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31/08/2021 1 Por princípio, entendam-se os ditames superiores, fundantes e simultaneamente informadores do conjunto de regras do Direito Positivo. Pairam, pois, por sobre toda a legislação, dando-lhe significado legitimador e validade jurídica. A respeito deles, discorre o jusfilósofo WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO: “Princípios, por sua vez, encontram-se em um nível superior de abstração, sendo igual e hierarquicamente superiores, dentro da compreensão do ordenamento jurídico como uma ‘pirâmide normativa’ (Stufenbau), e se eles não permitem uma subsunção direta de fatos, isso se dá indiretamente, colocando regras sob o seu ‘raio de abrangência’ 31/08/2021 2 E essa alteração no trato ideológico do Direito Civil fora muito bem sentida por LUIZ EDSON FACHIN: “Da eliminação e das fronteiras arquitetadas pelo sistema privado clássico abre-se o Direito Civil contemporâneo. Do estágio de direitos absolutos, individualistas e perpétuos, migra para a sua conformação contemporânea, o modelo de família num reconhecimento plural de entidades familiares, do contrato e da propriedade funcionalizados, mudanças que repercutem nos direitos e deveres que os diversos sujeitos apresentam” Temos, portanto: a) o princípio da autonomia da vontade ou do consensualismo; b) o princípio da força obrigatória do contrato; c) o princípio da relatividade subjetiva dos efeitos do contrato; d) o princípio da função social do contrato; e) o princípio da boa-fé objetiva; f) o princípio da equivalência material. 31/08/2021 3 Princípio da autonomia da vontade ou do consensualismo Não se pode falar em contrato sem autonomia da vontade. E, por isso, o princípio da autonomia da vontade (ou do consensualismo) deve ser sempre visto como o primeiro princípio contratual específico. Mesmo em um sistema como o nosso, que toma por princípio maior a função social do contrato, este não poderá, obviamente, ser distendido a ponto de neutralizar a livre-iniciativa das partes, consoante bem advertiu o insuperável Professor ARRUDA ALVIM: “Parece, portanto, que a função social vem fundamentalmente consagrada na lei, nesses preceitos e em outros, mas não é, nem pode ser entendida como destrutiva da figura do contrato, dado que, então, aquilo que seria um valor, um objetivo de grande significação (função social), destruiria o próprio instituto do contrato” 31/08/2021 4 Essa liberdade de contratar, por sua vez, manifesta-se no plano pessoal, ou seja, na liberdade de escolher a pessoa com a qual contratar. Nota-se, com isso, que, com o advento do liberalismo, mormente após a propagação das ideias iluministas, esse importante princípio ganhou ainda mais visibilidade. A autonomia da vontade, nessa linha, vista no plano da bilateralidade do contrato, pode ser expressa pelo denominado consensualismo270: o encontro das vontades livres e contrapostas faz surgir o consentimento, pedra fundamental do negócio jurídico contratual. Nota-se, por conseguinte, de todo o exposto, que a autonomia da vontade e o consensualismo permanecem como base da noção de contrato, embora limitados e condicionados por normas de ordem pública em benefício do bem-estar comum. 31/08/2021 5 Princípio da força obrigatória do contrato O princípio da força obrigatória, denominado classicamente pacta sunt servanda, traduz a natural cogência que deve emanar do contrato, a fim de que se lhe possa reconhecer utilidade econômica e social. De nada valeria o negócio, se o acordo firmado entre os contraentes não tivesse força obrigatória. Seria mero protocolo de intenções, sem validade jurídica. Segundo ORLANDO GOM ES , “o princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes. Celebrado que seja, com a observância de todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos”. E arremata o ilustre civilista baiano: “Essa força obrigatória, atribuída pela lei aos contratos, é a pedra angular da segurança do comércio jurídico”275. Nessa linha, uma vez configurados os pressupostos da teoria, a parte lesada poderá ingressar em juízo pleiteando a revisão ou a resolução do contrato. Com isso, podemos facilmente perceber como o pacta sunt servanda, nos dias que correm, tornou-se visivelmente menos rígido, da mesma forma como vislumbramos no princípio da autonomia da vontade ou do consensualismo. 31/08/2021 6 Princípio da relatividade subjetiva dos efeitos do contrato Regra geral, os contratos só geram efeitos entre as próprias partes contratantes, razão por que se pode afirmar que a sua oponibilidade não é absoluta ou erga omnes, mas, tão somente, relativa. Como negócio jurídico, em que há a manifestação espontânea da vontade para assumir livremente obrigações, as disposições do contrato, a priori, somente interessam às partes, não dizendo respeito a terceiros estranhos à relação jurídica obrigacional. Assim, o contrato celebrado entre Caio e Tício não pode, em princípio, afetar Florisvaldo. Todavia, existem figuras jurídicas que podem excepcionar esta regra. É o caso, por exemplo, da estipulação em favor de terceiro e do contrato com pessoa a declarar. 31/08/2021 7 Como visto, tudo aquilo que, outrora, era tido como princípio do Direito Privado, referente a contratos, tem se flexibilizado em função de outros interesses, não necessariamente limitados às partes contratantes, o que nos parece uma consequência evidente do macroprincípio constitucional da dignidade da pessoa humana, bem como daquilo que PAULO LUIZ NETTO LÔBO chama de “princípios sociais dos contratos”277. Feitas tais considerações, passaremos a estudar justamente tais princípios sociais, a saber, os princípios da função social do contrato, da equivalência material e da boa-fé objetiva. 31/08/2021 8 Princípio da função social do contrato A socialização do contrato não é ideia nova. A partir do momento em que o Estado passou a adotar uma postura mais intervencionista, abandonando o ultrapassado papel de mero espectador da ambiência econômica, a função social do contrato ganhou contornos mais específicos. O contrato é figura que acompanha as mudanças de matizes da propriedade, experimentando inegável interferência deste direito. HUM BERTO THEODORO JR., citando o professor curitibano PAULO NALIN, na busca por delimitar as suas bases de intelecção, lembra-nos, com acerto, que a função social manifestar-se-ia em dois níveis: a) intrínseco — o contrato visto como relação jurídica entre as partes negociais, impondo-se o respeito à lealdade negocial e à boa-fé objetiva, buscando-se uma equivalência material entre os contratantes; b) extrínseco — o contrato em face da coletividade, ou seja, visto sob o aspecto de seu impacto eficacial na sociedade em que fora celebrado. 31/08/2021 9 E nessa perspectiva temos que a relação contratual deverá compreender os deveres jurídicos gerais e de cunho patrimonial (de dar, fazer, ou não fazer), bem como deverão ser levados em conta os deveres anexos ou colaterais que derivam desse esforço socializante. Com isso, obrigações até então esquecidas pelo individualismo cego da concepção clássica de contrato ressurgem gloriosamente, a exemplo dos deveres de informação, confidencialidade, assistência, lealdade etc. E todo esse sistema é, sem sombra de dúvida, informado pelo princípio maior de proteção da dignidade da pessoa humana. Para nós, a função social do contrato é, antes de tudo, um princípio jurídico de conteúdo indeterminado, que se compreende na medida em que lhe reconhecemos o precípuo efeito de impor limites à liberdade de contratar, em prol do bem comum. 31/08/2021 10 Princípio da equivalência material Desenvolvido por PAULO LUIZ NETTO LÔBO, “o princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual,seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis.” Entretanto, diferentemente do mencionado autor, preferimos, por razões didáticas e metodológicas, tratar desse princípio como um subproduto normativo do princípio maior, senão axial, da função social do contrato, haja vista que, sem dúvida, no campo de abrangência deste último, encontra-se subsumido. (Pablo Stolze) De fato, somente se poderá atingir o tão almejado solidarismo social, em fina sintonia com a proteção da dignidade da pessoa humana, se o contrato buscar, de fato, o equilíbrio entre as prestações das partes pactuantes, evitando-se, assim, o abuso do poder econômico e a tirania — já anacrônica — do vetusto pacta sunt servanda. 31/08/2021 11 Princípio da boa-fé Podemos observar que a boa-fé é, antes de tudo, uma diretriz principiológica de fundo ético e espectro eficacial jurídico. Vale dizer, a boa-fé se traduz em um princípio de substrato moral, que ganhou contornos e matiz de natureza jurídica cogente. Contextualizando esse importante princípio em nossa ordem constitucional, PAULO ROBERTO NALIN pondera: “... tendo o homem como centro necessário das atenções, oportuno de indagar da possibilidade de localização da boa-fé enquanto princípio geral do Direito, no sistema constitucional, assim como os demais princípios então ditos fundamentais inclusos na Carta, como o da dignidade do ser humano, a vida, a integridade física, a liberdade, a propriedade privada, a livre manifestação do pensamento, a intimidade e vida privada etc.”296. Delimitação conceitual Antes de aprofundarmos os contornos deste importantíssimo princípio, faz-se necessário que estabeleçamos uma diagnose diferencial entre a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva. Esta última consiste em uma situação psicológica, um estado de ânimo ou de espírito do agente que realiza determinado ato ou vivencia dada situação, sem ter ciência do vício que a inquina. Distingue-se, portanto, da boa-fé objetiva, a qual, tendo natureza de princípio jurídico — delineado em um conceito jurídico indeterminado —, consiste em uma verdadeira regra de comportamento, de fundo ético e exigibilidade jurídica. 31/08/2021 12 BRUNO LEWICKI pontifica que a concepção de boa-fé (subjetiva), “ligada ao voluntarismo e ao individualismo que informam o nosso Código Civil, é insuficiente perante as novas exigências criadas pela sociedade moderna. Para além de uma análise de uma possível má-fé subjetiva no agir, investigação eivada de dificuldades e incertezas, faz-se necessária a consideração de um patamar geral de atuação, atribuível ao homem médio, que pode ser resumido no seguinte questionamento: de que maneira agiria o bonus pater familiae, ao deparar-se com a situação em apreço? Quais seriam as suas expectativas e as suas atitudes, tendo em vista a valoração jurídica, histórica e cultural do seu tempo e de sua comunidade?”297. A resposta a estas últimas indagações, portanto, encontra-se na definição da boa-fé objetiva, que, conforme já vimos, consiste em um princípio vinculado a uma imprescindível regra de comportamento, umbilicalmente ligada à eticidade que se espera seja observada em nossa ordem social. Ladeando, pois, esse dever jurídico principal, a boa-fé objetiva impõe também a observância de deveres jurídicos anexos ou de proteção, não menos relevantes, a exemplo dos deveres de lealdade e confiança, assistência, confidencialidade ou sigilo, informação etc. 31/08/2021 13 Tais deveres — é importante registrar — são impostos tanto ao sujeito ativo quanto ao sujeito passivo da relação jurídica obrigacional, pois referem-se, em verdade, à exata satisfação dos interesses envolvidos na obrigação assumida, por força da boa-fé contratual. 31/08/2021 14 Faz-se necessário que estabeleçamos uma diagnose diferencial entre a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva. Esta última consiste em uma situação psicológica, um estado de ânimo ou de espírito do agente que realiza determinado ato ou vivencia dada situação, sem ter ciência do vício que a inquina. Em geral, esse estado subjetivo deriva do reconhecimento da ignorância do agente a respeito de determinada circunstância, como ocorre na hipótese do possuidor de boa-fé que desconhece o vício que macula a sua posse. Nesse caso, o próprio legislador, em vários dispositivos, cuida de ampará-lo, não fazendo o mesmo, outrossim, quanto ao possuidor de má-fé (arts. 1.214, 1.216, 1.217, 1.218, 1.219, 1.220, 1.242, do CC/2002). Distingue-se, portanto, da boa-fé objetiva, a qual, tendo natureza de princípio jurídico — delineado em um conceito jurídico indeterminado —, consiste em uma verdadeira regra de comportamento, de fundo ético e exigibilidade jurídica. 31/08/2021 15 E mais adiante complementa: “O Direito obriga, então, a que, nessas circunstâncias, as pessoas não se desviem dos propósitos que, em ponderação social, emerjam da situação em que se achem colocadas: não devem assumir comportamentos que a contradigam — deveres de lealdade — nem calar ou falsear a actividade intelectual externa que informa a convivência humana — deveres de informação. Embora as estrutura e teleologia básicas sejam as mesmas, adivinha-se a presença de concretizações diversas, consoante os fatos que lhes deem origem”299. 31/08/2021 16 Compreendida a noção da boa-fé objetiva em matéria contratual, a sua aplicação pragmática gera importantes efeitos, nos mais diferentes campos. Tais repercussões práticas podem ser sistematizadas em algumas locuções de uso corrente no dia a dia das lides forenses, consistentes em figuras parcelares, expressão que deve ser entendida como argumentações usuais para decisões com fundamentação tópica. Como bem observa LUCIANO DE CAMARGO PENTEADO: “A boa-fé, segundo a insuperável classificação feita por Menezes Cordeiro ao tratar do exercício inadmissível das posições jurídicas, apresentaria oito figuras parcelares, ou seja, tipos de argumentos recorrentes com vistas a sua aplicação tópica. Entre eles estariam o venire contra factum proprium, o tu quoque, a exceptio doli, desdobrada em exceptio doli generalis e exceptio doli specialis, a inalegabilidade das nulidades formais, o desequilíbrio no exercício jurídico, a supressio e a surrectio. Sendo figuras parcelares de uma cláusula geral e não noções próprias de uma definição conceitual, é preciso desde já salientar que, em sua aplicação, não é necessário que todos os pressupostos estejam presentes, havendo a possibilidade de se julgar, não em termos de tudo ou nada, mas em termos de um mais e de um menos. Do mesmo modo, determinada situação jurídica pode ser reconduzida a mais de uma das figuras parcelares da boa-fé, porque estas gozam de certa plasticidade. Todas, entretanto, resultam da incidência do CC 422, em matéria de contratos e de direito das obrigações. São tipos em torno dos quais é possível agrupar os casos que tratem do tema da boa-fé objetiva. Como tipos, permitem esta qualificação móvel” 31/08/2021 17 Tais figuras parcelares, também chamadas de “função reativa” ou de subprincípios da boa- fé objetiva, consistem em verdadeiros desdobramentos da boa-fé objetiva, de relevantíssima utilização, independentemente da denominação utilizada. Assim, ousando ressistematizar, para meros efeitos didáticos no nosso sistema normativo, a classificação do grande professor português, apresentamos, a seguir, aqueles que consideramos os principais efeitos do desdobramento do princípio da boa-fé objetiva311. Venire contra factum proprium A primeira repercussão pragmática da aplicação do princípio da boa-fé objetiva reside na consagração da vedação do comportamento contraditório. Na tradução literal, venire contra factum proprium significa vir contra um fato próprio. Ou seja, não é razoável admitir-se que uma pessoa pratique determinado ato ou conjunto de atos e, em seguida, realize conduta diametralmente oposta. Parte-se da premissade que os contratantes, por consequência lógica da confiança depositada, devem agir de forma coerente, segundo a expectativa gerada por seus comportamentos. 31/08/2021 18 Bom exemplo deriva do art. 330 do Código Civil, em que o credor, que aceitou, durante a execução de pacto de trato sucessivo, o pagamento em lugar diverso do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato, para alegar descumprimento. A ideia, inclusive, pode ser desdobrada para o tempo do cumprimento do contrato, em que a tolerância habitual de determinado atraso, sem oposição, impede a cobrança de sanção pela mora do período. Supressio A expressão supressio também é um importante desdobramento da boa-fé objetiva. Decorrente da expressão alemã Verwirkung312, consiste na perda (supressão) de um direito pela falta de seu exercício por razoável lapso temporal. Trata-se de instituto distinto da prescrição, que se refere à perda da própria pretensão. Na figura da supressio, o que há é, metaforicamente, um “silêncio ensurdecedor”, ou seja, um comportamento omissivo tal, para o exercício de um direito, que o movimentar-se posterior soa incompatível com as legítimas expectativas até então geradas. 31/08/2021 19 Assim, na tutela da confiança, um direito não exercido durante determinado período, por conta desta inatividade, perderia sua eficácia, não podendo mais ser exercitado. Nessa linha, à luz do princípio da boa-fé, o comportamento de um dos sujeitos geraria no outro a convicção de que o direito não seria mais exigido. O exemplo tradicional de supressio é o uso de área comum por condômino em regime de exclusividade por período de tempo considerável, que implica a supressão da pretensão de cobrança de aluguel pelo período de uso. Embora evidentemente próximo, há diferença da supressio para a prescrição, pois, enquanto esta subordina a pretensão apenas pela fluência do prazo, aquela depende da constatação de que o comportamento da parte não era mais aceitável, segundo o princípio da boa-fé. Da mesma forma, há evidente proximidade da supressio e do venire contra factum proprium, não sendo desarrazoado vislumbrá-los em uma relação de gênero (venire) e espécie (supressio). Todavia, vale destacar que a supressio se refere exclusivamente a um comportamento omissivo, ou seja, à não atuação da parte gerando a ineficácia do direito correspondente. 31/08/2021 20 Surrectio Costumamos afirmar, em sala de aula, que a surrectio é o outro lado da moeda da supressio. Com efeito, se, na figura da supressio, vislumbra-se a perda de um direito pela sua não atuação evidente, o instituto da surrectio se configura no surgimento de um direito exigível, como decorrência lógica do comportamento de uma das partes. O art. 330 do CC/2002 pode ser considerado um didático exemplo. De fato, se o credor aceitou, durante a execução do contrato, que o pagamento se desse em lugar diverso do convencionado, há tanto uma supressio do direito do credor de exigir o cumprimento do contrato quanto uma surrectio do devedor de exigir que o contrato seja, agora, cumprido no novo lugar tolerado. � Tu quoque � Tu quoque, Brutus, fili mi! � A célebre frase, historicamente atribuída a Júlio César, pela constatação da traição de seu filho Brutus, dá nome também a um dos mais comuns desdobramentos do princípio da boa-fé objetiva. � A aplicação do tu quoque se constata em situações em que se verifica um comportamento que, rompendo com o valor da confiança, surpreende uma das partes da relação negocial, colocando-a em situação de injusta desvantagem. 31/08/2021 21 Um bom exemplo é a previsão do art. 180 do CC/2002, que estabelece que o “menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior”. Outro bom exemplo desse desdobramento do princípio da boa-fé objetiva reside no instituto do exceptio non adimpleti contractus. S e a parte não executou a sua prestação no contrato sinalagmático, não poderá exigir da outra parte a contraprestação. Exceptio doli A “exceção dolosa”, conhecida como exceptio doli, consiste em um desdobramento da boa-fé objetiva, que visa a sancionar condutas em que o exercício do direito tenha sido realizado com o intuito, não de preservar legítimos interesses, mas, sim, de prejudicar a parte contrária. Uma aplicação deste desdobramento é o brocardo agit qui petit quod statim redditurus est, em que se verifica uma sanção à parte que age com o interesse de molestar a parte contrária e, portanto, pleiteando aquilo que deve ser restituído. 31/08/2021 22 É o exemplo, no direito positivo brasileiro, do art. 940 do CC/2002, que preceitua que aquele “que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição”. Outro exemplo de aplicação é a figura do assédio processual, consistente na utilização dos instrumentos processuais para simplesmente não cumprir a determinação judicial. Trata-se, nas palavras da magistrada M YLENE PEREIRA RAM OS , de situação processual de “procrastinação por uma das partes no andamento de processo, em qualquer uma de suas fases, negando-se a cumprir decisões judiciais, amparando-se ou não em norma processual, para interpor recursos, agravos, embargos, requerimentos de provas, petições despropositadas, procedendo de modo temerário e provocando incidentes manifestamente infundados, tudo objetivando obstaculizar a entrega da prestação jurisdicional à parte contrária” (63ª Vara do Trabalho de S ão Paulo, Processo 02784200406302004). Vale registrar, ainda, que a doutrina esmiúça a exceptio doli em exceptio doli generalis e exceptio doli specialis. 31/08/2021 23 Nesse ponto, observa LUCIANO DE CAMARGO PENTEADO: “ A exceptio doli specialis nada mais seria do que uma particularização da exceptio doli generalis referida a atos de caráter negocial e a atos dele decorrentes, quando o primeiro houvesse sido obtido com dolo. Assim, a generalis, como o próprio nome diz, é gênero e a outra espécie. A diferença específica encontra-se nos casos em que a fonte da que dimana o possível direito é um negócio jurídico e não qualquer outra fonte. O caráter excessivamente geral das duas figuras acaba por tornar sua aplicação perigosa em termos de segurança jurídica, valor que parece preservado pelas figuras anteriormente consideradas, na medida em que tem pressupostos concretos de verificação”313. Inalegabilidade das nulidades formais A inalegabilidade das nulidades formais é a aplicação da regra de que ninguém se deve valer da própria torpeza, como desdobramento do princípio da boa-fé objetiva. Consiste também em uma aplicação específica do venire contra factum proprium, vedando o comportamento contraditório em matéria de nulidade. Trata-se de um princípio amplamente abarcado na legislação brasileira, notadamente no campo processual, valendo lembrar, por exemplo, as regras do art. 276 do CPC-2015314 e do art. 796, b, da Consolidação das Leis do Trabalho315. 31/08/2021 24 Desequilíbrio no exercício jurídico A menção ao desequilíbrio no exercício jurídico é nada mais, nada menos, do que o reconhecimento da função delimitadora do exercício de direitos subjetivos, exercida pela boa-fé objetiva. Com efeito, o exercício desproporcional e, por isso, abusivo de direitos caracteriza um ato ilícito que não pode ser tolerado pelo ordenamento jurídico. Cláusula de Stoppel Finalmente, como último desdobramento do princípio da boa-fé objetiva, vale registrar a figura conhecida como “Cláusula de Stoppel” ou “Cláusula de Estoppel”316. Trata-se de uma expressão típica do direito internacional, em que se busca preservar a boa-fé e, com isso, a segurança das relações jurídicas neste importante campo. Consiste,em síntese, na vedação do comportamento contraditório no plano do Direito Internacional. Na observação de Rodrigo Murad do Prado: 31/08/2021 25 “No caso das Atividades Militares na Nicarágua o stoppel foi arguido pelos Estados Unidos, tendo a Corte rejeitado este argumento, lembrando que não basta que um Estado tenha aceitado de uma maneira clara e constante um regime jurídico ou um princípio, tornando-se ainda mais necessário que o seu comportamento tenha levado a um outro ou outros Estados, fundamentados nesta atitude, a modificar a sua posição em seu prejuízo ou a sofrer um prejuízo”317. Configura-se, portanto, como uma aplicação pragmática da boa-fé objetiva em relações internacionais, desde que a situação de prejuízo por quebra da confiança seja, como visto, de possível constatação.
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