Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS Me. Tássio Acosta GUIA DA DISCIPLINA 2021 1 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância É chamado de mulato Aquele que é misturado Um dos pais é de cor negra Sendo o outro branqueado Mas a miscigenação No início da nação Foi um mal desnaturado. Nunca foi caso de amor Como se pode alegar Era caso de estupro Que à negra ia abusar O senhor da Casa Grande Mui cruel e dominante Pronto pra violentar. E além dessa faceta Existiu branqueamento Como oficial medida Para o tal clareamento Com o fim de exterminar De pra sempre eliminar O negro do pensamento. Essa torpe intenção Que visava misturar A cor negra e a branca Até por fim conquistar Um final clareamento Jogando no esquecimento A cor preta a incomodar. (Não me chame de mulata – Jarid Arraes) www.geledes.org.br/nao-chame-de-mulata 2 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 1. EXISTE UMA NEUTRALIDADE CURRICULAR? Objetivo: Analisar a dita “neutralidade” existente no curriculum escolar para que possamos entender a urgência de valorizar as culturas afro-brasileiras e reconhecer o processo de exclusão social histórica ao qual esse segmento populacional foi imposto desde sempre. Introdução: O curriculum escolar é erroneamente considerado um documento neutro, no qual tal neutralidade impede a descriminação, a segregação e a exclusão. No entanto, vale a pena nos questionarmos acerca de alguns aspectos para que possamos melhor ler nas entrelinhas deste curriculum escolar: • Quantas/os teóricas/os negras/os você estudou durante o tempo que passou na escola? • Sobre quantas personagens e personalidades históricas você aprendeu durante o tempo que passou na escola? • Quantas/os professoras/es negras/os você teve durante o tempo que passou na escola? Agora, façamos o oposto: • Quantas/os teóricas/os brancas/os e personagens brancas você estudou e quantas/os professoras/es brancas/os você teve durante o tempo que passou na escola? Partindo deste olhar, buscaremos analisar esta “neutralidade” existente no curriculum escolar para que possamos compreender a importância da valorização da cultura afro-brasileira e a necessidade, ainda que momentânea, de legislações específicas que atendam as demandas destes movimentos sociais. É importante que façamos o recorte racial na análise da escola para que possamos compreender os processos históricos de exclusões sociais aos quais este segmento populacional foi submetido e, a partir dele, pensar nas diversas possibilidades que temos para trazer esta temática ao debate. 3 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância O curriculum escolar tem uma dimensão política por estar inserido na sociedade e, justamente por este fator, pode-se afirmar que o currículo é político. 1.1. Neutralidade curricular ou processo de embranquecimento? No Brasil, o fato de “ser negro” perpassa por uma série de marcadores que o situam não apenas étnico-racialmente, mas também social, cultural, financeiramente, para citar apenas alguns dentre os mais variados marcadores das diferenças. A ausência das representatividades negras nos locais de poder é uma das formas que servem para nos fazer pensar sobre qual sociedade brasileira aprendemos na escola, quais Brasis realmente aprendemos no Brasil e os motivos que levam ao silenciamento e inivisbilização de uma parte da sociedade, ao passo que a outra parte detém o controle dos locais de poder. A temática das negritudes costuma aparecer no currículo escolar em datas comemorativas específicas onde, muito rotineiramente, a escola não propõe um debate sobre a sua significância, nem convida grupos representativos e movimentos sociais das negritudes para falar sobre elas. O que existe é uma festa folclórica que, muitas vezes, ajuda a silenciar ainda mais a realidade. A escola costuma romantizar um período de altas taxas de torturas e ataques diversos aos Direitos Humanos como foi o período escravocrata brasileiro mantendo esta história sob um olhar naturalizante, quando deveria propor um olhar crítico e reflexivo, que buscasse analisar o cotidiano dos negros escravos e as formas de resistência que articularam para subverter a norma da época. Mas não é isso o que acontece. Da clandestinidade à organização social, a mobilização dos negros, a princípio, se alicerçou no conceito de resistência e luta dos ancestrais do período colonial, trazendo destes a conjuntura histórica para a compreensão da situação contemporânea. Logo, numa perspectiva de visitar o passado em busca de melhorias para o futuro, os ativistas se puseram a enfrentar a opressão pela superação das desigualdades. (Alves, 2007: 38) Outro ponto que merece atenção especial é que negros das mais diversas etnias foram sequestrados do continente africano, em centenas de tribos, e trazidos ao Brasil. Mas quando abordamos a sua existência, temos a tendência de homogeneizá-los como se não apenas todos eles fossem iguais, mas como se todas as culturas fossem iguais e falassem 4 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância a mesma língua. Ora, se nós não somos iguais entre nós mesmos, como podemos ensinar aos nossos alunos que os negros escravos eram iguais entre si? Cunha Jr. (1996) afirma que o movimento negro sempre buscou mecanismos de resistência para que estivesse inserido nas discussões sociais, sobretudo na educação, que passou a ocupar um papel relevante a partir da década de 1920 por meio de jornais segmentados. Ainda assim, vale pensar em quantas pessoas tinham acesso ao jornal, à escolarização e ao interesse na temática em 1920. Não obstante, mais contemporaneamente passamos a ver a discussão sobre as representatividades e os locais de fala, uma antiga reivindicação do movimento social negro. 1.2. Múltiplas identidades refletem os múltiplos olhares Da mesma maneira que não existe um tipo único de pessoa negra, consequentemente não existe uma identidade negra única. Existem várias pessoas, da mesma maneira que existem várias identidades. Justamente por isso, devemos valorizar as diferenças, a pluralidade étnica e identitária para que todos possam reivindicar para si o direito de ser quem quiserem ser. Para que isso seja possível, o professor deve estar preparado para realizar este reconhecimento e, assim, valorizar as formações identitárias de seus alunos. Será a partir do fortalecimento identitário, de seu reconhecimento e da compreensão dos fatores históricos que os marginalizaram socialmente durante tanto tempo que a escola poderá possibilitar que reivindiquem para si o orgulho de ser quem são. Caso a escola continue a inviabilizar e silenciar tais existências, estará compactuando para elas sejam mantidas às margens sociais. A necessidade da construção de perspectivas curriculares que contemplem a diversidade humana em seus caracteres corpóreos, etários, étnicos, políticos, históricos e culturais justifica-se pelo papel constitutivo das interações humanas nos contínuos processos de formação do sujeito. (Santos, 2009: 188) Pensar em um currículum que valorize as múltiplas diferenças e identidades é pensar em um currículum que olha para a sala de aula reconhecendo as pluralidades existentes, que pensa na formação do aluno para o amanhã, para o futuro, para estar preparado a viver em sociedade e com condições reais de trazer mudanças sociais evitando, assim, que 5 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância compactue com os processos discriminatórios e excludentes existentes em nossos cotidianos. O currículo é político.O documento central que orienta a escola, o Projeto Político Pedagógico, é político. A educação é um ato político. Olhar a sociedade criticamente é político. Justamente por isso, precisamos reivindicar o direito ao debate, às diferenças e ao contraditório, sem silenciamentos e invisibilizações diversas para que todas/os as/os alunas/os possam ser contempladas/os pelo currículo escolar, sem marginalização ou exclusão por discriminação motivada por qualquer origem. Para Fernandes e Souza (2016), “o sentido de educar abrindo-se para africanidades é primordial por permitir um diálogo transformador e humanizador. Abrir-se para as africanidades permite a todos, e não só aos negros, a aquisição de conhecimentos calcados na tradição e na memória, e assim estabelecer um contraponto à cultura eurocêntrica presente na escola” (id, ibd: 115) 1.3. Descolonizando o currículo eurocêntrico As demandas pela descolonização do currículo escolar majoritariamente branca remontam ao início dos anos 2000, por uma série de fatores sociais que influenciaram o cotidiano individual (e coletivo, obviamente). A exemplo disso, podemos citar a democratização dos meios de comunicação, a partir do Governo Lula, em 2002, por meio do aumento de poder de compra das classes sociais menos favorecidas que, por conta disso, passaram a participar mais ativamente das redes sociais virtuais – algo que, até o início desse período, era algo inimaginável se considerada a realidade socioeconômica brasileira. Cada vez que acessamos nossas redes sociais, nos deparamos com discussões sobre formas diversas de racismo, machismo, representatividade, feminismo e muitas outras temáticas de cunho social. Estas questões passaram a influenciar a escola, e uma série de reivindicações teve que ser atendida pelas secretarias municipais, estaduais e pelo Ministério da Educação. Afinal de contas, o que está acontecendo com o mundo? Com a sociedade? Com o Brasil? 6 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Nada de diferente do que sempre aconteceu, mas agora existe o fator “conectividade”, que possibilitou o contato entre pessoas com as mesmas ideias, fortalecendo seus poderes de negociação e reivindicação. Isso significa que estas pessoas estão buscando uma descolonização, onde os indivíduos sociais (e consequentemente a sala de aula) passaram a reivindicar para si o direito de escrever suas próprias histórias. A compreensão das formas por meio das quais a cultura negra, as questões de gênero, a juventude, as lutas dos movimentos sociais e dos grupos populares são marginalizadas, tratadas de maneira desconectada com a vida social mais ampla e até mesmo discriminadas no cotidiano da escola e nos currículos pode ser considerado um avanço e uma ruptura epistemológica no campo educacional. (Gomes, 2012: 104) Descolonizar o currículo escolar é uma prática que requer muita dedicação e empenho dos envolvidos, pois é necessário que, antes de mais nada, reconheçamos que fomos não apenas colonizados por europeus, mas também que fomos escolarizados adotando como nossas tais perspectivas. A partir de então, será possível que a escola seja mais plural e esteja (mais) preparada para lidar com as demandas contemporâneas da educação. O processo educacional sempre foi e sempre será dialético, movido por meio de tensionamentos, convergências e divergências. O estudo não está parado em um determinado tempo-espaço imutável; pelo contrário, ele sofre alterações constantes, frutos das próprias mudanças sociais que vivemos. Cabe à escola estar atenta para realizar este tão necessário mapeamento e compreender a importância de valorizar cada vez mais o respeito às diferenças para tornar-se, assim, um local de construção da cidadania, e não apenas um local de escolarização. 7 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 2. CONCEITUAÇÃO RACIAL E ÉTNICA Objetivo: Explicitar a diferença conceitual entre raça e etnia, duas palavras que muitas vezes são interpretadas como sinônimos quando, na verdade, existem diferenças específicas entre eles. Enquanto “raça” identifica grupos pelos seus fenótipos (cor, traços faciais, textura capilar, etc.), “etnia” os identifica por suas ligações culturais (religiosidade, língua falada/escrita, nacionalidade). Introdução: Muitas vezes vemos os termos “raça” e “etnia” sendo largamente utilizados, tanto em pesquisas acadêmicas como em noticiários televisivos, ou até mesmo em postagens nas redes sociais como, por exemplo, o Facebook e Instagram. No entanto, se nos atentarmos ao seu uso, veremos que ambos são utilizados como sinônimos, como se não houvesse distinção entre eles. Mas a verdade é que esta diferença existe: cada conceito diz respeito a uma categoria social específica, e será sobre este ponto que nos debruçaremos neste ensaio. O conceito “raça” foi utilizado pela primeira vez em 1684, a partir da publicação “Nova divisão da terra pelas diferentes espécies ou raças que a habitam”, de François Bernier. Popularizou-se, inicialmente, a partir do uso nas Ciências Naturais, que precisavam de um conceito para categorizar seus objetos de estudo: plantas, animais, etc. Bernier passa a utilizar este conceito para realizar as suas análises sociais de grupos fisicamente contrastados. Ou seja, remete-se à utilização francesa pela identificação germânica (nobreza), em oposição aos gauleses, a plebe daquela época. Já o conceito de “etnia”, diferentemente do conceito de “raça”, que é derivado a partir de traços fenótipos, será atribuído de acordo com a forma que os próprios sujeitos se identificam com relação a outros. Como exemplo, podemos citar os grupos que se correlacionam a partir de uma determinada linguagem, expressão cultural, vestimenta, dentre outros signos identitários. Enquanto a primeira categoria (raça) está ligada às questões biodeterministas, a segunda categoria (etnia) está ligada às questões de identificações culturais. 8 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 2.1. Histórico da utilização da terminologia conceitual “raça" Inúmeras terras foram invadidas e conquistadas durante o séc. XV com o objetivo de dominação territorial e exploração das riquezas naturais existentes naquelas terras até então sem o domínio europeu, para que estes países pudessem enriquecer suas nações, desenvolver suas economias e aumentar seus poderes de influência em outras regiões do mundo. Neste momento de intensas invasões e contato com outros povos, os europeus precisavam classificar quem eram estas pessoas, quais eram os seus costumes e de qual forma eles (os europeus) poderiam tirar proveito destes povos que, até então, não tinham contato com os europeus e seus avanços tecnológicos – sobretudo das armas de fogo. A categoria mais bem utilizada e que melhor respondia às questões da época foi o de “raça”. “Raça” na antítese daquilo que eles compreendiam como civilização. “Raça” enquanto antagonismo daquilo que eles compreendiam como humanos. Desde o início, o conceito “raça” foi usado de forma a diferenciar “eles” dos “outros”, a partir daquilo que “eles” viam de semelhanças e diferenças em relação aos “outros”. Em qualquer operação de classificação, é preciso primeiramente estabelecer alguns critérios objetivos com base na diferença e semelhança. No século XVIII, a cor da pele foi considerada como um critério fundamental e divisor d’água entre as chamadas raças. Por isso, que a espécie humana ficou dividida em três raças estancas que resistem até hoje no imaginário coletiva e na terminologia científica: raça branca, negra e amarela. (MUNANGA, Kabengele. 2003, p. 3) Durante o séc. XIX, a biologia se incumbiu de criar as categorizaçõessociais a partir dos traços fenótipos e morfológicos: formato do crânio, tamanho da narina, espessura dos lábios, estatura e densidade muscular, dentre outros. Já a partir do séc. XX, com o avanço das pesquisas biológicas e a descoberta da genética, as raças passaram a ser estudadas mais a fundo e novas categorias foram criadas a partir dos traços genéticos: doenças hereditárias, desempenho racial nos esportes, etc. Nesta mesma onda surgiu o “Darwinismo social”, que ancorava determinadas discriminações raciais e sociais a partir de uma leitura equivocada sobre a teoria 9 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância evolucionista de Darwin com o intuito de justificar certos crimes e atentados contra os Direitos Humanos. Em um artigo1 para o Observatório de Análise Política em Saúde, Emanuelle Goes (2016), afirmou que “o determinismo biológico foi (para muitos ainda é) uma afirmação de que a forma de ser do humano como suas características intelectuais eram transmitidas de maneira hereditária.” 2.2. Reivindicação da utilização da terminologia “Etnia” Conforme pudemos ver, a utilização do conceito de “raça” está mais relacionada às questões biológicas e biodeterministas e, justamente por isso, algumas vezes não atende às especificidades socioculturais que temos em nossa sociedade multicultural. Não obstante, ao centralizarmos um grupo social dentro de uma categoria racial, acabamos homogeneizando todo aquele grupo, considerando-os todos iguais. Vale lembrar, entretanto, que alguns teóricos utilizam a terminologia “raça” para falar sobre as negritudes e, assim, tirar o véu que encobre o racismo institucionalizado no Brasil para abordar a falsa democracia racial existente. Não existe um modelo de “branquitude”, como também não existe um modelo “de negritude”. Existem “branquitudes” e “negritudes”, e justamente por isso, trabalharemos os grupos étnicos neste subcapítulo. Segundo Joel Rufino (2010), quanto à pluralidade étnica, Sempre pertenci a uma corrente minoritária do movimento negro. [...] Sou de uma corrente que defende que a contradição racial só pode tomar sentido no conjunto das contradições brasileiras. Por exemplo, a questão das cotas. Sou a favor das cotas, mas como uma estratégia de democratização da sociedade brasileira. [...] No fundo, trata-se do seguinte, são duas concepções do negro. Uma do negro como proletário, e outra do negro como etnia, ‘raça’, entre aspas, porque pouca gente usa e trata o negro como raça. (p. 28) Ou seja, dentro da categoria “raça” há uma grande quantidade de variáveis (ou, mais corretamente falando, identidades) que criam inteligibilidade entre si e dão corpo ao movimento negro. As demandas existentes no movimento negro brasileiro são diferentes daquelas existentes nos movimentos europeus, estadunidenses, etc. Assim como as próprias demandas existentes nos movimentos negros de Santos (SP) são diferentes daquelas de outros Municípios e de outros Estados – ainda que possam existir demandas 1 Disponível em: <https://goo.gl/5nFCoZ> Visualizado em 05/12/17 10 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância equivalentes, pois algumas formas de discriminação são históricas no Brasil e impostas há séculos a esta população. No entanto, também haverá demandas específicas de cada região como, por exemplo, entre o nordeste e o sudeste2. Olhando a distribuição geográfica do Brasil e sua realidade etnográfica, percebe-se que não existe uma única cultura branca e uma única cultura negra e que regionalmente podemos distinguir diversas culturas no Brasil. Neste sentido, os afro-baianos produzem no campo da religiosidade, da música, da culinária, da dança, das artes plásticas, etc. uma cultura diferente dos afromineiros, dos afro- maranhenses e dos negros cariocas. (MUNANGA, Kabengele. 2003, 15) Portanto, quando falamos de movimentos negros, estamos falando, sobretudo, de movimentos políticos e não de movimentos pautados no biologismo. Estamos falando de identidades políticas que têm as suas peculiaridades, assim como também teremos sujeitos que não compreendem a necessidade de suas respectivas organizações de representatividades. Vale ressaltar, ainda, que foram os movimentos sociais negros organizados que conseguiram reivindicar uma política racial no Brasil para que houvesse o reconhecimento do processo dificultoso imposto a eles em toda a nossa história, não apenas como forma de retratação, mas também como forma de reconhecimento. Ainda que inicialmente a terminologia “raça” fosse utilizada para categorias biológicas e biodeterminantes, ao longo do tempo ela passou a ser utilizada por teóricos que buscavam desvendar o racismo existente no Brasil e, justamente por isso, a sua utilização tornou-se corriqueira, sobretudo por teóricas/os negras/os enquanto forma de fortalecimento identitário. No entanto, a utilização da terminologia “etnia” passou a ser utilizada para categorizar ainda mais o sujeito de estudo – ou de análise – e assim ter em mãos maiores possibilidades de análise como, por exemplo, grupos étnicos de uma mesma nacionalidade (ao que Kabengele se referiu de “afromineiros”, “afro- marenhenses” e “negros cariocas”). 2 Es te fa to será t raba lhado mais espec i f i camente na 1ª semana, a pa r t i r da nar ra t i va de Diva Guimarães , 77 anos , pa r t i c ipante da F l ip de 2017, onde fa l ou sobre o rac ismo ins t i tuc iona l i zado que sof reu desde a sua fo rmação esco la r . 11 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 3. REPRESENTATIVIDADES IDENTITÁRIAS Objetivo: A partir de um apanhado histórico, a intenção é analisar a emergência das representatividades identitárias e sociais, não apenas no contexto social, mas também no escolar, para que possamos pensar em possibilidades para uma educação antirracista. Introdução: O contexto histórico nos remonta ao séc. XIX, onde as lutas sociais foram organizadas a partir das questões de gênero e raça, reivindicando direitos que sempre foram negados a estes dois grupos: da escolarização à profissionalização, e às questões de saúde pública. Por serem historicamente estigmatizados, a ascensão social destes grupos sempre foi mais difícil que a de grupos não marginalizados. Já no contexto nacional, os grupos começaram a se organizar politicamente durante o séc. XX, e mais enfaticamente a partir do séc. XXI, quando conseguiram direitos legais e promoveram uma agenda pública de suas demandas, onde os setores político-partidários tiveram que atendê-las como, por exemplo, promoção e valorização das identidades negras durante o Governo Fernando Henrique Cardoso por meio de políticas públicas específicas e, a partir do Governo Lula, uma série de ações afirmativas foram adotadas com o intuito de reparar a divida histórica existente para com esta parcela populacional. Ainda que tenhamos uma série de dificuldades em aceitar a promoção da igualdade racial e da democratização do acesso ao ensino superior por meio das cotas raciais, algo já existente e aceito em diversos países, reconhece-se a importância e a necessidade de sua manutenção como forma de não apenas reparar a dívida histórica, mas de promover a ascensão social desta parcela populacional. 3.1. Processos históricos de marginalização Os negros serem foram representados ora de forma estereotipada, ora de forma folclórica. Raramente eles eram retratados em suas pluralidades e diferenças, que dirá a partir de suas riquezas culturais, religiosas e históricas. A partir desse fato, os grupos negros, socialmente organizados, passaram a olhar criticamente para o currículo escolar e reivindicar uma série de questões que iam de 12 Educação das RelaçõesÉtnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância encontro com as suas necessidades – e a escola não sabia como lidar com tais demandas, principalmente por ter o seu currículo escolar estruturado de forma eurocêntrica. A questão racial sempre foi predominante e esteve presente em todo o histórico brasileiro, sobretudo pela dificuldade de ascensão que os negros têm no Brasil por serem uma população majoritariamente marginalizada e com dificuldades diversas, que têm as suas cores enquanto marcadores sociais destes processos dificultosos. A formação da identidade nacional estabeleceu-se com a miscigenação, que está pautado no processo de dominação do homem branco-imigrante sobre a mulher negra e indígena, isto é, sob uma relação forçada de dominação sexual do homem “sobre” a mulher, atualmente conhecida como cultura do estupro (Zivani e Estevam, 2016: 87) A dificuldade de se manter no processo de escolarização resulta na formação de uma mão de obra desqualificada e, consequentemente, com baixa remuneração. Mas antes mesmos de pensarmos na escola, devemos olhar para a escola e fazer uma cartografia racial de nossos alunos, professores e gestores para que possamos analisar se há algum marcador racial presente em cada grupo. Teles (2010) afirma que “é consenso que na escola o racismo e seus desdobramentos, preconceito e discriminação racial, também estejam presentes. [Sendo necessário analisar] como as práticas pedagógicas desenvolvidas no dia a dia escolar podem manifestar racismo.” (64). Rotineiramente vemos a proposição da adoção de personagens teatrais negros para o ensino infantil, livros com personagens negros para o fundamental I, pesquisas sobre o negro na sociedade para o fundamental II e debates sobre os locais racializados na sociedade brasileira como, por exemplo, o marcador racial da população de bairros de classe alta e dos bairros periféricos, dos estudantes de escolas públicas e particulares, dentre outros. 3.2. Representatividade como forma de resistência Para além do fator de fortalecimento identitário, as representatividades também articulam as questões ligadas às diversas formas de resistência frente aos processos históricos de marginalização. Ou seja, a partir do momento que as pessoas negras olham para si mesmas e compreendem o seu valor, passam a reivindicar uma série de direitos 13 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância que outrora foram impossibilitados como, por exemplo, seus sujeitos nos livros escolares, seus pares enquanto autores consagrados referenciados. A escola precisa pensar em dispositivos e projetos específicos que trabalhem as representatividades étnico-raciais com o objetivo de fazer com que as crianças e jovens percebam que as histórias de seus ancestrais não apenas estão inseridas nos livros, mas também são constituintes do desenvolvimento da sociedade. Para Abramovay e Castro (2006), “uma proposta seria oferecer material didático e pedagógico que realce a positividade da diversidade, ou seja, em que a diversidade étnico- cultural esteja positivamente representada, desmistificando a ideia de igualdade e questionando hierarquizações.” (p. 343). Continuam: A inserção da história da África e do povo negro nos currículos escolares é um avanço, mas há que cuidar que África, que negro aí se retrata, e como as mulheres negras e suas reivindicações são representadas. Haveria, portanto, para fazer frente a tal desafio, por uma educação anti-racista e anti-sexista, contribuir para que a escola mais se abrisse ao conhecimento dos movimentos sociais, como o das mulheres negras. (p. 36) A importância de representar positivamente existe para que as crianças e jovens se sintam contemplados e sintam orgulho de suas histórias, visto que historicamente, podemos reconhecer que as narrativas invisibilizam essas histórias e criminalizam sua existência. Diversas abordagens metodológicas podem ser acionadas: teatros, contação de história, pesquisa na internet e livros, movimentos sociais representativos, ONGs, jovens empoderados, etc. Trazer à escola estas abordagens, como também buscar grupos universitários que debatam a temática, ajuda não apenas a democratizar esta informação, mas também a criar um intenso e rico debate possibilitando a troca de conhecimento. Para aqueles que estão longe dos grandes centros urbanos com os museus da história negra e sítios arqueológicos da escravidão, há a possibilidade de fazer uma viagem virtual por meio do Google Maps e do Google Street View, que são ferramentas virtuais que aproximam os alunos de locais cujo acesso físico por eles seja difícil. Já para aqueles que estão próximos destes locais, recomenda-se o desenvolvimento de um projeto específico e conhecimento prévio do passeio para que seja possível criar uma ponte entre o conhecimento de sala de aula e aquele do espaço museal. 14 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Olhar para a sala de aula e ver que você está presente não apenas enquanto corpo, mas também enquanto estudo, personagem, fato histórico, arte e brincadeira faz com que os sujeitos se sintam pertencentes a alguma coisa, pertences a uma história, pertencentes a um espaço-local-momento. Reconhecer esta importância é saber que a partir dela será possível criar novas relações entre discente-docente-conteúdo. A importância central no processo de representatividade é fazer com que as pessoas passem a reivindicar para si as suas histórias, estejam presentes no cotidiano social, estejam presentes nos locais de poder e ocupando espaços seus, que outrora lhes foram negados. Reconhecer a dívida histórica que temos é uma atitude cidadã, cívica e moral, é saber que mesmo após a libertação dos escravos, suas vidas eram precarizadas, as escolas eram quase inexistentes e a ausência de mão-de-obra qualificada (mais o agravante de uma sociedade fortemente racista na época) dificultava melhores ganhos e, consequentemente, a ascensão social desta parcela da população. Para tanto, pensar as relações étnico-raciais é reconhecer a História, valorizar o presente e almejar pelo futuro. 15 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 4. RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANAS NO COTIDIANO ESCOLAR Objetivo: Subsidiar possibilidades de discussão sobre a importância das religiões de matriz africana, sobretudo a umbanda e o candomblé por serem as mais conhecidas na História do Brasil e dos afrodescendentes, tendo como objetivo principal a promoção e consolidação de uma educação que respeite as diferenças e combata as discriminações, racismo e intolerância no cotidiano escolar. Introdução: A emergência deste tema se dá não apenas a partir do disposto na Lei Federal 10.639/03 e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, mas também pelos sistemáticos ataques que os centros religiosos de cultura afro-brasileira vêm sofrendo e pelas perseguições que os alunos frequentadores de umbanda e candomblé vivenciam no cotidiano escolar. Reconhecer que a escola é plural é reconhecer que as mais diversas expressões étnicas, raciais, de gênero e de sexualidade estarão presentes em sala de aula da mesma maneira que as mais variadas expressões religiosas também estarão. Justamente por isso, é necessário que a escola (professores e gestores) pense em ações que promovam o respeito entre discentes, para que não haja qualquer ato de intolerância evitando, assim, incorrer na prática delituosa, de acordo com o Art. 5, inc. VI da Constituição Federal, de intolerância religiosa. A discussão da importância das religiões de matriz africana não significaa promoção de uma determinada crença, nem uma forma de impor as religiões de matriz africana como crenças a serem seguidas. A discussão ocorrer a partir de sua importância sociocultural para aquele determinado povo e como ela, a religião, possibilita um fortalecimento identitário para a noção de nação. 4.1. Formas de resistência histórica existentes nos terreiros Os negros africanos que chegaram ao Brasil como escravos trouxeram consigo uma série de produções culturais – pois, conforme já visto na disciplina de Fundamentos 16 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Sociológicos e Antropológicos da Educação, a cultura é tudo aquilo produzido pela sociedade, como as suas línguas, vestimentas, culinárias, costumes e religiosidades. Enquanto trabalhavam nos engenhos de cana e nas lavouras, foram introduzindo seus costumes e trazendo os significados de suas tribos para aquelas regiões em que trabalhavam como, por exemplo, utilizando nomes de divindades e ervas específicas para manifestações religiosas. Justamente por isso que a umbanda e candomblé são religiões de tradição oral, havendo mudanças e diferenças em cada terreiro de cada cidade e estado. Uma das características de qualquer manifestação cultural imaterial, passada oralmente, é o poder de ressignificação ao longo do tempo e para cada região. A questão da africanidade nas diásporas está relacionada à questão das resistências culturais, que por sua vez desembocaram em identidades culturais de resistências em todos os países do mundo, beneficiados pelo tráfico negreiro. O Brasil é um deles, ou melhor, é o maior dos países beneficiados pelo tráfico transatlântico e aquele que oferece diversas experiências da africanidade em todas as suas regiões, do norte ao sul, do leste ao oeste. (Munanga, 2007: 12) A tradição oral da religiosidade afro se dá por advirem de tribos, famílias e regiões específicas. Da mesma maneira que não temos uma única identidade negra, também não temos uma única religiosidade afro: temos diversos segmentos de candomblé, de umbanda, de tambor de mina, malunguinho, etc. A sua religiosidade é tão rica quanto o seu povo. Falar sobre as religiões afrodescendentes é reconhecer que é uma expressão religiosa que foi historicamente marginalizada por se contrapor ao sentimento daquilo que se compreendia enquanto religião “correta” a ser seguida desde o Brasil Colônia (o cristianismo). A partir deste momento ela passou a ser demonizada e alguns de seus significados modificados – a exemplo disso, podemos citar os Exus, que no candomblé são os guardiões dos caminhos aos Orixás e na Umbanda são divindades com outro propósito. 17 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Portanto, para abordar as questões das religiões afro-brasileiras, deve-se partir do caráter sócio-histórico-cultural existente nestas manifestações religiosas, e não de forma confessional. Afinal de contas, o ensino se baseia na (teórica) laicidade estatal. 4.2. Abordagens teórico-metodológicas para uma escola não racista Passar do livro didático escolar ao documentário no YouTube, ao convite que pode ser feito a representantes religiosos para ministrar palestras e compartilhar seus conhecimentos são algumas das infinitas possibilidades para debater a temática em sala de aula para uma escola não racista – ou, melhor dizendo, para uma escola que forme seus alunos para não serem racistas e nem intolerantes. Milton Santos (2000), afirma que: Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da pirâmide social quanto haver "subido na vida". (p. 4) Para aquelas escolas que não têm a possibilidade de fomentar uma palestra, uma visita a um terreiro ou qualquer coisa do gênero, recomenda-se a utilização do Skype para que os alunos possam conversar com pessoas que frequentam a religião de matriz africana e conhecer um pouco mais sobre esta rica diversidade. Obviamente, cada faixa etária requer uma abordagem metodológica específica, mas todas as faixas etárias estão preparadas para aprender o valor do respeito ao próximo. Afinal de contas, é para isso que serve uma escola. A temática pode ser trazida nas mais variadas disciplinas escolares, como a oralidade por meio da língua portuguesa, os costumes por meio da história, as regiões dos terreiros por meio da geografia, a valorização da vida por meio da filosofia, e tudo isso sem se debruçar, de fato, sobre a religiosidade em si. Apenas sobre as suas manifestações culturais e, havendo qualquer manifestação de intolerância por parte discente, responsáveis discentes, docentes e/ou gestora escolar, lembrá-los que isto faz parte do disposto em uma Lei Federal. 18 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Seguindo a lógica dos PCNs de 1997, e o próprio texto da Lei 10639, a temática étnico-racial deveria ser abordada de forma transversal, ou seja, perpassando o currículo escolar como um todo, não sendo de responsabilidade de uma única área do conhecimento. (BAKKE, 2011: 158) Há uma infinidade de livros recomendados pelos MEC, ancorados nos PCNs, que abordam as questões étnico-raciais na escola, discorrendo não apenas sobre as religiosidades, mas também sobre as abordagens metodológicas recomendadas para cada nível de série. Munanga e Gomes (2006) discorrem em O negro no Brasil de hoje sobre como a cultura brasileira é rica em virtude da influência das mais diversas culturas trazidas pelas tribos africanas durante o período da escravidão. Com o objetivo de deixar ainda mais clara a importância de abordar a religiosidade africana no Brasil, Lopes (2008) fala que a temática é a forma mais sólida que se tem sobre a diáspora africana ao Brasil, presente há mais de 500 anos, desde quando foi invadido por Portugal e os negros foram sequestrados e trazidos para cá. Trabalhar as temáticas das religiosidades de matriz africana é de extrema urgência. Não obstante, foram criadas uma legislação específica e Diretrizes próprias para a temática. Tais criações são fruto de demandas da sociedade civil organizada e de representantes destas religiões. A escola deve ser plural e democrática, valorizando as diferenças e fomentando a cultura. A religiosidade de matriz africana faz parte da História do Brasil e é um locus onde a cultura afro-brasileira está ancorada sendo, assim, de extrema importância socializar tais conhecimentos e culturas no ambiente escolar. Sobretudo em tempos onde diversos terreiros de umbanda e candomblé estão sendo apedrejados nos mais diversos Estados brasileiros. Trabalhar a temática em sala de aula é seguir a legislação vigente, nada mais. 19 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 5. POR UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA Objetivo: Partir do reconhecimento que a promulgação de uma lei não é o suficiente para que todas as práticas racistas existentes no cotidiano escolar e social sejam eliminadas de um dia para o outro, sendo necessário que a escola crie projetos específicos que mitiguem a sua existência e cutive novas relações entre os sujeitos a partir do respeito às diferenças. Introdução: Uma das formas que podemos analisar para evitar a propagação de expressões racistas no cotidiano escolar, da mesma maneira que devemos nos atentar a outras práticas que envolvam formas diversas de racismo e as quais muitas vezes não percebemos, legitimando involuntariamente esta prática, é a atenção aos conteúdos disciplinares. A exemplo disso, cita-se alinguagem. Afinal de contas, que nunca ouviu expressões como “aquele fulano é tão bonzinho que tem alma branca”, crianças que pegam o lápis “cor de pele” se referindo ao bege e não ao lápis preto, pessoas que vão à praia e ficam “da cor do pecado” por estarem escuras por conta do sol, ou quando algo é muito bagunçado e parece um “samba do crioulo doido”, “cabelo ruim”, “pé na cozinha”, “a coisa tá preta”, “inveja branca”, “vai lá com as tuas negas/não sou tuas negas”, “denegrir” alguma pessoa ao falar mal dela, dentre outros. Acredito que se fôssemos elencar as expressões racistas que usamos em nossos cotidianos, ficaríamos até 2020 por conta de sua grande quantidade. Será justamente a partir deste ponto, dos racismos naturalizados e velados em nossos cotidianos, que discorreremos neste capítulo para pensar em uma educação antirracista e, assim, analisar as nossas práticas docentes, possibilitando a construção de outras relações para com os sujeitos, com as diferenças e em consonância com as demandas identitárias dos movimentos sociais contemporâneos que não aceitam mais ser tratados motivo de escárnio social. 5.1. A linguagem cotidiana Em outros tempos, a linguagem não era algo que exigia atenção na sociedade; falava-se e não se atentava, aceitavam as palavras e não se preocupavam com os seus 20 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância sentidos. Hoje, em tempos atuais, reconhece-se que as palavras têm sentidos para além delas em si, que têm mensagens, reconhecimentos e intenções. A linguagem é intencional. Falar é mais do que um ato de comunicação, é um ato de transmitir palavras, ideias e pensamentos. Durante muitas décadas, legitimamos práticas altamente racistas e discriminatórias sem que houvesse uma resistência à altura destas violências – o que hoje ocorre sistematicamente e é denunciado a todo instante. Nesse sentido é que militantes, pesquisadoras e pesquisadores da questão racial têm trabalhado com vistas a destituir o termo negro dessas acepções pejorativas e preconceituosas, por entenderem-no como essencial para o resgate da história, da autoestima e da cidadania do povo negro brasileiro. (SOUSA, 2005: 107) Usar “negro” associando àquilo que há de ruim, como foi citado anteriormente na introdução, influencia negativamente a autoidentificação das pessoas negras como “negras” em virtude dos racismos interiorizados no cotidiano social. A partir do momento em que a escola cria projetos específicos que combatam as discriminações e elevem o orgulho étnico-racial, a juventude passará a se empoderar ainda mais. O empoderamento é positivo para que todos os sujeitos passem a ter orgulho de suas histórias, de suas trajetórias e de todos os valores que os alicerçam em suas vidas. Olhar para o seu passado, para a sua raiz, para seus antepassados e compreender todos os processos violentos aos quais foram submetidos e que vivenciaram e, ainda assim, reivindicar para si uma nova forma de fazer sua própria história é algo digno de ser valorizado na escola e na sociedade. Por outro lado, a promoção de uma educação antirracista exige da parte dos professores o compromisso individual/profissional de reconhecerem que estamos todos inseridos numa estrutura social racista. Essa estrutura, contrapondo-se ao “mito da democracia racial”, gera o racismo, o preconceito e a discriminação, bem como muitas das desigualdades socioeconômicas na sociedade brasileira. (Leite; Barduni Filho, 2013: 53) A partir do momento em que reconhecemos as diversas formas como cometemos racismo – não que sejam propositais, mas por estarmos inseridos numa sociedade racista e, consequentemente, sejamos subjetivados por ela – e buscamos dispositivos específicos para resistir às suas práticas, podemos pensar em uma escola que possibilite a emancipação de seus alunos, sobretudo aqueles estigmatizados historicamente. Pensar a escola é pensar em todas as suas pluralidades e diferenças. 21 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 5.2. Quatro possibilidades metodológicas de combate ao racismo Abordaremos brevemente as possibilidades metodológicas de combate ao racismo para a Pré-Escola e para as séries iniciais do Ensino Fundamental I neste subcapítulo, a partir de livros, músicas, teatro e vídeos no YouTube pois, na videoaula referente a este capítulo, explanarei mais detalhadamente sobre estas possibilidades com indicações a partir daquilo referenciado pelo MEC. Livros como Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado, trabalham positivamente as diferenças étnico-raciais com o objetivo de que as crianças não apenas reconheçam a pluralidade existente entre os sujeitos, mas também que as crianças negras tenham orgulho de suas cores, combatendo quaisquer possibilidades de discriminação. Uma narrativa quando bem estruturada, com ilustrações, contação de histórias com pausas nas falas, explicações das ilustrações e participação das crianças ouvintes possibilita que elas entrem na história e se sintam partícipes destas. Clara Nunes, com Brasil mestiço santuário da fé, trouxe as mais diversas manifestações culturais de resistência negra em uma única letra. Ela fala dos chicotes dos senhores de escravos, da musicalidade oriunda do samba, do maculelê, dos atabaques, o jongo e maracatu – uma ampla e enigmática quantidade numa única letra de música, possibilitando que o professor trabalhe todas estas em sala de aula por meio de fotos e vídeos, mostrando aos alunos toda essa riqueza existente num único povo e sua influência em nosso cotidiano. O teatro é outra manifestação artística que pode ser utilizada como forma de abordar as discriminações raciais existentes na sociedade, bastando a/o docente responsável buscar uma situação que tenha acontecido na escola ou na própria sociedade e encená-la, criando uma performance artística. Lembramos que o black face (pessoas brancas pintando os rostos de preto por ser uma prática racista que é criticada pelos movimentos identitários) deve ser evitado. Por fim, outra possibilidade é trazer vídeos do YouTube que explorem aquilo que não seja possível executar na escola. Ou seja, se a escola tem um local (quadra, quintal, sala de aula, corredor, etc.) para encenar uma peça, encene. Se tem local para um recital, recite. Se tem local para uma música, cante. 22 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância As artes constituem modos específicos e diferenciados de produção de conhecimento, abarcando diversas linguagens e formas sensoriais, além de uma expressão característica de cada abordagem artística. Escultura, dança, música, pintura, circo, cinema, teatro, entre outras, performam distintas linguagens e meios de expressão, com variantes internas, inerentes a cada uma delas, possibilitando tratamento em separado, conforme suas singularidades. (Marques, Souza, Zico, 2017: 690) Aproveite tudo o que for possível de executar na escola, recorra ao YouTube quando não houver possibilidade ou, então, utilize a ferramenta como suporte à atividade prática realizada em sala de aula. Nada melhor do que inserir os alunos em práticas educacionais contemporâneas, diferentes e que fujam do ensino tradicional, colocando o aluno como partícipe da construção do conhecimento. Olhar para nós mesmos e reconhecer as formas como cometemos racismo, como interiorizamos e naturalizamos tais práticas, é essencial para que sejamos críticos conosco e, assim, para que sejamos também melhores sujeitos para com o outro. Reconhecer a nossa limitação é essencial para a nossa melhoria pessoal e profissional. Nós ganhamos com tais melhorias, nossos alunos ganham, a escola ganha e todos ganham. Mudar a linguagem é essencial para evitarmos discriminarsem perceber, analisar criticamente nossas falas é uma forma ficarmos sempre atentos. Quando houver dúvida, deveremos procurar um profissional, alguém de um movimento social, uma ONG, etc. que seja capaz de sanar tal dúvida. Assumir nossos próprios limites é extremamente necessário e positivo para que possamos evoluir. Metodologias diferenciadas possibilitam que a escola seja mais dinâmica e interessante, que os assuntos abordados sejam facilmente compreendidos e que todos aprendam com outros olhares. 23 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 6. MOVIMENTOS SOCIAIS IDENTITÁRIOS CONTEMPORÂNEOS Objetivo: Analisar as demandas contemporâneas dos movimentos sociais das negritudes a partir da comparação com os anos 90, marcados pelos alisamentos de cabelo à base de formol e cirurgias estéticas para afinamento de nariz (“igual ao da Barbie”), frente à atual disseminação do uso de cabelos cacheados e crespos, turbantes, roupas e batons multicoloridos. Novos tempos, novas perspectivas, novos olhares, novas demandas. Introdução: A internet nunca esteve tão permeada de discussões identitárias como temos visto nestes últimos anos. Não obstante os motivos que influenciaram tais discussões como, por exemplo, o Governo Federal assumindo as questões raciais enquanto uma agenda política, o aumento do uso da internet no Brasil, as campanhas contra o assédio às mulheres no mundo inteiro, a eleição da palavra “feminismo” como a “palavra do ano” de 2017 para o dicionário Merriam-Webster's, dentre outros, não há como negar que tivemos uma grande mudança nas perspectivas mundiais frente à temática nestes últimos anos. Poucos são aqueles que não se depararam nas últimas semanas com as expressões “respeite meu turbante”, “tombei”, “lacrei”, “empoderamento”, “fortalecimento”, “respeite as manas, as minas e as monas”, etc. As mulheres afirmam que não voltarão mais para a cozinha, os negros falam que não voltarão mais para as senzalas e os LGBTIQ afirmam que não voltarão mais aos seus armários. Os tempos são outros. Hoje em dia, os movimentos sociais identitários fortaleceram as diferenças, tensionaram aquilo que era compreendido como o correto e passaram a reivindicar direitos que outrora eram inexistentes. Não há como negar: afirmam que não aceitarão nenhum direito a menos e que as suas lutas e suas pautas vieram para ficar. Estão nas ruas, nos bares, nas famílias e também na escola. A instituição escolar é uma extensão de toda a estrutura social e consequentemente tais assuntos estão presentes em salas de aula, bastando nós, professoras e professores, estarmos preparados para lidar com estas demandas. 24 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 6.1. O cabelo crespo, o turbante e a hipersexualização da mulher negra O fortalecimento identitário no Brasil é uma pauta mais do que antiga do movimento negro. A exemplo disso, cito contemporaneamente o Geledés – Instituto da Mulher Negra, que existe desde 1988 e se dedica às questões raciais no Brasil. Debate-se gêneros, sexualidades, classes, direitos humanos, genocídio da juventude negra. Debate-se tudo, sempre em perspectiva racial. Cada vez mais vemos, nos grandes centros urbanos e subúrbios brasileiros, a utilização do cabelo crespo por mulheres e homens, meninas e meninos. Ao ligarmos a televisão, vemos propagandas de produtos de beleza para o cabelo crespo, discursos para que assumam seus cachos e tenham orgulho de suas raízes – aqui, com direito ao duplo sentido, de raiz capilar e étnica. O capital se apropriou das demandas e viu neste nicho uma possibilidade de vender seus produtos, como já era de se esperar. Chaves (2008) afirma que “sendo a mídia privilegiadamente considerada um ‘estado de opinião’, e observando-se que é mínima, ou até mesmo nula, a presença dos negros nos meios de comunicação no Brasil, nota-se que ainda vivemos o Mito da Democracia Racial” (p. 17) Paralelamente ao incentivo do uso de seus cabelos crespos, vemos um fortalecimento do uso de turbantes enquanto forma de reivindicação de origens e raízes culturais – turbante este, motivo de muito debate sobre a utilização por pessoas brancas, possível ‘esvaziamento cultural’ em sua utilização por não negras, dentre outros debates que costumamos ver no Facebook. Em que pese a discussão sobre o “fazer cultura” e as formas como ela se adequa às mais diversas sociedades por não ser algo estático num determinado tempo-espaço, há de se reconhecer que é uma discussão que também está presente não apenas na internet, como também em sala de aula. Outro ponto histórico da discussão sobre as negritudes é a hipersexualização da mulher negra, que as acompanha desde a época do período escravagista brasileiro, onde as negras escravas eram estupradas sistematicamente detentores, sendo conhecidas historicamente como “mucamas”, e até hoje têm seus corpos sexualizados em expressões como a “mulata sensual”. 25 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância A exemplo das consequências destas demandas, a própria vinheta da Globeleza, uma morena hipersexualizada, deu espaço à uma nova vinheta mostrando as diversas manifestações étnico-culturais carnavalescas do Brasil, não mais centrando na escola de samba com a morena sensual sambando, mas mostrando o maracatu do baque solto, o maracatu do baque virado, o frevo, a festa do boi e diversas outras festas regionais. 6.2. Produção acadêmico-cultural negra Cada vez mais vemos participantes de eventos acadêmicos reivindicando pesquisadoras e pesquisadores negras/os em suas mesas de debate com o intuito de mostrar como a academia é permeada por pessoas brancas, havendo, assim, a necessidade de criarem movimentos denunciando o embranquecimento acadêmico brasileiro. O resultado é notório: começamos a ver estas/es pesquisadoras/es ocupando tais locais de poder, mostrando as suas pesquisas e, sobretudo, a importância do olhar de uma pessoa negra quando fala sobre as questões raciais no Brasil – visto que somos subjetivados e tais marcadores de classe, raça, etc., possibilitam vivências (e privilégios) distintos. A denúncia do embranquecimento da academia se dá por diversas formas, não apenas pela internet. Movimentos estudantis, movimentos identitários, grupos de estudos das questões étnico-raciais, dentre outros, organizam-se e propagam suas ideias, sobretudo no que se refere à ausência de teóricas/os negras/os em seus currículos. Este embranquecimento curricular faz com que haja uma dificuldade em representatividade e autoidentificação. Apesar das especificidades do modo como é representada, a realidade racial da academia não difere muito da realidade racial vigente em outras áreas da sociedade, mormente no que tange às estratégias utilizadas para a sua reprodução “informal”, que seria uma das características principais do estilo de racismo brasileiro. No caso da academia, os mecanismos mais comumente ativados que acabam por dar continuidade à prática da segregação racial são: a postergação da discussão, o silêncio sobre os conflitos raciais, a censura discursiva quando o tema irrompe e o disfarce para evitar posicionamentos claros. (Carvalho, 2006: 95) Tendo o IBGE como base (54% da população brasileira é negra), devemos nos perguntar: • Quantos professores negros tivemos? • Quantos teóricos negros estudamos? • Quantos gerentes de banco, de empresas, presidentes e profissionais em cargos de poder foram/são negros? 26 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Olhar para a nossa classe exige que reconheçamos esta discrepância não só de raça, como também de classe. Uma sala de aula de escola privada tem a mesma quantidadede alunos negros que uma sala de aula de escola pública? O bairro periférico é permeado pela mesma quantidade de negros do bairro da elite econômica local? Ao negro são associados o samba, o funk, o rap. Às produções culturais que exigem elevado grau de formação e instrução como a literatura, a pintura, as músicas clássicas, dentre outros, logo são associadas ao branco. É necessário reconhecer como a sociedade e os espaços públicos e privados são racializados para que possamos pensar em outras possibilidades na construção das relações sociais – a exemplo, disso pode-se citar os “rolezinhos”, fenômeno ocorrido em 2014, onde jovens periféricos se organizavam para realizar passeios aos shoppings center das cidades e eram impedidos pelos seguranças de entrar nos estabelecimentos comerciais e, em muitas cidades, a polícia local reforçava a vigilância. É de extrema urgência que analisemos os processos racializantes em que a sociedade brasileira está inserida desde a sua formação, ou seja, desde a vinda dos brancos colonizadores e do sequestro dos negros africanos. Estes espaços, sejam eles públicos ou privados, fazem parte de nossos cotidianos, e devemos olhar para o nosso entorno e pensar em possibilidades de mudanças. Buscar formas de inserção de povos estigmatizados, invisibilizados e subalternizados é de grande responsabilidade nossa, não apenas enquanto professores, mas também enquanto sujeitos. No entanto, reconhece-se que, enquanto professores, temos o dever moral de pensar nas discriminações sociais existentes na escola e buscar formas de mitiga-las. Fomentar o reconhecimento de como a cultura negra está inserida em nosso cotidiano e em quais locais ela não consegue permear são formas de trazer o debate para a sala de aula com o intuito de que todos participem da construção desse conhecimento e, assim, possa ser desenvolvido um projeto específico para mitigar quaisquer ocorrências de discriminações raciais em seu cotidiano. 27 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 7. ESTEREÓTIPOS, DISCRIMINAÇÕES RACIAIS E SUAS CONSEQUÊNCIAS Objetivo: Partir do reconhecimento de que a população negra foi historicamente marginalizada na sociedade brasileira desde o período escravocrata até os tempos atuais, e analisar as consequências destas marginalizações em seus cotidianos sociais. Introdução: Será a partir do não-reconhecimento do negro enquanto sujeito de direitos que as discriminações estarão ancoradas e, justamente por isso, a escola necessita pensar em projetos educacionais que fomente a compreensão do valor do outro, das diferenças e das especificidades em si. Este não reconhecimento não é atual e muito menos recente, origina- se em toda a história brasileira quando o negro era tido como objeto de trabalho para a Casa Grande. Mantém-se, portanto, o entendimento dos negros enquanto sujeitos com menos direitos que os brancos por inúmeros motivos – todos eles são apenas desculpas esfarrapadas para que se faça a manutenção dos privilégios sociais. Dentre eles, podemos citar as justificativas por suas baixas escolaridades, moradores das periferias, maior população carcerária, etc. Mas muito raramente vemos projetos educacionais que busquem analisar os motivos destas realidades permearem mais a população negra do que a branca. Como já pudemos ver ao longo desta disciplina, a questão racial não é uma página virada na democracia brasileira e devemos olhar para ela compreendendo todo o processo de exclusão que foi imposto à marginalizada população negra. A escola tem um grande papel nesta função e precisa reconhecer tais processos históricos para pensar em ações afirmativas, projetos educacionais e possibilidades para empoderar a juventude negra com o objetivo de fazê-los sentir orgulho (e conhecer!) de suas raízes e histórias. 7.1. Mito da democracia racial Já ouvimos as mais diversas justificativas para que as discriminações sejam mantidas no cotidiano social brasileiro e, justamente por isso, devemos compreender o que vem a ser a discriminação, quais mecanismos são acionados para a sua manutenção e como a sociedade legitima tais violências. As discriminações têm como objetivo 28 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância deslegitimar e diferenciar um grupo do outro, seja por meio da privação de direitos, dificuldades impostas para a ascensão social, etc. O Programa Nacional de Direitos Humanos (Brasil, 1998) afirma que a discriminação é “uma prática, uma ação, um ato de alguém subalternizar o outro”. Já percebemos, ao longo da disciplina, que vivemos no mito de uma democracia racial, onde todos têm os mesmos direitos e privilégios. Compreendemos também que a sociedade faz a manutenção dos privilégios de uma determinada parcela da sociedade por meio da marginalização da outra. O conceito de “democracia racial” foi ancorado no pensamento de Florestan Fernandes que, ao analisar a questão racial no Brasil, viu que não havia uma harmonia conforme afirmado por Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala (1933). Na ânsia de prevenir tensões raciais hipotéticas e de assegurar uma via eficaz para a integração gradativa da “população de cor” fecharam-se todas as portas que poderiam colocar o negro e o mulato na área dos benefícios diretos do processo de democratização dos direitos e garantias sociais. Pois é patente a lógica desse padrão histórico de justiça social. Em nome de uma igualdade perfeita no futuro, acorrentava-se o “homem de cor” aos grilhões invisíveis do seu passado, a uma condição sub-humana de existência e uma disfarçada servidão eterna (Fernandes, 2008: 309). Sob a égide da Democracia Racial, Fernandes compreende que o branco foi desresponsabilizado de qualquer culpa ao longo do processo histórico que discriminou, subalternizou e marginalizou o negro. Não obstante, acostumamo-nos a assistir nos meios de comunicação que o Brasil é um país tolerante, que não discrimina e nem tem preconceito com seus diferentes sendo, assim, um povo acolhedor. Este entendimento de “Homem Cordial” foi amplamente analisado por analisado por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936) que também desmistificou esta tal “cordialidade brasileira”. 29 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 7.2. Genocídio da juventude negra De acordo com o Atlas da Violência (IPEA, 2017), “de cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras. Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra.” (p. 30). É necessário analisarmos os diversos dados publicados ao longo das últimas décadas e nos sensibilizar com a quantidade de jovens negros assassinados. Não podemos olhar estes índices e compreendê-los como uma ocorrência “normal” de qualquer sociedade sem analisar motivos que estão por trás desse extermínio da população negra, sobretudo periférica, que tem sofrem mais diversas dificuldades para viver dignamente. Como exemplo disso, podemos citar a ausência de escolas públicas de qualidade no entorno de seus bairros, a inexistência de espaços coletivos para a promoção de esporte, lazer e entretenimento em geral, etc. Estas ausências e inexistências influenciam diretamente no cotidiano destes jovens que, com dificuldade de acesso aos serviços, têm suas trajetórias entrecruzadas por outros marcadores de vulnerabilidade social. Os dados mais recentes da violência letal apontam para um quadro que não é novidade, mas que merece ser enfatizado: apesar do avanço em indicadores socioeconômicos e da melhoria das condições de vida da população entre 2005 e 2015, continuamos uma nação extremamente desigual, que não consegue garantir a vida para parcelassignificativas da população, em especial à população negra. (IPEA, 2017: 33) Quanto o marcador racial foi entrecruzado pelo de gênero, houve a necessidade da criação de uma legislação específica para proteger as mulheres (Lei 13.104/15 – conhecida como Lei do Feminicídio) que, “ainda que a taxa de homicídio de mulheres tenha crescido 7,3% entre 2005 e 2015, [verifica-se uma diminuição de] 1,5%, entre 2010 e 2015, e sofrido uma queda de 5,3% apenas no último ano da série”. Ou seja, compreende-se a emergência de leis específicas que atendam às precariedades e vulnerabilidades sociais com o intuito de proteger estas parcelas populacionais e, assim, conceder a elas o mesmo direito de viverem suas vidas, diminuindo o risco de serem assassinadas. 30 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância O primeiro passo para reconhecermos as discriminações raciais existentes no Brasil se dará a partir do momento que olharmos para as nossas vidas e reconhecermos quais privilégios vivenciamos cotidianamente para, então, pensar em possibilidades de melhorias sociais. Reconhecê-las é compreender os processos históricos existentes no Brasil e como fomos subjetivados por eles. O mito da democracia racial, bastante debatido nesta disciplina, tornou-se impossível de ser sustentado quando nos deparamos com uma série de processos discriminatórios que a população negra brasileira vivencia desde a sua formação. Mito este que ainda está inserido no senso comum e necessitamos, enquanto docentes que somos (e seremos), pensar em metodologias específicas e projetos pontuais que debatam as questões étnico-raciais no Brasil. Não podemos, em hipótese alguma, tanto moral quanto legalmente, silenciarmo-nos e fingir que não vimos alguma discriminação dentro de nossa escola. Não podemos mais aceitar que tais processos violentos façam parte do cotidiano de nossos alunos e, por isso, temos que compartilhar com todos os envolvidos no processo educativo a necessidade de criar outras relações para com a escola, com a comunidade local e com a sociedade. Pensar em uma escola democrática e que respeite as diferenças é pensar numa escola contemporânea, que atenda as demandas da juventude e, acima de tudo, favoreça para que todos se formem com conhecimento, cidadania, empatia e respeito ao próximo. 31 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 8. PROMOÇÃO E VALORIZAÇÃO DAS ETNICIDADES E NEGRITUDES Objetivo: Valorizar o Dia da Consciência Negra não apenas como uma data comemorativa de feriado nacional, mas também como uma data de amplitude de suas reivindicações, demandas e de uma agenda política muito específica que busque atender as suas necessidades a partir da valorização de suas diferenças. Introdução: A inexistência de um tipo de negro frente à grande quantidade de negros, de suas expressões culturais e de suas manifestações cotidianas faz com que a escola olhe para seus alunos compreendendo esta inexistência única para um entendimento de uma existência múltipla. Desde as de cabelo cacheado e crespo, às de cabelo alisado e raspado, das que usam roupas coloridas às que usam roupas monocromáticas, fazer parte das diferentes negritudes não significa seguir um determinado padrão imposto ou construído. Não devemos enquadrar uma raça a uma determinada expressão cultural e, muito menos, deslegitimar uma pessoa que busca se expressar à sua maneira. Cabe à escola a valorização destas multiplicidades culturais com o objetivo de deixá-las mais coloridas, multiétnicas e multiculturais. Reconhecer suas demandas é o ponto de partida para que a escola possa ser um local de acolhimento, e não de violência; de visibilidade, e não de silenciamento. Tirar o direito de conhecerem suas histórias, suas origens e seus antepassados é violentar, ainda mais, uma parcela populacional que foi historicamente marginalizada. É não permitir que tenham acesso ao conhecimento, é impedir que compreendam suas histórias e passem a reivindicar para si o direito de contarem suas próprias histórias, a partir da ótica de uma mulher negra, de um homem negro, e assim por diante. 8.1. Dia da consciência negra Ainda que saibamos que todo dia é dia de debater diferentes formas de racismo, discriminação e processos históricos de exclusões sociais que são impostos a povos historicamente marginalizados, devemos reconhecer a extrema importância de uma data específica para valorizar as negritudes brasileiras. Entretanto, a data merece ser sinônimo de debate, de eventos escolares, de festas, etc. A escola precisa promover uma agenda 32 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância muito bem definida acerca da festa, contemplando as demandas desta parcela populacional e fazendo de seu espaço um local onde mesas de debates sejam realizadas, festas étnicas promovidas e, sobretudo, que tenha seus pares representando e protagonizando o evento. A própria questão da representatividade é uma demanda do movimento negro que está cada vez mais presente nos debates acadêmicos, dos movimentos sociais e dos sites de relacionamentos virtuais como o Facebook – este serviu, e ainda serve, como um grande propagador dos ideais dos movimentos de representatividades negros. A exemplo disso, podemos citar a página no Facebook Eu empregada doméstica, onde as pessoas que são, foram ou têm parentes empregadas domésticas realizaram suas narrativas de vivências de preconceitos e explorações que passaram e ainda passam nestes empregos. Segue a íntegra de uma narrativa postada no dia 14 de novembro de 2017: Boa noite! Acompanho a página, sempre que posso. Nunca imaginei que enviaria um relato, mas hoje aconteceu! Trabalho como caixa em uma boutique, onde vão varias madames da sociedade. Hoje uma dessas clientes, cheia da grana, conversando com uma vendedora, (eu escutando por um acaso), disse que precisava despachar a empregada dela. O motivo: a outra empregada que trabalhou a anos com ela, que era de confiança, quis voltar ao antigo emprego. Até ai vai né.... O absurdo começou quando ela começou a "descrever" as qualidades da tal moça... lá vai: Ela faz massa de macarrão caseira.... ela chega as 7:30 e sai as 18... ela cozinha muito bem.... ela até da banho nos meus cachorros... e o pior que eu escutei na minha vida: " ela é neguinha, daquelas com o beiço virado" mas trabalha super bem! Nossa! Eu já tinha nojo daquela mulher, depois disso fiquei com mais! Fiquei imaginando aquela pobre trabalhadora, tendo que dar banho nos cachorros daquela mulher... talvez porque seja uma ingênua.. ou talvez faça isso só para agradar aquela sinhá, no intuito de manter o ganha pão. Minha bisavó é índia, minha avó negra, e minha mãe mestiça.. minha mãe já lavou. privada de madame. E ouvir todas aquelas palavras me doeram na alma... na ferida... um sentimento de revolta, nojo, raiva e pena. fico me perguntando, se existe o mínimo de amor ao próximo no coração dessas sinhás. hoje eu tive certeza que não. fiquei muito triste por ver como tem ser humano tão primitivo. em fim... quis desabafar com vocês meninas... um beijo no coração de todas #EuEmpregadaDoméstica A escola precisa compreender este dia para além das festividades que podem ser realizadas – ainda que se reconheça a importância e necessidade delas – para criar uma agenda específica de debates, construção de ideias e desconstrução de estereótipos e discriminações. 33 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Fazer da escola um local de acolhimento que promova o respeito, a empatia e a valorização das diferenças é fazer com que ela seja um local positivo para todos que ali estiverem e, assim, seja um local onde os preconceitos e as discriminaçõesnão tenham vez e muito menos voz, não ecoando em seus corredores um discurso de ódio e intolerância. Afinal de contas, liberdade de expressão não é sinônimo de liberdade de proferir discurso de ódio. 8.2. Ações afirmativas As ações afirmativas são formas de reconhecimento dos processos de exclusão social que os grupos minoritários sofreram na sociedade moderna e contemporânea. Entende-se, ainda, “grupos minoritários” como aqueles não constituídos necessariamente de minorias quantitativas, e sim a partir do processo histórico de exclusão que grupos sociais específicos sofreram ao longo do tempo. Para o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), do Instituto de Estudos Sociais e Políticos, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, afirma-se que as: Ações afirmativas são políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão sócio-econômica no passado ou no presente. Trata-se de medidas que têm como objetivo combater discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, aumentando a participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural. (http://gemaa.iesp.uerj.br/o-que-sao-acoes-afirmativas/) A grande dificuldade para que a sociedade compreenda a importância e necessidade das “Ações Afirmativas” se dá pelo fato de que elas são amplas, interseccionam com questões estruturais da sociedade como as sociais, raciais, étnicas, religiosas, e cada país que as adota tem um desenho muito específico de acordo com as suas respectivas demandas. Afinal de contas, ao contrário do que muitos pensam, as ações afirmativas não existem apenas no Brasil ou em países em desenvolvimento. Também existem cotas nas mais diversas potências internacionais. A sua importância se dá pelo reconhecimento de que os processos históricos de formação das nações trouxeram dificuldades a parcelas sociais específicas em relação ao 34 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância acesso aos bens de consumo e produtos diversos, da educação escolar básica até a aquisição de produtos como moradia, produtos de linha branca como geladeiras, etc. A partir deste reconhecimento, uma série de políticas públicas são desenvolvidas para proporcionar o acesso à educação básica e superior, cursos profissionalizantes, reconhecimento de suas identidades, etc., para o desenvolvimento de atividades e ações específicas, dentre outros. Falar de ações afirmativas é falar, obrigatoriamente, do reconhecimento das especificidades de uma determinada parcela social para que ocorra uma política pública específica que atenda às suas necessidades. Não obstante, a ONU, em 2014, por meio de seu relatório do Índice do Desenvolvimento Humano (IDH), afirmou que o Brasil era exemplo mundial no combate à pobreza, ao retrocesso social e elogiou as ações sociais como o Bolsa Família enquanto políticas públicas de transferência de renda para mitigar problemas sociais. Dois anos após esta divulgação, já em 2016, o relator para a Pobreza Extrema, da ONU, criticou a PEC 55 que estava em tramitação no ano de 2016 e foi sancionada pelo Presidente Michel Temer. A sua crítica se deu pelo fato de que esta lei congelará os investimentos nas áreas da educação, saúde e assistência social pelos próximos 20 anos, a partir de 2018. O Brasil é um país que ainda tem um grande abismo entre as classes sociais, entre aquelas que moram nos bairros de luxo e aquelas que moram nas periferias, um marcador social é visível a olha nu: o racial. Reconhecer este marcador é saber que o processo histórico marginalizou uma parcela social muito específica em nossa sociedade contemporânea e uma série de medidas precisam ser tomadas com o objetivo de mitigar tais problemas sociais. Ainda que haja um interesse em maquiar os racismos existentes no Brasil e criar a sensação de uma democracia racial a partir de uma cordialidade, estudos comprovam exatamente o oposto àquilo que o senso comum costuma afirmar: o Brasil é um país racista que exclui os negros dos processos de ascensão social da mesma maneira que privilegia os brancos. Tal reconhecimento não é negativo ao país, muito pelo contrário. Reconhecer tais questões é viabilizar a criação de outras possiblidades para com a sociedade. Trazer à tona este debate permitirá que nossos alunos compreendam com exatidão, e sem um véu encobrindo a realidade, todas as questões existentes em 35 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância seu país, em seu estado e em seu município para que então a escola possa pensar em possibilidades do debate da temática sem falsos moralismos e sem fugir daquilo que é exigido pelos documentos oficiais educacionais brasileiros. Fonte: https://www.instagram.com/kobrastreetart 36 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 9. DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA. Objetivo: Neste último ensaio será mostrado todo o referencial legal do Ministério da Educação para a abordagem das temáticas referentes às questões étnico-raciais. Este capítulo foi selecionado para encerrar a disciplina por ser mais teórico-legal e, portanto, servir como referencial teórico-legal para subsidiar futuros docentes em relação à temática. Introdução: As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana3 foi o documento oficial, lançado em 2004, pelo Governo Federal, com o objetivo de normatizar a temática a ser abordada obrigatoriamente no ensino básico brasileiro. Friso, mais uma vez, a obrigatoriedade em abordar a temática na Educação Básica. Isto significa, portanto, que a abordagem não é facultativa. De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, afirma-se que: Todos estes dispositivos legais, bem como reivindicações e propostas do Movimento Negro ao longo do século XX, apontam para a necessidade de diretrizes que orientem a formulação de projetos empenhados na valorização da história e cultura dos afro-brasileiros e dos africanos, assim como comprometidos com a de educação de relações étnico-raciais positivas, a que tais conteúdos devem conduzir. (Brasil, 2004: 09) Por “dispositivos legais” entende-se, ainda de acordo com as Diretrizes em sua 9ª página, os Art. 26 e 26 A da LDB, como os das Constituições Estaduais da Bahia (Art. 275, IV e 288), do Rio de Janeiro (Art. 306), de Alagoas (Art. 253), assim como de Leis Orgânicas, tais como a de Recife (Art. 138), de Belo Horizonte (Art. 182, VI), a do Rio de Janeiro (Art. 321, VIII), além de leis ordinárias, como lei Municipal nº 7.685, de 17 de janeiro 3 Recomenda -se l e i tu ra na í n tegra das Di re t r i z es Curr icu lares Nac iona is pa ra a Educação das Relaç ões É tn ico-Rac ia is e para o Ens ino de His t ór i a e Cul tura A f ro -Bras i le i ra e A f r i cana : h t tp : / /www.ue l . br /p ro je tos / l eaf ro /pages /a rqu ivos /DCN -s%20-%20Educacao%20das%20Relacoes%20Etn ico - Rac ia is .pdf http://www.uel.br/projetos/leafro/pages/arquivos/DCN-s%20-%20Educacao%20das%20Relacoes%20Etnico-Raciais.pdf http://www.uel.br/projetos/leafro/pages/arquivos/DCN-s%20-%20Educacao%20das%20Relacoes%20Etnico-Raciais.pdf 37 Educação das Relações Étnico-Raciais Universidade Santa Cecília - Educação a Distância de 1994, de Belém, a Lei Municipal nº 2.251, de 30 de novembro de 1994,
Compartilhar