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Currículos e cotidianos escolares Iniciaremos buscando o entendimento do que é currículo! Etimologicamente, a palavra currículo, oriunda do latim currere, significa caminho, jornada, trajetória, percurso a seguir. Profissionalmente, fala-se em curriculum vitae, também abreviado para CV ou apenas currículo, que mantém o significado original da palavra latina, constituindo um documento de tipo histórico, o qual relata o caminho, a jornada, a trajetória de vida de uma pessoa. Ou seja, um breve resumo das experiências profissionais e educacionais de uma pessoa, como forma de demonstrar suas habilidades e competências. No campo educacional, por sua vez, o termo currículo é usado, originariamente, para designar os conteúdos de uma disciplina, o programa de um curso inteiro ou, mais amplamente, como uma forma de apresentar diferentes atividades educativas por meio das quais os conteúdos educacionais são desenvolvidos, e materiais e metodologias utilizados. Afinal, quando surgiram os estudos sobre currículo? Inicialmente, os estudos do currículo surgiram nos Estados Unidos, dedicando-se a refletir sobre a organização do processo educativo escolar, abordando, fundamentalmente, o que se deveria ensinar e, no caso de alguns autores, como seria melhor fazê-lo. John Franklin Bobbitt (1918). Nesse período, final do século XIX e, sobretudo, a partir dos anos 1920, um número considerável de educadores passou a se debruçar com mais afinco sobre as questões curriculares, criando esse campo de estudos no contexto da reflexão educativa. A primeira sistematização do currículo como disciplina foi apresenta pelo educador americano John Franklin Bobbitt em 1918. Ele era representante dos pesquisadores que pensavam na eficiência da escola e trouxe essa perspectiva para o campo do currículo, com forte influência do processo de industrialização e massificação do ensino. Na concepção desse autor, os estudantes deveriam ser processados como um produto industrializado, numa compreensão fordista da escola, com ênfase na boa administração. Nesse contexto, o sistema educacional deveria funcionar como uma fábrica, como uma empresa, e o currículo deveria se pautar na especificação clara de objetivos, na seleção de conteúdos necessários ao alcance de forma eficiente dos objetivos e na definição de procedimentos que otimizassem resultados que pudessem ser precisamente mensurados (SILVA, 1999). Os critérios que definiriam os currículos, nessa perspectiva, exigiam “precisar objetivos e obter, pelas ações minuciosamente conhecidas e fragmentadas, a eficiência e a eficácia” (MACEDO, 2013, p. 35). Tal compreensão “transformou-se no método eleito e no caminho aceito científica e academicamente para se obter a formação relevante para o contexto americano emergente” (MACEDO, 2013, p. 35). Assim, o currículo passou a ser visto como processo de racionalização de resultados educacionais, cuidadosa e rigorosamente especificados e medidos. Com o passar do tempo o campo do currículo evoluiu, veja dois marcos desse processo: Quando nos debruçamos sobre o estudo do campo do currículo nos modos como se manifesta nos cotidianos, faz-se necessário ressaltar a perspectiva crítica e sociológica do campo, que foi sendo desenvolvida a partir, sobretudo, da segunda metade do século XX. Assim, essa perspectiva tecnicista de compreensão dos currículos passou a ser questionada, com proposições e abordagens distintas apresentadas pelas chamadas teorias críticas do currículo, baseadas nas concepções marxistas e também nos ideários da Escola de Frankfurt (Max Horkheimer e Theodor Adorno), como também pelos autores da chamada Nova Sociologia da Educação (com destaque para Michael Young) Assim, começa-se a reconhecer que o currículo é uma “arena política” em que coexistem relações de cultura e poder e é nesse sentido que estudá-lo em seus desenvolvimentos reais, locais, em diferentes cotidianos pode potencializar sua compreensão. Entram em jogo as teorias curriculares pós-críticas, dentre as quais se pode reconhecer a presença dos estudos do currículo como criação cotidiana. Dessa maneira, as chamadas teorias curriculares pós-críticas, que surgem a partir da década de 1980, com base nos princípios da fenomenologia, do pós-estruturalismo e do multiculturalismo, trazem um novo movimento ao campo ao colocar a diferença como sua característica principal. Nesse contexto, entra no campo das questões curriculares a perspectiva da cultura como um movimento de relações e lutas, e não somente os conteúdos estabelecidos em uma grade curricular. O multiculturalismo também emerge como tema importante e passa a ser um conceito relacional, que se estabelece, portanto, a partir das relações de poder entre os diferentes grupos socioculturais. Desse modo, mais do que a realidade social dos indivíduos, o currículo precisa abarcar os conflitos de raça, gênero, orientação sexual e todos os elementos próprios das diferenças entre as pessoas, para não permitir que o currículo legitime “através da seleção de conteúdos, atividades e valores, determinadas visões de mundo e de cultura, em detrimento de outras” (MACEDO, 2013, p. 62). Numa perspectiva mais atual e crítica: O currículo precisa ser concebido numa ação coletiva, uma construção social, autorias singulares e plurais. Ivor Goodson (1998) vai ainda mais longe; ele compreende o currículo como uma “tradição inventada”, como um artefato socioeducacional que se configura nas ações de conceber/selecionar/produzir, organizar, institucionalizar, implementar/dinamizar saberes, conhecimentos, atividades, competências e valores visando a dada formação, configurada por processos e construções constituídos na relação com o conhecimento eleito como educativo. (MACEDO, 2013, p. 24) Trataremos, em breve, sobre currículo instituído e instituinte. Currículo instituído Mais do que um conjunto coordenado e ordenado de matérias, o chamado currículo instituído, determinado previamente pelo poder público, passou a ser visto como uma construção social, formado por uma estrutura voltada a uma perspectiva libertadora e conceitualmente crítica em favorecimento das massas populares. Tais práticas curriculares passaram a ser vistas como um espaço de lutas no campo cultural e social, deixando de lado a neutralidade típica das ideias convencionas de até então. Sendo assim, o currículo passou a ser entendido como uma construção social e, portanto, abandonou a retórica da neutralidade, passando a evidenciar o momento histórico, político, econômico em que se encontra inserido, direcionando o conhecimento a ser transmitido e as formas que serão utilizadas no meio escolar, numa construção do chamado currículo instituinte. Currículo instituído e instituinte Mais do que um conjunto coordenado e ordenado de matérias, o chamado currículo instituído, determinado previamente pelo poder público, passou a ser visto como uma construção social, formado por uma estrutura voltada a uma perspectiva libertadora e conceitualmente crítica em favorecimento das massas populares. Tais práticas curriculares passaram a ser vistas como um espaço de lutas no campo cultural e social, deixando de lado a neutralidade típica das ideias convencionas de até então. Sendo assim, o currículo passou a ser entendido como uma construção social e, portanto, abandonou a retórica da neutralidade, passando a evidenciar o momento histórico, político, econômico em que se encontra inserido, direcionando o conhecimento a ser transmitido e as formas que serão utilizadas no meio escolar, numa construção do chamado currículo instituinte. Vejamos dois aspectos desses currículos: Instituído Diz respeito ao que é formalmente estabelecido, às normas institucionais. close Instituinte Se define exatamente como o que se contrapõe ao que é instituído. Para esclarecer melhor esses pontos analisaremos três importantes conceitos. Veja: 1. flag Análise institucional Segundo Lorau, a análise institucional possui forças, qualidade de instituinte entrando em contradição com o já instituído, produto de uma imobilidadea ser quebrada com tal intervenção, considerada: Uma nova forma de penetrar na vida cotidiana dos estabelecimentos de saúde, de educação, da Igreja etc. A análise institucional é feita com os atores sociais em seu campo de atuação, uma vez que são considerados os maiores conhecedores da realidade. (TILMAN, 2005) 2. flag Diferenciação: instituição de estabelecimento ou espaço geográfico Lorau (1993) diferencia, em seus estudos, instituição de estabelecimento ou espaço geográfico. Entende que, em diferentes instituições, há, além das normas em vigor, que disciplinam, buscam controlar e submeter os seus sujeitos, “forças instituintes que contribuem para a desconstrução das relações existentes, propiciando o desocultamento de questões que contribuirão para a sua transformação e até mesmo, para sua dissolução”, diz Silva (2009, p. 3). Portanto, o conceito de instituição não designa coisas passíveis de serem vistas, sólidas, concretas. [...] trata-se de um conceito produzido por (e para) análises coletivas" (LORAU, 1993, p. 61). O autor toma o conceito de instituição como um modelo teórico que possibilita a compreensão dos acontecimentos que se dão e podem ser observados tanto em uma casa, como em uma escola, em uma fábrica, ou em um hospital. A instituição é vista, assim, como campo de análise e como campo de intervenção, considerando as suas contradições. (SILVA, 2009, p. 3) 3. flag O debate entre currículos instituído e instituinte A partir disso e com o desenvolvimento crescente de pesquisas com os cotidianos, o debate entre currículos instituído e instituinte – que teve certo destaque nos anos 1970 – ganha novos sentidos, já que na perspectiva desses estudos, há sempre algo de instituinte nos currículos reais desenvolvidos nas escolas. Cenário do "instituinte ordinário", trabalho de auto-organização e de instituição do dia a dia, o ambiente escolar abriga em seu espaço, contradições e acontecimentos de uma ordem social e histórica em que se entrecruzam diferentes modos de ser, de pensar, de agir e de compreender a si e ao mundo. (SILVA, 2009, p. 3) Nesse contexto são criados currículos locais. Os estudos dos cotidianos reconhecem, nos sujeitos das escolas, criadores ativos de currículos em perspectiva instituinte e percebe que, em muitos casos, esses mesmos sujeitos se reconhecem como tais. O uso dessa perspectiva de compreensão do campo para conceber os currículos instituídos e instituintes nos ajudará a compreender a noção de currículo como criação cotidiana nas/das escolas, que passa a ser relevante, já que o currículo instituinte pode ser considerado como “tudo aquilo que acontece na escola”, levando-se em consideração, nesse sentido, os saberes que foram, por bastante tempo, negligenciados: os saberes docentes e discentes. Enquanto isso, instituídos são os currículos formais, pré-definidos, formalmente formulados e aprovados como norma institucional. report_problem Atenção Cabe lembrar que esse debate não nos deve levar a conceber instituintes possíveis a partir do nada, já que todo instituinte parte de uma crítica ao instituído, ou de compreensões iniciais e premissas, também estabelecidas, e resulta em um instituído. Assim, ao mesmo tempo, os instituídos são, sempre e necessariamente, produtos de momentos instituintes. O que isso significa? Isso significa dizer que, mais do que uma oposição entre bom e ruim, entre autoritário e democrático ou mesmo entre processo (instituinte) e produto (instituído), estamos diante de uma espiral de criação/consolidação/crítica permanente, na qual momentos se sucedem e dialogam entre si. A relação entre a noção de currículo instituinte e currículo como criação cotidiana, alimentada pela compreensão de que, em ambos os casos trata-se de fazer dialogar as normas representadas pelo instituído com as especificidades circunstanciais e as possibilidades locais. Esse caminho permite, portanto, uma intervenção educativa em contexto escolar mais aberta, prazerosa e dialógica, que propicia o exercício do protagonismo pelos sujeitos das escolas, tanto no ato de aprender como no ato de ensinar, uma maior abertura do canal de comunicação entre os atores sociais que constroem os currículos reais, no cenário escolar e uma maior possibilidade de trabalho, análise e interpretação dos conteúdos culturais presentes em todo currículos, instituído ou instituinte, e os diálogos possíveis entre eles. Desse modo, a ideia de currículo instituinte suscita a superação da percepção do currículo como uma lista engessada de saberes ensinados, historicamente, atendendo sempre aos interesses sociais, econômicos e políticos hegemônicos. Como formação humana, o que se busca é garantir aos estudantes o direito a uma formação completa para a compreensão e ação no mundo, dignamente integrada política, social e culturalmente. Para tal, currículos instituintes, criados cotidianamente, ao considerarem diferentes saberes, muitos deles historicamente oprimidos, silenciados ou rejeitados, potencializam essa formação. Cotidianos no campo curricular: da “caixa preta” ao currículo como criação cotidiana O que é preciso saber sobre o cotidiano no campo do currículo? Os estudos do cotidiano no campo do currículo se inscrevem, portanto, na perspectiva de crítica ao modelo curricular hegemônico, mas, diferentemente de outras tendências, se ocupa mais de buscar compreender o que fazem com essas normas os “praticantes” (CERTEAU, 1994) dos cotidianos escolares em suas diferentes realidades escolares, sociais, políticas e econômicas do que em analisar as normas curriculares ou suas inspirações políticas, sociais e epistemológicas. O que é currículo? O currículo é uma práxis antes que um objeto estático emanado de um modelo coerente de pensar a educação ou as aprendizagens necessárias das crianças e dos jovens, que tampouco se esgota na parte explícita do projeto de socialização cultural nas escolas. É uma prática, expressão, da função socializadora e cultural que determinada instituição tem, que reagrupa em torno dele uma série de subsistemas ou práticas diversas, entre as quais se encontra a prática pedagógica desenvolvida em instituições escolares que comumente chamamos de ensino. Nesse sentido, devemos considerar que: O currículo é uma prática na qual se estabelece diálogo, por assim dizer, entre agentes sociais, elementos técnicos, alunos que reagem frente a ele, professores que o modelam. (SACRISTÁN, 2000, p. 15-16) Nesse contexto, como os currículos são percebidos na criação cotidiana dos praticantes? A partir das convicções epistemológicas e políticas que embasam as pesquisas nos/dos/com os cotidianos, é possível considerar que os currículos podem ser percebidos como criação cotidiana dos praticantes (CERTEAU, 1994) das escolas, e, mais do que isso, como contribuições da escola à tessitura da emancipação social democratizante, tal como defendida por Boaventura de Sousa Santos (2004), o qual percebe a emancipação social como possibilidade de criação de relações mais ecológicas entre diferentes conhecimentos, temporalidades, culturas, escalas e sistemas de produção (SANTOS, 2004), por meio da superação das monoculturas hegemônicas nas sociedades ocidentais da atualidade, considerando indissociáveis o campo do epistemológico e do político. Compreendidos como criação invisibilizada pelo pensamento educacional hegemônico, os currículos praticados (OLIVEIRA, 2003), aqueles criados nos cotidianos das escolas – que, seguindo a argumentação aqui desenvolvida sobre a indissociabilidade prática/teoria/prática, reflexão/ação, seriam melhor nomeados como pensadospraticados – podem e merecem ser estudados, de modo que os compreendamos para daquilo que neles obedece ao status quo, e que se impõe como norma. Esses processos permitem a desinvisibilização e possível multiplicação de experiências emancipatórias desenvolvidas nas escolas, por docentes a quem são historicamente negados o reconhecimento por suas criações cotidianas e de sua competência profissional. Muitas vezes reconhecidos como meros transmissoresde conhecimentos produzidos em instâncias “superiores”, esses profissionais são criadores de currículos que contribuem para a formação cidadã, para a ampliação da justiça cognitiva e social e, com isso, para a emancipação social. A “caixa preta”: processos curriculares e criações cotidianas A imensa maioria dos estudos curriculares não considerava, até o início dos anos 1950, o que acontecia nas escolas como informação relevante para o campo do currículo. Vamos compreender o motivo desse acontecimento? Isso ocorreu porque, na perspectiva tecnicista da época, as teorias deveriam se aplicar às práticas, o que equivale a dizer que as propostas curriculares formuladas por teóricos do campo e autoridades educacionais deveriam ser implantadas e seguidas pelas escolas. Seguindo a noção de que as propostas eram o input e os resultados obtidos o output, o processo era considerado menos importante. Problemas nos resultados exigiriam mudança nas propostas. No entanto, outra compreensão desses problemas passou a ser considerada mais válida do que a anterior e passou-se a compreender, majoritariamente, que o problema de insuficiência de aprendizagens esperadas deveria ser tributado às incapacidades daqueles que estavam nas escolas. Isto é, o que não se podia examinar – a vida cotidiana das escolas – era reconhecido como a fonte dos problemas, já que a incapacidade de desenvolvimento de boas práticas estaria naqueles que, sem suficiente conhecimento técnico-científico, não davam conta de aplicar as propostas que lhes chegavam. Ou seja, a vida cotidiana nas escolas era identificada como uma espécie de “caixa preta”, numa analogia com a mecânica, a tecnologia lógica, ou com objeto presente no avião – que pode dar pistas e informações sobre o voo, – a teoria de sistemas na área de administração, educacional e escolar. Vejamos duas abordagens importantes desse processo: A noção de “caixa preta” e seus aspectos hegemônicos Do ponto de vista das iniciativas oficiais em educação, embora sem que se explicite isso, a noção de “caixa preta” se mantém hegemônica. Com o uso dessa metáfora, procura-se indicar a impossibilidade de se conhecer, de fato, o que acontece nas escolas, sustentando, ao mesmo tempo, a ideia de que certas aproximações possíveis não poderiam contar com nada além da inventividade dos que desejam se dedicar a esse estudo, já que não é possível acessar, de modo confiável, o que se passa nesses cotidianos. Além disso, os que assim denominam ou compreendem os cotidianos escolares, como uma “caixa preta”, afirmam que aqueles que os estudavam/estudam, o fazem de forma necessariamente insuficiente e por isso defendem que, não importando o que se passa no interior da “caixa preta”, a intervenção no sistema deve se dar sobre os planos de entrada (inputs), a partir de uma realimentação com dados obtidos na finalização do processo anterior (feedback), possível através da avaliação dos indicativos fornecidos pelos resultados de saída (outputs). A aplicação das provas de final de ciclos e cursos, como se faz em nosso país e tantos outros, nos fornece uma concretização desse “modelo” (ALVES, 2003, p. 63-64). A superação da dicotomia teoria-prática A superação da dicotomia teoria-prática tornou-se importante para este campo de estudos, já que, sendo sujeito da escola e praticante da vida cotidiana (CERTEAU, 1994), o professor, mais do que apenas um repetidor ou transmissor de conteúdos curriculares formulados por especialistas, passa a ser percebido como alguém que, ao usar as normas, o faz de modo próprio. Assim sendo, este passa a ser percebido como sujeito ativo na criação curricular e, por isso, responsável pelo seu próprio trabalho. Com isso, a ideia do professor como pesquisador de sua prática passou a ganhar adeptos, entendendo-se que ele é o sujeito capaz de questionar, identificar e analisar suas práticas através de processos de pesquisa, além de intervir cotidianamente no que acontece no ambiente escolar. Além disso, as pesquisas nos cotidianos começaram a abordar a necessidade de se compreender a realidade escolar, sem julgamentos de valor, mas com o entendimento de que o que nela se faz e se cria precisa ser concebido como uma saída possível, em cada contexto específico, encontrada por quem nela trabalha, estuda ou convive de alguma maneira. Sendo assim, a partir de tais influências, os estudos do cotidiano se fundamentam, também, em uma crítica ao modelo de ciência moderna. Nesse contexto, qual foi a relação do modelo de ciência moderna com os conhecimentos cotidianos? O modelo de ciência moderna, que, para se “construir”, acabou por considerar os conhecimentos cotidianos como saberes menores, como “senso comum” a ser superado de alguma forma. Tal perspectiva, no entanto, não compreende os múltiplos sentidos e usos que fazem das normas os praticantes dos cotidianos e, por isso, mantém uma postura equivocada sobre o que é ou não fazer ciência, limitando-a a determinados procedimentos e compreensão dos processos de conhecer. Procurando, então, superar esse modelo de ciência moderna, é necessário provocar reflexões com o intuito de tecer respostas diferentes das hegemônicas, avançando na compreensão do que são os estudos nos/dos cotidianos, inserindo nesta esfera os processos sociais que foram negligenciados pelo fazer científico moderno, como as criações cotidianas de usos de produtos e normas pelos praticantes da vida diária. São práticas curriculares instituintes que, cotidianamente, são criadas pelos sujeitos das escolas, praticantes do cotidiano escolar. Compreendendo esses acontecimentos, adiante abordaremos sobre a ação do currículo como criação cotidiana. Currículo como criação cotidiana Atualmente, os estudos no campo do currículo no Brasil dialogam com diferentes teorias sociais e abordagens sociológicas e filosóficas, inscrevendo-se, assim, em diferentes tendências de pensamento educacional. Nesse contexto de pluralidade e riqueza de conteúdos, se inscrevem (FERRAÇO; OLIVEIRA; PEREZ, 2008): Reflexões As reflexões acerca dos cotidianos das escolas. Concepção de currícuo A concepção de “currículo como criação cotidiana”. Metodologia de pesquisa As metodologias de pesquisa que os sustentam, como a “pesquisa nos/dos/com os cotidianos”. Contudo, embora as contribuições das pesquisas nos/dos/com os cotidianos tenham sido significativas para o campo do currículo nos últimos quinze anos, ainda são muitos os mal-entendidos que rondam tais pesquisas. Por esta razão, torna-se importante esclarecer alguns pontos em torno delas, sobretudo para que se compreenda a própria noção de currículo como criação cotidiana. Assim, faz-se necessário esclarecer que foi a partir da incapacidade de se compreender as escolas a partir de teorias e métodos de pesquisa tradicionais, como já visto, e com as hierarquizações por elas produzidas, que as pesquisas nos/dos/com os cotidianos das escolas se desenvolveram, conquistaram espaço e chegaram a muitas compreensões, dentre elas a de que os currículos são criados, cotidianamente, pelos sujeitos da escola, muito além daquilo que se prevê e se normatiza como “o currículo”. Tais estudos globais e desvinculados das realidades escolares sempre mantiveram um forte desconhecimento acerca do que circulava, na prática, nas escolas, e o incômodo gerado precisava ser resolvido por outras formas de pesquisar e de compreender os currículos. Desse modo, os cotidianistas desejavam não apenas conhecer e apontar superficialmente os problemas escolares, mas compreendê-los como potencialmente aperfeiçoáveis, sendo necessário, portanto, novos modos de se pesquisar a escola, inexistentes até então. Modos que valorizassem o saber da prática, do cotidiano, do que é praticado na rotina da escola por seus sujeitos, seus praticantes. O currículo como criação cotidiana se insere como uma possibilidade de se pensar os currículos pensadospraticados nas escolas a partir das vivências dos praticantespensantes do cotidiano escolar. Dessa forma, destacacamos três aspectos importantes (OLIVEIRA,2016): Sendo assim, podemos compreender os currículos pensadospraticados muito além de seus aspectos organizáveis, quantificáveis e classificáveis, distante do que neles é repetição, é esquema, é estrutura. Torna-se possível, portanto, conhecer os modos como se tecem, as circunstâncias sob as quais são desenvolvidos e que neles interferem, compreendendo-os em sua complexidade e processos constitutivos. É por isso que se torna necessário mergulhar nos cotidianos das escolas, envolvendo-se com suas múltiplas e complexas realidades e problemas concretos que exigem a reinvenção curricular permanente. A partir desse mergulho, procuramos, nos diversos e múltiplos cotidianos, mais do que as marcas das normas supostamente estabelecidas e percebidas hegemonicamente, que ditam o formato das prescrições curriculares. Buscamos, sobretudo, “as marcas das operações dos praticantespensantes dos cotidianos escolares, das opções tecidas nos acasos e situações nas quais a vida cotidiana acontece, os processos de enredamentos entre conhecimentos, valores, sujeitos em interação, que dão vida e corpo às propostas curriculares, criando currículos cotidianamente” (OLIVEIRA, 2016, p. 103-104). video_library Currículo e cotidiano: definições