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SAMUEL SCHNEIDER PASSO FUNDO SALUZ 2019 © 2019 Samuel Schneider Edição: Editora do IFIBE Capa: Diego Ecker Revisão: Daniela Cardoso e Jenifer Bastian Hahn Impressão e Acabamento: Gráfica Berthier Editora do IFIBE Rua Senador Pinheiro, 350 99070-220 – Passo Fundo – RS Fone: (54) 3045-3277 E-mail: editora@ifibe.edu.br Site: www.ifibe.edu.br/editora Todos os direitos reservados e protegidos pela lei nº 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora ou do(s) autor(es), poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. CIP – Catalogação na Publicação S359h SCHNEIDER, Samuel Hitler conquista a União Soviética : origens do imperialismo nazista / Samuel Schneider. – Passo Fundo: Saluz, 2019. 222 p.; 23 cm. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-69343-56-1 1. Hitler, Adolf, 1889-1945. 2. Nazismo. 3. União soviética – Política e governo. 4. Guerra Mundial, 1939-1945. I. Título. CDD 320.5 CDU 321.64 Catalogação: Bibliotecária Angela Saadi Machado - CRB 10/1857 7 Sumário Prefácio ......................................................................................... 9 Prólogo: o território da união Soviética como “eSPaço vital” alemão O legado do ultramar .................................................................... 13 Manipulando a história .................................................................. 19 As três inspirações extra-europeias: Índia, África e Estados Unidos .............................................................................. 22 As fontes primárias da pesquisa .................................................... 23 Revisão bibliográfica ....................................................................... 26 caPítulo 1. o domínio britânico na índia Símbolo de grandeza imperial ........................................................ 33 Dominando os “ridículos cem milhões de eslavos” ...................... 41 Subjugar e reprimir, mas sempre mantendo distância .................. 46 Apoio para o aprendizado: o velho contato anglo-alemão ............ 55 caPítulo 2. o imPerialiSmo na áfrica Explorando a mão de obra eslava .................................................. 63 O legado do Império Colonial Alemão ........................................ 71 Ao invés do rio Níger, com a Marinha, o rio Volga com o Exército .......................................................................................... 83 8 Outras comparações ....................................................................... 87 A equiparação ideológica entre eslavos e negros ........................... 92 caPítulo 3. o deSbravamento doS eStadoS unidoS Modelo para uma “colônia de povoamento”................................. 105 Uma nova “Guerra Indígena” ....................................................... 111 A influência dos livros de Karl May ............................................. 118 Justificando a “germanização” ....................................................... 123 ePílogo: rePenSando a nova ordem naziSta Reflexo, não negação, da modernidade ocidental ........................ 135 “A melhor colônia do mundo” ...................................................... 140 O racismo colonial instituído na Europa ....................................... 144 Contradições e falhas do domínio nazista .................................... 148 De invasor a invadido: a “metrópole” conquistada pela “colônia” .......................................................................................... 153 notaS de fim ............................................................................... 157 bibliografia Fontes primárias ............................................................................ 207 Fontes secundárias .......................................................................... 210 Artigos e dissertações acadêmicas ................................................. 218 9 Prefácio Muito se escreve atualmente sobre o Holocausto judeu e sobre as grandes operações da Segunda Guerra Mundial, como Stalin- grado e o Dia D na Normandia. Há mais de 40 mil obras sobre o regime nazista, incluindo mais de 100 biografias famosas de Hitler. Por outro lado, a tragédia dos povos eslavos da Europa Centro-Oriental ainda é negligenciada. Preencher parte desse vácuo é o objetivo do presente estudo, centrado na campanha contra a União Soviética, que identifica como Hitler e seus par- tidários planejavam dominar, em longo prazo, a população eslava soviética, formada sobretudo por russos e ucranianos. Além disso, este livro contribui para as pesquisas recentes sobre a relação entre o nazismo e a expansão europeia no além- mar. O colonialismo e, sobretudo, o imperialismo europeus tiveram uma influência decisiva na invasão da União Soviética em 1941 (a maior operação militar da história, com 3,8 milhões de soldados alemães e aliados numa frente de quase 3 mil quilô- metros, desde o Círculo Polar Ártico até o Mar Negro). Por trás dessa invasão titânica, houve métodos e objetivos parecidos com os dos conquistadores que haviam se aventurado na América, na África e na Ásia. Inova-se aqui com uma análise teórica do nacional-socialismo, salientando a linguagem e a representação ideológica dos líderes do regime, a fim de desvendar suas “visões de mundo”. Sobre- tudo a de Hitler, que tinha uma percepção um tanto fantasiosa 10 do além-mar, expressa, por exemplo, em seu interesse juvenil pelos romances do alemão Karl May sobre o Faroeste dos Esta- dos Unidos. Ainda admirava as colônias do Império Britânico. Potências europeias como Esparta e o Império Romano (da Idade Antiga) e o Império Franco (da Idade Média) também influenciaram a identidade geopolítica hitlerista. Até o islamismo era admirado pelo ditador, devido às tendências militaristas de tal religião, ausentes no cristianismo. Não se enfoca, nesta pesquisa, como a postura bélica e ad- ministrativa do Terceiro Reich antes da derrota em Stalingrado refletiu, objetivamente, padrões usados anteriormente nas co- lônias. Ao contrário, dá-se mais atenção à mentalidade da alta cúpula nazista, ou seja, ao seu imaginário subjetivo, em especial aos planos geopolíticos para o novo “Império de Mil Anos”, ou seja, a superpotência que a Alemanha deveria se tornar caso derrotasse o Exército Vermelho de Stálin. É claro que tal abordagem implica analisar as declarações pessoais dos próprios nazistas, as quais se encontram em fon- tes como discursos, reuniões e memorandos, cujos conteúdos geralmente permaneceram inacessíveis ao público da época. É interessante que os registros das reuniões militares que Hitler co- mandou entre 1942 e 1945 só foram publicados na Alemanha em 1962, e algumas fontes de seus discursos secretos só apareceram nos anos 2000. Da mesma forma, por razões políticas, somente após o colapso do comunismo o governo russo permitiu o acesso aos arquivos da era soviética. Em 2013, o governo americano anunciou a descoberta de um diário perdido, escrito entre 1936 e 1944 pelo ministro Alfred Rosenberg – um dos nazistas mais atuantes no espaço soviético –, o que também revela a possibili- dade constante de novas interpretações. 11 P r ó l o g o O territóriO da UniãO SOviética cOmO “eSpaçO vital” alemãO 12 13 O legado do ultramar Na obra Origens do totalitarismo, a filósofa Hannah Arendt mostra que alguns xenófobos alemães do século XIX, como Ernst Hasse, da Liga Pangermânica, já haviam proposto que a Europa fosse dominada com métodos usados fora do continente. Os alemães deveriam tiranizar seus próprios vizinhos – sobretudo judeus, poloneses e tchecos, além de povos latinos como o francês eo italiano, em menor escala. Segundo Hasse, os alemães “tinham o mesmo direito à expansão que outras grandes nações e, se não [lhes] fosse concedida essa possibilidade no além-mar, seriam forçados a fazê-lo na Europa1”. Hitler transformou tal utopia num programa oficial de Estado. Ele rompeu com a crença, expressa por Mussolini ao industrial italiano Pirelli, de que era “impossível tratar países europeus como colônias2”. Até ali intercontinental, eurocêntrica, a hierarquização imperialista se tornou uma realidade intra- -europeia, germanocêntrica. A formação da Nova Ordem nazista iniciou em março de 1939, quando a parte tcheca da Tchecoslo- váquia foi transformada, por decreto, no Protetorado da Boêmia e Morávia, sob controle de Berlim. À semelhança do que os franceses faziam na Tunísia e no Marrocos, os alemães impediram os tchecos de terem uma política externa soberana, reorganizaram a economia e criaram um sistema de jurisdição dual, que deixava os cidadãos alemães isentos da lei local. As instituições democráticas, inclusive o Parlamento, foram abolidas. Publicado em Londres, um livro pioneiro para a época chamava-se O primeiro protetorado europeu da Alemanha, referindo-se ao infortúnio dos tchecos: “Nunca antes se impu- seram condições semelhantes a uma nação pertencente à raça branca. Isso constitui o primeiro estatuto colonial alemão, na história moderna, para uma nação branca e civilizada3.” 14 Manifestada na Tchecoslováquia, a violência nazista se radi- calizou com a invasão da Polônia em setembro de 1939, que deu início à Segunda Guerra Mundial. Esse foi o primeiro “duelo entre povos e raças” da era hitlerista, destinado a escravizar e mes- mo exterminar parte da população conquistada. Muitos alemães que haviam servido na África acabaram convocados. Por outro lado, os “sub-humanos” polacos acabaram equiparados aos povos coloniais de cor: supostamente atrasados, vadiando na pobreza em meio a pulgas, doenças e sujeira, os polacos se tornavam assim “selvagens” incapazes de absorver a cultura europeia. Numa conferência em dezembro de 1939, o governador Hans Frank exigiu que, no Governo-Geral estabelecido em partes da antiga Polônia, fosse “considerada a vontade do Führer [Hi- tler] de que essa área será o primeiro território colonial da nação alemã”4. Mais de 11 milhões de pessoas viviam no Governo- -Geral, que incluía a ex-capital Varsóvia, Cracóvia e Lublin. Não era um “protetorado” como em Boêmia e Morávia, mas uma zona fora do Reich e além de sua lei, com os habitantes polacos sem Estado e sem direitos5. Críticos também reconheceram tal semelhança. Nascido no Império Russo mas morando na França, o pintor judeu Simon Segal escreveu que a condição jurídica do Governo-Geral era “semelhante à de uma colônia sob o siste- ma mercantilista do período anterior às Revoluções Francesa e Americana, com o diferencial de que fica em plena Europa6”. Manifestada na Tchecoslováquia e radicalizada na Polônia, a crueldade nazista chegou ao apogeu durante a invasão da União Soviética, iniciada em junho de 1941. Essa foi a campanha mais bem organizada de toda Segunda Guerra Mundial, a que mais teve motivação ideológica. Apesar de exposto, para o público, como uma “Cruzada europeia contra o bolchevismo7”, o conflito nazi-soviético também foi a consumação de um plano formulado por Hitler ainda nos anos 1920: a conquista de “espaço vital”, ou seja, um imenso território para exploração econômica e po- 15 voamento. Ao derrotar o arqui-inimigo comunista, a Alemanha fortaleceria seu progresso material com o trigo, o ferro, o car- vão e o petróleo do Leste. Entre 220 e 250 milhões de alemães deveriam viver na Europa pós-soviética. A nova pax germanica talvez se estendesse até os Montes Urais, na distante fronteira com a Ásia, muito maior que a de conquistadores como Alexandre Magno e Napoleão. O general Gotthard Heinrici imaginava um avanço ainda mais distante. Ao escrever à família em dezembro de 1941, quando lutava perto de Moscou, ele afirmou que os “proteto- rados” estabelecidos no Báltico e na Ucrânia (com o nome de Comissariados) tornar-se-iam “boas áreas coloniais”; o resto da Rússia até o Lago Baikal, na longíssima Sibéria asiática, perto da China, seria organizado em repúblicas dependentes da Alemanha. Já a Rússia banhada pelo Oceano Pacífico ficaria sob controle do Japão, aliado alemão8. Era no Leste Europeu – não na África ou na Ásia – que Hitler esperava tomar aquilo que definiu como “a melhor colônia do mundo9”, abrangendo “oportunidade de trabalho para vários séculos10”. Ele visava a um programa de metamorfose étnica em escala continental, não cogitada nem mesmo por fascistas e comunistas. Desprezava eventos como a Revolução Francesa que, supostamente, só tivera repercussões sociopolíticas. Ao conduzir a maior operação bélica de toda história, Hitler esperava que a Ale- manha talvez até superasse, em poder geopolítico, as duas principais potências do além-mar: o Império Britânico e os Estados Unidos. Todavia, não previu que a Alemanha acabaria derrotada ante o inverno russo, como a França de Napoleão em 1812. É claro que, nesse programa, a população nativa da Europa Oriental seria especialmente atingida. Humilhados como “coelhos eslavos” ou “animais humanos” completamente preguiçosos, de- sorganizados e imundos, russos e ucranianos formavam a “escória racialmente estranha” cuja desgraça, segundo Hitler, era o pres- 16 suposto para a nova grandeza alemã. “Nosso princípio basilar é que essa gente existe apenas por um motivo: ser economicamente útil para nós11.” Como o ditador, seus subalternos na Ucrânia também degradavam a gente local como cultural e biologicamente inferior: “Para ficar claro, estamos no meio de negros12”. Num regime moderno com milhões de membros, onde nem sempre se aceitou a autoridade de Hitler, naturalmente houve vozes contrárias. O jurista e diplomata Otto Bräutigam, por exemplo, criticou num memorando escrito o fato de os eslavos serem antropologicamente subestimados como “brancos de segunda classe”. Ele aprovava, tal como a maioria dos conser- vadores europeus, a meta de destruir o bolchevismo stalinista; entretanto, lembrou que prisioneiros do Exército Vermelho es- tavam “morrendo de fome como moscas”, algo que não ocorria com os prisioneiros poloneses e sérvios, nem com os franceses, muito menos com os ingleses, holandeses e noruegueses13. No pós-guerra, perante o Tribunal de Nuremberg, até nazistas de alta hierarquia depuseram que haviam desconhecido a amorali- dade facínora de Hitler. Colocar toda culpa no ditador foi uma simplificação comum para alegar inocência14. Usando o conceito do filósofo Georg Hegel, o “espírito do tempo” em que surgiu o Partido Nazista foi muito influenciado pela expansão imperialista na África e na Ásia, e pela expansão americana no Meio-Oeste. Hitler nasceu em abril de 1889. Desde jovem, ele ouvia falar dos projetos um tanto megalomaníacos da época, como a ferrovia Berlim-Bagdá, cobiçada pelos alemães, e a ferrovia transafricana do Cabo ao Cairo sonhada pelos ingleses; ainda lia os famosos livros do alemão Karl May sobre o Faroeste estadunidense, do gênero aventura que remetia aos relatos de Marco Polo. Conhecia bem o simbolismo da chamada Era dos Impérios (1875-1914). Vários partidários seus haviam realmente servido nas colônias alemãs, sobretudo na África subsaariana, como as atuais Namíbia e Tanzânia. 17 Com o confisco das colônias alemãs pelo Tratado de Ver- salhes, em julho de 1919, a Alemanha foi rebaixada à condição de primeira potência europeia pós-colonial. Para os nazistas, Versalhes marcou o apogeu da “balcanização” alemã, da “suicização” alemã – a transformação do país numa “segunda Suíça”, pacata e inofensiva, dominada pela corrupção degenerada de povos balcânicos como o romeno15. Fazia parte da solução retomar o passado nacionalista in- terrompido por Versalhes e pela República de Weimar. Em fevereiro de 1942,Hitler enalteceu seu hegemonismo como uma adaptação ou atualização, melhorada, do que ocorrera antes da Primeira Guerra Mundial na pequena colônia alemã de Kiauchau, no noroeste da China: “Hoje, nós temos os espaços russos. Eles são menos atraentes e mais inóspitos, porém valem mais para nós16”. Seria anacrônico vincular a política nazista ao colonialis- mo mercantilista, consolidado no século XV com a partilha da América por Espanha e Portugal. Antes de 1871, aliás, nem existia uma Alemanha como Estado unificado. Deve-se focar no imperialismo – um conceito polissêmico, explicado de várias formas, mas segundo Hannah Arendt referente a um conjunto de práticas e mentalidades só surgido nos anos 1880, inclusive no Império Alemão, e direcionado principalmente para a África e a Ásia17. Algumas semelhanças são inegáveis, a despeito das diferenças óbvias em tempo e espaço. Como o imperialismo além-mar, a conquista da Europa Oriental em 1941 foi realizada por uma potência industrial capitalista, interessada em recursos naturais e zonas para povoação. Tentou-se atrair o povo alemão para a causa, via promessas de melhoramento social, e com par- ticipação da “burguesia” financeira alemã (incluindo companhias como BMW, Mercedes-Benz e Auto Union, precursora da atual Audi, além de notáveis como o engenheiro Ferdinand Porsche). Empregou-se aparatos modernos de burocracia e combate militar. E como no imperialismo, por fim, justificou-se a arbitrariedade 18 com teorias racistas “científicas”, potencialmente genocidas, que rebaixavam a antropologia das vítimas. Essa combinação essencialmente contemporânea não pode ser observada nos fenômenos da história alemã continental que mais eram admirados pelos nazistas: o Império Franco, os Cavaleiros Teutônicos, o Sacro-Império e a Hansa, além da Áustria e da Prússia pós-medievais. Tampouco pode ser observada na figura do chanceler prussiano Otto von Bismarck. Apesar de elogiado por unificar a Alemanha em 1871 com seu militarismo “sangue e ferro”, por sua postura antipolonesa e por sua luta contra o movimento operário, Bismarck foi associado à uma aristocracia agrária que não planejara dominar a Europa eslava com o racismo do tipo hitlerista. Nem mesmo a invasão do Império Russo Czarista durante a Primeira Guerra Mundial – época do Kaiser Guilherme II – pode ser encarada como um bom precursor18. Embora Lênin tenha criticado essa “guerra imperialista (isto é, uma guerra de conquista, de pilhagem e de rapina)”19, denominação também usada por Stálin20, não houve uma sistemática importação, para a Europa, do que acontecia no além-mar. Em 1914-18 o gover- no monárquico alemão anunciara a criação de Estados eslavos aliados, um método rejeitado, duas décadas depois, como ex- cessivamente cortês e conservador pelo ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels: “O nacional-socialismo é muito mais impiedoso nessas questões. Ele só faz o que é proveitoso para seu próprio povo21.” Assim, mesmo com reservas, pode-se aceitar o que o inte- lectual francês Aimé Césaire escreveu na obra Discurso sobre o colonialismo, de 1955. Para ele, os nazistas “aplicaram à Europa processos colonialistas até então reservados exclusivamente aos árabes da Argélia, aos ‘coolies’ da Índia e aos negros da África22.” Ainda em 1943, a filósofa francesa Simone Weil escrevera que o hitlerismo consistia na “transposição, para o continente europeu, 19 dos métodos coloniais de conquista e dominação23.” E num panfleto clandestino da mesma época, o padre católico ucrania- no Ivan Hryniokh escreveu que a interferência nazista em sua pátria baseava-se no seguinte lema: “como não teremos colônias na África, elas devem ser estabelecidas na Europa24”. O próprio Stálin enfatizou esse ineditismo. O ódio religioso, nacionalista e classista-econômico era comum desde a Idade Média, ao passo que os eslavos foram excluídos até mesmo da “raça branca”, conceito pouco usado até ali em rivalidades no continente. Manipulando a história As lideranças nazistas geralmente dispunham de um nível inte- lectual alto, tendo escrito livros e discursos, com certa profun- didade, para expor suas fantasias. O ministro da Propaganda Goebbels tinha até doutorado em filosofia pela Universidade de Heidelberg25. Logo, o expansionismo nazista acabou ilustrado e justificado com uma interpretação tendenciosa do passado. Enquanto o comunismo proclamava um futuro (econômico) inédito, nunca alcançado antes pela humanidade, o nazismo bus- cou na história modelos ou inspirações para as práticas (racistas) do regime, que, teoricamente, repetia aquilo já feito por outras potências. Hitler escreveu em seu livro Minha luta: “A arte de pensar pela história, que me foi ensinada na escola, nunca mais me abandonou. A história universal tornou-se para mim uma fonte inesgotável de conhecimentos para agir no presente, isto é, para a política26”. Tal processo de figuração teórica estendeu-se à guerra contra a URSS. Chamada “Operação Barbarossa” – em homenagem ao imperador alemão medieval Frederico Barbarossa, ou Barba- -Ruiva, que participou das Cruzadas no século XII – a campanha oriental foi a mais ideologicamente embasada de toda era nazista. Com uma fascinação romântica e nostálgica, mencionou-se epi- 20 sódios como os Cavaleiros Teutônicos, que haviam dominado as margens do Mar Báltico na Idade Média, para atestar a velha presença alemã no “Oriente”27. Em novembro de 1941, ademais, Hitler inseriu sua campanha numa tradição milenar de expansão europeia: “Na Antiguidade, a Europa se restringia à parte sul da península grega; depois a Europa se confundiu com as fronteiras do Império Romano. Se a Rússia for derrotada nesta guerra, a Europa se estenderá até os limites da colonização germânica28”. Esse tipo de paralelo ainda foi usado num contexto geopo- lítico. Indicava quais os benefícios a serem alcançados em caso de vitória. Apelando para a geografia, Hitler chegou a definir o Mar Báltico como um futuro “Mediterrâneo alemão”; valorizou o sul da Ucrânia como uma “Riviera alemã” parecida com a da França, devido à sua beleza e ao seu clima quente; falou até mes- mo em “criar um Jardim do Éden29”. No futuro, Berlim seria reconstruída com uma arquitetura imponente e, renomeada como Germania, tornar-se-ia “uma capital mundial só comparável ao antigo Egito, à Babilônia ou a Roma30”, muito superior a Paris e Londres. Tais analogias foram parte essencial da linguagem nazista. O passado ajudava a explicar como os alemães deviam agir com os eslavos e o que ganhariam impondo sua hegemonia. Tratava-se, além disso, de mostrar a viabilidade de um projeto tão ambicioso. Nesse sentido, Hitler invocou a tradição da Igreja Católica e da República de Veneza imaginando que o Estado nazista poderia “durar de oito a nove séculos31”, com gestores notórios à altura dos Doges venezianos. Essa mesma lógica de esclarecimento e estímulo é que moti- vou as menções ao ocorrido na Ásia, África e América. Tratava- -se de conscientizar historicamente até os escalões mais baixos do regime para a ação prática. Só que havia uma vantagem: a atualidade, pois a supremacia da “raça ariana” pelo globo era uma realidade da época, especialmente sugestiva. Hitler exigia, ou pelo menos autorizava, que seus subordinados aplicassem 21 métodos capitalistas já conhecidos pelo grande público, também incentivando uma atitude de desdém, prepotência e rapacidade comum, talvez, desde as navegações espanholas e portuguesas no século XV, tempo de Cristóvão Colombo, radicalizada a partir de 1884. Queria que o comunismo soviético desaparecesse, do solo europeu, mais ou menos como os Impérios Asteca e Inca com a chegada dos cristãos. A identidade da época ainda incluía diversos fatores, que às vezes se complementavam em harmonia: o pangermanismo, o ro- mantismo nacionalista, o pensamento de autores como Nietzsche, Gobineau, Wagner etc. Tal cenário anterior, com suas aspirações latentes,serviu de base para a manipulação nazista das massas. Embora Hitler fosse vangloriado como um “Messias” e mesmo como um “Jesus Cristo alemão32”, ele só foi tão longe com dema- gogia histórica – focou-se, notavelmente, nos fracassos e traumas que a Alemanha testemunhara desde sua unificação em 1871. Com senso de urgência – algo comum a vários regimes genocidas, como o Império Otomano, o Camboja de Pol Pot e a própria União Soviética –, os nazistas olhavam para o mapa- -múndi da época com certa inveja. Tendiam a encarar o planeta como uma arena darwinista de competição, pois haviam testemu- nhado o confisco do território alemão, colonial e também metro- politano, pelo Tratado de Versalhes em junho de 1919, devido à derrota na Primeira Guerra Mundial. Não aceitavam a pequenez germânica perante as potências que mais se destacavam no ul- tramar. Os Estados Unidos contavam com um imenso território continental; a Inglaterra mantinha um império mundial baseado na Índia; a França controlava sobretudo o noroeste da África; até os pequenos Portugal, Holanda e Bélgica tinham colônias; os japoneses tinham entrado na Manchúria chinesa em 1931 e a Itália invadiu a Etiópia quatro anos depois. Em resumo, até países minúsculos e não-europeus dominavam terras exóticas. O Terceiro Reich, pretensamente, tinha ainda mais direito do que 22 eles, porque a Alemanha era a nação-núcleo ariana: após a China, “a mais numerosa estrutura política de uma única raça existente na Terra”, com mais de oitenta milhões de germânicos33. Hitler também tentava, de modo cínico, justificar os crimes nazistas. Ele dizia adaptar ou até repetir o que outros haviam feito, definindo seu antieslavismo não como algo inédito, e sim como aceitável e mesmo inevitável. Costumava invocar em discursos “a inexorável lei do Talião”, a “vontade eterna do Deus Todo- -Poderoso34”, apoiando-se numa combinação curiosa de biologia com teologia. Leitor de Nietzsche, zombava da paz perpétua advogada por Kant, e abominava a igualdade universal de Marx e Lênin. Ainda em 1937, numa reunião na Chancelaria do Reich com generais, Hitler já havia mencionado os Impérios Britânico e Romano como provas de seu fatalismo darwinista35. Dois anos depois, a eclosão da guerra viabilizaria a limpeza étnica totalitária. As três inspirações extra-europeias: Índia, África e Estados Unidos Nos cálculos do Terceiro Reich, aproximadamente 100 milhões de eslavos europeus acabariam subjugados. Eles habitavam mais de 5 milhões de quilômetros quadrados, em dinâmicas regionais especificas devido a peculiaridades como clima e relevo. Não seria possível, nem conveniente, impor um único sistema de domina- ção a toda essa gente. No caso específico da União Soviética, o planejamento nazi pode ser explicado, esquematicamente, a partir de três tipos complementares de violência, para setores diferentes da população local; cada um desses modelos foi associado ao ocorrido em partes diferentes da Terra. Na Índia, os ingleses mantinham seus súditos numa condição de precariedade cultural e política. Na África subsaariana, os negros haviam sido explorados como mão de obra descartável, inclusive por alemães. E nos Estados Unidos, os índios haviam 23 sido exterminados em massa mediante a expulsão de suas terras. No imaginário nazista, tais episódios serviam de inspiração para o que fazer com a população soviética: controlar a maioria, explo- rar alguns (sobretudo ucranianos) e eliminar outros (sobretudo russos comunistas). Tal divisão lógica, ao estilo de Max Weber, é um mero recur- so metodológico de interpretação. Ela apresenta falhas, perante os enigmas da chamada Lingua Tertii Imperii, a linguagem do Terceiro Reich36. Mesmo assim, a historiadora Wendy Lower ressalta que nos devaneios nazistas “encontramos referências à fronteira norte-americana, ao senhorio britânico na Índia, e à exploração europeia sobre os africanos no final do século XIX37”. Paradoxalmente, o Império Britânico e os Estados Unidos foram inimigos da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Hitler lutou contra dois países cujos métodos esperava copiar: caso raro na história! Ele só expôs essa admiração em declarações privadas (“secretas”), em reuniões, memorandos e discursos que geralmente ficaram restritos à alta cúpula nazista, pois como era chefe de Estado desde 1933 não podia admitir oficialmen- te suas intenções. Em público, ele optou por criticar Londres e Washington, para desmerecer seus adversários Churchill e Roosevelt e, assim, melhorar a própria reputação. Enfim, acusava os inimigos “anglo-saxões” de agirem justamente com as táticas que esperava empregar: velha artimanha de ditadores, inclusive de Lênin, Stálin e Mussolini. As fontes primárias da pesquisa No quesito publicidade, a postura nazista foi muito diferente com relação a judeus e eslavos. O antissemitismo nazista foi explícito desde os anos 1920, sendo que mesmo o Holocausto acabou pu- blicamente reconhecido pelo regime38; afinal, o “problema judeu” teve uma “Solução Final” no genocídio. Só que o contato entre 24 alemães e eslavos perduraria por vários séculos, de modo que o máximo de sigilo devia evitar que os “Ivans” conhecessem seu destino e, então, combatessem o soldado alemão que depreciavam como “Fritz sanguinário”. Numa reunião em julho de 1941, Hitler enfatizou que se limitaria a “primeiro dominar, depois administrar e, por fim, explorar” o território soviético europeu, mantendo suas intenções em segredo39. Associava tal falsidade ao domínio britânico na Índia. Ele era, aliás, uma pessoa muito reservada, muito mais do que Churchill e Napoleão, talvez até mais que Stálin40. Como fonte primária, destacam-se as Conversas de Hitler à mesa: a compilação, editada no pós-guerra, do que ele declarou oralmente a seu círculo íntimo, sobretudo entre julho de 1941 e setembro de 1942. Ele autorizou que nessa época de euforia, marcada pelo avanço do Exército alemão, datilógrafos registras- sem por escrito o que confessou aos aliados mais confiáveis, sob supervisão de seu secretário pessoal Martin Bormann. Embora secretas na época, tais reflexões seriam publicadas no futuro para doutrinar os membros do Partido Nazista41. A maior parte das anotações ocorreu no quartel-general ultrassecreto Toca do Lobo, nas florestas da Prússia Oriental, onde Hitler se instalou logo após o início da guerra nazi-soviética. Nas Conversas à mesa percebe-se o quanto Hitler negligen- ciava o jus in bello dos conflitos europeus tradicionais, tomado pela dita “embriaguez do Leste”: o desejo de transformar seus pântanos e estepes como não se ousou fazer em países ocidentais como a França42. Rejeitava o direito intra-europeu, suas leis e tratados, julgando-os mediocridades jurídicas. Costumava evitar a companhia de advogados. A culpa por esses crimes ainda recai sobre outros personagens, como Heinrich Himmler. Especial- mente temido e odiado, Himmler foi o líder da SS: organização de elite responsável pelo povoamento de territórios estrangeiros 25 e pelo Holocausto, que cometeu os piores massacres do século XX, inclusive Auschwitz. Previsivelmente, até soldados e administradores de baixa hierarquia acabaram contagiados pela utopia da chefia nazi. Mais tarde laureado com o Nobel de Literatura, o jovem Heinrich Böll, apesar de não ser um combatente fanático, escreveu à mãe no final de 1943 a partir de um hospital militar na União Soviética: “Tenho muitas saudades do rio Reno, da Alemanha, mas ainda assim penso muito na possibilidade de uma vida colonial aqui no Leste depois de uma guerra vitoriosa43.” A mesma sedução envolveu vários empresários, industriais, aristocratas, servidores públicos e, sobretudo, membros das Forças Armadas. Numa carta para casa um soldado da Força Aérea escreveu, com me- nosprezo, que “no geral a Rússia é um imenso desapontamento para nós. Nada de cultura, nada de paradisíaco [...], um baixo nível, uma imundície, uma gente, que nos mostramque nossas grandes tarefas coloniais ocorrerão aqui44.” Tal terminologia foi usada até por estrangeiros. Às vezes num tom apologético e nostálgico, que glorificava os feitos alemães sem consideração pelo sofrimento alheio. Líder da divisão belga da SS, Léon De- grelle assim elogiou em suas memórias pós-guerra as ferrovias, rodovias, fábricas e usinas construídas por companhias alemãs na Ucrânia, nas bacias dos rios Donets e Dnieper: “Em um ano a Alemanha havia criado na Rússia a colônia mais rica de todo o mundo. Que trabalho maravilhoso!45” Tudo isso reforça a necessidade de contextualizar o ambiente psicossocial da época. Os nazistas não eram marginais niilistas, e muito menos loucos, já que aproveitaram a ambição de pessoas comuns que não eram criminosas patológicas, incluindo advoga- dos, médicos, professores e intelectuais. Também seduziram os grandes capitalistas alemães. Com algum exagero, os opositores comunistas denunciavam famílias proprietárias de cartéis indus- triais – Krupp, Röchling, Poensgen e Siemens – como os “clientes 26 imperialistas” na luta “pelos campos de grãos ucranianos e pelo petróleo do Cáucaso46.” A mesma acusação atingiu instituições financeiras, por exemplo o Deutsche Bank, e a fabricante de roupas Hugo Boss. A partir da derrota alemã na batalha de Stalingrado, no início de 1943 (“certamente a pior tragédia já conhecida por um exército alemão47”, que acabou com a possibilidade de subjugar a URSS), a euforia nazista deu lugar a certa decepção e medo. As menções ao ultramar se tornaram então mais raras. E o Ministério da Propaganda proibiu rigorosamente “expressões de que a Alema- nha está estabelecendo colônias no Leste48”. Conforme o regime foi chegando a seu fim desastroso em 1945, cresceu o temor de que a própria Alemanha conhecesse uma invasão estrangeira – como a que acontecera, sobretudo, na América pós-colombiana. Em novembro de 1944, por exemplo, militares alemães na frente oriental foram recomendados, por uma exortação do general Heinz Guderian, a usar táticas de guerrilha “semelhantes às dos índios”. Livros fantasiosos sobre o Faroeste dos Estados Unidos, sobretudo os do escritor alemão Karl May, como Winnetou, foram distribuídos a oficiais e soldados para que aprendessem a lutar com a bravura associada aos nativos americanos49. Antes de Stalingrado, os russos é que haviam sido comparados com os índios, devido à resistência encarniçada na defesa de sua terra. Mas no fim essa postura militar foi recomendada aos próprios alemães, que eram expulsos e aniquilados em massa pelo Exército Vermelho. Revisão bibliográfica Já nos Julgamentos de Nuremberg (1945-46), as potências vito- riosas na Segunda Guerra Mundial, inclusive a União Soviética, acusaram empresas alemãs como Bosch, Siemens, Krupp e I.G. Farben – que incluía BASF e Bayer – de conspirarem a favor da política externa nazi. O general Roman Rudenko, principal 27 promotor soviético, sintetizou o vocabulário marxista da época, usado até por socialdemocratas, ao anunciar que o “fascismo alemão” fora financiado por capitalistas “reacionários” de cartéis metalúrgicos e carboníferos50. Nos Julgamentos Subsequentes de Nuremberg (1946-49), realizados exclusivamente por americanos, uma linguagem mais cristã foi usada pelo promotor americano Telford Taylor, que identificou a “trindade profana de nazismo, militarismo e imperialismo econômico51” como a causa da ca- lamidade. Embora exposta nos anos 1940, tal interpretação se consolidou especialmente na última década, entre uma geração de estudiosos não comprometidos com assuntos oficiais e devi- damente apoiados pelo método científico. O historiador britânico Mark Mazower merece destaque. Na obra O Império de Hitler: a Europa sob o domínio nazista, ele alega que o nazismo refletiu o “velho desejo de controlar terri- tórios e povos, que tinha levado os europeus para a África, para as Américas e para as mais remotas ilhas do Pacífico”. Como agravante, os nazistas tentaram a liderança global numa velocida- de vertiginosa, em poucos anos, e com originalidade geográfica: tentaram governar o robusto povo russo, berço dos escritores Dostoiévski e Tolstói, como se fazia com as tribos canibais das selvas do Congo52. A historiadora Shelley Baranowski alega que, apesar de sua natureza superlativa, o nazismo contou com forte legado opera- cional da violência usada nas colônias alemãs na África. Na atual Namíbia, em especial, o Exército colonial alemão concebeu o extermínio dos negros hereró nativos, entre 1904 e 1907, como uma disputa por espaço contra semi-macacos similares a chim- panzés. Tal herança deixada pelo Segundo Reich de Bismarck influiu na competitividade desesperada do Terceiro Reich, no medo de ser sobrepujado por adversários melhor preparados53. Como Baranowski, outra mulher de destaque é a historiadora Wendy Lower. Ela insere o nazismo “num contexto europeu 28 maior de opressão, conquista, migração e destruição em massa de povos indígenas”, acrescentando: “A ocupação nazista da Europa Oriental demonstrou que tais práticas não eram exclusivas do além-mar, e que os piores aspectos do colonialismo podiam ser realizados em imensa escala, numa questão de poucos anos, no coração da Europa ‘civilizada’54”. É verdade que o ataque contra a URSS foi singular por, desde o início, intencionar uma escala monstruosa de devastação com forte significado ideológico. O resultado foi uma campanha ainda mais mortífera que a da Itália fascista contra a Etiópia em 1935-36, e que as travadas pelo Japão na China em 1931-1945. Mesmo assim, o filósofo canadense André Mineau enfatiza os elos de continuidade. Realça que os nazistas, com um enfoque sanitário, combateram um “conceito bio-político de inimigo”, avaliado inclu- sive mediante antropometria, ou seja, medições corporais de crâneo, altura, órgãos genitais e pigmentação. “O colonialismo europeu foi parte das origens ideológicas da Operação Barbarossa, e assim que a beligerância foi desencadeada na União Soviética, Hitler colocou em prática percepções mentais e modelos de gestão concebidos para a África e para a Ásia, mas pela primeira vez na Europa55”. Os pioneiros em abordarem o tema, de modo um tanto su- perficial, foram estudiosos judeus diretamente afetados. Foi o caso da filósofa alemã Hannah Arendt, que fugiu para Paris em 1933 e para Nova York em 1941. No clássico Origens do totalitarismo, ela descreveu o além-mar como um “laboratório”, um “estágio preparatório para as catástrofes vindouras56”. Outro pioneiro foi o jurista polonês Raphael Lemkin, que defendeu Varsóvia em 1939, mudou-se para os Estados Unidos e contribui para a ONU reconhecer, em 1948, o crime de “genocídio” – termo que Lemkin cunhou, considerando matanças como a dos armênios pelos turcos-otomanos durante a Primeira Guerra Mundial. À semelhança de Arendt, contudo, ele se focou no Holocausto quase sem considerar a tragédia de eslavos e ciganos. 29 No que tange à figura de Hitler, deve-se muito a seus bió- grafos, em especial ao alemão Joachim Fest. Nascido em 1926, ele serviu como soldado na guerra; também leu os romances de Karl May quando jovem, e uma de suas tias serviu como mis- sionária religiosa na África57. Logo, conheceu bem a atmosfera onde prosperou o hitlerismo. Fest define a invasão da União Soviética como uma obsessão formulada por Hitler no início de sua carreira e que liderou com um protagonismo único na história, com forte motivação geobiopolítica. Muito mais do que uma “Cruzada contra o bolchevismo”, esta foi “uma guerra de conquista colonial no estilo do século XIX, dirigida, é verdade, contra uma das grandes potências europeias58”. O sistema nazista desponta assim como uma negação das Revoluções Francesa e Russa, também revolucionário, porém sem universalismo, e atrelado a um único super-líder, quase que um super-homem nietzschiano disposto a arriscar tudo em nome dos fins. Outro biógrafo importante é o inglêsIan Kershaw. Recente- mente, ele deu mais atenção do que Fest para o meio social e para a complexidade gerencial do período. Sem reflexões metafísicas, trazendo informações empiricamente objetivas, Kershaw tenta comprovar que Hitler não foi uma personalidade de grandeza excepcional: ilustrou a máxima de Marx de que os homens fazem história sob pré-condições impostas. Sequer inventou uma filosofia própria, oferecendo, na verdade, uma “versão modernizada do antigo imperialismo, ajustado para o campo etnicamente misto da Europa Oriental, onde os eslavos seriam o equivalente germânico das populações nativas conquistadas na Índia e na África pelo Império Britânico59”. Junto com outras obras e dissertações acadêmicas, tal biblio- grafia contribui para uma problematização do nazismo que, já consolidada em países de língua inglesa e alemã, deve ganhar visibilidade em países de língua portuguesa e espanhola. 30 31 c a P í t u l o 1 O dOmíniO britânicO na índia 32 33 Símbolo de grandeza imperial Desde seus pronunciamentos iniciais nas cervejarias de Munique, em 1919, Hitler admirava as colônias britânicas fora da Europa, sobretudo a Índia60 (que na época incluía os atuais Paquistão, Bangladesh e até 1937 Myanmar). Segundo ele, o domínio sobre o sul da Ásia tornara a “Inglaterra” a maior economia capitalista do planeta, que chegou a derrotar a Alemanha na Primeira Guerra Mundial. A aristocracia baseada em Londres, como a do antigo Império Romano, combinava “o mais elevado valor genético com o mais claro espírito político61”. No fundo, tal aristocracia tinha um instinto predatório semelhante ao dos judeus, sempre competindo por mais lucro62. “Meros 65 milhões de ingleses” controlavam o maior império da história, superior mesmo ao mongol, com cerca de 1/4 da superfície continental da Terra: “mais de 40 milhões de quilômetros quadrados e 480 milhões de seres humanos63”. Hitler, apesar de não possuir muita escolaridade no sentido formal, até estudou o tema com alguma profundidade. Chegou a exigir que o ministro Alfred Rosenberg, considerado pesquisador sério, escrevesse para ele um estudo no outono de 1941, buscando compreender com detalhes a administração britânica na Índia. Depois ordenou que Joachim von Ribbentrop, o ministro do Exterior nazista, que fora embaixador em Londres entre 1935-38, formulasse um novo memorando com mais fontes sobre temas como “a arte britânica de divide et impera”, ou seja, a capacidade de mandar aproveitando divisões entre os próprios nativos64. Em agosto de 1942, quando estava em seu quartel-general Lo- bisomem em Vinnytsia, na Ucrânia, Hitler leu o livro Índia, do indólogo alemão Ludwig Alsdorf, que continuamente elogiou pelo retrato feito sobre os métodos ingleses. O ditador recomendou-o a vários de seus aliados, falando que todo alemão enviado para o exterior deveria lê-lo, sobretudo diplomatas65. De fato, tal 34 obra foi publicada e distribuída, mostrando o quanto a história pode ser manipulada na doutrinação política. Outras leituras ainda foram encorajadas, como o relato do viajante alemão Kurt Freber, Com minha mochila até a Índia, e A peste mundial judaica do nazista Hermann Esser66. A admiração de Hitler explica a forma como ele expôs seus planos para o território da União Soviética, nos monólogos pu- blicados no pós-guerra como Conversas à mesa. Para inspirar, na alta cúpula nazista, um senso de ambição e missão histórica, o ditador prometeu que na Europa Oriental haveria uma típica “colônia de exploração67”, assim que o Exército Vermelho de Stálin fosse derrotado e o regime soviético fosse extinto. “O que a Índia foi para a Inglaterra, os territórios da Rússia serão para nós68”. Acreditando na vitória da guerra-relâmpago, Hitler assim projetou ao visitar pessoalmente a frente de batalha na Ucrânia. Ele exigia que os alemães implantassem o progresso naquela paisagem – considerada suja e subaproveitada, devido à ineficiência corrupta do bolchevismo – construindo imensos portos, canais e ferrovias, além de luxuosos palácios para os administradores, até maiores que os construídos pelos ingleses em Calcutá e depois em Nova Delhi. Hitler abriu-se com vários aliados em reuniões privadas, inclusive o ministro da Propaganda Joseph Goebbels, que anotou em seu diário em dezembro de 1941: “No geral o Führer vê o Leste como nossa futura Índia. Essa é a zona colonial onde queremos nos estabelecer69”. Com sua frota de navios a vapor, e com a estabilidade da libra esterlina enquanto moeda forte, o capitalismo inglês gerara uma riqueza formidável através do acesso a recursos naturais como chá e a mercados consumidores. O sul da Ásia é que permitira a uma pequena ilha superar suas limitações malthusianas, fortalecendo a pujança advinda da Revolução Industrial. Hitler esperava que a Grande Alemanha (“Grande” por abranger quase todos alemães 35 do continente, inclusive os da Áustria) tivesse uma prosperidade parecida com a moeda marco. Refletindo com o almirante Kurt Fricke da Marinha alemã, ele definiu a Ucrânia como um “novo Império indiano”, ou uma “Índia europeia”, imaginando como usurpá-la após a vitória sobre Moscou70. Encarada como a re- gião soviética mais produtiva, a Ucrânia contribuiria para que a economia germano-europeia fosse uma autarquia, autossuficiente em recursos naturais como madeira, algodão, borracha, carvão, aço, níquel e manganês, ainda dispondo do precioso petróleo do Cáucaso. A Bielorrússia, apesar de pouco valorizada devido ao excesso de pântanos e florestas densas, também foi definida por planejadores do Exército alemão como “parte de nossa nova possessão colonial oriental71”. Além disso, adotar-se-ia uma prática essencial do capitalis- mo inglês: o comércio com os nativos dominados. Após o fim do comunismo soviético, a grande indústria alemã teria imensos mercados consumidores, vendendo produtos de baixa qualidade por preços acessíveis e deixando os eslavos na dependência da metrópole. Isso com o apoio de companhias responsáveis pela infraestrutura, como a elétrica AEG, a petrolífera Kontinentale Öl e talvez a Opel, subsidiária alemã da General Motors. Conforme Hitler previu numa reunião com seu embaixador na França, Otto Abetz, que registrou num memorando: “A Europa suprirá suas próprias necessidades de matérias-primas, e terá seu próprio mercado para exportação no território russo. Não dependeremos mais do comércio internacional. A nova Rússia, chegando até os Montes Urais, se converterá na ‘nossa Índia’, porém muito melhor localizada que a dos britânicos72”. Tal como as empresas inglesas, as alemãs deveriam comercia- lizar produtos adequados ao nível cultural dos súditos, conside- rados primitivos já acostumados à miséria comunista. Os eslavos receberiam “tudo que os povos coloniais gostam73”, basicamente 36 quinquilharias de mau-gosto como espelhos, bijuterias e roupas de algodão muito coloridas. Talvez aprenderiam a escovar os dentes e tomar banho, com os produtos “mais toscos” de fabri- cação alemã. Os eslavos ainda seriam estimulados a se viciar em nicotina e álcool, como, de certa forma, os chineses haviam se viciado no ópio inglês74. Mais importante, teriam medicamentos anticoncepcionais e abortivos a preço de custo, para que tivessem o mínimo de filhos visando ao controle populacional. Mesmo que proibidos de comprar armas, os nativos garantiriam um mercado consumidor permanente para os cartéis alemães de regiões como o Reno-Ruhr, que adaptariam as velhas estratégias comerciais das manufaturas inglesas de Manchester, Liverpool e Birmingham. A monarquia anglicana, com seus títulos hereditários, não foi parâmetro para o Terceiro Reich num ponto crucial: seu coletivis- mo “socialista”. O novo império deveria beneficiar todo o povo, não apenas uma classe ou uma dinastia. Não se imaginava uma elite com seus automóveis Rolls-Royces, comprando diamantes dos judeus Rothschild, e sim a massa da nação alemãcom seus Volkswagens financiados a prazo. Hitler criticava o fato de os ingleses terem, certa época, cometido o erro de industrializar a Índia. Tal competição criara desemprego entre os operários da metrópole, inclinando-os ao marxismo. Pensando no apoio do proletariado alemão, o ditador previu que o Leste seria “apenas uma fonte de matérias-primas e área de comercialização, não um campo para a produção indus- trial. [...] Não precisaremos mais procurar um mercado ativo no Extremo Oriente. Nosso mercado está na Rússia75.” Ainda falou que a Romênia, apesar de aliada na Operação Barbarossa, seria desencorajada a possuir indústrias para exportar seus produtos agropecuários, em especial o trigo da Bessarábia, para o mercado alemão em troca de bens manufaturados. Hitler disse gostar do campesinato romeno, mas menosprezou seu proletariado como 37 incompetente76. Portanto, de modo distinto, outras nações também seriam envolvidas na autarquia continental. Numa época de insegurança jurídica, o Estado nazista pre- cisou de estímulos verbais para convencer a iniciativa privada a investir. Foi pensando no capital, de fato, que o ministro da Economia nazista, Walther Funk, teve uma conferência com industriais em Praga em dezembro de 1941, poucos dias depois do ataque japonês a Pearl Harbor. Lá descreveu “os vastos terri- tórios do Leste” como “a promissora terra colonial para o futuro da Europa”, que superaria o “poder naval anglo-saxão77”. Entretanto, Hans Frank, governador-geral da Polônia ocupa- da, rejeitava como excessivamente liberal a forma como os ingleses organizavam, juridicamente, suas empresas coloniais na Índia e na África do Sul, defendendo mais intervenção do Estado alemão no território polonês78. Consequentemente, abundaram reclama- ções por parte dos grandes capitalistas sobre a burocratização nazi. Mesmo assim, a colaboração da “burguesia” europeia já se manifestou durante a guerra. Conglomerados industriais ale- mães como Volkswagen, Krupp e Siemens, e empresas como a holandesa Phillips, a francesa L’Oréal e a americana IBM, entre várias outras, aceitaram as encomendas nazistas: em caso de vitó- ria possivelmente expandiriam seus negócios no Leste Europeu. O nazismo ainda cumpriria sua “missão europeia” ao per- mitir que outras potências com tradição além-mar participassem desse comércio. A Holanda, por exemplo, teve sua colônia na Indonésia ocupada pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. Mas por serem “germânicos”, racialmente aparentados dos alemães, os holandeses poderiam conseguir um mercado substituto nas terras improdutivas da Bielorrúsia, conforme projeto do comissário-geral Wilhelm Kube79. O mesmo acon- teceria na Ucrânia. Em 1943, o ministro Rosenberg criou uma Companhia Holandesa de Comércio, com a esperança de que os 38 holandeses ajudassem a modernizar a paisagem oriental com o que haviam aprendido na Indonésia por trezentos anos, desde o século XVII80. Entre os holandeses, tal esboço foi aprovado por colaboracionistas como Meinoud Rost van Tonningen, nascido na Indonésia81. Hitler ainda idealizou que a Bélgica poderia tro- car seus produtos industriais – ninharias de consumo barato, de baixa qualidade – pelo trigo da terra preta ucraniana, conhecida antes de 1914 como a “cesta de pão da Europa”82. Assim, os belgas teriam uma compensação caso perdessem suas colônias, em especial o Congo, na África Central. Quanto ao espaço soviético, seu aproveitamento econômico demandaria dos alemães uma reorientação espiritual. Após a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1960 ou 1970, eles teriam de consolidar uma mentalidade enérgica, como a do venerado conquistador e negociante inglês Cecil Rhodes (1853-1902)83. Os alemães ocupariam milhões de quilômetros quadrados, incluindo rios gigantescos à altura do Ganges e do Nilo, como o rio Volga russo, prognóstico este que excitava a insistência quase fanática de Hitler em transformar a face da Terra: “Os britânicos, mas também os russos, possuem a autoconfiança que se origina dos amplos espaços. Eu espero que, com o tempo, nós também tenhamos isso84.” Chegou a titular seus Comissários Imperiais como “uma classe de vice-reis”, referindo-se aos representantes da monarquia britânica na Índia: pessoas que não seriam empre- gadas em países ocidentais ocupados, como França e Bélgica85. Para Alfred Rosenberg, do Ministério do Leste nazista, a presença alemã era basicamente uma tarefa de melhoramento civi- lizatório, destinada a trazer progresso. Sugeria a criação de jardins botânicos no estilo vitoriano, para palmeiras e orquídeas, além de santuários para a proteção de bisões, ursos, cavalos selvagens, avestruzes e antílopes, onde os alemães realizariam safáris. Os jovens, em particular, adquiririam responsabilidade com armas, 39 sexo e filhos no rigoroso inverno russo86. Já Herbert Backe, um dos principais responsáveis pelo confisco dos alimentos soviéticos, escreveu os 12 mandamentos para os alemães no Leste. Tais jovens deveriam testar sua produtividade e camaradagem, aprenden- do as coisas por conta própria, não sendo mimados pelos pais, como a juventude que a Inglaterra transformara em “lideranças natas” por séculos87. (Era o caso do primeiro-ministro Winston Churchill, que durante sua carreira no exército presenciara ações militares na Índia britânica, no Sudão e na Segunda Guerra dos Bôeres de 1899-1902. Antes de tudo isso, em 1895, Churchill passara voluntariamente suas férias em Cuba, junto com militares espanhóis que combatiam na Guerra de Independência Cubana). Deve-se considerar que os nazistas não invejavam apenas as colônias do Império Britânico. Também invejam as bases navais que Londres estabelecera ao redor do planeta. Chegou-se a apelidar a Península da Crimeia, na Ucrânia, como uma futura “Gibraltar alemã”: os alemães deveriam dominar o Mar Negro da mesma forma que os ingleses dominavam o Mediterrâneo a partir da base naval de Gibraltar, ao sul da Espanha europeia88. Os nazistas ainda mencionaram regiões que, ao contrário da Índia, haviam sido povoadas em massa por ingleses. Além dos Estados Unidos, isso incluía Canadá, Austrália, Nova Zelândia e, em partes, África do Sul (que juridicamente não eram colônias, tornando-se, entre 1867 e 1910, domínios com grande autonomia política). Heinrich Himmler, líder-supremo da SS, era um apaixonado por crianças loiras que financiava pesquisas e escavações sobre a mitologia viking. Ele projetou que o oeste da Rússia seria administrativamente dividido, como Carlos Magno fizera no leste do Império Franco medieval; “os métodos seguidos seriam aqueles com os quais a Inglaterra transformara suas colônias em domínios89.” Chegou a mencionar as figuras de Lorde Halifax e 40 Sir Nevile Henderson para algo inusitado: convencer mulheres alemãs a tomarem mingau no café da manhã. Algumas recla- maram que engordavam, embora Himmler deixasse claro que “os lordes e ladies ingleses são praticamente criados com essa alimentação90”. Tratava-se, enfim, de um pedantismo intelectual que abran- gia os mais ínfimos detalhes. Às vezes sem consideração pela realidade prática, os nazistas gerenciaram um Estado moderno com o tipo de compulsão megalomaníaca que Hitler manifestara quando jovem na Áustria, desenhando edifícios colossais ao som de Wagner, Mozart e Beethoven. Naturalmente, fatos europeus também foram mencionados para ilustrar tais desígnios. Hitler garantiu, por exemplo, que a Rússia seria desbravada como os ro- manos de César haviam feito na Germania, penetrando em brejos, pântanos e florestas com estradas de qualidade91. Ainda elogiou a rede de transportes do Império Inca pré-colombiano92, além das modernas rodovias norte-americanas. Deve-se acrescentar que vários nazistas citavam a Hansa e os Cavaleiros Teutônicos da Idade Média como testemunho de que os alemães já haviam implantado sua cultura na própria Europa Oriental, especialmen- te nas margens do Mar Báltico. Na IdadeAntiga, ademais, a tribo germânica dos ostrogodos ocupou partes da atual Ucrânia. Para evidenciar tal continuidade, buscando legitimidade para a anexação, Hitler e Rosenberg falaram em renomear a península ucraniana da Crimeia como “Terra dos Godos”, ou com o antigo nome grego de Tauride; sua cidade de Simferopol chamar-se-ia “Cidade dos Godos” e Sebastopol teria seu nome alterado para “Porto de Teodorico”, em homenagem ao célebre rei ostrogodo93. Essa paixão pela história talvez inexistiu no expansionismo ul- tramarino: britânicos e franceses raramente afirmaram, se é que o fizeram, estar recuperando terras que haviam pertencido aos antepassados. 41 Dominando os “ridículos cem milhões de eslavos” É claro que, para usufruírem do novo império, os alemães teriam de manter a população nativa sob controle, após a extinção do stalinismo. Esperava-se cultivar entre os alemães a astúcia, o ma- quiavelismo e o egoísmo dos ingleses, que tinham “um orgulho parecido com o dos antigos romanos94”. No outro extremo, os eslavos orientais conheceriam a precariedade político-cultural, numa relação colônia/metrópole como a mantida por Londres com os hindus e muçulmanos do subcontinente indiano. Tratando cristãos, inclusive católicos fiéis ao Papa, de tal modo, Hitler só foi sincero em reuniões a portas fechadas. Muitos de seus monólogos, publicados no pós-guerra como Conversas à mesa, foram anotados no quartel-general Toca do Lobo, na Prússia Oriental, complexo de bunkers onde ele passou mais de 800 dias no período 1941-194495. A Himmler, por exemplo, ele reiterou que pretendia uma opressão duradoura: “Não é possível manter com meios democráticos aquilo que foi tomado pela força. Nesse ponto, eu partilho da opinião dos Tories ingleses. Se eu subjugo um país independente, com a intenção de depois devolver-lhe sua liberdade, qual a lógica disso?96”. Tratava-se de violar o cosmo- politismo democrático do direito internacional. Noutra ocasião, expôs que o povo alemão “deve saber ser honesto apenas consigo mesmo, enquanto com outros povos (como os tchecos) deve agir de modo tão hipócrita como fazem os ingleses97”, assimilando a habilidade em mentir e iludir. Acima de tudo, Hitler apreciava a capacidade de uma pe- quena elite de funcionários leais à Coroa dominar todo o sub- continente indiano, a segunda região mais populosa do mundo, atrás apenas da China. Contando todo Império Britânico, havia em média um inglês para cada nove estrangeiros98. O domínio sobre os eslavos também se basearia nesta hegemonia da qua- 42 lidade sobre a quantidade: “Vamos aprender com os ingleses, que, com uma totalidade de 250 mil homens, incluindo 50 mil soldados, governam 400 milhões de indianos99.” Nesse quesito, ainda costumava vangloriar os 6 mil gregos de Esparta (o “pri- meiro Estado racialista” da história) que, supostamente, haviam oprimido mais de 350 mil hilotas na Antiguidade100. Subordinado de Hitler, a quem jurava lealdade e obediência incondicionais, Heinrich Himmler foi ainda mais ambicioso. Num discurso em Zhytomyr, na Ucrânia ocupada, em setembro de 1942, ele exortou policiais da SS a compreenderem os ingleses “não apenas na teoria, mas também na prática”, de modo que uma única pessoa germânica mandaria sobre 100 mil eslavos101. Na cidade de Posen, Himmler novamente citou os ingleses pre- vendo o manejo de no mínimo 100 milhões de eslavos, e recursos energéticos em quantias ilimitadas102. Eventualmente, alegou-se que essa supremacia inglesa era parecida com a praticada no antigo Império Austro-Húngaro, onde uma “minoria de 12 milhões de alemães” havia “comandado 40 ou 50 milhões súditos de raças estrangeiras nos Bálcãs103”. Como os ingleses, os Habsburgos austríacos haviam dado certa autonomia cultural para seus súditos – inclusive tchecos, sérvios, poloneses e ucranianos – em troca de subserviência de política. Todavia Hitler, que nasceu no Império Austro-Húngaro, também criticava como excessivamente tolerante a gestão de Viena antes da Primeira Guerra Mundial. Certa vez presumiu que, caso os austríacos tivessem manifestado o auto-orgulho inglês, nunca teriam permitido que a Hungria ganhasse tanta autonomia a partir de 1867: como não eram germânicos, os húngaros deviam ter sido mantidos como submissos ao invés de parceiros104. Alfred Rosenberg, do Ministério do Leste, era o nazista da alta cúpula que melhor entendia do espaço soviético. Ele vivera no Império Russo até 1918, testemunhando a Revolução Bol- chevique em Moscou, também conhecendo pessoalmente regiões 43 como a Ucrânia e o Báltico, pois nascera como súdito dos Czares Romanov. Num discurso para seus burocratas e tecnocratas, comparou-os com os ingleses da Companhia das Índias Orientais enviados para a Ásia no século XVII – ainda na época mercanti- lista – em busca de chás, seda e ópio105. Noutra ocasião, tentou legitimar Berlim aproximando-a de Londres: ambas recusavam o marxismo em prol da “dominância racialmente definida”.106 Na bibliografia, os administradores nazistas já foram chama- dos de “sátrapas”107, uma referência aos governadores provinciais do Império Persa, e também de “mandarins”108, uma referência aos altos funcionários letrados do Império Chinês. Tais asso- ciações estão vinculadas ao excesso de pompa e burocracia que realmente apareceu na ocupação alemã. Num detalhado memo- rando escrito de dezembro de 1942, que seria usado como prova em Nuremberg, um subordinado de Rosenberg reclamou disso ao recomendar uma postura mais versátil e dinâmica, baseada em experimentos regionalizados em vez de dogmas ideológicos: “capacidade de liderança” que associou ao anglo-saxonismo. Na verdade, o funcionário de Rosenberg lembrava que os ingleses haviam, sim, permitido a alguns hindus estudarem na metrópole (como Mahatma Gandhi, que cursou direito em Londres). Ape- sar de levar à formação de uma “intelligentsia proletária hindu”, inclinada ao marxismo e a rebeliões, essa medida racionalizara a economia indiana109. Mais uma vez percebe-se a existência de agências rivais no interior da máquina nazista, que interpretavam a história de modo diferente. Numa reunião em Cracóvia, o governador-geral da Polônia, Hans Frank, citou os Impérios Britânico e Romano como teste- munhos de que “nenhum grande império existe sem um sistema de leis110”. Como advogado, Frank recomendava que a submissão dos polacos fosse regulamentada por escrito, tornando-se mais coerente e estável – algo que já acontecia com os tchecos, num sistema de recompensas por docilidade conhecido como “pão de 44 açúcar e chicote”. Condenado à prisão em Nuremberg, Paul Kör- ner, considerado o principal subordinado de Hermann Göring, defendeu-se com o álibi de que havia se espelhado nos ingleses visando à mera retirada de recursos para a indústria alemã, sem os excessos cometidos antes por Espanha e Portugal na América: “Eu não acreditava que essas áreas seriam cruelmente extorqui- das, e a população colocada numa posição de escravos, como no primeiro período do colonialismo europeu111”. Em público, Hitler até atacou o governo do primeiro- -ministro Winston Churchill por negar os direitos demandados pelo povo indiano na época. Em maio de 1942, chegou a receber em seu quartel-general Subhas Chandra Bose, famoso defensor da libertação indiana, que também se encontrou com Himmler, buscando voluntários para a dita Legião Indiana do Exército ale- mão112. Contudo, tais medidas representavam demagogia pública, visando iludir correspondentes estrangeiros e mesmo parte do povo alemão. Contrariavam seu etnocentrismo doentio, inimigo da alteridade humana. Para ele, a essência do poder britânico não era a legalidade com os súditos, nem a chance dada a eles de conhecerem ferrovias ou papel higiênico; no Egito, esclareceu, os ingleses haviam construído barragens no rio Nilo pensando apenas na independência de seu algodão perante a concorrência americana113. Num discurso para estudantes nazistasem janeiro de 1936, ele mencionou a rapinagem do espanhol Hernán Cortés no atual México e a do inglês Robert Clive na Índia do século XVIII para justificar a supremacia mundial da raça branca114. E em janeiro de 1942, consta em Conversas à mesa, Hitler informou residir a riqueza da Grã-Bretanha na “exploração capitalista dos trezentos milhões de escravos indianos”, incluindo a venda de ópio e álcool, enquanto os alemães, ingênuos, haviam tentado evitar que os negros conhecessem os malefícios da nicotina: “O homem inglês é superior ao alemão em um aspecto – seu orgulho115”. 45 De fato, Hitler desconsiderava o mito do bom selvagem do francês Jean-Jacques Rousseau, as utopias do Iluminismo, pre- ferindo um egoísmo do tipo nietzschiano em escala planetária. Argumentava que os alemães não tinham qualquer obrigação com a dignidade dos “ridículos cem milhões de eslavos”, acrescen- tando: “e todo aquele [nazista] que falar em agradar o nativo ou civilizá-lo irá imediatamente para um campo de concentração116”. Para ele, um autodidata que nunca teve formação acadêmica, o paradigma a ser seguido era a aristocracia do outro lado do Canal da Mancha, cujo apogeu fora na era vitoriana, antes da conso- lidação do Partido Trabalhista. Eis um precedente duradouro, quase obsessivo na mente de Hitler, comparável ao rei prussiano Frederico II, seu personagem preferido da história alemã117. Tal influência é observável, além do mais, no jeito como Hitler rebaixava a antropologia das vítimas eslavas. Para ele, os russos estavam quase no mesmo patamar dos “intocáveis” que, no sistema de castas indiano, eram obrigados a defecar nas ruas e comer lixo como cães. Criticando a “mania” dos médicos de distribuir vacinas, disse alarmante o fato de a população da Índia ter aumentado 55 milhões nos dez anos anteriores, devido à tolerância inglesa: “Nós testemunhamos hoje o mesmo fenô- meno na Rússia. As mulheres têm um filho a cada ano118”. No caso, havia uma crítica indireta ao domínio britânico, que não adotara mecanismos adequados de contenção demográfica, po- rém os russos eram equiparados aos indianos em sua propensão reprodutiva, teoricamente originada da vulgaridade sexual desde a infância. Mesmo os eslavos mais a oeste foram excluídos da Europa, em termos civilizatórios. “A Ásia começa na Polônia”, declarara Hitler em outubro de 1939, colocando Varsóvia no mesmo continente de Bombaim e Calcutá119. Por incrível que pareça, e para o desgosto dos intelectuais soviéticos, Karl Marx e Friedrich Engels foram pioneiros a partir de 1853 ao difundirem a imagem da Rússia Czarista – que incluía a Polônia – como um 46 “despotismo asiático” ou “oriental”, intesamente mongolizado, que não pertencia ao Ocidente capitalista por ser tão estagnado quanto Índia e China120. Eis uma linguagem comum entre a intelectualidade comunista pré-1917, que acabou apropriada para fins diametralmente opostos. Subjugar e reprimir, mas sempre mantendo distância Hitler elogiava os ingleses por interferirem pouco na vida dos povos coloniais121. Segundo ele (e segundo Hannah Arendt), os ingleses não tentavam converter estrangeiros a uma civilização universal, como a da Grécia de Alexandre Magno e a do Império Romano. Ao contrário dos imperialistas alemães e, sobretudo, franceses, acusados de ingenuidade, os anglo-saxões adotaram um método de “domínio indireto” no século XIX: permitiram que os indianos continuassem tomando banho entre cadáveres, no rio Ganges, e cultuando vacas como divindades. Hitler visava a um utilitarismo similar para as regiões da Europa Oriental que não seriam “germanizadas”, ou seja, povoadas. Apesar de rejeitar o auxílio de autoridades locais, como os rajás e marajás mantidos em partes da Índia, e apesar de visar um senhorio muito mais baseado na intimidação que o inglês, Hitler pretendia deixar os eslavos num estilo de vida “asiático”, segregados em favelas de casebres e cabanas. Para ele, até a Itália fascista de Mussolini, aliada alemã, de- veria examinar como os britânicos “aprenderam a arte de serem senhores122”, esnobes e vaidosos, sem a afeminação francesa. Se os italianos conseguissem tomar o Egito dos próprios ingleses, teriam de continuar mantendo os muçulmanos com suas tradições, sem “perturbá-los” com a literatura italiana que Roma, na época, tentava difundir entre os gregos, albaneses e croatas conquistados. 47 Na Europa do Leste haveria uma negligência intencional de modo que a cultura alemã não seria exportada aos autóctones. Vegetando em casas com paredes de barro e tetos de palha, sem acesso a esgoto, infestadas por pulgas e carrapatos, o máximo de modernidade que os autóctones teriam seria bicicletas e eletro- domésticos alemães. Difundir a educação básica e fundar uma universidade em Kiev, como queria Rosenberg, representavam medidas contraproducentes a longo prazo. O estudo da história pré-comunista era especialmente perigoso. Afinal, num predo- mínio “semelhante ao da Inglaterra na Índia123”, não haveria conhecimento teutônico para que povos de uma “sub-raça” se organizassem politicamente ou modernizassem suas armas com tecnologia. Hitler nem cogitava beneficiar os eslavos como fizeram, em suas respectivas áreas, os aliados europeus da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. A começar pela Itália fascista, que colocou a difusão cultural na frente da pureza racial, com instrumentos como as escolas Dante Alighieri, os regimes pró- -nazistas do continente, apesar de frequentemente antissemitas, investiram na assimilação de estrangeiros. Na Iugoslávia ocupada, os croatas pró-nazistas tentaram converter os sérvios ortodoxos para o catolicismo, mesmo que à força. A Hungria permitiu que os povos das regiões anexadas durante a Segunda Guerra Mun- dial tivessem representação em seu Parlamento, que funcionava livremente. Ademais, os romenos que invadiram a Ucrânia com os alemães mantiveram parte do sistema educacional, adaptando- -o para a “romanização” da cultura ucraniana124. Mas Hitler recusava algo parecido, alegando que seria perda de tempo falar sobre Schopenhauer e Mozart com uma “escória bestial” que, no máximo, entendia sobre niilismo e o anarquismo de Bakunin. Nesse quesito, os aliados fascistas pouco o inspiravam: “Quan- to ao sistema educacional da população não-alemã nós nunca 48 devemos esquecer que, na extensão do Leste, empregaremos as mesmas técnicas dos ingleses em suas colônias125.” Ao contrário dos católicos alemães, os anglicanos ingleses não haviam importunado estrangeiros com noções de limpeza e higiene, mantendo-os no esgoto. De maneira afim, os eslavos só aprenderiam a escrever o próprio nome e teriam distrações como música alegre durante o trabalho manual: “Basta que contem até 100126”. Os eslavos não teriam chance de desenvolver uma intelectualidade científica, permanecendo como simples consu- midores dependentes da Alemanha, “isolados na imundície de seus chiqueiros127”, acostumados com bugigangas industriais de mau-gosto. Seriam proibidos de frequentar as aldeias alemãs. Em transportes públicos ocupariam espaços segregados. Não seriam vacinados, nem teriam acesso à medicina ou odontologia do tipo moderno. Essa marginalização foi mais estável nas zonas ocidentais da Polônia, anexadas pela Alemanha, onde os autóctones tinham de carregar cartões especiais de identificação, não tendo acesso às bibliotecas, livrarias, cafés, cinemas, hotéis e restaurantes re- servados aos alemães, incluindo austríacos. Homens poloneses, mesmo de origem aristocrática ou cultos, repentinamente tiveram de obedecer a alemães de origem proletária, inclusive mulheres alemãs, algo que causou polêmica128. Com relação ao espaço soviético, Hitler disse ser contra a colocação de avisos em ucra- niano, chamando a atenção para cruzamentos ferroviários; pois “o que importa se um nativo a mais ou a menos seja esmagado por nossos trens?129” Os alemães precisariam de devoção e fanatismo para manter a coesãoentre si. Como paradigma institucional, mencionou-se o padre Inácio de Loyola. Loyola foi o fundador da Companhia de Jesus, os jesuítas, que como reação à Reforma Protestante empenharam-se por difundir o catolicismo romano ao redor do mundo a partir do século XVI, inclusive nas Américas e na 49 Índia, parcialmente ocupada por portugueses. Hitler apoiava a forma como Heinrich Himmler doutrinava os membros da SS, chamando-o de “nosso Inácio de Loyola130”. Todavia, tal associa- ção não significava que os eslavos, acusados até de canibalismo, seriam convertidos ao culto neopagão nórdico himmleriano. Referia-se exclusivamente à estrutura interna da SS, cujos valores de lealdade, obediência incondicional e espiritualidade – mas não a castidade católica, claro – seriam rigidamente inacessíveis aos de fora. O esforço de precarização também seria político. O fato de os eslavos não terem acesso à cultura ocidental devia impedir a formação de novos Estados, no padrão europeu. Hitler prestigiava os ingleses por usarem a estratégia de “Dividir para imperar”, estimulando o máximo de divisões internas na Índia, inclusive entre hindus e muçulmanos. De modo análogo, os alemães ex- plorariam as velhas divisões étnicas e religiosas entre os eslavos orientais, algumas agravadas pelo bolchevismo após 1917, e o autonomismo de regiões como a Chechênia; os eslavos seriam assim isolados em pequenas comunidades sem coesão nacional, que não resistiriam devido à sua insignificância. Hitler chegou a antecipar que, após o fim do comunismo, alguns vilarejos acabariam “adotando a magia negra, no padrão de negros e in- dianos131”. Seriam assim reduzidos a uma condição pagã, como aquela anterior ao cristianismo ortodoxo, não integrando um regime colaboracionista moderno como a França de Vichy ou a Croácia do Ustashe. Muito antes dos ingleses, a artimanha de dividir para sub- meter fora exposta por notáveis como César e Maquiavel, depois por Napoleão, todos lidos pelos nazistas. Acabou usada pelos imperialistas na África. Na atual Ruanda, a sangrenta rivalidade entre as etnias hutu e tutsi, culminando no genocídio de 1994, atesta como as metrópoles europeias (no caso, sobretudo a Bél- gica) favoreceram certos grupos nativos para controlar outros, 50 intensificando ódios. O Japão imperial, aliado da Alemanha nazista, fez o mesmo na China. Ao criarem o Estado fantoche de Manchukuo em 1932, os japoneses fortaleceram a alteridade da minoria local manchu com relação à maioria chinesa de etnia han. E os nazistas empregaram tal artimanha com destreza bem antes da Operação Barbarossa. Na ex-Tchecoslováquia, favorece- ram os eslovacos contra os tchecos; na ex-Iugoslávia, aceitaram a tese de que os croatas eram católicos ocidentais que ajudariam a controlar os sérvios, ortodoxos e pan-eslavistas; na URSS, por fim, incitaram os ucranianos contra os russos. Segundo o relato pouco confiável de Hermann Rauschning, Hitler já havia manifestado seu exclusivismo em 1934, numa con- versa informal entre os dois. Ele teria rejeitado a sugestão de “um Estatuto de Westminster para os Estados da Europa Central e Oriental, uma federação voluntária sob liderança alemã132”. (Pelo Estatuto de Westminster de 1931, australianos, canadenses, sul- -africanos, neozelandeses e irlandeses foram declarados parceiros co-iguais do Reino Unido, e não mais domínios dependentes). Deveras, salvo exceções como a Finlândia, o que Hitler ansia- va era a imposição racista unilateral, jamais a cooperação com parceiros compartilhando valores comuns. A longo prazo nem mesmo povos germânicos como o holandês teriam tal privilégio, devendo ser anexados à força na Grande Alemanha, mais ou menos como a Prússia de Bismarck fizera com outros reinos alemães nas Guerras de Unificação de 1864-1871133. Mais importante, os ingleses mostravam que era possível evitar a miscigenação com mulheres subjugadas, uma velha tentação enfrentada por homens militaristas. Ao contrário dos portugueses – que, segundo Rosenberg, haviam transado com hindus quando ocuparam a Índia, gerando uma linhagem mes- tiça134 – a aristocracia inglesa evitava ao máximo o contato físico e sexual com seus súditos. Embora as colônias alemãs na África tenham sido pioneiras na proibição de casamento e coabitação 51 “inter-raciais”, a partir de 1905, nem sempre tal experiência nacional com os negros foi valorizada. “Nós adotaremos a atitude britânica de arrogância135”, esclareceu Hitler num monólogo a seus companheiros de mesa, com seu elitismo vulgar. Previa que os alemães viveriam longe dos povoamentos eslavos e seriam praticamente proibidos de frequentá-los, não tomando cerveja em bailes de confraternização. A “contaminação” sexual entre mulheres alemães e homens eslavos seria punida com rigor especial. Isso evitaria a temível possibilidade de que uma herança civilizatória e genética fosse transmitida por meio de mestiços – de acordo com a versão nazi, o erro cometido pelos portugueses na Índia, e também pelos holandeses com os malaios136, mas pouco cometido pela aristocracia anglicana inglesa. O pequeno livro Política racial, publicado pela SS durante a guerra, mostrava negros de colônias inglesas sendo discriminados em escolas e hospitais. Também mostrava um criminoso negro sendo enforcado em público por brancos nos Estados Unidos. Comemorando a morte alheia, a legenda das fotos louvava a “forte consciência racial” dos anglo-saxões que não haviam sucumbido aos igualitarismos cristão, liberal e marxista, todos de “essência judaica”137. Em formatos específicos, a institucionalização do racismo ainda ocorreu noutros continentes. Na África do Sul, o regime de apartheid imposto aos negros por descendentes de ingleses e, sobretudo, de holandeses (africâneres), baseou-se em medidas discriminatórias parecidas com as nazistas. Em maior ou menor grau, esses africâneres, alguns de origem alemã, foram inspirados por ideias fascistas138. E na Austrália, os cidadãos britânicos de origem inglesa impuseram severa segregação aos nativos aborí- genes. Quanto aos nazistas, no pré-guerra eles já haviam impe- dido judeus e negros de se casarem com alemães, retirado sua cidadania e restringido seu acesso a locais públicos como escolas, hospitais e transportes. Realizada por meio de leis oficiais, essa 52 experiência na própria Alemanha prenunciou o que ocorreria no exterior a partir de 1939 – dessa vez sem muita preocupação com formalidades legais. Por fim, a elite alemã de “vice-reis” empenhar-se-ia na “paci- ficação”139. Puniria revoltas com rapidez e efetividade, abusando da pólvora ou cortando suprimentos para regiões amotinadas. O uso de armas talvez seja o pressuposto mais antigo do senhorio, constando no Antigo Testamento, sobretudo no livro de Samuel, que os filisteus não permitiam aos israelitas nem mesmo afiar suas ferramentas, temendo rebeliões. “Isso nós definitivamente devemos aprender com os ingleses140”: eis como Martin Bormann anotou a fala de seu Líder numa importante reunião em julho de 1941, na qual se pediu o uso de blindados e bombardeios estratégicos contra guerrilheiros. A mesma truculência vitimaria lideranças locais que empregassem nacionalismos e/ou o cristia- nismo ortodoxo para resistir. Diferentemente dos Cavaleiros Teu- tônicos e do Islã – cujo Alcorão era celebrado pela intolerância, de um tipo ausente na Bíblia141 – não se visava à vitória bélica para catequizar os vencidos. Defendeu-se algo parecido para a Polônia. Numa conferência que presidiu em Berlim em setembro de 1942, o marechal-de- -campo Erhard Milch, cujo pai era judeu, falou dos polacos: “Se essa gente faz um motim e não trabalha, então eu demando que ocorra um fuzilamento. Nós fazemos na Polônia o mesmo que os britânicos fazem na Índia, com a única diferença de que os britânicos lidam com seus próprios súditos, enquanto nós lidamos com o inimigo. Eu exijo que nenhum de nós mostre falta de atitude142.” Com requintes
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