Baixe o app para aproveitar ainda mais
Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original
Seleção de textos Diversidade e Educação Ministério da Educação Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica Secretaria de Educação a Distância Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais - Campus Muzambinho. Centro de Educação a Distância – CEAD Curso Licenciatura em Pedagogia EaD Coordenadora do Curso Maria Aparecida Lúcio Mendes Coordenadora de Plataforma e Tutoria Professora Assistente Cristiane Fortes Gris Baldan Disciplina Diversidade e Educação Professor Antônio Gilberto Balbino Diagramação da Capa Igor Xavier de Magalhães Silva Brasil Diagramação do Texto Adélia Ribeiro Paulino Muzambinho 2022 APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA Bem-vinda (o) à disciplina Diversidade e Educação Dando inicio aos estudos desta disciplina, queremos propor leituras seguidas de reflexões que nortearão nosso entendimento sobre a educação das relações étnico- raciais. Questões consideradas polêmicas no passado, hoje fazem parte de nossos debates na sociedade como também das discussões no cotidiano da sala de aula. A sociedade brasileira possui esta especificidade, que é a diversidade. Uma riqueza do nosso povo, que deve ser trabalhada, visando a superação de posturas discriminatórias e preconceituosas, contribuindo assim, para o fortalecimento das relações sociais e união das pessoas em sociedade. Para tanto, propomos leituras de textos e artigos acadêmicos que muito contribuirão para a concretização da educação como instrumento de transformação social. Na Unidade 1- A diversidade em Sala de aula, propomos a leitura do artigo Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo, de autoria da Nilma Lino Gomes, a primeira reitora negra de uma universidade pública no país, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILA. Na Unidade 2 - 0 mito da democracia racial e as políticas públicas, trago a leitura do capítulo Universidade Federal de Ouro Preto, publicado no livro Atos, Pactos e Impactos: Direitos Humanos e Gestão de Políticas Públicas, das autoras Keila Deslandes e Laura Rodrigues Paim Pamplona. Uma análise que perpassa a discussão sobre o mito da democracia racial. Já na Unidade 3- Legalidade dos estudos das relações étnico- raciais apresento a leitura do texto Apontamentos teóricos para a educação das relações étnico- raciais no Brasil: contexto e conceitos. A leitura deste texto, de autoria de Ana Cristina J. da Cruz; Tatiane C. Rodrigues e Lúcia M. de A. Barbosa, apresenta reflexões sobre a legislação pertinente a esta temática, como fundamento da própria disciplina. Na Unidade 4- Cultura em sala de aula por sua vez, propomos a leitura do texto Cultura no Espaço da Diversidade, organizado por Denise de Freitas, para que possamos refletir sobre as múltiplas e diversas culturas em sala de aula. Representatividade de negros e índios em livros didáticos é o tema da Unidade 5. Trago o texto Imagens e representações de negros e de indígenas, também da autora Lúcia Barbosa juntamente a Fernanda Tonelli, problematizando a representatividade e as iconografias. Por fim, mas não menos importante, na Unidade 6 – Intervenções no cotidiano, a leitura do texto Ações no cotidiano escolar, dos autores Fabiano Maranhão; Vanessa M. Bedani; Benedita da G. F. Mendes, que muito nos ajudará na elaboração do projeto proposto como tarefa nesta semana. Seguem ainda, dois textos complementares que abordam Diversidade Religiosa e Sexualidade e Gênero. Uma sugestão de filmes faz parte da apostila, como proposta de embasamento teórico sobre a temática diversidade. Espero que possamos finalizar nossos estudos sobre Diversidade e Educação com uma nova postura em sala de aula, onde somos chamados a debater questões polêmicas, objetivando a superação de preconceitos e outras formas de discriminação. Prof. Gilberto Balbino. A diversidade em sala de aula 1 1 A diversidade em sala de aula Texto de Nilma Lino Gomes Licenciatura em Pedagogia Gomes, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ep/v29n1/a12v29n1. Acesso em março 2022. http://www.scielo.br/pdf/ep/v29n1/a12v29n1 167Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003 Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo Nilma Lino Gomes Universidade Federal de Minas Gerais Resumo Este artigo discute as particularidades e possíveis relações en- tre educação, cultura, identidade negra e formação de profes- sores/as, tendo como enfoques principais a corporeidade e a estética. Para tal, apresenta a necessidade de articulação entre os processos educativos escolares e não-escolares e a inserção de novas temáticas e discussões no campo da formação de professores/as. Dando continuidade às reflexões realizadas pela autora na sua tese de doutorado, discutem-se as representações e as concepções sobre o corpo negro e o cabelo crespo, construídas dentro e fora do ambiente escolar, a partir de lembranças e depoimentos de homens e mulheres negras entrevistados durante a realização de uma pesquisa etnográfica em salões étnicos de Belo Horizonte. Para essas pessoas, a experiência com o corpo negro e o cabelo crespo não se reduz ao espaço da família, das amizades, da militância ou dos relacionamentos amorosos. A escola aparece em vários depoimentos como um importante espaço no qual também se desenvolve o tenso processo de construção da identidade negra. Lamentavelmente, nem sempre ela é lembrada como uma instituição em que o negro e seu padrão estético são vis- tos de maneira positiva. O entendimento desse contexto revela que o corpo, como suporte de construção da identidade negra, ainda não tem sido uma temática privilegiada pelo campo edu- cacional, principalmente pelos estudos sobre formação de pro- fessores e diversidade étnico-cultural. E que esse campo, tam- bém , ao considerar tal diversidade, deverá se abrir para dialo- gar com outros espaços em que os negros constroem suas iden- tidades. Muitas vezes, locais considerados pouco convencionais pelo campo da educação, como por exemplo, os salões étnicos. Palavras-chave Cultura – Formação de professores/as – Identidade negra – Estética. Correspondência: Nilma Lino Gomes Rua Itaparica, 216 apto. 102 - Serra 30240-130 – Belo Horizonte - MG E-mail: nilmagomes@uol.com.br Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003168 Education, black identity, and teacher education: a look upon the black body and hair Nilma Lino Gomes Universidade Federal de Minas Gerais Abstract This article discusses the specificities and possible relations between education, culture, black identity, and teacher education, approaching them from the perspective of corporeity and aesthetics. For that, the text introduces the need to articulate education and non-education processes, to insert new themes and discussions into the field of teacher education. Following on the considerations made by the author in her doctoral thesis, the representations and notions about the black body and hair constructed inside and outside school are discussed, based on memories and testimonies of black men and women interviewed during an ethnographic study carried out in ethnic beauty shops in Belo Horizonte. For those people, the experience with the black body and hair is not restricted to the family environment, friendships, militancy or love life. The school appears in several testimonies as an important space in which the tense process of construction of the black identity also takes place. Sadly, the school is not often remembered as an institution where black people and their aesthetic standards are viewed positively. The appreciation of this context reveals that the body, as a support for the construction of the black identity, still has to be taken up as a theme of choice by the educational field, particularly in the studies on teacher education and ethnic-cultural diversity. It also shows that, when considering such diversity, this field of study will have to open itself to the dialogue with other spaces where black people also construct their identity, spaces such as beauty shops, many times regarded as unconventional in the field of education. Keywords: Culture – Teacher education – Black identity – Aesthetics. Contact: Nilma Lino Gomes Rua Itaparica, 216 apto. 102 - Serra 30240-130 – Belo Horizonte - MG E-mail: nilmagomes@uol.com.br 169Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003 A formação de professores/ras tem sido uma preocupação constante do campo da edu- cação. O MEC, a universidade, os centros de for- mação de professores, as escolas, enfim, todos se preocupam e concordam que é preciso hoje formá-los mais adequadamente tanto em seu percurso inicial quanto em serviço. Mas apenas investir numa melhor formação não é o suficiente. A formação de professores/ras, sobretudo a que visa a diversidade, deveria considerar outras ques- tões, tais como: como os/as professores/ras se for- mam no cotidiano escolar? Atualmente, quais são as principais necessidades formadoras dos/das docentes? Que outros espaços formadores inter- ferem na sua competência profissional e pedagó- gica? Que temas os/as professores/ras gostariam de discutir e de debater no seu percurso de for- mação e no dia-a-dia da sala de aula? E que temáticas sociais e culturais são omitidas, não são discutidas ou simplesmente não são consideradas importantes para a sua formação profissional e para o processo educacional dos seus alunos? Será que a questão racial está incluída nessas temáticas omitidas ou silenciadas?1 Sabemos que existem vários artigos, livros e pesquisas que discutem a relação en- tre a questão racial e a educação. Porém, seria interessante pesquisar se a produção teórica sobre raça e educação, e negro e educação, tem destacado a articulação entre identidade negra, cultura negra e formação de professores. Seria simplificar o problema dizer que tudo o que produzimos sobre a questão racial na educação e em outras áreas do conhecimento pode ser aproveitado e aplicado na formação de professores. Estamos diante do desafio de ana- lisar a produção acadêmica existente sobre rela- ções raciais no Brasil e discutir quais aspectos dessa produção devem fazer parte dos proces- sos de formação dos docentes. Resta ainda ou- tro desafio, o de descobrir como a produção sobre o negro e sua cultura, realizada por outras áreas do conhecimento, poderá nos ajudar a refletir sobre a temática negro e educação, en- riquecendo e apontando novos caminhos para o campo da formação de professores. Será que conhecemos os estudos e as pesquisas realizados pela antropologia, pela so- ciologia, pela psicologia social, pela história, pela comunicação social, entre outros, que têm as relações raciais como objeto de investigação? Ao conhecermos tais estudos, refletimos sobre as possíveis relações entres estes e o campo da educação, e vice-versa? A articulação entre a produção teórica educacional sobre o negro e a produção que tem sido realizada por diferentes áreas do conhecimento sobre a mesma temática poderá nos ajudar a descobrir novas dimensões da realidade racial brasileira? O conhecimento dessas dimensões não poderá ser incorporado como mais uma competência dos educadores nos seus processos de formação? Sem dúvida, os questionamentos acima nos mostram que essa não é uma tarefa fácil. Para realizá-la será pre- ciso entender e considerar a importância da ar- ticulação entre cultura, identidade negra e edu- cação. Uma articulação que se dá nos processos educativos escolares e não-escolares. O olhar sobre a identidade negra: uma forma de articular cultura, educação e formação de professores Um dos primeiros caminhos a serem tri- lhados nessa direção poderá ser o da inserção, nos cursos de formação de professores e nos proces- sos de formação em serviço, de disciplinas, deba- tes e discussões que privilegiem a relação entre cul- tura e educação, numa perspectiva antropológica. A perspectiva antropológica nos ajuda a compreender que a cultura, seja na educação ou nas ciências sociais, é mais do que um conceito acadêmico. De acordo com Denys Cuche (1999), ela diz respeito às vivências concretas dos sujei- tos, à variabilidade de formas de conceber o mundo, e às particularidades e semelhanças construídas pelos seres humanos ao longo do processo histórico e social. 1. A partir deste momento, o texto abandona a fórmula “o(a)” ou o par negros e negras, o docente e a docente, adotando o genérico masculino. 170 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de... Os homens e as mulheres, por meio da cultura, estipulam regras, convencionam valo- res e significações que possibilitam a comuni- cação dos indivíduos e dos grupos. Por meio da cultura eles podem se adaptar ao meio, mas também o adaptam a si mesmos e, mais do que isso, podem transformá-lo. Laraia (2001, p. 67) nos relata que Ruth Benedict escreveu, em O crisântemo e a espa- da, que a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo. Sendo assim, ho- mens e mulheres de diferentes culturas usam lentes diversas e, portanto, não têm a mesma visão das coisas. Ainda segundo esse autor: o modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as postu- ras corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura. (Laraia, 2001, p.68) Entre os processos culturais construídos pelos homens e pelas mulheres na sua relação com o meio, com os semelhantes e com os di- ferentes, estão as múltiplas formas por meio das quais esses sujeitos se educam e transmitem essa educação para as futuras gerações. É por meio da educação que a cultura introjeta os sistemas de representações e as lógicas construídas na vida cotidiana, acumulados (e também transfor- mados) por gerações e gerações. Por isso, ao discutirmos a relação entre cultura e educação, é sempre bom lembrar que a educação não se reduz à escolarização. Ela é um amplo processo, constituinte da nossa humanização, que se realiza em diversos espa- ços sociais: na família, na comunidade, no tra- balho, nas ações coletivas, nos grupos culturais, nos movimentos sociais, na escola, entre outros. Como nos diz Carlos Rodrigues Brandão (1981): A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educa- ção que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam-e- aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as re- gras do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a na- tureza e entre os homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a própria edu- cação habita, e desde onde ajuda a explicar – às vezes a ocultar, a necessidade da existência de sua ordem. (p. 10-11) Consideramos, assim, que existem dife- rentes e diversas formas e modelos de educação, e que a escola não é o lugar privilegiado onde ela acontece e nem o professor é o único res- ponsável pela sua prática. Essa reflexão é impor- tante para se pensar os processos edu-cativos, quer sejam escolares ou não-escolares. Muitas vezes, as práticas educativas que acontecem paralelamente à educação escolar, desenvolvidas por grupos culturais, ONG’s, movimentos sociais e grupos juvenis precisam ser considerados pe- los educadores escolares como legítimas e for- madoras. Elas também precisam ser estudadas nos processos de formação de professores. Apesar de levar em conta essa dimen- são mais ampla e mais geral do processo edu- cativo, neste artigo pretendo privilegiar a edu- cação que acontece no interior da instituição escolar, tentando, porém, compreendê-la in- serida no processo cultural e articulada com outros espaços educativos não-escolares. A escola é vista, aqui, como uma instituição em que aprendemos e compartilhamos não só con- teúdos e saberes escolares mas, também, valo- res, crenças e hábitos, assim como preconcei- tos raciais, de gênero, de classe e de idade. É essa visão do processo educativo escolar e sua relação com a cultura e a educação — vista de uma maneira mais ampla — que nos permite aproximar e tentar compreender melhor os 171Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003 caminhos complexos que envolvem a constru- ção da identidade negra e sua articulação com os processos formativos dos professores e das professoras. É também essa visão que nos pos- sibilita compreender a presença da dimensão educativa em diferentes espaços sociais e não somente no interior da escola. Mas como a identidade negra se articu- la com a cultura e com a educação? Um cami- nho interessante para refletir sobre essa articu- lação seria não pensar a identidade negra como a única possível de ser construída pelos sujei- tos que pertencem a esse grupo étnico/racial. Entre as múltiplas identidades sociais que os negros e as negras constroem, a identidade negra é uma delas. A reflexão sobre a construção da iden- tidade negra não pode prescindir da discussão sobre a identidade como processo mais amplo, mais complexo. Esse processo possui dimensões pessoais e sociais que não podem ser separa- das, pois estão interligadas e se constroem na vida social. Como sujeitos sociais, é no âmbito da cultura e da história que definimos as identida- des sociais (todas elas, e não apenas a identi- dade racial, mas também as identidades de gênero, sexuais, de nacionalidade, de classe, etc.). Essas múltiplas e distintas identidades constituem os sujeitos, na medida em que es- tes são interpelados a partir de diferentes situa- ções, instituições ou agrupamentos sociais. Reconhecer-se numa delas supõe, portanto, responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido de pertencimento a um grupo social de referência. Nesse processo, nada é simples ou estável, pois essas múltiplas identidades podem cobrar, ao mesmo tempo, lealdades distintas, divergentes, ou até contra- ditórias. Somos, então, sujeitos de muitas iden- tidades e essas múltiplas identidades sociais podem ser, também, provisoriamente atraentes, parecendo-nos, depois, descartáveis; elas po- dem ser, então, rejeitadas e abandonadas. So- mos, desse modo, sujeitos de identidades tran- sitórias e contingentes. Por isso as identidades sociais têm caráter fragmentado, instável, his- tórico e plural (Louro, 1999). Assim, como em outros processos iden- titários, a identidade negra se constrói gra- dativamente, num processo que envolve inúme- ras variáveis, causas e efeitos, desde as primeiras relações estabelecidas no grupo social mais ínti- mo, em que os contatos pessoais se estabelecem permeados de sanções e afetividade e no qual se elaboram os primeiros ensaios de uma futura vi- são de mundo. Geralmente tal processo se inicia na família e vai criando ramificações e desdobra- mentos a partir das outras relações que o sujeito estabelece. A identidade negra é entendida, aqui, como uma construção social, histórica, cultu- ral e plural. Implica a construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que per- tencem a um mesmo grupo étnico/racial sobre si mesmos, a partir da relação com o outro. Construir uma identidade negra positi- va em uma sociedade que, historicamente, ensina ao negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros. Será que, na escola, estamos atentos a essa questão? Será que incorporamos essa realidade de manei- ra séria e responsável quando discutimos, nos processos de formação de professores, sobre a importância da diversidade cultural? Nesse sentido, quando pensamos a arti- culação entre educação, cultura e identidade negra, falamos de processos densos, movediços e plurais, construídos pelos sujeitos sociais no decorrer da história, nas relações sociais e cul- turais. Processos que estão imersos na articula- ção entre o individual e o social, entre o passa- do e o presente, entre a memória e a história. Nessa perspectiva, quando pensamos a escola como um espaço específico de forma- ção, inserida num processo educativo bem mais amplo, encontramos mais do que currículos, disciplinas escolares, regimentos, normas, pro- jetos, provas, testes e conteúdos. A escola pode ser considerada, então, como um dos espaços que interferem na construção da identidade 172 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de... negra. O olhar lançado sobre o negro e sua cultura, na escola, tanto pode valorizar identida- des e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-las. É importante lembrar que a identidade construída pelo negro se dá não só por oposição ao branco mas, também, pela negociação, pelo conflito e pelo diálogo com este. As diferenças implicam pro- cessos de aproximação e distanciamento. Nesse jogo complexo, vamos aprendendo, aos poucos, que as diferenças são imprescindíveis na construção da nos- sa identidade. Sendo entendida como um processo con- tínuo, construído pelos negros nos vários espaços — institucionais ou não — nos quais circulam, po- demos concluir que a identidade negra também é construída durante a trajetória escolar desses su- jeitos. Nesse percurso, os negros deparam-se, na es- cola, com diferentes olhares sobre o seu per- tencimento racial, sobre a sua cultura, sua histó- ria, seu corpo e sua estética. Muitas vezes esses olhares chocam-se com a sua própria visão e ex- periência da negritude. Estamos no complexo cam- po das identidades e das alteridades, das semelhan- ças e diferenças e, sobretudo, diante das diversas maneiras como estas são tratadas pela sociedade. Representações e impressões sobre o corpo negro: uma questão colocada para a formação de professores Ultimamente, alguns pesquisadores que trabalham com formação de professores, currí- culo e história da educação, (Veiga, 2000; Canen; Moreira, 2001; Apple, 2001, entre ou- tros) têm se aproximado mais dos estudos so- bre negro e educação, desenvolvendo pesqui- sas que articulam educação dos negros e me- mória; currículo e multiculturalismo, formação de professores e diversidade cultural. Tal apro- ximação faz parte de um movimento interessan- te que vem ocorrendo na produção teórica educacional sobre relações raciais no Brasil.2 Aqueles que já estão realizando esse movimen- to, aos poucos, vão descobrindo como esse campo ainda é incipiente e que, apesar do aumento da produção teórica sobre negro e educação, nos últimos anos no Brasil, ainda há muito trabalho a fazer. Um destes temas pou- co explorados no âmbito da formação de pro- fessores evidenciou-se durante a realização de uma pesquisa etnográfica em salões étnicos de Belo Horizonte, que desenvolvi para a conclu- são do doutorado em Antropologia Social na Universidade de São Paulo: a relação entre negro, corpo e estética. Essa pesquisa teve como enfoque prin- cipal a relação entre negro, cultura e estética corporal. Durante as entrevistas, vários depoen- tes, homens e mulheres, jovens e adultos na faixa de 21 a 60 anos, ao retomarem momen- tos significativos da sua história de vida, rela- cionados com a dimensão estética, destacaram a sua passagem pela escola. Assim, embora não tivesse como foco principal a formação de professores, ao refletir- mos sobre as experiências e os depoimentos das cabeleireiras, dos cabeleireiros e clientes dos salões étnicos sobre suas vivências escola- res, no que se refere ao corpo negro e ao ca- belo crespo, fatalmente somos questionados sobre a formação dos docentes. E ao conside- rarmos a relação entre as representações sobre o corpo negro e os processos de formação de professores, alguns questionamentos vêm à tona: como os educadores negros e brancos pensam o próprio corpo? Como pensam e vêem o corpo negro? Durante os processos de for- mação docente, os educadores têm contato com reflexões que discutem as representações construídas em nossa sociedade sobre o negro, sua estética, sua ascendência africana e as for- mas como estas se misturam com situações de racismo, discriminação e preconceito racial? Como os professores lidam com as diferenças 2. É importante citar o Concurso Negro e Educação, iniciativa promovida pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação- ANPEd em parceria com a Ação Educativa, Assessoria, Pesquisa e Infor- mação, com apoio da Fundação Ford. Além das pesquisas, o concurso tem realizado seminários, debates e publicações sobre a temática. No ano de 2003 já foi lançado o III Concurso, que está em andamento. 173Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003 étnico-raciais inscritas no seu próprio corpo e no corpo de suas alunas e de seus alunos? Para as pessoas entrevistadas durante a realização da pesquisa (Gomes, 2002), a expe- riência com o corpo negro e o cabelo crespo não se reduz ao espaço da família, das amiza- des, da militância ou dos relacionamentos amorosos. A escola aparece em vários depoi- mentos como um importante espaço no qual também se desenvolve o tenso processo de construção da identidade negra. Lamentavel- mente, na maioria das vezes, a instituição es- colar aparece nas lembranças dos depoentes reforçando estereótipos e representações nega- tivas sobre o negro e o seu padrão estético. A pesquisa revelou que, no processo de construção da identidade, o corpo pode ser considerado como um suporte da identidade negra e o cabelo crespo como um forte ícone identitário. Será que, ao pensarmos a relação entre escola, cultura, relações raciais e de gênero nos processos de formação de professores, leva- mos em conta a radicalidade dessas questões? O papel desempenhado pela dupla ca- belo e cor da pele na construção da identida- de negra foi o ponto de maior destaque duran- te a realização da pesquisa. A importância des- ses, sobretudo do cabelo, na maneira como o negro se vê e é visto pelo outro, até mesmo para aquele que consegue algum tipo de ascen- são social, está presente nos diversos espaços e relações nos quais os negros se socializam e se educam: a família, as amizades, as relações afetivo-sexuais, o trabalho e a escola. Para esse sujeito, o cabelo carrega uma forte marca identitária e, em algumas situações, é visto como marca de inferioridade (Gomes, 2002). Porém, existem outros espaços em que o cabelo é visto numa perspectiva de revalorização. São eles: os contextos familiares em que se pre- serva a memória ancestral africana, alguns espa- ços da militância política, os salões étnicos, en- tre outros. Essa revalorização extrapola o indiví- duo e atinge o grupo étnico/racial a que perten- ce. Ao atingi-lo, acaba remetendo, às vezes de forma consciente e outras não, a uma ancestra- lidade africana recriada no Brasil. Lamentavelmen- te, a escola não aparece entre esses espaços de revalorização da estética, do corpo negro e do cabelo crespo. Por que será? Compreender a complexidade na qual a construção da identidade negra está inserida, sobretudo quando levamos em consideração a corporeidade e a estética, é uma das tarefas e desafios colocados para os educadores. Deveria, também, ser uma das preocupações dos proces- sos de formação de professores quando estes discutem a diversidade étnico-cultural. Os pro- fessores trabalham cotidianamente com o seu próprio corpo. O ato de educar envolve uma exposição física e mental diária. Porém, ao mes- mo tempo em que se expõem, os educadores também lidam com o corpo de seus alunos e de seus colegas. Esses corpos são tocados, sentidos. A relação pedagógica não se desenvolve só por meio da lógica da razão científica mas, também, pelo toque, pela visão, pelos odores, pelos sabo- res, pela escuta. Estar dentro de uma sala de aula significa colocar a postos, na interação com o outro, todos os nossos sentidos. Somos sujeitos corpóreos e usamos o nosso corpo como linguagem, como forma de comunicação. O que será que o aluno negro nos comunica por meio de seu corpo? Com a sua postura? Pela maneira como cuida do seu corpo? Como ele se apresenta esteticamente? Por outro lado, quais são as representações que nós, docentes, construímos desde a infân- cia sobre o negro, seu corpo e sua estética? Será que essas representações, quando nega- tivas, tornam-se mais fortes no exercício do trabalho docente, a ponto de nos tornar cegos e surdos para entender o que os nossos alu- nos tentam nos comunicar? Quantas vezes não ouvimos frases como “o negro fede”; “o cabe- lo rastafari é sujo e não se pode lavá-lo”; “o negro que alisa o cabelo tem desejo de em- branquecer”; “aquele é um negro escova- dinho”; “por que você não penteia esse cabelo pixaim”; “esses meninos de hoje usam roupas estranhas, parecem pivetes”? Quantas vezes essas frases não são repetidas pelos próprios 174 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de... docentes, dentro de sala de aula, nas conver- sas informais e nos conselhos de classe? Quan- tas vezes essas frases não são emitidas nos corredores das faculdades de educação e nas universidades? Como a escola lida com o corpo negro e o cabelo crespo? O corpo localiza-se em um terreno so- cial conflitivo, uma vez que é tocado pela es- fera da subjetividade. Ao longo da história, o corpo se tornou um emblema étnico e sua ma- nipulação tornou-se uma característica cultural marcante para diferentes povos. Ele é um sím- bolo explorado nas relações de poder e de do- minação para classificar e hierarquizar grupos diferentes. O corpo é uma linguagem e a cul- tura escolheu algumas de suas partes como principais veículos de comunicação. O cabelo é uma delas. O cabelo é um dos elementos mais visí- veis e destacados do corpo. Em todo e qualquer grupo étnico ele é tratado e manipulado, todavia a sua simbologia difere de cultura para cultura. Esse caráter universal e particular do cabelo atesta a sua importância como símbolo identitário. O entendimento da simbologia do cor- po negro e dos sentidos da manipulação de suas diferentes partes, entre elas, o cabelo, pode ser um dos caminhos para a compreensão da iden- tidade negra em nossa sociedade. Pode ser, tam- bém, um importante aspecto do trabalho com a questão racial na escola que passa despercebi- do pelos educadores e educadoras. Em torno da manipulação do corpo e do cabelo do negro existe uma vasta história. Uma história ancestral e uma memória. Há, também, significações e tensões construídas no contexto das relações raciais e do racismo brasileiro. A discussão sobre a riqueza do trato do corpo negro e sobre os processos de opressão que o mesmo tem rece- bido ao longo da história pode vir a ser uma rica atividade pedagógica a ser desenvolvida com os alunos e as alunas em sala de aula, possibilitando debates e atividades sobre a história e a cultura afro-brasileira. Nesse processo, um estudo sobre o negro, o cabelo crespo e as práticas corporais pode ser um bom caminho. Destacar a existência de uma positividade nas práticas do negro diante do cabelo, hoje, quer seja trançando, implantando ou alisando- o, pode ser um interessante exercício intelec- tual que nos afasta das análises que primam pelo olhar da introjeção do branqueamento. Podere- mos resgatar e encontrar muitas semelhanças entre algumas técnicas de manipulação do cabe- lo realizadas pelos negros contemporâneos e aquelas que eram desenvolvidas pelos nossos ancestrais africanos, a despeito do tempo e das mudanças tecnológicas. Esse processo pode ser visto como a presença de aspectos inconscien- tes, como formas simbólicas de pensar o corpo oriundas das diversas etnias africanas das quais somos herdeiros e que não se perderam total- mente na experiência da diáspora. Em todos esses momentos, a busca da beleza por meio da manipulação do cabelo destaca-se como uma virtualidade histórica e atuante. Esta é uma questão que merece ser trabalhada nos proces- sos de formação de professores quando se pre- tende estudar a questão racial. Mas como a escola lida com o corpo negro, o cabelo crespo e a cultura negra? Como as crianças, adolescentes, jovens e adultos ne- gros são vistos e se vêem na escola? Para res- pondermos a essas questões teremos que nos aproximar dos homens e mulheres negras que já passaram pela escola e também daqueles que ainda estão realizando a sua trajetória escolar e escutar, atentamente, o que eles têm a nos dizer, como a dona de casa M., de 29 anos: M.: Ah! Antigamente tinha muita gozação. Às vezes chamavam de cabelo frito... ah... muita gozação. Cabelinho ruim, muita coisa assim, agora não. N.: Você acha que isso mudou? M.: Hum... um pouco. Mudou um pouco. Hoje em dia, os negros não querem ficar pra trás não. 175Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003 N.: E isso que você disse: cabelinho frito, cabelinho ruim. Em que lugares lhe falavam isso? M.: Em escolas... escola, danceteria que a gente ia... N.: Isso era muito falado? M.: Tinha, e como tinha! Até os próprios negros falavam. Hoje em dia já é diferente. (...) É que hoje tem muitas opções e anti- gamente não tinha. Eu e a minha cabelei- reira mesmo, nós falamos: “Nossa menina! Na nossa época da escola! A gente ia com o cabelinho horrível pra escola”. Agora não, você pode escolher tudo para o cabelo. O cabelo (...) você quer azul, do jeito que você quer, você põe. Agora tem opção, agora é diferente. Agora o negro fica do jeito que ele quer. Você vê que tem até ne- gro loiro aí, antigamente não tinha. Era só aquilo e aquilo mesmo. Os negros que an- davam com cabelo arrumado, eram os que tinham dinheiro, porque antigamente era caríssimo ir ao salão. Hoje em dia, não. É interessante constatar que o depoi- mento expressa uma mudança, nos dias de hoje, em relação à representação construída sobre o negro e seu cabelo, às possibilidades econômicas e ao acesso aos espaços de bele- za que cuidam do corpo do negro e do cabelo crespo. Essa mudança também possibilita ao negro apresentar-se esteticamente de uma maneira considerada mais “aceitável” social- mente, o que pode ter contribuído para a di- minuição dos apelidos e tratamentos precon- ceituosos nos espaços públicos, entre eles, a escola. Será que essa mudança se deve so- mente à invenção das novas técnicas de pen- tear e alisar o cabelo apontadas pela depoen- te? Ou seja, não mais o “cabelo frito” pelo pente quente, mas o cabelo “relaxado” via produtos químicos de maior qualidade ou “alongado” via processos mais variados de im- plantes, ou mesmo o “careca” cortado com máquina um? Ou será que essa mudança im- plica alguma alteração na forma como o pró- prio negro contemporâneo lida com a diferen- ça racial inscrita no seu corpo e no seu tipo de cabelo? Ou ainda: será que as manifesta- ções de preconceito estão diminuindo dentro do atual espaço escolar? Não podemos deixar de pontuar que a sociedade e a escola brasileira da atualidade têm construído representações sociais mais positivas sobre o negro e sua estética. É o que nos fala a depoente acima. Essa transformação, sem dúvida, não se dá por honra e glória da educação escolar. Se pesquisarmos mais a fun- do, encontraremos a ação da comunidade ne- gra organizada em movimentos sociais, dos grupos culturais negros, das comunidades-ter- reiro como partes importantes no processo de denúncia contra o racismo e de afirmação da identidade negra. Encontraremos também famí- lias negras que, atentas aos dilemas de seus filhos e filhas, enfatizam de forma positiva e de diversas maneiras a herança cultural negra. Esses grupos e essas famílias sempre pressiona- ram a escola e sempre cobraram desta institui- ção uma responsabilidade social e pedagógica diante da questão racial. Porém, essa pressão não se limita à escola. Ela atinge a sociedade como um todo e, aos poucos, tem tornado possível uma lenta inserção social do negro em alguns setores do mercado de trabalho, a sua presença (mesmo tímida) nos meios de comuni- cação e nos veículos publicitários e a sua en- trada em maior número na educação básica. Somando-se aos outros grupos sociais que lu- tam pela democratização da sociedade, a comu- nidade negra tem conseguido mudar, aos pou- cos, a situação do negro no Brasil. Mas ainda há muito que avançar. Nesse processo lento e tenso, alguns negros, desde muito cedo, aprendem a posi- cionar-se de maneira afirmativa e a reagir à dis- criminação racial. Muitas crianças negras per- cebem, desde muito cedo, que ser chamada de “negrinha” nem sempre significa um tratamen- to carinhoso, pelo contrário, é uma expressão do racismo. Nesse contexto, cada um luta com as armas que tem: 176 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de... B.: Eu era muito bagunceira na escola, nunca deixei que ninguém me chamasse de negrinha na escola, porque eu batia ne- les mesmo! Então quando eu chegava em casa meu pai me batia e, no outro dia, eu batia no menino de novo, e fui fazendo aquela coisa... Na escola os meninos chega- vam e me respeitavam... eu era a única negrinha da sala, então eles diziam: “Ah, eu não vou mexer com ela não, porque ela bate na gente”. Eu pedia merenda, porque eu não tinha condições de comprar meren- da e os meninos me davam merenda. Quan- do não me davam eu batia neles e eles me davam a merenda. (B. 38 anos, cabeleireira étnica) Mas nem todos sabem se defender dos xingamentos preconceituosos. As experiências de preconceito racial vividas na escola, que envolvem o corpo, o cabelo e a estética, ficam guardadas na memória do sujeito. Mesmo de- pois de adultos, quando adquirem maturidade e consciência racial que lhes permitem superar a introjeção do preconceito, as marcas do ra- cismo continuam povoando a sua memória. A ausência da discussão sobre essas questões, tanto na formação dos professores quanto nas práticas desenvolvidas pelos docentes na escola básica, continua reforçando esses sentimentos e as representações negativas sobre o negro. Nem sempre os professores e as professoras percebem que, por detrás da timidez e da re- cusa de participação de trabalhos em grupos, encontra-se um complexo de inferioridade construído, também, na relação do negro com a sua estética durante a sua trajetória social e escolar. N.: Teve uma época, isso foi na quarta série, eu estudei... quando eu fiz 12 anos, eu es- tudei no Bernardo Monteiro. Eu era a única negra lá da sala. No Bernardo Monteiro, na parte da manhã, na época, era classe média alta. Mas, na realidade, eu não me lembro se eu era a única negra da sala, eu sei que meu cabelo era batidinho e os meninos me chamavam de Paulo Isidoro. Ah! Eu odiava! Ele era um jogador de futebol, nossa, era tanta coisa! Tinha uma turminha de rapa- zes, então, a gente estava começando a se interessar por rapazes. Mas assim, eu ja- mais ia me interessar por alguém, porque eu jamais ia imaginar que alguém ia se in- teressar por mim. E tinha as meninas da sala que jogavam piadinhas, entendeu? Tanto que eu tive que sair do colégio por- que meu rendimento era péssimo. Eu não conversava com ninguém... eu odiava res- ponder presente durante a chamada, ir à lousa... nem pensar! Me chamavam de Pau- lo Isidoro, que eu era isso, era aquilo, en- tendeu? As meninas tudo burguesinhas, de cabelão, a maioria, loira e tal. Eu não tinha amiga nenhuma, porque jamais elas chega- vam perto de mim. Eu tinha uma só, que era assim, bem negona, fortona. Ela era a minha colega, eu tinha só ela, porque nós duas ficávamos assim: as excluídas da sala. (N. cabeleireira étnica, 26 anos) Mas as experiências negativas vividas na escola por causa do cabelo crespo, revela- das pela depoente, não param por aí. Quando experimentava diferentes maneiras e técnicas de arrumar o cabelo, mesmo que fossem aquelas que se aproximavam do padrão de cabelo liso, a então adolescente negra era vista com estra- nhamento e com hostilidade pelos colegas. Até mesmo hoje, depois de adultas, as mulheres negras continuam enfrentando um verdadeiro “patrulhamento ideológico” em relação à sua estética. Alguns as desejam com o cabelo “cres- po natural”, considerado por um grupo como autêntica expressão da negritude; outros que- rem-nas de tranças, por julgarem que esse pen- teado aproxima a mulher (e o homem negro) de suas raízes africanas; outros, com o cabelo ali- sado, por considerarem que tal penteado apro- xima as mulheres negras do padrão estético branco, visto socialmente como o mais belo. Enfim, esse tipo de cerceamento da liberdade 177Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003 da expressão estética e corporal do negro, so- bretudo da mulher negra, demonstra que con- tinuamos mergulhados nas malhas do racismo e do preconceito racial. Na realidade, o que pode parecer uma simples opinião ou um mero julgamento estético, revela a existência de uma tensão racial, fruto do racismo ambíguo e do ideal do branqueamento desenvolvidos no Bra- sil. Essas questões deveriam ser consideradas com mais seriedade pelos educadores e pelas educadoras. Vejamos o que N. nos diz, conti- nuando seu depoimento: N.: Quando eu era mais nova eu ia pra es- cola e eu tinha o cabelo de trancinha. Eu me lembro de uma vez, estava na quarta série... Ai, meu Deus, eu não esqueço!...., tem coisa que marca, a gente não esquece. Eu estava na aula, então, eu usava tranci- nha. Um dia minha mãe resolveu tirar mi- nha trancinha e alisar meu cabelo. Eu ali- sei meu cabelo, eu lembro como se fosse hoje. Eu lembro, minha mãe alisou... foi no salão, alisou, ficou assim, balançando ao vento. Ficou lindo meu cabelo, maravi- lhoso! Só que eu fiquei com vergonha de sair do salão com o cabelo, porque estava bonito, eu fiquei com vergonha, porque estava bonito e ia chamar a atenção. En- tão eu fui pra aula. Eu sempre sentei mais perto da primeira carteira, só que eu sen- tava perto da janela. Eu quase entrei den- tro do armário pra ficar escondida, por causa do cabelo. E tinha um menino bran- quinho, o Leonardo, lindo, do olho azul, branquinho, que sentava na primeira car- teira. Eu parti o cabelo de lado, coloquei um passadorzinho com umas pedrinhas de strass. O pessoal olhou, lógico que iam re- parar, eu tinha o cabelo de trancinha e eles falaram assim: “Nossa, você está dife- rente hoje, arrumou o cabelo!”. E um me- nino falou: “Ficou mais feia ainda”. Aquilo foi a morte, depois que ele falou aquilo, nem pra aula eu queria ir mais. Não queria ir pra aula. É importante destacar no testemunho acima não somente as relações de ciúmes e disputas desenvolvidas dentro dos grupos de adolescentes que competem entre si, no inte- rior da escola, em termos de beleza, esperteza, “inteligência”, paqueras, mas também uma outra questão igualmente importante: os sen- timentos que a depoente desenvolvia em rela- ção à sua própria aparência, dando um desta- que maior ao cabelo e à maneira como ele era visto pelo outro, pelos colegas. Somente no dia em que ela chegou à escola com o cabelo ali- sado é que lhe disseram: “Nossa, você está diferente hoje, arrumou o cabelo!”. É interes- sante pensar que somente quando ela se apre- sentou com um penteado próximo do padrão “branco”, ou seja, do cabelo liso, é que ela pôde receber o reconhecimento dos outros de que arrumara e penteara o cabelo. Ora, se a pró- pria depoente nos diz que quando ia à escola “eu tinha o cabelo de trancinha (...) Eu estava na aula, então, eu usava trancinha (...)”, pode- mos concluir que usar o cabelo com trancinha não era considerado pelos colegas como “arru- mado”, ou seja, penteado. No entanto, o uso das tranças pelos negros, além de carregar toda uma simbologia originada de uma matriz afri- cana ressignificada no Brasil, é, também, um dos primeiros penteados usados pela criança negra e privilegiados pela família. Fazer as tran- ças, na infância, constitui um verdadeiro ritual para essa família. Elaborar tranças variadas no cabelo das filhas é uma tarefa aprendida e desenvolvida pelas mulheres negras. Embora, à primeira vista, os comentá- rios dos colegas pudessem parecer ingênuos, N. demonstra que entendeu a mensagem racial contida no seu interior. Compreendeu também o peso negativo que ela carregava e, pelo vis- to, durante anos ficou marcada e presa a esse lugar que lhe impuseram: o lugar da inferiori- dade. Será que tal situação deixou de existir? Será que comentários como esses não aconte- cem mais em nossas salas de aula? E como eles repercutem nos sujeitos que os enunciam e naqueles que os recebem? 178 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de... Ressignificação da identidade negra por meio do corpo e do cabelo Mas, como já foi dito anteriormente, o processo de construção da identidade negra é muito mais complexo, instável e plural. Apesar das marcas negativas deixadas pelas experiências de discriminação, o negro se reconstrói positiva- mente. É claro que esse processo não se dá no isolamento e varia de pessoa para pessoa. Exis- tem diferentes espaços e agentes que interferem no processo de rejeição/aceitação/ressignificação do ser negro. Pode ser a família, a participação em espaços políticos, a atuação de um profes- sor ou professora, a construção de uma amiza- de ou de um relacionamento amoroso ou, no caso da depoente anteriormente citada, o en- volvimento com a questão racial via estética: profissionalizando-se como cabeleireira étnica. Esse lugar construído positivamente, a partir da sua própria diferença, garantiu à cabe- leireira étnica entrevistada legitimidade diante da professora e dos colegas da escola. A constru- ção desse lugar, sem o esquecimento das expe- riências difíceis vividas na infância e narradas anteriormente, possibilitou a sua formação como mãe e mulher negra atenta e sensível para com a construção da identidade racial de outros negros e negras. No depoimento abaixo, vemos como a postura de uma professora mais atenta ao lugar ocupado pela aluna negra no interior da sala, somada a uma desenvoltura maior de N. em relação à questão racial e sua identidade negra, abriram caminho para que a aluna viesse a falar sobre “cabelo” em um dos trabalhos solicitados. A menina negra, que antes tinha medo de se posicionar diante do outro e até mesmo de res- ponder à chamada, torna-se, agora, o centro das atenções ao falar sobre a questão racial de for- ma positiva, a partir do próprio ofício: N.: Foi a professora de inglês, sim. O traba- lho era sobre... sobre o tema: poderíamos falar sobre o clima dos Estados Unidos, so- bre a população, etc. Ela falou que a gente podia escolher a área, só que tinha que ser sobre os norte-americanos (...) Eu falei: “Então tá, eu vou fazer sobre o cabelo!”. E ela: “Ah, só podia ser sobre o cabelo!”. Eu fiz, ela adorou o trabalho, vou te mostrar, eu acho que está aqui. Ela adorou o traba- lho, queria ficar com o trabalho pra ela e eu falei: “Não, vou tirar um xerox colorido e vou te passar...”. Então fiz assim: sobre o cabelo étnico, entendeu? Desde quando começou até hoje, lá, nos Estados Unidos. E ela achou superlegal! (...) Eu entrei esse ano novamente no colégio (...). O pessoal sabe que eu tenho salão e então me per- guntam tudo sobre o cabelo... Às vezes está passando uma matéria e eles falam: “N. o meu cabelo...”; e a outra: “N., o meu cabelo...”. Sabe? Tudo é sobre o cabelo! O pessoal de outra sala, no recreio, me cha- ma: “N., eu queria um banho de creme no meu cabelo...”. Porque lá, nesse colégio, são pessoas assim, a maioria é da área da Ventosa, Morro das Pedras, então o pessoal não tem condições, acha caríssimo! O pes- soal ganha de um salário mínimo pra baixo! Teve uma menina da minha sala que falou: “Eu queria tanto ir no seu salão mas pelas suas fotos eu acho que eu não vou ter con- dições de pagar...”. Olha só! Só pelas fotos do salão que eu mostrei na sala. E eu falei para ela: “Não, não tem nada disso, engano seu. Quanto você paga para fazer escova?”. “Doze reais”, ela disse. Eu falei: “Pois é, no meu salão você só pagaria oito”. “Ah, é mes- mo?” Eu falei: “É!”. Ela ficou toda satisfeita, foi ao salão e fez a escova. (N. 26 anos, ca- beleireira étnica) Certamente, se essa professora fosse adepta de uma prática pedagógica conserva- dora ou “neutra” diante da questão racial, esse espaço não teria sido criado e o grupo de alunos negros e brancos daquela sala de aula não teria vivido uma experiência escolar tão interessante. 179Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003 Atentos à importância do trabalho com a questão racial e com a responsabilidade so- cial da escola na desconstrução de estereótipos raciais, alguns estabelecimentos de ensino, sobretudo do setor público, já desenvolvem trabalhos e projetos voltados para a valorização da cultura negra. As escolas que percebem a importância de um trabalho coordenado com a comunidade, os movimentos sociais e profis- sionais negros que lidam no seu cotidiano com a questão racial, abrem as suas portas para um trabalho conjunto. É nesse momento que a articulação entre os espaços escolares e não- escolares pode acontecer. No caso da pesqui- sa em questão, é também nesse momento que os salões de beleza étnicos e a escola desen- volveram, juntos, um trabalho positivo em re- lação à identidade negra. Certamente, esses projetos e iniciativas influenciam positivamen- te a construção da auto-estima e da identida- de negra de crianças, adolescentes, jovens e também dos professores. É o que nos conta outra entrevistada: D.: Então eu vou nas escolas, em várias es- colas, fazendo trabalhos, penteando o cabe- lo dos garotos e faço desfiles. Às vezes, na escola, essas meninas que participam, que a gente produz dentro da escola, nós traze- mos algumas para participar com a gente, em alguns desfiles que promovemos como, por exemplo, a Feira Mineira da Beleza. Teve a Primeira Feira Étnica de Belo Horizonte e eu trouxe meninas que participaram com a gente nesses desfiles nas escolas. Também teve aqui a Feira da Lagoinha e a gente trouxe as garotas e os garotos para partici- parem também. E as meninas ficam muito contentes, muito felizes. Porque são meni- nas, assim, às vezes meninas carentes que nunca participaram de um desfile e a gente faz um trabalho com elas, aqui, no salão. A gente passa pra elas o que a gente pode passar... dentro do que a gente pode passar pra elas e elas vão pra passarela. (D. 46 anos, cabeleireira étnica) Por isso, engana-se quem pensar que os jovens e adolescentes negros encontram-se sozinhos nesse denso e tenso processo de ressignificação da identidade negra, por meio do corpo e do cabelo, quando a escola não se abre para esse trabalho. Os espaços educativos não-escolares desempenham um papel impor- tante nesse processo. Muitas vezes, esses locais não são percebidos como afirmativos e signifi- cativos por aqueles que a eles não têm acesso. No caso da pesquisa aqui relatada, os salões de beleza étnicos apresentam-se como alguns desses espaços educativos não-escolares. Os salões étnicos apresentam, no seu interior e na sua constituição, todas as tensões e ambigüidades que envolvem a construção da identidade negra no Brasil. Porém, não é só isso. Eles se destacam como espaços de resis- tência. Revelam-se como algo muito além de microempresas ou lugares de “embranquecimento”, como julgam algumas pessoas. Eles são espa- ços da comunidade negra. As pessoas que por ali circulam e as que ali trabalham enfrentam, cotidianamente, o desafio de “lidar” com as questões concernentes à construção da identi- dade negra. Nesses espaços, a identidade negra, enquanto processo, é problematizada, discuti- da, afirmada, negada, encoberta, rejeitada, acei- ta, ressignificada e recriada. Tudo isso aconte- ce ao mesmo tempo e, nesse sentido, os salões étnicos nos colocam no cerne das tensões e também das possibilidades de recriação vividas por homens, mulheres, crianças, adolescentes, jovens e adultos negros. E.: E isso foi passado, assim, não só na fa- mília mas também na escola, com os ami- gos. Às vezes eu pensava: “Aquela ali tem o cabelo assim e tal! Então eu não vou ficar com ela porque o meu filho vai sair de ca- belo duro...”. E às vezes casais negros di- zem: “Vou optar por não ter filho, porque eu não quero que os meus filhos sofram o mesmo preconceito que eu já senti”. Então essa maturidade de que eu falo, eu venho adquirindo com o passar do tempo. Vendo, 180 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de... estudando, vendo que não é por aí, que eu tenho a minha identidade e eu, sabendo trabalhar, ela é uma coisa muito forte e marcante! Por isso que eu disse: hoje eu sei o meu espaço dentro da sociedade. E aprendi isso dentro do salão D. Cabeleirei- ros, isso me ajudou muito também, porque eu vou lá não é só para cortar o cabelo. Não é só pra mudar o estilo! Mas para gente ter um bate-papo também falando a esse res- peito, falando a respeito do negro, porque sempre que a gente chega lá ela tem um assunto diferente pra tratar, uma curiosida- de... E dentro disso tudo eu passei a pes- quisar a cultura africana, também, porque eu faço um trabalho de contador de histórias... (E. 30 anos, relações-públicas) Como já foi salientado anteriormente, esse papel de problematização, reconstrução e discussão sobre a identidade negra também deveria ser feito pela escola. Porém, muitas vezes, enquanto uma instituição formadora, contraditoriamente, a escola apresenta-se me- nos eficaz e menos sensível diante desse pro- cesso. Conclusão O estudo sobre as representações do corpo negro no cotidiano escolar poderá ser uma contribuição não só para o desvelamento do preconceito e da discriminação racial na escola como, também, poderá nos ajudar a construir estratégias pedagógicas alternativas que nos possibilitem compreender a importân- cia do corpo na construção da identidade ét- nico-racial de alunos, professores negros, mes- tiços e brancos e como esses fatores interferem nas relações estabelecidas entre esses diferen- tes sujeitos no ambiente escolar. Na escola, não só aprendemos, mas também reproduzimos representações sobre o cabelo crespo e o cor- po negro. Quais serão essas representações? Em que momentos aparecem e como elas apa- recem? Como os sujeitos negros e brancos vi- vem esses processos dentro e fora da escola? Como tais representações se manifestam no currículo? Muitas vezes, esses processos delica- dos e tensos passam despercebidos pela esco- la, pelos profissionais da educação, e não cons- tituem motivo de debates e estudos nos nossos cursos de formação de professores. O estudo sobre o corpo e o cabelo como ícones da identidade negra presentes nos processos educativos escolares e não-escolares poderá nos apontar outros caminhos além da denúncia da reprodução de preconceitos e estereótipos. Ver a manipulação do cabelo do negro e da negra como continuidade de ele- mentos culturais africanos ressignificados no Brasil poderá nos pôr em contato com a histó- ria, memória e herança cultural africana presen- te na formação cultural afro-brasileira. Penso que tais estudos poderão e de- verão fazer parte dos processos de formação de professores. A sua incorporação nos currículos e nos processos pedagógicos de formação docente faz parte de lutas e reivindicações históricas do movimento negro brasileiro que há anos tem demandado o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nos currícu- los escolares. Atualmente, essa demanda já foi trans- formada em lei, a Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que altera a Lei 9394/96 (Lei de Di- retrizes e Bases da Educação Nacional). Essa nova lei inclui no currículo oficial dos estabe- lecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e particulares, a obrigatoriedade do ensino da “história e cultura afro-brasileira”. O primeiro parágrafo do artigo 26 da nova lei explicita que o conteúdo programático a ser desenvolvido pelas escolas no cumpri- mento da mesma deverá incluir o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação nacional, resgatando sua contribuição nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil. Esse é mais um desafio proposto não só para os professores, mas também para os centros 181Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003 de formação de professores. O que sabemos so- bre história e cultura afro-brasileira? O que sabe- mos sobre história da África? Como não reproduzir leituras e discussões estereotipadas sobre o negro e sua cultura? Que temas deveremos privilegiar dentro do vasto campo de estudo sobre a cultu- ra afro-brasileira? São questionamentos novos que os docentes e os cursos de formação de profes- sores começarão a fazer. Entender a importância da simbologia do corpo negro, a manipulação do cabelo e dos penteados usados pelos negros de hoje como formas de recriação e ressignificação cultural daquelas construídas pelos negros da diáspora poderá ser um bom tema de estudo e debate dentro da discussão sobre história e cultura afro-brasileira. Mas, para isso, será pre- ciso que os educadores alterem suas lógicas escolares e conteudistas, dialoguem com ou- tras áreas, valorizem a produção cultural ne- gra constituída em outros espaços sociais e políticos. Será preciso também ouvir e aprender as estratégias, práticas e acúmulos construídos pelo movimento negro e pelos movimentos culturais negros. O campo da formação de pro- fessores deverá se abrir para dialogar com ou- tros espaços em que negros constroem suas identidades. Muitas vezes, serão espaços con- siderados pouco convencionais pelo campo da educação, como por exemplo, os salões étnicos. O atual contexto de implementação da Lei 10.639 é um momento propício para a in- trodução no campo da formação de professo- res, quer seja inicial ou em serviço, de estudos e leituras sobre a relação corpo, cultura e iden- tidade negra. O desafio está colocado. Resta agora entendermos que mais do que um de- safio, a discussão sobre raça negra e educação, nos seus múltiplos desdobramentos, é um de- ver dos educadores e educadoras e também daqueles responsáveis pela condução dos pro- cessos de formação docente. Referências bibliográficas APPLE, M. E. A presença ausente da raça nas reformas educacionais. In: CANEN, A.; MOREIRA, A. F. B. (Orgs.) Ênfases e omissões no currículo. São Paulo: Papirus, 2001. p.147-161. BRANDÃO, C. R. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1981. CANEN, A.; MOREIRA, A. F. B. Reflexões sobre o multiculturalismo na escola e na formação docente. In: ______ (Orgs.) Ênfases e omissões no currículo. São Paulo: Papirus, 2001. p.15-44. CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Trad. de Viviane Ribeiro. Bauru: Edusc, 1999. D’ADESKY, J. Racismos e anti-racismos no Brasil: pluralismo étnico e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. GOMES, N. L. Corpo e cabelo como ícones de construção da beleza e da identidade negra nos salões étnicos de Belo Horizonte. 2002. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. LOURO, G. L. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. MUNANGA, K. “Arte afro-brasileira” o que é, afinal? In: ASSOCIAÇÃO 500 ANOS BRASIL ARTES VISUAIS. Mostra do redescobrimento. Arte afro- brasileira. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2000. p. 98-111. QUEIROZ, R. S. (Org.) O corpo do brasileiro; estudos de estética e beleza. São Paulo: Senac, 2000. QUEIROZ, R. S.; OTTA, E. A beleza em foco: condicionantes culturais e psicológicos na definição da estética corporal. In: QUEIROZ, R. S. (Org.) O corpo do brasileiro; estudos de estética e beleza. São Paulo: Senac, 2000. p. 13-66. 182 Nilma Lino GOMES. Educação, identidade negra e formação de... RODRIGUES, J. C. O tabu do corpo. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986. VEIGA, C. G. Escola de alma branca: o direito biológico à educação no movimento da Escola Nova. Educação em Revista, Belo Horizonte, set., p.123-150, 2000. Edição especial. Recebido em 14.03.03 Aprovado em 13.05.03 Nilma Lino Gomes é doutora em Antropologia Social pela USP e professora-adjunta do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. O mito da democracia racial e as políticas públicas 1 5 2 O mito da democracia racial e as políticas públicas Texto de Laura R. P. Pamplona e Keila Deslandes Licenciatura em Pedagogia 1 Considerações sobre a história da Alfabetização PAMPLONA, Laura R. P; DESLANDES, Keila. Universidade Federal de Ouro Preto. In: DESLANDES, Keila (org.) Atos, Pactos e Impactos: Direitos Humanos e Gestão de Políticas Públicas. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015. 2 O mito da democracia racial e as políticas públicas Políticas afirmativas e a UFOP: Reflexões sobre o desafio das políticas de cotas na Universidade Federal de Ouro Preto. Laura Rodrigues Paim Pamplona1 Keila Deslandes2 Em uma sociedade onde as combinações relativas à propriedade privada, à organização familiar e à herança patrimonial e cultural se perpetuam, não é de se surpreender com a reprodução da desigualdade. Nesta perspectiva, ainda que a igualdade de direitos e de condições seja um importante combustível de ideologias e políticas, infelizmente, na realidade, é a desigualdade que se impõe. Para compreender esta reprodução é importante considerarmos as conjunturas das desigualdades de oportunidades e de resultados. Compreendendo as principais variáveis que, insistem em distribuir de forma desigual os recursos e as oportunidades, e identificando também como esta desigualdade afetas as pessoas socialmente diferentes. Tendo em vista isso, devemos lembrar que nossa sociedade brasileira foi constituída com fortes características políticas portuguesas tendo seu poder centralizado, patrimonial e com uma estrutura rigidamente estratificada. Portanto, não é de se espantar quando confirmamos que as políticas públicas promovidas pelo Estado e seus governantes, ao longo da nossa história, tenham sido políticas de privilegiamento de uma pequena elite e desconsiderando os demais setores da sociedade. Entretanto, muitos avanços, embora em passos lentos, vêm se tornando realidade. Uma importante mudança é a que trouxe a nossa Constituição 1 Técnica Administrativo Educacional do Instituto Federal do Sul de Minas Gerais (IFSULDEMINAS). Mestranda em Educação na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É formada em Licenciatura em História, possuindo pós graduação em Teorias e Métodos de Pesquisa em Educação e Gestão de Políticas Públicas em Relações Étnico Raciais e Gênero, todas pela UFOP. Vice-coordenadora do Núcleo de Atenção às Pessoas com Necessidades Especiais (NAPNE) do câmpus Passos do IFSULDEMINAS. 2 Professora Associada 3, no Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerias (UFMG), Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Paris - 7, com Pós-Doutorado em Psicologia Política pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordenadora do Programa de Educação para Diversidade, da UFOP. O mito da democracia racial e as políticas públicas 3 contemporânea. Considerada a constituição cidadã, uma vez que a mesma representa os interesses da sociedade civil e dos movimentos populares, como: sindicais, das mulheres, negros, pessoas com necessidades específicas, etc., nossa atual Carta Magna vem refletindo nossos anseios e momentos culturais. Modelando, portanto, um Estado mais democrático, e buscando garantir a igualdade e as liberdades formais. Além de uma Constituição que defende um Estado Democrático de Direito, nosso país vive a era das políticas públicas. Esta era é o reflexo das lutas e das demandas das minorias sociais, subordinadas por aqueles que sempre se posicionaram como dominantes da sociedade. É sob tal ótica que, a psicossociologia vem defendendo que estes grupos são considerados “minorias” por terem sido silenciados durante décadas, e não por serem quantitativamente um grupo menor. Ou seja, são chamadas de minorias não por serem um grupo numérico minoritário, mas por não participarem ou por terem sido subjugados dentro das discussões dos direitos. Nesta lógica que Shirley Miranda (2010, p. 8) argumenta ainda que foi com a luta dos movimentos sociais que a visibilidade foi conferida aos processos de preconceitos e discriminações, abalando a estabilidade da diferença, apresentando uma nova chave de análise: a diversidade. Esta luta por visibilidade e pela busca de acesso aos direitos de forma equitativa que expuseram a falsa ideia de democracia racial. Apontando que nosso país não proporcionava condições de igualdade aos seus cidadãos. Pelo contrário, que, na prática, sua população poderia ser considerada ou não cidadã conforme seu fenótipo e seu patrimônio, sendo ele cultural ou financeiro. É neste contexto de diversidade e de ausência de garantia de direitos que políticas públicas vêm sendo propostas. Trata-se de ações que buscam reparar, transformar, proteger e garantir meios de igualdade de condições de acesso aos seus interesses. Desta forma, podemos compreender por políticas públicas as ações do Estado que visam o bem coletivo. Tais políticas são desenvolvidas através da tradução de suas propostas em programas e ações que produzirão mudanças reais, e que embora também possuam efeitos imediatos, são políticas de longo prazo. Algumas políticas estão sendo implementadas de forma simples, outras, no entanto tem encontrado obstáculos. São transtornos como a discussão, acalorada em 4 O mito da democracia racial e as políticas públicas alguns momentos, sobre a efetividade e a “justiça” das políticas afirmativas. O debate tem movimentado e caracterizado os movimentos sociais e ideólogos, em uma constante luta entre defensores e opositores de tais políticas. Apesar destas discussões já ocorrerem há tempos, foi a partir de 2007 que o debate sobre as cotas dentro da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP se fortaleceu. Iniciando-se com isso, uma forte discussão e estudo sobre a viabilidade ou não da UFOP fazer uso do sistema de cotas, já utilizado em outras Instituições de Ensino Federal – IEF. Tal debate foi necessário já que com a expansão das vagas e formas de acesso às universidades federais, promovidas pelo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI, questões como políticas de cotas raciais e sociais estavam pipocando em todo o território nacional. Mesmo após as discussões e debates estabelecidos, a Universidade Federal de Ouro Preto manteve-se fora do debate e do programa de cotas para negros/pardos, colocando em sua política de ingresso apenas o acesso por cotas sociais, comprovadas pelo diploma escolar. Quando se posicionou favorável apenas às políticas afirmativas sociais tal universidade negou ou ignorou que cotas sociais são distintas de cotas raciais, atendendo públicos que, talvez tenham condições de minorias acumuladas, mas que não devemos hierarquizar ou sobrepor necessidades. Ao escolher esta alternativa, a UFOP se manteve na linha defensiva de uma discussão calorosa entre a sociedade, o governo e organizações que lutam pelos direitos dos(as) negros(as)3. Para melhor entender o que e a quem a Universidade Federal de Ouro Preto negou é válido refletirmos sobre questões mais profundas que atingem nossa sociedade, como a construção e manutenção do mito da democracia racial e a história das políticas de privilegiamento. 3 Para uma leitura mais dinâmica, utilizaremos, a partir deste momento as regras linguísticas convencionais, utilizando-se do gênero masculino como gênero neutro. O mito da democracia racial e as políticas públicas 5 2.1 – A CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DO MITO DA DEMOCRACIA RACIAL Podemos pensar em diversas teorias sobre o racismo. Uma que pensa nele como um produto do cientificismo classificatório do século XIX e da hierarquização biológica, e outra que defende o racismo como variação de uma disposição inerente aos humanos. Há ainda uma terceira posição que argumenta ser o racismo um fenômeno da modernidade, construído a partir da laicização, classificando o outro através da aparência e hierarquização dos grupos, como sendo algo natural. Foi buscando justificativa para o tráfico de escravos e da escravização nas Américas, que o conceito de raça começou a ser associada ao negro, e a inferioridade da condição escrava passa a ser construída como uma condição essencial dos negros. A escravidão, neste momento, passou a encontrar justificativa na inferioridade da raça, dada pela cor, associação moral e capacidade intelectual dos negros. É importante destacar que até a colonização das Américas, a escravidão não estava associada a um grupo específico, mas ao direito da guerra. Com o fim da escravidão no Brasil, pela Lei Imperial n.º 3.353, de 13 de maio de 1888, milhares de negros e negras passaram a ocupar cenários em que antes eram apenas transeuntes. Entretanto, nenhum projeto político e social foi apresentado, sendo ofertado a estes apenas o direito de serem livres, mas nenhuma condição digna. Aos escravos, portanto, não foi dada oportunidade, reparação ou incentivos de inserção, sendo preteridos em relação aos europeus, tendo como único projeto, em relação aos mesmos, a busca do embranquecimento populacional. Por meio da miscigenação, entre brancos, negros e índios, ganham força teorias como a de degeneração das raças, hierarquizando as diversidades fenotípicas também. Nas teorias raciais da época, a hierarquização da humanidade foi explicada pela degradação ou degeneração da raça negra, sendo fruto do cruzamento entre brancos com macacos. Assim, as teorias de construção de raça pensavam na combinação de elementos trazidos de cada raça, ou na predominância de uma sobre as outras. Com a política de embranquecimento surge a figura do mestiço, e posteriormente a ideia da democracia racial, já que o país não viveu períodos de preconceitos exacerbados como os Estados Unidos e África do Sul. 6 O mito da democracia racial e as políticas públicas Não obstante, pensarmos em igualdade tem que citar a democracia racial. No Brasil temos a explicação de sua formação com base nas três raças: negra, branca e indígena. Um dos pioneiros a defender a compreensão da nossa sociedade com base nestas três raças foi o viajante Carl Friedrich Philipp von Martius (1845), no seu artigo Como se deve escrever a história do Brasil. Em Casa-Grande & Senzala, publicado originalmente em 1934, Gilberto Freyre defendia uma perspectiva positiva da relação entre negros, brancos e indígenas, apresentando o país como um exemplo de tolerância e convivência pacífica. O autor David Lehmann argumenta que A oposição de Freyre a ideias de superioridade racial ou a conceitos relativos aos efeitos degenerativos da mistura racial coexistia com seu apego á continuidade cultural e as condições desejáveis de que uma sociedade permanecesse em sintonia com a herança do passado. (2008, p. 378) Muitos críticos, no entanto, o definiram, mais tarde, possuidor de um olhar como sendo o de um senhor de escravos vendo sua fazenda da varanda. Já no pós 2ª Guerra Mundial, com os traumas gerados pela segregação, o Brasil se torna alvo de estudos, buscando a compreensão de sua democracia racial. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, de Florestan Fernandes (1955), denuncia que o preconceito é algo deliberado pelas classes dominantes, almejando uma continuidade à ordem racial, já proibida juridicamente. Este sociólogo chama a atenção para a característica brasileira de ter preconceito em ter preconceito, sendo a ideologia da democracia racial um forte instrumento de mascarar a realidade. Neste contexto, estávamos em meio a um paradoxo: de um lado, representações e pesquisas que confirmavam o imaginário de democracia racial, reconhecendo as desigualdades de classe, porém negando a existência de preconceitos raciais. De outro, a relutância em aceitar a representação do Brasil como um país não branco e o desconforto com a presença de negros e mestiços, dando margem à proposição de medidas segregacionistas como solução para aqueles (as) que viam nessa diversidade um problema. Atualmente, o termo raça não é mais defendido pela biologia, mas continua carregado de construção ideológica, fazendo desta concepção sombra sobre a O mito da democracia racial e as políticas públicas 7 relação de poder e de dominação. Nesta lógica, a melhor definição é a que o autor Munanga defende que em relação ao conceito de raça, segundo o autor “o conceito de raça, tal como o empregamos hoje, nada tem de biológico. É um conceito carregado de ideologia, pois como todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação. ” (2003, p. 27). É nesta perspectiva que consideraremos o termo raça, pois este está indissociável da lógica do racismo. Percebemos que ainda que o mito da democracia racial tenha sido derrubado, este ainda vigora como discurso político, sobrevivendo com relativa eficiência. Nesta perspectiva, percebemos que o Brasil ainda está imerso em um racismo específico, o “racismo cordial”, manifestado em espaços privados, mas com consequências no público e com reproduções das desigualdades entre negros e brancos. Percebemos por fim que, como argumenta Antônio Guimarães . Morta a democracia racial, ela continua viva enquanto mito, seja no sentido de falsa ideologia, seja no sentido ideal que orienta a ação concreta dos atores sociais, seja como chave interpretativa da cultura, seja como fato histórico. Enquanto mito continuará viva ainda por muito tempo como representação do que, no Brasil, são as relações entre negros e brancos, ou melhor, entre as raças sociais – as cores – que compõem a nação. (2002, p. 168) Atualmente, outras formas de discriminação e exclusão estão sendo acrescentadas. Sistemas como hierarquização social, sexismo, gênero e raça apresentam elementos de desigualdade e exclusão, sendo que a única política aceita é a definidora de meios que busquem a minimização destas práticas. É importante, portanto, sermos um país com crescimento equitativo e sustentável, buscando o desenvolvimento das pessoas, para as pessoas e pelas pessoas, aumentando as oportunidades, proporcionando crescimentos econômicos, e alargando a parcela de atuação, findando-se, ou minimizando, as máscaras das diferenças sociais. Nesta conjuntura, devemos compreender como e para quais parcelas populacionais foram dirigidas as políticas públicas ao longo da história nacional. 8 O mito da democracia racial e as políticas públicas 2.2 – DAS POLÍTICAS DE PRIVILÉGIO ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS Sérgio Buarque de Holanda (1995), em Raízes do Brasil, argumenta que durante nosso período colonial fomos marcados por uma presença forte do Estado na produção e no controle da sociedade. Somos, portanto, herdeiros de uma colônia de exploração, sujeita a um Pacto Colonial, com uma estruturação patrimonial, orbitando em torno da figura do senhor e com um modo de produção escravocrata. Sendo que nossos pobres eram definidos conforme raça, etnia, gênero e localização. Tal formação refletiu em nossas políticas futuras, desenvolvendo planejamentos que centrassem em torno de políticas econômicas neoliberais, acreditando que por meio destas as demais necessidades do país seriam sanadas. Não obstante, o que se percebeu ao longo das políticas dos presidenciáveis foram políticas relegadas a poucos e a exclusão de muitos. Desta forma, as minorias oprimidas foram se unificando e fortalecendo-se, conforme a batuta do Estado. Shirley Miranda aponta que No Brasil, no contexto da década de 1980, a luta pela ampliação da participação política abriu espaço para a demanda por relações igualitárias e pelo direito à diferença. Através de uma nova prática coletiva, os movimentos sociais demonstraram que é no interior da sociedade que a política se faz, e quebraram a representação que via no Estado o início, o meio e o fim da política. (2010, p. 9) Com a eleição de Fernando Collor em 1990, o país adotou uma postura neoliberal, compreendendo que o país necessitava abrir seus mercados de capitais e produtos, reduzindo o tamanho do Estado. Com desmandos autoritários e corrupções excessivas, e após uma forte mobilização popular, Collor renunciou o poder, na busca de não ter seus direitos políticos cassados. O mineiro Itamar Franco assumiu o poder diminuindo o ímpeto neoliberal, mas mantendo a agenda de privatizações. Esta foi acentuada nos governos de Fernando Henrique Cardoso, quando o Estado priorizou o mercado, reduzindo o tamanho e o papel do Estado, relegando ao terceiro setor a incumbência de desenvolver políticas sociais. O movimento popular respondeu a estas falhas elegendo, em 2002, Luís Inácio Lula da Silva, que visou uma política externa, e pautando sua agenda no desenvolvimento econômico, as dimensões sociais e políticas públicas. O mito da democracia racial e as políticas públicas 9 O que comprovamos é que Luiz Antônio Cunha foi feliz quando argumentou que “a educação escolar brasileira é herdeira direta do sistema discriminatório da sociedade escravagista sob dominação imperial” (2009, p. 31) Isso porque, segundo ele, a educação brasileira foi cunhada para ter um ensino superior voltado para a formação das elites, permanecendo o restante da população sem acesso. Nesta perspectiva, é importante pensarmos nas políticas que o Estado deve desenvolver, buscando findar com o ciclo da exclusividade das universidades federais para uma quantitativa minoria dominante. Foi seguindo tais objetivos que os pressionamentos dos movimentos sociais, apontando as desigualdades e as exclusões, chocaram-se diretamente com a política liberal, que colocou o Governo em uma posição de neutralidade nos debates. Segundo Miranda “Nessa conjugação estabelecida pelos movimentos sociais, a passagem do reconhecimento da carência para a formulação da reivindicação é mediada pela afirmação de um direito, traduzindo a agenda de debates e políticas públicas. ” (2010, p. 11). Assim, o governo passa a ter sob seu controle as políticas afirmativas enquanto políticas públicas. É importante destacar que as demandas da sociedade civil foram estabelecidas e lutadas pelas próprias, ao longo da formação de nossa sociedade brasileira, organizando-se em torno de questões urgentes e fundamentalmente urbanas, como moradia, educação, saúde, saneamento, transporte etc., sendo atravessadas por novos paradigmas como gênero, raça, etnia e outras pautas. Buscavam um projeto de transformação da sociedade de forma democrática. Estes movimentos configuram uma esfera distinta dos partidos e do Estado, propondo a dinamização dos valores positivos e da solidariedade. Tais organizações se transformaram em parceiras confiáveis, mas ainda representando interesses próprios e específicos. Com um governo populista de Luiz Inácio Lula da Silva algumas modificações passaram a ser empreendidas, como a criação do Programa Universidade para Todos (PROUNI) de 2004, quando o governo federal passou a oferecer
Compartilhar