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1 Módulo de Biologia Evolutiva Universidade Pedagógica Rua João Carlos Raposo Beirão nº 135, Maputo Telefone: (+258) 21-320860/2 ou 21 – 306720 Fax: (+258) 21-322113 Centro de Educação Aberta e à Distancia Programa de Formação à Distância Av. de Moçambique, Condomínio Vila Olímpica, bloco 22 edifício 4, R/C, Zimpeto Telefone: (+258) 82 3050353 e-mail: cead@up.ac.mz / up.cead@gmail.com mailto:cead@up.ac.mz mailto:up.cead@gmail.com 2 Ficha técnica Autoria: Rodrigo de Mello Revisão Científica: André Machava Manhiça Revisão da Engenharia de EAD e Desenho Instrucional: Cornélio Mucaca Edição Linguistica: Orlanda Gomane Edição técnica/Maquetização: Aurélio Armando Pires Ribeiro Primeira Edição © 2017 Impresso e Encadernado por: © Todos os direitos reservados. Não pode ser publicado ou reproduzido em nenhuma forma ou meio –mecânico ou eletrónico- sem a permissão da Universidade Pedagógica. 3 Índice Unidade no 1: Teorias interpretativas sobre a origem das espécies ................................................................................................. 11 Lição no 1: Introdução à Biologia Evolutiva ................................................................................. 12 1.1. O foco de estudo da Biologia Evolutiva .................................................................................... 13 1.2. Há contradição entre evolução e religião? ............................................................................... 14 1.3. Conceitos relevantes da Biologia Evolutiva ............................................................................... 18 1.4. Selecção natural vs. selecção artificial ................................................................................... 20 Lição no 2: Selecção Natural: a força motriz da evolução biológica ................................................ 30 2.1. Tipos de selecção natural: processos e mecanismos de actuação ................................................... 31 2.2. O neutralismo molecular: nem toda mudança sofre selecção ........................................................ 34 Lição no 3: Teorias interpretativas sobre a origem e diversificação de espécies ............................. 47 3.1. Teorias e hipóteses fixistas: as ideias sobre evolução antes de Darwin ............................................ 48 Lição no 4: Tipos de evidências sobre a existência da evolução I ................................................... 65 4.1. Evidências morfológicas de espécies vivas ............................................................................... 66 Lição no 5: Tipos de evidências sobre a existência da evolução II................................................... 92 5.1. Evidências embriológicas e a biologia do desenvolvimento (EvoDevo) .............................................. 93 5.2. Evidências biogeográficas: distribuição geográfica, clima e atributos ecológicos do ambiente ............... 99 Unidade no 2: Princípios e Perspectivas da Acção da Evolução ............................................................. 106 Lição no 6: A relação entre adaptação, nicho ecológico e sucesso reprodutivo .............................. 107 6.1. Os seres vivos apresentam adaptações e estas podem favorecer indivíduos diferentes ..................... 108 6.2. O contexto ecológico da evolução: disponibilidade de nicho e adaptação ........................................ 110 6.3. Evolução na perspectiva macroecológica (Cladogénese) ........................................................... 112 Lição no 7: . Modelos de especiação e mecanismos de isolamento reprodutivo ............................... 116 7.1. O que é uma espécie? Conceitos e escopo teórico .................................................................... 117 7.2. Mecanismos de Isolamento Reprodutivo ................................................................................ 123 7.3. As espécies e sua formação .............................................................................................. 125 Lição no 8: Tipos de especiação e factores relacionados à divergência genética ............................ 131 8.1. A especiação alopátrica exige isolamento reprodutivo completo .................................................. 132 8.2. A especiação simpátrica ocorre sem separação física ............................................................. 134 Unidade no 3: Tipo de Evolução ........................................................................................................................................................ 142 Lição n0 Os rumos da evolução: linhagens convergentes e divergentes ........................................ 143 9.1. . Evolução convergente: nem todas as características semelhantes são homólogas .......................... 144 9.2. Gradualismo: surgimento lento e gradual de novas linhagens ..................................................... 147 9.3. Equilíbrio Pontuado: rápidas mudanças em curtos períodos (geológicos) de tempo .......................... 148 4 Unidade no 4: Origem da Terra e da Vida ........................................................................................................................................153 Lição no 10: . Tempo geológico e histórico da Terra ................................................................... 154 10.1. Origem do universo e origem do nosso sistema solar............................................................... 155 10.2. A origem da vida e o surgimento das primeiras células ............................................................ 156 Lição no 11: Teorias sobre a complexidade e diversificação da vida .............................................. 160 11.1. A origem da vida pluricelular .............................................................................................. 161 11.2. Evolução dos sistemas de respiração e fotossíntese ................................................................ 162 11.3. A ‘explosão do cambriano’ e o florescimento e diversificação da vida ........................................... 164 Unidade no 5: Vias Evolutivas das Plantas ........................................................................................................................................ 171 Lição no 12: .Principais linhagens de diversificação dos vegetais ................................................. 172 12.1. Origem, desenvolvimento e níveis de organização ................................................................... 173 12.2. Origem e evolução das plantas espermatófitas: a transição ao modo de vida terrestres ................... 178 12.3. Aparecimento das sementes nas Gimnospermas e Angiospermas ............................................... 183 12.4. A importância e o papel das plantas na evolução de ecossistemas .............................................. 186 Unidade no 6: Vias Evolutivas dos Animais ......................................................................................................................................195 Lição no 13: Principais linhagens de diversificação dos animais ................................................... 197 13.1. O surgimento dos primeiros vertebrados ........................................................................... 198 13.2. Evolução dos tetrápodes ................................................................................................ 200 13.3. A diversificação dos mamíferos e suas diferenças em relação aos seus ancestrais reptilianos ......... 201 Unidade no 7: Origem e Evolução Do Homem ................................................................................................................................... 211 Lição no 14: História evolutiva dos sereshumanos .................................................................... 212 14.1. Origem e evolução da espécie humana ............................................................................... 213 14.2. Classificação do Homem como organismo e as evidências fósseis dos primeiros hominídeos ............ 218 Lição no 15: As relações filogenéticas entre o Homem e outros primatas ............................................. 226 15.1. A ancestralidade recente dos humanos: a aurora da humanidade .............................................. 227 15.2. As relações de parentesco entre humanos e os macacos antropóides actuais .............................. 229 15.3. Ética e evolução: a espécie humana como gerenciadora da biodiversidade contemporânea .............. 231 5 Visão Geral do Módulo Apresentação Nada faz sentido em biologia exceto à luz da evolução. Essa frase, frequentemente citada, é título de um famoso trabalho de Theodosius Dobzhansky – que foi um dos biólogos evolucionistas mais eminentes do século XX - e resume bem a importância dos conceitos evolutivos para as ciências biológicas. A teoria da evolução por seleção natural é, sem dúvida alguma, a generalização mais importante até agora feita no campo das ciências naturais e pode ser testada cientificamente em todas essas áreas de conhecimento. Ela é uma das ideias mais poderosas em todas as áreas da ciência e é a única teoria que pode seriamente reivindicar a condição de unificar a biologia. Neste material irei abordar como o pensamento evolucionista foi se modificando e se aprimorando ao longo do tempo, e como essa ciência sempre foi cercada por aspectos religiosos e culturais, tanto que encontra barreiras para o seu entendimento até nos dias de hoje. Veremos como a publicação de A Origem das Espécies por Charles Darwin, em 1859, influenciou o estudo evolucionista e os pesquisadores a partir de então, por ter feito mais do que qualquer outro indivíduo, antes ou depois dele, para modificar a atitude e a visão do homem em relação ao fenômeno da vida. Os conceitos evolutivos forneceram à biologia um arcabouço científico coerente de ideias, em vez de uma abordagem composta de mitos e superstições, fazendo com que a evolução por seleção natural se tornasse um fato inegável, compreensível como processo e abrangente como conceito. A emergência do darwinismo e o avanço tecnológico, principalmente na genética, permitiram o desenvolvimento de novas teorias e o aprimoramento de antigas. Veremos como a seleção natural, o isolamento reprodutivo e as barreiras geográficas e ecológicas são os principais mecanismos que atuam nas populações naturais, impulsionando-as a divergências evolutivas que contribuíram ao longo do tempo para a diversificação e estabelecimento da majestosa biodiversidade de nosso planeta. Uma das principais conclusões que espero é que o estudo deste módulo possa despertar em cada aluno a ideia de que somente em um contexto evolutivo o ser humano é capaz de olhar a Natureza com humildade e vislumbre, colocando-se não mais no centro de uma visão antropocêntrica para 6 compreender a diversidade das formas de vida da atualidade. E isso só se é possível quando aplicamos os princípios das teorias evolutivas para interpretar, criticar e debater diferentes versões da origem e evolução das espécies. Assim, os temas são aqui divididos em oito unidades que abordarão, respectivamente, (1) as principais teorias que buscam respostas sobre a origem das espécies; (2) as evidências da ação da evolução por seleção natural; (3) os princípios e perspectivas da ação da evolução; (4) os tipos de evolução; (5) a origem da Terra e da vida; (6) as vias evolutivas das plantas; (7) as vias evolutivas dos animais e, por fim, (8) a origem e evolução do ser humano. Os conteúdos dentro de cada unidade serão distribuidos em diversas lições, com a finalidade de dividir temporal e coerentemente os principais conceitos para estudo. 7 Objectivos do Módulo • Apresentar o campo de estudo da Biologia Evolutiva, distinguindo a evolução biológica da não biológica; • Explicar e apresentar o histórico do pensamento evolucionista; • Identificar e comparar as diferentes teorias interpretativas sobre a origem e evolução das espécies. Ícones de Actividades Caro estudante, para lhe ajudar a orientar-se no estudo deste módulo e facilmente localizar cada um dos elementos da lição, foram usados marcadores de texto do tipo ícones. Os ícones (na sua maioria) foram concebidos pelo CEMEC (Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociência) da Universidade Pedagógica. Tomou-se em consideração a diversidade cultural Moçambicana. Encontre, a seguir, a lista de ícones, o que a figura representa e a descrição do que cada um deles indica no módulo: 1. Exercício [enxada em actividade] 2. Actividade [colher de pau com alimento para provar] 3. Auto-Avaliação [peneira] 8 4. Exemplo/estudo de caso [Jogo Ntxuva] 5. Debate [à volta da fogueira] 6. Trabalho em grupo [mãos unidas] 7. Tome nota/Atenção [batuque soando] 8. Objectivos [estrela cintilante] 9. Leitura [livro aberto] 10. Reflexão [embondeiro] 11. Tempo [sol] 12. Resumo [sentados à volta da fogueira] 13. Terminologia/ Glossário 14. Vídeo/Plataforma [computador] 15. Comentários [balão com texto] 1. Exercício (trabalho, exercitação) – A enxada relaciona-se com um tipo de trabalho, indica que é preciso trabalhar e pôr em prática ou aplicar o aprendido. 2. Actividade - A colher com o alimento para provar indica que é momento de realizar uma actividade diferente da simples leitura, e verificar como está a ocorrer a aprendizagem. http://www.freepik.com/index.php?goto=27&url_download=aHR0cDovL3d3dy5mbGF0aWNvbi5jb20vZnJlZS1pY29uL2NoYXQtY2lyY3VsYXItYnViYmxlLXdpdGgtbWVzc2FnZS10ZXh0LWxpbmVzXzUwMDEx&opciondownload=318&id=aHR0cDovL3d3dy5mbGF0aWNvbi5jb20vZnJlZS1pY29uL2NoYXQtY2lyY3VsYXItYnViYmxlLXdpdGgtbWVzc2FnZS10ZXh0LWxpbmVzXzUwMDEx&fileid=792302 9 3. Auto-Avaliação – A peneira permite separar elementos, por isso indica que existe uma proposta para verificação do que foi ou não aprendido. 4. Exemplo/Estudo de caso – Indica que há um caso a ser resolvido comparativamente ao jogo de Ntxuva em que cada jogo é um caso diferente. 5. Debate – Indica a sugestão de se juntar a outros (presencialmente ou usando a plataforma digital) para troca de experiências, para novas aprendizagens, como é costume fazer-se à volta da fogueira. 6. Trabalho em grupo –Para a sua realização há necessidade de entreajuda, que se apoiem uns aos outros 7. Tome nota/Atenção – Chamada de atenção 8. Objectivos – orientação para organização do seu estudo e daquilo que deverá aprender a fazer ou a fazer melhor 9. Leitura adicional – O livro indica que é necessário obter informações adicionais através de livros ou outras fontes. 10. Reflexão – O embondeiro é robusto e forte. Indica um momento para fortalecer as suas ideias, para construir o seu saber. 11. Tempo – O sol indica o tempo aproximado que deve dedicar á realização de uma tarefa ou actividade, estudo de uma unidade ou lição. 12. Resumo – Representado por pessoas sentadas à volta da fogueira como é costume fazer-se para se contar histórias. É o momento de sumarizar ou resumir aquilo que foi tratado na lição ou na unidade. 13. Terminologia/Glossário – Representado por um livro de consulta, indica que se apresenta a terminologia importante nessa lição ou então que se apresenta um Glossário com os termos mais importantes. 14. Vídeo/Plataforma – O computador indica que existe um vídeo para ser visto ou que existe uma actividade a ser realizada na plataforma digital de ensino e aprendizagem. 15. Balão com texto – Indica que existemcomentários para lhe ajudar a verificar as suas respostas às actividades, exercícios e questões de auto-avaliação. 10 Pág. 11 -104 Teorias interpretativas sobre a origem das espécies Conteúdos 1 U N ID A D E Lição no 1: Introdução à Biologia Evolutiva 1.1. O foco de estudo da Biologia Evolutiva 1.2. Há contradição entre evolução e religião? 1.3. Conceitos relevantes da Biologia Evolutiv 1.4. Selecção natural vs. selecção artificial Lição no 2: Selecção Natural: a força motriz da evolução biológica 2.1. Tipos de selecção natural: processos e mecanismos de actuação 31 2.2. O neutralismo molecular: nem toda mudança sofre selecção Lição no 3: Teorias interpretativas sobre a origem e diversificação de espécies 3.1. Teorias e hipóteses fixistas: as ideias sobre evolução antes de Darwin Lição no 4: Tipos de evidências sobre a existência da evolução I 4.1. Evidências morfológicas de espécies vivas Lição no 5: Tipos de evidências sobre a existência da evolução II 5.1. Evidências embriológicas e a biologia do desenvolvimento (EvoDevo) 5.2. Evidências biogeográficas: distribuição geográfica, clima e atributos ecológicos do ambiente 11 Unidade no 1: Teorias interpretativas sobre a origem das espécies Introdução Desde os primórdios da humanidade há evidências de que nossos antepassados buscam uma explicação para a diversidade de vida que nos rodeia. Qualquer pessoa que analise e reflita sobre isso, prontamente se perguntará: “Mas como as diferentes espécies surgiram?”. Durante muitos séculos não houve uma resposta cientificamente satisfatória para essa pergunta. Muitas das melhores explicações eram baseadas em mitos, divindades criadoras ou mesmo superstições. Somente em meados do século XIX é que tivemos uma explicação plausível para essa questão sustentada por evidências científicas mais robustas e coerentes. Isso reflecte que no desenvolvimento do pensamento evolutivo, assim como em toda a ciência, nenhuma novidade científica surge sem conhecimentos prévios estabelecidos e investigados por outros cientistas que já buscavam aprimorar as respostas para antigas questões. Nesta unidade, você irá conhecer as principais teorias e hipóteses que sustentam o pensamento evolutivo, como a origem das espécies tem fascinado os cientistas durante séculos e como aprendemos a ter benefícios no dia-a-dia por meio de um conhecimento mais rebuscado sobre a evolução biológica. Objectivos No fim desta unidade você deverá ser capaz de: • Conhecer o campo de estudo da Biologia Evolutiva, distinguindo a evolução biológica da não biológica; • Ter ciência dos principais acontecimentos e mudanças de paradigmas no contexto histórico do pensamento evolucionista; • Identificar e comparar as diferentes teorias interpretativas sobre a origem e evolução das espécies. 12 Lição no 1: Introdução à Biologia Evolutiva Introdução A biologia evolutiva, como toda a ciência, se desenvolveu e tem se desenvolvido constantemente pelos esforços e investigações de uma infinidade de cientistas. Como disciplina essencialmente ecléctica, ela exige uma interação com outras disciplinas, o que lhe confere uma abordagem multidisciplinar. Nesta lição inicial, você irá conhecer os campos de actuação da disciplina e os principais conceitos envolvidos em seu escopo teórico. Ainda, conhecerá um breve histórico de como as ideias sobre evolução se desenvolveu e se consolidou ao longo do tempo. Objectivos No fim desta lição você deverá ser capaz de: • Situar o campo de actuação da Biologia Evolutiva dentro das Ciências Biológicas; • Definir as principais linhas de investigação e metodologias dentro da Biologia Evolutiva; • Discutir a controvérsia entre religião e evolução; • Conhecer os principais conceitos de evolução; • Distinguir selecção natural de selecção artificial. 13 1.1. O foco de estudo da Biologia Evolutiva Evolução significa mudança, mudanças herdadas geneticamente na forma e no comportamento dos organismos ao longo das gerações. A forma dos organismos, em todos os níveis, desde sequências de DNA até a morfologia macroscópica e o comportamento social, podem ser modificadas a partir dos seus ancestrais durante a evolução. Como os seres vivos modificam-se ao longo das gerações, e parte dessas modificações é herdável, o meio ambiente actua como um filtro – ele selecciona somente os mais adaptados às suas condições actuais. Quando os membros de uma população se reproduzem e a geração seguinte é produzida, podemos imaginar uma linhagem formada por uma série de populações ao longo do tempo. Cada população actual tem como ancestral alguma população da geração anterior. A evolução é, portanto, mudança entre gerações de uma linhagem de populações (Ridley, 2006). Darwin definiu evolução como “descendência com modificação”, e a palavra “descendência” aqui refere-se ao modo como a modificação evolutiva tem lugar na série de populações que são descendentes uma da outra. Por isso, abandonemos o pensamento de que evolução tende a um progresso; tenhamos sempre em mente que a Selecção Natural opera na variabilidade que já se encontra disponível no ambiente. Um bom exemplo desse processo que ocorre em tempo real (poucos dias) é uma pessoa com a garganta inflamada. O que acontece quando tomamos um antibiótico para uma garganta infeccionada, e paramos de tomar o remédio antes de sararmos totalmente? É comum as pessoas dizerem que “ela volta mais forte”, não é? No entanto, essa ‘força’ é apenas uma selecção que favoreceu as variedades mais resistentes ao antibiótico. Em uma garganta inflamada há bactérias mais e menos resistentes a um dado antibiótico, assim como há seres humanos mais ou menos resistentes à uma gripe, com maior e menor altura, mais ou menos melanina na pele, etc. Quando paramos de tomar um antibiótico antes do tempo previsto, a grande maioria das bactérias foram eliminadas, mas uma pequena quantia ainda persiste – aquelas 14 que eram naturalmente mais resistentes ao antibiótico aplicado. Como o cíclo de vida de uma bactéria é em torno de horas (por isso tomamos antibióticos de seis em seis horas, oito em oito, etc.), estas bactérias, que há princípio eram em pequeno número, agora deixam muito mais descendentes na próxima geração, e assim se prolifera no tecido infeccionado. Nesse caso em específico, o ambiente das bactérias é a nossa garganta, e a aplicação do remédio funciona como um filtro selectivo que favorece (ou elimina) variedades genéticas pré-existentes. É baseado nesse princípio que muitos grupos de animais e plantas se extinguiram e outros prosperaram durante os últimos milhões de anos. De acordo com Ridley (2006), nenhuma outra ideia em biologia é tão poderosa cientificamente ou tão estimulante do ponto de vista intelectual quanto a evolução biológica, uma vez que ela pode acrescentar uma dimensão extra de interesse às faces mais atraentes da história natural. Nos dias de hoje, esse raciocínio parece óbvio a qualquer biólogo, mas nem sempre foi assim. Ao propor sua teoria, Charles Robert Darwin (1809-1882) estabeleceu a mais vasta contribuição até hoje feita à Biologia; mas quando tratamos de Ciência, sabemos que investigador algum pode fazer uma descoberta sem se basear em conhecimentos deixados por seus antecessores. Assim, a seguir é apresentado um breve histórico dos principais nomes e acontecimentos referentes ao surgimento e amadurecimento do pensamento evolutivo 1.2. Há contradição entre evolução e religião? A evolução é, sem dúvida, um assunto delicado e polêmico. Por isso, antes de apresentar um contexto histórico sobre os conceitos e ideias envolvidas no desenvolvimento do raciocínio evolucionista,faz-se necessário esclarecer alguns pontos fundamentais para se evitar potenciais preconceitos. Primeiramente, essa polémica se dá pela aparente controvérsia entre ciência e religião. Muitas pessoas pensam que devemos optar por uma ou outra; que tomando partido por uma, exclui-se automaticamente a crença na outra. Para cristãos e 15 judeus, especialmente, a evolução se opõe a suas interpretações literais da Bíblia, especialmente os primeiros capítulos de Gênesis, que retratam a criação do paraíso, da Terra, dos animais, plantas e humanos em seis dias. Entretanto, há muitas linhas de pensamento que caminham em harmonia entre esses dois campos do saber humano, tendo consciência que eles podem, inclusive, se complementar – ou invés de repelirem-se. Partilho da visão de que ciência e religião não estão em conflito, apenas pertencem a domínios distintos do saber. O primeiro passo, entretanto, para essa comunhão de crenças é aceitar que a Bíblia (ou qualquer outro livro religioso) é, em sua essência, um livro de carácter espiritual, com inúmeras metáforas literárias, que visa guiar seus leitores pelas veredas do aprimoramento moral e da fé; mas não é um livro de ciência. Não podemos extrair dela postulados e hipóteses testáveis que sirvam para embasar conceitos nos moldes científicos formais. Muitos religiosos, de facto, entendem certas descrições da Bíblia como verdades simbólicas, e não verdades literais ou científicas. Um bom exemplo de que religião e evolução podem coexistir em concordância é que até mesmo a Igreja Católica já considerou, em Outubro de 1996, a validação da teoria evolutiva. Em uma carta formal endereçada à Pontifícia Academia de Ciências, o então Papa João Paulo II declarou que: “...de facto é notável que esta teoria tenha sido progressivamente aceite por pesquisadores, após uma série de descobertas em vários campos de conhecimento. A convergência de resultados de trabalhos que foram conduzidos independentemente são, em si mesmo, argumentos significativos em favor desta teoria. É uma hipótese séria, válida de ser investigada a fundo (...) e compatível com a fé cristã” (João Paulo II, 1996; Scott, 1997). Além de João Paulo, o actual Chefe de Estado do Vaticano, o Papa Francisco – Jorge Mario Bergoglio, o primeiro papa nascido no continente americano e também o primeiro pontífice do hemisfério sul - anunciou recente a opinião da Igreja Católica sobre a teoria da evolução: "Papa Francisco declara que as teorias da evolução e do Big Bang são reais e que Deus não é um mágico com 16 uma varinha. (...) A evolução na natureza não é inconsistente com a noção de criação, porque a evolução requer a criação [i.e., surgimento] de seres que evoluem [i.e., se modificam]" (ver notícia completa e vídeos da declaração no Saiba Mais dessa lição). Se pusermos de lado o egocentrismo humano e refletirmos sobre nossa limitada noção sobre o tempo, notamos que mesmo com a maior parte da população crendo em um Deus único (que deveria, em teoria, abarcar todos os conceitos politeístas), paradoxalmente seguimos cada vez mais em desarmonia com o que antigamente era tomado como sagrado por tribos ou civilizações pretéritas, através de seus mitos ou lendas que sempre envolvem a Natureza - o mundo biológico no qual a espécie humana está incluída. Independentemente de sermos crentes, ateus ou agnósticos, deveríamos ter respeito não apenas com nosso próximo – que é a sugestão unânime de todas as religiões -, mas com todos os nossos antepassados biológicos. O ideal seria continuarmos com o respeito e a admiração sagrada dos antigos por nossos biomas, corpos d’água, florestas e demais variedades bióticas, unindo informações científicas para sua preservação. Sem a ideia de evolução, tanto a genética como a fisiologia perderiam a coerência; numerosas aplicações práticas da biologia seriam puramente empíricas e teriam uma fundamentação teórica muito fraca, se é que teriam alguma. De um ponto de vista filosófico, certamente nada pode trazer mais satisfação do que conseguir um entendimento sobre a nossa origem e a dos outros seres vivos. À medida que aprendemos mais sobre a genética humana, passamos a avaliar melhor a uniformidade da espécie humana, o que contribuir para acabarmos de vez com preconceitos raciais ainda vigentes na sociedade. À medida que estendemos as explicações científicas dentro dos domínios da biologia humana, nós ganhamos confiança – ou ficamos aterrorizados – pela conscientização de que nosso destino como espécie muitas vezes depende do nosso próprio discernimento e compaixão de uns para com os outros; e não dos caprichos de uma entidade sobrenatural. À medida que pensamos com humildade sobre o nosso lugar na história biológica e que refletimos sobre nossa origem comum com outros seres vivos, podemos passar a perceber e a nos preocupar mais com outras incontáveis 17 formas surpreendentes de vida que nos cerca (Futuyma, 1992). Assim, minha postura como autor é uma tentativa de, ao mesmo tempo, cultivar o respeito tanto pelos dogmas da religião quanto pelos princípios da ciência. A concepção evolutiva vem para engrandecer nossa maneira de ver e entender a vida, e não para disputar preferências com doutrina alguma. Embora a controvérsia acerca da evolução das espécies a partir de um ancestral em comum tenha sempre sido palco para amplas discussões - e por vezes ainda carrega um estigma de heresia, talvez pela difusão equivocada de seus conceitos -, esta nunca foi a intenção do próprio Charles Darwin. Nos parágrafos finais de sua principal obra ele deixa claro que sua vontade era compartilhar com o mundo um novo vislumbre ao olharmos a natureza: “Há grandeza nessa visão da vida. É interessante contemplar uma ribeira luxuriante, atapetada com numerosas plantas pertencentes a numerosas espécies, abrigando aves que cantam nos ramos, insectos variados voando aqui e ali, e pensar que estas formas tão admiravelmente construídas, tão diferentemente conformadas, e dependentes umas das outras de uma maneira tão complexa, têm sido todas produzidas por leis que actuam em volta de nós e em nós mesmos. Enquanto que o nosso planeta, obedecendo à lei fixa da gravitação, continua a girar na sua órbita, uma quantidade infinita de belas e admiráveis formas, saídas de um começo tão simples, não têm cessado de se desenvolver e ainda se desenvolvem” (Darwin, 1859). 18 1.3. Conceitos relevantes da Biologia Evolutiva “Como podem ser questionados os esforços que cada indivíduo deve despender para alcançar sua subsistência, em que qualquer modificação ínfima de estrutura, hábito ou instinto, deixa-o mais adaptado às novas condições, dando-lhe mais vigor e saúde? Na adversidade ele terá uma melhor oportunidade de sobrevivência e assim ocorrerá com os descendentes que herdarem essa modificação; mesmo sendo o menor detalhe, ele lhe dará uma maior oportunidade.” A declaração acima de Darwin, mesmo escrita há mais de 150 anos, permanece uma excelente expressão da ideia de evolução por selecção natural em ação. O termo adaptação possui dois significados em biologia evolutiva. O primeiro refere-se às características que aumentam a sobrevivência e o sucesso reprodutivo dos indivíduos que as possuem. Por exemplo, acredita-se que as asas são adaptações para o voo, que a teia de uma aranha é uma adaptação para a captura de insectos voadores, e assim por diante. O segundo significado refere-se ao processo pelo qual essas características são adquiridas – ou seja, os mecanismos evolutivos que as produzem (Purves et al., 2006). Para que uma dada população possa evoluir é necessário que seus membros apresentem diversidade, que será a matéria-prima sobre a qual actuarão os agentes evolutivos. A composição genética dos organismos ou das populações não é directamente observadapor nós no dia-a-dia. O que vemos na natureza é aquilo que chamamos de fenótipo, ou seja, a expressão física dos genes dos organismos. Uma característica herdável é, ao menos em parte, influenciada pela constituição genética que governa essa característica – o seu genótipo. Uma população evolui quando indivíduos com diferentes genótipos sobrevivem ou se reproduzem em taxas distintas. É importante lembrar que diferentes formas de um gene, denominados alelos, podem existir em um determinado lócus. Um dado indivíduo possui apenas alguns dos possíveis alelos encontrados na população à qual ele pertence. A soma de todos os alelos encontrados nas diversas populações que constituem uma espécie é o que 19 denominamos como pool genético. Esse pool contém a variabilidade que produz os diferentes fenótipos sobre os quais a evolução actua (ver Figura 1). Quando discutimos evolução, falamos sobre sobrevivência e sucesso reprodutivo, pois esses são os factores que determinam quantos indivíduos diferentes contribuem geneticamente para as gerações subsequentes. Assim, para passarem seus genes à geração seguinte, os indivíduos devem sobreviver tempo suficiente para atingir a idade reprodutiva e procriar. A contribuição relativa dos indivíduos se reflecte na adaptabilidade de um genótipo que, por sua vez, é determinada pela taxa média de sobrevivência e reprodução dos indivíduos da população que os possui. Figura 1. Um pool genético é a soma de todos os genes presentes em uma dada população (ou conjunto de populações) de uma espécie. O exemplo aqui é aplicado ao caso dos cães domésticos, evidenciando uma combinação de genes limitada à uma raça em particular, a Brittany Spaniel. Apesar de terem variações morfológicas bem marcantes, as quais denominamos ‘raças’, todos os cães são versões polimórficas de uma única espécie – Canis familiares. Assim, dentro de C. familiares encontramos diversos alelos (‘versões gênicas’) distintos que, em seu conjunto, compõe a diversidade genética total da espécie, representado aqui por todas as letras dentro dos círculos. 20 1.4. Selecção natural vs. selecção artificial A selecção artificial em animais e plantas domésticas - vacas leiteiras, gado e aves criados para o corte, animais de estimação, frutas maiores e/ou sem sementes, árvores mais densas para maior produção de papel, etc. – é um processo de manipulação humana da variedade genética dessas espécies. Nós seleccionamos características nesses seres que nos interessam: sejam vacas que dão mais leites, cavalos mais velozes para corrida, tomates maiores ou bananas e uvas sem sementes. Para adquirir uma melhor compreensão do mecanismo de evolução na natureza, Darwin também estudou o método que os criadores de plantas e animais usavam para modificar suas colheitas e criações. O organismo preferido do naturalista era o pombo doméstico, tendo-se tornado ele próprio um criador para aprender as técnicas dos especialistas (Freeman & Herron, 2009). Para entender o que depois foi cunhado por Darwin mais de tarde como Selecção Natural, era preciso também compreender como se escolhia características em plantas e animais domésticos de nosso interesse; ou seja, como selecionar artificialmente características herdáveis. Darwin deve ter utilizado o termo “selecção natural” porque estava familiarizado com a selecção artificial praticada por criadores de animais e especialistas de plantas. A observação de plantas cultivadas e animais domésticos foi de extrema valia para seus estudos sobre a natureza das variações. Ele estava ciente, manifestamente, da extraordinária diversidade de cores, tamanhos, formas e comportamentos dos pombos que criou – reconhecendo e estabelecendo paralelos, aproximando o processo usado na selecção de plantas cultivadas e animais domésticos e a selecção que ocorria na natureza (Purves et al., 2006). Numa experiencia típica de selecção artificial, uma nova geração é formada permitindo-se que somente uma minoria seleccionada da geração corrente se reproduza. Em quase todos os casos, a média da próxima geração se moverá na direcção selecionada. O procedimento é rotineiramente utilizado na agricultura – a 21 selecção artificial tem sido utilizada, por exemplo, para alterar o número de ovos postos por galinhas, as propriedades da carne de bovinos e a produção de leite de vacas. Em algumas experiências, foram seleccionados ratos para maior e menor suscetibilidade a cáries dentárias sob uma dieta controlada. E os resultados indicaram que os ratos puderam ser seleccionados com sucesso para desenvolverem dentes melhores ou piores. As mudanças evolutivas podem, portanto, ser geradas artificialmente, como, nesse caso, a selecção de dentes melhores e piores em ratos. Hunt e colaboradores (1955) cruzaram selectivamente cada geração sucessiva de ratos descendentes de ratos parentais que desenvolveram cáries mais tarde (resistentes) ou mais cedo (suscetíveis) durante a vida. A idade (em dias) na qual os descendentes dos cruzamentos desenvolveram cáries foi medida. A selecção artificial pode produzir mudanças dramáticas, se continuar por um tempo suficientemente longo (um bom exemplo é ilustrado na Figura 2). Um tipo de selecção artificial gerou, por exemplo, quase todas as nossas plantações agrícolas e animais domésticos. Não restam dúvidas de que, nesses casos – alguns deles iniciados milhares de anos atrás – foram utilizadas técnicas menos formais do que as que seriam hoje utilizadas por um especialista moderno. Entretanto, o longo tempo decorrido levou a alguns resultados marcantes. Darwin (1859) ficou impressionado com as variedades de pombas domésticas, tanto que o primeiro capítulo de A Origem das Espécies inicia com uma discussão a respeito daquelas aves. A razão desses e de outros exemplos é ilustrar adicionalmente como se pode demonstrar de modo experimental, em uma pequena escala, que as espécies não têm formas fixas. 22 Figura 2 – Dentro do que reconhecemos como espécie, existe, em geral, uma considerável variação, da qual parte é hereditária – é sobre essa variação intra-específica que a seleção natural trabalha. Muito antes de Darwin e Wallace, fazendeiros e agricultores estavam usando a ideia de seleção para causar mudanças nas características de suas plantas e animais ao longo de décadas. Fazendeiros e agricultores permitiram a reprodução apenas de plantas e animais com características desejáveis, causando a evolução do estoque da fazenda. Esse processo é chamado de seleção artificial porque são as pessoas (ao invés da natureza) que selecionam quais organismos vão se reproduzir. O exemplo apresentado aqui mostra como os fazendeiros têm cultivado numerosas variedades de culturas a partir da mostarda silvestre (Sinapis arvensis), selecionando artificialmente certos atributos. A selecção natural é, basicamente, o mecanismo pelo qual alguns indivíduos da população tendem a contribuir com uma descendência maior para a próxima geração. Quando postula que os que indivíduos são seleccionados pelo ambiente, está se afirmando que há algumas características na população que melhoram a sobrevivência e aumentam a taxa de reprodução. Considerando-se que a prole lembra seus pais, qualquer atributo de um organismo que o leve a deixar mais descendentes do que a média terá́ frequência maior na população com o passar do tempo (Ridley, 2006). Futuyma (1997), discutindo sobre a evolução por selecção natural ser uma teoria factual nos relembra que muitas vezes, na linguagem do dia-a- dia, ‘teoria’ soa como uma mera especulação. No entanto, ao afirmarmos que os organismos descenderam, com modificações, a partir de ancestrais comuns não é apenas uma teoria, é um facto comprovado – tanto quanto as revoluções da Terra ao redor do Sol. Nenhum biólogo,hoje, pensaria em propor alguma publicação intitulada “Novas Evidências para a Evolução” – há um século que, simplesmente, 23 isto não é questionável. A Figura 3 ilustra dois exemplos para entendermos a selecção natural. Figura 3 – Dois exemplos de seleção natural atuando em escala de tempo pequena. As mariposas da espécie Biston betularia são polimórficas, ou seja, apresentam vários genes alelos para uma determinada característica, e isto fenotipicamente se expressa em mariposas de dois tipos - a variedade não-melânica (clara; A) e a variedade melânica (escura; B). A forma melânica era rara e a forma não-melânica mais comum de serem encontradas nos bosques ingleses, antes das indústrias começarem suas atividades nos arredores, com lançamento de gases poluentes, o que causou o enegrecimento dos troncos das árvores. Com isso este fator, ocorreu um aumento da frequência da forma melânica que passou a ser bem mais frequente, uma vez que a outra variedade passou a ser muito mais predada por pássaros. O outro exemplo é o uso do composto químico DDT (C), que foi largamente usado após a Segunda Guerra Mundial para o combate aos mosquitos vetores da malária. A aplicação do pesticida com o intuito de matar os mosquitos Anopheles (D) causa uma pressão seletiva em seus indivíduos, principalmente nas formas larvais (E), deixando somente os mais resistentes, que tendem a aumentar sua frequência se não forem eliminados. Fonte: Imagens de domínio publico – Wikimedia (www.commons.wikimedia.org). Em pequena escala, a evolução pode ser observada em relação a tempos relativamente curtos. Pessoas portadoras do vírus HIV (do inglês, Human Immunodeficiency Virus - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) ilustram a evolução em uma escala de tempo medida em dias (Ridley, 2006). A evolução da resistência a substâncias químicas (e.g., antibióticos) pode ser acompanhada em nível molecular (i.e. processos reprodutivos e metabólicos das moléculas de DNA e RNA) por técnicas hoje rotineiras em laboratórios nas diversas áreas da biologia 24 médica. Com o desenvolvimento e a redução de custos relacionados a técnicas para análises de evolução a nível molecular, hoje é sabido que nas populações humanas alguns indivíduos contêm alelos que os tornam mais ou menos resistentes à infecção pelo HIV (Freeman & Herron, 2009). O uso de inseticidas para controle de pragas ou doenças, e mesmo remédios antibióticos para controle de infecções no corpo humano (ou medicamentos para combater a gripe) são todos exemplos de evolução em tempo real; elas envolvem, em maior ou menor grau, a selecção dos indivíduos mais aptos aos ‘novos ambientes’ que surgem. O uso do composto químico conhecido como ‘DDT’ foi muito utilizado após a Segunda Guerra Mundial para o combate aos mosquitos vetores da malária. A aplicação do pesticida com o intuito de matar os mosquitos Anopheles causa uma pressão selectiva em seus indivíduos, deixando somente os mais resistentes, que tendem a aumentar sua frequência se não forem eliminados. Esse mesmo raciocínio também se aplica ao uso de antibióticos para combate às bactérias que causam a inflamação em nossa garganta. Se pararmos de tomar o remédio antes dela sarar totalmente, as poucas bactérias que sobreviveram às primeiras doses - por serem mais resistentes - tendem a se proliferar, dando continuidade à inflamação. Por isso, para os variados tipos de seres vivos do planeta, o meio ambiente para cada um deles é relativo. A uns pode corresponder a boa parte de um continente, uma floresta ou oceano; a outros, pode ser nossa horta ou até nossa própria garganta ou algum órgão interno (no caso de parasitismo). Assim, a evolução realmente abarca todos os aspectos biológicos; não só aqueles relacionados à origem e diversificação de espécies, mas também a toda gama de fenómenos que nos rodeiam. Em uma escala de tempo maior, as evidências para a transformação de espécies a partir de ancestrais em comum podem ser vistas, principalmente, na ordenação dos principais grupos nos registros fósseis e no padrão da classificação biológica dos organismos actuais. A sucessão geológica dos principais grupos e a maioria das homologias morfológicas e moleculares clássicas sugere fortemente que os grandes grupos biológicos têm ancestrais em comum (Ridley, 2006). Darwin terminou a introdução da primeira edição de A Origem das Espécies com uma afirmativa que ainda representa a visão de consenso dos biólogos evolutivos: “A selecção natural foi o principal meio de modificação, não o único” (Darwin, 1859, p. 490). A visão darwiniana da vida, como uma competição entre os 25 indivíduos mais capacitados e variáveis para sobreviver e reproduzir, comprovou estar correta em quase todos os relatos (Freeman & Herron, 2009). A evolução por selecção natural é, assim, um dos dois pilares essenciais da obra de Darwin; apesar dela agir sobre os indivíduos, as consequências são vistas nas populações. Isso equivale a dizer que, embora a selecção ocorra sobre os fenótipos dos organismos (i.e., as características visíveis, sejam elas morfológicas, fisiológicas ou comportamentais), a evolução consiste em mudanças na frequência de genótipos (i.e., genes, sequências de nucleotídeos do material genético, DNA) presentes em uma população. É importante relembrar a essa altura que, tal como a população humana, qualquer outra população de seres vivos é composta de membros com características que variam entre os indivíduos. Em um pequeno grupo de pessoas vemos sempre alguns mais altos que outros, tonalidades de pele, formatos de olhos, composições óssea e muscular distintas, meninos que desenvolvem mais ou menos pêlos, etc. A variabilidade genética, portanto, está presente – naturalmente – em qualquer grupo de organismos, e por isso, os seres humanos não fogem à regra, uma vez que esse raciocínio pode ser extrapolado para todas as populações de seres vivos do planeta. Nós, homens e mulheres, assim como qualquer outra espécie, possuímos polimorfismos – uma variação de características dentro de uma mesma espécie. Purves et al. (2006) ressaltam que os factos utilizados por Darwin no desenvolvimento de sua teoria da evolução por selecção natural eram conhecidos da maioria dos biólogos de sua época; o que diferenciou o naturalista inglês dos demais foi sua percepção de que populações de todas as espécies possuem capacidade de aumentar o número de indivíduos de forma exponencial. Para ilustrar essa situação, ele usou o seguinte exemplo: “Suponhamos que existam oito casais de pássaros e apenas quatro desses reproduzem anualmente, produzindo apenas quatro filhotes cada, e que esses, por sua vez, irão procriar seguindo essa mesma taxa. Assim, ao final de sete anos (um período de vida bastante curto se desconsiderarmos a possibilidade de morte violenta de qualquer um dos pássaros), dos 16 indivíduos originais teremos uma população constituída por 2.048 pássaros. ” 26 Essa concepção populacional de Darwin foi fruto da leitura dos Ensaios sobre os Princípios da População (do inglês, Essay on the Principles of Population) (1798). Nessa obra, o economista Thomas R. Malthus observou que o crescimento populacional, entre 1650 e 1850, dobrou decorrente do aumento da produção de alimentos, das melhorias das condições de vida nas cidades, do aperfeiçoamento do combate às doenças, das melhorias no saneamento básico e dos benefícios obtidos com a Revolução Industrial. Isso tudo havia feito com que a taxa de mortalidade declinasse, ampliando, assim, o crescimento natural da população humana. Uma taxa de aumento populacional tão alta, no entanto, raramente é observada na natureza. Assim, Darwin, percebeu que a taxa de mortalidade nessas mesmas populações deveria ser alta. Sem a ocorrência de altas taxas de mortalidade, mesmo populaçõesde espécies com baixíssimos índices de reprodução rapidamente chegariam a tamanhos enormes. Também observou que, apesar dos filhotes assemelharem-se a seus pais, a prole da maioria dos organismos não é idêntica a nenhum dos genitores. Ele então sugeriu que pequenas diferenças existentes entre os indivíduos poderiam afectar significativamente a sobrevivência de um dado indivíduo e o número de filhotes que ele produziria, uma vez que o ambiente fornece sempre mais recursos àqueles organismos que estão mais ajustados a ele. Chamando esse sucesso reprodutivo diferencial dos indivíduos de selecção natural – que é o resultado tanto da sobrevivência quanto da capacidade reprodutiva diferencial dos indivíduos em dado ambiente. Ridley (2006) aprofunda essa discussão acerca das variações ressaltando que elas são amplamente difundidas em populações naturais – tanto em níveis morfológico, celular, bioquímico ou de DNA -, e que as variações existentes em uma população são os recursos sobre os quais a selecção natural opera. A selecção natural, desta maneira, age sempre sobre esse polimorfismo preexistente. 27 Sumário Para que novas espécies apareçam deve ocorrer variação dos indivíduos e consequentemente das populações. Assim, as espécies não são imutáveis, porém se transformam incessantemente dentro do tempo de aparecimento das variações individuais. A mudança é gradual e ritmada por acúmulo das pequenas graduações e se estendem em larga escala pelas gerações. Compreender a vida sob o prisma evolutivo não necessariamente exclui qualquer crença religiosa. Ciência e religião são apenas linhas distintas da compreensão humana acerca do mistério da vida. A palavra evolução pode ter várias atribuições, mas no contexto histórico conhecido como “teoria da evolução”, ela é um vasto domínio do conhecimento, com inúmeras facetas e ainda longe de um ponto final. Um dos principais expoentes nesse cenário é Charles Robert Darwin, naturalista inglês, cujos livros e discussões revolucionaram a biologia clássica e forneceu os fundamentos da biologia moderna. Alfred Russell Wallace foi um coautor menos conhecido, porém de vasta importância na decisão final de Darwin. Na teoria da evolução, os organismos apresentam variabilidade individual, apresentam maior número de descendentes que o meio possa sustentar e o sucesso reprodutivo é essencial na acumulação das variações que possam ser selecionáveis pelo meio. Leitura ✓ “O Gene Egoísta”: livro de Richard Dawkins de muito sucesso primeiramente publicado em 1976. A ideia central é que os organismos são máquinas de sobrevivência a serviço dos genes. Disponível de forma gratuita em: http://www.livrosgratis.net/download/344/ogene-egoista- richard-dawkins.html ✓ “Admirável Mundo Novo” (Brave New World na versão original em língua inglesa) é um livro escrito por Aldous Huxley e publicado em 1932 que narra um hipotético futuro onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e regras sociais, dentro de uma sociedade organizada por castas. A sociedade desse "futuro" criado por Huxley não possui a ética http://www.livrosgratis.net/download/344/ogene-egoista-richard-dawkins.html http://www.livrosgratis.net/download/344/ogene-egoista-richard-dawkins.html 28 religiosa e valores morais que regem a sociedade actual. Qualquer dúvida e insegurança dos cidadãos era dissipada com o consumo da droga sem efeitos colaterais aparentes chamada "soma". As crianças têm educação sexual desde os mais tenros anos da vida. O conceito de família também não existe. Disponível de forma gratuita em: http://www.clube-de-leituras.pt/upload/e_livros/clle000075.pdf Filmes/Vídeos ✓ “GATTACA: experiência genética”. Lançamento, 1997 (1h52min), dirigido por Andrew Niccol Sinopse: um futuro no qual os seres humanos são criados geneticamente em laboratórios, as pessoas concebidas biologicamente são consideradas "inválidas". Vincent Freeman (Ethan Hawke), um "inválido", consegue um lugar de destaque em uma corporação, escondendo sua verdadeira origem. Mas um misterioso caso de assassinato pode expor seu passado. Esta ficção científica aborda as preocupações sobre as tecnologias reprodutivas que facilitam a eugenia e as possíveis consequências de tais desenvolvimentos tecnológicos para a sociedade. Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=PC6ZA1dFkVk ✓ O vídeo a seguir (11min) é um bom resumo dos principais mecanismos e processos envolvidos na evolução por selecção natural, confira! https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=hOfRN0KihOU ✓ Notícia e links para a declaração do Papa Francisco sobre as teorias do Big Bang e da Evolução: Jornal Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/10/1539614-teorias-do-big-bang-e- evolucao-estao-corretas-diz-papa-francisco.shtml Links para vídeo com a declaração oficial: https://www.youtube.com/watch?v=WJa77zYwymg ✓ A música também evolui e, portanto, obedece a regra de ancestralidade em comum. É possível fazermos uma analogia entre o conceito http://www.clube-de-leituras.pt/upload/e_livros/clle000075.pdf http://www.freepik.com/index.php?goto=27&url_download=aHR0cDovL3d3dy5mbGF0aWNvbi5jb20vZnJlZS1pY29uL2ZpbGVfMTE4MDk4&opciondownload=318&id=aHR0cDovL3d3dy5mbGF0aWNvbi5jb20vZnJlZS1pY29uL2ZpbGVfMTE4MDk4&fileid=917606 https://www.youtube.com/watch?v=PC6ZA1dFkVk https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=hOfRN0KihOU https://www.youtube.com/watch?v=WJa77zYwymg 29 de ancestralidade em comum com a história da música? Há quem diga que sim, uma vez que todo artista/música/banda foi influenciado por outros ritmos, estilos ou artistas que o precedeu. Esse facto lembra bastante a ancestralidade com modificações do processo evolutivo. Veja a animação a seguir (History of Music, lições ilustradas) e o trailer do filme abaixo, e diga se você concorda com a comparação entre ancestralidade em comum, tanto na música quanto na natureza: https://www.youtube.com/watch?v=dpMBWdkKV3w Auto-Avaliação 1. Procure na Internet mais detalhes sobre as teorias básicas de Malthus e discuta como elas poderiam ou não ser aplicáveis à nossa actualidade. 2. Procure uma obra que contenha a biografia completa de Charles Robert Darwin, relate detalhes de sua vida em um fórum ou grupo de discussão, detalhes estes que podem ter direcionado sua mente aos questionamentos evolutivos. 3. Procure na Internet nomes de cientistas, pesquisadores, filósofos (tanto brasileiros quanto estrangeiros) vivos, que, na actualidade, sejam as grandes referências em suas respectivas áreas. Dê enfoque na biologia e no estudo evolutivo. 4. Procure o significado de empirismo em contraponto ao racionalismo, em ciências. Inclua na pesquisa o significado de método científico e experimentação. 5. Proponha um plano de aula para o Nível Médio para este módulo. https://www.youtube.com/watch?v=dpMBWdkKV3w 30 Lição no 2: Selecção Natural: a força motriz da evolução biológica Introdução Uma vez apresentados os principais acontecimentos da história do pensamento evolucionista, vamos aprofundar mais os nossos conhecimentos sobre os mecanismos e sobre os processos que sustentam a teoria evolutiva. A selecção natural é a força motriz da evolução, seleccionando os mais adaptados ou aos poucos portadores de mutações vantajosas. É assim que as espécies evoluem de variedades pré-existentes - por meio da selecção natural. Após o vislumbre relevado pelo raciocínio de divergência de linhagens que foram sendo favorecidas (ou descartadas) pelos ambientes em constante mudança, toda e qualquer característica de um ser vivo pode virtualmente ser explicada, ou pelo menos melhor fundamentada, pela selecção natural. Entretanto,há limites para sua actuação, e desde a década de 1960 o conhecimento sobre regiões “neutras” do genoma (i.e., que parecem não sobre selecção natural) vem acalorando as discussões evolutivas nas últimas décadas. Actualmente, a biologia evolutiva está revigorada pelas técnicas de biotecnologia e avanços da genética, e iniciando uma conversa muito promissora com a geografia e geologia para continuarmos desvendando os passos deixados pela Evolução no planeta Terra. Objectivos No fim desta lição você deverá ser capaz de: • Descrever os diferentes padrões resultantes da força de actuação da selecção natural; • Apresentar e descrever as limitações da actuação da selecção natural: o neutralismo molecular do DNA; • Demonstrar o impacto das mudanças ambientais e interações entre organismos na evolução das espécies; 31 2.1. Tipos de selecção natural: processos e mecanismos de actuação Para continuarmos a falar da selecção natural, é preciso agora salientar e reforçar alguns pontos-chave acerca de seus efeitos. Freeman & Herron (2009) listam os mais relevantes para o nosso estudo: (i) A selecção natural age sobre os indivíduos, mas suas consequências ocorrem nas populações; (ii) A selecção natural age sobre os fenótipos, mas a evolução consiste em modificações nas frequências dos alelos (genótipo); (iii) A selecção natural não prevê o futuro. Uma vez que cada geração descende dos sobreviventes à selecção exercida pelas condições ambientais que predominavam na geração anterior, há uma concepção errada bem comum de que os organismos podem ser adaptados a condições futuras, ou que a selecção pode adiantar-se no sentido de prever mudanças ambientais que poderão ocorrer durante as gerações futuras. A selecção natural adapta as populações a condições que predominavam no passado, não a condições que possam ocorrer no futuro. A evolução está, portanto, sempre uma geração atrás de qualquer mudança ambiental; (iv) Novas características podem evoluir, embora a selecção natural atue sobre características preexistentes; (v) A selecção natural não leva à perfeição; ela não otimiza simultaneamente todas as características. Ela leva à adaptação, não à perfeição; (vi) A selecção natural actua sobre os indivíduos, não pelo bem da espécie. Descobriu-se que todo comportamento altruísta que tenha sido estudado em detalhe aumenta a aptidão do altruísta, seja porque os beneficiários desse comportamento são parentes geneticamente próximos, seja porque os beneficiários o retribuem, ou por ambas as razões. Os indivíduos, portanto, são diferentes no que diz respeito às características hereditárias que determinam o sucesso de seus esforços reprodutivos. Nem todos os indivíduos sobrevivem e se reproduzem de forma igual em um ambiente 32 específico e, por conseguinte, alguns indivíduos contribuem com uma prole mais numerosa do que outros para a composição da próxima geração (Purves et al., 2006). Dependendo de quais características são favorecidas na população, a selecção natural pode resultar em qualquer um de uma série de resultados substancialmente diferente (Figura 4) Com isso, podemos então apresentar as três formas de actuação da selecção natural (Figura 6). Ela pode, no primeiro caso, preservar as características da população favorecendo os indivíduos que apresentam fenótipos intermediários (Figura 4A). A selecção pode também modificar as características da população favorecendo indivíduos cujas características encontram-se em apenas um dos extremos da distribuição (Figura 4B). Por último, a selecção pode modificar as características da população favorecendo indivíduos cujas características encontram-se em ambos os extremos da distribuição (Figura 4C). Figura 4: Tipos de seleção natural atuando, nesse caso, sob a cor da pelagem em coelhos e tamanho/formato de bico em aves. As setas representam as pressões seletivas (negativas) em cada uma das situações. Na figura apresento esses dois exemplos hipotéticos pelo seu fácil entendimento, mas a partir deles podemos extrapolar a ideia para quaisquer outros exemplos na natureza. 33 Muitos caracteres, entretanto, não existem como tipos distintos na maioria das espécies. Ao invés disso, apresentam uma variação contínua. O tamanho corporal humano, por exemplo, não vem na forma de dois tipos distintos, “grande” e/ou “pequeno”. Uma amostra de seres humanos apresentará uma gama de tamanhos, distribuídos em uma “curva em forma de sino” (comumente chamada de distribuição normal). Em biologia evolutiva, é muitas vezes útil pensar-se na evolução de caracteres contínuos, como tamanho corporal, em termos um pouco diferentes daqueles utilizados na consideração da evolução de caracteres discretos (i.e., resistência e a suscetibilidade a drogas, presença ou ausência de alguma característica, etc). Até agora estivemos considerando características influenciadas por alelos de um único locus (ver Glossário). Entretanto, a maioria das características é influenciada por mais de um locus. O tamanho de um organismo, por exemplo, parece ser controlado por vários loci diferentes. Se vários loci influenciam o tamanho e não existe selecção, então, a distribuição de diferentes tamanhos em uma população pode se aproximar da curva em forma de sino (ou curva de distribuição normal). Glossário Locus: latim de lugar (plural loci), que em genética designa a localização específica de um gene no respectivo cromossomo. Alelos: formas alternativas de um gene. Para polimorfismos de sequência, os alelos referem-se ao nucleotídeo específico (A, T, G, C) encontrado em uma determinada posição no cromossomo. Pool genético ou pool de genes: conjunto completo de alelos que podem ser encontrados em uma determinada população. A fração de genes que pertence a um dado alelo é denominado frequência alélica. 34 2.2. O neutralismo molecular: nem toda mudança sofre selecção A teoria neutra da evolução molecular foi primeiramente proposta em um artigo da prestigiada revista científica Nature, em fevereiro de 1968, pelo geneticista japonês Motoo Kimura (1924-1994). Posteriormente, vários outros trabalhos vieram confirmando, duvidando ou incorporando actualizações à ideia do pesquisador. O próprio Kimura, inclusive, faz actualizações e revisões baseadas nos postulados que formulou (e.g. Kimura, 1983, 1991). No entanto, para a nossa discussão, vamos nos limitar à essência dos conceitos de neutralidade e à quebra de alguns paradigmas que vieram com eles. Há muito tempo sabemos que os aminoácidos são formados por trincas de nucleotídeos, ou seja, cada combinação de três bases nitrogenadas da fita de DNA (A, C, T, G) produz um aminoácido. No entanto, pode haver mais de uma combinação para o mesmo aminoácido. Assim, mesmo se o DNA sofrer mutações, ele pode continuar produzindo os mesmos aminoácidos. Esse tipo de mutação é chamado de mutação sinónima ou neutra – aquela que não causa mudança no respectivo aminoácido a ser formado. A Figura 5 nos dá alguns exemplos dessas possíveis combinações, e apresenta uma analogia possível com os acordes musicais de uma guitarra ou violão. 35 Figura 5. O código genético é degenerado ou redundante por existirem vários códons que codificam o mesmo aminoácido (A); notem, por exemplo, que os códons UCU, UCC, UCA e UCG codificam todos os aminoácidos Serina (Ser). Uma analogia dessa redundância molecular pode ser feita com os acordes musicais (no caso, um dó maior) em um braço de guitarra, uma vez que eles podem ser formados por diversas combinações (B). O geneticista japonês analisou os dados publicados sobre sequências de aminoácidos em diversas espécies e notou que a maior parte da variação genética em nível molecular não tinha qualquer valor adaptativo– as mutações de DNA e proteínas, tanto dentro como entre diferentes espécies, eram neutras com relação à selecção. Isto equivale a dizer que boa parte dos diferentes alelos para um 36 mesmo loco (i.e., o local onde o gene se encontra na fita de DNA) possui o mesmo valor adaptativo. Com o devido rigor matemático e estatístico, Kimura calculou que na história evolutiva dos mamíferos as substituições nucleotídicas têm sido tão rápidas que, em média, um par de nucleotídeos tem sido substituído na população a cada dois anos. Tal informação contrastava directamente com a bem conhecida estimativa de Haldane (1957), que sugeria que um novo alelo pode ser substituído em uma população a cada 300 gerações. Quando dizemos “selectivamente neutro” quer dizer selectivamente equivalente: formas mutantes podem fazer o trabalho igualmente bem em termos de sobrevivência e reprodução nos indivíduos que os possui (Kimura, 1991). Portanto, uma grande fracção das substituições evolutivas de nucleotídeos que ocorreu em partes funcionalmente importantes do genoma também seriam selectivamente neutras (Figura 6). Assim, a evolução neutra assevera que a maioria da variabilidade intraespecífica ao nível molecular, como revelado por polimorfismos de proteína e DNA, é selectivamente neutra, e é mantida nas espécies por um balanço aleatório entre adição e extinção de mutações (Kimura & Ohta, 1971). Figura 6. Esquema das fitas em dupla hélice do DNA (A) e gráfico demonstrando que a maioria das mutaçõe não altera a aptidão dos organismos, enfatizando que grande parte das substituições no DNA é neutra (B). 37 Por fim, outro ponto importante que é trazido à tona pela lógica do neutralismo molecular é que as moléculas (sejam aminoácidos, proteínas ou DNA) evoluem de forma mais ou menos constante ao longo do tempo. Essa percepção fez com que pudéssemos estabelecer um ‘relógio molecular’, hoje comumente usado para inferir as datas de divergência entre os táxones biológicos. Alguns aspectos do uso do relógio molecular e o impacto no neutralismo nas filogenias moleculares são mostrados no Quadro “Saiba Mais: relógios moleculares” Quadro 1 Relógios Moleculares O grande impacto da genética molecular na sistemática e genética de populações, que começou com a proposta de que os marcadores moleculares neutros evoluem de forma semelhante a um relógio, fez com que a Biogeografia recebesse um enorme revigoramento no final da década de 1980. O facto de que mudanças evolutivas são mais completamente compreendidas quando consideramos o contexto geográfico motivou o desenvolvimento de ferramentas analíticas para revelar as pegadas da história espacial em sequências moleculares contemporâneas. Assumir um modelo de variação das taxas do relógio molecular permite selecionar um modelo mais apropriado de variação de taxas ao longo dos ramos em uma árvore filogenética (Figura 7). O modelo de relógio molecular permite que as datas de divergências de táxones diversos sejam calculadas com base na melhor adequabilidade para taxas de mutação ao longo da árvore. Ao se comparar as relações evolutivas das linhagens genéticas com suas localidades geográficas, ganhamos um melhor entendimento sobre as forças biogeográficas históricas que devem ter tido um papel importante no estabelecimento da arquitetura genética na distribuição geográfica das espécies. 38 Figura 7. O padrão dos ‘relógios moleculares’ pode ser ilustrado por um gráfico com tempos de divergência e número de mudanças nucleotídicas. Perceba que apesar das taxas de evolução serem diferentes, as três moléculas têm taxas de divergências constantes. Fazendo-se uma analogia com um relógio analógico, o ponteiro que ‘andaria mais rápido’ seria a molécula que tem o maior número de mutações em um tempo menor. Por outro lado, o ‘ponteiro mais lento’ seria a molécula que tem menos mutações ao longo desse mesmo tempo (A). A aplicação dessas técnicas de datação molecular tem revolucionado a Biogeografia Histórica e Evolução, pois atualmente é possível inferir sobre quando provavelmente ocorreu uma divergência evolutiva (B), e se há correspondência com algum evento geológico (ou ecológico) importante na história da paisagem estudada. Saiba mais Desafio à teoria da selecção natural: a eusocialidade dos insectos. “Há que se admitir a existência de casos que apresentam especial dificuldade com relação à teoria da selecção natural. Um dos mais curiosos é o da existência de duas ou três castas definidas de formigas- operárias ou fêmeas estéreis na mesma comunidade de insectos” (Darwin, 1859). O próprio Darwin, com a frase acima, traz um momento de flexibilização da teoria evolutiva, que actualmente vem alimentando actualizações: os indivíduos que são seleccionados são aqueles que têm maior capacidade de deixar descendentes. Porém, os insectos sociais são um exemplo de vida cooperativa. Segundo os especialistas, pouco é conhecido sobre os mecanismos moleculares 39 envolvidos na transição de vida solitária para social e a manutenção e eusocialização em insectos. Como o comportamento não individual foi dominado pelo social no curso evolutivo? Este problema perturbou os biologistas, como o próprio Darwin. Em A Origem das Espécies o autor declarou este paradoxo - em particular, para as formigas - como um dos mais importantes desafios à sua teoria. Os exemplos, muito conhecidos de altruísmo, encontrados no reino animal e observados em várias espécies de insectos, foram considerados por Darwin como um dos pontos mais vulneráveis de sua teoria evolutiva. Como é possível explicar o sacrifício dos operários que, além de não se reproduzirem, travam batalhas e morrem em benefício de toda a colónia? Se um indivíduo é estéril, jamais poderá deixar descendente e não terá qualquer aptidão (capacidade de deixar descendentes directos) algo que, pensando sob o olhar clássico da evolução, torna-se paradoxal. Esta dificuldade torna-se ainda maior se considerarmos que estas castas inférteis apresentam marcadas diferenças morfológicas: como essas diferenças poderiam ser selecionadas num sistema no qual não há reprodução. Isso não fornece valor adaptativo aos indivíduos, ao contrário. A solução oferecida por Darwin é que toda a colônia deveria ser tratada como uma unidade única de selecção. Assim, colónias desprovidas das operárias suicidas seriam com mais frequência predadas e assim diminuiriam de frequência do que aquelas que possuem. A eusocialidade não é um fenómeno marginal no mundo vivo. Considerando somente formigas (entre as abelhas, vespas e outros insectos eusociais) estas compõem uma biomassa de animais que, sozinha, constitui metade de todos os insectos e excede a de todos os vertebrados terrestres não humanos! Estes “superorganismos” são tão bizarros em sua constituição que devem constituir um nível distinto de organização biológica. A primeira ideia bem elaborada sobre a eusocialidade foi estabelecida por Haldane J. B. S. em 1955, a qual foi completamente estabelecida por W. D. Hamilton em 1964. O conceito de grupo ganhou força até meados da década de 1960, mas foi grandemente destronada com a teoria alternativa de Hamilton. 40 A ideia principal expressa por Hamilton foi que a presença de um comportamento do indivíduo altruísta (operário) só poderia acontecer quando o decréscimo de aptidão característico do altruísta (no caso a reprodução, uma aptidão selectiva) é compensado pelo aumento da mesma aptidão no indivíduo que recebe os favores desse indivíduo altruísta (rainha). Esta relação significa que a cooperação é favorecida pela selecção natural. Ao mostrar que genes em um indivíduo poderiam ser seleccionados mesmo que não tenham um valor adaptativo direto, mas sim, indireto, os genes passaram a ocupar o lugar de indivíduos,como a unidade central sobre a qual a selecção natural actua. Essa mudança de foco foi extensamente apresentada por Richard Dawkins em 1976 (na obra “O gene egoísta”). De forma genérica, um gene poderia ser seleccionado mesmo quando seus efeitos directos na aptidão darwiniana sejam negativos. A visão nos genes foi e está sendo usada com sucesso para entender a evolução dos mais diversos tipos de interação. Os artigos publicados por Hamilton em 1964 sobre a selecção de parentesco mudaram sensivelmente a biologia evolutiva. No trabalho intitulado “Molecular evolutionary analyses of insect societies” – traduzido: “Análise evolutiva molecular das sociedades de insectos”, publicado em 2011 na revista PNAS – Proceedings of National Academy of Sciences of the United States of America, traduzido: Actualizações da Academia Americana de Ciências, os autores Fischman, Woodard e Robinson apresentam uma revisão que faz análise evolutiva sobre os insectos sociais, vistos de forma a identificar as mudanças moleculares adaptativas envolvidas na evolução social da eusocialidade. Fonte do texto: Ceccatto, V. M. & Ponte, E. L. 2012. Material de Biologia Evolutiva, Secretaria de Educação à Distância (SEAD/UECE). ******* Uma teoria neutra da função molecular Autor: Michael Eisen | 7 de setembro de 2012 Em 1968 Motoo Kimura publicou um pequeno artigo na Nature em que argumentava que “a maioria das mutações produzidas por substituições de nucleotídeos são quase completamente neutras em relação a selecção natural”. Este 41 fantástico artigo é geralmente visto como tendo estabelecido a “teoria neutra” da evolução molecular, cujo princípio central foi definido por Jack King e Lester Jukes em um artigo da Science no ano seguinte: “A mudança evolutiva nos níveis morfológico, funcional ou comportamental resulta do processo de selecção natural, operando através de mudanças adaptativas no DNA. Disso não necessariamente se segue que toda, ou quase toda, mudança evolutiva no DNA seja devida a ação da selecção natural Darwiniana.” É difícil exagerar a importância desses artigos. Eles ofereceram um desafio imediato à crença profundamente infundamentada, mas amplamente difundida, de que todas as alterações do DNA deveriam ser adaptativas - uma suposição que estava envenenando a maneira com que a maioria dos biólogos estavam avaliando a primeira onda de dados de sequências de proteínas. E como suas ideias foram rapidamente aceitas no campo emergente da evolução molecular, a teoria neutra pairava sobre praticamente todas as análises de variação de sequência dentro e entre as espécies nas décadas vindouras. O que Kimura, King e Jukes realmente fizeram foi estabelecer um "modelo nulo" novo contra o qual qualquer exemplo hipotético de mudança molecular adaptativa deveria ser julgado. Na verdade, a neutralidade ofereceu uma explicação tão boa para alterações nas sequências ao longo do tempo que, quando eu entrei no campo no início dos anos 90, os pesquisadores ainda lutavam para encontrar um único exemplo de mudança molecular para o qual uma explicação neutra pudesse ser rejeitada. Embora a explosão de dados de sequências na década passada finalmente rendeu evidências inequívocas de evolução adaptativa molecular em grande escala, é difícil exagerar o quão poderoso o modelo nulo neutro foi em forçar as pessoas a pensar claramente sobre o que significam as mudanças adaptativas, e como alguém deveria proceder para identificar exemplos claros delas. Penso muito sobre Kimura, sobre a teoria neutra, e os efeitos salutares de modelos nulos claros cada vez que eu me envolvo em discussões sobre a função, ou a falta dela, de eventos bioquímicos observados em experiências de genómica, como os desencadeados esta semana pelas publicações do projeto ENCODE. 42 É fácil ver os paralelos entre a maneira que as pessoas falam sobre transcritos de RNAs, interações DNA-proteína, regiões hipersensíveis à Dnase e etc, com a forma que as pessoas falavam sobre mudanças em sequências PK (pré Kimura). Embora muitas das pessoas realizando RNA-seq, ChIP-seq, etc. foram indoutrinadas com Kimura em algum ponto de suas carreiras, a maioria parece incapaz de aplicar as lições dele ao seu próprio trabalho. O resultado é um campo impregnado implícita ou explicitamente com um pensamento que segue essa linha: Eu observo A ligar-se a B. A poderia só ter evoluído para ligar-se a B se estivesse fazendo algo de útil. Logo, a ligação entre A a B é “funcional”. Pode-se entender a tentação de pensar desta forma. Na perspectiva de livro- texto da biologia molecular, tudo é altamente regulado. Os genes são transcritos com um propósito. Os factores de transcrição ligam-se ao DNA quando estão regulam alguma coisa. Quinases fosforilam alvos para alterar sua actividade ou localização subcelular. E assim por diante. Embora sempre houve muitas razões para descartar essa maneira de pensar, até cerca de uma década atrás, era assim que a literatura científica parecia. Nos dias em que artigos descreviam genes únicos e interações individuais, quem se daria ao trabalho de publicar um artigo sobre uma interação não-funcional que haviam observado? Mas a genómica experimental explodiu este mundo isolado e idílico da biologia molecular. Por exemplo, quando Mark Biggin e eu começamos a fazer experiências ChIP-chip em embriões de Drosophila, descobrimos que factores não apenas ligavam-se com sua dúzia ou mais de alvos, mas a milhares e, em alguns casos, dezenas de milhares de lugares em todo o genoma. Tendo estudado Kimura, eu simplesmente assumi que a grande maioria destas interações tinha evoluído por acaso - uma consequência natural, essencial, da fixação alterações nucleotídicas neutras que aconteceram e que por ventura criaram sítios de ligação de factores de transcrição. E assim eu fiquei chocado que quase todos com quem conversava sobre esses dados assumiam que cada um desses eventos de ligação servia para alguma coisa - só não tínhamos descoberto ainda para quê. Mas se você pensar sobre isso, você se dará conta que isso simplesmente não pode ser assim. Como nós e muito outros temos mostrado agora, as interações moleculares não são raras. Transcritos, sítios de ligação de factores de transcrição, modificações ao DNA, modificações na cromatina, sítios de ligação de RNA, sítios 43 de fosforilação, interacções proteína-proteína, etc … estão em toda a parte. Isso sugere que este tipo de eventos bioquímicos são fáceis de criar – mude um nucleotídeo aqui – Tcham!, um novo factor de transcrição se liga, e um sítio de splicing é perdido, um novo promotor é criado, um sítio de glicosilação é eliminado. Será que isso entra em conflito com a teoria neutra? Não mesmo! Na verdade, é perfeitamente consistente com ela. A teoria neutra não exige que a maioria das alterações nas sequências não tenham nenhum efeito mensurável sobre os organismos. Pelo contrário, a única coisa que você tem que assumir é que a grande maioria dos eventos bioquímicos que ocorrem como consequência de mutações aleatórias não afetam significativamente aptidão dos organismos. Dado que uma fração tão grande do genoma é bioquimicamente ativa, a mesma lógica básica Kimura, King e Jukes usaram para argumentar pela neutralidade - que seria simplesmente impossível que um número tão grande de características moleculares tivesse sido levadas a fixação pela selecção - indica fortemente que a maioria dos acontecimentos bioquímicos não contribuem significativamente para a aptidão. Na verdade, dado a frequência aparente com que novas interacções moleculares surgem, é praticamente impossível que nós ainda existíssemos se cada novo evento molecular tivesse um efeito fenotípico forte. Isto, naturalmente, não significa que todos esses eventos moleculares não façam nada - a sua existência é uma forma de função. Mas
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