então, as leis trabalhistas, que limitam as jornadas de trabalho, impõem condições dignas de traba- lho – como local com ventilação e luminosidade adequada, intervalo para alimentação e um salário mínimo a ser pago aos trabalhadores – e estabelecem responsabilidades ao empregador em relação a doen- ça, maternidade, aposentadoria e outras necessidades vitais de seus empregados. A necessidade de promover condições decentes de trabalho é uma bandeira da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um braço da Trabalho infantil em uma fábrica nos Estados Unidos, em 1908. Jk la m o/ W ik im ed ia C om m on s Educação financeira: um aprendizado para a vida 47 Organização das Nações Unidas (ONU), e está fundamentada em qua- tro princípios: 1 A abolição definitiva do trabalho infantil. 3 A liberdade sindical e o reconheci- mento efetivo do direito de negocia- ção coletiva. 2 A eliminação de todas as formas de trabalho forçado. 4 A eliminação de todos os modos de discriminação (em matéria de em- prego e ocupação), a promoção do emprego produtivo e de qualidade, a extensão da proteção social e o forta- lecimento do diálogo social. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) garante, desde a década de 1940 no Brasil, uma série de direitos aos trabalhadores, no sentido de promover condições decentes de trabalho. A CLT passou por várias reformas no decorrer dos anos, e algumas delas têm gerado precarie- dade nas condições de trabalho. Os trabalhos terceirizados, por exem- plo, especialmente nos contextos de crise econômica, têm significado uma opção de renda para muitos trabalhadores. No entanto, nesse tipo de trabalho, muitas vezes os compromissos da empresa com o empregado são muito menores ou até inexistem. Assim, há trabalhadores que precisam realizar jornadas muito altas de trabalho para ganhar o suficiente para sobreviver e, se ficam doentes ou se acidentam, não têm nenhum apoio e passam por dificuldades. Os negócios próprios também apresentam dois lados. Eles podem significar uma oportunidade de exprimir habilidades pessoais e alcan- çar independência financeira e satisfação pessoal, mas podem também ser uma saída desesperada para quem está desempregado e não vê alternativa para sobreviver durante a crise, o que está longe de ser empreendedorismo. Além da subsistência e da produção de riqueza nas sociedades, o tra- balho pode ter outras funções, como a obtenção de satisfação pessoal e autoestima, a “ocupação do tempo e estruturação das relações e dinâ- No filme Você não estava aqui, o motorista Ricky e sua mulher, constante- mente com dificuldades financeiras, trabalham muito, ganham pouco e não veem perspectiva de melhoria de vida para sua família. Quando recebe uma oferta para abrir um negócio próprio, o protagonista agarra a oportunidade sem saber que, como “franqueado” de uma grande empresa de transportes, trabalha- ria 14 horas diárias sem nenhum apoio, arcando com todas as despesas e com altas multas se adoecesse e faltasse ao trabalho. O filme mostra a realidade de traba- lhadores terceirizados na Inglaterra, revelando sua precariedade e seus efeitos devastadores nas famílias. Direção: Ken Loach. Inglaterra; França; Bélgica: Sixteen Films, 2018. Filme 48 Temas sociais e educacionais contemporâneos micas sociais e o auxílio na construção da identidade pessoal” (GIDDENS, 2005, p. 305-306), no sentido de propósito e reconhecimento por parte da coletividade, bem como de utilidade para a sociedade, desempe- nhando um papel importante em muitos aspectos da vida. Entretanto, é preciso lembrar que muitas pessoas não têm condi- ções reais de exercer um trabalho que traga satisfação pessoal e re- conhecimento, fortaleça a autoestima ou proporcione a sensação de contribuição relevante para a coletividade. Simplificando: nem todo mundo pode trabalhar com aquilo de que gosta. Boa parte das pes- soas, infelizmente, trabalha no que é possível, em qualquer atividade que possa garantir o sustento básico. Mas por que isso acontece? Um dos fatores determinantes para essa situação é a falta de oportu- nidades educacionais e de uma formação profissional. Para se especia- lizar em alguma área, seja ela acadêmica ou técnica, precisa-se de uma boa formação e, para isso, é necessário ter acesso à educação. Entretan- to, apesar de ter havido ampliação de vagas e do direito à educação no país nas últimas décadas, até hoje há diversas crianças e adolescentes fora da escola. Além disso, a educação pública ainda carece de mais investimentos em estrutura, equipamentos e, sobretudo, professores, a fim de garantir a melhoria da qualidade da educação para todos. Muitas vezes, jovens e até crianças que vivem em condições socioe- conômicas precárias e em vulnerabilidade social são levados a traba- lhar em vez de estudar, o que é proibido por lei, já que o trabalho de menores de 16 anos é ilegal no Brasil em praticamente qualquer situa- ção. Uma exceção, por exemplo, é o trabalho do jovem aprendiz (14 a 16 anos), que deve durar no máximo quatro horas diárias e não atra- palhar, de nenhuma forma, a frequência à escola, o estudo e o pleno desenvolvimento físico e mental do adolescente. O trabalho infantil é proibido pelas leis brasileiras por vários mo- tivos. O Fundo das Nações Unidas para a Infância(Unicef) aponta as características que tornam o trabalho precoce prejudicial ao desenvol- vimento das crianças: Educação financeira: um aprendizado para a vida 49 I. aquele realizado em tempo integral, em idade muito jovem; II. o de longas jornadas; III. o que conduza a situações de estresse físico, social ou psicológico ou que seja prejudicial ao pleno desenvolvimento psicossocial; IV. o exercido nas ruas em condições de risco para a saúde e a integridade física e moral das crianças; V. aquele incompatível com a frequência à escola; VI. o que exija responsabilidades excessivas para a idade; VII. o que comprometa e ameace a dignidade e a autoestima da criança, em particu- lar quando relacionado com trabalho forçado e com exploração sexual; e VIII. trabalhos sub-remunerados. (BRASIL, 1998, p. 12-13) É um importante papel da escola manter os alunos estudando, de modo a prevenir a evasão e mostrar aos estudantes o valor do conheci- mento e das aprendizagens para sua formação como cidadãos críticos e futuros trabalhadores. Para isso, é preciso promover uma formação integral, que capacite os jovens a fim de que compreendam o seu lugar no mundo e o fun- cionamento da sociedade sob os pontos de vista econômicos, sociais e políticos, bem como para que ajam sobre seu meio social, transfor- mando-o para melhorar suas vidas e as da comunidade em que vivem. Como defende o educador Freire (2011), a educação deve ser liber- tadora e transformadora, e o professor precisa refletir continuamente sobre suas práticas para que elas superem a mera transmissão de co- nhecimentos e se tornem emancipadoras, colaborando para a forma- ção de seres humanos mais livres, críticos, autônomos e capazes de agir sobre suas realidades sociais. Além disso, de um modo geral, mesmo fora dos itinerários ligados à educação profissional e tecnológica, faz parte do papel da escola pro- mover a orientação vocacional dos alunos, contribuindo para a escolha profissional e incorporando atividades dessa natureza ao longo da for- mação dos estudantes, sobretudo no final da educação básica, quando é fundamental abrir perspectivas de futuro para os jovens. 50 Temas sociais e educacionais contemporâneos Nesse sentido, o papel da orientação pedagógica é fundamental, como salientam Oliveira, Melo e Almeida (2016, p. 3): essa orientação surge a partir das dificuldades relacionadas à es- colha profissional, auxilia os jovens em todos os níveis sociais a escolherem e se prepararem para enfrentar uma ocupação pro- pícia, deixando-os satisfeitos, pois pessoas descontentes com o trabalho tornam-se improdutivas nas funções que desempe- nham. É também um instrumento que dá condições ao jovem de fazer uma reflexão sobre os diversos tipos de profissões, tor- nando pertinente a tentativa de ingressar no campo de trabalho. É importante, também, considerar o trabalho como um princípio educativo, e o próprio trabalho educativo como um meio de formar integralmente o ser humano, como destaca Saviani (2003, p. 1): o/ trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencional- mente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzi- da historicamente pelo conjunto de homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da es- pécie humana para que se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo. O trabalho docente não é apenas o de transmitir conhecimentos acu- mulados historicamente ou de desenvolver habilidades práticas e tecno- lógicas, mas também o de formar os estudantes para a compreensão de como se dão as relações no mundo do trabalho e seus impactos nas re- lações sociais, na vida das pessoas, no meio ambiente e na produção de novos conhecimentos. 2.3 Economia solidária Vídeo Pudemos perceber que, no sistema capitalista, todas as relações eco- nômicas estão atreladas à produção e ao consumo e visam ao lucro. Sen- do assim, produzir mais com um custo menor amplia os lucros. Nesse contexto, a concepção de desenvolvimento da sociedade está ligada ao progresso científico e tecnológico como instrumento para maximizar a produtividade e os lucros. Porém, nem sempre esse de- senvolvimento atinge efetivamente toda a sociedade ou melhora suas Educação financeira: um aprendizado para a vida 51 condições de vida, visto que a exclusão é uma realidade para grande parte da população. No sentido de promover a inclusão econômica e social, uma alter- nativa de desenvolvimento tem sido discutida, a economia solidária, que é uma proposta de organização da produção e do trabalho, ba- seada na autogestão e em um modelo de desenvolvimento inclusi- vo e que atende às necessidades locais, sendo passível de aplicação tanto em práticas de grupos locais, organizações não governamentais (ONGs) e movimentos sociais organizados quanto por políticas públicas governamentais. A proposta da economia solidária, no plano teórico, abrange um am- plo espectro de experiências e, em uma perspectiva prática, nomeia ex- periências concretas bastante diferentes entre si, mas que podem ser incluídas no chamado Movimento por uma Economia Solidária, como em- preendimentos econômicos solidários e suas formas de organização. Segundo Carvalho (2011, p. 2-3), com base na fundamentação concei- tual proposta pelo atualmente extinto Ministério do Trabalho e Emprego em 2008, a economia solidária se configura como uma resposta dos pró- prios trabalhadores às transformações atuais do mundo do trabalho. Estas respostas são caracterizadas por iniciativas ca- racterizadas como organizações econômicas (organizações co- letivas, organizadas sob a forma de autogestão que realizam atividades de produção de bens e de serviços, crédito e finanças solidárias, trocas, comércio e consumo solidário) e organizações solidárias (empresas de autogestão, associações, cooperativas e grupos informais de pequenos produtores ou prestadores de serviços, individuais e familiares, que realizam em comum a com- pra de seus insumos, a comercialização de seus produtos ou o processamento dos mesmos). A autora considera ainda que “ao constituírem um modo de pro- dução alternativo ao capitalismo, onde os próprios trabalhadores/as assumem coletivamente a gestão de seus empreendimentos econômi- cos, as iniciativas de economia solidária vêm apontando para soluções mais definitivas à falta de trabalho e renda” (CARVALHO, 2011, p. 2-3). Entre esses empreendimentos econômicos, estão as organizações soli- dárias e os empreendimentos sociais. 52 Temas sociais e educacionais contemporâneos 2.3.1 Organizações solidárias e empreendimentos sociais Segundo Andion (1998, p. 13-15), “as organizações solidárias possuem um objetivo social, de contribuição da economia solidária à riqueza coleti- va”, que é medido não apenas pela produção de bens e de serviços, mas principalmente pela rentabilidade social gerada, a qual está relacionada à capacidade dos grupos de produzir mudanças institucionais no meio em que atuam. Para Archimbaud (1993), nesses grupos, a lógica solidária deve prevalecer sobre a lógica mercantil, sendo esta não mais do que um ins- trumento de viabilidade, e não um objetivo em si mesma. Para caracterizar melhor as organizações solidárias e diferenciá-las das organizações ligadas à economia formal, que seguem os princípios tradicionais do sistema capitalista, visando apenas ao lucro, e das or- ganizações relacionadas à economia social – como é o caso dos em- preendimentos sociais, que visam ao lucro, mas objetivam igualmente gerar impactos sociais positivos na sociedade –, Andion (1998) propõe a seguinte classificação: Quadro 1 Comparação entre diferentes formas de economia Economia formal Economia social Economia solidária Tipos de organização Empresas privadas Cooperativas, mutualistas e associações Associações ou organiza- ções comunitárias Origem Sociedades anônimasou limitadas Organização autônoma (in- dependente do Estado e da iniciativa privada) criada livremente por um grupo de pessoas Iniciativa de uma comuni- dade local auto-organizada ou organizada com apoio de atores externos Objetivo principal Produção de bens e servi- ços para satisfazer às ne- cessidades dos clientes Produção de bens e ser- viços para satisfazer às necessidades de clientes, dos membros ou de uma coletividade Produção, sobretudo, de serviços, a partir de uma necessidade social deter- minada e visando a uma mudança institucional Dimensão predominante Econômica Econômica e social Social e solidária Apropriação do lucro Em função do capital Utilização de meios de par- tilha entre os membros do grupo Inexistente Definição da oferta e da demanda Por meio do livre mercado Por meio do livre merca- do ou da necessidade dos membros Por meio de relações de proximidade entre usuá- rios e produtores (Continua) Educação financeira: um aprendizado para a vida 53 Economia formal Economia social Economia solidária Principais fontes de recursos Mercantil Mercantil ou financiamento do Estado Combinação de recursos mercantis, não mercantis, e não monetários Trabalhadores Assalariados Assalariados e membros Assalariados, voluntários, usuários e outros parceiros Beneficiários Clientes Clientes e/ou membros Grupos da comunidade, sobretudo os excluídos Fonte: Andion, 1998, p. 16. Podemos perceber, por meio das características das organizações solidárias, que o sentido de inclusão social e de transformação institu- cional é o predominante nesse tipo de arranjo, que tem como objetivo o desenvolvimento local sustentável e a geração de melhores condições de vida para as comunidades, fugindo da lógica mercantil e do lucro. Já os empreendimentos sociais, como cooperativas e associações, ou mesmo empresas que visam aos impactos sociais positivos, mesclam a lógica mercantil de livre mercado e de busca de lucro com o atendimen- to de necessidades coletivas e a melhoria das condições de vida de uma coletividade, reunindo dimensões econômicas (lucrativas) e sociais. Um levantamento do Sebrae em parceria com o Programa das Na- ções Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2018, identificou mais de 800 negócios de impacto social em todo o país (SEBRAE/PNUD, 2018). São iniciativas variadas que envolvem desde empreendedores individuais até grupos maiores com influência em suas comunidades de origem. A Fundação Schwab, uma organização internacional sem fins lucra- tivos, lança anualmente uma lista de empreendedores sociais do ano, na qual reconhece os responsáveis por práticas que, na busca por su- perar desafios sociais e ambientais, estão mudando o mundo. Na lis- ta de 2020, estão dois jovens brasileiros: Adriana Barbosa e Henrique Guilherme Brammer Junior. Adriana é criadora da PretaHub, uma plataforma para impulsionar o empreendedorismo negro, que oferece cursos de formação para esse grupo de empreendedores, atuando também como incubadora de no- vos negócios sociais e combatendo o racismo estrutural e as dispari- dades de gênero. Henrique é fundador da Boomera, que promove a reciclagem de produtos com processos mais complexos, como restos de cigarro, fraldas descartáveis usadas e cápsulas de café expresso, por meio de uma metodologia inovadora chamada pacote circular; trata-se O British Council e o Developing Inclusive and Creative Economies (DICE), programas do go- verno britânico de apoio ao desenvolvimento no Reino Unido, no Brasil, no Egito, na Indonésia, no Pa- quistão e na África do Sul, realizaram o mapeamento sobre o empreendedo- rismo social e criativo no Brasil. O trabalho baseou- -se na hipótese de que apoiar o desenvolvimento de negócios sociais e cria- tivos é uma maneira eficaz de abordar questões como desemprego, desi- gualdade e crescimento econômico, bem como de construir sociedades mais inclusivas. A conclusão foi de que as empresas sociais e criativas do Brasil estão gerando mais em- pregos formais para mu- lheres, jovens e pessoas LGBTI+ em comparação à economia brasileira no ge- ral. No entanto, o quadro é menos positivo quanto à inclusão de negros, o que reflete os obstáculos estruturais da sociedade brasileira. O mapeamento mostra, ainda, que nos negócios sociais com até um ano de atuação 23% das equipes são formadas por jovens com menos de 25 anos. Para saber mais a respeito desse mapeamento, acesse o link a seguir. Disponível em: https://www. britishcouncil.org.br/sites/default/ files/_relatorio_dice_brasil_pt_ web.pdf. Acesso em: 22 jan. 2021 Saiba mais https://www.britishcouncil.org.br/sites/default/files/_relatorio_dice_brasil_pt_web.pdf https://www.britishcouncil.org.br/sites/default/files/_relatorio_dice_brasil_pt_web.pdf https://www.britishcouncil.org.br/sites/default/files/_relatorio_dice_brasil_pt_web.pdf https://www.britishcouncil.org.br/sites/default/files/_relatorio_dice_brasil_pt_web.pdf 54 Temas sociais e educacionais contemporâneos de uma iniciativa que gera escala e impacto, trans- formando o lixo reciclável em uma linha de produtos que reúne tecnologia, design, ciência e inclusão so- cial (SCHWAB, 2020). Esses e outros exemplos geram, junto com tantas outras maneiras alternativas à economia formal, im- pactos sociais positivos nas comunidades, inclusão social e econômica, bem como desenvolvimento so- cial, local e regional sustentável. Além disso, quando se reúnem em redes empreendedoras sociais, podem causar impacto sistêmico e in- fluenciar a criação de políticas públicas. 2.3.2 Educação empreendedora O empreendedorismo não se restringe às iniciativas sociais; há em- preendimentos regidos apenas pela lógica do lucro, no sentido de ge- rar renda e custear a subsistência do empreendedor e de sua família, por meio de negócios tradicionais, com a venda de produtos ou servi- ços. Mas nem por isso é preciso esquecer a dimensão social de todas as ações humanas e os impactos que esse tipo de negócio também tem na comunidade local. Para Dolabela (2003, p. 29), empreender significa “modificar a reali- dade para dela obter a autorrealização e oferecer valores positivos para a coletividade. Significa formas de gerar e distribuir riquezas materiais e imateriais por meio de ideias, conhecimentos, teoria, artes, filosofia”. Segundo Lopes e Rollemberg (2014), o empreendedor não pre- cisa necessariamente inovar ou inventar um produto ou serviço. Ele pode identificar um problema na sua localidade e, de modo criativo, buscar meios para solucionar esse problema, contando com a ajuda da comunidade. Isso pode ser rentável e, ao mesmo tempo, beneficiar de alguma forma a comunidade, mesmo que o lucro não seja repartido com essas pessoas, como seria o caso de empreendimentos solidários ou mesmo negócios sociais de gera- ção de renda. Esses benefícios podem ser ambientais, criativos ou de oferta de produtos e serviços que nunca foram disponibiliza- dos localmente, facilitando o cotidiano das pessoas. Empreender, nesse sentido, ultrapassa o individualismo e tem uma visão muito mais ampla e social: todos ganham algo com ele. Dmytro Zinkevych/Shutterstock Educação financeira: um aprendizado para a vida 55 O empreendedorismo não deve ser focado no “ter”, mas sim em uma forma de “ser”, pois está relacionado ao sonho de um indivíduo de transformar a sua realidade de maneira positiva, ajudando a sua comunidade a crescer. Se o empreendedor foca exclusivamente o enri- quecimento pessoal e não gera valores positivos para a sociedade, está contribuindo para perpetuar a exclusão social. Para Costa (2003), a pedagogia empreendedora trata o empreende- dorismo como uma forma de ser, ligando o individual ao coletivo, articu- lando o compromisso de gerar riquezas com o de distribuí-las e propondo um desenvolvimento humano e social como um todo integrado. Educar para o empreendedorismo, nessa acepção, é promover o olhar e o agir coletivo e apoiar o desenvolvimento de habilidadesque possam contribuir para tornar a realidade social mais inclusiva e justa para todos, promovendo geração de renda e realização pessoal e co- letiva. Ou seja, ao invés de focar apenas a geração de lucro individual, deve-se educar para apostar na criação de valor para a sociedade. Para isso, são interessantes as práticas pedagógicas voltadas para o levan- tamento de problemas e demandas na escola e no bairro e, ainda, a sistematização de soluções coletivas que possam angariar apoio da co- munidade local e mobilizar a comunidade escolar. Sendo assim, a escola também pode ser palco de ações solidárias. Entre tantas ações coletivas em âmbito escolar, pode-se planejar a arre- cadação de fundos e de material, bem como organizar mutirões para resolver problemas da escola e/ou do bairro, como revitalizar uma qua- dra de esportes ou uma praça, pintar um muro da escola desgastado ou pichado, limpar e reformar carteiras, quadros negros e outros equi- pamentos escolares, organizar uma feira de trocas para a comunidade do bairro, implantar uma horta escolar ou comunitária em benefício de todos etc. Trata-se de ações viáveis e que podem ser empreendidas de maneira solidária, sem o objetivo de alcançar lucro, apenas como uma forma de beneficiar a comunidade local. A escola é um espaço público de produção e divulgação de co- nhecimento, mas também é um ambiente catalisador de saberes e práticas populares e de mobilização de ações coletivas em prol da co- letividade. Usar o espaço escolar para promover o desenvolvimento local e a melhoria das condições de vida é fazer um uso justo de um espaço que é de todos. Conheça algumas iniciativas bem-sucedidas de empreendedorismo social acessando os sites indicados a seguir. O projeto FA.VELA é a primeira aceleradora de empreendedorismo de base favelada do Brasil. Disponível em: https://favela.org.br. Acesso em: 22 jan. 2021. O Carambola Tech promove inclusão e diversidade no mercado de Tecnologia da Informação. Disponível em: https://www. carambola.com.vc. Acesso em: 22 jan. 2021. O Centro Cultural Lá da Favelinha promove o Fa- velinha Fashion Week, em que jovens da comunida- de desfilam com roupas recicladas. Disponível em: https:// ladafavelinha.com.br. Acesso em: 22 jan. 2021. Site https://favela.org.br/?gclid=Cj0KCQiA5vb-BRCRARIsAJBKc6IiFBQWAKXy1zFbewrx21CVbYMjjTtCDyXSgebnoglxU_G https://www.carambola.com.vc/ https://www.carambola.com.vc/ https://ladafavelinha.com.br/ https://ladafavelinha.com.br/ 56 Temas sociais e educacionais contemporâneos O empreendedorismo social ou de base comunitária pode ser um caminho de futuro para os estudantes, podendo ainda ser explorado transversalmente durante as aulas. Um bom começo é apresentar aos alunos e à comunidade escolar exemplos bem-sucedidos de empreen- dedorismo social. 2.4 Educação financeira e fiscal Vídeo De início, a circulação de bens era baseada na troca. Por exemplo, uma família de agricultores produzia para sua subsistência e o que so- brava era trocado pelos ovos de uma família vizinha que criava galinhas. Entretanto, nem sempre era fácil estabelecer qual quantidade de um produto, como grãos ou animais de corte, era equivalente à de outro produto. Era preciso também encontrar alguém interessado em trocar o que tinha pelo que lhe era oferecido. O sal, útil na preservação de alimentos, foi usado por muito tempo para representar o valor de determinadas quantidades de cada produto, assim, a troca era feita por sal e, com esse sal, eram adquiridos outros produtos. Gradativamente, produtos passaram a ser substituídos por uma for- ma única de representação de valor, a moeda. Com o surgimento do dinheiro, já não podemos mais falar de trocas, e sim de compra e venda. Com o passar do tempo, alguns grupos sociais privilegiados passa- ram a acumular dinheiro e, então, surgiu uma dinâmica nova: quem tinha dinheiro sobrando emprestava-o para quem estava sem dinhei- ro, porém cobrava uma quantia em troca do tempo que esperaria para receber o dinheiro de volta. Logo, quem tomou o dinheiro emprestado deveria pagar uma quantia mais alta do que obteve. Essa diferença en- tre o valor emprestado e o valor pago é o que conhecemos por juros. Assim, surgiu o que chamamos de sistema financeiro. Na realidade, mesmo antes da existência do dinheiro, havia a co- brança e o pagamento de juros. Na antiga Mesopotâmia, os sacerdotes emprestavam cevada, trigo e outros grãos para os agricultores da vizi- nhança. Era costume, na devolução, que fosse incluída uma quantida- de a mais. A diferença é que, com o advento do sistema financeiro, a cobrança de juros não faz parte de um “costume”, mas é regulamen- tada, e quem não cumprir com a regra, tendo concordado com ela no momento em que tomou dinheiro emprestado, pode ser penalizado. Educação financeira: um aprendizado para a vida 57 Na Idade Média, por exemplo, qualquer cobrança de juros era proi- bida pela Igreja Católica. Com o crescimento do comércio dentro da Europa, a partir do século XI, surgiram os primeiros bancos, e os em- préstimos a juros foram se tornando mais comuns. A condenação à cobrança dos juros foi diminuindo, porém ainda havia restrições para o caso de famílias ricas cobrarem juros de empréstimos feitos a pessoas pobres, pois isso significava explorá-las. Por outro lado, a situação era diferente quando quem tomava o empréstimo eram os negociantes, que usariam o recurso para comprar mercadorias e ganhar mais di- nheiro. Atualmente, há limitações para a cobrança abusiva de juros, o que não impede que algumas modalidades de empréstimos tenham juros bastante difíceis de pagar. O sistema financeiro serve basicamente para ligar quem não tem dinheiro com quem o tem de sobra, como bancos e financeiras, po- dendo emprestá-lo a juros. Mas como tratar de sistema financeiro com crianças e adolescentes no contexto escolar? Os professores têm um papel muito importante na sociedade na formação de indivíduos capazes de realizar seus próprios sonhos e de contribuir para as realizações da coletividade, e isso passa pela educa- ção financeira. 2.4.1 Educação financeira Para formar os estudantes, com o objetivo de que compreendam as bases do sistema financeiro e saibam gerir adequadamente suas fi- nanças, é preciso explicar de modo simples como nós, seres humanos, encaramos as transações com dinheiro, o consumo e o seu adiamento, em nome de poupar recursos para o futuro. Pesquisadores de várias áreas, princi- palmente da psicologia, vêm estudando o compor- tamento das pessoas em relação a essas questões. Na década de 1960, o pesquisador e psicólogo norte-americano Walter Mischel, ao estudar meca- nismos de autocontrole, fez uma série de experi- mentos que visavam medir a capacidade de espera das crianças. Um desses experimentos era realizado com um adulto entrando com uma criança em uma sala fechada e explicando que ela teria de escolher Prostock-studio/Shutterstock 58 Temas sociais e educacionais contemporâneos uma entre duas alternativas: de um lado, uma unidade do chocolate de que ela mais gosta e, do outro, duas unidades desse mesmo chocolate. O pesquisador, então, dá à criança um sininho e avisa que ele vai sair da sala e, depois disso, se a criança tocar o sininho, ele voltará imedia- tamente e dará a ela um chocolate, mas que, no entanto, se a criança aguardar sem tocar o sininho até que ele retorne, ela ganhará duas unidades do chocolate. A decisão que a criança deve tomar é: menos chocolate agora ou mais chocolate depois (TASSARA; MACCA, 2009). Refletindo sobre os resultados dos experimentos, o pesquisador destacou que o autocontrole demonstrado pelas crianças que conse- guiram esperar é decisivo em qualquer outra situação e fase da vida. “‘Se você consegue lidar com essas emoções, então você consegue es- tudar para o vestibular em vez de assistir televisão’, diz Mischel. ‘E você consegue economizar dinheiro para a aposentadoria’” (LEHRER, 2009). Sendo assim, se conseguimosadiar um prazer imediato em nome de uma recompensa futura, seremos capazes de não ceder ao impul- so de consumir imediatamente e poupar o dinheiro para um melhor investimento no futuro. Essa é a lógica dos juros. Quem empresta o dinheiro e aguarda durante certo tempo receberá mais do que empres- tou. Essa lógica serve também para quem investe dinheiro na poupan- ça, por exemplo. Quem aceita poupar e espera para gastar obtém mais dinheiro do que guardou. Mas o inverso também é verdadeiro: quem não quer aguardar para poder ter algo e deseja comprar um produto imediatamente, sem ter dinheiro para adquiri-lo, terá de parcelar seu valor e acabará pagando um preço bem maior do que se aceitasse esperar e guardasse dinheiro durante um tempo para comprar o produto à vista. É essa a lógica bá- sica financeira que precisa ser ensinada às crianças e aos jovens. Sobre isso, Giannetti (2005, p. 9-10) afirma: as trocas no tempo são uma via de mão dupla. A posição credo- ra (pagar agora, viver depois) é aquela em que abrimos mão de algo no presente em prol de algo esperado no futuro. O custo precede o benefício. No outro sentido temos a posição devedora – viver agora, pagar depois. São todas as situações em que valo- res ou benefícios usufruídos mais cedo acarretam algum tipo de ônus ou custo a ser pago mais à frente. [...] A realidade dos juros não se restringe ao mundo das finanças, como supõe o senso comum, mas permeia as mais diversas e surpreendentes esferas da vida prática, social e espiritual. Educação financeira: um aprendizado para a vida 59 A educação financeira deve desenvolver hábitos saudáveis em relação ao consumo e à poupança, incluindo os hábitos de economia de recursos e de planejamento do orçamento pessoal e familiar. Uma boa estratégia é estimular os estudantes a contribuir com a redução de gastos na escola e em casa, por meio de controle do uso de equipamentos elétricos e de água e optando por atividades gratuitas ou de baixo custo, como brincar ao ar livre, ler, ouvir música, passear em lo- cais públicos gratuitos etc. Para esse objetivo, pode ser desenvolvido um projeto interdisciplinar de mapeamento e divulgação dos espaços públicos e atividades gratuitas ofertadas no bairro ou município. Outra tática interessante é instrumentalizar os estudantes para poupar dinheiro. Para isso, é preciso primeiro motivá-los a economi- zar e guardar dinheiro individualmente ou em família com o intuito de adquirir algo que eles desejam. Pode ser um produto, um serviço, um passeio, um curso, uma viagem em família, enfim, algo pelo qual valha a pena poupar. Depois, é preciso ensiná-los a fazer um planejamento financeiro, que começa com o hábito de anotar os gastos e, posteriormente, orga- nizar de modo regular o orçamento pessoal e/ou familiar. Esse tipo de planejamento pode ser desenvolvido nas aulas de Matemática. Em um orçamento, é necessário registrar tudo o que se ganha e tudo o que se gasta. É interessante mobilizar os alunos para que passem essas informações para a família, pois poderão incentivar que os adultos da casa façam o orçamento familiar mensal. No orçamento familiar, igualmente devem ser registrados todos os ganhos da família (salários, comissões, pagamentos por serviços etc.) e todas as despesas fixas da casa, isto é, aluguel, despesas com água, energia elétrica, alimentação, produtos de limpeza e higiene, meio de transporte dos membros da família, mensalidades, entre outros. As- sim, todos têm a ideia do dinheiro que entra e de quanto sai e, assim, podem identificar no que é possível economizar para que sobre um valor a ser poupado. É relevante também calcular por quanto tempo será necessário poupar determinado valor para comprar o que todos desejam. SFIO CRACHO/Shutterstock 60 Temas sociais e educacionais contemporâneos Outro instrumento a ser ensinado aos estudantes é o chamado con- trole de caixa, que será muito útil para aprender a gerir, mais tarde, um orçamento pessoal. Esse instrumento pode ajudar os alunos e suas fa- mílias em decisões relativas a prioridades de gastos, controle de gastos e poupança para evitar pressões financeiras. No orçamento, ficam registradas as receitas e as despesas recorren- tes, isto é, que se repetem, como os salários ou ganhos que costumam “entrar” todo mês e as despesas que ocorrem regularmente, como as contas, o aluguel, as mensalidades, o valor que costuma ser gasto em compras de alimentos etc. Já no controle de caixa, não entram apenas as despesas fixas, mas também aquelas eventuais, referentes a gastos ou compras que só ocorrem de vez em quando, e os ganhos eventuais, como um pagamen- to por um trabalho extra ou um presente em dinheiro recebido de um parente. Ou seja, no controle de caixa, é feito o registro de tudo que entra e sai. Comprou uma bala de alguns centavos? O valor é anotado no controle de caixa. Ganhou R$ 10,00 da avó? O valor também é registrado. Desenvolver esses hábitos nos estudantes contribui para que eles possuam, futuramente, controle sobre suas vidas financeiras, não tenham a sensação de que seu dinheiro “desaparece” antes de acabar o mês e possam planejar seus gastos e sua poupança para alcançar metas maiores, como adquirir um bem, fazer uma viagem ou investir nos estudos. Por outro lado, também é essencial ensinar aos estudantes que aci- ma de valores financeiros e do dinheiro estão os valores humanos uni- versais, como a honestidade, a justiça e a solidariedade. 2.4.2 Educação fiscal Os estudantes necessitam aprender noções básicas sobre o sistema fiscal e entender a importância de fiscalizar o modo como os impostos pagos pela população estão sendo aplicados pelo Poder Público. Esses aprendizados precisam ser desenvolvidos na escola, pois fazem parte de uma formação cidadã. É preciso abrir espaço transversalmente no currículo para ensinar sobre o sistema fiscal brasileiro e mostrar aos alunos que os serviços Educação financeira: um aprendizado para a vida 61 públicos ofertados pelos órgãos públicos – escolas públicas, hospitais públicos e unidades de saúde, serviços de limpeza e asfaltamento das ruas, recolhimento de lixo, tratamento e condução da água e do esgo- to, iluminação pública, transporte coletivo etc. – são administrados pelo Poder Público, na maior parte das vezes pelos governos de estados e de municípios, mas são financiados pelos cidadãos, com os impostos que todos pagam ao governo. Muitos desses impostos são pagos ao Governo Federal e redistribuídos para estados e municípios. Desse modo, uma estratégia interessante é orientar uma pesquisa coletiva sobre os tipos de impostos pagos pela população, como são cobrados, qual esfera faz a cobrança, para que servem e de que modo são aplicados. Pode ser feita uma lista de impostos (ISS, IPTU, IRPF, ICMS, IPVA, IPI, FGTS, INSS etc.) e cada aluno ou grupo de alunos fica responsável por pesquisar um deles. Assim como as pessoas, as famílias, os proprietários de pequenos negócios e os donos de grandes empresas fazem orçamentos, os go- vernos também os fazem. De modo simplificado, os orçamentos pú- blicos registram como receita o dinheiro arrecadado com impostos e taxas cobradas dos cidadãos, e como despesas os salários pagos aos funcionários públicos, o custeio de obras, a manutenção de serviços públicos e os investimentos em educação, saúde, segurança, bem como em tantos outros setores essenciais para a vida dos cidadãos e para o funcionamento do país. No entanto, o orçamento público é muito mais complexo do que o de uma família. Em uma família, quando as despesas estão altas demais, é preciso verificar, sem considerar as despesas essenciais – como moradia e alimentação –, onde é possível economizar. Já no or- çamento público, apesar de parecer óbvio que não há como cortar despesas em setores essenciais, como saúde, educação e segurança pública, muitas vezes é justamente em uma dessas áreas que o go- verno faz cortes de orçamento, enquanto despesas que pareceriammenos essenciais são mantidas. São múltiplas as fontes de financiamento, os custos e os investimen- tos do Estado, e as obrigações de destinação de verbas são regidas por leis e regras que não podem ser modificadas para “ajeitar” o orçamen- to, como ocorre em uma família ou pequena empresa. Ou seja, não é As crianças e adolescen- tes, e mesmo muitos adultos, costumam não saber que, no preço que se paga em qualquer produto, estão embutidos os impostos pagos ao go- verno, sendo impossível comprar alguma coisa sem pagar essa taxa. Um desses impostos é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Servi- ços (ICMS). Para saber quanto pagamos de im- posto sobre os produtos que compramos, acesse o link a seguir. Disponível em: https:// impostometro.com.br/home/ relacaoprodutos. Acesso em: 22 jan. 2021. Curiosidade https://impostometro.com.br/home/relacaoprodutos https://impostometro.com.br/home/relacaoprodutos https://impostometro.com.br/home/relacaoprodutos 62 Temas sociais e educacionais contemporâneos possível, por exemplo, tirar o que está sobrando em uma área para aplicar em outra. O orçamento público é feito com antecedência e é obrigatório prestar contas à população. Cada proposta é submetida à aprovação do Poder Legislativo, por meio de um projeto de lei com prazos de- finidos para ser apresentado e votado. Esse processo, no orçamento federal, baseia-se em três documentos: • Plano Plurianual: proposto a cada quatro anos, sempre no se- gundo ano do mandato do presidente, até o dia 31 de agosto. Contém as diretrizes do governo para programas de longa dura- ção e as metas de investimento para cada região. • Lei de Diretrizes Orçamentárias: estabelece metas e priorida- des para o ano seguinte, servindo de base para a elaboração do orçamento da União. Deve ser apresentada pelo governo até o dia 15 de abril e precisa ser votada no primeiro semestre do ano. • Lei Orçamentária Anual: abarca todos os gastos e investimen- tos do Governo Federal para o ano seguinte, devendo ser encami- nhada ao Congresso Nacional até o dia 31 de agosto e aprovado durante o ano. É possível acessar as informações desses documentos e acompanhar sua tramitação. Essas práticas devem ser incentivadas no contexto esco- lar e podem ser feitas de maneira coletiva sob a orientação dos docentes. Todos nós precisamos conhecer esse orçamento público e fiscalizar o correto cumprimento dos investimentos previstos, verificando se al- gum recurso está sendo mal destinado ou aplicado, ou mesmo se foi desviado desonestamente por agentes públicos. CONSIDERAÇÕES FINAIS A educação financeira só está completa quando se articula à formação ética e à valorização da vida, com uma educação voltada ao “ser” e não ao “ter”. Para isso, é preciso desenvolver hábitos de consumo não ape- nas benéficos para a própria saúde financeira e para a conservação do meio ambiente, mas também positivos sob aspectos éticos. Consumir em excesso, sem necessidade real, ceder a todos os impulsos de compra e às propagandas de produtos de modo irresponsável é uma atitude indivi- dualista e que prejudica a coletividade. Educação financeira: um aprendizado para a vida 63 A valorização das prioridades e dos valores humanos, bem como das relações éticas e justas para todos, leva a uma vida mais saudável em to- dos os sentidos, incluindo no financeiro. Por fim, é preciso destacar para as crianças e os adolescentes que a honestidade que devemos cobrar dos governantes eleitos e de todos os agentes públicos é a mesma que devemos valorizar em nossas relações pessoais, familiares e profissionais. ATIVIDADES 1. Com base no cenário do desenvolvimento histórico dos sistemas econômicos e suas racionalidades econômicas características, explique por que não podemos aplicar a lógica do lucro a todas as sociedades. 2. As relações de trabalho em cada sistema econômico são diferentes e influenciam o significado que o trabalho assume. De que forma você descreveria as relações de trabalho no sistema capitalista? 3. O economista Joseph Stiglitz, em entrevista à Agência Efe – Revista Der Spiegel, em 2012, afirmou, referindo-se aos EUA, que o preço a pagar pela enorme desigualdade econômica e social é alto demais, e que a crença no “sonho americano”, baseada na ideia de meritocracia, de que qualquer cidadão pode, com trabalho e dedicação, ascender social e economicamente, é um mito. Em seu livro O preço da desigualdade, ele exemplificou essa tese com a seguinte assertiva: “90% das crianças nascidas em lares pobres, morrem pobres, não importa quão capazes sejam. Mais de 90% das crianças nascidas em lares ricos morrem ricos, não importa o quão estúpidos sejam. Portanto, o mérito não é um valor.” Explique o significado do exemplo dado por Stiglitz no contexto do pensamento desse economista. 4. De que modo é possível abordar o tema do empreendedorismo social na escola? 5. Argumente em defesa da importância do papel da escola na educação financeira e fiscal. REFERÊNCIAS ANDION, C. 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Educação científica e inclusão digital 65 3 Educação científica e inclusão digital No contexto contemporâneo de “disputa de narrativas”, nas redes sociais e em outros canais pretensamente informativos da internet, sobre questões que no passado não costumavam es- tar tão presentes no debate cotidiano, amplia-se a importância de promover a educação científica e tecnológica nas escolas, de modo a formar cidadãos capazes de selecionar, compreender e interpretar criticamente as informações a que têm acesso, saben- do diferenciar fatos de opiniões. Mais do que conhecer conceitos da ciência e da tecnologia e seus métodos próprios, é essencial termos noções básicas de como aplicar esse conhecimento à análise da realidade e à interpretação das informações disponíveis diariamente. São es- sas capacidades que, em conjunto, formam o que chamamos de educação científica básica, tão necessária na atualidade para que as pessoas possam pautar seu pensamento e suas ações pelo conhecimento acumulado pela humanidade. 3.1 O que é conhecimento? Vídeo O conhecimento científico não é o único tipo de conhecimento exis- tente. Há outros presentes na sociedade, como o do senso comum, o filosófico e o religioso. Mas quais são as diferenças entre esses tipos? O que caracteriza especificamente o científico? Os modos de obtermos cada tipo de conhecimento, como e por que adquiri-los e em que aplicá-los são diferentes. Cada tipo de conheci- mento serve a fins específicos e um não substitui o outro. Não pode- mos analisar fenômenos naturais ou sociais usando o conhecimento do senso comum ou o religioso, assim como não aplicamos a lógica racional da ciência à fé. 66 Temas sociais e educacionais contemporâneos É como se cada tipo de conhecimento fosse a chave para interpretar determinados aspectos do mundo, e uma chave não abre todas as portas, apenas aquela que corresponde ao seu desenho. 3.1.1 Tipos de conhecimento O conhecimento filosófico se baseia na reflexão racional de questões fundamentais, como a essência do universo ou a natureza da verdade, conceitos e ideias, buscando construir teorias explicativas. Estas, porém, não são verificáveis, ou seja, não é possível as testar para checar se realmente “funcionam”. Elas existem apenas no campo das ideias, em âmbito filosófico. Nesse as- pecto, o conhecimento filosófico difere do científico, no qual uma teo- ria é amplamente aceita apenas quando foi comprovada por meio de testes ou experimentos. Já o conhecimento religioso ou teológico baseia-se na fé, em um conjunto de crenças fundamentadas em dogmas ou verdades religio- sas, em narrativas das escrituras sagradas de cada religião ou em sua tradição oral. Esse tipo de conhecimento não requer comprovação, pois a natureza da fé e das crenças não é racional, ou seja, não depende de que as narrativas ou os dogmas sejam testados e verificados. Outro tipo de conhecimento é o do senso comum, que costuma se fundamentar no que chamamos de conhecimento empírico, o qual advém da interação com o mundo e das experiências pessoais. Entre- tanto, o senso comum também sofre influência da grande quantidade de informações veiculadas formal ou informalmente por veículos de co- municação ou pelas redes sociais, que muitas vezes não estão corretos. O senso comum reflete um modo de interpretar o mundo cons- truído com base na experiência cotidiana de comunidade, que tem seu valor, mas não traduz necessariamente um conhecimento generali- zável para o todo da realidade social. Ou seja, não é possível afirmar que um fato sempre acontece da mesma forma com todas as pessoas apenas por ter acontecido com você ou com pessoas que conhece. A possibilidade de generalização das conclusões é uma característica de outro tipo de conhecimento, o científico. Por outro lado, o conhecimento empírico, obtido por meio da observação dos ciclos e das dinâmicas da natureza, por exem- plo, e passado de geração a geração de modo tradicional, pode ser Aha-Soft/Shutterstock Educação científica e inclusão digital 67 classificado como saber popular ou tradicional. O saber da natureza, por exemplo, é uma das bases da agricultura familiar e orienta práticas agrícolas relativamente eficientes ao longo do tempo. Um saber dominado por uma comunidade e arraigado em suas práticas, que se comprovou útil para determinado grupo por meio da observação informal dos resultados cotidianos ao longo do tempo e que é transmitido às novas gerações oralmente ou por exemplos, está no campo do saber popular. O senso comum e os saberes populares não são necessariamen- te errôneos, mas precisamos evitar usá-los para explicar fatos ou fenômenos em que o adequado seria utilizar o conhecimento cien- tífico. Temos inúmeros exemplos de noções do senso comum am- parados em saberes populares, que induzem a uma interpretação equivocada de fatos e fenômenos e que podem levar a pensamentos e comportamentos equivocados. As ferramentas do conhecimento científico e filosófico podem aju- dar a desenvolver o que denominamos senso crítico, que é quando desconfiamos do que nos é apresentado e investigamos de onde veio e quais as intenções por trás de uma informação, um comportamento habitual, uma opinião, uma interpretação da realidade, uma explica- ção sobre o mundo. Por outro prisma, há muitos saberes populares extremamente úteis, como os ligados ao uso adequado de plantas medicinais. Esse tipo de conhecimento tradicional é de grande valor e objeto de pesquisas científicas que têm com- provado os efeitos benéficos de grande parte das ervas utilizadas há várias gerações em mui- tas comunidades para aliviar os sintomas de várias doenças. Diferentemente do senso comum e dos sa- beres populares, o conhecimento científico está fundamentado no pensamento racional, na ob- servação e na análise metódica dos fenômenos em busca de explicá-los. Os esclarecimentos e as teorias elaboradas cientificamente precisam ser verificados e com- Ke rd ka nn o/ Sh ut te rs to ck Ervas para medicina alternativa 68 Temas sociais e educacionais contemporâneos provados de modo rigoroso, seguindo certos protocolos. Dessa forma, podemos perceber que os fatores tradição, crença e percepção indivi- dual ou opinião não podem estar presentes no pensamento científico. Mas é importante notarmos que o procedimento empírico também está presente na ciência. A diferença é que as conclusões científicas não são elaboradas apenas com base na observação informal, já que há regras e protocolos para a sua realização e é preciso testar inúmeras vezes as hipóteses levantadas sobre o que foi observado, analisar rigo- rosamente os resultados e comprovar a explicação elaborada antes de afirmar ou generalizar qualquer conclusão ou teoria científica. O conhecimento científico não é fixo, imutável. Ele está sempre em transformação, pois descobertas, experimentos e resultados po- dem comprovar que o que se pensava até determinado momento estava equivocado, precisando ser aperfeiçoado, e que conceitos ou teorias devem ser substituídos em função do desenvolvimento cien- tífico em alguma área. Destacamos que na ciência também se leva em conta o que já foi observado e analisadono passado. Novos modelos, pesquisas e teorias só podem ser criados considerando toda a trajetória dos estudos feitos anteriormente, todo o conhecimento acumulado. Por- tanto, mesmo não se caracterizando como tradição, o conhecimento científico é cumulativo. Sobre as relações entre conhecimento científico, senso comum e saber popular, Kuhn (1982, p. 145) afirma que: o pré-requisito para o estudo do desenvolvimento científico e, logo, para a realização da ciência normal (entendida como a pes- quisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas, que proporcionam os fundamentos para sua prática posterior) é o conhecimento dos paradigmas, isto é, dos funda- mentos extraídos dos mesmos modelos concretos que são com- partilhados e que geram o comprometimento com as mesmas regras e padrões para o desenvolvimento da prática científica. Taquary (2007, p. 102), ao analisar as distinções entre senso comum, saber popular e científico, explica que Kuhn considera que: o diálogo entre o conhecimento passado e a sua prática pos- terior é que ensejará a compreensão da essência dos mesmos conteúdos que determinarão a construção de novos saberes. Há continuidade na compreensão dos saberes e comprometimento para a realização de outros. O saber popular e o senso comum Ch er rie s/ Sh ut te rs to ck são ponto de partida para, depois de compartilhados, serem geradores dos fundamentos que desencadearão o processo de construção do saber científico. Já para Santos (2003, p. 22), o senso comum é um “pensamento necessariamente conservador e fixista”, e, para alcançar a ciência, seria preciso romper com esse tipo de conhecimento. O estudioso destaca, no entanto, que é impossível à ciência se livrar de todos os preconceitos originários do senso comum, que se caracteriza por restringir-se apenas “ao aparente, ao genérico e às experiências do cotidiano” (SANTOS, 2003, p. 22). Reforçamos que não devemos considerar um tipo de conhecimento melhor ou pior que outro. Eles são diferentes e devem ser aplicados de modo diverso em cada esfera da vida. É essencial também estarmos alerta às explicações que nada têm a ver com conhecimento, repre- sentando apenas informações falsas, errôneas ou mentirosas, as quais prejudicam a compreensão do mundo e de seus fenômenos e têm cau- sado muitos danos à sociedade. O contexto escolar é um ambiente propício para desenvolver as ca- pacidades relacionadas à seleção e à interpretação adequada de infor- mações, contribuindo para a formação de cidadãos capazes de analisar diferentes versões dos fatos e de construir sua própria visão de mundo de maneira autônoma e esclarecida. 3.1.1.1 O conhecimento escolar Na escola devemos respeitar todos os tipos de conhecimento, assim como partir de conhecimentos prévios dos alunos, muitas ve- zes provenientes do senso comum e dos saberes populares de sua comunidade, para iniciar a abordagem de fenômenos e processos, Educação científica e inclusão digitalEducação científica e inclusão digital 6969 70 Temas sociais e educacionais contemporâneos mas sempre os levando a ressignificar suas visões à luz do conheci- mento científico acumulado pela humanidade até a atualidade. A educação formal – escolar – tem a responsabilidade de ensinar conceitos, teorias, procedimentos e métodos ligados a cada disciplina escolar e que sejam comprovados cientificamente por pesquisadores e teóricos renomados em suas áreas de atuação. Ou seja, a base do conhecimento escolar é o conhecimento científico. O conhecimento escolar, entretanto, não coincide com o científico, pois este deve ser selecionado, recortado, exemplificado e transposto didaticamente para o ensino voltado a cada faixa etária, o que não sig- nifica que seja o conhecimento científico simplificado. É preciso ensi- nar a aplicação dos conhecimentos básicos produzidos pela ciência em cada área da realidade e a situações e problemas concretos. No contexto escolar, um dos focos é formar o senso crítico nos es- tudantes, ou seja, a capacidade de perceber o mundo e seus eventos e de julgá-los de maneira autônoma, racional e esclarecida, sabendo ana- lisar argumentos, contextos, intencionalidades, veracidade, lógica e le- gitimidade do que é apresentado como explicação para os fenômenos. Para isso, com o aprendizado de ideias, conceitos, métodos e teo- rias, necessitamos desenvolver habilidades como as de indução, de- dução, análise, levantamento de hipóteses, síntese, elaboração de julgamentos e conclusões, aplicação prática e solução de problemas. Várias delas se baseiam em conhecimentos filosóficos, guiados pela re- flexão crítica e racional e pela lógica, já outras se pautam em conheci- mentos científicos, ligados ao método e ao rigor das observações. As concepções relativas ao currículo nas políticas públicas de edu- cação sempre apontam visões do conhecimento escolar. A BNCC, por exemplo, enfatiza o ensino de determinados conteúdos integrantes das disciplinas escolares como base do conhecimento escolar a ser de- senvolvido em todas as escolas. Apesar de o conhecimento escolar ser central no currículo, a fun- ção social da escola ultrapassa o seu ensino, voltando-se ao desenvol- vimento de habilidades, ao estímulo à produção autônoma de novos conhecimentos e à sua aplicação à realidade. Também é papel da escola a formação integral dos alunos com a construção de valores humanos e éticos. Para isso, é preciso considerar a importância, no mundo atual, de ensinar como aplicar de modo correto os conheci- mentos científicos à análise e à interpretação de tudo o que acontece Para aprofundar sua compreensão do que é o conhecimento escolar e de que modo ele se relaciona ao currículo e aos saberes docentes, acesse e leia os artigos sugeridos a seguir. • PACHECO, J. A.; MENDES, G. M. L.; SOUZA, J. R. F. de. O conhecimento escolar em tempos de uma pluralidade de saberes e novas formas de aprendizagem. Educação Unisinos, v. 22, n. 4, p. 268-277, out./dez. 2018. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index. php/educacao/article/view/ edu.2018.224.04/60746607. Acesso em: 2 fev. 2021. • BITTENCOURT, J. Saberes docentes, conhecimento escolar e formação: possibilidades para práticas pedagógicas interdisciplinares. In: 12º EDUCERE – CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Anais [...] Curitiba: PUC-PR, out. 2015. Disponível em: https:// educere.bruc.com.br/arquivo/ pdf2015/19800_8502.pdf. Acesso em: 2 fev. 2021. Leitura https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2015/19800_8502.pdf https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2015/19800_8502.pdf https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2015/19800_8502.pdf Educação científica e inclusão digital 71 ao nosso redor e a utilizar eticamente as ferramentas tecnológicas ligadas à informação e à comunicação. Saber interpretar descobertas científicas e aplicar conhecimentos e métodos advindos da ciência à vida cotidiana, assim como aprender a diferenciar fatos de boatos (as chamadas fake news), a selecionar fontes confiáveis de informação e a verificar o que será compartilhado nas re- des sociais são competências a serem desenvolvidas na escola. 3.2 A ciência Vídeo Podemos chamar de ciência o conhecimento humano acumulado com base na observação, descrição, explicação e previsão de fenômenos e nas teorias derivadas desses processos. Seu fundamento é a experiên- cia, a descrição e a interpretação racional a fim de explicar os fenômenos observados e estabelecer leis gerais para seu funcionamento. jo ke r1 99 1/ Sh ut te rs to ck A curiosidade intelectual e as tentativas de compreender fenôme- nos da natureza são muito antigas na história da humanidade. Os pri- meiros a tentar sistematicamente explicar os fenômenos naturais e a refletir sobre o universo e a humanidade foram alguns dos filósofos da Grécia Antiga, que deixaram de se contentar com as explicações mito- lógicas do mundo e se voltaram para a construção de um pensamento filosófico. Todavia, a criação de um“método” específico para a produ- ção do conhecimento científico é bem mais recente, tendo ocorrido por volta do século XVII. No século VII a.C. surgiu na Grécia a Escola de Mileto, que reunia filósofos materialistas, como Tales de Mileto, Anaximandro e Anaxíme- nes, dedicados a descobrir a essência material de todas as coisas, ou 72 Temas sociais e educacionais contemporâneos seja, a substância elementar que geraria todas as demais existentes no mundo. Para Tales, essa substância seria a água; para Anaxímenes, o ar; e para Anaximandro, uma substância “não gerada e imperecível”, isto é, algo que nunca não se estraga. Por volta de 500 a.C., o mundo físico, ou seja, a natureza e todas as coisas que dela fazem parte, como os seres vivos e os fenômenos natu- rais, deixou de ser o foco dos filósofos gregos, os quais passaram a se preocupar em compreender aspectos mais abstratos e complexos, como a natureza do ser e da matéria, o sentido da verdade e a essência do uni- verso. São dessa época filósofos como Pitágoras, Parmênides e Heráclito. Mais tarde, Sócrates, Platão e Aristóteles começaram a estabelecer algumas das ideias que abriram caminho para o pensamento científico. Sócrates afirmava que, para obter o conhecimento, é necessário pri- meiro estabelecer princípios provisórios, os quais, se forem bem con- duzidos, levarão a um conhecimento generalizável, universal. O filósofo tinha um método de ensino que chamamos de dedutivo, fundamentado em debates que levassem o outro a chegar, por si mes- mo (por meio da dedução), às teorias ou leis gerais que ele pretendia comprovar. Percebemos no método socrático um elemento fundamen- tal do que mais tarde seria parte do método científico: a intenção de chegar a regras ou leis gerais ou universais a respeito de algo. Retrato da cena da morte de Sócrates, condenado a beber cicuta sob a acusação de ter corrompido a juventude ateniense com seus ensinamentos. DAVID, J. L. A morte de Sócrates. 1787. Óleo sobre tela, color: 1,3 x 1,96 m. Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. Educação científica e inclusão digital 73 As primeiras investigações do que chamamos de método científico fo- ram empreendidas por Francis Bacon (1561-1626) e desenvolvidas por cientistas como Galileu Galilei (1564-1642), Isaac Newton (1643-1727), Robert Boyle (1627-1691) e os enciclopedistas já no século XVIII. Chibeni (2013, p. 2, grifos do original) descreve os principais pressupostos desse método, ou o que denominados visão comum da ciência. Segundo o autor, os dois primeiros pressupostos são: a) A ciência começa por observações. Bacon propôs que a etapa ini- cial da investigação científica deveria consistir na elaboração, com base na experiência, de extensos catálogos de observações neutras dos mais variados fenômenos. b) As observações são neutras. [...] Podem e devem ser feitas sem qualquer antecipação especulativa, sem qualquer diretriz teó- rica. A mente do cientista deve estar limpa de todas as ideias que adquiriu dos seus educadores, [...] ele não deve ter nada em vista, a não ser a observação pura. Quando o autor afirma que na ciência as observações são neutras, está apontando que não devemos conduzir observações e experimentos ou interpretar resultados de modo a validar uma hipótese prévia. Ou seja, não é verdadeiramente científica uma pesquisa que interfere nos resultados ou os seleciona conforme o que se quer comprovar. Quando isso ocorre, dizemos que a pesquisa tem um viés de confirmação. No âmbito do senso comum, notamos que muitas pessoas usam algo semelhante ao viés de confirmação, selecionando informações, dados ou interpretações – muitas vezes equivocados – que comprovem sua própria opinião do assunto. Entretanto, na prática, a neutralidade total da ciência é difícil de atingir. É consenso entre os cientistas atualmente que nenhuma observação ou interpretação é totalmente neutra, livre da visão de mundo do cientista/pesquisador, de suas vivências, de sua trajetória formativa, social e cultural, de seus interesses e de suas intenções. Por mais que o cientista se proponha a ser objetivo, ele ainda exerce influência de algum modo na observação e interpretação dos resultados. Chibeni (2013, p. 2, grifo do original) destaca os pressupostos científicos ligados à indução e à generalização e esclarece que “as leis científicas são extraídas do conjunto das observações por um processo supostamente seguro e objetivo, chamado indução, que consiste na obtenção de proposições gerais (como as leis científicas) a 74 Temas sociais e educacionais contemporâneos partir de proposições particulares (como os relatos de observação)”. A lei geral segundo a qual todo papel é combustível, por exemplo, é obtida de modo seguro por meio de certo número de observações de pedaços de papel que se queimam, representando uma generalização da experiência. O método indutivo é uma das bases do conhecimen- to científico. Já o processo inverso, de extrair proposições particulares com base em uma lei geral, assumida como verdadeira, cai no domínio da lógica, sendo um caso de dedução. Como vimos, o método dedutivo é característico do conhecimento filosófico. Mas os experimentos e as observações não podem ser feitos de qual- quer maneira, precisam ser realizados com rigor e seguir alguns proto- colos para que as conclusões possam ser generalizadas, por exemplo: “d) O número de observações de um determinado fenômeno deve ser grande; e) Deve-se variar bastante as condições em que o fenômeno se produz; e f) Não deve existir nenhuma contraevidência, ou seja, observação que contrarie a lei” (CHIBENI, 2013, p. 3). No exemplo da combustão do papel, precisaríamos realizar deze- nas e dezenas de experimentos queimando o objeto, sempre varian- do as condições envolvidas (diferentes tipos de papel e de chamas, ambientes diferentes para o experimento etc.). Se em algum dos experimentos observados o papel não se queimasse, não podería- mos induzir uma lei geral de que todo papel queima ao ser colocado em contato com o fogo. Esses elementos fazem parte do que chamamos de método científico, e representam as condições ideais de obtenção de co- nhecimento científico. Mas, como alerta Chibeni (2013, p. 5), o cien- tista, “quando vai ao laboratório, sempre tem uma ideia, ainda que provisória e reformulável, do que deve ou não ser observado, con- trolado, variado”. No entanto, isso não significa que o profissional irá manipular de alguma forma os experimentos ou seus resulta- dos para favorecer uma ideia prévia, apenas que ele tem uma no- ção – não definitiva – do que está procurando. Os estudos científicos podem ser classificados como destina- dos à ciência pura (ou básica), no desenvolvimento de teorias, e voltados para a ciência aplicada, na aplicação das teorias às necessidades e aos problemas humanos. Ambos objetivam de al- Educação científica e inclusão digital 75 gum modo (ou deveriam objetivar) a melhoria da qualidade de vida das pessoas e o desenvolvimento social. A figura a seguir represen- ta essa classificação. Figura 3 Ciência básica e ciência aplicada Pesquisa científica Contribui para o avanço da ciência. É empregada em pesquisas aplica- das ou tecnológicas. Gera conhecimento Pesquisa básica ou fundamental Gera produtos, processos e conhecimento Pesquisa aplicada ou tecnológica Tem finalidade imediata Fonte: Adaptada de Marques, [s. d.]. 3.2.1 Método científico Os conhecimentos que temos dos fenômenos naturais – climáti- cos, comportamento da luz e do som, produção de energia etc. – do comportamento de corpos celestes no universo, dos processos bioló- gicos dos seres humanos e de outros seres vivos a respeito da cura e do modo de evitar inúmeras doenças e muitos outros foram em grande parte obtidos com a aplicação dos pressupostos da ciência e do método científico. A metodologia científica avançou e se diversificou muito conforme cada área de pesquisa, mas o método científico tradicional ainda é ummeio utilizado por muitos cientistas para guiar suas pesquisas e obter conhecimento confiável. Esse método, cuja origem já vimos que data do século XVII, leva em conta os principais pressupostos da ciência, como a racionali- dade, a busca da verdade por meio de evidências experimentais, a objetividade e a realidade e pode ser representado, de maneira re- sumida, pela figura a seguir. 76 Temas sociais e educacionais contemporâneos Figura 4 Sequência básica do método científico Questão ou problema que gera uma pesquisa. É o que se busca descobrir ou solucionar. Pergunta Hipóteses Experimentos Conclusão Realiza-se os experimentos em condições controladas ou a coleta de dados para testar as hipóteses, seguindo as regras e os protocolos científicos da área de estudo. Com base no conhecimento científico acumulado do tema, formula-se hipóteses de resposta. Por meio da análise dos resultados dos experimentos, aceita-se ou rejeita-se as hipóteses. A conclusão é o novo conhecimento produzido. Fonte: Elaborada pelo autora. Todo cientista precisa conhecer o que já foi produzido na sua área de estudo, assim, dedicará suas pesquisas a responder a algo que ain- da não foi solucionado ou que possa necessitar de novas respostas. O método científico pode ser considerado do tipo indutivo-dedutivo, pois, para levantar hipóteses do que se quer responder, ele usa a indu- ção, fazendo possíveis previsões de solução, e, ao fazer experimentos ou coletar dados do fenômeno que se quer explicar, usa a dedução para, com base na análise dos dados, decidir qual hipótese parece mais pro- vável na realidade. Se a conclusão obtida puder ser generalizada, pode gerar uma teoria ou um modelo explicativo sobre o fenômeno estudado. Há estudos científicos mais teóricos, como as pesquisas de ciên- cia básica, e outros mais aplicados, dedicados ao desenvolvimento de produtos, que também envolvem a criação de novas tecnologias. Por exemplo, no caso do desenvolvimento de vacinas, o método cien- tífico tradicional é a base das pesquisas, e os pressupostos científi- cos de rigor na elaboração e aplicação de protocolos de observação e de análise de resultados são utilizados também na fase de testes das novas vacinas. Os testes, nesses casos, são feitos por meio de estudos clínicos chamados de duplo cegos randômicos, que, de modo simplificado, selecionam dois grupos de voluntários (por isso o nome duplo do es- tudo) de categorias semelhantes – mesma faixa etária, mesma con- dição de saúde etc. – e aplicam, para um grupo, a vacina em teste, e, para outro, um placebo, ou seja, uma substância sem nenhum efeito, como água. Entretanto, nem os voluntários nem os pesquisa- dores sabem quem recebeu a vacina e quem recebeu o placebo (de onde vem o nome cego do estudo). Educação científica e inclusão digital 77 A distribuição de uma ou outra substância é feita de modo alea- tório (de onde vem o nome randômico do estudo), porém é preciso garantir que haja a mesma quantidade de voluntários que recebeu a vacina e que recebeu o placebo. Desse modo, é possível obser- var rigorosamente a saúde dos voluntários, identificar quantos dos que foram vacinados ficaram doentes em comparação à quanti- dade de doentes no grupo que não recebeu a vacina, mas sim o placebo, e determinar a eficácia da vacina em imunizar ou evitar formas graves de uma doença. Também é possível monitorar todos os eventuais efeitos colaterais da vacina no grupo que a tomou e determinar sua segurança. Ao tentar compreender o método científico, é comum cometermos alguns equívocos, como confundir causalidade com correlação. A pri- meira significa que determinado fenômeno é consequência direta de outro; já a segunda quer dizer que existe algum fator em comum entre dois fenômenos. Portanto, não é por dois fenômenos terem alguma relação entre si que um é necessariamente a causa do outro. Estatisticamente, podemos afirmar que dois fenômenos são correlacionados quando as duas variáveis caminham juntas, ou seja, quando uma cresce, a outra aumenta na mesma proporção, ou em proporção inversa (quando uma cresce, a outra decresce na mesma proporção). Entretanto, essas correlações podem não significar uma relação de causa e efeito. Vejamos o exemplo do desenvolvimento de vacinas: os voluntá- rios que tomaram placebo são de antemão desconsiderados para a observação de efeitos colaterais da vacina, já que não a tomaram. Mas suponhamos que um dos voluntários que tomou a vacina, infelizmen- te, venha a falecer. Os dois fenômenos estão correlacionados, pois o mesmo voluntário que participou do estudo e tomou a vacina morreu. Contudo, isso não significa que a vacina foi a causa da morte. Se o vo- luntário, por exemplo, morreu em virtude de um assalto em sua casa, tendo sido alvejado por um ladrão, a vacina não tem relação de cau- salidade com a morte, foi apenas uma coincidência, pois poderia ter ocorrido com qualquer um. Em filosofia, esse tipo de raciocínio que transgride uma regra for- mal da lógica, propondo um argumento pretensamente correto, mas que contém algum erro grave que o torna falso, é chamado de falácia formal. Nesse caso específico, trata-se da falácia da falsa causalidade. Não só correlações não implicam necessa- riamente causalidade, como também muitas vezes não são feitas de modo adequado, gerando erros básicos na interpretação de fenômenos. No livro Cor- relações espúrias, Tyler Vigen aponta uma série de correlações engraça- das entre variáveis que, cientificamente, não sig- nificam nada. Entre elas está a alta correlação entre a redução no con- sumo de margarina por pessoa e a diminuição de divórcios para cada mil pessoas no estado do Maine (EUA). É claro que por meio dessa correlação não podemos chegar a uma relação de causalida- de entre o consumo de margarina e os divórcios e concluir que se acabássemos com o consumo de marga- rina nesse estado norte-americano, acaba- ríamos com os divórcios. Para conhecer mais algumas correlações estranhas, acesse o link a seguir. Disponível em: http://revistacriatica. com.br/correlacoes-incriveis- permitem-mentir-com-a- estatistica/. Acesso em: 2 fev. 2021. Curiosidade Para saber mais sobre os tipos de falácias formais acesse o link a seguir. Disponível em: https://www. infoescola.com/filosofia/falacia/. Acesso em: 2 fev. 2021. Saiba mais http://revistacriatica.com.br/correlacoes-incriveis-permitem-mentir-com-a-estatistica/ http://revistacriatica.com.br/correlacoes-incriveis-permitem-mentir-com-a-estatistica/ http://revistacriatica.com.br/correlacoes-incriveis-permitem-mentir-com-a-estatistica/ http://revistacriatica.com.br/correlacoes-incriveis-permitem-mentir-com-a-estatistica/ https://www.infoescola.com/filosofia/falacia/ https://www.infoescola.com/filosofia/falacia/ 78 Temas sociais e educacionais contemporâneos 3.2.2 Ética na ciência Como toda construção social, a ciência é desenvolvida por seres hu- manos, portanto está sujeita a seus interesses. É por isso que se torna tão importante o tema da ética na ciência. A aplicação dada a deter- minada descoberta científica e os seus efeitos na sociedade são muito importantes, e é preciso evitar usos antiéticos e que possam prejudicar as pessoas, o meio ambiente ou as relações humanas. Além disso, todo cientista deve se conduzir eticamente quanto à legitimidade de suas pes- quisas e à veracidade dos resultados obtidos. No entanto, nem sempre os princípios éticos foram considerados na ciência. As descobertas científicas e o desenvolvimento tecno- lógico ligados à energia nuclear, por exemplo, que representaram grande avanço científico, foram aplicados na elaboração de bombas nucleares lançadas durante a Segunda Guerra Mundial sobre duas cidades japonesas, Hiroshima e Nagasaki, matando 200 mil pessoas e contaminando o meio ambiente por muitas décadas. Esse é um exemplo marcante de falta de ética na ciência. Foto da explosão da bomba atômica em Hiroshima, tiradade Kure, Japão, em 6 de agosto de 1945. Ev er et t C ol le ct io n/ Sh ut te rs to ck https://www.shutterstock.com/pt/g/everett Educação científica e inclusão digital 79 Após a guerra, houve um consenso entre os cientistas e foram insti- tuídos acordos entre nações no sentido de evitar que o uso da ciência e da tecnologia para destruição em massa se repetisse. O uso da energia nuclear, entretanto, se expandiu, apesar de seus riscos para a vida hu- mana e planetária. Mesmo sob protestos dos movimentos antinucleares, várias nações implantaram usinas de exploração dessa matriz energética, e em 1986, na Ucrânia, que na época integrava a União Soviética, ocorreu o maior acidente nuclear da história, a explosão na usina de Chernobyl, liberan- do uma gigantesca nuvem radioativa na atmosfera. Em decorrência do acidente e do câncer por ele provocado na população e nas gerações seguintes, morreram 2,4 milhões de pessoas. Outras pesquisas, descobertas científicas e novas tecnologias também são alvo de discussões éticas, como os estudos envolvendo células-tronco, clonagem e fabricação de androides dotados de inteligência artificial. Atualmente, em grande parte do mundo, incluindo o Brasil, proje- tos de pesquisa que estudem de alguma forma seres humanos – com observações, entrevistas, testes etc. – devem ser apresentados a um co- mitê de ética científica, o qual analisa se a pesquisa efetivamente não trará prejuízos aos participantes ou a quem quer que seja. Além disso, a publicação de resultados de pesquisas em revistas científicas costu- ma ter análise bastante rigorosa de cientistas da mesma área, tentando evitar que estudiosos antiéticos manipulem dados ou conclusões. É interessante notarmos que até mesmo em áreas ligadas às ciências humanas há risco de cruzar as fronteiras da ética e pre- judicar pessoas. Teorias das ciências econômicas, por exemplo, se estiverem equivocadas em razão do atendimento de interesses eco- nômicos específicos, podem prejudicar a sociedade que as adota como política econômica. Em todas as áreas científicas e tecnológicas existem perspectivas mais conservadoras e outras mais críticas, assim, nas ciências humanas não seria diferente. 3.2.3 As ciências humanas É muito importante entendermos que o método científico tradi- cional, tal como explicado até aqui, não é o único a ser utilizado na ciência, principalmente porque, apesar de ser adequado em parte das pesquisas científicas de áreas ligadas às ciências naturais, como A premiada minissérie Chernobyl mostra, em cin- co episódios, os equívo- cos científicos e técnicos da equipe responsável pelo funcionamento da usina nuclear de Cher- nobyl, e que ocasionaram o maior acidente nuclear da história. Narra tam- bém os procedimentos aplicados para tentar frear a propagação da radiação, os impactos gravíssimos na população ucraniana e o dilema ético enfrentado pelos cientistas envolvidos na investigação do acidente. Direção: Johan Renck. EUA; Reino Unido: Sister Pictures; The Mighty Mint, 2019. Série Você considera aceitável que, em nome de um objetivo econômico, territorial, político ou ideológico, a ética científica seja deixada de lado em uma pesquisa científica ou no desen- volvimento de uma tecnologia? Para refletir https://www.google.com/search?biw=1323&bih=551&sxsrf=ALeKk027bAGljlM7eWpn7UnAvKAEXtq-Tw:1611538657104&q=Johan+Renck&stick=H4sIAAAAAAAAAOPgE-LVT9c3NEwzKk_KyzU1VOLSz9U3MCw3rjIo1lLLKLfST87PyUlNLsnMz9MvKYsvKMpPL0rMLbZKySwCiqamKCRVLmLl9srPSMxTCErNS87ewcoIAGWca2BWAAAA&sa=X&ved=2ahUKEwiI8Mqp-bXuAhWLILkGHeKKDEoQmxMoATAiegQILRAD 80 Temas sociais e educacionais contemporâneos a química, a física, a biologia e as áreas de saúde etc., muitas vezes é preciso usar outras metodologias, sobretudo na área de ciências hu- manas, como a sociologia, a economia, a antropologia, a arqueologia, a história, a geografia e a ciência política. M ic ro ge n/ Sh ut te rs to ck A arqueologia é um exemplo de ciência humana na qual são aplicados métodos próprios da área para analisar vestígios humanos e compreender contextos passados, mas que também se utiliza de elementos do método científico tradicional. Nessas áreas, fica mais evidente que, por mais que a objetividade e a neutralidade sejam princípios do método científico, tão utilizado até hoje como base de inúmeras pesquisas científicas, sobretudo na área das ciências naturais, não há como produzir um conhecimento efetiva- mente neutro, livre de qualquer tipo de subjetividade e historicidade, “apagando” o cientista do processo. Devemos considerar que, em qualquer área do conhecimento, não é possível ser totalmente neutro, pois a própria presença do cientista ou pesquisador já pode influenciar de alguma forma o estudo. Além disso, o cientista é um ser humano e carrega por todo o tempo suas ca- racterísticas, sua história e seu modo de pensar, sendo inviável apagar completamente a subjetividade, apesar de ser desejável que ela não influencie os resultados da pesquisa ou, pelo menos, que seja identifi- cada e assumida no estudo. Max Horkheimer (1976), teórico que integrava a Escola de Frankfurt – movimento formado na década de 1940, e atuante por décadas, por teóricos alemães de áreas ligadas à filosofia e às ciências sociais –, afir- https://www.shutterstock.com/g/stevicam Educação científica e inclusão digital 81 mava que a teoria tradicional, que guia a produção de conhecimento científico, é caracterizada pelo positivismo, pelo cientificismo e por uma abordagem de pesquisa puramente observacional, buscando generali- zações ou leis gerais de diferentes aspectos da realidade. O autor defendia que o método científico tradicional não serve para as ciências sociais do mesmo modo que para as ciências naturais e que as generalizações no campo das ciências sociais não são realiza- das facilmente com base em experiências como nas ciências naturais, pois a compreensão ou interpretação de uma experiência “social” por parte do cientista social não pode ser exata e neutra, sendo sempre construída com base em noções, interpretações, ideologias e nos con- textos social e histórico do próprio pesquisador. Para Horkheimer (1976, p. 213), o cientista, em meio aos seus estu- dos e às pesquisas, não percebe que acaba filtrando seu pensamento sob a perspectiva de seu contexto histórico. Para o autor: os fatos que os nossos sentidos apresentam para nós são social- mente efetuados de duas maneiras: através do caráter histórico do objeto percebido e através do caráter histórico do órgão que percebe. Ambos não são simplesmente naturais; eles são molda- dos por atividade humana, e pelas percepções individuais deles mesmos como receptivos e passivos no ato da percepção. Horkheimer (1983, p. 134) considera que os fenômenos da sociedade, os fatos sociais, não são dados por natureza como o são os fenômenos estudados pelas ciências naturais, tais como eventos climáticos, mas sim construídos pelos seres humanos, e que essa percepção, porém, não é comum às pessoas, que não costumam “distinguir entre o que pertence à natureza inconsciente e o que pertence à práxis social”. Para o teórico, portanto, os indivíduos naturalizam a produção social da realidade, o que conduziria à parcialidade que ele identifica nas ciências sociais e que pretende eliminar, o que o leva a não descartar totalmente os mé- todos tradicionais de pesquisa científica. Para isso, o autor propõe, em oposição à atitude “naturalizan- te” do método científico tradicional, uma atitude crítica, que assume os fatos sociais como produção humana e que tem consciência da impossibilidade da neutralidade e da objetividade total na pesquisa científica em ciências sociais, apesar da busca constante de se apro- ximar ao máximo dessas características. Esse tipo de comportamen- to leva o pesquisador a desconfiar de categorias como “melhor, útil, 82 Temas sociais e educacionais contemporâneos conveniente, produtivo, valioso, tais como são aceitasnesta ordem [social]” (HORKHEIMER, 1983, p. 138) e a se recusar a aplicá-las como premissas em seus estudos. Ao adotar essa postura denominada pelo autor de teoria crítica, o pesquisador colabora para a transformação da sociedade, pois não a enxerga como o produto de forças naturais imutáveis e difíceis de compreender, passando a trabalhar no sentido de tornar transpa- rentes seus mecanismos internos e dar aos indivíduos a chance de se emanciparem, organizando racional e conscientemente as rela- ções e a ordem social. No cenário contemporâneo das ciências naturais, como a física, a química, a astronomia etc., vêm ocorrendo algumas mudanças de paradigma que apontam a flexibilização de princípios científicos tra- dicionais. Segundo o físico italiano Marcello Cini (1998 apud PRETTO, 1997, p. 3), assistimos atualmente, sob a perspectiva da evolução da ciência, a uma grande mudança de concepção, pois: passou-se, em vez disso, a uma concepção de mundo em que, em vez de se tentar reduzir tudo à ordem, regularidade e con- tinuidade, emergem categorias e perspectivas completamente opostas. Estudam-se a desordem, a irregularidade, os fenôme- nos que não se repetem, em vez de tentar unificar fenômenos muito diferentes pela explicação resultante de uma única lei fundamental. A individualidade começa a ser reconhecida, por exemplo, no fato de que sistemas estruturalmente idênticos podem revelar comportamentos radicalmente diferentes, oca- sionados apenas por pequeníssimas diferenças que, até então, todos consideravam como sendo não essenciais. A relação linear de causa e consequência que vimos enfatizada no método científico e que é fundamentada na noção de racionali- dade aponta a existência de um único caminho, um único método, uma única maneira de realizar uma pesquisa ou de produzir conhe- cimento científico. Segundo Moraes (2004), a causalidade recursiva, descoberta nos estudos da física quântica, aponta a existência de uma dinâmica não linear, complexa, que implica um pensamento aberto ao inesperado, ao desconhecido, ao acaso, pressupondo que não existe nem iní- cio nem fim, com cada final sendo sempre um novo começo. Para a Educação científica e inclusão digital 83 autora, esse determinismo manifesta-se nas práticas educativas, ao deixar prevalecer o valor da homogeneidade sobre a singularidade, da objetividade sobre a intersubjetividade, bem como da uniformi- zação sobre a diferenciação. O novo paradigma, no entanto, não eli- mina de modo algum a necessidade de rigor científico, mas abre espaço para novas formas de estruturar a produção de conhecimen- tos e a educação científica. Em ciências humanas podemos dizer que, apesar de poderem ser usadas observações sistemáticas, análises estatísticas e experi- mentos, ao pesquisador não basta descrever seu objeto de estudo – que pode ser fenômenos sociais, movimentos populacionais, pa- drões de comportamento, relações de trabalho, adventos tecnológi- cos etc. – ou relacioná-lo a outros objetos. É necessário interpretá-lo, compreendê-lo e analisar seu sentido nos contextos social, histórico, político, cultural, econômico, entre outros. Necessitamos considerar que, nos experimentos das ciências na- turais, na maior parte das vezes, é possível controlar as variáveis que interferem no fenômeno estudado. Já no estudo de fenômenos sociais, suscetíveis a inúmeras variáveis, é inviável controlar todas elas, e algumas vezes seria antiético esse controle, pois interviria na vida das pessoas. A generalização por meio da identificação de regularidades em um fenômeno social também é mais complexa do que no caso do estudo de fenômenos naturais. Por isso, não são tão comuns leis gerais nas ciências humanas, e, quando existentes, acabam não explicando uma série de exceções à regra, como é o caso da lei da oferta e da procura, estabelecida por uma vertente das ciências econômicas. 3.3 A tecnologia Vídeo Muitos teóricos consideram que estamos vivendo a Era Tecnológica, Era da Informação ou Era Digital, na qual a sociedade como um todo, as relações sociais e de trabalho, a vida cotidiana, as manifestações culturais, os sistemas econômicos etc. estão impregnados de novas tecnologias, sobretudo digitais, que se transformam rapidamente. 84 Temas sociais e educacionais contemporâneos As tecnologias digitais, como a interface gráfica do usuário, representam o que há de mais contemporâneo. Entretanto, tecnologias não são apenas técnicas, dispositivos e ferramentas atuais. m et am or wo rk s/ Sh ut te rs to ck É comum pensarmos que a humanidade não conseguiria sobrevi- ver sem os dispositivos e processos tecnológicos a que estamos habi- tuados. Precisamos lembrar que a tecnologia não se resume a computadores, celulares, internet, eletrodomésticos e automóveis de última geração e o modo de produzi-los. Ferramentas, como uma ca- neta ou um par de óculos e processos simples de produção também são tecnologias. A técnica e a tecnologia têm uma história muito longa nas sociedades humanas. Um bom exemplo disso são as tecnologias educacionais. Comparadas às tecnologias contemporâneas de escrita, como dispositivos digitais, computadores, tablets etc., instrumentos de impressão manual como os carimbos parecem simples demais, entre- tanto são também tecnologias, e no passado foram encarados como grandes novidades e auxiliaram o trabalho docente. A palavra técnica vem do grego téchne, que significa arte, técnica, ofício, isto é, o modo de criar alguma coisa. No passado, os artesãos cria- vam objetos para uso cotidiano de modo isolado, produzindo o artefato – como um sapato, uma ferramenta etc. – do começo ao fim. Com o passar do tempo, esses profissionais passaram a se reu- Estojo em madeira com letras e números para a confecção de cartazes pertencente à coleção da Escola Estadual Caetano de Campos em São Paulo. Acervo da coleção Escola Pública e o Saber. Centro de Referência em Educação Mário Covas, São Paulo. Educação científica e inclusão digital 85 nir em grupos, as ditas corporações de ofício, e estruturaram manei- ras de transmitir suas técnicas a aprendizes. Após a Revolução Industrial, o trabalho dos artesãos passou a ser substituído pelo trabalho dos operários nas fábricas, que contavam com o auxílio de máquinas, exemplos de novas tecnologias que ser- viam ao objetivo de produção em larga escala. O processo de industrialização foi ao mesmo tempo resultado e impulso dos desenvolvimentos científico, técnico e tecnológico. Esse avanço contínuo não afetou apenas a produção e o sistema econômico das sociedades, mas também suas relações, o modo de viver e consumir, as maneiras de se deslocar, trabalhar, se divertir e, sobretudo, as formas de se comunicar, divulgar e ter acesso à informação. As novas tecnologias passaram a ser fonte de admiração, pois pareciam facilitar todas as atividades humanas e representar o pro- gresso e o desenvolvimento social, mas também de receio, já que as máquinas pareciam ameaçar os empregos e, de certo modo, até mes- mo a liberdade das pessoas. Os teóricos da Escola de Frankfurt foram pioneiros nos debates sobre os possíveis impactos das novas tecnologias na sociedade. Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse criticavam forte- mente a racionalidade tecnocientífica, alertando que a dominação entre as nações, no contexto mundial, não estava mais se dando apenas entre “países ricos” e “países pobres”, mas entre países pro- dutores/detentores de tecnologia e países excluídos dela. Marcuse (1973) considerou que a sociedade contemporânea indus- trial estava marcada por um elevado nível de racionalidade tecnológica, o que, segundo o autor, levaria a características totalitárias. Nessa so- ciedade, que ele chamou de unidimensional, o controle social se daria pelo meio tecnológico. Um famoso livro de ficção, publicado por George Orwell em 1949, chamado 1984, narra um futuro distópico totalitário, no qual o mun- do é governado por uma grande corporação,personificada na figura do Grande Irmão (Big Brother). Nessa sociedade, todas as pessoas são vigiadas dia e noite por meio de dispositivos tecnológicos, privadas da liberdade até mesmo de pensar criticamente ou de se comunicar de modo espontâneo, e obrigadas a aceitar, sem questionar, todas as in- O protagonista do livro 1984 vive em uma socie- dade totalitária na qual o Estado é onipresente por meio de dispositivos tecnológicos e ninguém tem direito à individuali- dade ou à liberdade de pensamento. O romance foi interpretado como uma crítica a regimes totalitários como o nazismo e o stalinismo. A manipulação da realidade imposta pelo governo nos meios de comunicação pode ser comparada, sob certos aspectos, ao que hoje chamamos de fake news, as quais promovem uma confusão generali- zada do que é ou não a verdade dos fatos. É uma leitura essencial. ORWELL, G. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Livro 86 Temas sociais e educacionais contemporâneos formações fornecidas a elas por meio das telas onipresentes, das quais ninguém consegue fugir. Para além da crítica política e social, o livro, adaptado para o ci- nema e para a televisão, expressa um dos grandes medos da época: o de que os seres humanos fossem dominados pela tecnologia ou por meio dela. 3.3.1 Ciência, tecnologia e sociedade O desenvolvimento tecnológico, que de início adveio do aperfeiçoa- mento das técnicas artesanais tradicionais, tendo depois se estendido à aplicação do conhecimento científico para a solução de problemas so- ciais, muitas vezes por meio do desenvolvimento de novas tecnologias, converteu-se na promessa de condução segura da sociedade rumo a um futuro próspero para todos. Prova disso é o fato de que ele tem sido utilizado cada vez mais como indicador do progresso humano em geral e do desenvolvi- mento social em específico, legitimando a classificação das socieda- des em avançadas ou atrasadas segundo seu nível de sofisticação tecnológica (DICKSON, 1980). Em geral, as conquistas da ciência e da tecnologia trouxeram inú- meras vantagens para os seres humanos, que se refletem até em uma maior longevidade de vida das pessoas. Entretanto, grande parte das populações do mundo não tem acesso aos frutos dos desenvolvimen- tos científico e tecnológico, mostrando que esse tipo de progresso não se estendeu a todos. O fenômeno contemporâneo da aceleração tecnológica, ou seja, do surgimento de inovações e novas tecnologias a todo momento, é único na história, e gerou grandes impactos na sociedade e na vida cotidiana, assim como suscitou diferentes perspectivas teóricas que foram elabo- radas após essa intensificação dos processos técnico-científicos. De um lado, as concepções ligadas à ideia de que o progresso crescente da ciência e da tecnologia é determinante para os desen- volvimentos econômico e social, além de possuir natureza neutra e não normativa; de outro, as concepções fundadas nas indetermina- ções que rondam o futuro da sociedade – moldada pelos sistemas técnico-científicos contemporâneos – e que questionam o suposto pa- Educação científica e inclusão digital 87 pel determinante e neutro da ciência e da tecnologia (GARCIA, 2007). Vários autores têm se debruçado sobre esses conceitos, alguns deles ligados aos chamados Estudos ou Movimento Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), que abarcam análises das relações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade contemporânea. Esse movimento busca desconstruir a ideia de ciência como uma atividade neutra, de domínio exclusivo de um grupo de especialistas, que trabalha desinteressadamente e com autonomia, bem como com liberdade total, na busca de um conhecimento universal, cujas conse- quências ou usos inadequados não são de sua responsabilidade. A Teoria Crítica da Tecnologia, proposta por Feenberg (2004), defende que a tecnologia poderia promover um desenvolvimento que atendesse às necessidades da sociedade, mas para isso seria necessário um controle social que orientasse o desenvolvimento não sob a racionalidade técnica, mas sob uma racionalidade demo- crática, considerando que a tecnologia está a serviço da humanida- de, e não o contrário. 3.3.2 Novas alternativas: democratização da ciência e da tecnologia As teorias críticas sobre a tecnologia apontam para a necessidade de ultrapassar a visão tradicional de tecnologia e de desenvolvimento para alcançar uma perspectiva mais democrática e inclusiva de tecnologia. O modelo da cadeia linear da inovação tecnológica convencional, inspirado no trabalho de Schumpeter (1961), supõe que a pesquisa científica é seguida da tecnológica, e que esta, por sua vez, produz o de- senvolvimento econômico, o qual possibilita o desenvolvimento social. As inovações tecnológicas, nessa acepção, seriam processos por meio dos quais novas ideias, objetos e práticas são criados, desenvolvidos ou reinventados (CROSSAN; APAYDIN, 2010). Essa perspectiva relaciona diretamente o avanço ou atraso das so- ciedades ao nível de sofisticação tecnológica que possuem, podendo ser chamada de concepção convencional de inovação tecnológica, e está ancorada a um modelo liberal de interpretação da realidade. As tecnologias alternativas às convencionais, por outro lado, es- tão ligadas a outro modelo de inovação, a inovação social, concei- 88 Temas sociais e educacionais contemporâneos tuada por Mulgan (2006) como relacionada a atividades e serviços inovadores que possuem a finalidade de atender a uma necessidade social e que são desenvolvidos e difundidos, predominantemente, por organizações de cunho social, além de instituições de ensino e pesquisa e, por vezes, agentes públicos. De acordo com Pinto (2005), a concepção de que o progresso da ciência e da tecnologia determina o desenvolvimento das socieda- des implica considerar que as regiões “não tecnológicas”, como o Brasil e suas localidades menos desenvolvidas, correm o risco de planejar seu desenvolvimento imitando o desenvolvimento tecnoló- gico das regiões mais desenvolvidas, renegando sua própria realida- de e suas condições objetivas. Ou seja, o autor questiona o que é o desenvolvimento social e o econômico em cada realidade e a quem exatamente eles beneficiam. Nesse sentido, Silveira e Bazzo (2009) propõem que, para os de- senvolvimentos científico e tecnológico serem efetivamente menos excludentes, é necessário considerar os problemas reais da popu- lação. A questão central do debate não é se a ciência e a tecnologia são “boas” ou “más” em si, mas se elas podem melhorar a vida dos seres humanos em sociedade de maneira mais justa e igualitária e de que modo. Uma das alternativas para atingir esse objetivo é por meio da tecnologia social. 3.3.2.1 O que são tecnologias sociais Ao contrário da transferência de tecnologia, que de modo sim- plificado é a importação de uma tecnologia desenvolvida em outro país, quase sempre gerando lucros para quem adquiriu os direitos sobre ela e a exclusão de grande parte da população do acesso à tecnologia transferida, já que usualmente é cara, a tecnologia social é uma alternativa que “corre por fora” da lógica do lucro. A transferência de tecnologia se dá em torno da chamada tecnologia de ponta, uma técnica ou produto tecnológico avançado desenvolvido pela indústria tecnológica de última geração, fruto da revolução tecnocientífica e informacional. Ela utiliza recursos tecnológicos altamente sofisticados, está em constante processo de inovação e aplica grandes investimentos financeiros no desen- volvimento de pesquisas. Será que a transferência de tecnologia é sempre a resposta para solucionar problemas específicos das comunidades, trazendo desenvolvimento local? As comunidades locais possuem recursos para adquirir essas tecnologias de ponta? A comunidade poderia aplicar a tecnologia de modo autônomo de acordo com suas necessidades? Quem efetivamente se beneficia com essa tecnologia? Para refletir Educação científica e inclusão digital 89As tecnologias sociais são técnicas, métodos ou produtos construídos com a participação da comunidade que as usará e no intuito de resolver um problema ou uma necessidade local. Trata-se de uma tecnologia que favorece o desenvolvimento local sustentável e que promove a inclusão. De modo geral, podemos dizer que a tecnologia social integra sabe- res teóricos, científicos e técnicos a saberes práticos, tradicionais e po- pulares no sentido de construir coletivamente, com o protagonismo da comunidade envolvida, uma intervenção social que ajude a solucionar um problema local e a contribuir para o desenvolvimento sustentável da comunidade. Um conceito de tecnologias sociais expresso em documentos ofi- ciais ligados ao fomento e ao financiamento desse tipo de projeto, por exemplo, afirma que elas são técnicas ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas em interação com a comunidade, que buscam soluções para problemas sociais. De acordo com essa concepção, essas tecnologias unem saber po- pular e organização social a conhecimentos científicos e tecnológicos, buscando a inclusão social e a melhoria da qualidade de vida para gerar a efetiva transformação social, devendo ainda atender a requisitos de simplicidade, baixo custo, fácil aplicabilidade e reprodução, bem como impacto social comprovado. Com esses aspectos, a tecnologia social geraria autonomia da comunidade, apropriação dos conhecimentos construídos e sustentabilidade da tecnologia criada. O livro Tecnologia social: ferramenta para construir outra sociedade, de Renato Dagnino, traz uma visão bastante ampla do que as tecnologias sociais no cenário da ciência e da tecnologia no Brasil representam, sob a perspectiva da constru- ção de uma plataforma cognitiva para outra ló- gica de desenvolvimento da sociedade, baseada na economia solidária. Campinas: Unicamp, 2009. Livro 3.4 Ciência, tecnologia e educação Vídeo Quando surgiram novas tecnologias, como o rádio e mais tarde a televisão, muitos estudiosos alertaram para os impactos negativos que elas teriam sobre a sociedade, principalmente para as novas gerações. Temia-se que a formação das crianças e dos adolescentes fosse pre- judicada e que as descobertas ameaçassem o conhecimento escolar, substituindo-o por informações errôneas ou superficiais e por explica- ções fantasiosas ou coleções de “curiosidades”. Vários teóricos da Escola de Frankfurt afirmavam que a comuni- cação de massas, veiculada, sobretudo, pela televisão, atrelada à in- dústria cultural, atuava sob a lógica capitalista do lucro e, portanto, reproduzia as desigualdades na sociedade, propagava a ideologia 90 Temas sociais e educacionais contemporâneos dominante e visava, em última instância, induzir ao máximo o con- sumo, não tendo compromisso nenhum com a formação do senso crítico dos telespectadores. Com o passar do tempo, percebeu-se que, se por um lado a tele- visão tinha efeitos prejudiciais sob aspecto educacional, como o estí- mulo à passividade e a uma postura pouco crítica diante do que era veiculado, e que muitas vezes não correspondia à realidade, sob outros aspectos, essa nova ferramenta podia levar informação e mesmo al- guns ensinamentos a crianças e jovens distantes dos grandes centros ou com pouco acesso à informação em suas comunidades. Do mesmo modo, as novas tecnologias digitais de informação e co- municação (TDICs) também suscitam debates e o temor de que, com a intensificação de seu uso por crianças e jovens, tenhamos perdas edu- cacionais significativas e prejuízos à capacidade de análise autônoma, crítica e ética dos fenômenos da realidade por parte dos estudantes. Estudos dos impactos sociais, culturais e educacionais das TDICs mostram que, se por um lado, com o tipo de comunicação superficial e fragmentada realizado nas redes sociais, estamos assistindo a um empobrecimento da linguagem e da capacidade de pensamento com- plexo, por outro, temos um impulso nunca visto na democratização do acesso à informação e na formação de redes virtuais de aprendizagem. É essencial, no entanto, que as tecnologias digitais sejam aplicadas à educação sob a perspectiva das aprendizagens ativas, favorecendo o pro- tagonismo dos estudantes e a aprendizagem colaborativa e evitando a reprodução de processos tecnicistas característicos do ensino tradicional, ou seja, sem efetivamente explorar as possibilidades abertas pelas TIDCs. Para reforçar os impactos positivos das novas tecnologias e ame- nizar os negativos, a escola precisa dedicar-se a educar para o bom uso das mídias e das tecnologias digitais de informação e comunica- ção. Não basta construir a inclusão digital, promovendo seu acesso a dispositivos e à internet de boa qualidade, é preciso promover o letramento digital e a educação para as mídias e para a tecnologia, ga- rantindo que seu uso propicie a construção de pensamento complexo e de aprendizagem coletiva. Ao longo dos anos 1960, a mídia-educação enfocou a dimensão da interpretação crítica das mensagens midiáticas, orientada pela corrente da linguística, da semiologia e da pragmática. Como di- Educação científica e inclusão digital 91 mensão de ferramenta de planejamento pedagógico, inspirada na corrente tecnológica, tornou-se foco dos estudos de outra área, a tecnologia educacional, cujo desenvolvimento se deu na década de 1970, principalmente nos Estados Unidos e, em seguida, na América Latina, passando a representar a grande aposta para a melhoria dos sistemas educacionais, tanto em termos de qualidade quanto de quantidade (BELLONI; SUBTIL, 2002). Ao contrário das mídias, que se baseavam na comunicação “de um para todos”, o advento do computador e da internet trouxe a co- municação de todos para todos, caracterizada por Lévy (1999) como capaz de criar um espaço virtual de vivência entre humanos e infor- mação e de permanente estado de mudança dessas informações em virtude da atualização e da intervenção dos usuários/aprendizes. De todo modo, como não podemos viver em um mundo sem a tecnologia, precisamos educar as novas gerações para seu uso adequa- do, ético e proveitoso, e lutar para que a inclusão digital seja uma reali- dade, promovendo a ampliação dos processos educativos e do acesso democrático à informação e à produção de conhecimento. Nesse contexto, ganha força a ideia de que a simples oferta de dispo- sitivos técnicos e de acesso à rede mundial de computadores nas escolas daria grande impulso aos processos de ensino e aprendizagem. É es- sencial para a inclusão digital promover o letramento digital, ensinando a acessar, selecionar e interpretar adequadamente as informações na internet e, mais ainda, a usar as informações de modo a produzir novos conhecimentos coletivamente e solucionar problemas reais. 3.4.1 Novas tecnologias aplicadas ao ensino e à aprendizagem As novas tecnologias aplicadas à educação deveriam estar a serviço dos processos de ensino e aprendizagem, mas o que vemos, muitas vezes, são as imensas dificuldades de integrar de modo interessante e produtivo os recursos tecnológicos à sala de aula. Se por um lado, nos últimos anos, consolida-se a ideia de que as mídias em geral e a internet em particular abrem as portas para novas percepções da realidade e novas maneiras de aprender, de produzir e de divulgar conhecimentos e informações (BÉVORT; BELLONI, 2009), 92 Temas sociais e educacionais contemporâneos por outro, ampliou-se a relevância dos estudos que abordam as ló- gicas próprias ao ciberespaço, à comunicação via internet e às pu- blicações nas redes sociais, sob a perspectiva dos novos modos de aprendizagem, mais autônomos e colaborativos. Tais ideias e estu- dos, entretanto, são em grande parte ignorados pelos educadores em geral (PERRIAULT, 2002). M on ke y B us in es s Im ag es /S hu tte rs to ck Nesse cenário, Levy (1999, p. 157) defende que “qualquer re- flexão sobre o futuro dos sistemas de educação e de formação na cibercultura deve ser fundada em uma análiseprévia da mutação contemporânea da relação com o saber”. O autor aponta que está ocorrendo uma transformação qualitativa dos processos de apren- dizagem, pois “o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que amplificam, exteriorizam e modificam numerosas funções cognitivas humanas”. Ele ainda defende três princípios para guiar a formação voltada à atuação no ciberespaço: a interconexão, a criação de co- munidades virtuais e a inteligência coletiva. Ao mesmo tempo, o estudioso lança um desafio aos sistemas educacionais, levantando que os percursos e perfis de competências são todos singulares e podem cada vez menos ser canalizados em programas ou cursos válidos para todos, o que leva à proposta de construção de novos modelos do espaço dos conhecimentos emer- gentes, abertos, contínuos, em fluxo e não lineares, reorganizando-se de acordo com os objetivos ou os contextos, nos quais cada um ocupa uma posição singular e evolutiva. Para aprofundar seus co- nhecimentos dos impactos da era digital na educação, o livro Tecnologia, sociedade e educação na era digital traz, ao longo dos capí- tulos, múltiplos olhares sobre as tecnologias digitais, abordando temas como inclusão digital ou infoinclusão, sociedade da informação, políticas públi- cas e letramento digital. VILAÇA, M. L. C.; ARAUJO, E. V. F. de. (org.). Duque de Caxias: Unigranrio, 2016. Livro Educação científica e inclusão digital 93 Nessa proposta, o professor é levado a se tornar um incentivador, um mobilizador da inteligência coletiva de seus grupos de alunos em vez de um fornecedor direto de conhecimentos (LEVY, 1999). 3.4.2 Estratégias para a educação científica e tecnológica Muitos educadores ficam espantados ao perceber que seus alunos – e até alguns colegas de docência – propagam ideias e interpretações de fenômenos ligados a várias áreas da ciência e da tecnologia equivo- cadas, que chegam a contrariar a lógica básica e os dados disponíveis para toda a sociedade. M cL itt le S to ck /S hu tte rs to ck Mas por que isso acontece com cada vez mais frequência? Por que as chamadas fake news têm cada vez mais distorcido ou desconside- rado os elementos básicos do conhecimento científico e por que tan- tas pessoas acreditam nessas informações mentirosas? O que legitima uma opinião sobre um fenômeno, fato ou processo? Devemos usar o espaço escolar para debater essas questões e es- clarecer aos estudantes os seguintes pontos: • Para defender um posicionamento diante de um assunto, é necessário ter argumentos embasados de modo consistente, com dados e/ou teorias de autores reconhecidos. A afirmação “é a minha opinião” não é um argumento válido em uma discussão. 94 Temas sociais e educacionais contemporâneos • Informações soltas, descontextualizadas, não comprovadas e acessíveis em fontes não confiáveis não são conhecimento. Opi- niões pessoais, julgamentos de valor e crenças infundadas também não, e só atrapalham a interpretação do mundo. • Pessoas leigas em determinada área do conhecimento podem dar sua opinião, mas não podem exigir que ela seja considerada tão legítima quanto os pareceres de especialistas no assunto. • Casos individuais não podem ser generalizados. Não é porque co- nhecemos alguns casos em que determinado fato teve uma con- sequência que podemos dizer que sempre será assim em todos os casos. Ou seja, referir-se a algo que aconteceu a um parente, amigo ou conhecido como se fosse uma regra geral é anticientífico. • O pensamento científico não pode se guiar por ideias como “sem- pre foi assim”, “sempre deu certo dessa forma”, “conheço vários casos”, “comigo aconteceu assim”, “todo mundo sabe que é ver- dade”, “eu vi vários relatos na internet” etc. A educação científica e a tecnológica básicas devem permear todas as disciplinas, e há orientações que precisam ser dadas frequentemen- te aos alunos, auxiliando a construção de uma postura mais racional e crítica diante das informações a que eles têm acesso. As orientações podem ser transmitidas pelo educador por meio da mediação em debates e rodas de conversa com base em temas geradores relacionados ao letramento digital, por exemplo, sobre como utilizar adequadamente ferramentas tecnológicas, como pes- quisar, verificar e interpretar informações, como acessar, interagir e se proteger nas redes etc. Alguns dos temas sugeridos são: • O que é fato e o que é opinião? • Como verificar informações obtidas na internet ou como desco- brir se é notícia ou fake news? • Como acessar e compreender informações científicas? • Como se manter seguro na internet? • Como se concentrar na internet? Como subsídio para mediar as discussões, abordaremos os temas sugeridos de modo a destacar as orientações principais a serem com- partilhadas com os estudantes. Educação científica e inclusão digital 95 O que é fato e o que é opinião? Não é porque não gostamos de determinados dados ou fatos que podemos dizer que “não concordamos” com eles e pronto. Por exemplo: o Brasil possuir atualmente uma população de cerca de 210 milhões de pessoas é um fato com base em dados coletados e com- provados, publicados por órgãos oficiais como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Não faz sentido nenhum que alguém discorde desse fato, dizendo que a população é menor ou maior e que essa é sua opinião. Opiniões que não se baseiam em evidências nem possuem emba- samento concreto não podem ser consideradas legítimas, mesmo que um grupo grande de pessoas compartilhem. Em quase todo o mundo existem grupos numerosos compostos de pessoas que querem equiparar suas opiniões, sem nenhum fundamen- to científico, às teorias científicas reconhecidas ou a fatos comprovados. Esse é o caso dos grupos antivacina e dos que defendem que a Ter- ra é plana, por exemplo. Tanto a importância das vacinas quanto o for- mato do planeta já foram amplamente comprovados cientificamente por meio de evidências e não podem ser confrontados por opiniões que se baseiam em fantasias e interpretações errôneas da realidade e que podem, inclusive, ser prejudiciais à população. Uma estratégia interessante para desenvolver esse tema gera- dor é promover um júri simulado em torno de questões que não deveriam gerar polêmicas, já que foram amplamente comprovadas cientificamente. Nessa estratégia didática, dois grupos de alunos são organizados: um fará a defesa e outro a promotoria. Por exemplo: o grupo que de- fenderá o formato geoide da Terra fará pesquisas e construirá sua argumentação fundamentada teoricamente na ciência; já o grupo que tentará provar que a Terra é plana, contradizendo a defesa, também fará suas pesquisas e construirá seus argumentos embasados no que encontrarem de informações. No júri simulado os grupos têm, cada um, seu tempo para expor sua argumentação e pequenos tempos para réplicas e tréplicas. A media- ção é feita pelo educador, podendo ser auxiliado por alguns alunos que estejam registrando as argumentações. geoide: é um modelo físico da forma da Terra, elaborado por Gauss, que acompanha as varia- ções do campo de gravidade do nosso planeta. É considerado o “verdadeiro” formato do planeta Terra, que não é perfeitamente esférico, pois é “achatado” nos polos. Glossário 96 Temas sociais e educacionais contemporâneos Ao final, é preciso retomar os argumentos, mostrar suas falhas e esclarecer didaticamente o embasamento científico, os experimentos e as teorias que comprovam que a Terra não é plana, e sim geoide, ou seja, que isso é um fato, não uma opinião, e mostrar objetivamen- te, pela análise dos argumentos da promotoria, que considerar que a Terra é plana é uma opinião, não um fato. É de grande valia a participa- ção do professor de Ciências ou Biologia nessa estratégia. Como verificar informações obtidas na internet? Se não há fonte confiável para uma informação, é melhor não com- partilhar. Fonte confiável não é vídeo ou matéria sem assinatura em sites que não sejam efetivamenteveículos profissionais de notícias. Fontes confiáveis são artigos científicos, falas comprovadas de estudiosos respeitados na área abordada, dados oficiais do assunto, compilações feitas por veículo de imprensa idôneo etc. Se alguém está veiculando informações na internet, em um vídeo, site, blog etc., e não tem formação na área relacionada ao que está abordando, a probabilidade de serem dados equivocados é muito grande. Uma estratégia a ser ensinada aos estudantes é a de se pergun- tar sempre qual poderia ser o interesse de quem está veiculando a suposta informação. Qual seria a intenção de divulgar aquilo? Essa postura crítica ao receber uma mensagem é a chave para não ser en- ganado ou manipulado. Uma forma fácil de verificar se uma notícia é verdadeira ou apenas um boato, uma fake news, é buscar informações sobre ela em uma agência de checagem de notícias, como Agência Lupa, Boato.org, Fato ou Fake, Comprova e Aos Fatos. É importante conscientizar os estudantes a se habituarem a verifi- car as supostas notícias ou informações antes de compartilhar, pois divulgar dados falsos é antiético e pode prejudicar outras pessoas, além da sua própria reputação. Como acessar e compreender informações científicas? A divulgação científica é um meio excelente de acessar e compreender melhor informações científicas, novas descobertas e Educação científica e inclusão digital 97 tecnologias. É realizada tanto por cientistas quanto por jornalistas especializados na abordagem de temas da ciência, no intuito de dar maior acesso às informações científicas, transpondo-as para uma lin- guagem mais simples e de fácil compreensão pelo público em geral, por meio de exemplos e analogias e de explicação de termos de ma- neira acessível. Trata-se de um meio importantíssimo para democratizar o acesso ao conhecimento científico e estimular o diálogo entre os pesquisado- res e a sociedade, representando um espaço de educação não formal que pode ser usado como ferramenta de ensino pelos educadores. Os textos e as matérias de divulgação científica são veiculados por jornais e revistas comuns ou nos veículos especializados nessa abordagem. Atualmente, há canais no YouTube e podcasts especia- lizados em divulgação científica, mas é preciso saber escolher bem, certificando-se de que os responsáveis pelo conteúdo realmente têm conhecimento e legitimidade para esse tipo de divulgação. A divulgação científica também tem níveis diferentes e pode ser voltada para públicos gerais ou específicos. Revistas pioneiras no Brasil são, por exemplo, Ciência Hoje, criada em 1982 pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e publicada até a atua- lidade (existe também a revista Ciência Hoje para Crianças, publicada desde 2003), e Superinteressante, publicada desde 1987 e voltada ao público em geral. Outras publicações têm públicos-alvo mais específicos, pessoas in- teressadas em determinada área da ciência, ou mesmo publicações científicas que divulgam a ciência para os próprios cientistas. Os canais de vídeo e os podcasts de divulgação científica têm an- gariado cada vez mais ouvintes, e muitos deles contam com a par- ticipação de cientistas reconhecidos em suas áreas. São uma boa ferramenta para levar a divulgação científica para a sala de aula. Uma estratégia interessante é criar um projeto contínuo de di- vulgação científica na escola, determinando, por exemplo, um com- partilhamento regular desse tipo de recurso por parte dos alunos de maneira mediada. Depois de uma explanação e do contato com exemplos de bons veículos de divulgação científica, os alunos podem pesquisar novas fontes desse tipo de conhecimento. Após a análise do professor para Os podcasts têm se tornado uma fórmula de sucesso para a divulga- ção científica. Conheça alguns dos mais ouvidos: • Naruhodo!: podcast de divulgação científica criado por um jornalista e um cientista que traz de modo claro e divertido informações científicas de várias áreas. Disponível em: https:// www.b9.com.br/shows/ naruhodo/. Acesso em: 2 fev. 2021. • Dragões de garagem: programa em formato de mesas-redondas com cientistas convidados para a discussão de temas de todas as áreas científicas. Disponível em: http://dragoesdegaragem.com/. Acesso em: 2 fev. 2021. • Fronteiras da ciência: podcast que usa mesas-redondas descontraídas para explicar como a ciência funciona e democratizar os conhecimentos científicos. Disponível em: http://www.ufrgs.br/ frontdaciencia/. Acesso em: 2 fev. 2021. Podcast As revistas de divulgação científica são uma ótima fonte para compreender melhor informações cien- tíficas e podem subsidiar pesquisas mediadas pelo professor ou mesmo estratégias didáticas aplicadas em sala de aula. Seguem dois exemplos: • Ciência Hoje. Disponível em: https:// cienciahoje.org.br/. Acesso em: 2 fev. 2021. • Ciência Hoje para Crianças. Disponível em: http://chc.org.br/. Acesso em: 2 fev. 2021. Dica https://www.b9.com.br/shows/naruhodo/ https://www.b9.com.br/shows/naruhodo/ https://www.b9.com.br/shows/naruhodo/ http://www.ufrgs.br/frontdaciencia/ http://www.ufrgs.br/frontdaciencia/ https://cienciahoje.org.br/ https://cienciahoje.org.br/ http://chc.org.br/ 98 Temas sociais e educacionais contemporâneos avaliar se a fonte é legítima e fornece conhecimento confiável, po- dem apresentar aos colegas o que encontraram e quais foram suas percepções sobre o que pesquisaram. Como se manter seguro na internet? O letramento digital envolve, além de aprendizados relativos à pesquisa em fontes confiáveis, analisar as informações textuais e imagéticas obtidas e comunicar-se adequadamente no meio virtual. Também são considerados os conhecimentos e as habilidades ligados à segurança na internet. É essencial alertar os alunos para o fato de que a internet é um local público, ou seja, navegar em sites e, principalmente, em redes sociais é o mesmo que estar sozinho andando nas ruas. Assim como é perigoso conversar com qualquer desconhecido, também é arriscado entrar em contato virtual com desconhecidos nas redes sociais. Na verdade, pode ser até mais perigoso, pois no meio virtual não temos nenhuma pista da identidade real de nossos interlocutores. Presencialmente podemos observar, por exemplo, a faixa etária de alguém que está tentando entrar em contato conosco. Na inter- net só temos acesso à idade, às características e às informações que a pessoa nos forneceu virtualmente, e nada nos garante que sejam verdadeiras. Por isso, é importante selecionar muito bem com quem conversa- mos em redes sociais e nunca fornecer nossas informações pessoais, como telefone, endereço, locais em que estudamos, trabalhamos ou fazemos outras atividades. Além disso, tomar muito cuidado com o tipo de fotos e vídeos que postamos para que essas informações não sejam utilizadas para nos prejudicar de algum modo, até mesmo fi- nanceiramente, pois dados pessoais dão acesso à prática de todo tipo de estelionato. Esses cuidados básicos devem ser ensinados às crianças e aos jo- vens que, muitas vezes, não imaginam que do outro lado da tela pode estar alguém com más intenções e que não é quem diz ser. As fraudes na internet são frequentes e é preciso ensinar os estu- dantes a desconfiar de ofertas virtuais de qualquer tipo. A Cartilha de Segurança para Internet, publicada pelo Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil, pode ser muito útil como subsí- dio às orientações sobre segurança na internet a serem trabalhadas com os estudantes. Disponível em: https://cartilha.cert. br/. Acesso em: 2 fev. 2021. Dica https://cartilha.cert.br/ https://cartilha.cert.br/ Educação científica e inclusão digital 99 Como se concentrar na internet? Por mais que estudantes já estejam familiarizados desde cedo com as ferramentas tecnológicas digitais e com a internet, não significa que já têm todas as habilidades para as usar de modo produtivo. Os conteúdosfragmentados, a grande quantidade de links e hiper- textos, a profusão de conteúdos de entretenimento e de interpreta- ções superficiais, equivocadas e mentirosas e a imensa quantidade de informação ofertada na internet podem causar uma grande dificulda- de de selecionar conteúdos textuais ou midiáticos e, principalmente, se concentrar, a fim de aprofundar a compreensão e estimular o pen- samento complexo. Para auxiliar os estudantes a navegarem de modo adequado quando estão utilizando conteúdo da internet para estudo e a se con- centrarem no que estão fazendo, é essencial que o educador crie e proponha roteiros de navegação, de pesquisa e de compreensão dos conteúdos pesquisados. Indicar sites, plataformas e repositórios de conteúdo digital con- fiáveis, propor uma sequência de navegação e pesquisa na internet, orientar o uso de ferramentas digitais ou não para a compilação e a análise do que foi pesquisado e propor uma sequência para a com- preensão, o compartilhamento e a aplicação dos conhecimentos ad- quiridos, produzindo novos conhecimentos, é essencial para que os estudantes tirem o melhor proveito do mundo digital e não se percam ou se distraiam em seus caminhos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Vimos neste capítulo que a educação científica e tecnológica depende do estudo de conceitos e métodos próprios à área científica em geral e a cada área do conhecimento em específico, mas que essas aprendizagens devem ser complementadas com uma “postura científica” diante do mundo. Observar com rigor e analisar criticamente fatos e argumentos é a base de uma atitude científica, a qual não se conforma em não compreender a fundo os fenômenos naturais e sociais e que não repete opiniões sem julgar sua validade. 100 Temas sociais e educacionais contemporâneos A racionalidade, a análise e a verificação de dados e informações e a busca da compreensão clara de todas as coisas, suas causas e consequên- cias são fundamentais para todo conhecimento científico e devem ser um pilar do conhecimento escolar e de toda a comunicação entre as pessoas. A ciência e a tecnologia devem ser meios de melhoria na vida das pessoas e de desenvolvimento social e econômico para todos, funcio- nando como ferramentas de inclusão. Para isso, o primeiro passo é de- mocratizar o acesso ao conhecimento e integrar a educação científica e tecnológica ao contexto escolar. ATIVIDADES 1. Se perguntassem a você o que diferencia conhecimento científico e senso comum, como explicaria e que exemplos daria? 2. Suponha que você acabou de ler uma postagem de um amigo ou parente afirmando que as vacinas causam transtornos do espectro autista, pois foi apenas após cerca de 25 anos – o período de uma geração – de campanhas de vacinação no Brasil que o número de casos desse tipo de distúrbio no neurodesenvolvimento aumentou. Como você usaria os conceitos científicos de correlação e causalidade para explicar que a postagem está equivocada? 3. Por que, sob alguns aspectos, o método científico tradicional, estabelecido no contexto dos estudos das ciências naturais, pode ser inadequado para pesquisas na área de ciências humanas? 4. A Teoria Crítica da Tecnologia, proposta por Feenberg (2004), defende que a tecnologia poderia promover um desenvolvimento que atendesse às necessidades da sociedade, mas impõe uma condição para que isso ocorra. Qual é essa condição? 5. Quais impactos positivos a aplicação das novas tecnologias na educação pode trazer para os processos de ensino e aprendizagem? E os negativos? 6. Considere a seguinte fala do médico virologista, pesquisador e cientista-chefe do laboratório de virologia e professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, Maurício Lacerda Nogueira, feita recentemente com relação a uma postagem de alguém que punha em dúvida a efetividade da vacinação para a prevenção da Covid-19 e que citava uma informação falsa sobre mortes relacionadas à vacina: Vídeo Educação científica e inclusão digital 101 “Acabou a paciência que nós temos em relação à negação da ciência, à negação da pandemia e à pandemia de fake news [...]. Eu vou em um lugar e a minha opinião vale tanto quanto a de outra pessoa completamente sem formação. Eu posso ficar o resto do dia conversando com essa pessoa, usando embasamento técnico, mas minha qualificação não vale mais nada. Opinião agora é o que vale. O ‘tiozão do zap’ é que manda”. (BERMÚDEZ, 2021) Com base na análise do contexto e da fala do cientista, responda aos seguintes itens: a) Que tipo de conhecimento embasa a fala do médico virologista? b) Que tipo de conhecimento embasa a postagem sobre a ineficácia da vacinação à qual o médico se referiu? c) O que significa a expressão “pandemia de fake news” usada pelo pesquisador? REFERÊNCIAS BELLONI, M. L.; SUBTIL, M. J. Dos audiovisuais à multimidia: análise histórica das diferentes dimensões do uso dos audiovisuais na escola. In: BELLONI, M. L. (org.). A formação na sociedade do espetáculo. São Paulo: Loyola, 2002. BERMÚDEZ, A. C. Médico justifica palavrão após fake news sobre vacina: “Acabou a paciência”. UOL Notícias, 26 jan. 2021. Disponível em: https://www.bol.uol.com.br/ noticias/2021/01/26/medico-que-respondeu-fake-news-de-vacina-com-palavrao-acabou- a-paciencia.htm. Acesso em: 2 fev. 2021. BÉVORT, E.; BELLONI, M. L. Mídia-educação: conceitos, história e perspectivas. 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A OMS, subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU), fundada em 1948, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, definiu na época que saúde seria um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doen- ça ou enfermidade. Ao longo dos anos, a entidade tem se dedica- do principalmente à prevenção de doenças, lançando campanhas mundiais de vacinação com o objetivo de erradicar doenças, como é o caso da campanha de vacinação contra poliomielite entre 1980 e 2005, e também tem financiado estudos científicos no sentido de avançar nos conhecimentos sobre a promoção da saúde integral dos indivíduos e das comunidades. Com base em tais estudos, a OMS busca promover a adoção de bons hábitos que contribuam para reduzir o risco de desenvolvi- mento de doenças – físicas ou mentais –, como hábitos alimentares saudáveis, atividade física regular, sono de qualidade, interação social saudável, gerenciamento do estresse, redução de riscos e doenças, eliminação do tabagismo, bons hábitos posturais, entre vários outros, que devem fazer parte das orientações voltadas para a formação in- tegral dos alunos no contexto escolar. As diretrizes da OMS, a legislação nacional ligada às ações do Ministério da Saúde e as regulamentações estaduais e municipais sobre o tema fundamentam as ações de instituições públicas e privadas e os programas e práticas educacionais nas escolas brasi- leiras, sobretudo as da rede pública de ensino. 104 Temas sociais e educacionais contemporâneos 4.1 Saúde integral e qualidade de vida Vídeo A saúde no sentido mais amplo, que envolve o conceito de qualida- de de vida, refere-se às condições de vida adequadas, como o pleno acesso ao saneamento básico e à água potável, à habitação adequada em ambiente que não seja insalubre ou perigoso, às boas condições de trabalho, com remuneração suficiente para custear as necessidades básicas da família e permitir alimentação adequada, lazer e cuidados pessoais, acesso ao estudo, à assistência médica quando necessário, entre outras condições que tornam possível a manutenção de boa saú- de física, mental e social e contribuem para o bem-estar, a realização pessoal e a manutenção dos laços afetivos e familiares. A qualidade de vida, portanto, depende de bases materiais para se estabelecer, como reforçam Minayo, Hartz e Buss (2000): O patamar material mínimo e universal para se falar em qua- lidade de vida diz respeito à satisfação das necessidades mais elementares da vida humana: alimentação, acesso a água po- tável, habitação, trabalho, educação, saúde e lazer; elementos materiais que têm como referência noções relativas de conforto, bem-estar e realização individual e coletiva. No mundo ocidental atual, por exemplo, é possível dizer também que desemprego, exclusão social e violência são, de forma objetiva, reconhecidos como a negação da qualidade de vida. Do na ta s Da br av ol sk as /S hu tte rs to ck Locais de moradia como favelas do Rio de Janeiro – que oferecem condições insalubres de vida, como lixo pelas ruas, esgoto a céu aberto e habitações precárias – não atendem às condições mínimas de saúde e qualidade de vida a seus moradores, mas são a única opção para uma grande parcela da população dos grandes centros brasileiros. https://www.shutterstock.com/pt/g/dabldy Promoção da saúde na escola 105 Os elementos que compõem os padrões de conforto e bem-estar se transformam histórica, social e culturalmente, o que significa que o conceito de qualidade de vida pode se transformar ao longo do tempo, de sociedade para sociedade e mesmo de acordo com diferentes gru- pos sociais dentro de uma mesma sociedade. Por exemplo, no mundo contemporâneo, sobretudo ocidental, a qualidade de vida engloba uma série de confortos proporcionados pelo desenvolvimento tecnológico e pelo consumo. Possuir um automóvel, computadores e celulares, utilidades domésticas, ter acesso a sho- ppings, viagens, à moda, à diversão em locais pagos etc. são elementos que fazem parte do conceito de qualidade de vida. Por outro lado, há sociedades, bem como grupos sociais específicos dentro das sociedades, que consideram qualidade de vida a perspectiva da ecologia humana, das relações saudáveis entre os seres humanos e destes com a natureza, questionando os padrões de bem-estar ligados ao consumismo e à exploração da natureza, degradando o meio am- biente e pondo em rico a qualidade de vida das gerações futuras, que poderão perder o acesso a bens essenciais à vida, como a água potável. Segundo o relatório de Marc Lalonde, intitulado Uma nova perspec- tiva da saúde de canadenses (1974) – um pilar no debate sobre a quali- dade de vida –, o conceito foi definido com base no que se consideram os determinantes da saúde: o estilo de vida; os avanços da biologia humana; o ambiente físico e social; e os serviços de saúde. Porém, faz-se necessário lembrar que qualidade de vida é também uma representação social e cultural, e que conceitos como sensação de pertencimento, felicidade, realização pessoal, entre outros valores não materiais, podem integrar as noções do que é “viver bem”. A promoção da saúde integral e da qualidade de vida depende, por- tanto, de vários fatores, desde os ligados a estilos de vida, hábitos, com- portamentos e condições materiais, passando por aspectos ambientais e de consumo sustentável, até os amplos aspectos ligados ao desen- volvimento econômico e social, à democracia, aos direitos humanos e à justiça social. Se, por um lado, as políticas de moradia e saneamento básico estão muito aquém do que seria o ideal para proporcionar boas condições de vida para a maior parte da população (50,8% dos domicílios do país não possuem coleta de esgoto e cerca 30% da população vive em moradias 106 Temas sociais e educacionais contemporâneos precárias) e precisam ser ampliadas e melhoradas, as políticas públicas de saúde vêm se aperfeiçoando ao longo dos anos e, na maior parte do tempo, contribuem de modo positivo para a promoção da saúde da população brasileira. De modo mais aplicado, podemos iniciar o tema da promoção da saúde integral e da qualidade de vida abordando os aspectos dos esti- los de vida e do cultivo de hábitos saudáveis na escola, na família e na comunidade. 4.1.1 Hábitos saudáveis e qualidade de vida Manter hábitos saudáveis e prevenir doenças e riscos não impactam apenas a vida das pessoas de modo individual, pois os be- nefícios têm grandes consequências na vida da população em geral e até no desenvolvimento de um país. É por isso que a promoção de tais hábitos e a prevenção de doenças e riscos fazem parte das políticas de saúde pública. No Brasil, o Ministério da Saúde teve importante papel para pro- mover a erradicaçãode diversas doenças por meio de campanhas na- cionais de vacinação e mantendo programas de assistência à saúde, sobretudo após a implantação do Sistema Único de Saúde, o SUS, por meio da Constituição de 1988. Sob o ponto de vista da promoção de hábitos saudáveis e da pre- venção de doenças, outras políticas públicas têm sido implementa- das, tais como campanhas antitabagismo e de combate ao consumo abusivo de drogas e álcool, campanhas de conscientização sobre pri- meiros sinais, sintomas e medidas de prevenção de diversas doenças potencialmente graves e, na esteira das ações de promoção da saúde, os programas de alimentação saudável implantados em escolas de educação básica. Adotar hábitos saudáveis, evitar os nocivos e melhorar a qualidade de vida são atitudes que podem, ao longo da vida, prevenir uma série de doenças e promover a manutenção e a restauração da saúde do organismo, assim como evitar o estresse, a ansiedade e outros males ligados à saúde emocional e mental. Pode ser difícil mudar alguns costumes, e a adoção de hábitos saudáveis pode acarretar um investimento maior de tempo e/ou O SUS foi criado para viabilizar na prática o dever do Estado de garantir, de modo universal e gratuito, o direito à saúde para a população. Seu Programa Nacional de Imunização (PNI) é reconhecido internacionalmente e dá acesso gratuito a todas as vacinas recomendadas pela OMS. O órgão possui também o maior sistema público de transplantes de órgãos do mundo, ofertando assistên- cia integral e gratuita para portadores de HIV e doentes de Aids, assim como para pacientes renais crônicos, com câncer, tuberculose e hanseníase, ges- tantes e recém-nascidos, entre outros. Infelizmente, durante a pandemia de COVID-19, a falta de planejamento estratégico do Governo Federal prejudicou o desempenho do PNI na prevenção das infecções por coronavírus no país. Saiba mais Promoção da saúde na escola 107 dinheiro. Entretanto, adotá-los pode fazer uma enorme diferen- ça na saúde, na qualidade de vida e na longevidade das pessoas e contribuir para a melhoria da vida em sociedade. Por isso, está entre as responsabilidades da escola ensinar, orientar e promover hábitos saudáveis, contribuindo para que os alunos os adotem e mantenham. A OMS elaborou e propôs o conceito de Escola Promotora da Saúde como uma estratégia para promover a saúde e a qualidade de vida nas comunidades. Seu objetivo, essencialmente, é que as escolas pro- porcionem a educação para a saúde e o ensino de habilidades para a vida, com foco na aquisição de conhecimento sobre adoção e manu- tenção de comportamentos e estilos de vida saudáveis; invistam na estruturação de ambientes escolares saudáveis, no sentido de contri- buir para a melhoria da qualidade de vida na escola e no seu entorno; e fortaleçam as dinâmicas de colaboração entre os serviços de saúde e de educação, com o objetivo de promover ações integradas em saú- de, alimentação, nutrição, lazer, atividade física e formação profissio- nal (OPAS, 2006). Com base na perspectiva da escola como centro promotor da saú- de integral e da qualidade de vida na comunidade escolar e em seu entorno, podemos levantar uma série de conteúdos e habilidades a serem desenvolvidos de modo teórico e prático nas instituições de ensino e que possam contribuir para a adoção de hábitos saudáveis, promovendo a saúde física, mental e social, além de colaborar para a melhoria da qualidade de vida. 4.1.2 Alimentação saudável na promoção da saúde Muita coisa mudou ao longo do tempo com relação ao tema alimentação saudável. Com o crescimento da indústria alimentícia, vem ocorrendo um aumento do consumo de alimentos processados e dos chamados ultraprocessados. Estudos científicos mais recentes têm demonstrado a ameaça que o consumo desse tipo de alimento representa para a saúde das popu- lações, por contribuir para um aumento de doenças como diabetes, hipertensão, doenças cardíacas e várias outras. 108 Temas sociais e educacionais contemporâneos be at s1 /S hu tte rs to ck Os alimentos ultraprocessados são riquíssimos em gordura, sal e açúcar. O recente relatório Alimentos e bebidas na América Latina: vendas, fontes, perfis de nutrientes e implicações, publicado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), revelou que as vendas de alimentos e bebidas ultraprocessados aumentaram 8,3% entre 2009 e 2014, e che- gou à estimativa de que cresceram 9,2% de 2014 a 2019 (OPAS, 2019). Você sabe o que são alimentos processados, ultraprocessados, mi- nimamente processados e in natura? Observe o quadro a seguir. Quadro 1 Tipos de alimentos Tipo de alimento Origem e características Processamento industrial Exemplos Consumo Locais de venda In natura Obtidos direta- mente de plantas ou animais. Nenhuma altera- ção ou processa- mento industrial. Folhas, frutos, leite e ovos. Consumidos em seu estado natural, por vezes sem embalagem. Feiras livres, sa- colões, varejões e quitandas. Não processados ou minimamente processados Obtidos de plan- tas e animais, preservam as vitaminas e nu- trientes originais (integrais) e sem adição de ingre- dientes. Mínimas alte- rações, como elimi- nação de partes não comestíveis, secagem, tritura- ção, torrefação, ebulição, congela- mento, pasteuri- zação. Arroz e feijão, café torrado e moído, leite pasteurizado e vegetais congelados. Geralmente embalados para consumo, sofreram mínimo processa- mento apenas para armazenamento e consumo seguro. Supermercados, mercadinhos, armazéns, mercearias, pa- darias, lojas de conveniência. (Continua) https://www.shutterstock.com/pt/g/beats1 Promoção da saúde na escola 109 Tipo de alimento Origem e características Processamento industrial Exemplos Consumo Locais de venda Processados Têm origem em plantas e animais, mas não preservam suas características originais. Rece- bem ingredien- tes e passam por processos que os tornam mais duráveis. Passam por etapas industriais que alteram seu estado natural, como adição de sal, óleo, açúcar ou vinagre, fermentação, defu- mação, cozimento etc. Enlatados, pães, queijos, conservas, frutas em calda, carnes salgadas e defumadas. Quase sempre em- balados, os rótulos desses produtos costumam indicar apenas dois ou três ingredientes. Se fossem proces- sados de modo caseiro, demanda- riam mais tempo e durariam menos. Supermerca- dos, mer- cadinhos, armazéns, mercearias, padarias, lojas de conveniên- cia, açougues. Ultraprocessados Preservam pou- co ou nada de elementos natu- rais. Cor, sabor, aroma e textura são produzidos artificialmente e possuem prazo de validade maior devido à adição de ingre- dientes. Pobres em nutrientes e em fibras e ricos em calorias vazias. Passam por vários processos indus- triais, recebendo grandes quanti- dades de ingre- dientes como sal, açúcar, gordura, amidos, além de produtos químicos como corantes, conservantes e/ ou estabilizantes artificiais. Refeições congeladas, refrigerantes, sucos indus- trializados, sal- gadinhos de pacote, doces industrializa- dos, bolachas recheadas, embutidos, fast-food, macarrão instantâneo, achocolata- dos, margari- na, salsichas, hambúrgue- res, batatas fritas, doces confeitados. Sempre embala- dos. Os rótulos costumam indicar muitos ingredien- tes, vários deles artificiais. São con- sumidos, em geral, do modo como são vendidos. Favorecem o alto consumo calórico. Supermerca- dos, mer- cadinhos, armazéns, mercearias, lojas de conveniência e lanchonetes. Fonte: Elaborado pela autora com base em Brasil, 2014. Os ultraprocessados, por meio dos aditivos acrescentados nos processos industriais, adquirem um sabor acentuado e “irresistível”, chamado de hipersabor, que induz ao consumo exagerado e facilita a dependência. Esses alimentos são apresentados em formatos e emba- lagens que facilitam sua ingestãoa qualquer hora e em qualquer lugar, dispensando o uso de pratos ou talheres e promovendo o consumo alimentar desatento, em frente à televisão, por exemplo, o que favore- ce maior consumo calórico e dificulta as interações familiares e sociais durante as refeições. Além disso, muitas vezes os ultraprocessados são vendidos na op- ção “tamanho gigante” e quase sempre são mais baratos que outros 110 Temas sociais e educacionais contemporâneos tipos de alimento, favorecendo o alto consumo de calorias vazias, ou seja, são muito pobres em nutrientes para o organismo e causam mui- to ganho de peso. Como mostra um estudo publicado em 2018 pelo periódico cientí- fico britânico The British Medical Journal, que examinou registros sobre as dietas de cerca de 105 mil adultos franceses durante um período de cinco anos, os indivíduos que consumiam mais alimentos ultraproces- sados tinham maiores riscos de doenças cardiovasculares, coronárias e cerebrovasculares. O aumento verificado foi de 6% a 18% no risco de câncer em geral e de até 22% na incidência de câncer de mama. Os alimentos ultraprocessados possuem etapas de produção, dis- tribuição e comercialização que podem ser nocivas ao meio ambiente, pois são produzidos em larga escala. Além disso, estimulam também monoculturas dependentes de agrotóxicos, fertilizantes químicos, con- somem grandes quantidades de água e energia, geram alta emissão de poluentes, demandam longos percursos em transporte, produzem grande quantidade de resíduos e causam grande descarte de emba- lagens no meio ambiente. Em outras palavras, até nossos hábitos ali- mentares podem, além de promover nossa própria saúde, contribuir para uma alimentação social e ambientalmente mais sustentável. Mas como ter uma alimentação saudável? Isso se baseia predomi- nantemente no consumo de alimentos in natura, não processados e minimamente processados, a chamada “comida de verdade”. Já os ali- mentos processados industrialmente precisam ser consumidos com muita moderação, enquanto os ultraprocessados devem ser evitados ao máximo, pois são os mais prejudiciais à saúde. Açúcar, sal e gordu- ras devem ser usados em pequenas quantidades na alimentação. E com relação à quantidade de alimentos e à proporção de cada tipo em cada refeição? Há algumas décadas, essa proporção era recomen- dada por meio da pirâmide alimentar, que representava a proporção de cada tipo de alimento a ser ingerido em uma refeição. No entanto, ao longo do tempo, com o avanço dos estudos ligados à nutrição, os carboidratos complexos, feitos de grãos integrais (não refinados) passaram a ser considerados mais saudáveis; o consumo de frutas e hortaliças ganhou mais destaque, e o consumo de carnes bran- cas passou a ser privilegiado em detrimento das carnes vermelhas. As gorduras saturadas e as gorduras trans passaram a ser evitadas, pois O documentário Super Size Me: a dieta do palhaço registra os impactos físicos e psicológicos de uma dieta compos- ta exclusivamente de ultraprocessados a que o diretor e protagonista do filme se submeteu a título de experimento. Morgan Spurlock fez, durante um mês, três refeições por dia em restaurantes fast food, ingerindo todos os itens do cardápio ao menos uma vez e consumindo o tamanho gigante (super size, em inglês) sempre que ofe- recido. A dieta resultou no consumo de 5.000 kcal diárias em média, o dobro do recomendado para um homem adulto. Ao final do experimento, ele ganhou 11,1 kg, um aumento de 13% na massa corporal, aumento substancial de colesterol, alterações de humor, dis- função sexual e acúmulo de gordura no fígado. Direção: Morgan Spurlock. EUA: The Con, 2004. Documentário Promoção da saúde na escola 111 podem obstruir as artérias e aumentar o colesterol ruim – elas deram lugar aos óleos considerados mais saudáveis, como o azeite. Atualmente, a pirâmide alimentar, como referência mundial de nutrição saudável, foi substituída por um prato alimentar que indica quanto de cada tipo de alimento deve ser consumido em cada refeição. O modelo foi criado por especialistas da Universidade de Harvard, nos EUA, e lançado em 2010, no âmbito das políticas públicas de saúde, integrando um guia nutricional chamado My plate (Meu prato). Ele re- comenda que a refeição seja composta conforme a figura a seguir, que ilustra o programa nutricional. Figura 1 Prato: alimentação saudável Grãos integrais Vegetais Frutas Proteínas saudáveis Fonte: Elaborada pela autora É claro que existem particularidades na composição e nos tipos de alimentos das dietas de cada lugar, uma vez que os hábitos ali- mentares são também construções culturais, baseadas em tradições culinárias locais. Há, ainda, tanto nas famílias quanto em instituições Visite o site em que é apresentada a composi- ção do prato recomen- dada pelo modelo Meu prato da Harvard School of Public Health. Em seguida, reflita: você cos- tuma se alimentar desse modo? Será que adotar esse modelo de alimen- tação acarreta um maior gasto com alimentação? Por quê? Disponível em: https://www. hsph.harvard.edu/nutritionsource/ healthy-eating-plate/translations/ portuguese/. Acesso em: 22 mar. 2021. Para refletir https://www.hsph.harvard.edu/nutritionsource/healthy-eating-plate/translations/portuguese/ https://www.hsph.harvard.edu/nutritionsource/healthy-eating-plate/translations/portuguese/ https://www.hsph.harvard.edu/nutritionsource/healthy-eating-plate/translations/portuguese/ https://www.hsph.harvard.edu/nutritionsource/healthy-eating-plate/translations/portuguese/ 112 Temas sociais e educacionais contemporâneos públicas como as escolas, impactos econômicos gerados pelas esco- lhas alimentares. Vários alimentos ultraprocessados, como biscoitos recheados, sal- gadinhos de pacote e macarrão instantâneo, costumam ser baratos, o que contribui para seu alto consumo. Por outro lado, vários tipos de verduras e frutas da estação também têm preços baixos e poderiam substituir os ultraprocessados com custo semelhante, mas com enor- me ganho nutricional e, ao mesmo tempo, evitando o consumo exage- rado de açúcar, sal e gordura. No geral, o aumento do consumo de vegetais em relação ao de car- boidratos, como cereais e massas, a preferência por grãos integrais aos refinados, a redução na participação das proteínas (principalmente a carne vermelha) na dieta diária, a diminuição do consumo de gorduras (em especial as chamadas saturadas, que são produzidas artificialmen- te), o aumento do consumo de água e a prática regular de atividades físicas são atitudes comprovadamente benéficas à saúde, podem pre- venir várias doenças e não necessariamente custam muito mais do que a dieta baseada em alimentos processados e ultraprocessados. Não podemos nos esquecer, ainda, das dimensões sociais da ali- mentação. O compartilhamento das refeições e as interações sociais com familiares, amigos e colegas durante o ato de comer são essenciais para a manutenção da saúde socioemocional, afinal: Seres humanos são seres sociais e o hábito de comer em com- panhia está impregnado em nossa história, assim como a divisão da responsabilidade por encontrar ou adquirir, preparar e cozi- nhar alimentos. Compartilhar o comer e as atividades envolvidas nesse ato é um modo simples e profundo de criar e desenvolver relações entre pessoas. Dessa forma, comer é parte natural da vida social. (BRASIL, 2014) Compartilhar as refeições contribui também para o senso de per- tencimento ao grupo, promove a boa convivência na escola e nos locais de trabalho e favorece que se coma de modo mais lento, atento e co- medido, aproveitando todo o sabor dos alimentos sem exageros. No sentido de adaptar os avanços científicos mundiais na área nutricional ao cardápio dos brasileiros, a pesquisadora Sônia Tucunduva Philippi propôs, em 2013, a Pirâmide Alimentar Brasileira: Os gastos com alimentação, se- gundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (FOP) 2017/2018, do Instituto Brasileiro de Pesquisae Estatística (IBGE), representam 22% do orçamento das famílias que ganham até dois salários mínimos (IBGE, 2019). Curiosidade Promoção da saúde na escola 113 PIRÂMIDE DOS ALIMENTOS Guia para escolha dos alimentos Dieta de 2.000 kcal Óleos gordurosos 1 porção Açúcares e doces 1 porção Leite, queijo, iogurte 3 porções Carnes e ovos 1 porção Feijões e oleaginosas 1 porção Arroz, pão, massa, batata, mandioca 6 porções Frutas 3 porções Legumes e verduras 3 porções Pratique atividade física, no mínimo 30 minutos diários Faça 6 refeições no dia (café da manhã, almoço e jantar, com lanches intermediários) Fonte: Philippi, 2013. A pirâmide é baseada nos princípios da variedade de alimentos, do equilíbrio entre os grupos de alimentos e da moderação no consumo deles. Os cereais e massas estão na base da pirâmide e, vários deles, como pão, arroz e bolacha, são integrais, devendo ter preferência no consumo por possuírem mais fibras. No entanto, pão branco, arroz branco, batatas, massas comuns e farinhas refinadas podem ser con- sumidos com moderação. A proposta é fracionar a alimentação diária em seis refeições e que se reduza bastante o consumo de carnes, gorduras e açúcar. A prática de atividades físicas regulares também é recomendada. 114 Temas sociais e educacionais contemporâneos Após analisar os dois modelos de alimentação apresentados, per- cebe-se que, no contexto escolar das instituições privadas – nas quais os lanches são enviados, em geral, pelas próprias famílias –, talvez seja viável cumprir as recomendações dos modelos. Mas será que é essa a realidade das merendas oferecidas nas escolas públicas de educação básica? Foi publicada, em 2009, a Lei n. 11.947, que trata do atendimento da alimentação escolar, assegurando “alimentação saudável e adequada” por meio do uso de “alimentos variados, seguros” e que “respeitem a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis” (BRASIL, 2009). Porém, as políticas de alimentação escolar são bem mais antigas. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) foi criado em 1955 e estabeleceu as diretrizes da alimentação escolar forneci- da pelo Estado aos alunos de educação básica, baseada em valores de referência da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), atualizadas regularmente e que recomendam, por exemplo, que crianças de 6 a 10 anos consumam 1.500 kcal diá- rias; de 11 a 15 anos, 2.175 kcal; e de 16 a 18 anos, 2.500 kcal diárias (FNDE, 2021). As necessidades nutricionais diárias referem-se à quantidade de energia de que precisamos para as funções do organismo fun- cionarem, possibilitando que desempenhemos as atividades coti- dianas. Se ingerirmos um excesso de calorias e não as gastarmos por meio de exercícios físicos e outras atividades, provavelmente ganharemos peso. Segundo Oliveira e Fisberg (2003), “a prevalência mundial da obe- sidade infantil vem apresentando um rápido aumento nas últimas dé- cadas, sendo caracterizada como uma verdadeira epidemia mundial”, o que tem ocasionado o crescimento de doenças como diabetes, pres- são alta e doenças cardiovasculares que, no passado, restringiam-se a adultos. No Brasil, levantamentos do IBGE (2019) apontam que uma em cada três crianças entre 5 e 9 anos está acima do peso, e os registros do Sis- tema de Vigilância Alimentar e Nutricional de 2019 revelam que 16,33% Para conhecer melhor as diretrizes do PNAE, acesse o site a seguir. Disponível em: https://www.fnde. gov.br/programas/pnae. Acesso em: 22 mar. 2021. Saiba mais Para conhecer a quanti- dade de calorias contidas em centenas de alimen- tos, acesse a página a seguir. Disponível em: https://www. tabeladecalorias.net/. Acesso em: 22 mar. 2021. Site https://www.fnde.gov.br/programas/pnae https://www.fnde.gov.br/programas/pnae https://www.tabeladecalorias.net/ https://www.tabeladecalorias.net/ Promoção da saúde na escola 115 das crianças brasileiras entre 5 e 10 anos estão com sobrepeso; 9,38%, com obesidade; e 5,22%, com obesidade grave. Quanto aos adolescen- tes, 18% apresentam sobrepeso; 9,53% são obesos; e 3,98% têm obe- sidade grave. Essa situação, segundo especialistas, deve-se às escolhas alimen- tares equivocadas, como o alto consumo de alimentos processados e ultraprocessados, e o sedentarismo, influenciado pela falta de exercí- cios regulares e pela substituição de brincadeiras que envolvem mo- vimentos corporais por jogos eletrônicos e outras atividades de lazer passivas. Atualmente, outra referência oficial importante é o Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde. Ele recomenda que as unidades escolares com período integral ofereçam alimentação que atenda, no mínimo, a 70% das necessidades nutri- cionais diárias das crianças e dos adolescentes, distribuídas em pelo menos três refeições. Segundo o mesmo documento (que destaca que as recomendações feitas por esse tipo de publicação precisam sempre considerar o ce- nário das transformações nos padrões alimentares das condições de saúde da população), uma alimentação saudável deve ser composta essencialmente de alimentos in natura – como frutas, hortaliças – ou minimamente processados – como arroz, feijão, carnes já cortadas e leite pasteurizado. Os alimentos processados devem ser consumidos em, no máximo, duas porções semanais e de até 110 calorias por porção. O guia traz ain- da diretrizes sobre a redução do consumo de açúcar, sódio e gordura. 4.1.3 Atividades físicas na promoção da saúde integral Vimos que os dois modelos de alimentação saudável apresentados recomendam atividades físicas regulares; um deles, o da Pirâmide Ali- mentar, até indica especificamente um mínimo de 30 minutos diários de exercícios físicos. E quais são os benefícios desses hábitos para a saúde física e mental? Quais são as contribuições das atividades físicas regulares para o desenvolvimento de crianças e adolescentes? Acesse o Guia Alimentar para a População Brasi- leira, desenvolvido pelo Ministério da Saúde. Disponível em: https://bvsms. saude.gov.br/bvs/publicacoes/ guia_alimentar_populacao_ brasileira_2ed.pdf. Acesso em: 22 mar. 2021. Leitura https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf 116 Temas sociais e educacionais contemporâneos Ra wp ixe l.c om /S hu tte rs to ck As atividades físicas são essenciais para a promoção da saúde integral de crianças e adolescentes. As atividades físicas são um componente essencial para a promo- ção da saúde integral, pois contribuem não só para a manutenção da boa saúde física como também para o equilíbrio mental e emocional e para um convívio social saudável, promovendo melhoria da qualidade de vida tanto dos adultos como das crianças e jovens. Quase todos têm uma ideia geral sobre os benefícios trazidos pelas atividades físicas à saúde do organismo, tais como controle do peso, aumento da força e da resistência muscular, fortalecimento de ossos e articulações e, menos conhecidos por todos, o controle da glicemia, a redução da pressão arterial e o fortalecimento do sistema imunológico. Outros benefícios das atividades físicas, mais especificamente aque- les voltados às dimensões psicológicas e emocionais, muitas vezes não são lembrados. Podemos citar a redução da ansiedade e do estresse, o aumento da disposição para as atividades cotidianas, a melhoria do sono, o aumento da agilidade mental e da capacidade de memorização, o aumento do bem-estar geral, promovido pela liberação do hormônio endorfina durante os exercícios, e a redução dos riscos de depressão. Uma pesquisa da Escola de Saúde Pública de Harvard descobriu que apenas 15 minutos de caminhada por dia reduzem os riscosde depressão em 26% (HARVARD HEALTH PUBLISHING, 2019). Ou seja, mesmo um período curto de atividade física é melhor do que nenhuma atividade. Quando jogamos futebol, handebol, corremos ou dançamos rapidamente por 15 minutos, gastamos cerca de 160 calorias. Essa é mais ou menos a quantidade de calorias fornecidas por duas bananas. Para gastar essa quantidade de calorias apenas com esforço mental, precisaríamos estudar de modo concentrado por 1 hora e 20 minutos (ATALLA, 2021). Curiosidade https://www.shutterstock.com/pt/g/Rawpixel Promoção da saúde na escola 117 Há ainda os benefícios sociais pela promoção de interação, sensa- ção de pertencimento e amizades, impactando também a saúde men- tal. Essas se dão não apenas por meio de atividades físicas coletivas, com a prática de esportes coletivos, mas também nas atividades indivi- duais praticadas em grupo, como é o caso das aulas de educação física na escola e das aulas de ginástica, dança etc., realizadas em academias e clubes. As atividades físicas na escola podem ser um excelente meio de pro- mover a saúde física, mental e social dos alunos. A disciplina de Educa- ção Física costuma ser pouco valorizada no currículo escolar, mas tem grande importância na formação integral dos alunos e na promoção e manutenção da sua boa saúde física, mental e social. Segundo a Resolução 218 do Conselho Nacional de Saúde, homolo- gada em 6 de março de 1997, o professor de Educação Física é conside- rado um profissional de saúde, devendo atuar na promoção da saúde e da qualidade de vida dos indivíduos com outros profissionais da área, como nutricionistas, fisioterapeutas, médicos e farmacêuticos, e contri- buir para o bem-estar, a autoestima e a integração das crianças e dos adolescentes ao meio em que vivem. Aulas de Educação Física bem planejadas e aplicadas podem favore- cer o desenvolvimento motor das crianças; facilitar a integração social de criança e adolescentes à comunidade escolar; ajudar na constru- ção da autoconfiança e da autoestima dos alunos e auxiliar em sua autoexpressão; contribuir para que eles compreendam suas mudanças corporais e os limites dos próprios corpos; reduzir a ansiedade e auxi- liar para que adotem um estilo de vida mais saudável e que proporcio- ne maior qualidade de vida. Muitas vezes, é nas aulas de Educação Física que surgem as melho- res oportunidades de lidar com as diferenças e aprender a conhecer e respeitar características e limitações físicas e mentais. Além disso, es- portes coletivos e atividades lúdicas corporais são um meio privilegiado para construir dinâmicas colaborativas entre os alunos e estimular a organização e as estratégias para alcançar objetivos comuns, a boa ges- tão de conflitos e as aprendizagens relacionadas ao enfrentamento das frustrações que ocorrem quando se perde um jogo ou não se alcança a performance física desejada. Amplie seus conhecimen- tos sobre como a prática de atividades físicas é benéfica para a saúde de crianças e adolescentes com a leitura do artigo Efeitos da atividade física para a saúde de crianças e adolescentes, de Paulo Vinícius Carvalho Silva e Áderson Luiz Costa Jr. Disponível em: http://www.unirio. br/cecane/arquivos/ARTIGO_ EfeitosAtividadeFisica.pdf. Acesso em: 22 mar. 2021. Leitura Na instituição em que você atua existe um planejamento, programa, projeto ou incentivo à prática de atividades físicas? Qual? Para refletir http://www.unirio.br/cecane/arquivos/ARTIGO_EfeitosAtividadeFisica.pdf http://www.unirio.br/cecane/arquivos/ARTIGO_EfeitosAtividadeFisica.pdf http://www.unirio.br/cecane/arquivos/ARTIGO_EfeitosAtividadeFisica.pdf 118 Temas sociais e educacionais contemporâneos Não é apenas o professor de Educação Física, no entanto, o respon- sável pela promoção da saúde e da qualidade de vida na escola. Todos os profissionais da escola devem exercer esse papel por meio de ações como oferta e orientação de escolha de alimentos saudáveis, práticas regulares de exercícios físicos na escola, orientação sobre estilos de vida saudáveis, ensino da prevenção de doenças e riscos, até apoio so- cioemocional aos alunos e em sua integração à comunidade escolar. 4.2 Prevenção de doenças e de riscos Vídeo Todos nós somos suscetíveis a doenças e estamos expostos a riscos de acidentes e outras situações que podem prejudicar a saúde física e mental. Como já vimos, manter um estilo de vida saudável, com alimenta- ção balanceada e nutritiva e praticar exercícios físicos regularmente, são medidas que previnem uma série de doenças e melhoram nossa atua- ção cotidiana. Entretanto, é preciso adotar outros hábitos para ampliar a proteção. 4.2.1 Medidas de higiene na prevenção de doenças Com o surgimento da pandemia de Covid-19, ficaram conhecidas as medidas de higiene para evitar a contaminação pelo coronavírus, como lavar as mãos com frequência, sobretudo antes das refeições e após usar o banheiro, desinfetar as mãos e as superfícies, não compartilhar objetos de uso pessoal, toalhas, copos, talheres etc., usar máscara e se manter afastado a pelo menos dois metros das outras pessoas. Essas medidas somadas a outras, como lavar bem os alimentos e só consumir água tratada, são efetivas também para evitar outras doenças causadas por vírus, além daquelas causadas por bactérias ou parasitas. 89 st oc ke r/ Sh ut te rs to ck Lavar frequentemente as mãos, esfregando entre os dedos, limpando unhas, dorso e palma e esfregando também os pulsos, evita a contaminação por doenças. Apesar do tempo recorde em que os esforços científicos mundiais conseguiram produzir vacinas contra a Covid-19, a velocidade de produção dos imunizantes mostrou-se insufi- ciente para que todos os grupos prioritários, entre os quais os professores e funcionários das escolas se encontram, fossem rapidamente vacinados, e os estudos sobre efeitos das vacinas em crianças e adolescentes foram deixados para uma se- gunda fase. Como enfrentar, no contexto escolar, os desafios que essa situação nos coloca? Para refletir https://www.shutterstock.com/pt/g/Tapanakorn Promoção da saúde na escola 119 É preciso estar atento também aos perigos de contaminação dos alimentos; além de bem lavados, eles devem ser bem cozidos e nunca deixados à temperatura ambiente por mais de duas horas. Utensílios usados para lidar com carne, frango e peixe devem ser bem lavados an- tes de tocarem outros alimentos, e utensílios que foram levados à boca não devem tocar na comida servida na mesa. Essas são regras simples de higiene que evitam a contaminação dos alimentos e a consequente intoxicação alimentar. Manter a higiene corporal e da moradia comple- mentam os cuidados contra doenças. As regras de higiene para prevenção de doenças devem ser aplica- das também em outros espaços, como a escola. Salas de aulas, banhei- ros e outros espaços escolares precisam estar sempre bem limpos, e as crianças e os adolescentes devem ser orientados e incentivados a lavarem as mãos com frequência. Para as crianças menores, tanto em casa como na escola, podem-se usar estratégias lúdicas como músicas que ensinam a lavar as mãos. Nos protocolos a serem seguidos na eventual retomada das aulas presenciais, a desinfecção de objetos e ambientes escolares é essencial para reduzir o risco de contaminação. É necessário considerar, porém, que nem todas as escolas têm estrutura, verbas e número de funcio- nários adequados para cumprir tais protocolos, e que as crianças me- nores têm dificuldade em respeitar regras como o uso de máscara e o distanciamento social. 4.2.2 Vacinação para prevenção de doenças Quando começam a frequentar a escola, as crianças ficam mais expostas a todo tipo de agentes patogênicos, isto é, microrganismos como vírus e bactérias que causam doenças. A principal medida para evitar as doenças que mais acometem as crianças, imunizando-as ou prevenindo sintomas graves, é vaciná-las adequadamente. O Estado, por meio do PNI, criado 1973, é responsávelpor ofertar vacinas nos postos de saúde e em campanhas de vacinação. Conheça as 18 vacinas ofertadas a crianças e adolescentes no Brasil no quadro a seguir. Conheça a canção Lavar as mãos, de Arnaldo An- tunes, interpretada pelo grupo Palavra Cantada. Ela é uma ótima música para utilizar com crianças no aprendizado de higie- nização das mãos. Disponível em: https://youtu.be/ CaTXgmHyMSk. Acesso em: 22 mar. 2021. Música 120 Temas sociais e educacionais contemporâneos Quadro 2 Vacinas do Calendário Nacional de Vacinação Vacina Doença(s) que previne Número de doses Idade(s) de vacinação BCG Tuberculose, meníngea e miliar Dose única Ao nascer Hepatite B Hepatite do tipo B Dose única Ao nascer (até 12 ou 24 horas de vida) DTP+Hib+HB (pentava- lente) Difteria, tétano, coqueluche, Haemophilus influenzae B, hepatite B Três doses Aos 2, 4 e 6 meses Poliomielite 1, 2, 3 Poliomielite ou paralisia infantil Três doses Aos 2, 4 e 6 meses Pneumocócica 10-va- lente Pneumonias, meningites, otites e sinusites Duas doses e um reforço Aos 2, 4 e 12 meses Rotavírus humano G1P1 Diarreia causada pelo rotavírus Duas doses Aos 2 e 4 meses Meningocócica C Meningite tipo C Duas doses e um reforço Aos 3, 5 e 12 meses Febre amarela Febre amarela Uma dose e um reforço Aos 9 meses e aos 4 anos Poliomielite 1 e 3 Polivírus tipo 1 e 3 Administrada como reforço em duas doses Aos 15 meses e aos 4 anos Difteria, tétano, pertussis Difteria, tétano e a coqueluche Administrada como reforço em duas doses Aos 15 meses e aos 4 anos Sarampo, caxumba, rubéola (tríplice viral) Sarampo, caxumba e rubéola Uma dose Aos 12 meses Sarampo, caxumba, rubéola e varicela (tetraviral) Sarampo, caxumba, rubéola e varicela (ou catapora) Uma dose (reforço da tríplice viral e 1ª de varicela) Aos 15 meses Hepatite A Hepatite tipo A Uma dose Aos 15 meses Varicela Varicela Uma dose (2ª dose) Aos 4 anos Difteria, tétano Difteria e tétano Uma dose A partir de 7 anos e, depois, de 10 em 10 anos Papilomavírus humano (HPV) Doenças causadas por papilo- mavírus humano 6, 11, 16 e 18 Duas doses com 6 meses de diferença entre as doses Meninas entre 9 a 14 anos e meninos entre 11 e 14 anos Pneumocócica 23-va- lente Meningites bacterianas, pneu- monias, sinusite Uma dose Apenas em indígenas a partir de 5 anos sem comprovação vacinal Influenza Influenza ou gripe comum Uma ou duas doses anuais Grupos prioritários defini- dos na campanha anual de vacinação Fonte: Elaborado pela autora com base em Castro, 2020. Promoção da saúde na escola 121 As famílias precisam garantir que crianças e adolescentes sejam va- cinados com todas as vacinas obrigatórias nas idades corretas. A escola tem o papel de ajudar a conscientizar as famílias sobre a importância da vacinação das crianças e dos adolescentes. Apesar de o Ministério da Educação destacar que apoia as ações de verificação da situação vacinal e a ação das escolas na orientação das famílias sobre a importância da vacinação e dos cuidados com a saúde, não há legislação federal específica que obrigue a exigência da carteiri- nha de vacinação para a matrícula escolar de crianças e adolescentes. No entanto, muitas escolas adotam tal procedimento, e no estado de São Paulo, desde 2020, a Lei 17.252 obriga a apresentação da carteira de vacinação no ato da matrícula escolar. 4.2.3 Prevenção de riscos Além da prevenção de doenças, a prevenção de riscos é componen- te importante da promoção da saúde integral. Todos nós estamos sujeitos ao risco, por exemplo, de sofrer aciden- tes, tanto domésticos, como quedas, cortes e queimaduras, quanto aci- dentes de trabalho envolvendo equipamentos e, ainda, os que podem ocorrer durante deslocamentos, como atropelamentos e acidentes de carro. Se nós adultos temos de estar atentos à prevenção de acidentes, seja em casa ou na rua e no trabalho, o cuidado deve ser redobrado quando se trata de crianças. Orientar e monitorar as crianças e ado- lescentes no sentido de evitar os acidentes é tarefa nossa, porque eles estão ainda aprendendo sobre os perigos que os cercam e, sobretudo na primeira infância, ainda não possuem habilidades motoras globais plenamente desenvolvidas. A ONG brasileira Criança Segura, integrante da organização inter- nacional Safe Kids, afirma que mais de 3 mil crianças são vítimas de acidentes fatais no país todos os anos, e que, em 2018, o total chegou a 3.318, das quais metade tinham de 0 a 4 anos, o que indica que é muito importante um engajamento de toda a sociedade na prevenção de acidentes na primeira infância. Segundo a organização, os tipos de acidente que mais provocam mortes na infância são sufocamentos, afogamentos e acidentes de trânsito, seguidos de queimaduras, que- Você sabia que há regulamen- tações municipais e estaduais sobre ministrar medicamentos a alunos em escolas? Em geral, é obrigatória a receita médica; em alguns casos, é necessário autorização dos responsáveis e envio da medicação com identificação. Seja qual for o procedimento adotado, o ideal é evitar medicar os alunos na escola, já que a instituição pode ser responsabilizada por qualquer efeito adverso. Quan- do o caso não é de medicação contínua, mas de acidente ou mal-estar, o melhor é pedir à família que busque o aluno. Em emergências, pode-se acompanhar a criança ao hospital mais próximo, comunicando o procedimento à família. Curiosidade 122 Temas sociais e educacionais contemporâneos das, intoxicações e acidentes com armas de fogo. (CRIANÇA SEGURA BRASIL, 2021). As crianças passam a maior parte ou a totalidade de seu tempo em casa, com familiares, e na escola. Esses são, portanto, os dois espa- ços em que os adultos precisam estar atentos para minimizar os riscos de acidentes. É preciso evitar que as condições que propiciam risco de acidentes estejam presentes tanto em casa quanto na escola, isto é, as crianças pequenas não podem ter acesso livre a sacos plásticos ou outros materiais que podem provocar sufocamento; a recipientes com água, piscinas etc.; a produtos de limpeza, higiene ou outros produtos químicos que possam causar intoxicação; a substâncias abrasivas, que produzam chamas; ou a qualquer dispositivo elétrico que possa aque- cer, produzir fogo ou mesmo causar choques elétricos, como tomadas. Tanto em casa como na escola, é preciso manter a limpeza e evitar ter superfícies ou pisos escorregadios ou usar produtos que possam fa- cilitar as quedas, sendo essencial manter as crianças longe de escadas, rampas, janelas ou outros locais altos. Por fim, armas de fogo devem ser sempre guardadas em local trancado e inacessível às crianças e aos adolescentes. Segundo a Sociedade Brasileira de Salvamento Aquático (SZPILMAN, 2019), a cada 92 minutos morre um brasileiro por afogamento, sendo que adolescentes são os que têm maior risco de morte. No Brasil, o afogamento é a segunda causa de mortes de crianças de 1 a 4 anos e a terceira na faixa dos 5 aos 14 anos; 52% dos afogamentos de crianças de 1 a 9 anos acontecem em piscinas residenciais. O afogamento de uma criança pode ocorrer durante poucos segun- dos de desatenção, por isso a supervisão atenta é a melhor prevenção. Conforme Szpilman (2019), os maiores fatores de risco para afogamen- to – além da faixa etária de 1 a 14 anos, a falta de supervisão e o com- portamento de risco – são a baixa renda e o baixo nível educacional, ou seja, a escola tem papel determinante na orientação para a prevenção de afogamentos. Segundo Gomes et al. (2010), no ambiente escolar o tipo de aciden- te com maior incidência é o trauma provocado por quedas, que pode gerar fraturas e lesões graves. O risco desse tipo de acidente durante atividades esportivas é maior, mas isso não exclui as ações de preven- ção relacionadas a outros momentos e espaços escolares, sobretudo Você sabia que crianças pequenas podem se afogar em apenas 2,5 cm de profundi- dade? O risco de afogamento não existe apenas em piscinas,lagos, rios etc., mas também em piscinas infantis, banheiras, bacias, baldes, vasos sanitários abertos e outros recipientes ra- sos. Bebês e crianças pequenas têm a cabeça e os membros superiores mais pesados que o restante do corpo, o que facilita o afogamento. Em apenas 2 segundos, uma criança pode ficar submersa em uma banheira, e 2 minutos são suficientes para que crianças de até 2 anos, quando submer- sas, percam a consciência; a permanência de 4 a 6 minutos nessa situação pode causar danos cerebrais irreversíveis (BRASIL, 2003). Saiba mais Promoção da saúde na escola 123 na hora do recreio, e à promoção da orientação dos alunos quanto aos riscos de acidentes. Prevenção de riscos na adolescência A prevenção de riscos não se relaciona apenas a acidentes. Há ou- tros que atingem sobretudo adolescentes e jovens, mas, em alguns ca- sos, também as crianças, e que são igualmente perigosos. Esses riscos perpassam todas as classes sociais, mas costumam atingir principal- mente os que se encontram em maior vulnerabilidade social. Sem pre- venção, há o risco de jovens prejudicarem seriamente sua saúde física e mental, seu rendimento nos estudos, seus relacionamentos familia- res e sociais, bem como seu futuro pessoal e profissional. Alguns desses riscos são relacionados às atividades sexuais sem proteção e, muitas vezes, iniciadas precocemente e sem a devida orien- tação, tais como as doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e a gra- videz na adolescência. Outros riscos estão ligados ao fumo, ao abuso de drogas e álcool, bem como à vulnerabilidade à violência familiar e social, que põe em risco a integridade física e mental de crianças e adolescentes. M on ke y B us in es s Im ag es /S hu tte rs to ck Na adolescência, a prevenção de riscos se amplia e se torna mais complexa. Surge a possibilidade de fatores como o abuso de drogas e álcool, DSTs e gravidez precoce. A OMS define adolescência como o período da vida que se inicia aos 10 anos e acaba aos 19 anos completos, sendo dividida em duas fases: a pré-adolescência, entre os 10 e os 14 anos e a adolescência, entre 15 e 19 anos completos; já a juventude vai dos 15 aos 24 anos. A faixa Para conhecer as princi- pais dicas de primeiros socorros na escola, leia o texto Primeiros socorros nas escolas: como prepa- rar professores para lidar com emergências. Disponível em: https:// cmosdrake.com.br/blog/ primeiros-socorros-nas-escolas- como-preparar-professores-para- lidar-com-emergencias/. Acesso em: 22 mar. 2021. Leitura O primeiro livro dedicado ao tema da adolescência surgiu em 1904, escrito pelo médico estadunidense G. Stanley Hall. O autor propôs uma analogia entre o desenvolvimento do ser huma- no ao longo da vida e a evolução da espécie humana, como se cada indivíduo vivesse desde o primitivismo animal – na infância – até a vida civilizada – na maturidade – e descreveu a adolescência como um período turbulento, de extrema tensão, em que as pessoas oscilam entre a extrema energia e a apatia. Para o autor, essa era uma fase da vida perigosa e trabalhosa e que demandava proteção. Curiosidade https://www.shutterstock.com/pt/g/stockbroker https://cmosdrake.com.br/blog/primeiros-socorros-nas-escolas-como-preparar-professores-para-lidar-com-emergencias/ https://cmosdrake.com.br/blog/primeiros-socorros-nas-escolas-como-preparar-professores-para-lidar-com-emergencias/ https://cmosdrake.com.br/blog/primeiros-socorros-nas-escolas-como-preparar-professores-para-lidar-com-emergencias/ https://cmosdrake.com.br/blog/primeiros-socorros-nas-escolas-como-preparar-professores-para-lidar-com-emergencias/ https://cmosdrake.com.br/blog/primeiros-socorros-nas-escolas-como-preparar-professores-para-lidar-com-emergencias/ 124 Temas sociais e educacionais contemporâneos etária considerada no Brasil como correspondente à adolescência é, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069/1990, a faixa de 12 a 18 anos de idade. Em casos excepcionais e quando dis- posto na lei, o estatuto é aplicável até os 21 anos de idade. Pesquisadores australianos, porém, defenderam recentemente, em artigo científico publicado na Lancet Child & Adolescent Health, que a adolescência, diferentemente do que propõe a OMS, vá dos 10 aos 24 anos. Adiantar o início do período reconhecido como adolescência se deve, sobretudo, a aspectos físicos, como o fato de que a puberdade – fase de desenvolvimento do organismo humano que começa quando o hipotálamo (parte do cérebro) ativa a glândula hipófise e as gônadas, que, entre outras funções, liberam hormônios sexuais, e que se inicia- va, até há algumas décadas, aos 14 anos, em média – tem se iniciado cada vez mais cedo, por volta dos 10 anos. Já a postergação do término da adolescência é relacionada a as- pectos ligados mais a fatores sociais e psicológicos. Conforme Susan Sawyer, diretora do Centro para a Saúde do Adolescente do Hospital Royal Children’s em Melbourne, na Austrália, atualmente a fase de “semidependência” dos adolescentes se estende até pelo menos os 24 anos, pois os jovens têm adiado o prazo para assumirem respon- sabilidades da vida adulta, como atuação no mercado de trabalho, independência financeira, saída da casa da família e, eventualmente, casamento e maternidade/paternidade. É preciso destacar, entretanto, que outros cientistas – como Jan Macvarish, socióloga da Universidade de Kent – apontam o perigo de se estender demais a adolescência e acabar promovendo uma infanti- lização dos jovens com base nas expectativas sociais mais baixas em relação a eles (SILVER, 2018). No Brasil, o documento Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, o qual traz resultados de pesquisa do IBGE realizada entre 2002 e 2012 (IBGE, 2013), revela que os jovens têm permanecido por cada vez mais tempo na casa dos pais. O fenômeno diz respeito aos indivíduos entre 25 e 34 anos, que foram nomeados como geração canguru pelo instituto em alusão à proximida- de que o filhote desse marsupial tem com a mãe, permanecendo quase dois anos em sua bolsa depois de nascido. Promoção da saúde na escola 125 Ao mesmo tempo, boa parte dos adolescentes brasileiros sofre pres- sões socioeconômicas e é impelida a contribuir com a renda familiar, afastando-se dos estudos e de outras atividades próprias da sua idade para se dedicar ao trabalho, muitas vezes precário e mal remunerado. É preciso considerar que a adolescência, no sentido de período com características próprias, é uma construção histórica e cultural e nem sempre existiu de maneira definida como temos atualmente, nem era contemplada com um estatuto social e legal específico. É relativamen- te recente a demarcação de um período caracterizado pela transição entre a infância e a vida adulta e que requer determinados cuidados. Sob o ponto de vista da vida sexual e reprodutiva, a puberdade e o início do interesse pelo tema da sexualidade inicia-se naturalmente na adolescência. Os riscos aparecem porque, com pouco conhecimento sobre o próprio organismo e o sistema reprodutivo e sem orientação adequada, muitas vezes os adolescentes iniciam a vida sexual precoce- mente e de modo irresponsável, sem saberem se prevenir de doenças sexualmente transmissíveis e da gravidez precoce. Por outro lado, a adolescência é, sob a perspectiva psicológica e até mesmo da estrutura e das dinâmicas cerebrais, caracterizada pela impulsividade, pela busca de prazeres imediatos sem medir as conse- quências e por comportamentos de risco. Nesse contexto, os riscos psicossociais, como abuso de álcool e drogas e a dependência química, bem como o envolvimento com violência, são mais altos nessa faixa etária. Pode ser bastante difícil, para um adolescente, resistir à curiosidade e ao impulso de “experimentar coisas novas” ou mesmo recusar com- portamentos de grupo, uma vez que nesse período a necessidade de pertencimento, de se sentir aceito pelo grupo,é muito forte e leva ao comportamento de risco, o que pode colocar o adolescente também em estados de vulnerabilidade a acidentes e à violência, como brigas e abuso sexual, e à contaminação por DSTs. Os adolescentes e jovens – ainda no processo de construção de suas identidades e de seu lugar no mundo – estão muito sujeitos aos apelos da propaganda e do consumismo, aos modismos e aos modelos veicu- lados pela mídia e pelas redes sociais. O risco de seguir determinados modelos e papéis e perder o controle sobre a própria vida é bastante alto. Segundo Feijó e Oliveira (2001, p. 2): Considerando o que você estudou até aqui e a sua própria vivência, propomos a seguinte reflexão: por que será que a adolescência é um período tão sujeito a riscos? Para refletir Comportamento de risco é a tendência a participar de ativida- des que podem comprometer a saúde e a integridade física e mental do adolescente. Abusar de álcool ou drogas, dirigir em alta velocidade, manter relações sexuais sem proteção, fazer dietas “malucas”, tomar medicação forte sem prescrição médica, manter-se por opção em locais públicos perigosos etc. são exemplos de comportamen- tos de risco. Saiba mais 126 Temas sociais e educacionais contemporâneos Diferentemente dos adultos, as crianças e os adolescentes estão mais suscetíveis à influência de modelos apresentados pela mídia, na razão direta de sua faixa etária e desenvolvimento. Crianças de 2 a 8 anos de idade estão em maior risco da influên- cia de modelos de violência, enquanto na pré-adolescência a in- fluência sobre comportamento sexual e uso de drogas é mais significativa. Durante o processo da adolescência, os jovens es- tarão mais vulneráveis às influências externas, tornando-se um alvo mais direto da mídia, principalmente quando modelos de funcionamento adulto estão ausentes na família. As consequências do comportamento de risco por imitação de pa- drões e modelos podem levar, também, a outros transtornos preju- diciais à saúde física e mental dos adolescentes, como é o caso dos transtornos alimentares e dos comportamentos compulsivos. Sa m W or dl ey /S hu tte rs to ck Transtornos alimentares, como anorexia e bulimia (ligados a distorções da imagem corporal), e compulsões alimentares têm, segundo a OMS, prevalência de 10% na faixa etária dos adolescentes. Meninas têm três vezes mais riscos de adquirir tais doenças. Os autores destacam que: O pensamento mágico do adolescente facilita sua identificação com personagens e, frequentemente, existe uma simplificação e “garantia” de que os problemas adversos serão resolvidos, culminando em mais um “final feliz”. Outro aspecto importante nesse padrão de influência refere-se aos modelos nutricionais, de beleza e de saúde que, muitas vezes, são incompatíveis com as condições socioeconômicas do jovem ou com sua fase de https://www.shutterstock.com/pt/g/Sam+Aus Promoção da saúde na escola 127 crescimento, ocasionando transtornos alimentares, deficiências nutricionais, sentimento de frustração e alterações na imagem corporal. (FEIJÓ; OLIVEIRA, 2001, p. 2) É nesse cenário que a orientação esclarecida e adequada, exercida de maneira responsável pelos profissionais da escola, pode ser fun- damental para evitar ou reduzir riscos nessa faixa etária. A criação e a manutenção de vínculos de respeito, honestidade e confiança mútua entre a equipe pedagógica e os adolescentes são essenciais para aju- dar os alunos a superarem as dificuldades dessa fase de amadureci- mento físico, emocional, mental e social. 4.3 Promoção da saúde integral na escola Vídeo A saúde integral pode ser promovida transversalmente por meio de vários tipos de estratégias e envolver toda a comunidade escolar, partir dos eixos orientadores ou temas presentes nos currículos de dis- ciplinas como Biologia, Química, Educação Física e várias outras, como História, Geografia, Sociologia e Filosofia, podendo integrar: • Ações de orientação pedagógica, tanto individuais quanto cole- tivas, em sala de aula – para esclarecimento geral sobre temas ligados à promoção da saúde física, mental/emocional e social – ou em atendimentos ao aluno, nos casos em que se perceba que ele apresenta sinais de que pode estar desenvolvendo sintomas de doenças e/ou transtornos, sinais de comportamento de risco ou de estar vivendo em contexto de violência etc. • Ações de formação docente nos temas ligados à promoção da saúde e prevenção de riscos, incluindo a orientação sobre a iden- tificação de sintomas e principais sinais que revelam doenças, transtornos ou situações de risco pelos quais os alunos possam estar passando, bem como de orientações sobre gerenciamento do estresse laboral dos próprios docentes e maneiras de reduzi- -lo, além de esclarecimentos sobre as principais doenças decor- rentes do trabalho docente. • Projetos interdisciplinares e campanhas escolares envolvendo os alunos, os docentes de várias disciplinas e/ou a comunidade es- colar e as famílias dos alunos, como projetos de pesquisa sobre: sintomas e tratamentos de determinadas doenças; causas e con- sequências de problemas como obesidade, drogadição, gravidez na adolescência; afogamento e outros acidentes; funcionamento 128 Temas sociais e educacionais contemporâneos do SUS e dos postos de saúde do município; funcionamento das campanhas de vacinação; causas e consequências de transtornos alimentares, entre outros. Os projetos interdisciplinares podem ainda ter origem em assuntos atuais que estejam sendo explo- rados pela mídia, como é o caso da pandemia de Covid-19, ou ainda de personalidades históricas ou da atualidade que enfren- taram algum tipo de doença ou transtorno. As campanhas na es- cola e na comunidade podem abordar o esclarecimento sobre: alimentação saudável; prevenção de riscos de doenças ligadas à obesidade; prevenção do risco de suicídio na adolescência; con- sequências para a saúde do consumo de cigarros e de bebidas alcoólicas; prevenção do abuso de drogas; benefícios das ativida- des físicas regulares para a boa saúde física e mental; prevenção de riscos de acidentes; gerenciamento dos comportamentos de risco e prevenção da violência na escola; entre outros temas im- portantes no contexto da promoção da saúde integral. • Estudos voltados à observação em postos de saúde, hospitais, centros de assistência e de prevenção a acidentes e riscos e ou- tros locais dedicados à promoção da saúde, no sentido de colocar os alunos em contato com a realidade do atendimento à saúde no município e ouvir o que os profissionais envolvidos têm a rela- tar, bem como suas orientações sobre prevenção ou tratamento de doenças, acidentes e outros aspectos. • Palestras de especialistas – médicos, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, psicoterapeutas, funcionários municipais de departa- mentos ligados ao atendimento de saúde, voluntários em grupos de apoio a dependentes químicos e casas de acolhimento etc. – com o objetivo de esclarecer alunos, docentes, funcionários e, por vezes, as famílias dos alunos sobre questões relevantes da área da saúde física, mental e social, esclarecer sintomas e sinais a serem identificados e conhecer os tratamentos e as medidas de mitigação de doenças e transtornos mais comuns, sobretudo os que afetam crianças e adolescentes. • Desenvolvimento multidisciplinar de conteúdos curriculares das disciplinas de modo a articular temas de Ciências e Biologia, Edu- cação Física etc., diretamente ligados aos temas da saúde, a con- teúdos de História, Geografia, Sociologia, Filosofia, Arte etc., que contextualizam histórica, social e culturalmente os temas e con- Promoção da saúde na escola 129 tribuem para perpassar o debate com aspectos éticos, das desi- gualdades sociais, econômicas e regionais, entre outros. Para subsidiar, sob o ponto de vista do conteúdo e das diretrizes de aplicação, as diversas ações de promoção da saúde integral na escola indicadas anteriormente, trazemos, aseguir, uma ampliação dos co- nhecimentos sobre dois dos subtemas mais relevantes no cenário das temáticas transversais da saúde em ambiente escolar: a alimentação escolar e a prevenção de doenças e riscos na adolescência. 4.3.1 Alimentação escolar O PNAE atende os alunos da educação básica, de educação infantil ao ensino médio, incluindo a Educação de Jovens e Adultos (EJA), matri- culados em escolas públicas, filantrópicas e comunitárias conveniadas com o Estado. O programa atinge mais de 97% das escolas públicas urbanas e 98% das rurais do país e objetiva atender às necessidades nutricionais dos alunos e incentivar a prática de hábitos alimentares saudáveis durante sua permanência na escola. M on ke y B us in es s Im ag es /S hu tte rs to ck Por meio do PNAE, o governo federal repassa a estados, municípios e escolas federais valores financeiros suplementares para a cobertura da alimentação escolar de 200 dias letivos, conforme o número de ma- triculados em cada rede de ensino apurado no censo escolar do ano anterior. Os repasses do programa são monitorados e fiscalizados pela sociedade por meio de Conselhos de Alimentação Escolar, pelo Fun- https://www.shutterstock.com/pt/g/stockbroker 130 Temas sociais e educacionais contemporâneos do Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), pelo Tribunal de Contas da União (TCU), pela Controladoria-Geral da União (CGU) e pelo Ministério Público. Com o objetivo de estimular o desenvolvimento econômico susten- tável das comunidades, a Lei 11.947/2009 determina que 30% do valor repassado pelo PNAE às escolas deve ser obrigatoriamente investido na compra direta de produtos da agricultura familiar (BRASIL, 2009). Entretanto, apesar das diretrizes do PNAE indicarem a distribuição de uma alimentação saudável e balanceada na merenda escolar, nem sempre é isso que ocorre na prática. Na rede privada cada escola tem autonomia para planejar e ofe- recer a alimentação. Grande parte das escolas possui cantinas com alimentos à venda e facultam às famílias a decisão de enviar ou não lanches de casa. Em geral, as escolas particulares seguem as diretrizes para a alimentação saudável, limitando a oferta de doces, refrigeran- tes e frituras nas cantinas, disponibilizando cardápios mais saudáveis e orientando as famílias sobre o envio de frutas, pães integrais e sucos naturais no lugar de biscoitos, salgadinhos e refrigerantes. A alimentação escolar, tanto na rede pública quanto na privada, deve fazer parte da proposta pedagógica das escolas e ser pautada pela formação dos hábitos alimentares saudáveis, sem esquecer as di- mensões sociais e culturais das práticas alimentares e os valores cultu- rais, sociais e afetivos dos alunos e das suas famílias, tão importantes para seu desenvolvimento integral. A merenda escolar pode ser o eixo de estratégias de promoção da alimentação saudável na escola. Para isso é preciso, porém, que a merenda também siga as diretrizes da ali- mentação saudável, sendo um exemplo para os alunos. Em uma iniciativa recente de alunos de ensino médio de vários es- tados do país, intitulada Diário da Merenda, utilizando-se as redes so- ciais Facebook e Instagram, foi realizada uma série de denúncias em que os próprios alunos postavam fotos mostrando a má qualidade nu- tricional das refeições oferecidas nas escolas públicas brasileiras, com vários exemplos de ofertas de alimentos prontos, comida enlatada, bis- coitos, achocolatados, barrinhas de cereais e sucos artificiais. Por outro lado, há escolas que planejam minuciosamente o cardá- pio, as compras de alimentos, sua conservação e preparo, ofertando O valor repassado pelo governo federal a estados e municí- pios por dia letivo para cada aluno é estabelecido conforme a modalidade de ensino e cor- responde atualmente à seguinte distribuição: • Creches: R$ 1,07. • Pré-escola: R$ 0,53. • Escolas indígenas e quilombo- las: R$ 0,64. • Ensino fundamental e médio: R$ 0,36. • EJA: R$ 0,32. • Ensino integral: R$ 1,07. • Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral: R$ 2,00. • Alunos que frequentam o Atendimento Educacional Especializado no contraturno: R$ 0,53 (FNDE, 2021). Saiba mais Para conhecer a ação dos alunos na página Diário da Merenda, acesse o link a seguir. Disponível em: https://www. facebook.com/diariodamerenda/. Acesso em: 23 mar. 2021. Curiosidade https://www.facebook.com/diariodamerenda https://www.facebook.com/diariodamerenda Promoção da saúde na escola 131 merendas de excelente qualidade nutricional, atraentes aos olhos e ao paladar. Essas escolas integram a merenda escolar ao projeto pedagógico, com a preocupação em orientar os alunos quanto à manutenção de hábitos alimentares saudáveis, e dão treinamento e apoio aos profis- sionais que são os principais responsáveis pela alimentação escolar: as merendeiras. Várias dessas escolas compram boa parte dos alimentos de produtores locais e algumas delas usam vegetais plantados em hortas escolares. Para reconhecer os esforços dessas escolas, o Ministério da Saúde lançou em 2016 um concurso nacional – Melhores Receitas da Alimen- tação Escolar – para premiar as escolas que se saem melhor na tarefa de ofertar alimentação adequada aos alunos e no sentido de reconhe- cer a importância da escola como local privilegiado de formação de há- bitos alimentares saudáveis. Ainda em 2016, a receita vencedora da região Norte foi arroz de cuxá com charque, da merendeira Maria Arlete da Silva, funcionária da Escola Municipal de Ensino Fundamental Novo Horizonte, em Pa- rauapebas, no Pará. Boa parte dos ingredientes do prato são plantados na horta da escola. Já na região Sul a receita vencedora foi criada du- rante a prova prática do concurso para merendeira da Escola Municipal Dom Pedro II – Educação Infantil e Ensino Fundamental, de Matelân- dia, no Paraná, submetida por Maria de Lurdes Fidelis. O prato é muito criativo: torta de arroz nutritiva, incluindo ingredientes como brócolis, salsinha e cebolinha, que não costumam ser muito apetitosos para as crianças, mas que na torta fazem o maior sucesso. No Centro-Oeste a receita escolhida foi torta saborosa de batata doce com peixe; no Sudeste, bolo salgado de arroz; e no Nordeste, aba- rá de carne moída com aipim. Note que, na maioria das receitas, podemos perceber nitidamente a inspiração das culturas culinárias regionais e a presença de ingredien- tes locais, que fazem parte da dieta das comunidades nas quais as es- colas estão inseridas, sem deixar de se atentar para o valor nutritivo e para os ingredientes in natura e minimamente processados, conforme as diretrizes do PNAE. A estratégia da horta escolar é uma excelente opção para ensinar aos alunos conhecimentos teóricos e práticos sobre o cultivo e o uso Conheça o projeto interdisciplinar de horta escolar desenvolvido em uma escola estadual de Aracaju, em Sergipe, em parceria com a Embrapa Tabuleiros Costeiros, por meio do Programa Embrapa & Escola. Disponível em: https://www. embrapa.br/busca-de-noticias/-/ noticia/43557016/horta-escolar- estimula-o-protagonismo-e-a- alimentacao-saudavel. Acesso em: 12 abr. 2021. Saiba mais https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/43557016/horta-escolar-estimula-o-protagonismo-e-a-alimentacao-saudavel https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/43557016/horta-escolar-estimula-o-protagonismo-e-a-alimentacao-saudavel https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/43557016/horta-escolar-estimula-o-protagonismo-e-a-alimentacao-saudavel https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/43557016/horta-escolar-estimula-o-protagonismo-e-a-alimentacao-saudavel https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/43557016/horta-escolar-estimula-o-protagonismo-e-a-alimentacao-saudavel 132 Temas sociais e educacionais contemporâneos dos alimentos, assim como as práticas culinárias podem ser ótimas es- tratégias para incentivar a inserção dos alimentos advindos da horta,ou mesmo comprados de produtores locais, na alimentação, o que incentiva hábitos saudáveis. É preciso considerar ainda que, sob o ponto de vista da segurança alimentar e dos direitos das crianças e adolescentes à alimentação adequada, a merenda escolar é, para muitas crianças matriculadas na rede pública de ensino, a principal e, por vezes, a única fonte de nutrientes para seu desenvolvimento, pois suas famílias não têm condições materiais de prover a quantidade e a qualidade de refei- ções adequadas. Um estudo conduzido pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) revelou que a alimentação escolar é con- siderada a principal refeição do dia para 56% dos alunos da região Norte e para 50% daqueles da região Nordeste. No estudo chegou- -se à estimativa de que 15% a 20% dos alunos omitem pelo menos uma refeição diária (STURION et al., 2005). 4.3.2 Prevenção de doenças e riscos na adolescência Com relação aos adolescentes, a prevenção de doenças e riscos na escola deve estar pautada pela orientação, pela atenção às mu- danças de comportamento e outros sinais que eles possam apre- sentar e pela boa comunicação com as famílias, contribuindo para a melhor compreensão das necessidades dos jovens e seu encami- nhamento ao atendimento especializado quando necessário. Os educadores (e também as famílias) devem estar muito aten- tos a sinais que apontem para problemas pelos quais o adolescente possa estar passando, como violência na escola ou em casa, trans- tornos do humor, depressão e outras doenças que possuem o poder de ampliar os riscos de suicídio, assim como revelam que ele está com dificuldades muito grandes de relacionamento ou autoacei- tação, está abusando de remédios, álcool ou drogas, entre outros problemas sérios para os quais ele precisará de muito apoio para superar. Promoção da saúde na escola 133 M on ke y B us in es s Im ag es /S hu tte rs to ck São sinais aos quais se deve prestar atenção: mudanças bruscas de comportamento e/ou desempenho escolar; alterações de humor e/ou aumento da ansiedade e irritabilidade; tendência ao isolamento na escola e/ou em relação à família; passar a praticar ou ser vítima de bullying na escola ou por meios virtuais; demonstrações de agressivi- dade; crises de choro repentinas; perda de autoestima, como mostrar mudanças nos padrões de higiene (ir sujo para a escola, por exemplo); perda de interesse em atividades que gostava de fazer; apresentar sintomas de transtornos de sono, como dormir sistematicamente du- rante as aulas e/ou passar a ter olheiras acentuadas, ou alimentares, com emagrecimento excessivo em pouco tempo, mudanças drásticas alimentares ou recusa de muitos alimentos e preocupação excessiva com a aparência do corpo; mostrar sinais de que está passando por violência na escola ou em casa, ou que está se automutilando, como ter manchas ou cortes no corpo ou passar a usar muita maquiagem ou roupas compridas para esconder marcas no rosto ou no corpo, falar constantemente em morte ou suicídio; demonstrações frequentes que sugerem abuso de álcool ou drogas, como olhos vermelhos, dores de cabeça de “ressaca”, fala arrastada; marcas de agulhas em partes do corpo como braços e pescoço; demonstração de comportamentos de risco, como os que podem causar acidentes consigo mesmo ou com os outros; ou ligados às relações sexuais sem proteção. https://www.shutterstock.com/pt/g/stockbroker 134 Temas sociais e educacionais contemporâneos Tais sinais, principalmente quando vários deles se manifestam ao mesmo tempo, são um alerta de que é preciso redobrar a atenção, o acolhimento e a orientação ao aluno, procurando descobrir o que está acontecendo com ele e, se necessário, entrar em contato com a família. O objetivo deve ser o de construir uma rede de atenção e proteção ao adolescente, evitando que problemas que ele possa estar vivendo tornem-se cada vez maiores. É fundamental ter em mente que a segunda maior causa de mor- te de jovens entre 15 e 19 anos no mundo é o suicídio. Segundo a OMS, a primeira causa entre as meninas está relacionada às com- plicações decorrentes da gravidez, e entre os meninos, à violência interpessoal. No Brasil o suicídio passa para a terceira maior causa de mortes de jovens, pois o segundo lugar é tomado pelos acidentes de trânsito ( RODRIGUES, 2019; WENTZEL, 2017). Vemos que a pre- venção de doenças e de riscos na adolescência é muito importante e pode até contribuir para evitar fatalidades. Muitas vezes o desconhecimento, os preconceitos e os tabus são barreiras ao diálogo franco e aberto – que é essencial – com os adolescentes e ao estabelecimento da relação de confiança ne- cessária para compreender, apoiar e proteger os jovens. Alguns fatores, citados a seguir, são muito importantes para que o edu- cador, orientador pedagógico, psicopedagógico ou gestor escolar consiga estabelecer com o aluno adolescente o diálogo honesto e a confiança mútua: • Estabelecer um clima de confiança e aceitação, dispondo-se a ouvir mais do que falar. Primeiro é preciso acolher e se interes- sar genuinamente pelos relatos e sentimentos do adolescente. • Manter a tranquilidade e o juízo crítico, mesmo que a situação relatada seja perturbadora. Mostrar-se chocado não ajuda o aluno a expor a situação pela qual está passando, nem a con- fiar no educador. • Tornar-se um facilitador para explorar as convicções, as deci- sões e os comportamentos do jovem, levando-o a analisar e questionar suas ideias e ações, sem induzi-lo imediatamente a determinadas condutas consideradas corretas pelo educador. Promoção da saúde na escola 135 • Discutir os modelos de comportamento de adultos e familia- res próximos ao aluno, procurando perceber e, aos poucos, ajudando-o a também identificar quem ele está imitando ou recusando com seus comportamentos. • Mostrar de modo honesto e esclarecido as consequências de comportamentos de risco mais extremos, se for o caso do alu- no, e sinalizando os limites saudáveis. • Mostrar que as interações sociais podem ser guiadas por uma comunicação não violenta e que não é preciso aceitar as práti- cas de bullying ou outros tipos de violência, dispondo-se a aju- dar de modo prático. • Auxiliar o aluno a perceber a importância de procurar apoio familiar e, se for o caso, ajuda médica ou psicológica específica, e a consentir a quebra de sigilo do que vem sendo conversado com o educador, permitindo que um familiar seja incluído nos diálogos (FEIJÓ; OLIVEIRA, 2001). Não estamos aqui afirmando, de maneira nenhuma, que a equipe docente, de orientação, coordenação ou gestão escolar seja respon- sável por diagnosticar definitivamente, prescrever ou aplicar trata- mentos médicos ou psicoterapêuticos aos discentes, a não ser nos casos em que se tenha formação específica na área de saúde e seja autorizado pela família do aluno a participar de alguma forma do seu protocolo de tratamento ou outro processo necessário. O que propomos é que a equipe escolar seja um ponto de ob- servação atenta aos alunos, de apoio, de escuta e acolhimento, de orientação geral e, sobretudo, de comunicação com a família e de en- caminhamento adequado a profissionais especializados ou órgãos públicos específicos que possam auxiliar o adolescente no enfren- tamento de suas dificuldades e problemas, ou mesmo em situações perigosas ou de vulnerabilidade pelas quais esteja passando em seu ambiente familiar, escolar ou comunitário. Desse modo, a escola pode se tornar o porto seguro de que os jovens precisam, como ponto de partida para superação da situação que estão vivendo, alguém que se preocupe genuinamente com eles e com o seu bem-estar, que os escute e incentive a admitir que estão com problemas e a buscar ajuda. Conheça os princípios e a prática da comunicação não violenta por meio do artigo Comunicação Não Violenta (CNV): o que é, como funciona e como aplicar o conceito, escrito por Tatyane Mendes. Para isso acesse o site da ONG Na Prática. Disponívelem: https://www. napratica.org.br/comunicacao-nao- violenta/. Acesso em: 23 mar. 2021. Site Outra dica é o audioli- vro Comunicação Não Violenta, de Marshall Rosenberg, disponível no link a seguir. Disponível em: https://youtu.be/ K29eLcpvsc8. Acesso em: 23 mar. 2021. Site https://www.napratica.org.br/comunicacao-nao-violenta/ https://www.napratica.org.br/comunicacao-nao-violenta/ https://www.napratica.org.br/comunicacao-nao-violenta/ https://youtu.be/K29eLcpvsc8 https://youtu.be/K29eLcpvsc8 136 Temas sociais e educacionais contemporâneos CONSIDERAÇÕES FINAIS A escola é, das instituições sociais, a mais privilegiada para desem- penhar o papel de protagonista na educação para a promoção da saú- de integral. Os princípios fundamentais a serem levados em conta na prevenção das doenças e riscos são a educação, a divulgação do conhe- cimento, a valorização de elementos éticos e afetivos, o apoio da famí- lia, o acolhimento e a orientação das escolas e de outras instituições. Os conhecimentos teóricos e práticos sobre hábitos saudáveis, qua- lidade de vida e prevenção de doenças e de riscos podem ser desenvol- vidos de variadas formas na escola, desde que articulados a conteúdos disciplinares e até em forma de projetos interdisciplinares e de campa- nhas na escola e na comunidade. A orientação aos alunos no sentido de manterem hábitos saudá- veis e se prevenirem de enfermidades e riscos é responsabilidade da escola e pode ser conduzida com o auxílio dos educadores e gesto- res escolares, bem como com a ajuda de especialistas e membros da comunidade. ATIVIDADES 1. Observe as sugestões propostas na Pirâmide Alimentar proposta por Philippi (2013) e compare-as com as do modelo Meu Prato. Quais são as diferenças e semelhanças entre os dois modelos? Qual deles seria mais adequado para ser aplicado às refeições ofertadas nas escolas? 2. De que modo as ações de promoção da saúde e da qualidade de vida na escola podem ser implementadas por docentes e profissionais da coordenação pedagógica e da direção escolar? 3. A escola tem o papel de ajudar a conscientizar as famílias sobre a importância da vacinação das crianças e dos adolescentes. Uma das formas de desempenhar esse papel, é exigir a carteirinha de vacinação no ato da matrícula dos alunos, o que está em tramitação no Senado Federal por meio do Projeto de Lei n. 1.716, de 2019, e já é garantido em alguns estados brasileiros. Cite um desses estados. REFERÊNCIAS ATALLA, M. Tabela de calorias de atividade física. Marcio Atalla, 2021. Disponível em: https:// marcioatalla.com.br/atividade-fisica/tabela-de-calorias-de-atividade-fisica/#:~:text=O%20 Vídeo Promoção da saúde na escola 137 gasto%20cal%C3%B3rico%20pode%20ir,a%20corrida%2015%20kcal%2Fmin. Acesso em: 23 mar. 2021. BRASIL. Ministério da Saúde. Manual de Primeiros Socorros. 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Além disso, seu estudo no contexto escolar pode contribuir para construir práticas inclusivas de tolerância e de respeito à diversidade, e mobilizar a comunidade escolar a lutar pela promoção da igualdade de acesso aos direitos básicos, à cida- dania e à democracia na sociedade. A educação em direitos humanos, a formação para a cidadania e a promoção do respeito à diversidade devem fazer parte dos processos educativos, tanto de modo teórico quanto de maneira integrada às práticas pedagógicas que perpassam as diversas dis- ciplinas curriculares. 5.1 Direitos humanos, igualdade e diversidade Vídeo O conceito de direitos humanos tem sua gênese na modernidade ocidental e se assenta sobre a noção de igualdade. No contexto con- temporâneo, passou a incorporar também o conceito de diversidade, que conjuga as noções de igualdade e de diferença, envolvendo os cam- pos do amplo direito à educação e da educação em direitos humanos. O conceito de igualdade é, portanto, multidimensional, pois abar- ca vários aspectos da vida social e se constitui em um pilar da busca por uma sociedade mais justa, ou seja, mais igualitária. Sob o aspecto da equidade, a noção de igualdade é representada fundamentalmente pela igualdade de direitos perante as leis. A noção 140 Temas sociais e educacionais contemporâneos busca reduzir o impacto das desigualdades na sociedade, atendendo a todos com justiça, e, ao mesmo tempo, olhando para cada grupo da sociedade em suas necessidades específicas. CG _d m itr iy/ Sh ut te rs to ck Mesmo diferentes sobre diversos aspectos, todos os cidadãos são iguais em direitos políticos, sociais e econômicos e devem ser tratados de modo justo e equânime. Conforme a perspectiva da igualdade material, da distribuição equânime do acesso aos recursos materiais, a noção de igualdade remete ao conceito de cidadania, de acesso universal a condições dig- nas de vida, à alimentação, à saúde, à educação, à moradia etc., e en- volve o conceito de justiça social. Já sob a dimensão da diversidade, a noção de igualdade se refere essencialmente ao reconhecimento igualitário e ao respeito às diversas identidades étnicas, culturais, de gênero, entre outras. É preciso destacar que a noção de diversidade diz respeito não só às múltiplas culturas, etnias e orientações sexuais, mas passa também pelos conceitos de pluralidade, de multiplicidade, de diferentes pers- pectivas e visões de mundo, de heterogeneidade e de variedade, que perpassam os diferentes grupos na sociedade, pela convivência entre contrários, pela intersecção de diferenças e pela tolerância mútua. No entanto, apesar de se mostrarem tão correlacionadas, não é fácil reunir harmonicamente as várias noções de igualdade e de diversida- de em um mesmo conceito amplo de direitos humanos. Uma das vias para reunir tais conceitos e aplicá-los na prática, no contexto educativo, explorando em sala de aula as origens históricas das desigualdades e da luta por direitos humanos e por cidadania no mundo e, principal- mente, no Brasil. Reflita sobre seus compor- tamentos cotidianos: você se considera uma pessoa que respeita as diferenças? Para refletir https://www.shutterstock.com/pt/g/bonumopus Respeito à diversidade na sociedade 141 5.1.1 Direitos humanos nas sociedades contemporâneas Le o C ard ell i/S hu tte rst oc k A luta por direitos humanos, ao menos nas sociedades democráticas, tem longa história marcada por avanços e retrocessos e continua viva nos movimentos sociais contemporâneos. Vejamos uma célebre frase da filósofa, socióloga, economista, teóri- ca e ativista política polonesa Rosa Luxemburgo: “por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente li- vres”. Ela ajuda a compreender como igualdade e diversidade podem caminhar juntas, ao menos no que concerne ao desejo e à luta por uma sociedade mais justa. Essa frase expressa a visão de mundo da pensadora e delineia o de- sejo de um futuro melhor para todos os cidadãos, no qual todos sejam iguais em direitos, porém tenham a liberdade de expressar suas dife- renças. A ideia central é a de que deve haver garantias de igualdade de direitos e de tratamento equânime perante as leis para todos os seres humanos (equidade),e respeito às diferenças, às identidades especí- ficas e à livre expressão de tais identidades. Ainda que desiguais sob quaisquer perspectivas, todos os seres humanos devem ter seus direi- tos básicos garantidos pela sociedade, sendo essa a base da noção de cidadania. Toda pessoa deve ter liberdade de manter sua identidade, cultura, crença, orientação e opinião, de expressar tudo o que a torna diferente, única, ou pertencente a um grupo específico, e, ao mesmo tempo, ter garantidos os seus direitos como cidadã. 142 Temas sociais e educacionais contemporâneos Perspectiva histórica Apesar da longa história de lutas e conquistas, o campo dos direitos humanos é constantemente ameaçado por retrocessos, revelando que a máxima “o preço da liberdade é a eterna vigilância” – atribuída a Tho- mas Jefferson, um dos autores da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América e o terceiro presidente daquele país (1801- 1809) – não perdeu sua atualidade, podendo muito bem ser adaptada para “o preço da igualdade é a eterna vigilância”, pois a todo o mo- mento assistimos a tentativas de retirada de direitos da população e ações para conservar privilégios dos grupos dominantes da sociedade, minando toda a história de luta por direitos humanos e por cidadania. No Brasil, apesar de sermos uma democracia jovem, que passou por vários períodos de regimes autoritários, havíamos conquistado re- centemente, por meio da Constituição de 1988 e de políticas públicas nela apoiadas, grandes avanços no campo dos direitos humanos e da garantia legal de cidadania a todos os brasileiros, mesmo que faltasse, na prática, um longo caminho para que as desigualdades de acesso universal às condições dignas de vida fossem alcançadas, e ainda ti- véssemos inúmeras violações de direitos. Nos últimos anos, entretan- to, temos assistido a frequentes retrocessos em tais áreas. Diversas tendências teóricas debatem há um longo tempo as dife- rentes noções ou ideais ligadas aos direitos humanos; entretanto, foi apenas a partir do período pós-Segunda Guerra Mundial que a busca por formulações mais específicas na esfera jurídica tornou-se mais re- levante no sentido de orientar o comprometimento das nações com o que se considerou consensualmente à época como sendo “direitos uni- versais dos seres humanos”, a serem garantidos por todos os países. Vimos que a igualdade sob o ponto de vista legal é representada pela garantia de direitos iguais a todos os cidadãos, noção que tem sua origem na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Desde a promulgação desse documento pela ONU, em 1948, consolidou-se globalmente um consenso sobre os direitos a que todos os cidadãos deveriam ter acesso. Isso ocorreu por meio de vários tratados, pactos, resoluções e declarações, tanto de natureza ética quanto de caráter político e normativo. Para aprofundar os conhecimentos sobre os direitos humanos na so- ciedade contemporânea, leia o capítulo “Concep- ção contemporânea de direitos humanos” do livro A educação entre os direitos humanos. HADDAD, S.; GRACIANO, M. Campinas: Autores Associados; São Paulo: Ação Educativa, 2006. Livro Acesse a animação Direitos Humanos em dois minutos e compreenda em linhas gerais o que é apresentado pelo documento. Disponível em: https://youtu. be/ZcouRGcu6y0. Acesso em: 13 abr. 2021. Vídeo https://youtu.be/ZcouRGcu6y0 https://youtu.be/ZcouRGcu6y0 Respeito à diversidade na sociedade 143 A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem 30 artigos, dos quais selecionamos alguns para discussão. Para começar, vamos anali- sar os sete primeiros: Artigo 1 – Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Artigo 2 – 1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem dis- tinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, reli- gião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condi- ção política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território indepen- dente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania. Artigo 3 – Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Artigo 4 – Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas. Artigo 5 – Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Artigo 6 – Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei. Artigo 7 – Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qual- quer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. (ONU, 1948, grifos do original) Esses artigos referem-se aos direitos básicos de todo ser humano, sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Tais direitos passam por igualdade, liberdade, dignidade, direito à vida e à segurança pessoal, o que exclui qualquer tipo de escravidão, servidão ou tratamento desumano, pelos direitos à proteção da lei e contra qualquer tipo de discriminação. Os demais artigos da Declaração abordam, entre outros aspectos: • O direito à liberdade de pensamento, de consciência, de crenças e religião; liberdade de opinião e de expressão. Pense sobre os direitos destaca- dos nos sete primeiros artigos da Declaração dos Direitos Humanos. Eles são plenamente respeitados no Brasil? Para refletir 144 Temas sociais e educacionais contemporâneos • Os direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à dig- nidade humana. • O direito ao trabalho com remuneração e condições justas, que assegure a si, assim como à sua família, uma existência compatí- vel com a dignidade humana. • O direito a se organizar em defesa de seus direitos em sindicatos e associações. • O direito ao repouso e ao lazer. • O direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, ha- bitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis. • O direito à instrução gratuita e obrigatória, pelo menos nos graus elementares e fundamentais, no sentido do pleno desenvolvi- mento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. • O direito a participar livremente da vida cultural da comunida- de, fruir as artes e participar do progresso científico e de seus benefícios. Os países que aderiram formalmente a tal documento comprome- teram-se a incorporar em suas legislações e políticas públicas a prote- ção e a promoção dos direitos humanos. No ano de 1993, em Viena, realizou-se a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, na qual foram propostas a universalidade, a indivisibilidade, a interdependên- cia e a inter-relação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, assim como a relação obrigatória entre demo- cracia, desenvolvimento e direitos humanos. Para Bobbio (2004), a busca pelo reconhecimento dos direitos hu- manos é um sinal positivo no processo de construção de sociedades humanas e democráticas. Entretanto, o autor afirma que “a linguagem dos direitos tem uma grande função prática, [...] mas ela se torna enga- nadora se obscurecer ou ocultar a diferença entre o direito reivindica- do e o direito reconhecido e protegido” (BOBBIO, 2004, p. 11). Ou seja, proclamar os direitos dos indivíduos não significa automaticamente garantir que eles usufruamdeles na prática. Tanto na sociedade brasileira quanto em outras sociedades con- temporâneas, a exclusão ainda é uma constante e os princípios de igualdade defendidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos Consulte a Declaração Universal dos Direitos Humanos na íntegra acessando https://www.unicef. org/brazil/declaracao-universal- -dos-direitos-humanos. Saiba mais https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos Respeito à diversidade na sociedade 145 são diariamente desrespeitados. Assistimos cotidianamente a viola- ções dos direitos humanos e a exemplos de discriminação e de vio- lência contra grupos étnicos, sociais, religiosos etc., o que revela que a garantia de proteção equânime da lei, sem discriminação de qualquer espécie, nem sempre é posta em prática. Direitos Humanos na atualidade Recentemente, o movimento ativista Black Lives Matter – iniciado nos EUA, por volta de 2013, no seio da comunidade afro-americana, para lu- tar contra a violência, sobretudo policial, direcionada às pessoas negras – tem aparecido em noticiários de todo o mundo e influenciado movi- mentos semelhantes em outras partes do planeta, incluindo o Brasil. Em 2020, após o assassinato do cidadão estadunidense negro Geor- ge Floyd por um policial branco, que em uma abordagem violenta sufo- cou o homem até a morte, um imenso movimento de protesto tomou as ruas dos EUA e, em seguida, de boa parte do mundo, reivindicando tratamento igualitário para pessoas negras e o fim da violência policial. Ja co b L un d/ Sh ut ter sto ck Nas manifestação Black Lives Matter em junho de 2020 nos EUA, centenas de manifestantes marcharam juntos pelas ruas de várias cidades entoando palavras de ordem como “mãos ao alto, não atire” e “sem justiça não há paz”. Tal manifestação, assim como outras que reivindicam igualdade de tratamento por parte do Estado e da sociedade, tem sua origem nos 146 Temas sociais e educacionais contemporâneos movimentos por direitos civis, ligados historicamente à reivindicação de que os direitos civis, políticos e sociais não se mantivessem como um privilégio de poucos, mas sim fossem garantidos a todos igualmen- te por meio das leis. Entretanto, apesar de atualmente garantidos por lei, esses direitos muitas vezes não são de fato acessíveis a todos os cidadãos no cotidia- no da vida social, e o tratamento dado pelo Estado e pela sociedade em geral costuma ser diferente de acordo com grupos sociais e étnicos. Nos EUA, durante o século XX, os movimentos por direitos civis, dos quais Martin Luther King foi uma grande liderança, conquistaram, por meio de muita luta e resistência à repressão do Estado, a garantia de que os direitos civis das populações negras e de outras minorias fossem garantidos por lei. Tais direitos se traduziam, por exemplo, na garantia legal de liberdade de expressão, de liberdade religiosa, de propriedade privada, de ir e vir em qualquer espaço social, de escolha do trabalho, de participação política, entre outros (MARSHALL, 1967). Ao final do século XX, tanto nos EUA quanto no Brasil – neste por meio da Constituição Cidadã de 1988 – a cidadania de fato passou a in- tegrar não só os direitos já citados, mas também os direitos sociais mais amplos, inclusive o acesso à saúde, à educação, à habitação, ao lazer, ao atendimento judiciário e previdenciário, entre vários outros, os quais passaram a ser garantidos não só por lei, mas de modo prático, por meio de políticas públicas específicas. No Brasil, esse longo processo de busca de inclusão, que ainda ocorre em meio a avanços e retrocessos, é o cerne da promoção efetiva da cidadania plena nas sociedades. O relatório Direitos humanos nas Américas: retrospectiva 2019, divul- gado pela Anistia Internacional, considera que, atualmente, nosso país parece ter retrocedido à situação anterior à Constituição Federal de 1988, e aponta que há um discurso abertamente contrário aos direitos humanos promovido por várias autoridades brasileiras. Esse relatório revela que, no estado do Rio de Janeiro, a violência po- licial contra jovens moradores da periferia das cidades aumentou enor- memente; apenas entre janeiro e julho de 2019, 1.249 pessoas foram mortas pela Polícia Militar desse estado, grande parte eram crianças e adolescentes negros, pobres, moradores dos bairros periféricos, vários deles atingidos pelas chamadas balas perdidas. Respeito à diversidade na sociedade 147 Os direitos dos povos indígenas, de acordo com o mesmo relató- rio, também sofreram inúmeras violações no mesmo período. O texto apresenta que foram registradas 160 invasões em terras indígenas nos primeiros nove meses de 2019. Outro relatório, o do Alto Comissariado da ONU, publicado em 2019, que investigou o tema da violação de direitos humanos entre 2017 e 2019, apontou sérias violações aos direitos humanos em diver- sas áreas, e destaca pontos críticos em 13 temas, tais como a liberdade de expressão, o direito das mulheres, dos refugiados e da comunidade LGBTQI+. Outra questão considerada preocupante é a segurança públi- ca: houve aumento das agressões policiais, sobretudo a jovens negros (75,5% das vítimas de assassinato em 2017 eram indivíduos negros); existe precariedade do sistema carcerário e crimes não resolvidos (mais de 1,2 milhão de casos de violência doméstica estavam pendentes nos tribunais); não existem políticas públicas de combate ao recrutamento de jovens pelas facções criminosas. O relatório da ONU aponta ainda que mulheres, gays e refugiados – principalmente venezuelanos – sofreram ataques graves, e que a au- sência de instrumentos públicos de proteção às vítimas e as falhas nas investigações e na punição de criminosos aprofunda a violação de di- reitos no Brasil. O documento destaca ainda que o endosso por parte de altas autoridades políticas da prática de tortura e outros abusos, e declarações abertamente racistas, homofóbicas e misóginas colabo- ram enormemente para a escalada de desrespeito aos direitos huma- nos. Os resultados ressaltam também violações aos direitos básicos de acesso à educação, sobretudo à educação básica, com cortes de verbas que chegam a R$ 914 milhões, prejudicando ou inviabilizando áreas como a construção e a manutenção de escolas e creches, a capacitação de profissionais da educação, a merenda escolar e o transporte escolar. Por fim, o documento enfatiza retrocessos nos direitos à memória, à verdade e à justiça, com intervenções nos trabalhos da Comissão da Verdade, que investiga os crimes cometidos durante a ditadura militar iniciada em 1964; denuncia a gravíssima extinção de mecanismos de participação social, com a eliminação de cerca de 700 colegiados, que visavam fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democrá- ticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil; expõe o crescimento de 49,5% no desmata- mento da Amazônia; aponta a discriminação contra pessoas LGBTQI+, 148 Temas sociais e educacionais contemporâneos evidenciando que o Brasil é o país em que mais se mata transexuais no mundo – os brasileiros transgêneros têm apenas 35 anos de expecta- tiva de vida; e destaca o assassinato da ativista pelos direitos humanos e vereadora eleita pelo Rio de Janeiro Marielle Franco – e seu moto- rista Anderson Santos – cujo crime, ocorrido em 2018, ainda não foi solucionado. Sob a perspectiva simplificadora do senso comum, a luta pela cida- dania pode ser tomada como uma “garantia de privilégios” aos grupos que supostamente não teriam conquistado tais “privilégios” por mérito próprio. Mas isso é um equívoco, já que todas as conquistas civis des- critas até aqui não são privilégios, mas direitos de todo e qualquer in- divíduo, independentemente de sua etnia, cor, crença, classe social etc. O privilégio surge justamentequando somente alguns têm acesso a tais direitos, ou seja, quando apenas alguns são considerados cida- dãos, enquanto outros não têm acesso a esses direitos básicos, em vir- tude das desigualdades sociais, econômicas e culturais históricas que estruturam, infelizmente, a sociedade. As políticas públicas de neutralização ou de compensação dos efei- tos das desigualdades históricas na sociedade brasileira que geram discriminação racial, de gênero, de idade, de origem etc. são chama- das de ações afirmativas. Elas buscam viabilizar concretamente o prin- cípio constitucional da igualdade e promover a inclusão, possibilitando igualdade de acesso e de oportunidades aos grupos historicamente ex- cluídos, favorecendo a participação na sociedade dos grupos que tradi- cionalmente sofrem discriminação. Na dimensão socioeconômica, as ações afirmativas se traduzem em oferta de bolsas, cotas em diversos níveis de ensino e em concursos públicos, auxílios, reserva de vagas prioritárias em programas de habi- tação, empréstimos a juros reduzidos, fundos de estímulo, preferência em contratos públicos, incentivo à contratação de integrantes de gru- pos discriminados, redistribuição de terras etc. Na dimensão simbólica e cultural, as ações afirmativas se dão por meio de políticas de proteção a estilos de vida de povos tradicionais (como indígenas, quilombolas, ciganos e ribeirinhos) e por meio de me- tas mínimas de participação de grupos socialmente excluídos na mídia, no sentido de ampliar sua visibilidade e representatividade. Na dimensão política, as ações afirmativas se referem ao aumento de representação dos grupos tradicionalmente pouco ou nada repre- sentados nas esferas de poder, cujas demandas não são valorizadas ou atendidas pelo poder público. Essas ações se refletem em leis e progra- mas de ampliação de representação de tais grupos, verbas específicas destinadas às suas candidaturas ou reserva de vagas no Legislativo. É o caso, por exemplo, do Projeto de Lei n. 763/2021, que, se aprovado, ga- rantirá às mulheres a reserva de vagas de, no mínimo, 30% das cadeiras na Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Munici- pais. Será um grande avanço, mas ainda longe de representar a compo- sição da população brasileira, que conta com mais de 50% de mulheres. 5.1.2 Educação em direitos humanos No Brasil, a educação em direitos humanos foi ampliando suas ações a partir do final dos anos de 1980 (CANDAU; SACAVINO, 2000). No período de 1995 a 1998, o Ministério da Educação e Desportos ela- borou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino básico (1998) incluindo o tema transversal Pluralidade cultural e, em 2003, foi lançado o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2003), marcando a consolidação do tema nas leis brasileiras. Segundo o artigo 3º das Diretrizes Nacionais, a educação em direitos humanos deve promover: a educação para a mudança e a transformação social fundamen- tando-se nos princípios da dignidade humana; de igualdade de direitos; do reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades; da laicidade do Estado; da democracia na educação; da transversalidade, vivência e globalidade; e da sus- tentabilidade socioambiental. (BRASIL, 2012, grifos nossos). Para aprofundar seus conhecimentos sobre direitos humanos, acesse o podcast Episódio 29 – Declaração Universal dos Direitos Humanos, publica- do no canal Fronteiras no Tempo. Disponível em: https://youtu. be/KX1hgFE4oFI. Acesso em: 13 abr. 2021. Podcast Para saber mais sobre ações afirmativas no Brasil, acesse os links a seguir: http://gemaa.iesp.uerj.br/o-que- sao-acoes-afirmativas/. Acesso em: 13 abr. 2021. http://etnicoracial.mec.gov.br/ acoes-afirmativas. Acesso em: 13 abr. 2021. Saiba mais Se rg ey N ive ns /S hu tte rs to ck A educação em direitos humanos é, antes de tudo, um processo reflexivo que depende da construção de conhecimentos sócio-históricos e de consciência crítica, fundamentais para a construção da cidadania e de uma sociedade mais justa. Respeito à diversidade na sociedadeRespeito à diversidade na sociedade 149149 https://youtu.be/KX1hgFE4oFI https://youtu.be/KX1hgFE4oFI http://gemaa.iesp.uerj.br/o-que-sao-acoes-afirmativas/ http://gemaa.iesp.uerj.br/o-que-sao-acoes-afirmativas/ http://etnicoracial.mec.gov.br/acoes-afirmativas http://etnicoracial.mec.gov.br/acoes-afirmativas https://www.shutterstock.com/pt/g/nivens 150 Temas sociais e educacionais contemporâneos A opção pela articulação entre direitos advindos da igualdade e da diferença nos processos de educação em direitos humanos vem sendo gradativamente substituída pela busca da construção de uma educa- ção comprometida com a formação de sujeitos de direito e a afirmação da democracia, da justiça e do reconhecimento da diversidade na so- ciedade brasileira. Sob a perspectiva curricular, os Temas Contemporâneos Transver- sais, propostos pela BNCC, trazem os temas Multiculturalismo e Ci- dadania e Civismo, que podem ser desenvolvidos transversalmente, perpassando todas as disciplinas, ao longo do ensino fundamental e do ensino médio (BRASIL, 2018). Especificamente no ensino médio, tais temas aparecem também em categorias, competências e habilidades da área de Ciências Huma- nas. As categorias conceituais são: representações sociais e culturais; produção de identidades sociais, políticas e culturais; diferentes formas de preconceito, discriminação, intolerância e estigma; diferentes for- mas de participação da cidadania na esfera política; potencialidades e as tensões entre direitos e deveres da cidadania. Já nas competências a serem desenvolvidas pela área, que reúne as disciplinas de História, Geografia, Sociologia e Filosofia, estão: reconhecer e combater as diver- sas formas de desigualdade e violência, adotando princípios éticos, de- mocráticos, inclusivos e solidários, e respeitando os direitos humanos. Mas, se sob a perspectiva teórica tal busca vem sendo fortalecida, no plano das políticas públicas, da formação de educadores e das prá- ticas pedagógicas, a construção de uma cultura dos direitos humanos necessita cada vez mais de apoio metodológico e didático, de supor- tes materiais e de ferramentas que possam viabilizar sua aplicação nas práticas de ensino e nas dinâmicas do cotidiano escolar, assim como nos processos de educação não formais nos demais espaços sociais. As reflexões sobre tais conceitos e sua aplicação ao contexto escolar podem subsidiar processos educativos de formação integral dos sujei- tos e de construção de ações cidadãs na escola, na comunidade e na sociedade. Do mesmo modo, podem fundamentar as práticas ligadas à gestão democrática na escola, ajudando a conformá-la como um espa- ço de transformação social, de inclusão e de respeito às diversidades, e não apenas um espaço de reprodução das desigualdades sociais. Respeito à diversidade na sociedade 151 Para iniciar aprendizagens sobre os direitos humanos e suas rela- ções com a igualdade, a desigualdade, a diversidade e a cidadania, é preciso primeiro: partir dos conhecimentos e vivências prévias dos alunos. Além disso, levantar as noções do senso comum, as opiniões que podem apresentar preconceitos e julgamentos de valor, as hipóte- ses equivocadas sobre direitos humanos e sobre como eles surgiram, as opiniões sobre quem “merece” tê-los e por quê, as noções sobre a realidade social brasileira, as diferenças e as discriminações entre os grupos culturais e sociais etc. Em uma segunda etapa, é necessário mediar o debate sobre as no- ções levantadas à luz dos referenciais teóricos que tratam de tais ques- tões, promovendo a reelaboração das noções prévias, aprofundando o conhecimento conceitual dos alunos e promovendo a aplicação dos conhecimentos adquiridos a problemas e a situações reais, bem como às práticas cotidianas. Desse modo, os alunos são incentivados a elabo- rar, de modo fundamentado e autônomo, suas próprias concepções e práticas.No contexto educacional, é fundamental refletir sobre: as tensões entre igualdade e diferença, tanto sob o prisma teórico quanto práti- co; as articulações entre os campos do amplo direito à educação e da educação em direitos humanos; e as violações desses direitos perpe- tradas nas práticas cotidianas. Tais reflexões subsidiam os processos educativos – formais e informais – capazes de formar sujeitos cientes de seus direitos e de consolidar processos democráticos de acesso à plena cidadania. Para ampliar os saberes sobre a formação de professores para a educação em direitos humanos, leia o artigo A formação de professores para a educação em direitos humanos analisada sob a ótica da organização do trabalho didático: tecendo algumas considerações, do autor Cristaldo, publicado na Revista HISTEDBR On-line, em 2014. Acesso em: 13 abr. 2021. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8640553/8112 Artigo Os direitos de outros grupos na sociedade, como o das crianças e adolescentes, o de idosos e o das pessoas com deficiências também são garantidos por lei. Estatutos legais específicos regulamentam so- cialmente esses direitos, tais como o ECA, o Estatuto do Idoso e o Es- https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8640553/8112 152 Temas sociais e educacionais contemporâneos tatuto da Pessoa com Deficiência, os quais garantem, ao menos na lei, que esses grupos sejam tratados com igualdade e dignidade, e tenham acesso à proteção específica de que necessitam. O ECA, em seu preâmbulo da versão atualizada em 2019, afirma que garante a: proteção integral, na qual crianças e adolescentes são vistos como sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvol- vimento e com prioridade absoluta. Também reafirmou a res- ponsabilidade da família, sociedade e Estado de garantir as condições para o pleno desenvolvimento dessa população, além de colocá-la a salvo de toda forma de discriminação, exploração e violência. (BRASIL, 2019, p. 9) Apesar de garantidos por lei, muitos dos direitos das crianças são cotidianamente desrespeitados, muitas vezes em virtude da extrema desigualdade socioeconômica, a qual lança milhões de famílias na ex- trema pobreza, o que deixa as crianças em situação de vulnerabilidade. No Estatuto do Idoso estão as garantias legais de que este deve usu- fruir de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral, e de todas as oportunidades e facili- dades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoa- mento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. O estatuto afirma ainda que é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2003), o que por vezes é desrespeitado. Igualmente, o Estatuto da Pessoa com Deficiência assegura o exer- cício pleno e em condições de igualdade de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais pelas pessoas com deficiência, visando à sua inclusão social e à cidadania participativa plena e efetiva (BRASIL, 2015). Sabemos, no entanto, que tais garantias estão longe de ser con- cretizadas na prática, e a educação tem papel essencial na formação de cidadãos que apliquem tais preceitos no cotidiano social. Quais violações aos direitos humanos você observa em seu cotidiano? Para refletir Respeito à diversidade na sociedade 153 5.2 Desigualdade e exclusão Vídeo As diferenças, a desigualdade e a exclusão são temas a serem deba- tidos na escola, pois ela é o espaço do conhecimento sobre a riqueza representada pela diversidade étnico-cultural que integra o patrimô- nio sociocultural brasileiro, é um espaço para o diálogo, a convivência e o respeito às diferentes formas de expressão e modos de estar no mundo. As desigualdades e a exclusão podem se apresentar em várias di- mensões da vida em sociedade, como nas ligadas a aspectos socioeco- nômicos, étnico-raciais, de gênero, de origem etc., e é preciso promover o olhar crítico sobre a construção sócio-histórica de tais desigualdades na estrutura social brasileira e no imaginário da população. Jo a So uz a/ Sh ut te rs to ck Mulheres em situação de pobreza revolvendo um depósito de lixo em busca de materiais recicláveis para venda em Teixeira de Freitas, Bahia. O mito da “democracia racial” ainda persiste em muitos discursos e, segundo Fernandes (2008), tem origem na necessidade de reafirmação de uma visão idealizada de relação harmoniosa entre brancos e não brancos no país. É esse mito que estimula a crença na meritocracia no contexto das relações étnico-raciais, como se fosse efetivamente viável que as pessoas negras superem completamente, apenas com seu es- forço pessoal, as contradições e desigualdades estruturais da socieda- de, eliminando a falta de acesso aos direitos básicos, à educação e às condições dignas de vida com “dedicação” e “trabalho duro”. https://www.shutterstock.com/pt/g/Joa+Souza 154 Temas sociais e educacionais contemporâneos Para desmistificar o tema, é preciso explicar aos alunos sobre a he- rança escravocrata na formação histórica da sociedade brasileira, mos- trando que o modelo de desenvolvimento econômico adotado durante o período colonial, o qual contava com a escravização de indígenas e africanos, configurou um modelo de exclusão social das pessoas ne- gras, perpetuado até a atualidade e reproduzido de modo tão natu- ralizado a ponto de haver quem reproduza o racismo e não perceba suas atitudes como racistas. É o que chamamos de racismo estrutural, ou seja, que faz parte da estrutura da sociedade e das relações sociais nela mantidas. Como sabemos, a falta de acesso à plena cidadania, à saúde, à edu- cação, à moradia digna, à alimentação adequada e à remuneração justa, à participação social e política etc. dificulta muito e, em grande parte das vezes, elimina a chance desses indivíduos alcançarem os mesmos pata- mares de quem teve pleno acesso a todos esses direitos sociais. Nesse sentido, as políticas afirmativas têm sido importantes para reduzir em al- guns aspectos os efeitos das desigualdades, permitindo que mais jovens negros possam frequentar as universidades e tenham acesso a melho- res oportunidades no mercado de trabalho, por exemplo. No que concerne às desigualdades de gênero, é também essencial a abordagem histórica e social do fenômeno, para que se possa debatê-lo com base em conceitos e dados adequados, e não no senso comum. A noção de gênero é uma construção social que atribui papéis di- ferentes a homens e a mulheres na sociedade. Como toda construção social, essa noção é histórica e muda de sociedade para sociedade. Longe de serem neutros, os padrões de relações de gênero nas sociedades expressam relações de poder e formas de estratificação social. Apesar dos muitos avanços nas últimas décadas, resultantes das lutas em prol da igualdade de gêneros, a desigualdade de gêne- ro ainda se mantém como uma das bases das desigualdades sociais (GIDDENS, 2005). Os debates sobre a inclusão dos temas de gênero e de sexualidade na educação passam pelas discussões sobre o termo gênero, o qual muitas vezes é associado, de modo equivocado, à expressão ideologia de gênero, ao invés de se referir aos estudos de gênero, que funda- mentam verdadeiramente várias das noções relacionadas a gênero e sexualidade. Respeito à diversidade na sociedade 155 O sexismo, ou preconceito de gênero, está bastante presente na sociedade brasileira, a qual é marcada historicamente pelo modelo pa- triarcal, no qual o poder do homem sobre a mulher se expressou em todos os aspectos, instituições e relações sociais. Na atualidade, mesmo após tantas conquistas das mulheres no campo dos direitos civis – como o direito ao voto, à propriedade,a via- jar sem autorização de pai ou marido – e os avanços no mercado de trabalho – como o acesso a profissões consideradas no passado como exclusivamente masculinas –, ainda assistimos diariamente a expres- sões de uma cultura que considera os homens superiores às mulheres, como se tivessem direitos sobre elas, como se elas fossem suas pro- priedades etc., ou seja, expressões da cultura machista ainda arraiga- da na população. Sinal disso é a quantidade enorme de feminicídios praticados no país, quase sempre relacionados à recusa da mulher em permanecer em situações de violência. A luta por essa igualdade de fato na sociedade ainda precisa avan- çar muito e conquistar, além de ganhos legais, a transformação real das relações entre homens e mulheres, que passa pela formação para a igualdade e para o respeito entre gêneros, na qual a escola tem gran- de papel e responsabilidade. É preciso destacar que a noção de gênero abarca também a dimen- são da sexualidade. A sociedade influencia fortemente os padrões so- ciais, reproduzindo a heterossexualidade como modelo único, o que chamamos de heteronormatividade. O termo é usado para se referir à imposição dos relacionamentos heterossexuais como padrão único, ignorando as orientações sexuais diferentes e marginalizando-as, tor- nando-as alvo de discriminação. Segundo Giddens (2005), no entanto, a homossexualidade faz parte das relações afetivas em todas as culturas. Há muito, a comunidade médica internacional deixou de conside- rar a homossexualidade como doença, mas persistem os preconceitos relativos às questões de gênero e de sexualidade. Apesar dos avanços nas lutas pelo direito de expressar livremente a orientação sexual sem ser alvo de algum tipo de preconceito, é bastante comum em vários es- paços da sociedade, incluindo a escola, nos depararmos com cenas de intolerância, desrespeito e mesmo discriminação e violência, como é o caso dos crimes motivados pela homofobia. A luta atualmente em tor- no da união homoafetiva é no sentido de conquistar o reconhecimento Para compreender melhor os equívocos em torno das questões de gênero, leia a matéria Existe ideologia de gênero?, que traz uma entrevista com Jimena Furlani, pro- fessora do departamento de Ciências Humanas e Educação da Universi- dade Estadual de Santa Catarina (UDESC). Disponível em: https://apublica. org/2016/08/existe-ideologia-de- genero/. Acesso em: 13 abr. 2021. Saiba mais A Lei n. 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, foi criada em 2006 para coibir a violência doméstica e familiar contra mulheres e determina que todo caso de violência doméstica ou intrafamiliar é crime e deve ser julgado pelos Juizados Especia- lizados de Violência Doméstica contra a Mulher. Recentemente entrou em vigor a Lei n. 13.984/2020, a qual estabelece como medidas protetivas de urgência a frequência do agres- sor a centro de educação e de reabilitação e acompanhamento psicossocial. Saiba mais https://apublica.org/2016/08/existe-ideologia-de-genero/ https://apublica.org/2016/08/existe-ideologia-de-genero/ https://apublica.org/2016/08/existe-ideologia-de-genero/ social do status de normalidade, ou seja, o direito de essas pessoas se- rem reconhecidas e respeitadas como cidadãos. Em vários países, tais temas são abordados na escola como parte da formação integral dos alunos. Holanda, Bélgica, Nova Zelândia, Ingla- terra e Escócia adotam a Educação Sexual, permeada pelas noções de respeito à diversidade de gênero e orientação sexual, como disciplina ou eixo obrigatório. Nos EUA, é prevalente entre as famílias a aprova- ção da Educação Sexual nas escolas, mas a disciplina não é obrigatória. No Brasil, infelizmente, apesar de os PCN incluírem a orientação ou educação sexual em seus temas transversais, indicando os processos educativos tanto ligados aos conteúdos de Ciências relativos ao funcio- namento dos sistemas reprodutores feminino e masculino, ao proces- so de gestação e contracepção, à prevenção da violência sexual, assim como aspectos ligados à orientação sexual, a BNCC eliminou tais ele- mentos do tema transversal da saúde. Isso desconsidera que a saúde sexual, tanto do ponto de vista físico quanto do afetivo e do social, é também parte da promoção da saúde integral e da cidadania plena. 5.2.1 Exclusão social, econômica e política Vimos que a noção de igualdade passa, também, pela igualdade ma- terial, isto é, pela distribuição equânime do acesso aos recursos mate- riais, remetendo ao conceito de cidadania ou, em outras palavras, do acesso universal a direitos sociais que garantem condições dignas de vida, como segurança alimentar, acesso à saúde, à educação, à moradia etc., envolvendo o conceito de justiça social. Entretanto, as desigualda- des socioeconômicas no país são enormes e, em período recente, vêm se aprofundando, o que ocasiona a falta de acesso aos direitos sociais básicos, ou seja, as desigualdades geram exclusão, a qual pode ser de vários tipos: econômica, so- cial, política etc. Termos como cisgênero, transgênero, cultura do estupro, estereótipos de gê- nero, feminismo, identida- de de gênero, misoginia e tantos outros costumam ser ouvidos de passagem, mas é raro serem clara- mente compreendidos. Saber o que tais termos significam é essencial para mediar com proprie- dade os debates sobre gênero e sexualidade, sobretudo no contexto do ensino médio. Para isso, acesse o Glossário da diversidade, publicado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em parceria com a Secre- taria de Ações Afirmativas e Diversidades de Santa Catarina. Disponível em: https:// noticias.ufsc.br/files/2017/10/ Gloss%C3%A1rio_ vers%C3%A3ointerativa.pdf. Acesso em: 13 abr. 2021. Leitura Prazis Images/Shutterstock A imensa concentração de renda no Brasil resulta em desigualdades econômicas difíceis de superar, as quais dificultam a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática. 156156 Temas sociais e educacionais contemporâneos Temas sociais e educacionais contemporâneos https://noticias.ufsc.br/files/2017/10/Gloss%C3%A1rio_vers%C3%A3ointerativa.pdf https://noticias.ufsc.br/files/2017/10/Gloss%C3%A1rio_vers%C3%A3ointerativa.pdf https://noticias.ufsc.br/files/2017/10/Gloss%C3%A1rio_vers%C3%A3ointerativa.pdf https://noticias.ufsc.br/files/2017/10/Gloss%C3%A1rio_vers%C3%A3ointerativa.pdf https://www.shutterstock.com/pt/g/ViktorPrazis A exclusão econômica ocorre quando pessoas e comunidades são excluídas das esferas de produção e de consumo, isto é, não participam do mercado de trabalho e não têm acesso a consumir uma série de bens no cotidiano, pois não possuem dinheiro para adquiri-los. Parte significativa da população não tem acesso a bens de consumo essen- ciais para a sobrevivência, como a alimentação, e essa exclusão é carac- terizada pela miséria e pela fome. Dados de um levantamento do IBGE (2019) comprovam que, em 2018, o Brasil retornou ao Mapa da Fome (lista de países com mais de 5% da população ingerindo menos calorias do que o recomendável); o país havia saído da lista desde 2014. O avanço da insegurança ali- mentar já atinge 10,28% de brasileiros, segundo o levantamento, o que representa grande retrocesso na garantia de um direito básico de todo cidadão: alimentar-se adequadamente todos os dias. Segundo análise de Francisco Menezes, pesquisador do Instituto Bra- sileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e ex-presidente do Con- selho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), dois fatores levaram a tal situação: o avanço da extrema pobreza e o corte de políticas públicas em segurança alimentar, como o programa de aquisi- ção de alimentos de agricultura familiar, com compra institucional, a par- tir de 2014 (MENEZES, 2019 apud VILLAS BOAS; SARAIVA, 2020). O avanço da pobreza e da fome, que já vinha ocorrendo desde 2017, foi aprofun- dado pelos impactos econômicos da pandemia de COVID-19 que têm levado cada vez mais famílias ao estado de insegurança alimentar.Com o desemprego atingindo a marca de 13,1 milhões de brasilei- ros (IBGE, 2020), a perda dos espaços de alimentação escolar em vir- tude do fechamento das escolas durante a pandemia, e o insuficiente auxílio financeiro emergencial prestado pelo Governo Federal às famí- lias mais pobres e em situação de vulnerabilidade social, enfrentamos uma situação em que par- te significativa da população tem seus direitos básicos e sua cidadania plena negadas. Nelson Antoine/Shutterstock Movimento Panelas Vazias, realizado em março de 2021, em São Paulo, por integrantes do grupo G10 Favelas. Eles alertam sobre a fome que atinge milhões de brasileiros no contexto da pandemia de COVID-19, buscando arrecadar alimentos e convocar o Poder Público a apoiar as famílias de baixa renda no país. Respeito à diversidade na sociedadeRespeito à diversidade na sociedade 157157 https://www.shutterstock.com/pt/g/NAntoine 158 Temas sociais e educacionais contemporâneos A pesquisa A favela e a fome, realizada pelo Instituto Data Favela, em parceria com o Instituto Locomotiva e a Central Única de Favelas (CUFA), mediu os impactos da pandemia de COVID-19 entre os mora- dores de favelas por meio de entrevistas, com uma amostra de 2.087 pessoas maiores de 16 anos, em 76 favelas localizadas em todos os estados do país, durante o período de 9 a 11 de fevereiro de 2021. Os resultados do levantamento mostram que 68% das pessoas não ti- veram dinheiro para comprar comida em ao menos um dia nas duas semanas anteriores à pesquisa; além disso, apurou-se que o número de refeições diárias dos moradores dessas comunidades vem caindo: de uma média de 2,4 refeições diárias em agosto de 2020, para 1,9 em fevereiro de 2021 (BOCCHINI, 2021). A exclusão pode ser também social, quando o indivíduo, grupo ou co- munidade está excluída da vida social, cultural ou comunitária, sem aces- so, ou com acesso muito limitado a espaços como parques, quadras de esportes, centros culturais, teatros, cinemas, bibliotecas, museus, e tem pouca ou nenhuma oportunidade de lazer, entretenimento, viagens etc. Podemos perceber que há estreita relação entre a exclusão econô- mica e a social, já que a falta de dinheiro e a moradia em lugares afas- tados e sem estrutura mínima levam à falta de acesso aos espaços de convívio social, cultura e lazer. Nesse sentido, as políticas públicas, não só de assistência social, mas também as que envolvem programas cul- turais e esportivos, por exemplo, podem desempenhar papel relevante – com a ajuda de fundações e de ONGs – na redução da exclusão social. Há ainda a exclusão política, a qual diz respeito à falta de acesso aos meios de participação política, tão importantes para a base das sociedades democráticas. Canais de reivindicação e de protesto, orga- nização social e política na defesa de seus interesses como parte de uma categoria profissional ou de uma comunidade, escolha esclarecida dos representantes políticos nos processos eleitorais e monitoramento posterior de seus mandatos são recursos dos processos políticos que, muitas vezes, estão inacessíveis à grande parte da população, por falta de informação, de oportunidade ou de recursos materiais. Um dos meios de superação da exclusão, seja ela econômica, social ou política, é a educação. Segundo o ex-presidente do Instituto Nacio- nal de Pesquisas Educacionais (INEP): a luta por uma educação pública e igualitária deve estar na pauta das lutas políticas nos mesmos níveis das demais lutas sociais e econômicas, como a reforma agrária, a luta por moradia, a defe- sa do setor público e a luta por salários dignos. Se não romper- mos com a atual situação educacional – e esse rompimento só será possível por meio de uma ampla luta social – jamais cons- truiremos bases realmente sólidas para superarmos nossa desi- gualdade (HELENE, 2011). A escola, para ser democrática e inclusiva, deve ser, mais do que um espaço de reprodução social, um local de transformação social, de for- mação de cidadãos críticos que sejam capazes de encarar o desafio de superar, em suas práticas cotidianas, o preconceito e a discriminação, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Uma das vias para alcançar tal objetivo é a gestão democrática, fun- damental para aplicar na prática escolar os princípios previstos pela legislação, como a educação gratuita e de qualidade para todos, a parti- cipação ativa da comunidade escolar nas decisões do cotidiano escolar e na elaboração do Projeto Político Pedagógico, no sentido de construir uma escola cada vez mais inclusiva. Um instrumento importante para a construção de uma gestão escolar democrática são os Conselhos Es- colares, órgãos colegiados compostos de representantes da comunida- de escolar e local que debatem, monitoram e decidem sobre aspectos político-pedagógicos, administrativos e financeiros das escolas. Para conhecer melhor os Conselhos Escolares, acesse o site Todos pela educação. Disponível em: https:// todospelaeducacao.org.br/ noticias/perguntas-e-respostas- como-funcionam-os-conselhos- escolares/. Acesso em: 13 abr. 2021. Site 5.3 Diversidade cultural: multiculturalismo e interculturalismo Vídeo A diversidade está presente nas relações sociais que envolvem es- tratificação social, cultura, identidade, gênero etc. A diversidade cultu- ral, em específico, abrange as variações das práticas e dos comportamentos humanos, ultrapassando os simples elementos inte- grantes da cultura de determinado grupo social. A diversidade está presente nas relações sociais que envolvem estratificação social, cultura, identidade, gênero etc. pi xe lh ea dp ho to di gi ta ls ki lle t/ Sh ut te rs to ck Respeito à diversidade na sociedadeRespeito à diversidade na sociedade 159159 https://todospelaeducacao.org.br/noticias/perguntas-e-respostas-como-funcionam-os-conselhos-escolares/ https://todospelaeducacao.org.br/noticias/perguntas-e-respostas-como-funcionam-os-conselhos-escolares/ https://todospelaeducacao.org.br/noticias/perguntas-e-respostas-como-funcionam-os-conselhos-escolares/ https://todospelaeducacao.org.br/noticias/perguntas-e-respostas-como-funcionam-os-conselhos-escolares/ https://todospelaeducacao.org.br/noticias/perguntas-e-respostas-como-funcionam-os-conselhos-escolares/ https://www.shutterstock.com/pt/g/pixelheadphoto https://www.shutterstock.com/pt/g/pixelheadphoto 160 Temas sociais e educacionais contemporâneos As variações culturais, por sua vez, relacionam-se à construção das diferentes características que compõem as identidades sociais. Se- gundo Giddens (2005, p. 44, grifo do original), identidade social: refere-se às características que são atribuídas a um indivíduo pelos outros. Elas podem ser vistas como marcadores que in- dicam quem, em um sentido básico, essa pessoa é. Ao mesmo tempo, esses marcadores posicionam essa pessoa em relação a outros indivíduos que compartilham dos mesmos atributos. A identidade social pode ser identificada por características do sujei- to, e refletir as multiplicidades e as pluralidades sociais: são exemplos de identidade social o estudante, a mãe, o advo- gado, o católico, o sem-teto, o asiático, o disléxico, o casado, e assim por diante. Muitos indivíduos têm identidades sociais que compreendem mais do que um atributo. Uma pessoa poderia ser simultaneamente uma mãe, uma engenheira, muçulmana e uma vereadora [...]. Múltiplas identidades sociais refletem as múltiplas dimensões das vidas das pessoas [...] portanto, envol- vem uma dimensão coletiva. Elas marcam as formas pelas quais os indivíduos são “o mesmo” que os outros. As identidades com- partilhadas – baseadas em um conjunto de objetivos comuns, de valores ou de experiências – podem formar uma base importan- te para os movimentos sociais (GIDDENS, 2005, p. 44). Reconhecer a diversidade cultural e as diferentes identidades so- ciais não torna as relações sociais automaticamente harmônicas. Todo dia podemos identificar na sociedade diversosconflitos que perpas- sam as relações sociais, várias situações de desigualdade, preconcei- to, discriminação e violência contra o “diferente”, demonstrando que ainda há um longo caminho a ser percorrido para que nos aproprie- mos verdadeiramente do significado social do respeito à diversidade e superemos a perspectiva etnocêntrica. Segundo Rocha (1988, p. 124), De um lado conhecemos um grupo do “eu”, o “nosso” grupo, que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses, casa igual, mora no mesmo estilo, distribui o poder da mesma forma, empresta à vida significados em comum e procede, por muitas maneiras, semelhantemente. Aí, então, de repente, nos depara- mos com um “outro”, o grupo do “diferente” que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas, ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos como possíveis. E, [...] este “outro” também sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no mundo e, ainda que diferente, também existe. Você sabe o que é etnocentris- mo? Trata-se de uma visão de mundo segundo a qual nosso próprio grupo é considerado o centro de todas as coisas, e nossos valores, características culturais, identidade social, nossas definições de certo e errado etc. são tomados como a única referência, filtrando toda a nossa visão sobre os outros. É uma dificuldade extrema em pensar com base na diferença e a conviver com o que não é idêntico a nós. Saiba mais Respeito à diversidade na sociedade 161 A compreensão do conceito de etnocentrismo é fundamental para a construção de uma postura tolerante em relação às diferenças, e pode ser a base para os debates sobre diversidade étnica e de gênero na escola. É importante ressaltar que tais debates, assim como os que abran- gem as diversidades de orientações sexuais, de crenças e de religião, político-ideológica etc., devem ser feitos com base em uma sólida fun- damentação teórica, evitando preconceitos ou opiniões pessoais do professor, sob pena de, ao invés de formar para a tolerância e o respei- to às diferenças, formar para o preconceito e a discriminação. Para que isso ocorra, é essencial reconhecer o outro, em sua dife- rença, como sujeito. Esse reconhecimento passa por uma relação que pode ser compreendida por meio do conceito de alteridade. A alteridade é o processo no qual construímos nossa própria identi- dade em relação a um outro diferente de nós. Ou seja, o “eu” só existe em contato com o “outro”, e nesse diálogo, a diversidade e as caracte- rísticas do outro são valorizadas e reconhecidas como tão válidas quan- tos as minhas. Para compreender o outro, é preciso fazer o movimento de me colocar no lugar dele, de ver o mundo com os seus olhos, de pensar a vida com a sua lógica. No campo da filosofia, alteridade é o oposto de identidade, já na antropologia esse conceito assume o papel de pilar central dessa ciência, que se debruça justamente no estudo do “outro”, de outras culturas. A alteridade, portanto, é a relação ideal a ser estabelecida quando a proposta é conhecer e respeitar o que é diverso de nós. Não significa que nos transformaremos no outro, não é esse o objeti- vo. Manteremos nossa identidade e nossas características, mas com- preenderemos o diferente e seus atributos. Desse modo, não teremos mais medo ou estranheza em relação ao outro, podendo tratá-lo com tolerância, respeito e dignidade, como tratamos a nós mesmos e gos- taríamos de ser tratados pelo outro. Educar na diversidade, e para a diversidade, é dar novos significa- dos ao outro, aprendendo a nos relacionar com ele harmoniosamen- te, sem julgamentos prévios, sem discriminação, sem violência. Para tanto, o educador deve assumir uma postura democrática, com visão transitiva, para não se fechar em si. Na prática pedagógica, deve haver um projeto que priorize as especificidades e os interesses individuais e coletivos dos discentes. Nessa perspectiva, estabelece-se um novo 162 Temas sociais e educacionais contemporâneos contato pedagógico, o qual pode direcionar o investimento ao aluno, valorizando o que ele sabe, as suas potencialidades e o que ele ainda não domina, para, dessa forma, poder incluí-lo efetivamente no proces- so de ensino-aprendizagem. No contexto dos debates sobre diversidade, há um conjunto de ideias que tem servido como referência, chamado de multiculturalismo, cuja ideia principal é a da necessidade de se garantir o reconhecimen- to das diferenças que existem entre as pessoas e entre os grupos so- ciais, bem como assegurar a representação das culturas minoritárias e suas especificidades. A concepção de multiculturalismo, apesar de se basear, em princí- pio, na noção de que nenhuma forma cultural é inferior ou superior em relação às outras, mas apenas diferente, não constitui uma teoria homogênea, e conta com diferentes linhas teóricas. Hall (2003) descre- ve as principais tendências do multiculturalismo e suas características principais, que são apresentadas no quadro a seguir. Quadro 1 Tendências do multiculturalismo Tendência Propostas Conservadora Assimilação da diferença às tradições e aos costumes da maioria. Liberal Integração dos diferentes grupos culturais à sociedade majori- tária. Comercial Reconhecimento público da diversidade dos indivíduos determi- nando a resolução das diferenças na esfera privada, sem redis- tribuição de poder ou de recursos. Corporativa Administração das diferenças culturais das minorias visando aos interesses do centro. Crítica Revelação dos mecanismos de poder, do privilégio e da hierar- quia das opressões visando construir movimentos de resistência. Fonte: Elaborado pela autora com base em Hall, 2003, p. 53. Podemos perceber, por meio dos elementos apresentados nesse quadro, que várias das tendências buscam impor os padrões culturais da maioria às minorias, mesmo que por meio de processos ditos “har- mônicos”, como é o caso das tendências conservadora e liberal; ou ad- ministrar as diferenças de modo a defender interesses corporativos, ou, ainda, dar publicidade ao reconhecimento das diferenças, mas não mover um dedo para amenizá-las de algum modo, redistribuindo re- cursos ou poder de maneira mais justa e equânime. A única tendência Respeito à diversidade na sociedade 163 que pretende desconstruir as bases que reproduzem as diferenças e os privilégios é a linha crítica. A visão do multiculturalismo crítico tem inspirado, nas últimas dé- cadas, a defesa de que os currículos escolares devem privilegiar um ensino mais equilibrado e plural dos elementos da história, da cultura e da sociedade, sob uma perspectiva que apresente claramente a di- versidade étnico-racial do passado e do presente (BALL; MZAMANE; BERKOVITZ, 1998), e destaque as ações de grupos minoritários, ex- pondo os processos de dominação dos grupos majoritários sobre eles nas sociedades e suas consequências para as estruturas sociais atuais (BRYM, 2006). Tal visão já estava expressa nos PCN (BRASIL, 1998), sobretudo no tema da Pluralidade Cultural, integrante dos eixos transversais pro- postos pelo documento, e está presente também no contexto dos Temas Contemporâneos Transversais, propostos pela BNCC, no tema Multiculturalismo. Outra corrente teórica bastante debatida no cenário contemporâ- neo é o interculturalismo, conceito ainda em construção que busca promover a interação de culturas diversas e, mais que isso, reconhe- cer e compreender a própria cultura, no sentido de enriquecer-se com as contribuições que o diálogo com outras culturas pode fornecer. Se- gundo Vieira (2001, p. 118): um contato superficial com o tema pode sugerir que intercul- tura busca harmonizar a convivência entre diferentes culturas, excluindo ou minimizando conflitos, na medida em que uma cultura tolere a outra. Mas não se pretende [na realidade] de- senvolver tolerância. Tolerar significa suportar, aguentar, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de uma cultura sobre aoutra. O que se pretende [com a intercultura] é desenvolver relacionamentos cooperativos entre as diferentes culturas, em que sejam mantidas – e respeitadas – as identidades culturais. A intercultura não busca a hegemonia, mas o reconhe- cimento da diversidade. Os conflitos permanecem, inclusive em nome da democracia, mas devem existir em condição de igual- dade, em que as diferenças não se reflitam em preconceitos e discriminações. Sob a perspectiva intercultural, a escola deve formar não só para o reconhecimento do outro e de suas diferenças, mas também para uma verdadeira comunicação com o outro na condição de sujeito, de igual 164 Temas sociais e educacionais contemporâneos para igual, respeitando a legitimidade e a riqueza de todas as culturas. Nesse sentido, podemos ver algumas semelhanças mais gerais entre a tendência intercultural e o multiculturalismo. Alguns autores, porém, diferenciam bastante as duas perspectivas, e tais diferenças podem in- fluenciar as propostas educativas. A primeira diferença estaria na intencionalidade ou na não inten- cionalidade que impulsiona as relações entre diferentes grupos. Na perspectiva multicultural, há o reconhecimento das diferenças étnicas, culturais, religiosas, de gênero etc. entre os indivíduos e os grupos que convivem em um mesmo contexto, como o escolar, e o educador pre- cisa adaptar sua proposta educativa e suas práticas pedagógicas com base nesse fato, procurando reduzir os conflitos. Já na perspectiva in- tercultural, o docente formula intencionalmente um projeto educativo para construir relações entre os indivíduos e os grupos diferentes no contexto escolar, ou seja, a proposta é de transformação e de diálogo, e não apenas de coexistência entre diferentes. Uma outra diferença entre as duas perspectivas está na compreen- são das relações entre culturas sob o aspecto das práticas educativas no cotidiano escolar. Na concepção multicultural, as diferentes culturas são objetos de ensino, ou seja, conteúdos a serem estudados. Na con- cepção intercultural, por outro lado, as culturas são consideradas como as visões de mundo, os modos de interagir com a realidade próprios a cada grupo, e que, ao se relacionarem, resultam em diálogos e trocas produtivas e transformadoras, ampliando os horizontes de todos, alar- gando a interpretação da realidade para além da visão específica de cada grupo, proporcionando a compreensão de outros pontos de vista, de outros nexos lógicos por meio do olhar do outro. Por fim, podemos identificar ainda uma terceira diferença importan- te entre as perspectivas multicultural e intercultural no plano educativo, relacionada à questão dos sujeitos. Uma proposta educativa intercul- tural compreende, ao contrário da proposta multicultural, os sujeitos concretos das relações; ou seja, a ênfase está nas pessoas provenientes de diferentes culturas que se relacionam, e não nas diferentes culturas, de modo abstrato, já que as culturas só existem nas ações dos sujeitos. Uma educação intercultural é, portanto, uma pedagogia do encon- tro, expressa em experiências complexas e transformadoras entre os sujeitos, os quais transitam entre o conflito e o acolhimento, e repre- sentam a oportunidade de crescimento da cultura pessoal de cada um e da construção de relações sociais mais livres e solidárias. Para construir uma proposta educativa intercultural, é preciso, de acordo com Antonio Nanni (1998), proceder algumas transformações no sistema escolar, como viabilizar, na prática, o princípio da igual- dade de oportunidades, deixando de tratar quaisquer grupos como inferiores, e oportunizando o protagonismo de todos na elaboração, na escolha e na aplicação das estratégias educativas, superando a na- tureza monocultural de conteúdos disciplinares e de metodologias. O autor cita também a necessidade de reelaborar os livros didáti- cos, de adotar recursos, técnicas e instrumentos midiáticos e digitais, e de estabelecer a perspectiva interdisciplinar no ensino. Para ele, os materiais didáticos costumam centrar-se na cultura hegemônica, dan- do pouco espaço à diversidade de interpretações da realidade e dife- rentes modelos de comportamento e valores, acabando por estimular o preconceito e a discriminação às culturas não hegemônicas. Nanni (1998) cita, ainda, a formação de professores como pilar essencial da educação intercultural, sob a perspectiva de mudança de mentalidade e de desconstrução do caráter monocultural das propostas de ensino tradicionais e da superação da perspectiva et- nocêntrica que, muitas vezes, é inadvertidamente adotada pelos educadores simplesmente pelo hábito de reproduzir posturas con- solidadas no meio escolar. 5.3.1 Formação para a cidadania e para a inclusão Quando falamos em cidadania, podemos pensar em direitos e deveres em determinada sociedade, ou no direito ao voto. Mas ela não se restringe ao direito de eleger os representantes políticos, nem mesmo se limita aos direitos políticos. A cidadania é estreita- mente ligada aos direitos humanos, que pressupõem a garantia de igualdade e de liberdade, e o reco- nhecimento e o respeito pelas diversidades so- cial, cultural e econômica. São direitos do cidadão o acesso às condições básicas de uma vida digna, à diversidade, à saúde, Para aprofundar os conhecimentos sobre os Direitos Humanos na sociedade contempo- rânea, leia a obra Uma concepção multicultural dos Direitos Humanos. SANTOS, B. S. São Paulo: Lua Nova, 1997. Livro Lightspring/Shutterstock Respeito à diversidade na sociedadeRespeito à diversidade na sociedade 165165 https://www.shutterstock.com/pt/g/lightspring 166 Temas sociais e educacionais contemporâneos à educação, à livre expressão, à moradia digna, ao trabalho, ao voto, entre outros. E para o exercício da cidadania plena, tais direitos de- vem ser traduzidos por políticas públicas que lhes atribuam viabilidade prática. De nada adianta prever tais direitos e não os viabilizar na vida cotidiana das pessoas. Os chamados deveres do cidadão, estabelecidos por lei, também fa- zem parte do que se define como cidadania. Entram nessa lista o dever de pagar impostos, de vacinar os filhos e de matriculá-los na escola, de obedecer às leis, aos decretos e a outras regras instituídas no território nacional, no estado ou no município etc. É preciso levar em conta, ainda, que o direito coletivo, social ou comunitário se impõe ao direito individual, quando o exercício deste pode prejudicar a coletividade. Um exemplo disso é o contexto de uma pandemia: nessa situação, os direitos coletivos relativos à saúde sani- tária e à proteção da vida de todos estão acima de eventuais direitos individuais, cujo exercício possa, por exemplo, contaminar outras pes- soas, ou prejudicar a imunidade coletiva da população. Em situações de epidemias, catástrofes naturais, guerras etc., a le- gislação prevê restrições aos direitos individuais em nome dos direitos coletivos, mas é preciso tomar cuidado quando tais recursos legais são usados de modo equivocado, por motivações políticas, interesses ideo- lógicos, econômicos, ou ligados a ações autoritárias ou discriminatórias. No Brasil, foi a partir da Constituição Federal de 1988, denomina- da Constituição Cidadã, que se passou a afirmar fortemente no país a necessidade de garantia dos direitos humanos. Desde então, até re- centemente, o Estado brasileiro vinha realizando um esforço sistemáti- co de defesa e de proteção dos direitos fundamentais e, respondendo em muitas ocasiões às demandas de diferentes movimentos sociais, ampliando progressivamente a inclusão de novos temas em suas preo- cupações, o que resultou em um significativo conjunto de normas e de políticas públicas calcadas na proteção e na promoção dos direitos humanos, o qual, por sua vez, impactou positivamente a construção da noção de cidadania no país. Por outro lado, apesar de muitos setores da sociedade demonstra- rem novas sensibilidades social, ética, política e culturalem relação aos direitos humanos, são comuns as violações sistemáticas de tais direitos. Respeito à diversidade na sociedade 167 A impunidade, as várias formas de violência, a desigualdade social, o preconceito e as discriminações, além da fragilidade da aplicação prá- tica dos direitos juridicamente garantidos, estão presentes na vida de grande parte da população. Somado a tal contexto estrutural, assis- timos desde 2016, sobretudo a partir de 2019, a uma conjuntura de desmantelamento sistemático dos dispositivos de defesa dos direitos humanos no país, com constantes ataques às conquistas relativas e às políticas públicas de Estado voltadas para sua promoção. Parece claro, portanto, que o arcabouço jurídico relacionado aos di- reitos humanos é insuficiente se não contar com uma internalização desses direitos no imaginário social, nas mentalidades individuais e co- letivas, de modo sistemático e consistente, a fim de que, a despeito de ataques e de perdas conjunturais, seja mantida uma cultura sólida dos direitos humanos e do respeito à diversidade em nossa sociedade. Sob essa perspectiva, os processos educacionais são essenciais. Uma educação inclusiva passa por práticas inclusivas na escola que vão além de apenas inserir os alunos no contexto escolar, integrando- -os ao grupo, elas consideram suas diferenças e necessidades específi- cas, garantindo acesso, permanência e participação de todos nas salas de aula regulares. Sob a perspectiva inclusiva, a escola não precisa apenas ser um espa- ço adaptado às necessidades específicas dos alunos, como no caso das adaptações que facilitam o acesso de deficientes físicos, ou os recursos didáticos que favorecem a aprendizagem de alunos com limitações cog- nitivas ou deficiências intelectuais, como as tecnologias assistivas. A escola deve, também, ofertar educação de qualidade e promover o sucesso e a permanência de todos os alunos, independentemente de suas especificidades, reconhecendo-os como sujeitos de direito igual, capazes de protagonizar seu próprio caminho na construção dos co- nhecimentos, dos valores e de sua trajetória. Para isso, os educadores precisam desenvolver cotidianamente em seus alunos: o senso de pertencimento à comunidade escolar; a co- laboração e a cooperação, com o desenvolvimento de estratégias de apoio mútuo, como a aprendizagem por pares, a monitoria e a apren- dizagem em equipe; a flexibilidade de aprendizagem, de acordo com o estilo e o ritmo individual; a aprendizagem autônoma, por meio de pesquisas; e a aprendizagem a partir de problemas, com estratégias 168 Temas sociais e educacionais contemporâneos baseadas na mediação dos percursos autônomos de aprendizagem e na aprendizagem motivada por interesse. Além disso, os professores precisam desenvolver flexibilidade e variedade de métodos, de recursos e de instrumentos de avaliação, escapando dos processos de avaliação padronizados e construindo no- vas formas de avaliar o desenvolvimento dos alunos, respeitando suas especificidades, limitações e progressos próprios, criando verdadeiras oportunidades de crescimento para todos e promovendo uma verda- deira inclusão. CONSIDERAÇÕES FINAIS No contexto de profundas desigualdades socioeconômicas presentes na sociedade brasileira, a garantia de igualdade perante as leis não as- segura, por si só, a cidadania plena. É preciso, também, que se garanta a todos, sem distinção de nenhuma espécie, o acesso aos direitos básicos que proporcionam uma vida digna. Além disso, é necessário reconhecer e respeitar a diversidade dos indivíduos e dos grupos que compõem a po- pulação, valorizando suas especificidades e legitimando a expressão das identidades sociais e culturais diversas. Nesse sentido, o papel da escola é crucial, pois é nela que se pode desenvolver e aplicar um projeto educativo o qual considere os pilares dos direitos humanos, da formação para a cidadania e do respeito à diversidade. ATIVIDADES 1. Escolha um dos aspectos abordados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e formule exemplos práticos de sua aplicação (ou não) na sociedade brasileira. 2. De que modo é possível explicar o grande aumento da violência policial contra jovens moradores da periferia das cidades brasileiras, apontado pelo relatório Direitos Humanos nas Américas: retrospectiva 2019, da Anistia Internacional? 3. Como você explicaria aos seus alunos o mito da democracia racial? 4. O que é etnocentrismo? Vídeo Respeito à diversidade na sociedade 169 REFERÊNCIAS AMNISTIA INTERNACIONAL. Los derechos humanos en las Américas. Retrospectiva 2019. Disponível em: https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/Derechos%20 humanos%20en%20las%20Am%C3%A9ricas.%20Informe%20anual%202019.pdf Acesso em: 27 abr. 2021. BALL, H.; MZAMANE, M. V.; BERKOWITZ, S. D. Multicultural education in colleges and universities: a transdisciplinary approach. Oxfordshire, UK: Routledge, 1998. BOBBIO, N. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BOCCHINI, B. Quase 70% dos moradores de favelas não têm dinheiro para comida. Agência Brasil, 13 mar. 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos- humanos/noticia/2021-03/quase-70-dos-moradores-de-favelas-nao-tem-dinheiro-para- comida. Acesso em: 12 abr. 2021. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018. BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília, DF: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2003. BRASIL. 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