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Seleção de textos 
Diversidade e Educação 
 
Ministério da Educação 
Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica 
Secretaria de Educação a Distância 
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do 
Sul de Minas Gerais - Campus Muzambinho. 
 
 
Centro de Educação a Distância – CEAD 
 
 
Curso 
Licenciatura em Pedagogia EaD 
 
Coordenadora do Curso 
Maria Aparecida Lúcio Mendes 
 
 
Coordenadora de Plataforma e Tutoria 
Professora Assistente 
Cristiane Fortes Gris Baldan 
 
 
Disciplina 
Diversidade e Educação 
 
 
Professor 
Antônio Gilberto Balbino 
 
Diagramação da Capa 
Igor Xavier de Magalhães Silva Brasil 
 
 
Diagramação do Texto 
Adélia Ribeiro Paulino 
 
 
Muzambinho 
2022 
 
APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA 
 
Bem-vinda (o) à disciplina Diversidade e Educação 
Dando inicio aos estudos desta disciplina, queremos propor leituras seguidas de 
reflexões que nortearão nosso entendimento sobre a educação das relações étnico-
raciais. Questões consideradas polêmicas no passado, hoje fazem parte de nossos 
debates na sociedade como também das discussões no cotidiano da sala de aula. A 
sociedade brasileira possui esta especificidade, que é a diversidade. Uma riqueza do 
nosso povo, que deve ser trabalhada, visando a superação de posturas discriminatórias e 
preconceituosas, contribuindo assim, para o fortalecimento das relações sociais e união 
das pessoas em sociedade. Para tanto, propomos leituras de textos e artigos acadêmicos 
que muito contribuirão para a concretização da educação como instrumento de 
transformação social. 
 Na Unidade 1- A diversidade em Sala de aula, propomos a leitura do artigo 
Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro 
e o cabelo crespo, de autoria da Nilma Lino Gomes, a primeira reitora negra de uma 
universidade pública no país, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia 
Afro-Brasileira - UNILA. 
 
 Na Unidade 2 - 0 mito da democracia racial e as políticas públicas, trago a 
leitura do capítulo Universidade Federal de Ouro Preto, publicado no livro Atos, Pactos e 
Impactos: Direitos Humanos e Gestão de Políticas Públicas, das autoras Keila Deslandes 
e Laura Rodrigues Paim Pamplona. Uma análise que perpassa a discussão sobre o mito 
da democracia racial. 
 
 Já na Unidade 3- Legalidade dos estudos das relações étnico- raciais 
apresento a leitura do texto Apontamentos teóricos para a educação das relações étnico-
raciais no Brasil: contexto e conceitos. A leitura deste texto, de autoria de Ana Cristina J. 
da Cruz; Tatiane C. Rodrigues e Lúcia M. de A. Barbosa, apresenta reflexões sobre a 
legislação pertinente a esta temática, como fundamento da própria disciplina. 
 
 
 Na Unidade 4- Cultura em sala de aula por sua vez, propomos a leitura do texto 
Cultura no Espaço da Diversidade, organizado por Denise de Freitas, para que possamos 
refletir sobre as múltiplas e diversas culturas em sala de aula. 
 
 Representatividade de negros e índios em livros didáticos é o tema da 
Unidade 5. Trago o texto Imagens e representações de negros e de indígenas, também 
da autora Lúcia Barbosa juntamente a Fernanda Tonelli, problematizando a 
representatividade e as iconografias. 
 
 Por fim, mas não menos importante, na Unidade 6 – Intervenções no cotidiano, 
a leitura do texto Ações no cotidiano escolar, dos autores Fabiano Maranhão; Vanessa M. 
Bedani; Benedita da G. F. Mendes, que muito nos ajudará na elaboração do projeto 
proposto como tarefa nesta semana. 
 
 Seguem ainda, dois textos complementares que abordam Diversidade Religiosa 
e Sexualidade e Gênero. Uma sugestão de filmes faz parte da apostila, como proposta 
de embasamento teórico sobre a temática diversidade. 
 
Espero que possamos finalizar nossos estudos sobre Diversidade e Educação com 
uma nova postura em sala de aula, onde somos chamados a debater questões polêmicas, 
objetivando a superação de preconceitos e outras formas de discriminação. 
 
 
Prof. Gilberto Balbino. 
A diversidade em sala de aula 1
1
A diversidade em sala de
aula
Texto de Nilma Lino Gomes
Licenciatura em Pedagogia
Gomes, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores/as:
um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/ep/v29n1/a12v29n1. Acesso em março 2022.
http://www.scielo.br/pdf/ep/v29n1/a12v29n1
167Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003
Educação, identidade negra e formação de
professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo
Nilma Lino Gomes
Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo
Este artigo discute as particularidades e possíveis relações en-
tre educação, cultura, identidade negra e formação de profes-
sores/as, tendo como enfoques principais a corporeidade e a
estética. Para tal, apresenta a necessidade de articulação entre
os processos educativos escolares e não-escolares e a inserção
de novas temáticas e discussões no campo da formação de
professores/as.
Dando continuidade às reflexões realizadas pela autora
na sua tese de doutorado, discutem-se as representações e as
concepções sobre o corpo negro e o cabelo crespo, construídas
dentro e fora do ambiente escolar, a partir de lembranças e
depoimentos de homens e mulheres negras entrevistados durante
a realização de uma pesquisa etnográfica em salões étnicos de
Belo Horizonte. Para essas pessoas, a experiência com o corpo
negro e o cabelo crespo não se reduz ao espaço da família, das
amizades, da militância ou dos relacionamentos amorosos. A
escola aparece em vários depoimentos como um importante
espaço no qual também se desenvolve o tenso processo de
construção da identidade negra.
Lamentavelmente, nem sempre ela é lembrada como
uma instituição em que o negro e seu padrão estético são vis-
tos de maneira positiva. O entendimento desse contexto revela
que o corpo, como suporte de construção da identidade negra,
ainda não tem sido uma temática privilegiada pelo campo edu-
cacional, principalmente pelos estudos sobre formação de pro-
fessores e diversidade étnico-cultural. E que esse campo, tam-
bém , ao considerar tal diversidade, deverá se abrir para dialo-
gar com outros espaços em que os negros constroem suas iden-
tidades. Muitas vezes, locais considerados pouco convencionais
pelo campo da educação, como por exemplo, os salões étnicos.
Palavras-chave
Cultura – Formação de professores/as – Identidade negra – Estética.
Correspondência:
Nilma Lino Gomes
Rua Itaparica, 216 apto. 102 - Serra
30240-130 – Belo Horizonte - MG
E-mail: nilmagomes@uol.com.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003168
Education, black identity, and teacher education:
a look upon the black body and hair
Nilma Lino Gomes
Universidade Federal de Minas Gerais
Abstract
This article discusses the specificities and possible relations
between education, culture, black identity, and teacher education,
approaching them from the perspective of corporeity and
aesthetics. For that, the text introduces the need to articulate
education and non-education processes, to insert new themes and
discussions into the field of teacher education.
Following on the considerations made by the author in
her doctoral thesis, the representations and notions about the
black body and hair constructed inside and outside school are
discussed, based on memories and testimonies of black men and
women interviewed during an ethnographic study carried out in
ethnic beauty shops in Belo Horizonte. For those people, the
experience with the black body and hair is not restricted to the
family environment, friendships, militancy or love life. The
school appears in several testimonies as an important space in
which the tense process of construction of the black identity
also takes place.
Sadly, the school is not often remembered as an
institution where black people and their aesthetic standards are
viewed positively. The appreciation
of this context reveals that
the body, as a support for the construction of the black
identity, still has to be taken up as a theme of choice by the
educational field, particularly in the studies on teacher
education and ethnic-cultural diversity. It also shows that, when
considering such diversity, this field of study will have to open
itself to the dialogue with other spaces where black people also
construct their identity, spaces such as beauty shops, many
times regarded as unconventional in the field of education.
Keywords:
Culture – Teacher education – Black identity – Aesthetics.
Contact:
Nilma Lino Gomes
Rua Itaparica, 216 apto. 102 - Serra
30240-130 – Belo Horizonte - MG
E-mail: nilmagomes@uol.com.br
169Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003
A formação de professores/ras tem sido
uma preocupação constante do campo da edu-
cação. O MEC, a universidade, os centros de for-
mação de professores, as escolas, enfim, todos se
preocupam e concordam que é preciso hoje
formá-los mais adequadamente tanto em seu
percurso inicial quanto em serviço. Mas apenas
investir numa melhor formação não é o suficiente.
A formação de professores/ras, sobretudo a que
visa a diversidade, deveria considerar outras ques-
tões, tais como: como os/as professores/ras se for-
mam no cotidiano escolar? Atualmente, quais são
as principais necessidades formadoras dos/das
docentes? Que outros espaços formadores inter-
ferem na sua competência profissional e pedagó-
gica? Que temas os/as professores/ras gostariam
de discutir e de debater no seu percurso de for-
mação e no dia-a-dia da sala de aula? E que
temáticas sociais e culturais são omitidas, não são
discutidas ou simplesmente não são consideradas
importantes para a sua formação profissional e
para o processo educacional dos seus alunos?
Será que a questão racial está incluída nessas
temáticas omitidas ou silenciadas?1
Sabemos que existem vários artigos,
livros e pesquisas que discutem a relação en-
tre a questão racial e a educação. Porém, seria
interessante pesquisar se a produção teórica
sobre raça e educação, e negro e educação,
tem destacado a articulação entre identidade
negra, cultura negra e formação de professores.
Seria simplificar o problema dizer que
tudo o que produzimos sobre a questão racial
na educação e em outras áreas do conhecimento
pode ser aproveitado e aplicado na formação de
professores. Estamos diante do desafio de ana-
lisar a produção acadêmica existente sobre rela-
ções raciais no Brasil e discutir quais aspectos
dessa produção devem fazer parte dos proces-
sos de formação dos docentes. Resta ainda ou-
tro desafio, o de descobrir como a produção
sobre o negro e sua cultura, realizada por outras
áreas do conhecimento, poderá nos ajudar a
refletir sobre a temática negro e educação, en-
riquecendo e apontando novos caminhos para o
campo da formação de professores.
Será que conhecemos os estudos e as
pesquisas realizados pela antropologia, pela so-
ciologia, pela psicologia social, pela história, pela
comunicação social, entre outros, que têm as
relações raciais como objeto de investigação? Ao
conhecermos tais estudos, refletimos sobre as
possíveis relações entres estes e o campo da
educação, e vice-versa? A articulação entre a
produção teórica educacional sobre o negro e a
produção que tem sido realizada por diferentes
áreas do conhecimento sobre a mesma temática
poderá nos ajudar a descobrir novas dimensões
da realidade racial brasileira? O conhecimento
dessas dimensões não poderá ser incorporado
como mais uma competência dos educadores
nos seus processos de formação? Sem dúvida, os
questionamentos acima nos mostram que essa
não é uma tarefa fácil. Para realizá-la será pre-
ciso entender e considerar a importância da ar-
ticulação entre cultura, identidade negra e edu-
cação. Uma articulação que se dá nos processos
educativos escolares e não-escolares.
O olhar sobre a identidade
negra: uma forma de articular
cultura, educação e formação
de professores
Um dos primeiros caminhos a serem tri-
lhados nessa direção poderá ser o da inserção, nos
cursos de formação de professores e nos proces-
sos de formação em serviço, de disciplinas, deba-
tes e discussões que privilegiem a relação entre cul-
tura e educação, numa perspectiva antropológica.
A perspectiva antropológica nos ajuda a
compreender que a cultura, seja na educação ou
nas ciências sociais, é mais do que um conceito
acadêmico. De acordo com Denys Cuche (1999),
ela diz respeito às vivências concretas dos sujei-
tos, à variabilidade de formas de conceber o
mundo, e às particularidades e semelhanças
construídas pelos seres humanos ao longo do
processo histórico e social.
1. A partir deste momento, o texto abandona a fórmula “o(a)” ou o par
negros e negras, o docente e a docente, adotando o genérico masculino.
170 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de...
Os homens e as mulheres, por meio da
cultura, estipulam regras, convencionam valo-
res e significações que possibilitam a comuni-
cação dos indivíduos e dos grupos. Por meio da
cultura eles podem se adaptar ao meio, mas
também o adaptam a si mesmos e, mais do que
isso, podem transformá-lo.
Laraia (2001, p. 67) nos relata que Ruth
Benedict escreveu, em O crisântemo e a espa-
da, que a cultura é como uma lente através da
qual o homem vê o mundo. Sendo assim, ho-
mens e mulheres de diferentes culturas usam
lentes diversas e, portanto, não têm a mesma
visão das coisas. Ainda segundo esse autor:
o modo de ver o mundo, as apreciações de
ordem moral e valorativa, os diferentes
comportamentos sociais e mesmo as postu-
ras corporais são assim produtos de uma
herança cultural, ou seja, o resultado da
operação de uma determinada cultura.
(Laraia, 2001, p.68)
Entre os processos culturais construídos
pelos homens e pelas mulheres na sua relação
com o meio, com os semelhantes e com os di-
ferentes, estão as múltiplas formas por meio das
quais esses sujeitos se educam e transmitem essa
educação para as futuras gerações. É por meio
da educação que a cultura introjeta os sistemas
de representações e as lógicas construídas na
vida cotidiana, acumulados (e também transfor-
mados) por gerações e gerações.
Por isso, ao discutirmos a relação entre
cultura e educação, é sempre bom lembrar que
a educação não se reduz à escolarização. Ela é
um amplo processo, constituinte da nossa
humanização, que se realiza em diversos espa-
ços sociais: na família, na comunidade, no tra-
balho, nas ações coletivas, nos grupos culturais,
nos movimentos sociais, na escola, entre outros.
Como nos diz Carlos Rodrigues Brandão (1981):
A educação é, como outras, uma fração do
modo de vida dos grupos sociais que a criam
e recriam, entre tantas outras invenções de sua
cultura, em sua sociedade. Formas de educa-
ção que produzem e praticam, para que elas
reproduzam, entre todos os que ensinam-e-
aprendem, o saber que atravessa as palavras
da tribo, os códigos sociais de conduta, as re-
gras do trabalho, os segredos da arte ou da
religião, do artesanato ou da tecnologia que
qualquer povo precisa para reinventar, todos os
dias, a vida do grupo e a de cada um de seus
sujeitos, através de trocas sem fim com a na-
tureza e entre os homens, trocas que existem
dentro do mundo social onde a própria edu-
cação habita, e desde onde ajuda a explicar –
às vezes a ocultar, a necessidade da existência
de sua ordem. (p. 10-11)
Consideramos, assim, que existem dife-
rentes e diversas formas e modelos de educação,
e que a escola não é o lugar privilegiado onde
ela acontece e nem o professor é o único res-
ponsável pela sua prática. Essa reflexão é impor-
tante para se pensar os processos edu-cativos,
quer sejam escolares ou não-escolares. Muitas
vezes, as práticas educativas que acontecem
paralelamente à educação escolar, desenvolvidas
por grupos culturais, ONG’s, movimentos sociais
e grupos juvenis precisam ser considerados pe-
los educadores escolares como legítimas e for-
madoras. Elas também precisam ser estudadas
nos processos de
formação de professores.
Apesar de levar em conta essa dimen-
são mais ampla e mais geral do processo edu-
cativo, neste artigo pretendo privilegiar a edu-
cação que acontece no interior da instituição
escolar, tentando, porém, compreendê-la in-
serida no processo cultural e articulada com
outros espaços educativos não-escolares. A
escola é vista, aqui, como uma instituição em
que aprendemos e compartilhamos não só con-
teúdos e saberes escolares mas, também, valo-
res, crenças e hábitos, assim como preconcei-
tos raciais, de gênero, de classe e de idade. É
essa visão do processo educativo escolar e sua
relação com a cultura e a educação — vista de
uma maneira mais ampla — que nos permite
aproximar e tentar compreender melhor os
171Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003
caminhos complexos que envolvem a constru-
ção da identidade negra e sua articulação com
os processos formativos dos professores e das
professoras. É também essa visão que nos pos-
sibilita compreender a presença da dimensão
educativa em diferentes espaços sociais e não
somente no interior da escola.
Mas como a identidade negra se articu-
la com a cultura e com a educação? Um cami-
nho interessante para refletir sobre essa articu-
lação seria não pensar a identidade negra como
a única possível de ser construída pelos sujei-
tos que pertencem a esse grupo étnico/racial.
Entre as múltiplas identidades sociais que os
negros e as negras constroem, a identidade
negra é uma delas.
A reflexão sobre a construção da iden-
tidade negra não pode prescindir da discussão
sobre a identidade como processo mais amplo,
mais complexo. Esse processo possui dimensões
pessoais e sociais que não podem ser separa-
das, pois estão interligadas e se constroem na
vida social.
Como sujeitos sociais, é no âmbito da
cultura e da história que definimos as identida-
des sociais (todas elas, e não apenas a identi-
dade racial, mas também as identidades de
gênero, sexuais, de nacionalidade, de classe,
etc.). Essas múltiplas e distintas identidades
constituem os sujeitos, na medida em que es-
tes são interpelados a partir de diferentes situa-
ções, instituições ou agrupamentos sociais.
Reconhecer-se numa delas supõe, portanto,
responder afirmativamente a uma interpelação
e estabelecer um sentido de pertencimento a
um grupo social de referência. Nesse processo,
nada é simples ou estável, pois essas múltiplas
identidades podem cobrar, ao mesmo tempo,
lealdades distintas, divergentes, ou até contra-
ditórias. Somos, então, sujeitos de muitas iden-
tidades e essas múltiplas identidades sociais
podem ser, também, provisoriamente atraentes,
parecendo-nos, depois, descartáveis; elas po-
dem ser, então, rejeitadas e abandonadas. So-
mos, desse modo, sujeitos de identidades tran-
sitórias e contingentes. Por isso as identidades
sociais têm caráter fragmentado, instável, his-
tórico e plural (Louro, 1999).
Assim, como em outros processos iden-
titários, a identidade negra se constrói gra-
dativamente, num processo que envolve inúme-
ras variáveis, causas e efeitos, desde as primeiras
relações estabelecidas no grupo social mais ínti-
mo, em que os contatos pessoais se estabelecem
permeados de sanções e afetividade e no qual se
elaboram os primeiros ensaios de uma futura vi-
são de mundo. Geralmente tal processo se inicia
na família e vai criando ramificações e desdobra-
mentos a partir das outras relações que o sujeito
estabelece.
A identidade negra é entendida, aqui,
como uma construção social, histórica, cultu-
ral e plural. Implica a construção do olhar de
um grupo étnico/racial ou de sujeitos que per-
tencem a um mesmo grupo étnico/racial sobre
si mesmos, a partir da relação com o outro.
Construir uma identidade negra positi-
va em uma sociedade que, historicamente,
ensina ao negro, desde muito cedo, que para
ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um
desafio enfrentado pelos negros brasileiros. Será
que, na escola, estamos atentos a essa questão?
Será que incorporamos essa realidade de manei-
ra séria e responsável quando discutimos, nos
processos de formação de professores, sobre a
importância da diversidade cultural?
Nesse sentido, quando pensamos a arti-
culação entre educação, cultura e identidade
negra, falamos de processos densos, movediços
e plurais, construídos pelos sujeitos sociais no
decorrer da história, nas relações sociais e cul-
turais. Processos que estão imersos na articula-
ção entre o individual e o social, entre o passa-
do e o presente, entre a memória e a história.
Nessa perspectiva, quando pensamos a
escola como um espaço específico de forma-
ção, inserida num processo educativo bem mais
amplo, encontramos mais do que currículos,
disciplinas escolares, regimentos, normas, pro-
jetos, provas, testes e conteúdos. A escola pode
ser considerada, então, como um dos espaços
que interferem na construção da identidade
172 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de...
negra. O olhar lançado sobre o negro e sua
cultura, na escola, tanto pode valorizar identida-
des e diferenças quanto pode estigmatizá-las,
discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-las.
É importante lembrar que a identidade
construída pelo negro se dá não só por oposição ao
branco mas, também, pela negociação, pelo conflito
e pelo diálogo com este. As diferenças implicam pro-
cessos de aproximação e distanciamento. Nesse jogo
complexo, vamos aprendendo, aos poucos, que as
diferenças são imprescindíveis na construção da nos-
sa identidade.
Sendo entendida como um processo con-
tínuo, construído pelos negros nos vários espaços
— institucionais ou não — nos quais circulam, po-
demos concluir que a identidade negra também é
construída durante a trajetória escolar desses su-
jeitos. Nesse percurso, os negros deparam-se, na es-
cola, com diferentes olhares sobre o seu per-
tencimento racial, sobre a sua cultura, sua histó-
ria, seu corpo e sua estética. Muitas vezes esses
olhares chocam-se com a sua própria visão e ex-
periência da negritude. Estamos no complexo cam-
po das identidades e das alteridades, das semelhan-
ças e diferenças e, sobretudo, diante das diversas
maneiras como estas são tratadas pela sociedade.
Representações e impressões
sobre o corpo negro: uma
questão colocada para a
formação de professores
Ultimamente, alguns pesquisadores que
trabalham com formação de professores, currí-
culo e história da educação, (Veiga, 2000;
Canen; Moreira, 2001; Apple, 2001, entre ou-
tros) têm se aproximado mais dos estudos so-
bre negro e educação, desenvolvendo pesqui-
sas que articulam educação dos negros e me-
mória; currículo e multiculturalismo, formação
de professores e diversidade cultural. Tal apro-
ximação faz parte de um movimento interessan-
te que vem ocorrendo na produção teórica
educacional sobre relações raciais no Brasil.2
Aqueles que já estão realizando esse movimen-
to, aos poucos, vão descobrindo como esse
campo ainda é incipiente e que, apesar do
aumento da produção teórica sobre negro e
educação, nos últimos anos no Brasil, ainda há
muito trabalho a fazer. Um destes temas pou-
co explorados no âmbito da formação de pro-
fessores evidenciou-se durante a realização de
uma pesquisa etnográfica em salões étnicos de
Belo Horizonte, que desenvolvi para a conclu-
são do doutorado em Antropologia Social na
Universidade de São Paulo: a relação entre
negro, corpo e estética.
Essa pesquisa teve como enfoque prin-
cipal a relação entre negro, cultura e estética
corporal. Durante as entrevistas, vários depoen-
tes, homens e mulheres, jovens e adultos na
faixa de 21 a 60 anos, ao retomarem momen-
tos significativos da sua história de vida, rela-
cionados com a dimensão estética, destacaram
a sua passagem pela escola.
Assim, embora não tivesse como foco
principal a formação de professores, ao refletir-
mos sobre as experiências e os depoimentos
das cabeleireiras, dos cabeleireiros e clientes
dos salões étnicos sobre suas vivências escola-
res, no que se refere ao corpo negro e ao ca-
belo crespo, fatalmente somos
questionados
sobre a formação dos docentes. E ao conside-
rarmos a relação entre as representações sobre
o corpo negro e os processos de formação de
professores, alguns questionamentos vêm à
tona: como os educadores negros e brancos
pensam o próprio corpo? Como pensam e vêem
o corpo negro? Durante os processos de for-
mação docente, os educadores têm contato
com reflexões que discutem as representações
construídas em nossa sociedade sobre o negro,
sua estética, sua ascendência africana e as for-
mas como estas se misturam com situações de
racismo, discriminação e preconceito racial?
Como os professores lidam com as diferenças
2. É importante citar o Concurso Negro e Educação, iniciativa promovida
pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação-
ANPEd em parceria com a Ação Educativa, Assessoria, Pesquisa e Infor-
mação, com apoio da Fundação Ford. Além das pesquisas, o concurso tem
realizado seminários, debates e publicações sobre a temática. No ano de
2003 já foi lançado o III Concurso, que está em andamento.
173Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003
étnico-raciais inscritas no seu próprio corpo e
no corpo de suas alunas e de seus alunos?
Para as pessoas entrevistadas durante a
realização da pesquisa (Gomes, 2002), a expe-
riência com o corpo negro e o cabelo crespo
não se reduz ao espaço da família, das amiza-
des, da militância ou dos relacionamentos
amorosos. A escola aparece em vários depoi-
mentos como um importante espaço no qual
também se desenvolve o tenso processo de
construção da identidade negra. Lamentavel-
mente, na maioria das vezes, a instituição es-
colar aparece nas lembranças dos depoentes
reforçando estereótipos e representações nega-
tivas sobre o negro e o seu padrão estético.
A pesquisa revelou que, no processo de
construção da identidade, o corpo pode ser
considerado como um suporte da identidade
negra e o cabelo crespo como um forte ícone
identitário. Será que, ao pensarmos a relação
entre escola, cultura, relações raciais e de gênero
nos processos de formação de professores, leva-
mos em conta a radicalidade dessas questões?
O papel desempenhado pela dupla ca-
belo e cor da pele na construção da identida-
de negra foi o ponto de maior destaque duran-
te a realização da pesquisa. A importância des-
ses, sobretudo do cabelo, na maneira como o
negro se vê e é visto pelo outro, até mesmo
para aquele que consegue algum tipo de ascen-
são social, está presente nos diversos espaços
e relações nos quais os negros se socializam e
se educam: a família, as amizades, as relações
afetivo-sexuais, o trabalho e a escola. Para esse
sujeito, o cabelo carrega uma forte marca
identitária e, em algumas situações, é visto
como marca de inferioridade (Gomes, 2002).
Porém, existem outros espaços em que o
cabelo é visto numa perspectiva de revalorização.
São eles: os contextos familiares em que se pre-
serva a memória ancestral africana, alguns espa-
ços da militância política, os salões étnicos, en-
tre outros. Essa revalorização extrapola o indiví-
duo e atinge o grupo étnico/racial a que perten-
ce. Ao atingi-lo, acaba remetendo, às vezes de
forma consciente e outras não, a uma ancestra-
lidade africana recriada no Brasil. Lamentavelmen-
te, a escola não aparece entre esses espaços de
revalorização da estética, do corpo negro e do
cabelo crespo. Por que será?
Compreender a complexidade na qual a
construção da identidade negra está inserida,
sobretudo quando levamos em consideração a
corporeidade e a estética, é uma das tarefas e
desafios colocados para os educadores. Deveria,
também, ser uma das preocupações dos proces-
sos de formação de professores quando estes
discutem a diversidade étnico-cultural. Os pro-
fessores trabalham cotidianamente com o seu
próprio corpo. O ato de educar envolve uma
exposição física e mental diária. Porém, ao mes-
mo tempo em que se expõem, os educadores
também lidam com o corpo de seus alunos e de
seus colegas. Esses corpos são tocados, sentidos.
A relação pedagógica não se desenvolve só por
meio da lógica da razão científica mas, também,
pelo toque, pela visão, pelos odores, pelos sabo-
res, pela escuta. Estar dentro de uma sala de
aula significa colocar a postos, na interação com
o outro, todos os nossos sentidos.
Somos sujeitos corpóreos e usamos o
nosso corpo como linguagem, como forma de
comunicação. O que será que o aluno negro
nos comunica por meio de seu corpo? Com a
sua postura? Pela maneira como cuida do seu
corpo? Como ele se apresenta esteticamente?
Por outro lado, quais são as representações
que nós, docentes, construímos desde a infân-
cia sobre o negro, seu corpo e sua estética?
Será que essas representações, quando nega-
tivas, tornam-se mais fortes no exercício do
trabalho docente, a ponto de nos tornar cegos
e surdos para entender o que os nossos alu-
nos tentam nos comunicar? Quantas vezes não
ouvimos frases como “o negro fede”; “o cabe-
lo rastafari é sujo e não se pode lavá-lo”; “o
negro que alisa o cabelo tem desejo de em-
branquecer”; “aquele é um negro escova-
dinho”; “por que você não penteia esse cabelo
pixaim”; “esses meninos de hoje usam roupas
estranhas, parecem pivetes”? Quantas vezes
essas frases não são repetidas pelos próprios
174 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de...
docentes, dentro de sala de aula, nas conver-
sas informais e nos conselhos de classe? Quan-
tas vezes essas frases não são emitidas nos
corredores das faculdades de educação e nas
universidades?
Como a escola lida com o
corpo negro e o cabelo
crespo?
O corpo localiza-se em um terreno so-
cial conflitivo, uma vez que é tocado pela es-
fera da subjetividade. Ao longo da história, o
corpo se tornou um emblema étnico e sua ma-
nipulação tornou-se uma característica cultural
marcante para diferentes povos. Ele é um sím-
bolo explorado nas relações de poder e de do-
minação para classificar e hierarquizar grupos
diferentes. O corpo é uma linguagem e a cul-
tura escolheu algumas de suas partes como
principais veículos de comunicação. O cabelo é
uma delas.
O cabelo é um dos elementos mais visí-
veis e destacados do corpo. Em todo e qualquer
grupo étnico ele é tratado e manipulado, todavia
a sua simbologia difere de cultura para cultura.
Esse caráter universal e particular do cabelo atesta
a sua importância como símbolo identitário.
O entendimento da simbologia do cor-
po negro e dos sentidos da manipulação de suas
diferentes partes, entre elas, o cabelo, pode ser
um dos caminhos para a compreensão da iden-
tidade negra em nossa sociedade. Pode ser, tam-
bém, um importante aspecto do trabalho com a
questão racial na escola que passa despercebi-
do pelos educadores e educadoras. Em torno da
manipulação do corpo e do cabelo do negro
existe uma vasta história. Uma história ancestral
e uma memória. Há, também, significações e
tensões construídas no contexto das relações
raciais e do racismo brasileiro. A discussão sobre
a riqueza do trato do corpo negro e sobre os
processos de opressão que o mesmo tem rece-
bido ao longo da história pode vir a ser uma rica
atividade pedagógica a ser desenvolvida com os
alunos e as alunas em sala de aula, possibilitando
debates e atividades sobre a história e a cultura
afro-brasileira. Nesse processo, um estudo sobre
o negro, o cabelo crespo e as práticas corporais
pode ser um bom caminho.
Destacar a existência de uma positividade
nas práticas do negro diante do cabelo, hoje,
quer seja trançando, implantando ou alisando-
o, pode ser um interessante exercício intelec-
tual que nos afasta das análises que primam pelo
olhar da introjeção do branqueamento. Podere-
mos resgatar e encontrar muitas semelhanças
entre algumas técnicas de manipulação do cabe-
lo realizadas pelos negros contemporâneos e
aquelas que eram desenvolvidas pelos nossos
ancestrais africanos, a despeito do tempo e das
mudanças tecnológicas. Esse processo pode ser
visto como a presença de aspectos inconscien-
tes, como formas simbólicas de pensar o corpo
oriundas das diversas etnias africanas
das quais
somos herdeiros e que não se perderam total-
mente na experiência da diáspora. Em todos
esses momentos, a busca da beleza por meio da
manipulação do cabelo destaca-se como uma
virtualidade histórica e atuante. Esta é uma
questão que merece ser trabalhada nos proces-
sos de formação de professores quando se pre-
tende estudar a questão racial.
Mas como a escola lida com o corpo
negro, o cabelo crespo e a cultura negra? Como
as crianças, adolescentes, jovens e adultos ne-
gros são vistos e se vêem na escola? Para res-
pondermos a essas questões teremos que nos
aproximar dos homens e mulheres negras que já
passaram pela escola e também daqueles que
ainda estão realizando a sua trajetória escolar e
escutar, atentamente, o que eles têm a nos dizer,
como a dona de casa M., de 29 anos:
M.: Ah! Antigamente tinha muita gozação.
Às vezes chamavam de cabelo frito... ah...
muita gozação. Cabelinho ruim, muita coisa
assim, agora não.
N.: Você acha que isso mudou?
M.: Hum... um pouco. Mudou um pouco.
Hoje em dia, os negros não querem ficar
pra trás não.
175Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003
N.: E isso que você disse: cabelinho frito,
cabelinho ruim. Em que lugares lhe falavam
isso?
M.: Em escolas... escola, danceteria que a
gente ia...
N.: Isso era muito falado?
M.: Tinha, e como tinha! Até os próprios
negros falavam. Hoje em dia já é diferente.
(...) É que hoje tem muitas opções e anti-
gamente não tinha. Eu e a minha cabelei-
reira mesmo, nós falamos: “Nossa menina!
Na nossa época da escola! A gente ia com
o cabelinho horrível pra escola”. Agora não,
você pode escolher tudo para o cabelo. O
cabelo (...) você quer azul, do jeito que
você quer, você põe. Agora tem opção,
agora é diferente. Agora o negro fica do
jeito que ele quer. Você vê que tem até ne-
gro loiro aí, antigamente não tinha. Era só
aquilo e aquilo mesmo. Os negros que an-
davam com cabelo arrumado, eram os que
tinham dinheiro, porque antigamente era
caríssimo ir ao salão. Hoje em dia, não.
É interessante constatar que o depoi-
mento expressa uma mudança, nos dias de
hoje, em relação à representação construída
sobre o negro e seu cabelo, às possibilidades
econômicas e ao acesso aos espaços de bele-
za que cuidam do corpo do negro e do cabelo
crespo. Essa mudança também possibilita ao
negro apresentar-se esteticamente de uma
maneira considerada mais “aceitável” social-
mente, o que pode ter contribuído para a di-
minuição dos apelidos e tratamentos precon-
ceituosos nos espaços públicos, entre eles, a
escola. Será que essa mudança se deve so-
mente à invenção das novas técnicas de pen-
tear e alisar o cabelo apontadas pela depoen-
te? Ou seja, não mais o “cabelo frito” pelo
pente quente, mas o cabelo “relaxado” via
produtos químicos de maior qualidade ou
“alongado” via processos mais variados de im-
plantes, ou mesmo o “careca” cortado com
máquina um? Ou será que essa mudança im-
plica alguma alteração na forma como o pró-
prio negro contemporâneo lida com a diferen-
ça racial inscrita no seu corpo e no seu tipo
de cabelo? Ou ainda: será que as manifesta-
ções de preconceito estão diminuindo dentro
do atual espaço escolar?
Não podemos deixar de pontuar que a
sociedade e a escola brasileira da atualidade
têm construído representações sociais mais
positivas sobre o negro e sua estética. É o que
nos fala a depoente acima. Essa transformação,
sem dúvida, não se dá por honra e glória da
educação escolar. Se pesquisarmos mais a fun-
do, encontraremos a ação da comunidade ne-
gra organizada em movimentos sociais, dos
grupos culturais negros, das comunidades-ter-
reiro como partes importantes no processo de
denúncia contra o racismo e de afirmação da
identidade negra. Encontraremos também famí-
lias negras que, atentas aos dilemas de seus
filhos e filhas, enfatizam de forma positiva e de
diversas maneiras a herança cultural negra.
Esses grupos e essas famílias sempre pressiona-
ram a escola e sempre cobraram desta institui-
ção uma responsabilidade social e pedagógica
diante da questão racial. Porém, essa pressão
não se limita à escola. Ela atinge a sociedade
como um todo e, aos poucos, tem tornado
possível uma lenta inserção social do negro em
alguns setores do mercado de trabalho, a sua
presença (mesmo tímida) nos meios de comuni-
cação e nos veículos publicitários e a sua en-
trada em maior número na educação básica.
Somando-se aos outros grupos sociais que lu-
tam pela democratização da sociedade, a comu-
nidade negra tem conseguido mudar, aos pou-
cos, a situação do negro no Brasil. Mas ainda
há muito que avançar.
Nesse processo lento e tenso, alguns
negros, desde muito cedo, aprendem a posi-
cionar-se de maneira afirmativa e a reagir à dis-
criminação racial. Muitas crianças negras per-
cebem, desde muito cedo, que ser chamada de
“negrinha” nem sempre significa um tratamen-
to carinhoso, pelo contrário, é uma expressão do
racismo. Nesse contexto, cada um luta com as
armas que tem:
176 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de...
B.: Eu era muito bagunceira na escola,
nunca deixei que ninguém me chamasse
de negrinha na escola, porque eu batia ne-
les mesmo! Então quando eu chegava em
casa meu pai me batia e, no outro dia, eu
batia no menino de novo, e fui fazendo
aquela coisa... Na escola os meninos chega-
vam e me respeitavam... eu era a única
negrinha da sala, então eles diziam: “Ah, eu
não vou mexer com ela não, porque ela
bate na gente”. Eu pedia merenda, porque
eu não tinha condições de comprar meren-
da e os meninos me davam merenda. Quan-
do não me davam eu batia neles e eles me
davam a merenda. (B. 38 anos, cabeleireira
étnica)
Mas nem todos sabem se defender dos
xingamentos preconceituosos. As experiências
de preconceito racial vividas na escola, que
envolvem o corpo, o cabelo e a estética, ficam
guardadas na memória do sujeito. Mesmo de-
pois de adultos, quando adquirem maturidade
e consciência racial que lhes permitem superar
a introjeção do preconceito, as marcas do ra-
cismo continuam povoando a sua memória. A
ausência da discussão sobre essas questões,
tanto na formação dos professores quanto nas
práticas desenvolvidas pelos docentes na escola
básica, continua reforçando esses sentimentos
e as representações negativas sobre o negro.
Nem sempre os professores e as professoras
percebem que, por detrás da timidez e da re-
cusa de participação de trabalhos em grupos,
encontra-se um complexo de inferioridade
construído, também, na relação do negro com
a sua estética durante a sua trajetória social e
escolar.
N.: Teve uma época, isso foi na quarta série,
eu estudei... quando eu fiz 12 anos, eu es-
tudei no Bernardo Monteiro. Eu era a única
negra lá da sala. No Bernardo Monteiro, na
parte da manhã, na época, era classe média
alta. Mas, na realidade, eu não me lembro
se eu era a única negra da sala, eu sei que
meu cabelo era batidinho e os meninos me
chamavam de Paulo Isidoro. Ah! Eu odiava!
Ele era um jogador de futebol, nossa, era
tanta coisa! Tinha uma turminha de rapa-
zes, então, a gente estava começando a se
interessar por rapazes. Mas assim, eu ja-
mais ia me interessar por alguém, porque
eu jamais ia imaginar que alguém ia se in-
teressar por mim. E tinha as meninas da
sala que jogavam piadinhas, entendeu?
Tanto que eu tive que sair do colégio por-
que meu rendimento era péssimo. Eu não
conversava com ninguém... eu odiava res-
ponder presente durante a chamada, ir à
lousa... nem pensar! Me chamavam de Pau-
lo Isidoro, que eu era isso, era aquilo, en-
tendeu? As meninas tudo burguesinhas, de
cabelão, a maioria, loira e tal. Eu não tinha
amiga nenhuma, porque jamais elas chega-
vam perto de mim. Eu tinha uma só, que
era assim, bem negona, fortona. Ela era a
minha colega, eu tinha só ela, porque nós
duas ficávamos assim: as excluídas da sala.
(N. cabeleireira étnica, 26 anos)
Mas as experiências negativas vividas
na escola por causa do cabelo crespo, revela-
das pela depoente, não param por aí. Quando
experimentava diferentes maneiras e técnicas de
arrumar o
cabelo, mesmo que fossem aquelas
que se aproximavam do padrão de cabelo liso,
a então adolescente negra era vista com estra-
nhamento e com hostilidade pelos colegas. Até
mesmo hoje, depois de adultas, as mulheres
negras continuam enfrentando um verdadeiro
“patrulhamento ideológico” em relação à sua
estética. Alguns as desejam com o cabelo “cres-
po natural”, considerado por um grupo como
autêntica expressão da negritude; outros que-
rem-nas de tranças, por julgarem que esse pen-
teado aproxima a mulher (e o homem negro) de
suas raízes africanas; outros, com o cabelo ali-
sado, por considerarem que tal penteado apro-
xima as mulheres negras do padrão estético
branco, visto socialmente como o mais belo.
Enfim, esse tipo de cerceamento da liberdade
177Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003
da expressão estética e corporal do negro, so-
bretudo da mulher negra, demonstra que con-
tinuamos mergulhados nas malhas do racismo
e do preconceito racial. Na realidade, o que
pode parecer uma simples opinião ou um mero
julgamento estético, revela a existência de uma
tensão racial, fruto do racismo ambíguo e do
ideal do branqueamento desenvolvidos no Bra-
sil. Essas questões deveriam ser consideradas
com mais seriedade pelos educadores e pelas
educadoras. Vejamos o que N. nos diz, conti-
nuando seu depoimento:
N.: Quando eu era mais nova eu ia pra es-
cola e eu tinha o cabelo de trancinha. Eu
me lembro de uma vez, estava na quarta
série... Ai, meu Deus, eu não esqueço!....,
tem coisa que marca, a gente não esquece.
Eu estava na aula, então, eu usava tranci-
nha. Um dia minha mãe resolveu tirar mi-
nha trancinha e alisar meu cabelo. Eu ali-
sei meu cabelo, eu lembro como se fosse
hoje. Eu lembro, minha mãe alisou... foi
no salão, alisou, ficou assim, balançando
ao vento. Ficou lindo meu cabelo, maravi-
lhoso! Só que eu fiquei com vergonha de
sair do salão com o cabelo, porque estava
bonito, eu fiquei com vergonha, porque
estava bonito e ia chamar a atenção. En-
tão eu fui pra aula. Eu sempre sentei mais
perto da primeira carteira, só que eu sen-
tava perto da janela. Eu quase entrei den-
tro do armário pra ficar escondida, por
causa do cabelo. E tinha um menino bran-
quinho, o Leonardo, lindo, do olho azul,
branquinho, que sentava na primeira car-
teira. Eu parti o cabelo de lado, coloquei
um passadorzinho com umas pedrinhas de
strass. O pessoal olhou, lógico que iam re-
parar, eu tinha o cabelo de trancinha e
eles falaram assim: “Nossa, você está dife-
rente hoje, arrumou o cabelo!”. E um me-
nino falou: “Ficou mais feia ainda”. Aquilo
foi a morte, depois que ele falou aquilo,
nem pra aula eu queria ir mais. Não queria
ir pra aula.
É importante destacar no testemunho
acima não somente as relações de ciúmes e
disputas desenvolvidas dentro dos grupos de
adolescentes que competem entre si, no inte-
rior da escola, em termos de beleza, esperteza,
“inteligência”, paqueras, mas também uma
outra questão igualmente importante: os sen-
timentos que a depoente desenvolvia em rela-
ção à sua própria aparência, dando um desta-
que maior ao cabelo e à maneira como ele era
visto pelo outro, pelos colegas. Somente no dia
em que ela chegou à escola com o cabelo ali-
sado é que lhe disseram: “Nossa, você está
diferente hoje, arrumou o cabelo!”. É interes-
sante pensar que somente quando ela se apre-
sentou com um penteado próximo do padrão
“branco”, ou seja, do cabelo liso, é que ela
pôde receber o reconhecimento dos outros de
que arrumara e penteara o cabelo. Ora, se a pró-
pria depoente nos diz que quando ia à escola
“eu tinha o cabelo de trancinha (...) Eu estava
na aula, então, eu usava trancinha (...)”, pode-
mos concluir que usar o cabelo com trancinha
não era considerado pelos colegas como “arru-
mado”, ou seja, penteado. No entanto, o uso
das tranças pelos negros, além de carregar toda
uma simbologia originada de uma matriz afri-
cana ressignificada no Brasil, é, também, um
dos primeiros penteados usados pela criança
negra e privilegiados pela família. Fazer as tran-
ças, na infância, constitui um verdadeiro ritual
para essa família. Elaborar tranças variadas no
cabelo das filhas é uma tarefa aprendida e
desenvolvida pelas mulheres negras.
Embora, à primeira vista, os comentá-
rios dos colegas pudessem parecer ingênuos, N.
demonstra que entendeu a mensagem racial
contida no seu interior. Compreendeu também
o peso negativo que ela carregava e, pelo vis-
to, durante anos ficou marcada e presa a esse
lugar que lhe impuseram: o lugar da inferiori-
dade. Será que tal situação deixou de existir?
Será que comentários como esses não aconte-
cem mais em nossas salas de aula? E como eles
repercutem nos sujeitos que os enunciam e
naqueles que os recebem?
178 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de...
Ressignificação da identidade
negra por meio do corpo e do
cabelo
Mas, como já foi dito anteriormente, o
processo de construção da identidade negra é
muito mais complexo, instável e plural. Apesar
das marcas negativas deixadas pelas experiências
de discriminação, o negro se reconstrói positiva-
mente. É claro que esse processo não se dá no
isolamento e varia de pessoa para pessoa. Exis-
tem diferentes espaços e agentes que interferem
no processo de rejeição/aceitação/ressignificação
do ser negro. Pode ser a família, a participação
em espaços políticos, a atuação de um profes-
sor ou professora, a construção de uma amiza-
de ou de um relacionamento amoroso ou, no
caso da depoente anteriormente citada, o en-
volvimento com a questão racial via estética:
profissionalizando-se como cabeleireira étnica.
Esse lugar construído positivamente, a
partir da sua própria diferença, garantiu à cabe-
leireira étnica entrevistada legitimidade diante da
professora e dos colegas da escola. A constru-
ção desse lugar, sem o esquecimento das expe-
riências difíceis vividas na infância e narradas
anteriormente, possibilitou a sua formação como
mãe e mulher negra atenta e sensível para com
a construção da identidade racial de outros
negros e negras.
No depoimento abaixo, vemos como a
postura de uma professora mais atenta ao lugar
ocupado pela aluna negra no interior da sala,
somada a uma desenvoltura maior de N. em
relação à questão racial e sua identidade negra,
abriram caminho para que a aluna viesse a falar
sobre “cabelo” em um dos trabalhos solicitados.
A menina negra, que antes tinha medo de se
posicionar diante do outro e até mesmo de res-
ponder à chamada, torna-se, agora, o centro das
atenções ao falar sobre a questão racial de for-
ma positiva, a partir do próprio ofício:
N.: Foi a professora de inglês, sim. O traba-
lho era sobre... sobre o tema: poderíamos
falar sobre o clima dos Estados Unidos, so-
bre a população, etc. Ela falou que a gente
podia escolher a área, só que tinha que ser
sobre os norte-americanos (...) Eu falei:
“Então tá, eu vou fazer sobre o cabelo!”. E
ela: “Ah, só podia ser sobre o cabelo!”. Eu
fiz, ela adorou o trabalho, vou te mostrar,
eu acho que está aqui. Ela adorou o traba-
lho, queria ficar com o trabalho pra ela e
eu falei: “Não, vou tirar um xerox colorido
e vou te passar...”. Então fiz assim: sobre o
cabelo étnico, entendeu? Desde quando
começou até hoje, lá, nos Estados Unidos.
E ela achou superlegal! (...) Eu entrei esse
ano novamente no colégio (...). O pessoal
sabe que eu tenho salão e então me per-
guntam tudo sobre o cabelo... Às vezes
está passando uma matéria e eles falam:
“N. o meu cabelo...”; e a outra: “N., o meu
cabelo...”. Sabe? Tudo é sobre o cabelo! O
pessoal de outra sala, no recreio, me cha-
ma: “N., eu queria um banho de creme no
meu cabelo...”. Porque lá, nesse colégio,
são pessoas assim, a maioria é da área da
Ventosa, Morro das Pedras, então o pessoal
não tem condições, acha caríssimo! O pes-
soal ganha de um salário mínimo pra baixo!
Teve uma menina da minha sala que falou:
“Eu queria tanto ir no seu salão mas pelas
suas fotos eu acho que eu não vou ter con-
dições de pagar...”. Olha só! Só pelas fotos
do salão que eu mostrei na
sala. E eu falei
para ela: “Não, não tem nada disso, engano
seu. Quanto você paga para fazer escova?”.
“Doze reais”, ela disse. Eu falei: “Pois é, no
meu salão você só pagaria oito”. “Ah, é mes-
mo?” Eu falei: “É!”. Ela ficou toda satisfeita,
foi ao salão e fez a escova. (N. 26 anos, ca-
beleireira étnica)
Certamente, se essa professora fosse
adepta de uma prática pedagógica conserva-
dora ou “neutra” diante da questão racial,
esse espaço não teria sido criado e o grupo
de alunos negros e brancos daquela sala de
aula não teria vivido uma experiência escolar
tão interessante.
179Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003
Atentos à importância do trabalho com
a questão racial e com a responsabilidade so-
cial da escola na desconstrução de estereótipos
raciais, alguns estabelecimentos de ensino,
sobretudo do setor público, já desenvolvem
trabalhos e projetos voltados para a valorização
da cultura negra. As escolas que percebem a
importância de um trabalho coordenado com a
comunidade, os movimentos sociais e profis-
sionais negros que lidam no seu cotidiano com
a questão racial, abrem as suas portas para um
trabalho conjunto. É nesse momento que a
articulação entre os espaços escolares e não-
escolares pode acontecer. No caso da pesqui-
sa em questão, é também nesse momento que
os salões de beleza étnicos e a escola desen-
volveram, juntos, um trabalho positivo em re-
lação à identidade negra. Certamente, esses
projetos e iniciativas influenciam positivamen-
te a construção da auto-estima e da identida-
de negra de crianças, adolescentes, jovens e
também dos professores. É o que nos conta
outra entrevistada:
D.: Então eu vou nas escolas, em várias es-
colas, fazendo trabalhos, penteando o cabe-
lo dos garotos e faço desfiles. Às vezes, na
escola, essas meninas que participam, que a
gente produz dentro da escola, nós traze-
mos algumas para participar com a gente,
em alguns desfiles que promovemos como,
por exemplo, a Feira Mineira da Beleza. Teve
a Primeira Feira Étnica de Belo Horizonte e
eu trouxe meninas que participaram com a
gente nesses desfiles nas escolas. Também
teve aqui a Feira da Lagoinha e a gente
trouxe as garotas e os garotos para partici-
parem também. E as meninas ficam muito
contentes, muito felizes. Porque são meni-
nas, assim, às vezes meninas carentes que
nunca participaram de um desfile e a gente
faz um trabalho com elas, aqui, no salão. A
gente passa pra elas o que a gente pode
passar... dentro do que a gente pode passar
pra elas e elas vão pra passarela. (D. 46 anos,
cabeleireira étnica)
Por isso, engana-se quem pensar que
os jovens e adolescentes negros encontram-se
sozinhos nesse denso e tenso processo de
ressignificação da identidade negra, por meio
do corpo e do cabelo, quando a escola não se
abre para esse trabalho. Os espaços educativos
não-escolares desempenham um papel impor-
tante nesse processo. Muitas vezes, esses locais
não são percebidos como afirmativos e signifi-
cativos por aqueles que a eles não têm acesso.
No caso da pesquisa aqui relatada, os salões de
beleza étnicos apresentam-se como alguns
desses espaços educativos não-escolares.
Os salões étnicos apresentam, no seu
interior e na sua constituição, todas as tensões
e ambigüidades que envolvem a construção da
identidade negra no Brasil. Porém, não é só
isso. Eles se destacam como espaços de resis-
tência. Revelam-se como algo muito além de
microempresas ou lugares de “embranquecimento”,
como julgam algumas pessoas. Eles são espa-
ços da comunidade negra. As pessoas que por
ali circulam e as que ali trabalham enfrentam,
cotidianamente, o desafio de “lidar” com as
questões concernentes à construção da identi-
dade negra. Nesses espaços, a identidade negra,
enquanto processo, é problematizada, discuti-
da, afirmada, negada, encoberta, rejeitada, acei-
ta, ressignificada e recriada. Tudo isso aconte-
ce ao mesmo tempo e, nesse sentido, os salões
étnicos nos colocam no cerne das tensões e
também das possibilidades de recriação vividas
por homens, mulheres, crianças, adolescentes,
jovens e adultos negros.
E.: E isso foi passado, assim, não só na fa-
mília mas também na escola, com os ami-
gos. Às vezes eu pensava: “Aquela ali tem o
cabelo assim e tal! Então eu não vou ficar
com ela porque o meu filho vai sair de ca-
belo duro...”. E às vezes casais negros di-
zem: “Vou optar por não ter filho, porque
eu não quero que os meus filhos sofram o
mesmo preconceito que eu já senti”. Então
essa maturidade de que eu falo, eu venho
adquirindo com o passar do tempo. Vendo,
180 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de...
estudando, vendo que não é por aí, que eu
tenho a minha identidade e eu, sabendo
trabalhar, ela é uma coisa muito forte e
marcante! Por isso que eu disse: hoje eu
sei o meu espaço dentro da sociedade. E
aprendi isso dentro do salão D. Cabeleirei-
ros, isso me ajudou muito também, porque
eu vou lá não é só para cortar o cabelo. Não
é só pra mudar o estilo! Mas para gente ter
um bate-papo também falando a esse res-
peito, falando a respeito do negro, porque
sempre que a gente chega lá ela tem um
assunto diferente pra tratar, uma curiosida-
de... E dentro disso tudo eu passei a pes-
quisar a cultura africana, também, porque eu
faço um trabalho de contador de histórias...
(E. 30 anos, relações-públicas)
Como já foi salientado anteriormente,
esse papel de problematização, reconstrução e
discussão sobre a identidade negra também
deveria ser feito pela escola. Porém, muitas
vezes, enquanto uma instituição formadora,
contraditoriamente, a escola apresenta-se me-
nos eficaz e menos sensível diante desse pro-
cesso.
Conclusão
O estudo sobre as representações do
corpo negro no cotidiano escolar poderá ser
uma contribuição não só para o desvelamento
do preconceito e da discriminação racial na
escola como, também, poderá nos ajudar a
construir estratégias pedagógicas alternativas
que nos possibilitem compreender a importân-
cia do corpo na construção da identidade ét-
nico-racial de alunos, professores negros, mes-
tiços e brancos e como esses fatores interferem
nas relações estabelecidas entre esses diferen-
tes sujeitos no ambiente escolar. Na escola, não
só aprendemos, mas também reproduzimos
representações sobre o cabelo crespo e o cor-
po negro. Quais serão essas representações?
Em que momentos aparecem e como elas apa-
recem? Como os sujeitos negros e brancos vi-
vem esses processos dentro e fora da escola?
Como tais representações se manifestam no
currículo? Muitas vezes, esses processos delica-
dos e tensos passam despercebidos pela esco-
la, pelos profissionais da educação, e não cons-
tituem motivo de debates e estudos nos nossos
cursos de formação de professores.
O estudo sobre o corpo e o cabelo
como ícones da identidade negra presentes nos
processos educativos escolares e não-escolares
poderá nos apontar outros caminhos além da
denúncia da reprodução de preconceitos e
estereótipos. Ver a manipulação do cabelo do
negro e da negra como continuidade de ele-
mentos culturais africanos ressignificados no
Brasil poderá nos pôr em contato com a histó-
ria, memória e herança cultural africana presen-
te na formação cultural afro-brasileira.
Penso que tais estudos poderão e de-
verão fazer parte dos processos de formação de
professores. A sua incorporação nos currículos
e nos processos pedagógicos de formação
docente faz parte de lutas e reivindicações
históricas do movimento negro brasileiro que há
anos tem demandado o ensino da história da
África e da cultura afro-brasileira nos currícu-
los escolares.
Atualmente, essa demanda já foi trans-
formada em lei, a Lei 10.639, de 09 de janeiro
de 2003, que altera a Lei 9394/96 (Lei de Di-
retrizes e Bases da Educação Nacional). Essa
nova lei inclui no currículo oficial dos estabe-
lecimentos de ensino fundamental e médio,
públicos e particulares, a obrigatoriedade do
ensino da “história e cultura afro-brasileira”.
O primeiro parágrafo do artigo 26 da
nova lei explicita que o conteúdo programático
a ser desenvolvido
pelas escolas no cumpri-
mento da mesma deverá incluir o estudo da
história da África e dos africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o
negro na formação nacional, resgatando sua
contribuição nas áreas social, econômica e
política pertinentes à história do Brasil.
Esse é mais um desafio proposto não só
para os professores, mas também para os centros
181Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003
de formação de professores. O que sabemos so-
bre história e cultura afro-brasileira? O que sabe-
mos sobre história da África? Como não reproduzir
leituras e discussões estereotipadas sobre o negro
e sua cultura? Que temas deveremos privilegiar
dentro do vasto campo de estudo sobre a cultu-
ra afro-brasileira? São questionamentos novos que
os docentes e os cursos de formação de profes-
sores começarão a fazer.
Entender a importância da simbologia
do corpo negro, a manipulação do cabelo e
dos penteados usados pelos negros de hoje
como formas de recriação e ressignificação
cultural daquelas construídas pelos negros da
diáspora poderá ser um bom tema de estudo
e debate dentro da discussão sobre história e
cultura afro-brasileira. Mas, para isso, será pre-
ciso que os educadores alterem suas lógicas
escolares e conteudistas, dialoguem com ou-
tras áreas, valorizem a produção cultural ne-
gra constituída em outros espaços sociais e
políticos. Será preciso também ouvir e aprender
as estratégias, práticas e acúmulos construídos
pelo movimento negro e pelos movimentos
culturais negros. O campo da formação de pro-
fessores deverá se abrir para dialogar com ou-
tros espaços em que negros constroem suas
identidades. Muitas vezes, serão espaços con-
siderados pouco convencionais pelo campo da
educação, como por exemplo, os salões étnicos.
O atual contexto de implementação da
Lei 10.639 é um momento propício para a in-
trodução no campo da formação de professo-
res, quer seja inicial ou em serviço, de estudos
e leituras sobre a relação corpo, cultura e iden-
tidade negra. O desafio está colocado. Resta
agora entendermos que mais do que um de-
safio, a discussão sobre raça negra e educação,
nos seus múltiplos desdobramentos, é um de-
ver dos educadores e educadoras e também
daqueles responsáveis pela condução dos pro-
cessos de formação docente.
Referências bibliográficas
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Horizonte, set., p.123-150, 2000. Edição especial.
Recebido em 14.03.03
Aprovado em 13.05.03
Nilma Lino Gomes é doutora em Antropologia Social pela USP e professora-adjunta do Departamento de Administração
Escolar da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.
 
 
O mito da democracia racial e as políticas públicas 1 
 
5 
 
2 
O mito da democracia 
racial e as políticas 
públicas 
 Texto de Laura R. P. Pamplona e Keila Deslandes 
Licenciatura em Pedagogia 
1 Considerações sobre a história da Alfabetização 
 
 
 
 
PAMPLONA, Laura R. P; DESLANDES, Keila. Universidade Federal de Ouro Preto. 
In: DESLANDES, Keila (org.) Atos, Pactos e Impactos: Direitos Humanos e Gestão 
de Políticas Públicas. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
2 O mito da democracia racial e as políticas públicas 
 
Políticas afirmativas e a UFOP: Reflexões sobre o desafio das políticas de cotas 
na Universidade Federal de Ouro Preto. 
 
Laura Rodrigues Paim Pamplona1 
Keila Deslandes2 
 
 
Em uma sociedade onde as combinações relativas à propriedade privada, 
à organização familiar e à herança patrimonial e cultural se perpetuam, não é de se 
surpreender com a reprodução da desigualdade. Nesta perspectiva, ainda que a 
igualdade de direitos e de condições seja um importante combustível de ideologias e 
políticas, infelizmente, na realidade, é a desigualdade que se impõe. 
Para compreender esta reprodução é importante considerarmos as 
conjunturas das desigualdades de oportunidades e de resultados. Compreendendo as 
principais variáveis que, insistem em distribuir de forma desigual os recursos e as 
oportunidades, e identificando também como esta desigualdade afetas as pessoas 
socialmente diferentes. Tendo em vista isso, devemos lembrar que nossa sociedade 
brasileira foi constituída com fortes características políticas portuguesas tendo seu 
poder centralizado, patrimonial e com uma estrutura rigidamente estratificada. 
Portanto, não é de se espantar quando confirmamos que as políticas públicas 
promovidas pelo Estado e seus governantes, ao longo da nossa história, tenham sido 
políticas de privilegiamento de uma pequena elite e desconsiderando os demais 
setores da sociedade. 
Entretanto, muitos avanços, embora em passos lentos, vêm se tornando 
realidade. Uma importante mudança é a que trouxe a nossa Constituição 
 
1 Técnica Administrativo Educacional do Instituto Federal do Sul de Minas Gerais (IFSULDEMINAS). Mestranda em 
Educação na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É formada em Licenciatura em História, possuindo pós 
graduação em Teorias e Métodos de Pesquisa em Educação e Gestão de Políticas Públicas em Relações Étnico 
Raciais e Gênero, todas pela UFOP. Vice-coordenadora do Núcleo de Atenção às Pessoas com Necessidades 
Especiais (NAPNE) do câmpus Passos do IFSULDEMINAS. 
2 Professora Associada 3, no Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto. Mestre em 
Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerias (UFMG), Doutora em Psicologia Clínica pela 
Universidade de Paris - 7, com Pós-Doutorado em Psicologia Política pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 
(UFRJ). Coordenadora do Programa de Educação para Diversidade, da UFOP. 
 
 
O mito da democracia racial e as políticas públicas 3 
 
contemporânea. Considerada a constituição cidadã, uma vez que a mesma 
representa os interesses da sociedade civil e dos movimentos populares, como: 
sindicais, das mulheres, negros, pessoas com necessidades específicas, etc., nossa 
atual Carta Magna vem refletindo nossos anseios e momentos culturais. Modelando, 
portanto, um Estado mais democrático, e buscando garantir a igualdade e as 
liberdades
formais. 
Além de uma Constituição que defende um Estado Democrático de Direito, 
nosso país vive a era das políticas públicas. Esta era é o reflexo das lutas e das 
demandas das minorias sociais, subordinadas por aqueles que sempre se 
posicionaram como dominantes da sociedade. É sob tal ótica que, a psicossociologia 
vem defendendo que estes grupos são considerados “minorias” por terem sido 
silenciados durante décadas, e não por serem quantitativamente um grupo menor. Ou 
seja, são chamadas de minorias não por serem um grupo numérico minoritário, mas 
por não participarem ou por terem sido subjugados dentro das discussões dos direitos. 
Nesta lógica que Shirley Miranda (2010, p. 8) argumenta ainda que foi com 
a luta dos movimentos sociais que a visibilidade foi conferida aos processos de 
preconceitos e discriminações, abalando a estabilidade da diferença, apresentando 
uma nova chave de análise: a diversidade. Esta luta por visibilidade e pela busca de 
acesso aos direitos de forma equitativa que expuseram a falsa ideia de democracia 
racial. Apontando que nosso país não proporcionava condições de igualdade aos seus 
cidadãos. Pelo contrário, que, na prática, sua população poderia ser considerada ou 
não cidadã conforme seu fenótipo e seu patrimônio, sendo ele cultural ou financeiro. 
É neste contexto de diversidade e de ausência de garantia de direitos que 
políticas públicas vêm sendo propostas. Trata-se de ações que buscam reparar, 
transformar, proteger e garantir meios de igualdade de condições de acesso aos seus 
interesses. Desta forma, podemos compreender por políticas públicas as ações do 
Estado que visam o bem coletivo. Tais políticas são desenvolvidas através da tradução 
de suas propostas em programas e ações que produzirão mudanças reais, e que 
embora também possuam efeitos imediatos, são políticas de longo prazo. 
Algumas políticas estão sendo implementadas de forma simples, outras, no 
entanto tem encontrado obstáculos. São transtornos como a discussão, acalorada em 
 
 
 
 
4 O mito da democracia racial e as políticas públicas 
 
alguns momentos, sobre a efetividade e a “justiça” das políticas afirmativas. O debate 
tem movimentado e caracterizado os movimentos sociais e ideólogos, em uma 
constante luta entre defensores e opositores de tais políticas. Apesar destas 
discussões já ocorrerem há tempos, foi a partir de 2007 que o debate sobre as cotas 
dentro da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP se fortaleceu. Iniciando-se com 
isso, uma forte discussão e estudo sobre a viabilidade ou não da UFOP fazer uso do 
sistema de cotas, já utilizado em outras Instituições de Ensino Federal – IEF. 
Tal debate foi necessário já que com a expansão das vagas e formas de 
acesso às universidades federais, promovidas pelo Programa de Apoio a Planos de 
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI, questões como 
políticas de cotas raciais e sociais estavam pipocando em todo o território nacional. 
Mesmo após as discussões e debates estabelecidos, a Universidade Federal de Ouro 
Preto manteve-se fora do debate e do programa de cotas para negros/pardos, 
colocando em sua política de ingresso apenas o acesso por cotas sociais, 
comprovadas pelo diploma escolar. 
 Quando se posicionou favorável apenas às políticas afirmativas sociais tal 
universidade negou ou ignorou que cotas sociais são distintas de cotas raciais, 
atendendo públicos que, talvez tenham condições de minorias acumuladas, mas que 
não devemos hierarquizar ou sobrepor necessidades. Ao escolher esta alternativa, a 
UFOP se manteve na linha defensiva de uma discussão calorosa entre a sociedade, 
o governo e organizações que lutam pelos direitos dos(as) negros(as)3. Para melhor 
entender o que e a quem a Universidade Federal de Ouro Preto negou é válido 
refletirmos sobre questões mais profundas que atingem nossa sociedade, como a 
construção e manutenção do mito da democracia racial e a história das políticas de 
privilegiamento. 
 
 
 
 
 
3 Para uma leitura mais dinâmica, utilizaremos, a partir deste momento as regras linguísticas 
convencionais, utilizando-se do gênero masculino como gênero neutro. 
 
 
O mito da democracia racial e as políticas públicas 5 
 
2.1 – A CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DO MITO DA DEMOCRACIA RACIAL 
 
Podemos pensar em diversas teorias sobre o racismo. Uma que pensa nele 
como um produto do cientificismo classificatório do século XIX e da hierarquização 
biológica, e outra que defende o racismo como variação de uma disposição inerente 
aos humanos. Há ainda uma terceira posição que argumenta ser o racismo um 
fenômeno da modernidade, construído a partir da laicização, classificando o outro 
através da aparência e hierarquização dos grupos, como sendo algo natural. 
Foi buscando justificativa para o tráfico de escravos e da escravização nas 
Américas, que o conceito de raça começou a ser associada ao negro, e a inferioridade 
da condição escrava passa a ser construída como uma condição essencial dos negros. 
A escravidão, neste momento, passou a encontrar justificativa na inferioridade da raça, 
dada pela cor, associação moral e capacidade intelectual dos negros. É importante 
destacar que até a colonização das Américas, a escravidão não estava associada a 
um grupo específico, mas ao direito da guerra. 
Com o fim da escravidão no Brasil, pela Lei Imperial n.º 3.353, de 13 de 
maio de 1888, milhares de negros e negras passaram a ocupar cenários em que antes 
eram apenas transeuntes. Entretanto, nenhum projeto político e social foi apresentado, 
sendo ofertado a estes apenas o direito de serem livres, mas nenhuma condição digna. 
Aos escravos, portanto, não foi dada oportunidade, reparação ou incentivos de 
inserção, sendo preteridos em relação aos europeus, tendo como único projeto, em 
relação aos mesmos, a busca do embranquecimento populacional. 
Por meio da miscigenação, entre brancos, negros e índios, ganham força 
teorias como a de degeneração das raças, hierarquizando as diversidades fenotípicas 
também. Nas teorias raciais da época, a hierarquização da humanidade foi explicada 
pela degradação ou degeneração da raça negra, sendo fruto do cruzamento entre 
brancos com macacos. Assim, as teorias de construção de raça pensavam na 
combinação de elementos trazidos de cada raça, ou na predominância de uma sobre 
as outras. Com a política de embranquecimento surge a figura do mestiço, e 
posteriormente a ideia da democracia racial, já que o país não viveu períodos de 
preconceitos exacerbados como os Estados Unidos e África do Sul. 
 
 
 
 
6 O mito da democracia racial e as políticas públicas 
 
Não obstante, pensarmos em igualdade tem que citar a democracia racial. 
No Brasil temos a explicação de sua formação com base nas três raças: negra, branca 
e indígena. Um dos pioneiros a defender a compreensão da nossa sociedade com 
base nestas três raças foi o viajante Carl Friedrich Philipp von Martius (1845), no seu 
artigo Como se deve escrever a história do Brasil. 
Em Casa-Grande & Senzala, publicado originalmente em 1934, Gilberto 
Freyre defendia uma perspectiva positiva da relação entre negros, brancos e 
indígenas, apresentando o país como um exemplo de tolerância e convivência pacífica. 
O autor David Lehmann argumenta que 
 
A oposição de Freyre a ideias de superioridade racial ou a conceitos 
relativos aos efeitos degenerativos da mistura racial coexistia com seu 
apego á continuidade cultural e as condições desejáveis de que uma 
sociedade permanecesse em sintonia com a herança do passado. 
(2008, p. 378) 
 
Muitos críticos, no entanto, o definiram, mais tarde, possuidor de um olhar 
como sendo o de um senhor de escravos vendo sua fazenda da varanda. 
Já no pós 2ª Guerra Mundial, com os traumas gerados pela segregação, o 
Brasil se torna alvo de estudos, buscando a compreensão de sua democracia
racial. 
Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, de Florestan Fernandes 
(1955), denuncia que o preconceito é algo deliberado pelas classes dominantes, 
almejando uma continuidade à ordem racial, já proibida juridicamente. Este sociólogo 
chama a atenção para a característica brasileira de ter preconceito em ter preconceito, 
sendo a ideologia da democracia racial um forte instrumento de mascarar a realidade. 
Neste contexto, estávamos em meio a um paradoxo: de um lado, 
representações e pesquisas que confirmavam o imaginário de democracia racial, 
reconhecendo as desigualdades de classe, porém negando a existência de 
preconceitos raciais. De outro, a relutância em aceitar a representação do Brasil como 
um país não branco e o desconforto com a presença de negros e mestiços, dando 
margem à proposição de medidas segregacionistas como solução para aqueles (as) 
que viam nessa diversidade um problema. 
Atualmente, o termo raça não é mais defendido pela biologia, mas continua 
carregado de construção ideológica, fazendo desta concepção sombra sobre a 
 
 
O mito da democracia racial e as políticas públicas 7 
 
relação de poder e de dominação. Nesta lógica, a melhor definição é a que o autor 
Munanga defende que em relação ao conceito de raça, segundo o autor “o conceito 
de raça, tal como o empregamos hoje, nada tem de biológico. É um conceito 
carregado de ideologia, pois como todas as ideologias, ele esconde uma coisa não 
proclamada: a relação de poder e de dominação. ” (2003, p. 27). É nesta perspectiva 
que consideraremos o termo raça, pois este está indissociável da lógica do racismo. 
Percebemos que ainda que o mito da democracia racial tenha sido 
derrubado, este ainda vigora como discurso político, sobrevivendo com relativa 
eficiência. Nesta perspectiva, percebemos que o Brasil ainda está imerso em um 
racismo específico, o “racismo cordial”, manifestado em espaços privados, mas com 
consequências no público e com reproduções das desigualdades entre negros e 
brancos. Percebemos por fim que, como argumenta Antônio Guimarães . 
 
Morta a democracia racial, ela continua viva enquanto mito, seja no 
sentido de falsa ideologia, seja no sentido ideal que orienta a ação 
concreta dos atores sociais, seja como chave interpretativa da cultura, 
seja como fato histórico. Enquanto mito continuará viva ainda por 
muito tempo como representação do que, no Brasil, são as relações 
entre negros e brancos, ou melhor, entre as raças sociais – as cores 
– que compõem a nação. (2002, p. 168) 
 
Atualmente, outras formas de discriminação e exclusão estão sendo 
acrescentadas. Sistemas como hierarquização social, sexismo, gênero e raça 
apresentam elementos de desigualdade e exclusão, sendo que a única política aceita 
é a definidora de meios que busquem a minimização destas práticas. É importante, 
portanto, sermos um país com crescimento equitativo e sustentável, buscando o 
desenvolvimento das pessoas, para as pessoas e pelas pessoas, aumentando as 
oportunidades, proporcionando crescimentos econômicos, e alargando a parcela de 
atuação, findando-se, ou minimizando, as máscaras das diferenças sociais. Nesta 
conjuntura, devemos compreender como e para quais parcelas populacionais foram 
dirigidas as políticas públicas ao longo da história nacional. 
 
 
 
 
 
 
 
 
8 O mito da democracia racial e as políticas públicas 
 
2.2 – DAS POLÍTICAS DE PRIVILÉGIO ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS 
 
Sérgio Buarque de Holanda (1995), em Raízes do Brasil, argumenta que 
durante nosso período colonial fomos marcados por uma presença forte do Estado na 
produção e no controle da sociedade. Somos, portanto, herdeiros de uma colônia de 
exploração, sujeita a um Pacto Colonial, com uma estruturação patrimonial, orbitando 
em torno da figura do senhor e com um modo de produção escravocrata. Sendo que 
nossos pobres eram definidos conforme raça, etnia, gênero e localização. 
Tal formação refletiu em nossas políticas futuras, desenvolvendo 
planejamentos que centrassem em torno de políticas econômicas neoliberais, 
acreditando que por meio destas as demais necessidades do país seriam sanadas. 
Não obstante, o que se percebeu ao longo das políticas dos presidenciáveis foram 
políticas relegadas a poucos e a exclusão de muitos. Desta forma, as minorias 
oprimidas foram se unificando e fortalecendo-se, conforme a batuta do Estado. 
Shirley Miranda aponta que 
 
No Brasil, no contexto da década de 1980, a luta pela ampliação da 
participação política abriu espaço para a demanda por relações 
igualitárias e pelo direito à diferença. Através de uma nova prática 
coletiva, os movimentos sociais demonstraram que é no interior da 
sociedade que a política se faz, e quebraram a representação que via 
no Estado o início, o meio e o fim da política. (2010, p. 9) 
 
Com a eleição de Fernando Collor em 1990, o país adotou uma postura 
neoliberal, compreendendo que o país necessitava abrir seus mercados de capitais e 
produtos, reduzindo o tamanho do Estado. Com desmandos autoritários e corrupções 
excessivas, e após uma forte mobilização popular, Collor renunciou o poder, na busca 
de não ter seus direitos políticos cassados. O mineiro Itamar Franco assumiu o poder 
diminuindo o ímpeto neoliberal, mas mantendo a agenda de privatizações. Esta foi 
acentuada nos governos de Fernando Henrique Cardoso, quando o Estado priorizou 
o mercado, reduzindo o tamanho e o papel do Estado, relegando ao terceiro setor a 
incumbência de desenvolver políticas sociais. O movimento popular respondeu a 
estas falhas elegendo, em 2002, Luís Inácio Lula da Silva, que visou uma política 
externa, e pautando sua agenda no desenvolvimento econômico, as dimensões 
sociais e políticas públicas. 
 
 
O mito da democracia racial e as políticas públicas 9 
 
 O que comprovamos é que Luiz Antônio Cunha foi feliz quando 
argumentou que “a educação escolar brasileira é herdeira direta do sistema 
discriminatório da sociedade escravagista sob dominação imperial” (2009, p. 31) Isso 
porque, segundo ele, a educação brasileira foi cunhada para ter um ensino superior 
voltado para a formação das elites, permanecendo o restante da população sem 
acesso. Nesta perspectiva, é importante pensarmos nas políticas que o Estado deve 
desenvolver, buscando findar com o ciclo da exclusividade das universidades federais 
para uma quantitativa minoria dominante. 
Foi seguindo tais objetivos que os pressionamentos dos movimentos 
sociais, apontando as desigualdades e as exclusões, chocaram-se diretamente com 
a política liberal, que colocou o Governo em uma posição de neutralidade nos debates. 
Segundo Miranda “Nessa conjugação estabelecida pelos movimentos sociais, a 
passagem do reconhecimento da carência para a formulação da reivindicação é 
mediada pela afirmação de um direito, traduzindo a agenda de debates e políticas 
públicas. ” (2010, p. 11). Assim, o governo passa a ter sob seu controle as políticas 
afirmativas enquanto políticas públicas. 
É importante destacar que as demandas da sociedade civil foram 
estabelecidas e lutadas pelas próprias, ao longo da formação de nossa sociedade 
brasileira, organizando-se em torno de questões urgentes e fundamentalmente 
urbanas, como moradia, educação, saúde, saneamento, transporte etc., sendo 
atravessadas por novos paradigmas como gênero, raça, etnia e outras pautas. 
Buscavam um projeto de transformação da sociedade de forma democrática. Estes 
movimentos configuram uma esfera distinta dos partidos e do Estado, propondo a 
dinamização dos valores positivos e da solidariedade. Tais organizações se 
transformaram em parceiras confiáveis, mas ainda representando interesses próprios 
e específicos. 
 Com um governo populista de Luiz Inácio Lula da Silva algumas 
modificações passaram a ser empreendidas, como a criação do Programa 
Universidade para Todos (PROUNI) de 2004, quando o governo federal passou a 
oferecer

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