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Accelerat ing the world's research. Cidades memórias e patrimônios Ulisses N . Rafael Related papers Cidades e Patrimônios Culturais: Invest igações para a iniciação à pesquisa Rogerio Proenca Leite, Eder C Malta Souza Polít icas públicas para os museus no Brasil: reflexos e anseios da museologia social At ila Tolent ino Sít ios Históricos e Centros Urbanos Atena Editora 2018 clodomir barros Download a PDF Pack of the best related papers https://www.academia.edu/4196985/Cidades_e_Patrim%C3%B4nios_Culturais_Investiga%C3%A7%C3%B5es_para_a_inicia%C3%A7%C3%A3o_%C3%A0_pesquisa?from=cover_page https://www.academia.edu/44393233/Pol%C3%ADticas_p%C3%BAblicas_para_os_museus_no_Brasil_reflexos_e_anseios_da_museologia_social?from=cover_page https://www.academia.edu/42749884/S%C3%ADtios_Hist%C3%B3ricos_e_Centros_Urbanos_Atena_Editora_2018?from=cover_page https://www.academia.edu/44453796/Cidades_mem%C3%B3rias_e_patrim%C3%B4nios?bulkDownload=thisPaper-topRelated-sameAuthor-citingThis-citedByThis-secondOrderCitations&from=cover_page UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE REITOR Angelo Roberto Antoniolli VICE-REITOR Valter Joviniano de Santana Filho EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE COORDENADOR DO PROGRAMA EDITORIAL Péricles Morais de Andrade Júnior COORDENADORA GRÁFICA DA EDITORA UFS Germana Gonçalves de Araújo CONSELHO EDITORIAL DA EDITORA UFS Carla Patrícia Hernandez Alves Ribeiro César Luís Américo Bonfim Cristina de Almeida Valença Cunha Barroso Martha Suzana Cabral Nunes Fabiana Oliveira da Silva Péricles Morais de Andrade Júnior Germana Gonçalves de Araújo Ricardo Nascimento Abreu Jacqueline Rego da Silva Rodrigues Sueli Maria da Silva Pereira Joaquim Tavares da Conceição Yzila Liziane Farias Maia de Araújo CAPA Fábio Aricawa PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Carlos Gabriel Paiva Galvão FOTOGRAFIA DA CAPA Sílvio Rocha REVISORES Márcio Cardoso Lima Vitória Eugênia Pereira Cidade Universitária “Prof. José Aloísio de Campos” CEP 49.100-000 – São Cristóvão - SE. Telefone: 3194 - 6922/6923. e-mail: editora@ufs.br CC BY NC SA Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual Esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a partir do seu trabalho para fins não comerciais, desde que atribuam a você o devido crédito e que licenciem as novas criações sob termos idênticos. 13 5 UM BECO DE MEMÓRIAS: UM ESTUDO ACERCA DA HISTÓRIA DO BECO DOS COCOS APRESENTAÇÃO Elayne Messias Passos Renata de Mello Cerqueira Pereira José Welington de Jesus, Ulisses Neves Rafael Luciana Chianca, Ruanna Gonçalves da Silva Cadu Ávila Ulisses Neves Rafael, Victor Marcell Gomes Barbosa Amanda Scott, Luciana Chianca Marina Zacchi Lucas Neiva Peregrino 33O QUE ACONTECE EMBAIXO DA PONTE? JUVENTUDES E OCUPAÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS 55TERRITÓRIOS E TRABALHO SEXUAL MASCULINO NO CENTRO DE ARACAJU 75COPOS, EMOÇÕES, CORPOS E SOCIABILIDADES: FORRÓ NO BAR 104O MARACATU ALAGOANO E SEUS MAIS DE 110 ANOS DE EXISTÊNCIA 145O SEXO COMO “IDIOMA DO FORRÓ” – DE GONZAGA A SAFADÃO 168O TRABALHO DO ANTROPÓLOGO E A CONSTITUIÇÃO DO PATRIMÔNIO IMATERIAL NO BRASIL: NOTAS SOBRE OS USOS DA NOÇÃO DE SISTEMA 193NO MIOLO DE FEIRA TEM “MUÍDO”: A FOLCLORIZAÇÃO DA CULTURA POPULAR NA PATRIMONIALIZAÇÃO DA FEIRA DE CAMPINA GRANDE ENTRE OS BECOS E OS BOULEVARDS: TENSÕES SOCIAIS E INTELECTUAIS NA DEFINIÇÃO DA REPRESENTAÇÃO DO RIO DE JANEIRO DA PRIMEIRA REPÚBLICA 122 5/208 APRESENTAÇÃO Reunimos neste livro um conjunto de artigos que, sob variados enfo- ques, gira em torno de três temas: cidades, memórias e patrimônios. Cada um desses termos encerra uma profusão de significados e re- cebeu, ao longo do tempo, copiosas reflexão e análise, a maioria de incontestável plausibilidade. O primeiro desses temas, a cidade, é indiscutivelmente central na Sociologia, e resultou em primorosos estudos e teorias, cuja recons- tituição passa ao largo dos nossos objetivos no presente livro. Des- de a Revolução Industrial – que acarretou processos migratórios de variadas escalas e expansão radical das áreas urbanas –, a cidade se tornou lócus privilegiado da Sociologia Clássica. A memória é mais comumente associada à historiografia, embora a discussão em torno de seu dinamismo extrapole esse campo de conhe- cimento. Interessa-nos, aqui, remontar à ideia de memória enquanto espaço de confrontos e de disputas, por um lado, mas também de con- fluência e de convergência de interesses, por outro. Ela está na inter- seção entre a inclinação ao esquecimento e a urgência da lembrança. 6/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS APRESENTAÇÃO O patrimônio, por sua vez, situa-se no cruzamento entre os dois cam- pos destacados – a cidade e a memória – e recebe grande atenção dos antropólogos contemporâneos, constituindo área privilegiada da pesquisa etnográfica nos últimos anos, o que talvez seja decor- rente da grande proximidade entre as concepções antropológicas de cultura e de patrimônio intangível. Não por acaso, é da Antropo- logia que decorrem as principais orientações para a elaboração de metodologias atuais de inventário de referências culturais. Também se inicia com os antropólogos a discussão acerca dos riscos de reifi- cação das práticas e de conhecimentos patrimonializáveis. Isso posto, restaria ainda aberta a justificativa para a realização de uma coletânea como esta, que visa reunir trabalhos sobre temas tão densos e tão abundantemente cotejados. Como transpor o desafio de não ser repetitivo e enfadonho? Qual abordagem ainda restaria como alternativa à profusão de tratados? Quais aportes encontra- riam ainda ensejo para vir a lume? Considerando que os temas aqui discutidos alcançam três áreas de conhecimento de grande envergadura (Sociologia, História e Antro- pologia), cumprimos o desafio epistemológico de aproximá-los. Para isso, reunimos, neste livro, reflexões cuja maior marca são pesquisas de campo envolvendo observação direta. A contribuição desta obra advém da especificidade dos recortes aqui apresentados, que com- binam, de modo criativo e original, os conceitos de cidade, memória e patrimônio, fornecidos por essas áreas de conhecimento, e que, re- conhecemos, têm fronteiras marcadamente porosas e comunicantes. 7/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS APRESENTAÇÃO Cidades, memórias e patrimônios é um livro que apresenta textos inéditos de pesquisas que exigiram empenho e dedicação ao longo de trajetórias acadêmicas com duração de dois ou três anos, reali- zadas por alunos de graduação ou de pós-graduação em Antropo- logia e em Sociologia. Trabalhos que repercutiram nas trajetórias de seus orientadores, instados a repensar também seus objetos e temas de pesquisas. Trata-se, portanto, de conclusões ou de trechos mais extensos de dissertações e monografias, apresentados em ver- são reduzida para os fins desta publicação. Não carecem de riqueza reflexiva e etnográfica, como se poderá constatar: o material aqui exposto se revela de proveitosa utilidade e provoca leitores além do circuito acadêmico, posto que envolve situações e contextos de grande oportunidade e interesse. O critério aplicado na seleção dos textos obedece, a princípio, ao desejo de fortalecimento da parceria interinstitucional entre a Uni- versidade Federal de Sergipe e a Universidade Federal da Paraíba. A parceria, firmada por meio de interlocução antiga entre os organi- zadores da coletânea, agora se estende para incorporar orientandos e ex-alunos cujas pesquisas se realizaram em torno dos temas que norteiam esta obra – cidade, memória e patrimônio. Esta coletânea tem início com o seminal artigo de Elayne Messias Passos, Um beco de memórias: um estudo acerca da história do Beco dos Cocos. A autora traz uma provocante apreciação sobre o beco, lugar marginalizado, inclusive, dentro da própria antropologia ur- bana brasileira, em que é categoria flagrantemente desprezada. Seu 8/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS APRESENTAÇÃO objetoespecífico é o Beco dos Cocos, um refugo no conjunto arqui- tetônico que caracteriza o Centro Histórico de Aracaju, capital ser- gipana. Passos mostra, contudo, que, embora se trate de área des- prezada pela lógica dos planejadores urbanos e insuficientemente debatida em termos acadêmicos, essa parte excessivamente peque- na da cidade se encontra carregada de sentidos e mostra-se como um expressivo espaço de ressignificações acerca das noções locais de centralidade e de enobrecimento. Renata de Mello Cerqueira Pereira, com o seu instigante O que aconte- ce embaixo da ponte? Juventudes e ocupação de espaços públicos nos conduz por outra região também secundária da capital sergipana. Trata-se do bairro Industrial, antiga região fabril da cidade, que, ao longo do tempo, sofreu intensas e significativas transformações em sua dinâmica e estrutura, sobretudo com a construção da ponte que liga a capital ao vizinho município de Barra dos Coqueiros, do outro lado do rio Sergipe. A autora, contudo, não se rende às impressões de decadência associadas ao antigo bairro fabril e volta-se para as estratégias de ressignificação e de ocupação por parte da população jovem do bairro, que desenvolve variadas maneiras criativas de ocu- pação do lugar, inclusive, com usos do repertório da cultura hip-hop. De volta ao centro da cidade, José Welington de Jesus e Ulisses Ne- ves Rafael nos conduzem pelo secreto universo das interações so- ciais que ocorrem entre homens que fazem sexo com homens, os chamados “garotos de programa”, e seus clientes. O artigo nos apre- senta determinados territórios propícios aos intercursos sexuais 9/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS APRESENTAÇÃO ocasionais e fortuitos não-contratuais, que ocorrem sem a presen- ça de vínculo amoroso prévio e sem, necessariamente, a prestação financeira. Em Territórios e trabalho sexual masculino no centro de Aracaju, os autores realizam o levantamento dessas “zonas morais” ou “territórios marginais”, cujo tamanho se estende para além do centro da cidade e atinge também as regiões das praias, em espe- cial, Atalaia Velha e Coroa do Meio. Em João Pessoa (PB), Luciana Chianca e Ruanna Gonçalves da Silva, em Copos, emoções, corpos e sociabilidades: forró no bar, analisam o ambiente e algumas situações de interação em um bar da cidade, observando, por meio de pesquisa participante, seus “dias de forró”. Nesse artigo original, o foco ultrapassa o discurso dos músicos de forró e atinge a sua própria experiência de trabalho e o constante dilema sobre a escolha das músicas a serem executadas. Seguindo a teoria da performance, o artigo busca revelar o que a linguagem mu- sical (letras e sons) e sua execução pública representam para esses músicos e qual mensagem pretendem transmitir. A participação do público em tais performances musicais também é analisada. O artigo da lavra de Cadu Ávila: O maracatu alagoano e seus mais de 110 anos de existência se presta a resgatar os motivos do desapare- cimento dessa modalidade artístico-cultural no contexto alagoano, sobretudo a partir do “Quebra de 1912”. Trata-se de episódio de ex- trema violência contra as principais casas de cultos de presença afri- cana em Alagoas e que teve função decisiva também no sumiço dos maracatus, os quais mantinham estreitas relações com os terreiros 10/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS APRESENTAÇÃO alagoanos de Xangô. O autor realiza um importante levantamento das notícias acerca da presença festiva dos maracatus nos carnavais de Maceió nas primeiras décadas do século XX e do seu súbito desa- parecimento da vida pública e da crônica local. Victor Marcell Gomes Barbosa, no artigo Entre os becos e os boule- vards: tensão social e intelectual na definição da representação do Rio de Janeiro da Primeira República também se debruça sobre período semelhante ao do artigo anterior para analisar o fenômeno que se denominou “boemia literária”, no Rio de Janeiro, na passagem entre os séculos XIX e XX. Por um lado, o autor tem interesse pelo clima de tensão social que envolve a parcela pobre da então capital federal, frente aos processos de disciplinarização e de controle exercidos pelo Estado à época. Também analisa, por outro lado, o papel da chamada “boemia carioca” e o posicionamento da elite intelectual na defesa dos preceitos higienistas frente à dura realidade social brasileira. Contemplando a memória musical do Nordeste brasileiro, represen- tada, aqui, pelo forró, desde suas origens até uma de suas expressões mais contemporâneas, o forró eletrônico, Amanda Scott e Luciana Chianca trazem o artigo O sexo como “idioma do forró”, de Gonzaga a Safadão. Parafraseando Evans-Pritchard (1978), que identificou o gado como “idioma” dos Nuer, as autoras revelam que o sexo é o idioma do forró desde sua invenção no qual a sociedade “fala sobre si”. Elas partem de Luiz Gonzaga, que mantinha um jogo discreto e disfarçado com o sexo e o erotismo em suas canções, e chegam às atuais músicas do forró eletrônico, quando o caráter sexual das rela- 11/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS APRESENTAÇÃO ções afetivas é desmascarado. Nesse sentido, o forró eletrônico não aponta para rupturas com os demais estilos de forró; ao contrário, guarda uma vital continuidade com suas raízes mais profundas, nas quais o amor, o sexo e o romance mantêm um lugar privilegiado in- dependentemente de suas inovações estéticas e sociais. Temos a elegante reflexão de Marina Zacchi, O trabalho do antropó- logo e a constituição do patrimônio imaterial no Brasil: notas sobre os usos da noção de sistema, na qual a autora se dispõe a tratar das maneiras pelas quais os usos da noção de sistema possibilitam (ou não) a constituição do patrimônio cultural de natureza imaterial, es- capando à materialização da cultura. Para tanto, Zacchi destaca os usos dessa noção nos dossiês do Registro da Arte Kusiwa – pintura corporal e arte gráfica Waiãpi; do Ofício das Baianas de Acarajé; e do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro. E por fim, o artigo de Lucas Peregrino também aborda a constituição dos patrimônios, desta feita através do caso do Registro da Feira de Campina Grande (PB). Em No miolo de feira tem “muído”: a folclori- zação da cultura popular na patrimonialização da Feira de Campina Grande, o “miolo” é um território vivo e muito dinâmico onde se rea- lizam negociações de diversas ordens – de produtos e serviços con- sagrados (como raizeiros, venda de flores, carnes, comidas prontas), até produtos industrializados, como roupas e sapatos, pen drives de músicas de sucesso etc. O “muído” da feira são as negociações em torno da definição desse patrimônio cultural nacional: acompa- nhando os momentos finais desse registro, o autor identifica uma 12/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS APRESENTAÇÃO importante tensão (e, por vezes, cisão) entre a transformação e a modernização da feira versus a folclorização e a estereotipização de algumas de suas expressões. Este livro é, portanto, uma obra que revela a atualidade e a pujança dos estudos de antropologia em torno da cidade, do patrimônio e da memória, tomando como foco a produção de jovens pesquisadores de duas universidades públicas federais nordestinas, a de Sergipe e da Paraíba. Ensejamos que esta publicação contribua para o debate em torno desses importantes temas com perspectivas que deverão cativar estudiosos e outros leitores interessados em conhecer me- lhor a diversidade cultural do Nordeste do Brasil e os modos como tal diversidade vem sendo discutida localmente na atualidade. Luciana Chianca (UFPB) Ulisses Neves Rafael (UFS) Aracaju/João Pessoa, 23 de agosto de 2020. 13/208 UM BECO DE MEMÓRIAS: UM ESTUDO ACERCA DA HISTÓRIA DO BECO DOS COCOS Elayne Messias Passos1 INTRODUÇÃO Aracaju, capital sergipana, foi fundada em 17 de março de 1855, a par- tir de um projeto arquitetônico peculiar,que estruturava a cidade tal qual um tabuleiro de xadrez. O traçado rigoroso atribuído ao local era estratégico para reunir os prédios públicos e as residências da alta so- ciedade, evitando o soerguimento de espaços desordenados que pu- dessem ser ocupados de forma tumultuada aos olhos dos gestores da época. Tal planejamento urbano acabou, de certo modo, privilegian- do as classes mais abastadas socialmente, em detrimento dos grupos menos favorecidos, excluídos das principais regiões da urbe. A despeito da rigidez do projeto, nesse mesmo horizonte histórico, sur- giu o Beco dos Cocos, travessa constituída justamente numa “sobra” de espaço no coração do centro aracajuano, que funcionava, primordial- mente, como rota de passagem para o desembarque e o abastecimen- 1 Antropóloga. Professora da Rede Pública Estadual de Sergipe/Técnica em educação da Secretaria de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura de Sergipe (SEDUC). Doutoran- da em Antropologia (PPGA/UFBA). 14/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL to de cocos no incipiente comércio central da cidade. No curso dos tem- pos, o Beco transformou-se desse simples local de passagem de cargas a um reduto boêmio, endereço de famosos cabarés, convertendo-se, depois, também em uma das maiores zonas de tráfico de entorpecen- tes da capital sergipana, até se tornar o que é hoje, estacionamento de veículos ciclomotores e quase um banheiro a céu aberto. Este artigo procura investir na reflexão acerca da vida urbana de Ara- caju e na compreensão do funcionamento da cidade sob a ótica da história do Beco dos Cocos. Trata-se de desdobramento de pesquisa desenvolvida por ocasião do mestrado realizado junto ao Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal de Ser- gipe, a qual buscou percorrer a origem e as transformações ocorridas no Beco dos Cocos simultaneamente ao desenvolvimento de Aracaju, para, assim, entender os processos que levaram a comunidade ara- cajuana a se transformar no que ela é atualmente. A diferença deste estudo para outros inseridos na Antropologia Urbana está na opção pelo beco como objeto para obtenção das respostas pretendidas, já que a categoria escolhida é flagrantemente pouco frequentada na comparação com outros grupos de observação, tais quais o bairro ou a rua, apenas para citar dois exemplos muito mais visitados. A peculiaridade desta proposta, portanto, pauta-se no fato de focali- zar a análise do beco, uma parte excessivamente pequena da cidade e insuficientemente debatida em termos acadêmicos. Nesse contexto, o uso do Beco dos Cocos como laboratório de estudo é de grande uti- lidade, haja vista as várias ressignificações do local, o qual experimen- tou momentos de apogeu e hoje se encontra abandonado. 15/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL Nesse ponto, cumpre salientar que o destaque atribuído ao ocaso do Beco dos Cocos não representa, absolutamente, um alinhamento às visões superficiais e estigmatizantes sobre as localidades marginais e secundárias dos centros urbanos. Ao mostrar a decadência do lu- gar, acreditamos estar fazendo ver a característica “sanitária” que foi imputada, quase que forçosamente, àquele local, no sentido de que ele foi, paulatinamente, colocado em esquecimento para que, relegado, pudesse cumprir missões menos “nobres” às vistas da so- ciedade e do Estado, a exemplo de reunir, em toda a sua cercania, o consumo de drogas e serviços sexuais, além de servir de refúgio aos desabrigados, características tais que, desnecessário dizer, são, de maneira geral, negligenciadas. Assim sendo, a manutenção dos becos como ocupações clandesti- nas, sujas, escuras e, enfim, repulsivas e desordenadas simboliza o contraponto aos espaços da cidade que trilham o caminho do de- senvolvimento e que, nessa condição, repelem o atraso econômico e as mazelas sociais, convenientemente escondidos nos becos. O BECO EM ANALOGIA À RUA: USO E APROPRIAÇÕES DO ESPAÇO Historicamente, parece haver uma tendência em negligenciar, em uma esfera mais intelectual, objetos considerados marginais. Como observou Sandra Jatahy Pesavento ao categorizar alguns espaços da cidade como “lugares malditos”, o beco faz parte de uma zona estigmatizada da urbe (PESAVENTO, 1999, p. 196). Através da lingua- gem, Pesavento traduz os aspectos da sociabilidade presente no vo- 16/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL cabulário próprio da cidade, com foco na “especificidade da lingua- gem da estigmatização urbana, que visualiza uma ‘cidade maldita’ ou ‘condenada’ dentro de uma cidade concreta, tomada para aná- lise” (PESAVENTO, 1999, p. 196). É com essa perspectiva que o beco por nós estudado se relaciona: um lugar marginal que se contrapõe à ordem e à moral, representando, assim, um obstáculo à ideia de modernização almejada pelas grandes cidades. Segundo a historiadora gaúcha, o beco caminha na contramão das perspectivas de intervenções urbanas propostas na época do seu surgimento, que desejavam, além de equipar, expulsar desses espa- ços o que ela chama de “socialidades2 indesejadas”. No caso, a sua aniquilação seria a solução mais eficaz, visto que esses espaços não existiriam sem que neles se apresentassem algumas práticas margi- nais. Símbolos do atraso, os “becos” seriam o alvo de um discurso moralista, que visava a varrer os pobres do centro da cidade e que passava a ser veiculado com mais intensidade após a República, na última década do século XIX (PESAVENTO, 1999, p. 198). Nesse período, o termo beco passa a representar, como uma espé- cie de estigma, os lugares marginalizados das cidades. O espaço era considerado sinistro, sujo, perigoso e feio. “É o mau lugar, por onde circulam personagens perigosas praticantes de ações condenáveis” (PESAVENTO, 2001, p. 115). No imaginário popular, o beco era o re- 2 Em algumas passagens do texto a autora se utiliza do termo “socialidades”, que, de acor- do com a nossa livre interpretação, remete ao conceito de “sociabilidade”, amplamente aplicado nas Ciências Sociais. 17/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL duto dos excluídos, como prostitutas, bêbados, criminosos etc., ou seja, nessa localidade podiam-se encontrar os tipos mais “repug- nantes” da sociedade. O beco correspondia, “de forma exemplar, a uma bela demonstração do que poderíamos chamar a maneira con- flitiva de construir o espaço público” (PESAVENTO, 2001, p. 115). Topograficamente falando, o beco, por definição, é considerado um assentamento supostamente subnormal, deveras encontrado em regiões periféricas e ocupações clandestinas, ou seja, é uma via fora do padrão, construída de forma desordenada. Segundo Sandra Ja- tahy Pesavento, o “beco” é [...] na sua acepção usual, uma rua estreita e curta, ge- ralmente fechada num extremo. “Beco” poderá ainda, numa acepção brasileira, designar esquina e, numa ex- pressão figurada – “beco sem saída” – referir-se a uma situação dificílima, embaraçosa. Quer parecer que, no caso em pauta, os “becos” seriam tanto as ruas estrei- tas e curtas, de designação genérica, quanto evocariam o significado da expressão figurada, como lugares difí- ceis e causadores de problemas a quem neles se aven- turasse. (PESAVENTO, 1999, p. 198) Assim, nosso objeto é visto por muitos como um lugar escuro e peri- goso, digno de ser evitado, uma espécie de anomalia, um apêndice prestes a supurar. Ou seja, o beco, sob um prisma polarizado, repre- sentaria a desordem perante os lugares “legitimados” que desejam, hipoteticamente, ordenar-se. Essa representação foi e é calcificada diariamente no imaginário popular. O ideal de cidade desinfetada da sordidez e da degradação se alia à tão sonhada modernidade. 18/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL É dessa maneiraque Bruno Halley percebe as travessas (e não mais “becos”) e seu processo de higienização que, por sua vez, fora inicia- do a partir da exclusão da forma pejorativa como esses lugares eram denominados, ratificando a tese de Pesavento, que aloja o beco em uma zona estigmatizada da cidade. O autor acredita que ao (re)ba- tizá-los com os nomes de alguns heróis pernambucanos, as concep- ções discriminatórias aos becos eram “materializadas, numa cidade que buscava se modernizar eliminando feições coloniais e tropicais do seu traçado urbano. Logo, a palavra beco fora apregoada como um nome do passado” (HALLEY, 2012, p. 07). Esse processo de “redenominação” dos becos, transformando-os em travessas, também passou por Aracaju, de forma similar ao pro- cesso ocorrido em Recife. No entanto, aqui, observamos o apadri- nhamento desses lugares em homenagem a pessoas que, acredita- mos nós, exerciam alguma influência na sociedade da época. O BECO DOS COCOS E SEU ENTORNO Como já se fez destacar, a região central de Aracaju foi designada origina- riamente a receber as residências das classes mais abastadas, além de prédios estatais. De imediato, porém, viu-se cercada por um público dife- rente do previsto, formado, mormente, por migrantes, pequenos comer- ciários e trabalhadores braçais, que se fixaram de maneira desalinhada. A densa população ali concentrada, composta, sobretudo, de ho- mens, logo fez surgir prostíbulos, estabelecimentos voltados à ex- ploração de jogos de azar e outros pontos boêmios, que se assen- 19/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL taram, preferencialmente, em espaços mais ocultos aos olhos da sociedade conservadora. Dentre tais locais, veio a se sobressair o Beco dos Cocos, o qual, muito bem situado no centro de Aracaju, tornou-se, àquele momento, um dos principais destinos de diversão e entretenimento da jovem capital. O Beco é formado pela proximidade de dois quarteirões que fazem fronteira com o prédio da Alfândega, antiga Mesa de Rendas Oficiais, cujo valor simbólico é representado pelo fato de ter sido o primei- ro prédio oficial construído em Aracaju, quando da transferência da capital sergipana3. Um desses quarteirões foi ocupado ao longo do tempo por diversas instituições oficiais, como a Secretaria de Esta- do da Saúde, antiga cadeia pública. O outro quarteirão é estrutura- do por uma extensa construção padronizada em torno de dois pisos, com fachadas elegantes a ponto de ter sido comparada pelos pró- prios moradores da região com o Vaticano. Assim, o Beco parte da praça General Valadão, onde foi construído o prédio da Alfândega, e estende-se até a rua Santa Rosa, o que revela a sua centralidade, pelo menos em termos topográficos. Sebastião Pirro foi o arquiteto responsável pelo projeto de fundação da nova capital, que resultou no que depois seria denominado de quadrilátero de Pirro. O projeto proposto para a edificação da nova capital estabelecia medidas da largura das ruas e da distância entre as casas e o meio fio. O que tal projeto também deixa antever é o 3 Antes, a capital sergipana era a cidade de São Cristóvão, localizada, atualmente, no que se convencionou chamar de grande Aracaju. 20/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL fato de que Pirro, a todo momento, buscou construir uma cidade “moralizada”, no sentido da manutenção de uma ordem estética e higiênica. No espaço urbanístico proposto pelo engenheiro não ca- biam práticas “degradantes” como a prostituição. Em contrapartida, os atores que usufruíam dessa região central necessitavam de um local para a prática e o consumo do sexo, que deveriam ser velados e escondidos. Mas a dificuldade de acesso às “zonas de entretenimento adulto”, a exemplo da imposta pelo Morro do Bonfim4 e suas dunas, prejudicava a “diversão” desses “homens de bem” e “trabalhadores” que desejavam saciar os seus impulsos sexuais. Talvez por isso, a proximidade do Beco de locais que abrigavam diversos tipos de trabalhadores – como os carre- gadores de coco, que lá desembarcavam carregamentos do fruto, marinheiros, estivadores, além de personalidades da sociedade “legítima”, como os políticos locais, dentre outros –, possibilitou a instalação de cafés, boates e cabarés especializados na oferta do sexo na região central de Aracaju. Entre os anos de 1855 e 1860, Aracaju triplica o seu contingente po- pulacional. Essa marca é alcançada graças à forte migração de tra- balhadores oriundos da zona rural do estado. Trata-se de agricul- 4 O Morro do Bonfim era uma região composta por uma formação de dunas que circundava a área mais habitada do centro, separando-a da parte mais a oeste da região, onde se verifica- vam práticas escusas e renegadas, conforme registros do poeta sergipano Mario Cabral (2002). Sua derrubada se deu na década de 1950 e representou um avanço considerável para o pla- no urbanístico da cidade, já que no próprio espaço que correspondia ao Morro do Bonfim, foi construída a primeira estação rodoviária da cidade, além de suas areias terem possibilitado o aterramento de outras áreas de Aracaju, permitindo a criação de novas ruas e avenidas. 21/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL tores que aqui se instalavam para ajudar a construir a nova capital, mas esse grupo de operários não usufruía dos espaços projetados da cidade, estabelecendo-se nas regiões adjacentes, formando uma nova área precária e desestruturada (SANTOS, 2010, p. 96). Aracaju delineava seu processo urbanístico em moldes segregacio- nistas, como conclui Antônio Carlos Campos (2005) ao analisar a tese do geógrafo sergipano Fernando Porto (1991) de que, mesmo tendo sido construída à luz de ideais que propunham a liberdade, o mode- lo adotado era excludente. Ou seja, os migrantes que se instalavam na região “somente poderiam construir suas casas de palha no alto das dunas e fora da área denominada como ‘Quadrado de Pirro’, res- peitando as normas contidas no Código de Postura de 1856, uma espécie de plano diretor da época” (SANTOS, 2010, p. 207). Tendo em vista que Aracaju passa a se destacar (dentro do estado de Sergipe) economicamente nos anos de 1900, são os primeiros trinta anos do século XX que se enquadram como marco no desenvolvi- mento da capital, que, por sua vez, recebe uma melhora nos seus serviços públicos, na sua infraestrutura e em outros aspectos: [...] na primeira metade do séc. XX, o crescimento eco- nômico do Estado influenciou diretamente na vida da cidade, quando houve o primeiro grande aumento da população e dos investimentos das classes dominantes na capital. Nessa época, o Estado iniciou a implantação dos equipamentos urbanos importantes, como água encanada e bondes a tração animal (1908), energia elé- trica (1913), serviços de esgoto (1914), rede de telefonia (1919) e bondes elétricos (1926). (CAMPOS, 2005, p. 208) 22/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL O implemento de novas tecnologias, na década de 1930, permitiu que Aracaju avançasse de forma considerável no tocante ao de- senvolvimento e à construção de uma rede de transportes, o que a aproximou de algumas fronteiras interestaduais. É nesse momen- to da história da capital sergipana que começamos a verificar in- dícios substanciais da participação do Beco nesse processo, pois é em meados de 1940 que o espaço começa a se caracterizar como o maior reduto boêmio da capital, segundo os dados colhidos nas obras de alguns memorialistas sergipanos. O memorialista sergipano Murilo Melins, ao falar das Boates e dos Cassinos aracajuanos nas décadas de 1940 e 1950, descreve o inte- rior do Beco dos Cocos da seguinte maneira: [...] no Beco dos Cocos, além do Cassino Bela Vista e o Dancing Xangai, estava a Pensão de Marieta, a mais ele- gante e seleta, frequentada por banqueiros, comercian-tes, industriais e rapazes da elite, ali encontravam-se as mais caras e bonitas damas da noite. Mulheres da vida, mas que devido à descrição [sic] dos seus trajes e da maquiagem, frequentavam normalmente o comércio das Ruas João Pessoa e Laranjeiras, iam à matinês do Rio Branco, Rex e Vitória, confundindo-se com as ma- dames e senhoritas. Lembramos algumas, que por lá passaram. Linda, a mais bonita de todas, Princesinha, Verdinha, Fuenga, Tufi bela morena, bem educada e an- tiga professora, Helena Jabá, Arlete, Maura e a famosa Gilda, que possuía o maior número de vestidos, sapa- tos e joias. Esse apelido foi dado, devido à aparência física e porte, com a estrela do cinema americano Rita Hayworth, que desempenhou em um filme a persona- gem Gilda, título do filme. (MELINS, 2007, p. 365) 23/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL Como se depreende dessa citação, o Beco dos Cocos havia se torna- do uma das principais zonas de meretrício da cidade entre os anos 1940 e 1950, concentrando uma quantidade significativa de “caba- rés”. Alguns muito sofisticados, outros com uma decoração particu- lar e curiosa, como o Xangai, ornamentado com temas orientais. Quanto aos atores envolvidos em tal ambiente, muitos dos que de- veriam restringir sua circulação ao reduto escuso do Beco, a exem- plo das “mulheres da vida”, travestiam-se de “moralidade”, com roupas e maquiagem inspiradas nos trajes usados pelas “pessoas de bem”, para conviver, mesmo que apenas nas sessões de cine- ma, igualitariamente, a ponto de não ser possível diferenciar as prostitutas das madames. Quanto à clientela, o público frequentador daquele reduto não se limitava apenas aos trabalhadores braçais e estivadores que circulavam pelos arredores do Beco dos Cocos. Os cabarés loca- lizados no Beco também recebiam comerciantes, banqueiros e membros da elite sergipana. Nesse período, meados dos anos 1940, o Beco dos Cocos passa a reunir artistas, intelectuais e pessoas dos mais variados segmentos da sociedade em busca de divertimento. Lá foi firmado um comple- xo integrado de boates e prostíbulos. Os mais conhecidos da cidade, além dos que já foram aqui mencionados, ficavam no próprio Beco ou ao seu redor – o Miramar, o Night and Day, o Luz Vermelha e o Fresca. Entre as motivações para frequentar as boates e os cafés do 24/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL local, além do interesse sexual, estava também o encontro com ami- gos, evento muito apreciado e que atraiu para esses ambientes a eli- te intelectual da cidade, o que corrobora a vocação boêmia do Beco. Merece anotação especial, entre esses ambientes, o já mencionado “Vaticano”. Trata-se de uma construção descomunal para os padrões arquitetônicos da cidade, pois o edifício ocupava todo um quarteirão, obedecendo sempre ao mesmo estilo na fachada. A intenção dos seus proprietários era usar o prédio como ponto comercial e quiçá para resi- dências. Porém, a sua ocupação atendeu a outros princípios. Tornou-se espaço para o funcionamento de um sortido comércio e também serviu de moradia para várias pessoas. Foi sob esse aspecto que ele perdeu a sua característica inicial, conforme se depreende da citação abaixo: [...] o Vaticano, “labirinto intricado”, concebido para ser o maior prédio de Sergipe, obra invejável, acabou tendo a sua imensidão tomada por operários, prosti- tutas, marinheiros, “índios” e outros. Jogos, prostitui- ção, bebedeiras, confusões. Tudo isto instalado numa região próxima da sede do Governo, zona central da cidade. (MAYNARD, 2009, p. 141) Devido a suas dimensões e seu estilo arquitetônico, recebeu o nome do Estado Papal (MELINS, 2007, p. 363). Lá estavam abrigados desde comerciantes até prostitutas que ganhavam a vida nas adjacências do prédio. Mário Cabral descreve com riqueza a arquitetura do pré- dio e os tipos que lá habitavam: 25/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL [...] o Vaticano (...) é um monstruoso prédio (...). O Va- ticano de outrora sem as modificações introduzidas posteriormente. Você penetraria um largo pórtico, pór- tico de museu ou de igreja. E subiria, logo depois, uma escadaria imponente. Ao chegar ao primeiro pavimen- to você estaria perdida, desorientada, em um terrível meandro de salas, quartos e corredores, sem saber recuar ou prosseguir. Você atravessaria dezenas de sa- las, dezenas de quartos, dezenas de corredores, você subiria e desceria dezenas de pequenas escadas, mas, ao fim de ingente esforço, você necessitaria do auxílio de um morador no sentido de acertar com a porta da saída. Eis o Vaticano, minha amiga. Uma multidão de seres reside ali, naquele labirinto intrincado. Operários, canoeiros, soldados, prostitutas e marinheiros. Em bai- xo, no andar térreo, ficam os bilhares, as casas de jogo, os bares frequentados pela gente do cais, pelos estiva- dores e pelos maloqueiros. A cachaça corre com fartura e rara noite não sucede um conflito, uma luta corporal, luta de “peixeiras” afiadas e reluzentes. Mas, embora, no centro da cidade, a ronda policial evita intervir nas questões internas do Vaticano. Hoje o Vaticano está modificado. O labirinto foi desfeito. Mas, assim mesmo, é interessante percorrer as dependências. Você verá o Vaticano de Aracaju. Lá não há luxo e esplendor, mas sujeira e miséria. Os ratos, enormes, nojentos e agres- sivos, também são donos do velho casarão. Assim é o Vaticano da minha terra. (CABRAL, 2002, p. 132) O Vaticano de Aracaju funcionou durante um período como uma es- pécie de antítese à ordem moral que vigorava na sociedade araca- juana. Batizar como Vaticano um prédio que abrigava famílias po- bres, operários das fábricas de tecido próximas ao centro da cidade, mas que também recebia prostitutas e contraventores, é algo, no 26/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL mínimo, curioso. Não acreditamos que o idealizador dessa obra, ao elaborar o projeto do edifício, tenha tido a intenção de associá-lo a uma edificação religiosa. Se houve alguma inspiração, acreditamos que ela tenha ocorrido de forma inconsciente, mas, se a edificação foi assim denominada, pode ter sido por pura chacota e ironia por parte dos moradores e transeuntes da região. Segundo o historiador e jornalista Luiz Antônio Barreto, o centro da cidade “concentrava os navios e todos os tipos de embarcações, os trens, os caminhões que abasteciam o Mercado, as marinetes, sendo por isso mesmo área preferencial dos boêmios, notívagos” (BARRE- TO, 2005, on-line). Devido a isso, essa região se consagrou por rece- ber “os cabarés e zonas de meretrício, que ganharam fama ao longo da história da cidade, marcando território para a boemia” (BARRE- TO, 2005, on-line). Além do entretenimento adulto, a região investigada também se orga- niza em torno de outras atividades econômicas, dentre elas, prostíbu- los e cassinos. Lá era possível encontrar também algumas “funilarias, vendedores de cordas, fumo de rolo, querosene, fifós e os concorridos ‘bumbas’ que vendiam os vinhos de jenipapo, murici e jurubeba do ‘burril’ e ‘as cachaças de Zé Manequim’” (MELINS, 2007, p. 352). Pouco a pouco, acompanhando as transformações da cidade, o Beco dos Cocos, que antes fora um ponto de escoamento da produ- ção de cocos do município e onde se localizavam muitos dos mais afamados prostíbulos de Aracaju, inclusive pelo grau de sofisticação e luxo, passou a funcionar como um ponto de comércio em franca 27/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL decadência. Nesse particular, não se aponta um acontecimento es- pecífico responsável pela decadência do Beco; sua trajetória, na ver- dade, foi acompanhando as mudanças e contradições da cidade, a ponto de, conforme relatam os comerciantes que ainda atuam na área, esse local ter sido excluído dasações públicas, deixando de ser uma preocupação das autoridades locais. Mesmo com todas as evidências históricas da sua importância, o Beco dos Cocos não está incluso no complexo que corresponde ao Centro Histórico de Aracaju tombado pelo Patrimônio Histórico Es- tadual e não participou de uma reforma considerável ocorrida no seu entorno no final dos anos 1990. A área que foi restaurada por meio de investimentos subsidiados pelo Banco do Nordeste (BNB) através do Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste I (PRODETUR/NE) só atingiu o Mercado Municipal, conforme a seguin- te distribuição: restauração do Mercado Antonio Franco (5.500mm²) e Mercado Thalles Ferraz (3.600 m²). Reurbanização e paisagismo dos largos Misael Mendonça e Manoel M. Cardoso (2.400 m² cada) no valor de U$ 2.174.754,76; e a área do Centro Histórico de Sergipe: Re- forma /ampliação calçadas e rede de micro-drenagem (40.000 m².). Reforma balaustrada Rio Sergipe (1.150 m), iluminação pública, mo- biliário urbano e arborização (33,34,35), no valor de U$ 2.196.640,46. Tais reformas apresentaram e geraram melhorias para os Mercados, o que atraiu uma clientela de maior poder aquisitivo para a região, fato que fomentou a consolidação do centro de Aracaju como a maior zona de comércio estadual. Entretanto, o Poder Público optou pela 28/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL não inclusão do Beco – uma das principais rotas de acesso aos Mer- cados – nesse processo de revitalização. As melhorias na estrutura, na higiene, dentre outros, permitiram que os Mercados Centrais se formalizassem também como ponto de atração turística da capital sergipana. Por outro lado, os mesmos investimentos públicos e pri- vados não aportaram no Beco, que passou a concentrar “problemas sociais”, principalmente à noite: a presença de mendigos, prostitu- tas, viciados em drogas etc. Portanto, assim podemos resumir a história do Beco: de um sim- ples local de passagem de cargas a um reduto boêmio, endereço de famosos cabarés, conhecido como uma das maiores zonas de prostituição e tráfico de entorpecentes da capital sergipana, a qua- se um banheiro a céu aberto. CONCLUSÃO São diversas as formas que nos levam a conhecer e a compreender uma cidade. Aqui, optamos pelo viés apresentado pelo beco, mais especificamente o Beco dos Cocos. Através da leitura dessa peque- na ruela à luz do processo histórico de Aracaju, buscamos desvendar alguns traços da complexidade da cidade presente nesse espaço. Para nós, é interessante pensar como em uma cidade que sempre enfatizou os traços de sua modernidade, tanto nos discursos quanto na exploração de imagens que remetem ao modelo de primeira ca- pital projetada do país, poderia existir um beco que representava o contrário, o obsoleto, o antiquado. 29/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL É sobre a desordem do traçado proposto por Pirro que nossas hipóte- ses foram construídas, como a necessidade de atenção sobre os espa- ços marginalizados de Aracaju, que tem no Beco dos Cocos o seu epi- centro. É intrigante, na rememoração da história do Beco, identificar a virada sofrida pelo local, que passou a ser marginalizado, abandonan- do a imagem romântica e idealizada – que coletamos na fala de alguns memorialistas sergipanos – para se tornar um verdadeiro problema. Concluímos que a existência de um beco repleto de prostíbulos não coadunava com ideia de modernidade que Aracaju buscava desde a sua inauguração. E a melhor alternativa para a edificação de uma cidade futurista seria apagar as marcas da história que a relacionas- sem a um passado de “libertinagem”. Tanto que, seguindo o exem- plo de outras cidades, o Beco dos Cocos teve a sua nomenclatura alterada para travessa em meados dos anos 1940, quando passou a ser chamado de Travessa Silva Ribeiro, em homenagem a um rico comerciante da época, patrocinador da Academia Sergipana de Letras (ASL). Claro que esse esforço não foi suficiente para apagar da memória dos habitantes da cidade o passado relevante do local nem para a conivência da população com o novo nome, já que ele continua conhecido e aludido pela antiga referência. Não identificamos com exatidão o momento em que Beco entra em declínio total. Acreditamos que esse processo esteve atrelado ao sucateamento do Centro Histórico, o qual o segmentou em dois po- los, o sul, com o comércio voltado para artefatos de luxo, e o norte, onde o Beco está localizado, voltado para o comércio informal, com a presença de vendedores ambulantes e prostitutas. 30/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL Mesmo quando houve a revitalização do centro comercial de Araca- ju, no final da década de 1990, o Beco dos Cocos não foi agraciado com as reformas. O local continuou a servir como um sanitário a céu aberto, para evoluir até hoje, ano de 2019, para uma das maiores zo- nas de tráfico de entorpecentes da capital, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado de Sergipe. A última intervenção ocorrida no Beco aconteceu no ano de 2009, e parece ter se constituído apenas numa maquiagem, já que não buscou cuidar dos problemas estruturais do complexo. Ou seja, não houve nenhuma intervenção patrimonial que buscasse restaurar os edifícios históricos presentes no Beco. As paredes foram grafitadas de forma aleatória, sem nenhum esquema prévio. Este trabalho buscou na sua essência não encontrar conclusões en- gessadas sobre a história do Beco dos Cocos, concomitante à edi- ficação da suposta primeira capital planejada do Brasil, mas, sim, apontar alguns passos que nos levem a compreender os processos de interação social, históricos etc., ocorridos em uma cidade a partir de suas zonas estigmatizadas. O que aqui fizemos foi implementar algumas discussões sobre as possíveis mudanças ocorridas no ima- ginário urbano, incluindo todos os elementos que o compõem. Ou seja, buscamos resgatar o sentido que a interação com o beco tem para cada indivíduo que o consome de alguma forma – um transeunte usando-o como rota de passagem, um comerciante, adquirindo o seu sustento diário. Para nós, o estudo do beco é capaz de elucidar alguns desses questionamentos, fazendo-nos 31/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL compreender, além da personificação real das transformações e dos usos do nosso objeto, o modo como essas mudanças influen- ciam na organização da cidade. REFERÊNCIAS BARRETO, Luiz Antônio. O cotidiano do lazer nos bares, cinemas e cabarés. Aracaju: Infonet, 2005. Disponível em: http://clientes. infonet.com.br/serigysite/ler.asp?id=7&titulo=Aracaju150anos. Acesso em: 25 abr. 2019. CABRAL, Mário. Roteiro de Aracaju. 3. ed. Aracaju: Banese, 2002. CAMPOS, Antônio Carlos. O Estado e o urbano: os programas de constru- ção de conjuntos habitacionais em Aracaju. Revista do Instituto Histó- rico e Geográfico de Sergipe, Aracaju, vol. 1, n. 34, p. 199-222, 2005. HALLEY, Bruno Maia. Arruando pelo beco: um nome do passado evo- cado no afeto e no desamor da gente da cidade. Revista de Geogra- fia – PPGEO, Juiz de Fora, v. 2, n. 1, 2012. MAYNARD, Andreza e MAYNARD, Dilton. Dias de luta: traços do cotidia- no em Aracaju (1939-1945). OPSIS, Catalão, v. 9, n. 12. jan-jun 2009. MELINS, Murilo. Aracaju romântica que vi e vivi. 3 ed. Aracaju: UNIT, 2007. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Lugares malditos: a cidade do “outro” no Sul brasileiro (Porto Alegre, passagem do século XIX ao século XX). Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19, n.37, Sept. 1999. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Era uma vez o beco: origens de um mau lugar. Maria Stella Bresciani (org.) In: Palavras da Cidade. Porto Ale- gre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001. 32/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL PORTO, Fernando Figueiredo. A cidadedo Aracaju, 1855-1865: en- saio de evolução urbana. 2 ed. Aracaju: Governo de Sergipe/FUN- DESC, 1991. SANTOS, Walderfrankly Rolim de Almeida. Modernidade e moradia: aspectos do pensamento sobre a habitação popular no processo de modernização das cidades sergipanas (1890 -1955). Revista do Ins- tituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Aracaju, vol. 40, n. 1, 2010. 33/208 O QUE ACONTECE EMBAIXO DA PONTE? JUVENTUDES E OCUPAÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS Renata de Mello Cerqueira Pereira1 INTRODUÇÃO O crescimento da cidade de Aracaju proporciona questionamentos acerca da ocupação dos espaços urbanos. No histórico da cidade, e no caso desta pesquisa2, é no bairro Industrial que surge o ponto de partida para o estudo do espaço cultural criado após a construção da ponte que liga a capital Aracaju ao município Barra dos Coqueiros. Mediante uma etnografia feita através de observação participante, entrevistas e questionários, foram colhidas informações relevantes a respeito do grupo “Sintonia Periférica”, um dos grupos que, em manifestação artística e política, ocupa o espaço embaixo da ponte com atividades que envolvem o movimento hip-hop. Tal pesquisa teve como principal objetivo observar e analisar a forma como os jovens dessa localidade vêm ocupando e transfor- mando o espaço, e as relações entre as intervenções artísticas e a 1 Antropóloga. Doutoranda em Artes pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 2 Realizada entre os anos de 2014 e 2016 durante o mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Sergipe. 34/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL reurbanização e o crescimento da cidade. Perceber a dimensão das relações e seus modos de ação consequentes da reestruturação ur- bana demonstra as várias maneiras possíveis de novas formas de organização social e estrutural da cidade. Assim, pretendemos con- tribuir com a construção de conhecimentos não somente para área acadêmica, mas também para a administração pública e para a co- munidade em geral, pois ações como essas são respostas diárias à maneira como a cidade vem sendo ordenada e às suas consequên- cias na vida cotidiana de seus moradores. PERCORRENDO A CIDADE Os citadinos desenvolvem capacidades criativas para se integrar às realidades em que vivem; acham brechas na organização social e transformam problemáticas urbanas em atitudes revolucionárias. Transitam, elaboram estratégias, criam e recriam em cima das ne- cessidades de sobrevivência e das vontades de viver da melhor for- ma possível dentro da cidade. Aracaju, capital do estado de Sergipe, é uma cidade relativamente nova, que cresce rapidamente. Em seus últimos dez anos, passou por modificações espaciais significativas: novas construções, refor- mulações no trânsito, revitalizações, reurbanizações, reformas in- tensas em prol da modernização e da inovação da malha urbana. Em minhas andanças pela cidade, sobretudo nas idas ao centro, per- cebi a quantidade de casas antigas e abandonadas e o número redu- 35/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL zido de residentes onde já foi um dos lugares mais bem localizados para moradia. Percebi os movimentos variados do dia e da noite, as sutilezas dos usos, a representatividade dos lugares e pude, tam- bém, ressignificar minhas impressões em relação à cidade. A mudança do olhar sobre os espaços e sobre as relações dos habi- tantes com eles me fez rememorar experiências vividas em lugares diferentes da cidade, os diferentes bairros em cada fase de minha vida. Os caminhos percorridos entre mudanças e transformações, re- conhecendo e reinventando não só os lugares onde morei, mas ou- tros por onde andei, despertaram-me sobre como as transformações da cidade criam possibilidades de relação com os espaços, geram significados, sentimentos e mudanças em nosso comportamento. Os questionamentos acerca das consequências das mudanças no es- paço urbano se deram através das experiências que desenvolvi como artista. A vontade de usar os espaços urbanos como palco me impul- sionou a perceber os diferentes usos possíveis para a cidade. Através da arte, pude encontrar pontos onde aconteciam movimentações ar- tísticas que utilizavam o espaço público, e percebi em outras pessoas e em outras partes da cidade a mesma vontade que pulsava em mim. Foi assim que o espaço embaixo da ponte Aracaju-Barra, situado no bairro Industrial, zona norte de Aracaju, apareceu nessas minhas ca- minhadas. A estética do lugar, a imponência da ponte e sua locali- zação geraram indagações sobre a relação entre os moradores da região e esse espaço que se abriu após sua construção. Foi lá que conheci o evento chamado Sintonia Periférica, que utilizei como 36/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL objeto de estudo para tecer considerações sobre relações de res- significações dos espaços. O evento acontece embaixo da ponte e tem como proposta a conscientização política das juventudes das periferias de Aracaju. Busca, através da arte, levar conhecimento e, também, discutir temáticas que envolvem as realidades dos jovens em suas comunidades, por meio de palestras, shows de rap, reggae, exposição de documentários, discotecagem, poesia, dança, grafite e variadas atividades inseridas na cultura hip-hop, que abrem espaço para exposições das produções artísticas dos participantes. O espaço e a manifestação cultural demonstraram uma íntima rela- ção com o modo de arrumação da cidade. As revitalizações e a reur- banização no bairro apresentaram influências diretas na maneira como a comunidade se relaciona com os espaços transformados. Isso demonstra a necessidade de entender, através desses proces- sos, a relação do crescimento da cidade com as manifestações so- ciais que ocupam os espaços e seus usos cotidianos. No livro Roteiro de Aracaju, Mário Cabral lança seu olhar para as pontes da cidade. O autor fala de outras pontes, mas com o mesmo olhar sensível às manifestações artísticas embaixo delas: Quero falar [...] das pontes pobres e tôscas, mas que tem vida própria. Se for noite de lua você ouvirá, de cima do cáis, na Avenida Rio Branco, uma canção plena de nostalgia, uma canção que falará de amor e de morte. Você pensará, tal- vez, que aquela música venha do fundo da terra ou do fun- do do mar. Na verdade a música virá dos maloqueiros. Virá de debaixo das pontes da Cidade de Aracaju, dôce música dos infelizes, dos que não têm nada na sociedade, mas que parecem ser donos da região, donos das feiras, donos do mar, donos da capital sergipana. (CABRAL, 1948, p. 119-120) 37/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL Nesta pesquisa, tratamos especificamente da ponte Construtor João Alves. Com 1,8 km de extensão e localizada no bairro Industrial, liga a capital sergipana à cidade Barra dos Coqueiros. Os dois municípios são separados pelo rio Sergipe; à margem direita, situa-se Aracaju e, à esquerda, o município Barra dos Coqueiros. Com a dificuldade de deslocamento apresentada pela presença do rio entre as duas cida- des e, principalmente, pelo fato de a Barra dos Coqueiros possuir um porto marítimo desde 1985, por muitos anos e por muitas administra- ções municipais, cogitou-se a possibilidade de construção da ponte para facilitar o transporte de mercadorias entre o porto e a capital e, também, o acesso a outros municípios do litoral sul do estado. O bairro Industrial, como é conhecido desde a chegada das fábricas de tecido na cidade em 1884, possui uma população de 18.007 habi- tantes, com uma área de 1.7097 km², a maior parte dela constituída por indivíduos com idade entre 15 a 64 anos3. Situado ao norte da cidade, divide suas limitações territoriais ao sul com o bairro Centro, ao norte com o bairro Porto Dantas, a oeste com o bairro Santo An- tônio, e a lestecom o rio Sergipe. Esse bairro traz consigo uma vasta e importante bagagem histórico-cultural, e é diante dessas caracte- rísticas que a investigação se conduziu. “Entre o sopé da colina e o rio Sergipe encontravam-se uma faixa de manguezal e outra habitada por esparsas moradias”4 (SANTOS et al, 3 Disponível em: http://www.populacao.net.br/. Acesso em: 26 abr. 2019. 4 Relatório escrito por múltiplos autores para uma matéria de graduação em Geografia da Universidade Federal de Sergipe. Disponível em http://cadernoestudante.blogspot.com. 38/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL 2011), principalmente ocupadas por pescadores, o Maçaranduba, como era conhecida a região que crescia após a mudança da capi- tal, de São Cristóvão para Aracaju, em 1855, e onde hoje se localiza o bairro Industrial. Essa extensão era zona de escoamento açucareiro, já que era o lugar mais próximo do oceano, pelo rio Sergipe. Um ano antes da mudança definitiva da capital para a praia do Aracaju, o Presidente da província Inácio Barbosa transferiu a sede dos Cor- reios e instalou uma subdelegacia na região, fazendo-se necessário aterrar uma via – onde hoje é a Av. João Ribeiro – para facilitar o des- locamento na nova capital. Ante a essa situação, outras habitações, becos e ruelas foram surgindo na região (GRAÇA, 2005, p. 28-30). Desde a confirmação de Aracaju como nova capital e a construção do Centro da cidade, o bairro Industrial ficou fora do projeto urbano, fora do “Quadrado de Pirro”, tal como ficou conhecido o trabalho feito pelo engenheiro Sebastião Basílio Pirro, que idealizou o centro, da cidade de Aracaju fazendo alusão a um tabuleiro de xadrez. O bairro Industrial parecia já ter seus limites e fronteiras delimitados física e socialmente desde a fundação da capital. No decorrer de seu desenvolvimento, o Centro se fortaleceu como núcleo político admi- nistrativo da cidade e o bairro mais uma vez mudou de nome, fican- do conhecido, na década de cinquenta, como Chica Chaves – “uma simpática mulata” muito querida pelos moradores da região. Não se sabe ao certo sobre a existência dessa personagem, há somente um registro bibliográfico no livro Diário de Chica Chaves, de Nobre La- cerda, obra de ficção da literatura Sergipana (GRAÇA, 2005, p. 153). br/2011/02/relatoriobairro-industrial.html . Acesso em: 01 mai. 2019. 39/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL Transformações intensas e significativas, sobretudo para a econo- mia da cidade, ocorreram com a chegada das fábricas de tecido a essa região. A Sergipe Industrial e a Fábrica de Fiação e Tecelagem Confiança foram indústrias que desempenharam papéis importan- tes na configuração do bairro. Thales Ferraz, um dos administrado- res da Sergipe Industrial, teve uma significativa distinção na história local, pois foi idealizador e criador de uma área de cultura e lazer para os operários das fábricas. O Parque Sergipe Industrial foi o pri- meiro complexo cultural da cidade, nele, além de quadras de espor- tes, havia cinema, teatro, palco para apresentações musicais, entre outras atividades disponibilizadas para os operários (GRAÇA, 2005). A fábrica de tecidos Confiança também interferiu no desenvolvi- mento urbano do bairro, construindo casas populares para abri- gar os operários. Assim surgiu a Vila Operária. Com a iniciativa de Sabino Ribeiro, proprietário da fábrica, também foram criadas uma policlínica, creches e escolas, além da bastante conhecida agremiação de futebol, a Associação Desportiva Confiança, que perdura até hoje como uma das mais importantes instituições es- portivas do estado (GRAÇA, 2005). Por muitos anos, os trabalhadores das fábricas constituíram a popu- lação do então bairro Industrial de Aracaju; por mais de cinco déca- das, essa foi a característica social, econômica e espacial do lugar. Entre os anos de 1970 e 80, houve um grande aumento de constru- ções de conjuntos habitacionais, o que gerou um crescimento da po- pulação do bairro e modificações em suas dinâmicas sociais. Outro 40/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL fator de agitação foi a ida de grandes empresas para esse distrito, como a Construtora Celi e a Viação Halley, e o aparecimento de em- presas locais de médio porte, como a Casa do Panificador e a Distri- buidora de bebidas Raimundo Juliano, que também incentivaram o desenvolvimento econômico do bairro (GRAÇA, 2005, p. 61-68). Na década de 80 surgem novos loteamentos nas proximidades de “São Sebastião, Novo Paraíso, o conjunto habitacional João Pau- lo II construído para abrigar os moradores da favela do Bonfim” (GRAÇA, 2005, p. 55). Outras habitações também foram construí- das nas redondezas, incentivadas pela COHAB-SE (Companhia de Habitação Popular de Sergipe). Os espaços vazios aos poucos fo- ram sendo ocupados, e o bairro se ampliando e modificando junto com suas características sociais. Em 2001, uma obra de revitalização da Orlinha estimulou outro setor de desenvolvimento da localidade, o turismo. A revitalização teve como objetivo torná-la mais um cartão postal da cidade, salientar as memórias do bairro impulsionando uma conexão com o passado, incentivar a apreciação das belezas natural e cultural do lugar, além de melhorar as instalações, calçadas, bares e os acessos às ruas, tor- nando a região mais atrativa. Na apresentação do livro da professora Tereza Cristina da Graça, o ex-governador Marcelo Deda – na época das obras, o então prefeito e idealizador do projeto – faz de maneira emotiva um convite à população para conhecer a “Nova orlinha”: 41/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL Venha conosco. Sente-se num desses banquinhos da Nova Orlinha e abra seu livro. Você desfrutará de uma agradável viagem ao passado, onde poderá conversar com Chica Chaves no alpendre do Maçaranduba, tomar um bonde e visitar as fábricas [...] compartilhando os sofrimentos e as alegrias dos operários. Dê uma passa- dinha na Feirinha do Tecido, experimente uma cocada, mas cuidado com o anel de ouro que o “turco” lhe ofe- recer! Pegue uma tocha e acompanhe o 1°de Maio de 1911 ou suba no carro alegórico do Bloco Papai saco- de. [...] Converse com um pescador e acerte sua canoa para acompanhar a Festa de Bom Jesus dos Navegan- tes. Pegue na mão de Dona Finha e assista a uma par- tida de futebol no campo do Confiança. [...] São tantas pessoas e lugares para visitar... Pare um pouco, e res- pire esse ar gostoso e contemple orgulhoso esse novo lugar, um velho e amado lugar que ficou novo e mais bonito para todos! (GRAÇA, 2005, p. 11) As “modernizações” desencadearam alterações de hábitos; os bares à beira-rio ganharam estruturas maiores e com mais espaço; foram construídos quiosques, quadras, um centro de artesanato. Uma re- novação aparente e funcional, que transformou o cotidiano de quem morava e andava por ali e de toda a cidade. O bairro continuou a passar por constantes modificações estrutu- rais, como uma nova revitalização, a “Segunda etapa da orlinha”, que iniciou em 20155 e foi entregue à população em 20166. Também 5 Dado retirado do site do Governo de Sergipe. Disponível em: http://www.agencia.se.gov. br/noticias/governo/especial-aracaju-zona-norte-da-capital-tera-nova-paisagem. Acesso em: 01 mai. 2019. 6 Dado retirado do site da Secretaria de Infraestrutura e Urbanização de Sergipe. Disponível em: http://www.seinfra.se.gov.br/index.php?pag=8&id=2&cod=372. Acesso em: 01 mai. 2019. 42/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL em 2015, o prédio da antiga fábrica Sergipe Industrial foi demolido para dar lugar a um shopping. Um fato curioso foi que a população em geral não se chocou com a demolição completa da fábrica, pou- cos enxergavam a importância da construção antiga como patrimô- niohistórico e cultural. Entretanto, a possibilidade de demolição da capela da Paróquia São Pedro Pescador, que existia dentro das ins- talações da fábrica, gerou mobilização de muitos moradores, que prontamente fizeram um abaixo assinado para que se mantivesse a pequena igreja dentro do shopping. As obras do novo ponto comer- cial no bairro foram iniciadas no mesmo ano e a capela foi incorpo- rada à planta por manter o seu valor simbólico-religioso e atender as reivindicações da população do bairro7. Através dessas modifica- ções, pude ver como o bairro e, consequentemente, a cidade vem interagindo com os sujeitos que nela vivem, como os indivíduos a enxergam, o que esperam e o que devolvem para ela. EMBAIXO DA PONTE Andando pela orlinha ou seguindo pela avenida paralela, é possível chegar à parte debaixo da ponte. O espaço hoje é limitado por duas ruas em suas laterais, ambas com o nome Sabino Ribeiro. Da rua nor- te, bifurcam-se três ruas sem saída, e perpendiculares a elas, do lado sul, existe um grande muro da instalação da indústria têxtil Santa Mônica, repleta de grafite em toda sua extensão. A leste, passa a ave- 7 Informação retirada da Revista Rever. Disponível em: https://reveronline.com/2015/01/26/ bairro-industrial-de-aracaju-e-o-conflito-entre-a-historia-e-o-desenvolvimento/. Acesso em: 01 mai. 2019. 43/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL nida da orlinha, Av. General Calazans, que recentemente foi ampliada, e a oeste, a Av. João Rodrigues. As vias se dispõem de tal maneira que se forma um grande canteiro retangular no meio, exatamente embai- xo da rampa de saída e chegada da ponte na parte de Aracaju. Nesse lugar foram construídos uma quadra, um espaço com mesas de jogos de tabuleiro, um espaço para apresentações artísticas com uma ar- quibancada e um palco, uma pista de skate e um ringue de boxe. Essa estrutura fez parte do projeto do governo do estado inaugura- do em 2011, o “Complexo Esportivo Dona Finha”, que fica no lado norte do canteiro. Na época da pesquisa, o complexo tinha como coordenador o ex-pugilista Valter Duarte, do projeto social Punhos de Ouro8. Em todas as idas a campo, só presenciei o funcionamento do centro em parceria com o projeto Academia da Cidade, da pre- feitura de Aracaju, cujo foco é organizar atividades físicas supervi- sionadas para a terceira idade e que tem o bairro Industrial como polo da região norte da cidade. O centro também possui controle da iluminação elétrica embaixo da ponte, que nem sempre fica ligada por completo, apenas quando solicitado formalmente por meio de ofício para eventos programados no local. No entorno desse canteiro, no lado oposto ao muro com as artes urbanas, há algumas casas (principalmente nas três ruas perpendi- culares), o centro de esportes e um pequeno prédio chamado Re- 8 Dado retirado do Site da Punhos de Ouro. Disponível em: http://punhosdeouro.blogspot. com.br/. Acesso em: 01 mai. 2019. 44/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL sidencial Jardim Confiança, que foi construído para hospedar os engenheiros na época da construção da ponte, segundo os atuais moradores. Há controvérsias sobre a forma de ocupação atual, mas algumas famílias se empilham nas pequenas quitinetes, pratica- mente embaixo da ponte. Os moradores desse condomínio são de grande importância para as atividades do evento Sintonia Periférica, pois são eles que forneciam energia para ligação da aparelhagem de som da maioria dos eventos que acompanhei. O lugar tem características peculiares sob as estruturas grandiosas da ponte. Nele, aparecem pinturas e “pixações”9 indecifráveis – uma linguagem que sobressai das superfícies dos muros e parece tomar vida ali embaixo. O que para alguns pode parecer uma poluição visual, para outros, é uma maneira de se comunicar. “Acredita-se, porém, que o pichador não tem como objetivo poluir visualmente a cidade quando marca os muros, e, sim, afirmar sua presença em uma disputa privada por visibilidade de uma tribo urbana” (SPINEL- LI, 2007, on-line). As tintas “coloridas das paredes podem desvendar informações sobre a memória da cidade e a vida social que passou 9 Preferi usar a grafia “pixação” por possuir uma maior representatividade no movimento de arte urbana brasileiro, que vai além do significado básico da palavra escrita corretamen- te e encontrado nos dicionários, e possui características diferentes do Graffiti. Segundo o dicionário Michaelis, Pichação: s.f. ato ou efeito de untar com piche; pichamento. A maneira informal de escrever pichação vem do movimento do “Pixo” na cidade de São Paulo, que consiste em aplicar escritas nos muros. Para melhor entender o movimento do Pixo em São Paulo e no Brasil, recomenda-se assistir ao documentário “PIXO”. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=skGyFowTzew. Acesso em: 01 mai. 2019. 45/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL por ali” (SPINELLI, 2007, on-line). Esse cenário se constrói e modifica -se a cada dia, as cores e as formas são expressão da variedade dos usos e de indivíduos que juntos dão sentido ao lugar. O espaço parece ser um lugar que traz liberdade para seus frequen- tadores. Há uma concessão informal relativa aos horários e aos usos pelos diferentes grupos de usuários. Pela manhã, logo cedo, ocorre a atividade da Academia da Cidade; no início da tarde, as crianças tomam conta do ambiente conjuntamente com alguns skatistas; no final da tarde, quando as crianças começam a ir para casa e mais uma turma da Academia da Cidade vem fazer aula de ginástica, che- gam os adolescentes para fazer uso da maconha e conversar. Essas práticas habituais se contrapõem frente ao dia a dia das obrigações com a escola ou com o trabalho e proporcionam variadas formas de lazer e de utilização do lugar. Dessa relação micro com o espaço embaixo da ponte, pude identi- ficar uma relação maior ainda com a cidade, suas fronteiras e suas construções cheias de significados e representações. Foi por meio da observação das expressões estéticas associadas às situações co- tidianas que vi aflorar a vida da cidade sob uma perspectiva subjeti- va e sentimental daqueles que fazem uso do lugar. Minhas visitas iniciais ao local me transformam diretamente como indivíduo. A escolha desse objeto se deu, inicialmente, pelo distan- ciamento daquela realidade, mas estar lá me mostrou quão inserida eu me sentia, o quanto as expressões me estimulavam criativa e po- liticamente como artista e pesquisadora. 46/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL Nesse espaço comum, cotidianamente trilhado, vão sendo construídas coletivamente as fronteiras simbó- licas que separam, aproximam, nivelam hierarquizam ou, em uma palavra, ordenam as categorias e os grupos sociais nas suas mútuas relações. Por esse processo, ruas, praças e monumentos transformam-se em supor- tes físicos de significados compartilhadas. Penso que lugares sociais assim construídos não estão simples- mente justapostos uns aos outros como se fossem um grande mosaico. A meu ver, sobrepõem-se e, entrecru- zando-se de um modo complexo, formam zonas simbó- licas de transição[...]. (ARANTES, 1994, p. 191) Espaços de transição, zona liminares, onde os indivíduos e o espaço interagem e criam conexões. Romper a linha simbólica “zona sul/ zona norte” com a qual eu convivi por anos me colocou em contato com a minha própria cidade. Percebi que fui aos poucos estabele- cendo novas relações, com outras pessoas e com o espaço. A paisagem da ponte vista de longe do bairro Industrial chama a atenção pela imponência, mas quando se chega perto dela surge uma sensação de discordância com o resto do ambiente. O antago- nismo dos pilares de sustentação da ponte entra em conflito visual com a arquitetura das outras construções do entorno,como se em algum momento tivessem aberto um buraco no bairro e a encaixa- do, ficando nítida a discrepância entre um “antigo” e um “novo”, en- tre o que estava ali e o que não está mais. Em uma das visitas ao campo, circulei pela orlinha, fiz um lanche em um dos restaurantes à beira do rio e percebi que havia muitas pessoas 47/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL na porta de um galpão com um letreiro grande escrito “Alma Viva”, que – só em outro momento tive conhecimento – é uma empresa de telemarketing. Muitos carros e motos, um fluxo grande de gente saindo e entrando; eu não fazia ideia de que essa empresa era tão movimentada e que se localizava lá no entorno da ponte. Durante todo meu processo de trabalho, não percebi nenhuma interação das pessoas que trabalhavam nessa empresa com o ambiente da ponte. Noutro dia, sentada no bar chamado Iemanjá, que fica bem no fim da orla e no início do canteiro central embaixo da ponte, pude ver o que acontecia embaixo dela, em um horário diferente do que eu costumava passar. Nos primeiros dias, percebi que poucas pessoas circulavam no espaço à noite – lembrava uma praça pouco ilumina- da e quase sem movimento, só a luz da parte leste da ponte estava ligada para clarear a avenida que dá seguimento à orla. A fraca lumi- nosidade parecia intimidar mais ainda a ida ao lugar. Em outro momento, sentada no ringue de boxe com uns amigos, co- nhecemos “Carequinha”, vestido somente com uma bermuda, des- calço e aparentemente andando sem direção. Quando nos viu, logo puxou uma brincadeira: ele cantava uma música e nós continuáva- mos. Cantou algumas canções e contou sobre ser bastante “famoso” na redondeza; disse-nos que se apresentava toda semana no bar O Sapatão, um dos bares mais conhecidos do bairro e que estava fe- chado há alguns anos. Por não ter mais onde cantar, ele cantava na rua para as pessoas. Após algumas canções, saiu em direção à orla. Não o encontrei novamente em minhas visitas a campo e nunca sou- 48/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL be se ele era de fato uma figura conhecida no bairro ou se aquele en- contro casual o proporcionou a apresentação de suas experiências. O que essas experiências em campo fizeram perceber é que em Ara- caju as transformações são em prol da cidade como entidade maior, colocada à frente das pessoas. É mais importante a estrutura físi- ca com boa qualidade e exuberância do que funcionalidade para a população. Tudo sem muita cautela com as dinâmicas sociais, com a história ou com a questão ambiental. Acredito que tais circuns- tâncias não sejam exclusividade da capital aracajuana e, sim, uma característica constante diante do modelo de organização pública, estrutural e do sistema político do qual fazemos parte. Através das entrevistas, pude perceber que o grupo Família Milgrau, organizador do evento Sintonia Periférica, já atuava com manifes- tações desse caráter antes mesmo da explosão de atividades desse tipo em outras partes da cidade. Acredito que o meu desconheci- mento se dava principalmente pelas fronteiras socioeconômicas e culturais demarcadas pela organização social. Percebi que certas localidades, como o bairro pesquisado, já realizavam atividades de lazer e festas em suas proximidades, em razão, principalmente, da falta de políticas públicas que abarcassem a diversidade dos estilos musicais e das dinâmica das festas, que são diferentes em outros locais da cidade tidos como mais “nobres”, onde prevalece a cultura de massa legitimada pela mídia. Apesar de não ser considerada um grande centro urbano, Aracaju apre- senta as seguintes características, descritas por Magnani (1998, p. 29-30): 49/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL as populações dos bairros da periferia dos grandes centros urbanos são em sua maioria constituídas por trabalhadores de baixa renda, de origem rural recente ou remota, inseridos de diferentes maneiras no apa- relho produtivo capitalista, sujeitos à ação dos media – membros, enfim de uma sociedade complexa, nela ocupando, não sem conflitos, os últimos escalões da estratificação social. A ocupação de espaços públicos como lugar para apresentações artís- ticas tem sido uma saída, principalmente para alguns estilos culturais alternativos que não acham espaços favoráveis para suas apresenta- ções em locais privados. Essas ocupações são, também, uma posição política em relação à maneira como a cidade vem reorganizando seus espaços de sociabilização e cultura, especificamente as festas. Durante minhas visitas a outros eventos, pude perceber que a prin- cipal diferença entre eles – os eventos de ocupação de espaço pú- blico na periferia e os eventos da classe média – é a escolha do lu- gar na cidade. Ambos parecem ter total consciência política sobre a ação de interagir com o espaço público; ao menos aqueles que organizam têm essa proposta de manifestar seu posicionamen- to com relação às mudanças da cidade e, consequentemente, as mudanças das relações sociais. As escolhas feitas pelos grupos da periferia que atuam através de manifestações como o Sintonia Pe- riférica prezam por um ponto de encontro acessível para a maioria das pessoas que participam, normalmente as praças do bairro. Já os grupos de classe média escolhem lugares representativos his- toricamente ou lugares turísticos, como a Orla da cidade, a praça Fausto Cardoso, o Viaduto do DIA - Distrito Industrial de Aracaju. 50/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL Em dados colhidos nas entrevistas, chamou atenção o fato de que nenhum dos jovens que participou assiduamente das atividades embaixo da ponte possuía ensino superior completo, mesmo ten- do idade suficiente para a sua conclusão. Somente sete deles es- tavam cursando o ensino superior e a maioria continua no ensino fundamental, o que comprova a dificuldade no acesso a espaços institucionais de escolarização. “O sistema escolar contribui para reproduzir os privilégios dentro da sociedade, manipula aspirações e modifica a qualidade social daqueles que detêm a titulação ge- rando expectativas diante do futuro” (BOURDIEU, 1983, p. 112-121). É visível a diferença no grau de escolaridade entre os participantes/ organizadores dos eventos na periferia e os dos eventos em locais mais frequentados pela classe média da cidade, confirmando a tese de Bourdieu sobre os privilégios sociais da educação. CONCLUSÃO O crescimento das cidades vem causando uma separação espacial entre seus habitantes e mudando o caráter das relações interpessoais e dos indivíduos com as instituições sociais, gerando alterações de comportamento na sociedade contemporânea. As juventudes vêm desenvolvendo maneiras de acompanhar essas mudanças, criando táticas de subversão e de interferência no cenário urbano de acordo com as situações do dia a dia. A carência em vários setores da vida social começa a produzir inquietações, necessidades de trocas de per- cepções e dissolução de alguns paradigmas. Uma nova maneira de estar e agir no mundo germina através de associações de sentimentos e de práxis equivalentes com o desejo de alterar a ordem cotidiana. 51/208 CIDADES, MEMÓRIAS E PATRIMÔNIOS LUCIANA CHIANCA E ULISSES NEVES RAFAEL Questionamentos relativos às problemáticas sociais aparecem diante das circunstâncias em que a nossa sociedade se encontra, no tocante à política, à educação, à mobilidade urbana, ao incentivo à cultura e à arte etc. Em Aracaju, essas indagações também aconte- cem mediante a busca pela ocupação e ressignificação dos espaços públicos. A rua se torna cada vez mais um lugar de posicionamento político e de possibilidades artístico-culturais para os jovens que al- mejam mudança diante do padrão cultural hegemônico da cidade. Atreladas a essa nova maneira de se
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