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Divino Acordo_ Duologia Opostos - Pauline G

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Prévia do material em texto

Copyright © 2022 by Pauline G | Divino Acordo
Capa:
· Ana Araújo - @ anaflaviaraujodesign
Diagramação:
· April Kroes - @imaginare_d
Equipe de assessoria, leitura beta e revisão:
· Ana Rebeca Duarte - @beccaeoslivros
· Karen Cristina Nunes da Silva - @romancesdakrisca
· Wedla Souza - @leiturasdawed
Leitura sensível (questões religiosas, raciais e LGBTQIA+):
· Elisandra Almeida - @bendita.resenha
· Rafael Mascarenhas - @mascarenhasraffa
 
Todos os direitos desta obra são reservados a Pauline G. Nenhuma parte
pode ser reproduzida, apropriada ou estocada sem prévia autorização da
detentora dos direitos.
Trata-se de uma obra de ficção. Nomes, personagens e acontecimentos são
produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com a realidade
terá sido coincidência. Texto conforme as regras do Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa.
 
Sumário
Sinopse
Dedicatória
Nota da autora
Epígrafe
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Epílogo
Bônus
Agradecimentos
 
 
 
A vida tem sido muito generosa com Gustavo. Irresistivelmente
bonito, inteligente e sedutor, costuma deparar-se com todas as portas
abertas.
Só que agora ele está em uma situação delicada. Com o sonho de
estudar Música, precisa gravar um vídeo para o processo seletivo. O
desafio? Encontrar uma segunda voz para a composição.
Catarina, sua colega de sala estudiosa, quase não fala durante as aulas.
Contudo, sua voz é muito ouvida no coral da escola. Todos sabem que ela é
a melhor.
Acontece que a garota também está em uma situação difícil: seus pais
religiosos desejam que assuma um namoro santo com o filho do pastor, um
sujeito que ela não quer ver nem pintado de ouro.
Assim, quando Gustavo aparece com um pedido incomum, Catarina
faz a ele uma contraproposta ainda mais inusitada: aceita ajudá-lo com o
vídeo musical, desde que assumam um namoro falso para que sua família
desista do filho do pastor.
Um acordo de namoro entre um bad boy músico e uma menina
religiosa. Simples, objetivo, com data de início e fim. Nada pode dar errado.
Certo?
“Divino Acordo” é um romance contemporâneo jovem adulto. Com
linguagem informal e cenas explícitas, destina-se ao público +18. Gatilhos:
relacionados a questões religiosas, raciais e LGBTQIA+.
 
 
 
 
 
Para GG, Cat, Vivi, Lipe, Ju e Helô.
As seis vozes da minha cabeça
que ganharam vida própria neste livro.
Sim, vocês são reais.
E para todos os leitores que acreditam nisso
e mergulham comigo na loucura.
É bom poder contar com a companhia de vocês.
 
 
Sejam todos bem-vindos!
Serei breve nos avisos, eu prometo. Como muitos sabem, "Divino
Acordo" nasceu com o intuito de me distrair, pois, desejava arejar a cabeça
ao término de trabalhos mais densos. Afinal, a escrita é a minha terapia.
Planejado para ser um livro leve e divertido, tomou rumos mais sérios
ao abordar questões como adoção, homofobia, racismo e religião, que me
demandaram horas e horas de pesquisas e estudos, além de busca por leitura
sensível.
A propósito, alerto que a obra contém gatilhos relacionados a
questões religiosas, raciais e LGBTQIA+. Se forem pessoas sensíveis aos
temas, leiam o livro com cuidado.
No mais, desejo a todos uma ótima leitura! Que a história de Gustavo e
Catarina conquiste o coração de cada um de vocês, tornando-se uma
experiência inesquecível.
 
Com carinho, Pauline G.
 
PLAYLIST
 
 
 
O nosso amor a gente inventa
Pra se distrair
 
Você podia ao menos me contar
Uma história romântica
 
~ Cazuza
Estamos sós e nenhum de nós
Sabe exatamente onde vai parar
Infinita Highway ~ Engenheiros do Hawaii
 
 
— Até que enfim... — Boquiaberto, encaro o celular. — "Parabéns.
Você foi aprovado na primeira fase do processo seletivo..."
Você. Foi. Aprovado.
As três malditas palavras que por tanto tempo moraram apenas nos
meus sonhos estão bem diante de mim.
Com as mãos trêmulas, não consigo terminar de ler o e-mail e quase
derrubo o telefone. Uma risada nervosa me escapa pelos lábios e mexo na
correntinha de prata do pescoço, deslizando o pingente para lá e para cá.
Aprovado, caralho!
Pulo da cama e ligo o notebook, conectando o bluetooth da impressora.
Preciso pegar nesse bendito e-mail com as mãos. Tocar nele para ter certeza
de que é real.
Com os dedos instáveis, comando o mouse com dificuldade. Depois de
duas tentativas, abro a caixa de entrada e clico em imprimir.
Nunca dez segundos demoraram tanto.
Mudo o peso de um pé para o outro enquanto a sulfite é cuspida pela
impressora barulhenta.
Agarro a folha e volto a ler as informações, com a ansiedade me
corroendo como ácido. 
Antes de descer os olhos pelos parágrafos, me demoro no cabeçalho,
hipnotizado:
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP
O nome comprido só não é maior do que a satisfação que preenche
meu peito.
Continuo lendo o texto em voz alta, tentando assimilar as palavras:
— "A segunda fase é uma Prova de Aptidão em Música que possui
duas etapas, a teórica e a prática, com o envio de um vídeo de caráter
eliminatório. Uma única apresentação que..."
— Gustavo! Perdeu a hora? Anda logo, menino! — minha mãe grita
do andar de baixo.
Tiro o olhar da folha, espiando o notebook. 06h34. Minha aula no
Veritas começa às 07h10. Merda. Não vai dar para ler tudo agora.
— Já vou!
Guardo a folha na parte de trás da mochila e fecho o zíper. Apressado,
coloco uma roupa qualquer. Nos bolsos, chave da moto, celular e maço de
cigarros.
Hora de ir.
Desço os degraus de dois em dois para não perder mais tempo. Estou
com muita fome e preciso comer alguma coisa antes de sair.
— Bom dia. Por que demorou tanto para descer, meu amor? — minha
mãe quer saber, servindo-se de café ao lado da pia. — Escutei seu
despertador tocar faz tempo...
Com os gestos tranquilos, solta um cubo de açúcar dentro da xícara
branca e mistura a bebida com uma colher minúscula.
A calma de Juliana Gurgel chega a ser irritante. Seus dedos de pianista
são pálidos, longos e delicados, com o movimento circular prendendo meus
olhos por dois segundos.
— Bom dia. É que abri os e-mails ao acordar... — começo a falar, me
aproximando dela. — Quando vi que veio a resposta da UNESP...
— Puta merda! E aí? Aprovado na primeira fase? — minha outra mãe
pergunta, afundando as mãos nos cabelos ruivos.
Sentada sozinha junto à mesa, com os olhos verdes muito abertos,
Heloísa Gurgel não se aguenta em si. Sua reação desesperada me faz rir. Ela
é uma figura...
Como o velho clichê dos opostos que se atraem, temos Juliana e
Heloísa aqui, juntas há quase trinta anos. Uma é calma, delicada, artística.
Professora de piano clássico, dá aulas particulares a crianças em um
Conservatório. A outra é pilhada, estressada, boca-suja. Economista,
trabalha com a Bolsa de Valores em uma grande financeira no Centro.
Apesar de não ser filho biológico de nenhuma das duas, me considero
uma mistura de ambas. O viés artístico de Juliana corre nas minhas veias,
assim como a energia caótica de Heloísa.
— Helô! Deixa o menino contar no tempo dele — repreende a loira,
ajeitando uma mecha lisa da franja. — Sem pressão, meu amor. E, se não
tiver sido aprovado desta vez, tudo bem. Ainda tem dezoito anos, é quase
um bebê — diz antes de sentar-se à mesa ao lado da mulher.
Ainda em pé, retribuo com um sorriso, me servindo de café preto.
— Um bebê que já pode fazer bebês — Heloísa brinca, enchendo o
copo com água. — E que tem praticado bastante. O estoque de camisinhas
do banheiro dele está em baixa. Eu não vou repor aquilo.
Quase cuspo o café com a risada engasgada... É foda ter tanta
liberdade com elas. 
Balanço a cabeça e pego umatorrada na mesa, lambuzando-a de
manteiga.
— Tá reclamando? Melhor usar camisinha do que transformar vocês
em avós antes da hora. — Dou uma mordida na torrada. — Então, como eu
ia dizendo antes de mudarem a pauta para a minha vida sexual... — Limpo
as migalhas da boca com o dorso da mão, em uma pausa dramática. Corro
os olhos de uma a outra, confirmando que as duas me encaram em
expectativa. — Sim, fui aprovado na primeira fase do processo seletivo da
UNESP.
Antes que possa piscar, sou engolido por quatro braços que me
apertam, me amassando. Perfumes doces invadem meu nariz e eu quero rir
diante do bombardeio de beijos nas bochechas e exclamações de "eu
sabia!", "tão inteligente!", "que orgulho!"
Cara, eu amo as minhas mães.
— Vocês me amarrotaram... — Me solto, ainda rindo, alisando a
camiseta preta. Enfio o resto da torrada na boca e pego duas bananas na
fruteira para mais tarde. — Valeu, mães. Por tudo. Preciso ir.
 
 
Estaciono a moto sob uma árvore e prendo o capacete no guidão,
espiando ao redor do estacionamento da escola. 
O asfalto está quente contra a sola dos meus tênis, com o sol mais forte
do que o comum para a época do ano. Detalhe, ainda nem saímos do
inverno.
O terreno espaçoso parece vazio demais, sem os grupinhos de
estudantes. O sinal bateu há dez ou quinze minutos, então todos já entraram
no prédio. 
Mais adiante, os raios solares batem em um carro prateado e o reflexo
me faz apertar os olhos, me incomodando com a claridade.
Ainda ao lado da moto, mexo no meu cabelo com as pontas dos dedos,
consertando o estrago nos cachos feito pelo capacete, até que uma voz
muito familiar me chama:
— Fala, GG! Beleza? Chegou só agora?
Felipe surge do nada, dando um tapinha no meu ombro.
Meu amigo está sempre atrasado para as aulas e hoje fiz a façanha de
chegar depois dele.
— Mais do que beleza, Alemão... — Tiro a mochila das costas,
apoiando-a no banco da moto. — Como já perdemos a primeira aula, dá
uma olhada nisso. Nem acredito.
Entrego a ele o papel com o e-mail da UNESP. Sem tirar os olhos
castanhos da minha cara, Lipe desdobra a folha. Pelo sorriso esperto que
estica os lábios dele, sei que já sacou o que é antes mesmo de começar a ler.
O filho da puta me conhece bem demais. Sabe que isso é o que eu mais
quero na vida.
— Eu sabia, caralho! Tu conseguiu! Parabéns!
Passa um braço por trás do meu pescoço, quase me enforcando.
— É... Consegui. — Eu me solto dele, rindo. — Valeu.
Acendo um cigarro enquanto o meu amigo corre os olhos pela folha,
de cabeça baixa, com os cachos loiros caindo por cima das sobrancelhas.
— Merecido. Nem sei mais o que falar... — murmura, ainda lendo o e-
mail. — Não manjo de discursos emotivos, motivacionais e o caralho.
— Nada de discursos, relaxa. Ainda não caiu a ficha, sabe? É a
UNESP, brother — comento, soltando a fumaça para o alto. — Tô felizão...
Eram mais de mil candidatos, só os cem primeiros passaram para a segunda
fase.
— Que foda! — Ele sorri, com a argola do piercing labial brilhando
sob o sol. — E afunila cada vez mais... Tô lendo aqui, são trinta vagas
agora? Ou seja, setenta por cento do povo vai rodar.
— Desde que não seja eu... — aponto, apagando o cigarro na borda de
uma lixeira de metal. — Vamos entrar? Daqui a pouco bate o sinal da
próxima aula.
— Espera, tô terminando de ler... Pronto. — Levanta a cabeça e me
devolve a folha, ainda sorrindo. — Já sabe quem vai ser a sua segunda voz?
O quê?! 
— Que porra de segunda voz, Alemão?
— Tá nas regras, GG... Você precisa gravar um vídeo de música com
um instrumento e duas vozes. A parte do instrumento vale 50 pontos. Cada
voz, 25, totalizando 100 pontos. Sei que o seu instrumento vai ser o violão,
mas e a segunda voz?
— Ainda não li tudo — confesso, enfiando de qualquer jeito a folha na
mochila.
Fecho o zíper e passo as alças pelos braços, com o coração acelerado
diante da pergunta para a qual não tenho resposta.
— Não sabe de ninguém que possa te ajudar nisso?
— Não faço a menor ideia — resmungo, caminhando pela passagem
que leva do estacionamento ao pátio da escola.
— Ei, não olha para mim! — Felipe dá risada, andando do meu lado.
— Não sei nem cantar "Marcha Soldado."
— Não fode... Ainda que soubesse — rebato ao passo em que
cruzamos o gramado do pátio externo. — Tô pensando aqui... O ideal é que
seja uma voz feminina para uma composição mais harmônica, mais bonita.
— Tem razão, brother.
— Só não sei quem...
— Alguma das G5 deve servir... — Ele diminui o tom da voz quando
passamos pelas portas do prédio da escola. — A gente já conhece outras
habilidades delas, "tocam flauta" muito bem, se bobear também sabem
cantar.
Ignoro o duplo sentido tosco do "tocam flauta" e penso na sugestão
dele. G5 é o grupo das meninas populares, encabeçado por Jamile, a mais
gostosa delas. Ao todo, temos Jamile, Karla, Laura, Monique e Nicole. Sim,
os nomes delas formam uma maldita sequência alfabética.
Eu e Felipe já pegamos as cinco, inclusive ao mesmo tempo.
Precisamos marcar uma próxima "festinha" e...
Foco. Foco no lance da faculdade.
Tenho que correr atrás disso, sem distrações. Nada é mais importante.
Estou uma pilha de nervos. Só vou relaxar quando encontrar a bendita
segunda voz.
— Na real, Alemão? Tô ansioso pra caralho. Não vou sossegar
enquanto não resolver isso — desabafo, mexendo no pingente da
correntinha de prata.
Estamos andando pelo corredor das salas de Ensino Médio, no prédio
principal do Veritas. Tomo o cuidado de manter a voz baixa porque todo
mundo está em aula do outro lado das portas fechadas.
— Vamos traçar um plano, dar uma perguntada pela escola, tentar
descobrir as melhores opções — Lipe sugere, caminhando com as mãos
enfiadas nos bolsos. — Fica tranquilo, irmão, vai dar tudo certo. A vaga é
sua.
Esboço um sorriso de canto ao escutar a fala dele. Felipe é brother,
parceiraço, ponta firme, cem por cento confiável. Embarca comigo em
todas as paradas e vice-versa. Dos lances mais suaves aos mais loucos.
Podemos nos dar bem ou nos ferrar, não importa. Um não abandona o
outro.
— Valeu. Tem razão, preciso de um plano. Acho que o primeiro passo
é falar com Jamile...
Quando pisamos no corredor dos armários, nos deparamos com a
própria. Em carne, osso e roupas apertadas. Com a calça jeans e a regatinha
branca marcando as curvas, está gostosa pra cacete.
— Quer falar comigo? — Jamile abre o maior sorriso quando me vê
chegar, deslizando a ponta da língua pelos lábios carnudos. — Escutei você
dizer o meu nome, GG.
Ela bate a porta do armário de metal e vem caminhando graciosamente
na minha direção, remexendo os quadris para os lados.
As milhares de pulseiras prateadas nos seus braços bronzeados batem
umas contra as outras, ecoando um som metálico, e a calça justa evidencia
as coxas grossas que tenho o privilégio de alisar com certa frequência.
— Que coincidência, Mile...
Sorrio, puxando-a pela cintura. 
As pontas dos seus cabelos ondulados acariciam as laterais dos meus
dedos. Na ponta dos pés, Jamile leva uma mão ao meu pescoço e beija
minha bochecha. Seus lábios macios estão cobertos de brilho labial,
melecando meu rosto.
Detesto essa porra e me seguro para não me limpar na frente dela.
— Cheiroso como sempre — elogia, com as unhas passeando pela
minha nuca. As pulseiras roçam pela pele, me arrepiando. — Sobre o que
quer falar comigo?
Antes que eu possa responder a pergunta dela, o sinal da segunda aula
ressoa estridente pelo corredor.
— Agiliza, cara! É a aula da professora Thaís, ela adora pegar no
nosso pé… — Felipe lembra e me desvencilho de Jamile.
— Te explico no intervalo, agora não dá tempo.
Ao abrir o meu armário, mexo no material e suspiro fundo, me
preparando psicologicamente para a aula de Física.
Minutos depois, estamos acomodados no fundão da sala.
Sentado do meu lado, Felipe morde a boca para não rir, rabiscando um
bilhete. Seus cachos loiros balançam conforme ele se remexe na cadeira,
animado como uma criança ao escrever uma carta para o Papai Noel.
— Passa para a Monique? — pede em um sussurro, me entregando o
papel dobradoem um quadradinho minúsculo.
— Só se eu puder ler.
— Lê aí... Sou um gênio, admite.
Ele aponta para a lousa com o queixo.
A professora está de costas para a turma, resolvendo uns problemas de
inclinação, gravidade e o caralho. Já disse que detesto Física?
Desdobro o bilhete e quase me engasgo com a saliva ao encontrar a
pior cantada nerd de todos os tempos:
"Uma bola cai em uma ladeira com inclinação de 8 graus,
desconsiderando o atrito e a resistência do ar, hoje rola ou não rola?"
— Vai se foder, essa é horrível — sussurro alto demais, dobrando o
papel e a professora se vira com tudo para mim.
É uma mulher de meia-idade que me despreza com todas as fibras do
seu corpo magro. Sua voz seca me dá nos nervos:
— Gustavo Gurgel. Quieto.
Assinto em concordância, oferecendo a ela o meu sorriso falso, o que
não mostra os dentes. A megera não fala mais nada e dá as costas
novamente, tornando a escrever na lousa.
— Anda, entrega para ela... — Lipe indica a menina à minha frente.
Monique está com os cabelos crespos presos em um coque, deixando o
pescoço esguio à mostra. Quase posso sentir o gosto da sua pele quente na
minha língua. É muito gostosa, e só não peguei mais vezes porque me liguei
que Felipe tem uma queda a mais por ela.
— Ei... — Inclinando-me para a frente, encosto no seu ombro, com a
alcinha do sutiã rosa contrastando contra a sua pele negra. — Bilhete do
Alemão para você, Ni.
Sem virar o corpo para trás, ela pega o papel da minha mão,
desdobrando-o depressa. Gira a cabeça, olhando por cima do ombro para o
meu amigo e abre o maior sorriso de todos antes de responder um "rola
sim" mudo, compreensível apenas por leitura labial.
Porra... Não acredito que a cantada nerd deu certo.
Com o ressoar do sinal do intervalo, barulhos de cadeiras e mesas
sendo empurradas se misturam aos sons de conversas paralelas, todos
ansiosos para sair da sala.
Pego os fones na mochila, colocando-os no pescoço. Com a outra mão,
confiro se o maço de Marlboro está no bolso da calça. Música e cigarro
garantem a minha sanidade nos intervalos escolares.
— Anda, cara...
Empurro de leve Felipe, que está caminhando na minha frente. Ele
tenta passar pela muvuca, desviando das mochilas e das pessoas. O ruim de
sentar no fundão é isso. A distância até a saída é maior.
— Tô andando, relaxa. Por que o mau humor?
Se eu ganhasse um real para cada “relaxa” que Felipe me fala, estaria
milionário.
— Porque cansei dessa maldita escola, e ainda faltam três meses para
terminar o ano letivo — resmungo ao passar pela porta.
O corredor está ainda mais caótico do que a sala de aula, com todas as
turmas tentando deixar o prédio rumo ao pátio externo.
— Pelo menos hoje é sexta. Se anima, é quase final de semana... —
Felipe para de andar e vira o corpo para o outro lado. — Lembrei de uma
coisa, preciso passar na secretaria. Já te encontro lá fora, GG.
— Beleza — respondo, posicionando os fones sem fio na cabeça.
Dou o play no celular e a voz rouca de Nasi reverbera com suavidade,
me fazendo batucar os dedos na barriga:
A minha vida
Eu preciso mudar todo dia
E os meus sonhos
Eu procuro acordar e
Perseguir meus sonhos
Então, quando viro no corredor da saída, paraliso com um pequeno
incidente.
Algo quente e macio bate com tudo na boca do meu estômago.
Mais especificamente, os peitos de uma menina.
Amassados contra o meu corpo.
 
Me lembrei que eu esqueci de perguntar o seu nome
Sem endereço nem direção, por onde começar?
Eu Nunca Disse Adeus ~ Capital Inicial
 
 
Como a garota mantém o rosto baixo, não enxergo suas feições,
somente o topo da cabeça. Cabelos castanhos, lisos, repartidos ao meio.
Um perfume adocicado de fruta chega ao meu nariz. Melancia, talvez?
— Ai... — um sussurro quase inaudível perde-se entre os acordes da
música do Ira, que continua tocando nos fones.
Seguro seus ombros com as duas mãos, afastando-a de mim. Seu corpo
pequeno, magro, está escondido sob roupas largas demais. Muitos
centímetros mais baixa, se não estudasse aqui diria que tem doze ou treze
anos.
Em câmera lenta, ela levanta o rosto e posso vê-la melhor.
Com os lábios apertados, a menina está mortificada, os olhos
castanhos arregalados por trás das lentes dos óculos de grau.
Empurro os fones para o pescoço, pretendendo falar com ela. Quero
desfazer o clima estranho.
— Foi mal — digo, analisando seus traços.
Os olhos grandes, a boca pequena, a pele muito branca, o nariz e as
maçãs do rosto salpicados com sardas. Milhões de sardas como uma
constelação impossível de coloração ocre, quase cobre.
— Não, a culpa é minha. Peço perdão. Estava andando no contrafluxo,
com a cabeça longe — explica e o cheiro de melancia fica mais acentuado.
É do chiclete que masca.
Ainda com a postura desconfortável, a menina dá um passo para trás,
massageando os próprios ombros nos pontos onde toquei. Será que a apertei
com força demais?
— Te machuquei? Está tudo bem? — pergunto e ela faz que não, ainda
me encarando, as mechas lisas balançando com o movimento.
Fico sem entender porra nenhuma.
Não o quê? Não machuquei ou não está tudo bem?
Franzo a testa enquanto ela continua parada na minha frente, em
silêncio. Por trás das lentes espessas dos óculos, o par de olhos castanhos
me encara fixamente. Como se eu fosse o único cara em todo o maldito
corredor.
Sem falsa modéstia, estou acostumado a receber olhares todos os dias,
mas...
Aqui, tem alguma coisa diferente.
— O que foi, hein? — disparo. Busco a correntinha do meu pescoço,
puxo o cordão para fora da gola e mexo no pingente. — Fala comigo.
Quando seu olhar desce para a joia, com o pingente prata brilhando
sob a luz branca do corredor, seu queixo cai em espanto. Suas bochechas
ficam muito vermelhas, pegando fogo. Do nada?
Que menina esquisita...
— Eu... Eu sei que pode parecer loucura... — Sua voz é vacilante, e
aperto um pouco os olhos para não perder nenhuma palavra. — Mas pedi
para...
Então, somos repentinamente interrompidos por duas mãos que
tampam meus olhos, o som das pulseiras entregando a identidade da pessoa.
Jamile.
Agora não, cacete...
— Não ficou de falar comigo no intervalo, GG? — questiona, com a
boca carnuda provocando minha orelha por trás.
Um arrepio incômodo me sobe pela coluna. Remexo os ombros, me
desvencilhando dela, mas é tarde demais.
A menina das sardas está indo embora, a passos lentos de marcha à ré,
com uma expressão sem graça no rosto.
— Com licença — murmura, desaparecendo ao dobrar o corredor.
Com Jamile pendurada no meu braço, fico parado no lugar, mais
intrigado impossível, ainda sentindo o aroma de melancia no ar.
"Eu sei que pode parecer loucura, mas pedi para...", repenso as
palavras, tentando juntar as peças.
Loucura? Pediu o quê? Para quem? 
Penso, penso e... Nada se encaixa com nada. Merda.
 
 
Sentado na mureta do pátio, observo o vai e vem de alunos ainda em
horário de intervalo. Pelos últimos minutos, tentei encontrar a menina das
sardas, sem sucesso.
O pior é que nem sei o nome dela. 
A pequena pode ser de qualquer turma. São quatro salas de cada ano
do Ensino Médio. Por onde começar?
A voz de Lipe ao lado me lembra do lance do processo seletivo:
— Então, é isso... Precisamos de uma segunda voz para ontem,
meninas. GG tem que conseguir a vaga na UNESP... — ele continua
explicando tudo às garotas do G5.
Enquanto permaneço quieto na mureta, fumando um cigarro, meu
brother fala sem parar, tomando sol preguiçosamente deitado em um banco
de concreto. Com as mãos atrás da nuca e as pernas esticadas, parece uma
maldita lagartixa.
— Alguém aqui sabe cantar? — pergunto, correndo o olhar pelo grupo
delas. Estão todas em pé entre mim e Felipe.
— Acho que sim — diz Karla.
— Lógico que sei! — exclama Jamile.
— Não — Laura e Nicole respondem juntas, como se tivessem
combinado. 
As duas amigas são muito parecidas. Com os olhos claros e os cabelos
descoloridos com as pontas azuis e rosas, parecem as irmãs mais novas da
Arlequina de "Esquadrão Suicida". 
— Depende da música, mas... — Monique é a última a se manifestar,
ajeitando um cachoatrás da orelha. — Melhor não. Tenho vergonha.
— Vamos organizar uma seletiva — Felipe anuncia ao se sentar,
colocando os óculos escuros no rosto. — Amanhã é sábado, podemos ir
todos lá para casa. Uma festinha. Vocês cantam, GG avalia, eu garanto a
diversão.
Pronto. 
As meninas se alvoroçam e começam a falar todas ao mesmo tempo
sobre maquiagens, roupas e sei lá mais o quê. "Quer se arrumar na minha
casa, Ni? Leva aquela sua sombra preta!", "Posso usar aquele seu vestido
branco, amiga?", etc.
— Não, não. — Balanço a cabeça em negativa, ciente de como são as
festinhas na casa do Alemão. Bebida, maconha, putaria, e preciso estar cem
por cento sóbrio e concentrado para escolher a segunda voz. — Não vamos
misturar as coisas. Responsabilidade de um lado, diversão de outro.
— Poxa, GG... — Jamile faz um beicinho e vem em até mim,
posicionando-se entre meus joelhos abertos. — Vai mesmo cancelar a
festinha? Faz tempo que não fazemos nada...
— A festa pode acontecer, sem problemas. Só que, chapado, não vou
conseguir escolher direito. Isso é muito importante para mim, gata.
Dou mais uma tragada no cigarro e solto a fumaça para o alto.
— É? Então, o que sugere? — quer saber, pousando as mãos nas
minhas coxas, as unhas arranhando o tecido jeans.
— Não sei. Deixa eu pensar aqui. Na casa do Alemão não dá para
fazer a seletiva. Preciso de um lugar mais tranquilo, com uma acústica
bacana...
— A gente pode se encontrar no auditório depois da última aula —
Karla opina e eu me viro para ela. Está com os cabelos loiros presos em um
rabo alto, as pontas balançando contra o vento. — Se não tiver ninguém lá,
podemos cantar para você avaliar. A acústica é legal.
Boa ideia.
— Fechado. Afinal, quem vai cantar? É só uma música para o vídeo,
ok? — disparo e elas voltam a falar ao mesmo tempo, tagarelando sem
parar. "Eu! Amo cantar", "Não, amiga, eu morreria de vergonha", "Gravar
um vídeo cantando? Nem morta", "Os meus seguidores...", etc.
Ao final, Jamile assume a palavra:
— GG, eu e Karla vamos cantar uma música da Pitty, você escolhe a
que gostar mais. — Aponta para a amiga. — Que vença a melhor! Ok?
Sorrindo, elas trocam olhares competitivos.
Em resposta, eu apenas suspiro fundo, prevendo treta.
 
 
A audição de Jamile e Karla é uma bosta. 
As duas são desafinadas, sem qualquer ritmo ou percepção musical.
Até uma criança cantando “Galinha Pintadinha” teria mais noção.
Elas podem ter outras habilidades, mas...
Cantar? Só se for no banho. De preferência, sem mais ninguém por
perto.
— Até que enfim... Paz! — Felipe expira quando a bateria do meu
celular zera e o aparelho desliga, cortando a música “Na Sua Estante”
depois de incontáveis repetições.
O auditório fica silencioso e as meninas me encaram em expectativa,
aguardando pelo veredicto. Estamos os quatro em cima do palco de
madeira.
— É... — Coço a nuca, diplomaticamente escolhendo as palavras sob
os olhares atentos delas. — Valeu a tentativa, gatas, mas não vai rolar.
Nenhuma das duas.
— Por quê? Cantei a música de cabo a rabo, sei a letra inteirinha!
Olha: Você está saindo da minha viiida e parece que vai demoraaar —
Jamile repete um trecho com a voz esganiçada e eu aperto os olhos,
agoniado com a falta de afinação.
Quando reabro os olhos, percebo que está insatisfeita, à espera de uma
explicação melhor. Sem dizer mais nada, ela me encara com a irritação
palpável escorrendo dos olhos escuros e eu enrijeço a postura.
— É que... — Meus dedos puxam a correntinha para fora da gola, em
um gesto que faço sem pensar quando estou nervoso. Não que Jamile me
provoque medo ou qualquer porcaria do gênero, mas a real é que detesto me
ver sob pressão.
Tento me socorrer olhando para Felipe — que tem mais jogo de cintura
do que eu —, mas o filho da puta está distraído, digitando no celular.
Sorrindo para o aparelho, ele sai andando e se joga em uma das cadeiras
acolchoadas da plateia, me largando para trás.
— Porque... — repito cuidadosamente, olhando para Jamile. — Não
sei explicar. De verdade. Foi mal, mas não é o que tô procurando.
Quando termino de falar, faço menção de encostar no rosto dela, mas
Mile dá um passo para trás, em uma atitude arisca. Pelo jeito, a mimada não
está acostumada a receber "nãos".
Quer saber? Foda-se.
Não vou ceder à sua vontade e ferrar com a minha chance de estudar
na UNESP.
— Quer uma dica, GG? — Karla vem até mim, brincando com as
pontas dos cabelos entre os dedos. — Dá uma conferida no coral da escola.
Meu primo Lucas faz parte, tem vários alunos que cantam bem, mas todos
sabem que Catarina é a melhor.
— Catarina? Não conheço — comento, ainda mexendo na correntinha,
correndo os dedos para lá e para cá.
— Então, está na hora de conhecer. O ensaio é daqui a pouco, a partir
das treze. — Olha para o relógio dourado no pulso. — Bem, preciso ir.
Vamos, Mile? — pergunta à amiga que continua de cara fechada.
Jamile faz que sim, mordendo a unha do polegar. Quando estão prestes
a ir embora, eu chamo:
— Espera, Karlinha! Como vou saber quem é a menina? A tal da
Catarina.
A loira olha para a amiga, hesitante. A princípio, não entendo o
porquê.
Será que está “pedindo” autorização para me responder?
Provavelmente, sim. É foda como Jamile gosta de mandar e desmandar em
todo mundo, até mesmo nos menores detalhes.
— Sei quem é de vista, posso ficar e te mostrar... — Lipe oferece e me
viro para ele. — Já fui dupla dela uma vez no laboratório de Química. A
menina é daquelas nerds que escrevem cada palavra do professor e depois
ainda passam o caderno a limpo, tá ligado?
— Sei. Puts... — Solto um riso fraco. — Valeu por ficar, Alemão.
— "Valeu" é o cacete. Tá me devendo uma. Odeio continuar na escola
depois horário — completa, bagunçando os cachos claros.
— Como se você tivesse coisa melhor para fazer — rebato.
Enquanto costumo passar as tardes ocupado com música, Felipe se
divide entre fazer nada na casa dele e fazer nada na pista de skate, porque
nem skate ele tem. Só vai até lá porque o local vive cheio de gostosas e
"elas curtem skatistas, GG, vai na minha."
É uma das mil frases que o Alemão solta sobre o que meninas curtem e
não curtem, como se estudasse o assunto em um manual imaginário de
pegação cuja fonte seriam as vozes da cabeça dele.
Na real? Não sei por que se esforça tanto. Com ou sem manual, nunca
faltou menina para nós dois.
Minutos depois, eu e ele continuamos no auditório, largados nas
poltronas acolchoadas da plateia. Não tem mais ninguém aqui dentro, nem
mesmo os inspetores da escola, devem estar na pausa do almoço.
Até que o celular do meu amigo vibra e ele fica em pé em um pulo.
— Já volto, GG — avisa, com o aparelho na mão. — Fica de olho nas
minhas coisas, beleza? — pede, apontando para a mochila dele que está
junto com a minha na outra poltrona.
Assinto e Felipe sai do auditório.
Sozinho, passo a divagar sobre a tal da Catarina.
Será que ela sabe quem sou?
Se souber, tomara que não tenha nada contra mim e que concorde em
me ajudar.
Isso é, se a voz dela for realmente boa. Ou, ao menos, compatível com
a minha. Só vou pedir o favor à menina depois de assistir ao ensaio dela
com o grupo do coral.
Vasculho a mente, tentando me lembrar se já peguei alguma aluna com
esse nome, mas... Nada.
Menos mal. Talvez não fosse uma boa gravar o vídeo com alguém que
tivesse histórico comigo.
Suspiro fundo e me levanto da poltrona. Perambulando pelo corredor
da plateia, aperto a correntinha de prata.
Como meu celular está sem bateria, não posso me distrair mexendo
nele. Para piorar, acendi o último cigarro no intervalo, fumar agora não é
uma opção.
Quando escuto a risada de Felipe do lado de fora, decido ir até lá. Saio
do auditório e observo que o dia está claro, com o céu limpo, sem nuvens.
A claridade me faz apertar os olhos e o som de um riso baixo me leva a
virar o corpo para a esquerda.
Mais adiante, enxergo Lipe com as costas apoiadas na parede,
digitando no celular, sorrindo para o aparelho.
— E aí, Alemão? — pergunto ao me aproximar, com as mãos
enterradas nos bolsos. Ele murmura um "peraí",sem me olhar.
Espio ao redor, na falta do que fazer. Sem celular, sem cigarro, sem
companhia...
Tô lascado.
Como o auditório fica em um local mais elevado, a vista é muito
bonita. Daqui consigo enxergar o prédio principal da escola, meio distante,
com todo o pátio externo entre as duas construções.
O sol reflete por toda a enorme área do Veritas, com prédios, pátios e
quadras que ocupam um quarteirão inteiro da Vila Mariana, um bairro
nobre de São Paulo.
Minhas mães gastam uma puta grana comigo aqui, sou eternamente
grato a elas.
— Tô falando aqui com Monique, programando umas coisas... — Lipe
explica, sem tirar os olhos do iPhone. — Acabamos não conversando
depois da aula e ela já foi embora.
— Quase todo mundo já foi embora — comento, descendo os olhos do
céu.
Os degraus à nossa frente estão vazios. Lá embaixo, um ou outro aluno
caminha na direção do estacionamento. A escola está praticamente deserta.
— É... O final de semana promete. — Ainda animado, guarda o celular
no bolso. — Quer fumar? — pergunta e eu abro um sorriso em resposta.
Felipe puxa o Marlboro do outro bolso e, encaixando um cigarro entre
os lábios, passa o maço para mim. O esmalte preto das suas unhas está
descascando e me pergunto como alguém pode achar essa merda estilosa.
"Elas curtem caras com unhas pintadas", disse com o vidro do esmalte
na mão, dias atrás. Mais um besteirol do seu manual imaginário.
— Por falar em final de semana, estou pensando aqui... — murmuro,
levando o cigarro à boca. — Hoje é sexta. O ideal é que eu defina o lance
da segunda voz até domingo para já começar a ensaiar na semana que vem.
Tenho dois meses para enviar o vídeo.
Dou uma longa tragada, satisfeito. O torpor da nicotina me relaxa.
— Com licença. — Um garoto cabeludo surge do nada, pretendendo
entrar no auditório. Com uma careta esquisita, ele balança uma mão na
frente do rosto, certamente incomodado com a fumaça dos cigarros.
— Vamos fumar mais para lá — sugiro ao meu amigo, me afastando
das portas.
— Beleza. — Felipe concorda e vem para o meu lado, descendo os
degraus até o pátio. Ele volta ao assunto do vídeo: — Dois meses é um
prazo tranquilo, GG.
— Sim, desde que eu esteja com a segunda voz e com a música
definidas. O que não é o caso.
— Nem a música você faz ideia? Rock nacional não tem erro. Pega
uma clássica. Raul Seixas, Cazuza, Legião... Vai arrepiar até os pelos do
saco dos jurados.
Quase me engasgo com a fumaça ao escutar o comentário tosco. 
Porém, antes que eu possa responder qualquer coisa, Lipe balança uma
mão no ar, chamando minha atenção. Sem falar nada, ele continua
sacudindo o braço, com os lábios apertados em uma linha fina.
— Que foi, cacete? — disparo. — Tá passando mal?
— Olha lá! Catarina chegou e... Aquela sua vizinha mal-humorada está
com ela. Mal-humorada e gostosa. Aqueles peitos me deixam maluco. O
nome dela é Viviane, não é?
Quando viro a cabeça, a primeira pessoa que enxergo é Viviane, “a
vizinha mal-humorada”. Com a pele amarela, os olhos pequenos e a altura
irrisória, parece uma fadinha japonesa.
Não uma fada do bem. Uma fada do mal, para ser preciso. Criatura
mais azeda não existe. E, para a minha "sorte", mora na casa ao lado da
minha.
— É, sim. — Assinto, soltando a fumaça. — Viviane Yamamoto. Ela é
da nossa sala, seu lerdo.
— Jura? Acho que preciso prestar mais atenção nas coisas. Bom, pelo
jeito, Viviane é amiga da nerd que canta bem. Estão batendo altos papos —
completa Felipe. 
Viviane segue com um pequeno grupo, subindo a escada lateral que
leva ao auditório. E, quando foco o olhar na pessoa ao lado dela, eu não
acredito.
Minha boca se abre e meu coração se acelera quando percebo que é a
menina das sardas. A própria. Que bela coincidência... Sorrindo como um
trouxa, puxo a correntinha mais uma vez, brincando com o pingente
redondo.
Te encontrei, Pequena.
 
 
— E aí? Acha que vai conseguir convencer a baixinha? — Lipe
pergunta, me empurrando com o ombro.
Pelo canto dos olhos, percebo que ele me observa atentamente
enquanto encaro a menina. Ela está parada em frente às portas do auditório,
conversando com Viviane.
À distância, posso reparar melhor nela, no jeito dela. Os cabelos
castanhos soltos, os óculos de armação grossa, a blusa branca larga, a saia
preta comprida. Catarina parece uma mistura de hippie com fanática
religiosa.
Meu sorriso morre. 
Nada contra o estilo, mas... Estou de saco cheio de fanáticos religiosos.
Tinha uma família no final da minha rua que sempre pegava no meu pé
porque tenho duas mães. Não deixavam o moleque deles, da minha idade,
brincar comigo quando nos conhecemos. Detalhe, a gente tinha cinco ou
seis anos na época. Foda.
Para piorar, destilavam comentários maldosos de que a minha família
"vivia no pecado", "iria para o inferno" e outras merdas do gênero e eu nem
entendia o porquê.
Mais tarde, ficou bem claro para mim. Tudo se resumia a ignorância,
preconceito, homofobia pura e simples sob o disfarce de fé religiosa.
Que se explodam...
Nem sei se Catarina segue uma religião ou não, posso estar tirando
conclusões equivocadas, mas não estou com um bom pressentimento.
Com o peito apertado em ansiedade, sinto que não vai ser fácil
convencê-la a ser minha segunda voz. Mesmo que não seja religiosa...
Meninas certinhas como ela não costumam dar abertura a caras baderneiros
como eu.
Resumindo a parada, tô fodido.
 
Estranho seria se eu não me apaixonasse por você
O sal viria doce para os novos lábios
All Star ~ Nando Reis
 
 
— Será que demora para começar o ensaio? — Felipe quer saber,
mexendo no celular. — Quase uma e meia da tarde, tô morto de fome.
Estamos sentados na última fileira das cadeiras acolchoadas, no fundão
do auditório.
— Você sempre tá morto de fome... — rebato e uma movimentação do
outro lado atrai meus olhos. Um inspetor da escola. — Ei, não pode usar
celular aqui dentro, esqueceu? Quer tomar uma advertência de graça? —
alerto em voz baixa, apontando com o queixo para o homem uniformizado.
O inspetor desce os degraus da plateia, correndo os olhos pelo
ambiente como uma águia, louco para soltar advertências.
É proibido entrar com eletrônicos no auditório e todo mundo sabe
disso. Tem uma regra que exige que a gente deixe os celulares nos armários,
lá no outro prédio, antes de vir para cá. 
A intenção é não atrapalhar os ensaios e as apresentações.
Não que eu me importe em cumprir regras, mas o foda é que os
inspetores da escola são pentelhos pra cacete e vivem pegando no meu pé.
Ao contrário de mim, Felipe não está nem aí. Como é filho de um advogado
fodão, ninguém mexe com ele. 
Como se quisesse confirmar a ideia, Lipe lança:
— Ninguém me tira o celular. Além de morto de fome, estou no tédio
aqui. Vamos jogar “Brawl Stars”? Só uma partidinha pra eu te destruir.
— Não dá, eu...
— Deixou o celular lá no armário? Que aluno exemplar, cumprindo as
regras — dispara com deboche, mordendo o piercing labial.
— Nada, tá aqui na mochila, mas morreu. Acabou a bateria, lembra?
— pergunto e ele faz que sim. — Se anima, vai ser legal o ensaio. São
músicas do Nando Reis.
Indico a faixa sobre o palco com os dizeres: "O melhor de Nando
Reis", em letras garrafais.
No mesmo instante, ruídos de microfonia se espalham pelo auditório e
um cara sobe no palco, mexendo nos aparelhos de som. Catarina, Viviane e
mais uma porção de pessoas vão atrás dele.
No minuto seguinte, uma menina assume o violão e um moleque
começa a cantar:
Desculpe estou um pouco atrasado
Mas espero que ainda dê tempo
— Ih, pelo jeito nem é Catarina que vai cantar hoje... — Felipe suspira
fundo. — Te espero lá fora, GG.
— Não precisa me esperar, brother. De verdade. Já fez muito, valeu.
Até amanhã — digo, sabendo que ele está ansioso para ir embora.
Lipe bate com dois dedos na testa, sinalizando como um soldado. 
Aceno em resposta e observo meu amigo dirigir-se às portas do
auditório.
As suas queixas tão justificáveis
E a falta que eu fiz nessa semana
Coisas que pareceriam óbvias até pra uma criança
Continuo sentado na poltrona acolchoada, sozinho.Com os cotovelos
fincados nos joelhos, abaixo o rosto e fito o chão, desanimado.
Até que...
Estremeço quando uma voz feminina repentinamente preenche o ar do
auditório, arrepiando todos os malditos pelos dos meus braços.
O tom aveludado, suave como carícia, flui liso como seda:
Por onde andei enquanto você me procurava
Será que eu sei que você é mesmo tudo aquilo que me faltava
CA-RA-LHO.
Boquiaberto, levanto o rosto e observo Catarina cantar, com as mãos
delicadas envolvendo a base do microfone:
Amor eu sinto a sua falta
E a falta é a morte da esperança
Eu estremeço tanto com o timbre que chega a ser mais intenso do que
tesão. Cacete... Nunca senti porra nenhuma semelhante a isso.
As palavras leves como plumas flutuam das caixas de som até meus
ouvidos, reverberando por todas as células, me acendendo, me ligando.
Uma sensação líquida, quente, pulsante se espalha pelo meu corpo e se
instala no peito, preenchendo cada milímetro de calor. De vida.
Não faço ideia de como convencê-la, mas sei que...
É ela.
 
 
Uma eternidade depois, observo Catarina e Viviane despedirem-se do
grupo do coral. Deixo minha poltrona enquanto as duas descem com
tranquilidade os degraus do palco até a plateia. 
É incrível como Catarina consegue ser ainda menor que Viviane...
Ambas são baixas, mas a primeira é ridiculamente pequena. Chuto que
tenha no máximo um metro e meio. 
Ansioso, me coloco no corredor à frente delas. Cruzo os braços sobre o
peito e, com o corpo impedindo a passagem, aguardo que venham até mim.
Batendo papo, elas estão com as cabeças baixas, olhando para uma
folha de papel que Viviane segura.
— Ei! — exclamo ao ver que Catarina está prestes a esbarrar em mim.
De novo.
Surpresas, elas param de andar e levantam os rostos, me encarando
com susto e estranhamento, como se vissem um fantasma. Sem falar nada,
Catarina ajeita os óculos no nariz e meu olhar recai para as infinitas sardas
espalhadas pela pele.
— Sai da frente, Gustavo — Viviane diz com rispidez. 
Eu a ignoro com prazer.
— E aí, Cat? Posso falar contigo? Dois minutinhos.
Abro meu melhor sorriso, aquele que é tiro e queda.
— Ih... — Viviane empurra a amiga com o ombro, arqueando uma
sobrancelha. — Não te falei que Gustavo e Felipe estavam te encarando
quando chegamos aqui?
— Falou, sim. — Catarina balança a cabeça para cima e para baixo.
Seus olhos castanhos por trás das lentes me observam com cautela. — Só
não entendo o porquê. Não sou amiga deles.
Mais uma vez, um perfume quente de melancia paira no ar, exalando
da sua boca que masca chiclete. Ela deve ser viciada nessa porra.
— Sorte a sua. Não está perdendo nada, Nina. São dois babacas… —
Viviane acrescenta. — Não imagina o que fizeram nas férias de julho, bem
do lado da minha casa.
Mordo o lábio para não rir, coçando a bochecha. Sei que se refere a
uma festinha que rolou na minha casa, mas... Essa menina me odeia de
graça. Nunca fiz nada de mal pra ela.
— Sério, Vivi? — Catarina indaga com animação. — Conte-me mais a
respeito.
— Eu continuo aqui, tá?
Aceno com uma mão. É estranhamente engraçado ver as duas falando
de mim como se eu não estivesse presente.
— E aí, Cat? — insisto. — Posso ou não posso falar contigo? A sós.
Catarina hesita, mudando o peso de um pé para o outro, me olhando
com curiosidade. Ajeitando os cabelos lisos atrás das orelhas, responde:
— Pode.
Perfeito. Ela não pretende fugir. E, se tudo der certo, vai topar ser a
minha segunda voz.
— Argh... — Viviane resmunga. — Sem tempo, preciso ir. Depois me
liga, amiga. Tchau.
Torna a andar depressa, irritada. Desviando-se de mim, espreme-se
entre as poltronas acolchoadas ao lado do corredor com o maior cuidado do
mundo para não encostar no meu corpo. 
Lógico que não facilito para ela, permanecendo parado no meio da
passagem, com as pernas abertas e os braços cruzados, mais espaçoso
impossível. 
— Já vai tarde — murmuro entredentes, alto o bastante para que me
escute, e abro um sorriso gigante, olhando angelicalmente para ela. 
Os olhos pequenos de Viviane ficam ainda menores, como se
lançassem dardos letais em mim.
— E o apelido dela não é Cat. É Nina, babaca — dispara antes de me
mostrar o dedo do meio.
— É... — Catarina diz, chamando a minha atenção, e me viro para ela.
— Todo mundo me chama de Nina.
— Eu não sou todo mundo — rebato, ampliando o sorriso. — Além
disso, Cat combina melhor contigo.
— Obrigada? Se foi um elogio.
— Foi sim, gata. De nada. Meu nome é Gustavo, mas pode me chamar
de GG. Muito prazer.
Estendo a mão para cumprimentá-la, mas ela não se move, me
deixando no vácuo. 
Franzo a testa e levo os dedos à correntinha sob a gola, incomodado.
Por que a hostilidade da parte dela? Sei que Viviane me detesta, mas
Catarina? Pensei que não tivesse nada contra.
— Eu sei, Gustavo. Estudo na sua sala desde o começo do ano, e já
estamos em setembro. De qualquer forma, quem aqui no Veritas não te
conhece?
Saquei.
Cara, que fora... 
Eu não fazia ideia de que era da minha sala. Provavelmente, Catarina
senta lá na frente e nunca me dignei a falar com ela, nem mesmo dar um
"bom dia" por educação.
— Ei, onde você vai? — pergunto quando percebo que ela está dando
meia-volta. Caminhando rapidamente na direção do palco, distancia-se de
mim. 
— Lembrei que é o meu dia de guardar a aparelhagem de som, mas
pode ir falando. O que quer conversar comigo?
— Então... — Subo os degraus do palco atrás dela. Olhando para
baixo, me admiro ao notar que usa All Star preto de cano alto sob a barra da
saia longa. — Prefiro falar quando puder me dar total atenção. Não tenho
pressa, posso te esperar guardar as coisas. 
— Tudo bem — responde, desencaixando o microfone do pedestal.
Depois, passa a enrolar o fio com as mãos delicadas, concentrada na
tarefa. 
— Posso ajudar com os aparelhos? — ofereço, mexendo na
correntinha de prata. O olhar dela acompanha meus dedos por um milésimo
de segundo antes de retornar para o microfone.
— Não, obrigada. Você não sabe onde guardar cada coisa. Vou tentar
fazer tudo rápido, tá?
— Que isso... Pode fazer no seu tempo. — Para que não se sinta
pressionada, me acomodo no chão, no fundo do palco, sentado de perna de
índio. — Tô de boa aqui.
Ela dá um sorriso minúsculo em resposta, sem parar de guardar as
coisas. Carrega o violão para algum lugar atrás das cortinas pretas de
veludo, solta os fios das caixas de som, etc.
Discretamente, fico observando a garota andar para lá e para cá pelo
palco, com os passos rápidos balançando de leve o assoalho de madeira sob
mim.
— Silêncio demais. Canta uma música? — arrisco pedir. Vai que...
— Alguma em especial? — rebate, me surpreendendo pra caralho.
Não para de andar, passando mais uma vez para a parte de trás das
cortinas pretas, carregando dois pandeiros nas mãos.
— Engraçado, pensei que fosse tímida...
Vou atrás dela, empurrando o tecido pesado com o braço. 
Catarina é incisiva, firme na resposta:
— Eu não sou tímida. 
— Falou a menina que ficou vermelha como um pimentão quando
esbarrou em mim mais cedo.
— Naquela hora só fiquei surpresa porque... — Desce os olhos para
minha correntinha. — Deixa pra lá. Não era timidez.
— Qual é o seu problema com isso?
Puxo a peça de prata de dentro da gola.
Ela desvia o olhar. 
— Problema nenhum — retruca rápido, deixando-me desconfiado. —
Por que eu teria problema com uma correntinha?
A pergunta fica no ar. 
Naquela área mais escura atrás das cortinas, Catarina continua
guardando os objetos, mas posso ver que está meio nervosa, porque derruba
três vezes as baquetas de madeira no chão.
Eu também estou inquieto e isso não é bom. Sentando-me em um
banco, procuro pensar em uma música para relaxar. Então, me lembro da
faixa sobre o palco falando de Nando Reis.
— Estranho, mas já me sinto como um velho amigo seu... —
Encarando os meus pés com os tênis, cantarolo um trechinho da música All
Star.
De repente, me pegando absurdamente de surpresa, Catarina empurra o
meu pé com o seu. Entoando a próxima frase baixinho, sua voz me arrepia
inteiro:
— Seu All Star azul combina com omeu, preto, de cano alto.
— Porra... Encaixou com perfeição. — Olho com espanto para seu
rosto, sorrindo como um trouxa. — Se o homem já pisou na Lua, como eu
ainda não tenho seu endereço? O tom que eu canto as minhas músicas na
sua voz parece exato.
— Uau... — Ela sorri, embasbacada. — Sua voz é tão... Isso foi...
Não encontra as palavras e prende os cabelos compridos em um coque
bagunçado, com as mãos atrapalhadas.
Não contenho um sorriso presunçoso, me levantando. Dou dois passos
na direção dela e sinto o clima mudar. O ar fica mais vivo, quase pulsante.
— Foi incrível, admite. Funcionamos bem juntos. — Mantenho os
olhos fixos nos dela. — Aliás, era sobre isso que eu queria falar contigo.
Terminou de guardar tudo?
— Terminei. Pode falar. — Engole em seco, sustentando meu olhar.
— Vou direto ao ponto, ok? É o seguinte... — Prendo o lábio inferior
com os dentes de cima. — Queria te pedir um favor. Um puta favor.
— Que favor? — murmura, quase sem respirar.
— Tenho o sonho de estudar Música na UNESP e preciso gravar um
vídeo musical para o processo seletivo. Queria uma segunda voz. Uma
segunda voz feminina. Topa?
 — Eu?! — Ela arregala os olhos. — Hum... Acho que não.
— Por que não? Sei que vou tomar o seu tempo, mas não vai ser um
lance demorado demais. É coisa rápida. Talvez em quatro ou cinco semanas
a gente consiga finalizar tudo. Posso até te pagar.
— Não, não. Não posso, sinto muito.
Sai de perto de mim rápido, quase correndo, e passa para o outro lado
das cortinas. Sem olhar para trás, Catarina desce os degraus do palco até o
corredor da plateia. 
Meu coração está disparado demais dentro do peito e não consigo
pensar em mais argumentos para tentar convencê-la.
Ela já está no final do corredor, quase nas portas de saída, e acelero o
passo para alcançá-la antes que vá embora.
— Promete pensar melhor no final de semana? — peço, pegando a
minha mochila na poltrona em que estive sentado. — Na segunda a gente
volta a se falar. Combinado? 
— Combinado — responde de qualquer jeito, balançando uma mão no
ar, visivelmente tentando me dispensar. — Vamos logo embora? —
pergunta, apontando para as portas fechadas do auditório.
Apenas assinto em concordância, desanimado. Coloco a mochila nas
costas e ando até Catarina.  Não faço ideia do que fazer, mas sei que não
posso pressioná-la demais. Hoje, não. Preciso pensar melhor em outra
abordagem.
— Ah, não — resmunga baixinho, com a mão delicada ao redor da
maçaneta redonda. — Trancaram as portas.
O quê?!
— Deixa eu tentar — peço e ela sai da frente. 
Testo a maçaneta, que não gira de jeito nenhum.
As fechaduras realmente estão trancadas. 
— Consegue forçar? — pergunta com hesitação. 
Subo o olhar, reparando na estrutura pesada, reforçada, impossível de
arrombar. 
— Não. Já era, Cat, estamos presos aqui — informo e ela faz uma
expressão de revolta que é quase cômica. — Não vai se ver livre de mim
tão cedo. — Sorrio ao falar a última parte, sem me conter.
— Conveniente, não? — Ela cruza os braços, me encarando. — Pagou
para o inspetor trancar a gente aqui?
— Não. Mas não nego que poderia ter feito isso, se servisse para te
convencer com o lance do vídeo — digo com sinceridade, dando de
ombros.
— Tá. Pior que deixei a minha mochila com o celular no prédio
principal... Vai, usa o seu celular para ligar na secretaria. Pede para alguém
da escola vir abrir a porta. 
— Não vai rolar. Estou sem bateria.
— Mentira!
— Verdade.
Tiro o aparelho do bolso e o coloco na mão dela.
— Ou seja... — Catarina suspira fundo, mexendo na tela preta do
iPhone. — Vamos ficar trancados aqui até as sete da noite, quando
chegarem os alunos do período noturno. 
— Isso mesmo. Só eu e você, Pequena.
 
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó
O Mundo é um Moinho ~ Cazuza
 
 
Não é possível.
Mais um compartimento com muitas palhetas coloridas misturadas faz
com que eu expire o ar pela boca. Uma pontada de frustração me aperta o
peito e levo as mãos a elas.
Sozinha atrás das cortinas do palco, arrumo minuciosamente as caixas
com os pequenos objetos.
A vontade que tenho é de largar tudo de qualquer jeito, mas meu
cérebro grita ao ver as pecinhas de plástico bagunçadas assim, sem critério,
umas por cima das outras.
— Saudades, Doutora Teresa — murmuro o nome da psicóloga da
escola.
Preciso voltar a conversar com ela. Os últimos dias foram estressantes
demais.
Meses atrás, a Doutora Teresa disse que preciso aprender a administrar
melhor a minha mania por controle. Eu me preocupo e perco muito tempo
pensando em coisas que estão fora do meu alcance, sofrendo por
antecipação, imaginando resultados catastróficos.
Ela está certa.
Porém, às vezes, o resultado catastrófico é o único imaginável.
Relacionar-me com Josué, o filho do pastor, é um exemplo seguro.
Sem chance de sair coisa boa disso, ao contrário do que insistem meus pais.
Então, como não consigo controlar as principais esferas da minha vida,
me dedico à organização de objetos aleatórios. Minhas calcinhas?
Separadas por cor. Meus lápis no estojo? Todos com as pontas viradas para
o mesmo lado.
Suspiro fundo e volto a focar nas palhetas coloridas, separando-as uma
a uma. Vermelha aqui. Amarela ali. Azul na caixinha de trás. Prata na...
Prata.
Paraliso com a pecinha entre os dedos, analisando-a devagar. Prata
como...
Como o pingente de Gustavo.
Droga. Como fui acabar aqui, presa com ele?
Todo mundo sabe que o garoto é popular, indisciplinado, mulherengo,
esperto. Bem esperto. Inclusive, já percebeu que a correntinha do seu
pescoço atraiu minha atenção. Até me perguntou a respeito. Só não sei se
conto parte da verdade ou...
— Tô me sentindo ofendido aqui.
Gustavo surge do nada, afastando a grossa cortina de veludo com um
braço.
— Por quê? — pergunto e ele vem até mim, com os passos pesados
estremecendo o assoalho de madeira sob nossos pés.
— Minha companhia deve ser um tédio para você preferir separar as
palhetas por cor em vez de ficar lá nas poltronas comigo. Me despreza tanto
assim? — dispara, mordendo o lábio para não rir. É um palhaço.
— Na verdade... Nada contra, nada a favor. A gente mal se conhece.
Capricho no tom de indiferença. Seu ego é gigante por si só, não quero
massageá-lo ainda mais, deixando-o pensar que me sinto mexida na
presença dele.
— Então, por que não mudamos isso? — Aponta para a plateia e a
tatuagem do seu antebraço prende meus olhos. São frases em letras
pequenas, não consigo ler nenhuma. — Larga isso aí, Cat. Vamos pra lá.
— Gosto de organizar as coisas. — Dou de ombros, ainda mexendo
nas palhetas. — Assim também me distraio da fome... São quase quatro
horas da tarde. — Indico o relógio de parede com o olhar. — Era para eu ter
almoçado faz tempo.
— Tenho uma coisa na mochila. Pode comer, se quiser. Vamos lá? —
pergunta, segurando a cortina para eu passar.
Largo as palhetas sem hesitar. Ele acaba de me ganhar pelo estômago.
— Que coisa?
Vou atrás dele, caminhando depressa pelo palco. Com as pernas
compridas, seus passos são muito largos e quase preciso correr para não
ficar para trás.
— Bananas — responde sem se virar, descendo os degraus que levam
à plateia. Sua voz é rouca e me lembra das sensações que experimentei
quando o ouvi cantar.
Foi tão...
Incrível.
Mordendo a minha unha do polegar, aproveito que Gustavo está de
costas para observá-lo melhor.
Seus ombros são largos e fortes, com os músculos perceptíveis sob o
tecido fino da camiseta preta. As mangas esticadas ao redor dos bíceps,
quase os estrangulando. As veias saltadas que descem serpenteando até os
pulsos.
Sem me conter, levo o olhar mais para baixo e analiso a bunda
marcada sob a calça jeans. Sigo pelas pernas vigorosas, movendo-se a
passos confiantes, como se tivesse o mundo a seus pés.
Por falar em pés... O par de All Star azul é enorme — chuto que calce
43/44 —, uma lancha ao lado do meu tamanho minúsculo 33/34.
O que me faz lembrar das besteiras que Viviane fala. Ela jura que o
apelido GG não é apenas por causa dasiniciais. Diz a lenda que todo
homem com o pé grande tem "outra coisa" grande, e que no caso dele
mediria inacreditáveis 23 centímetros.
Acho que isso é meio impossível, porque a média do brasileiro é de 13
centímetros, mas... Sei lá. Vai saber.
Muitos diriam que uma menina cristã não deve pensar nesses assuntos,
porém não me importo mais com meus "pensamentos impuros e
pecaminosos", para usar as palavras do nosso pastor.
Antigamente, a culpa me corroía e eu perdia o sono, sofrendo com a
consciência pesada por me imaginar em cenas quentes com garotos bonitos.
Ai, ai, os meninos da série Elite...
Até que a Doutora Tereza me ajudou a enxergar que tudo isso é
normal. Que a sexualidade é natural. Sou uma garota saudável e, embora
inexperiente, não sou puritana, nem quero ser.
— Pode pegar — Gustavo exibe a mochila aberta sobre uma poltrona
da plateia. Dentro dela, enxergo um saco transparente com duas bananas.
— Hum... — Coço a bochecha, desconfiada. — Estão há quantos dias
apodrecendo aí dentro?
— Peguei de manhã na fruteira de casa. Não sou tão desleixado quanto
pensa. Anda, come. Sei que não é nenhuma iguaria, mas vai enganar a
fome. Se o seu estômago for proporcional ao seu tamanho, vai ficar cheio
com duas mordidas.
— Nada a ver. — Pego o saco com as bananas, abrindo a parte de
cima. Fico com uma delas e entrego a outra a ele. — Nunca ouviu falar que
as baixinhas são as que têm mais apetite?
— É? Curto meninas gulosas. Mas... Se for demais, você cospe ou
engole? — completa com um sorriso sacana, deixando bem claro o duplo
sentido das palavras.
— Não acredito... Você não tem vergonha de falar essas coisas?
Ele não tem filtro? Tenho certeza de que tentou me constranger de
propósito, mas não foi dessa vez.
— Vergonha? Desconheço a palavra. — Dá de ombros, ainda sorrindo.
Os dentes da frente são separadinhos e lhe dão um ar de menino, o que
compõe um contraste interessante com o olhar lascivo de homem. — E não
tenho culpa de pensar em putaria a toda hora. Aos dezoito anos, com os
hormônios a mil, minha cabeça vai longe. A de cima. Se bem que a de
baixo também não deixa a desejar.
— Argh... Seu... Seu... Pervertido. — Descasco a fruta, mas hesito
antes de levar a ponta à boca. — Depois disso não vou comer banana na sua
frente.
— Justo. — Ele sai andando, comendo a outra banana, e vai até a
janela. — Parei. Estava brincando, me perdoa se passei dos limites. Vou te
deixar comer à vontade.
— Está tudo bem. Só não me olha — peço e ele assente em
concordância, sem se virar para mim. — Te aviso quando eu acabar.
Mordo a fruta devagar, apreciando o sabor doce que preenche a boca.
Quase solto uma risada ao perceber que Gustavo terminou a dele em três
mordidas.
Ele está em pé, meio de perfil para mim, e posso observá-lo sem que
perceba. Disfarçadamente sorvo cada detalhe, quase hipnotizada.
O sol passa pelo gradeado de metal da janela e reflete na sua pele
marrom, deixando-a em um tom caramelo quase dourado. A estrutura óssea
perfeita, a mandíbula bem desenhada, os lábios carnudos. Com a
luminosidade, os olhos esverdeados ficam ainda mais claros e me vejo
muito impactada por sua beleza.
Engulo o último pedaço de banana e percebo minha boca salivar ainda
mais. Deslizo a ponta da língua pelos lábios, os umedecendo, e noto minha
respiração mais forte.
E se eu propusesse a ele... Uma troca de favores.
Eu o ajudo, ele me ajuda.
Não foi por acaso que nos esbarramos de manhã. Não, não.
— Acabei, Gustavo — aviso, levando a casca da fruta até o lixo, junto
à parede.
Me inclino para beber água do bebedouro e enxugo a boca com as
costas da mão.
— Então, Cat... — Ele se vira para mim, sem se aproximar. Continua
parado perto da janela, com o quadril apoiado no parapeito. — Sua família
não vai estranhar seu sumiço?
— Não. Costumo passar as tardes na escola, estudando ou fazendo
trabalhos. Só encontro meus pais no final do dia. — Puxo a caixinha de
chiclete de melancia do bolso da saia e coloco um deles na boca. — E a sua
família? Não vai se preocupar?
— De boa. Sabem que mais cedo ou mais tarde vou aparecer. Não
ficam em cima, não pegam no meu pé. É tranquilo.
— Que bom... — Sento-me em uma poltrona, com aquela velha
tristeza, que me consome de tempos em tempos, ameaçando dar as caras. —
Queria eu que meus pais fossem assim, mas eles ficam muito em cima...
— Seus pais não são legais contigo?
Gustavo vem até mim e se agacha do meu lado, me encarando com o
olhar preocupado. Acho fofo.
— Até que são, mas... — Paro de falar, olhando dentro dos seus olhos.
Sem saber se devo me abrir, aperto meus joelhos, me sentindo aflita.
— Mas... — insiste e, em câmera lenta, uma mão enorme cobre a
minha.
Um calor diferente invade meu corpo e, por impulso, tomo uma
decisão.
Uma que vai mudar tudo.
— Quer mesmo saber? — pergunto e ele faz que sim. — Eles estão me
pressionando para assumir um compromisso com Josué, o filho do nosso
pastor. Acabei de completar dezoito anos e, para eles, é a idade certa. O
problema é que detesto aquele menino com todas as minhas forças... Enfim,
eles insistem no assunto, sem parar, dizendo que preciso ao menos tentar.
Que, como não estou apaixonada por ninguém, posso acabar desenvolvendo
sentimentos pelo infeliz. Mas não quero, de jeito nenhum.
— Justo. Porra... Você não é obrigada a nada disso, nem mesmo a
tentar — diz com seriedade, sem soltar a minha mão.
Esboço um sorriso, feliz com suas palavras.
— Eu sei! Mas eles ficam no meu pé! Não aguento mais...
— Se eu puder ajudar...
Acaricia o dorso da minha mão com o polegar e eu quase me esqueço
de respirar.
— Acho que pode. Inclusive pensei nisso mais cedo, quando me pediu
ajuda com o vídeo, porque... — Mordo a boca, escolhendo as palavras. —
Meus pais não são ruins, sabe? Se eu disser que estou apaixonada, e que
quero assumir por conta própria um compromisso com um menino bom,
acredito que não irão se opor. Vão me apoiar, deixando de lado o filho do
pastor.
— Ou seja... — Ele fica em pé, com a testa franzida. — Você está me
propondo...
— Sim, estou te propondo um acordo de namoro falso. — Eu me
levanto, com o coração descontrolado, porém firme na minha decisão. —
Eu te ajudo com o vídeo, você me ajuda a escapar do compromisso com
Josué. Todo mundo sai ganhando. Lembrando que nosso namoro falso tem
que ser um namoro santo.
— Explica melhor, Pequena — pede, aproximando-se de mim.
É estranho sentir meu estômago borbulhar a cada vez que ele me
chama assim. "Pequena."
— Quer que eu explique o que é um namoro santo? — pergunto e ele
faz que sim. — É cristão. Casto. Vamos seguir a regra de nada de toques,
tá?
Termino de falar levantando o rosto para observar seu semblante.
Gustavo é tão alto... Absurdamente alto.
Com os olhos fixos nos meus, posso ver todos os tons esverdeados das
íris, do fundo esmeralda aos frisos dourados salpicados ao redor das
pupilas.
— Beleza. Fechou. Já está valendo? — dispara, dando passos lentos na
minha direção.
Com os batimentos acelerados latejando nos ouvidos, recuo devagar
até encostar a bunda na parede fria.
Ele não para de andar até espalmar uma mão pesada na parede ao lado
da minha cabeça. Sua pele exala calor e um leve cheiro de cigarro.
— Pode começar a valer na segunda, Gustavo. Ainda precisamos
combinar melhor os detalhes.
— Certo. — Sem falar mais nada, ele retira os óculos do meu rosto.
Deixa a armação de lado e volta a me olhar, me encarando com um brilho
diferente nas íris. 
— O que você... — Não consigo terminar a frase porque acontece o
impensável. 
Com seu corpo largo pairando sobre mim, Gustavo me prensa contra a
parede.
Meus joelhos amolecem quando sua mão aperta meu pescoço.
Um milésimo de segundo antes da sua boca cobrir a minha.
Céus...
Seus lábios carnudos pressionam os meus enquanto sua respiração bate
no meu rosto.
Arrebatada, fecho os olhos e aprecio cada nuance do momento surreal.
Gustavo é intenso e enorme — e está por todos os lados —, me
envolvendo com seu cheiro de nicotina misturado a outro perfume
inebriante, muito masculino.
Sem pensar, levo asmãos trêmulas aos seus bíceps, afundando as
unhas na pele. Seus braços são fortes, duros, assim como seus dedos firmes
que descem pela minha cintura, me apertando mais.
Nem cinco segundos depois, tudo termina.
Gustavo afasta-se repentinamente e sinto falta do seu calor.
Ele vira de costas e pragueja baixo, massageando a própria nuca com
as duas mãos.
Confusa, toco nos meus lábios que ainda formigam do contato.
— Você... Você me deu um beijo!
— Relaxa, foi um selinho, nem foi um beijo.
Dá de ombros, virando-se de frente para mim. Seu semblante é sério,
impassível, quase entediado. O oposto de mim, que pareço guardar uma
escola de samba dentro do peito.
— Não foi? Se a sua boca estava colada na minha... Não entendi.
Bufo e Gustavo esboça um sorriso torto.
— Vai entender... Quando eu te beijar de verdade.
Seu tom é presunçoso, cheio de si, me enervando.
— E por que fez isso?! — exijo saber, dando um passo à frente, sem
disfarçar minha irritação.
Seu olhar escurece diante da minha postura. Ele estufa o peito e não se
intimida, me olhando de cima para baixo.
— Esse lance de nada de toques... — Balança uma mão na minha
direção. — Não curti. Você não sabe, mas essa cagação de regras me deixa
puto. Então, quis te mostrar duas coisas. O que você vai estar perdendo. E
que não sou de seguir regras, muito menos as religiosas.
Levanta o indicador e o dedo do meio enfaticamente, enumerando sua
fala, mantendo os dois em V na altura do meu rosto. Como a imagem não
está nítida, me lembro de que estou sem os óculos.
— Mas... Se não gostou da regra de nada de toques... O que quer de
mim? Um namoro de verdade? — pergunto confusa, alcançando os óculos
na poltrona ao lado.
— Não, eu não namoro. Porém, já que vamos encenar por um tempo,
por que não aproveitar a oportunidade? Imagino que queira se casar virgem
e tudo o mais, mas uns beijos na boca e uns amassos não matam ninguém.
Só para deixar a brincadeira mais divertida.
— Desculpa, mas não consigo. — Encaro meus pés meio encobertos
pela barra da saia. — Beijar, fazer outras coisas... Envolver-me assim em
uma brincadeira, sem um compromisso sério. Nunca — reforço, subindo o
olhar para seu rosto.
— Como diria Justin Bieber, "never say never" — rebate com um
sorriso de canto extremamente irritante. — Questão de tempo, Pequena.
Você ainda vai me implorar um beijo. E, então, posso fazer o esforço de
atender sua vontade.
Não acredito! Gustavo se acha demais!
"Implorar um beijo"? "Fazer o esforço"?
— Falou o cara que me beijou contra minha vontade — retruco,
cruzando os braços.
— Você não me pareceu muito contrariada quando levou as mãos aos
meus braços e me apertou, gemendo de olhos fechados.
Argh... Ele é insuportável!
— Foi só para me firmar! Babaca! Bem que Vivi me avisou que...
Não termino a frase porque ele me corta:
— Babaca que é sua única opção para escapar do filho do pastor. —
Seu semblante se fecha mais uma vez, não sei se pela menção de Vivi ou da
palavra "babaca". — Sei que não está soltando fogos com o nosso acordo,
se te consola saber eu também não estou. Mas é o que temos para hoje, não
é? Você precisa de um namorado, eu preciso de uma segunda voz. Fim.
Abro a boca para rebater mas, sem saber o que falar, aperto os lábios
fechados. Gustavo esboça um sorriso torto, como se dissesse "ganhei". Que
raiva!
Meu coração está disparado e minhas mãos tremem, não sei o porquê
de tanto descontrole.
Um silêncio pesado repercute pelo auditório por quase um minuto
inteiro.
Sento-me em uma poltrona e passo a cutucar a cutícula do polegar com
a unha do dedo do meio.
— Sobre o vídeo para a UNESP... — ele fala, ainda em pé. —
Podemos começar as reuniões na segunda?
Sem olhar para mim, Gustavo anda até sua mochila, abre o zíper e
puxa uma garrafinha de metal de dentro dela, levando o gargalo à boca.
Seus lábios cheios envolvem o bocal e ele joga a cabeça para trás,
dando goles do que imagino que seja água.
Sem querer, dou uma leve viajada com a visão da sua boca. Os lábios
macios pressionando os meus e...
De repente, me dou conta de que ainda não respondi nada.
— Sim. Podemos, sim.
— Três vezes por semana seria bom. — Com a mochila no colo e a
garrafinha na mão, ele ocupa a poltrona ao meu lado. — Segunda, quarta e
sexta, das 16h às 18h. Mais tarde não dá para ensaiar... Os vizinhos
reclamam do barulho, inclusive a família da sua grande amiga Viviane.
— As reuniões vão ser na sua casa? — quero saber, com uma sensação
estranha me deixando inquieta.
É surreal me ver frequentando a casa do menino mais popular da
escola, que estuda na minha sala e que, até hoje, não tinha notado a minha
existência.
— Isso. Tenho um estúdio na garagem. Você pode ir até lá?
— Posso.
— Beleza. Vamos trocar telefones para facilitar. — Mexendo na
mochila, guarda a garrafinha e puxa um caderno e uma caneta. — Seus pais
não achariam ruim? Estaremos sozinhos na minha casa.
— Achariam ruim, sim. O jeito é omitir isso deles. Como falei, só me
encontro com os dois no final do dia, à noitinha.
Gustavo assente antes de rabiscar um número de telefone no caderno.
Destacando a folha do espiral de metal, entrega a mim. Eu dobro o papel
em um quadrado e guardo no bolso da saia.
— Fechado. Me manda uma mensagem mais tarde para eu salvar seu
número. Outra coisa, Cat... Papo reto. O que você espera de mim durante a
encenação do namoro?
A mudança repentina de assunto faz meu coração dar um salto, mas
me recomponho rapidamente, sem demonstrar o nervosismo.
— Que conheça os meus pais. Que convença-os de que é um bom
partido. Que aos domingos vá ao culto com a gente.
Gustavo faz uma careta ao ouvir a última parte, como se sentisse dor.
— Merda... — resmunga, passando a mão pela testa. — Que horas é o
culto?
— Às 9h da manhã. Pode ir no domingo agora, depois de amanhã? Já
me ajudaria demais... — peço com a voz mais baixa.
Josué está me cercando mais a cada semana, preciso cortá-lo com
urgência.
— Beleza. Mais alguma coisa?
— Sim. Queria pedir que... — Mordo a boca, pesando as palavras. —
Que não fique se agarrando com outras meninas pela escola.
A imagem de Jamile se pendurando nele me incomoda, e nem sei
explicar o porquê.
— Cacete... Não pode exigir que eu não faça nada com mais ninguém
durante a nossa encenação.
— Peço apenas que seja discreto nas suas, hum... Práticas. Mais
pessoas do Veritas frequentam a minha Igreja, a encenação precisa ser
dentro e fora da escola. Todo mundo sabe que um namoro santo deve ser
levado a sério, sem puladas de cerca.
— Sua sorte é que sua voz é muito foda... O namoro dura até o final da
gravação do vídeo — completa depressa. — No máximo, dois meses. Nem
um dia a mais. Pegar ou largar.
— É o suficiente para mim. Até lá, Josué certamente terá se
comprometido com outra menina. Ele é um bom partido para quem não o
conhece, logo vai firmar compromisso com alguém. Se tudo der certo, ele
não vai mais estar disponível quando a gente terminar. Assim, fico livre
para conhecer outros meninos, quem sabe namorar de verdade... Não sendo
ele está bom.
— Por curiosidade... O que você tem contra o cara? Ele é da sua
religião, da sua Igreja, várias coisas em comum. Pelo menos, vocês não são
tão diferentes como nós dois. — Balança uma mão entre nossos corpos,
enfatizando sua fala. — Somos opostos em tudo.
— Outra hora te conto sobre ele. É um assunto que me deixa triste,
chega de fortes emoções por hoje.
— Caralho... Ele fez alguma coisa contigo? — pergunta com a voz
dura, afiando o olhar. De alguma maneira, soa protetor e gosto disso.
— Não. Não comigo — respondo e Gustavo relaxa.
— Uma última dúvida... — Ele coça a nuca. — Como funciona
exatamente um namoro santo? Preciso saber como agir contigo na frente
das outras pessoas.
— Boa pergunta. Vamos lá... Pela visão da minha Igreja, o namoro é
um período de conhecimento mútuo entre um homem e uma mulher. É
conhecer a mente, o coração, a alma da outra pessoa. O interior dela, sabe?
Não a parte externa, puramente física e superficial. Porque é a parte de
dentro que mais importa. Já a regra de nãotocar existe porque carícias
abrem portas para a exploração dos corpos e levam às relações sexuais, que
são condenáveis quando feitas fora do casamento. Jovens são impulsivos e
inconsequentes, mas resistir às práticas é nosso papel em prol de um bem
maior — explico com alegria, mas meu sorriso morre ao notar sua
expressão inconformada.
— “Bem maior”? Que viagem... — balbucia, mexendo na correntinha
do pescoço, visivelmente incomodado. — Porra... Você tá tão errada. Isso
não é viver, Cat. Vai deixar de aproveitar a melhor fase. Um dia, vai olhar
para trás e se arrepender.
— Não acredito que agir de forma planejada e responsável vá me
trazer arrependimentos — retruco, na defensiva. — O mundo é justo. Posso
não aproveitar agora, mas serei recompensada no futuro. Tenho fé.
— O mundo é justo? “O mundo é um moinho”. Tritura tudo sem dó,
manja? — Estica uma mão e lentamente ajeita uma mecha solta atrás da
minha orelha. — A vida é um momento. Temos que aproveitar enquanto há
tempo.
Sem saber o que dizer, faço que sim com a cabeça, toda arrepiada ao
identificar a letra de Cazuza nas suas palavras. 
Diante do meu silêncio, Gustavo volta a falar:
— Resume, Cat... — Ele foge com o olhar, virando o rosto para a
janela. O sol está se pondo do lado de fora. — O que pode e o que não
pode? Mãos dadas? Beijo na boca?
— Mãos dadas, sim. Beijo na boca, depende. Se for um beijo casto,
sem provocações, tudo bem. Porque a troca de beijos mais intensos pode
levar a outras coisas... De qualquer forma, não precisamos nos beijar
durante a nossa encenação de namoro santo.
— "Namoro santo" — ele repete a expressão com sarcasmo. — Quem
inventou isso, hein? Para quê? Faz bem a quem?
— O pastor diz que...
— Com todo o respeito, Pequena, tem pastor que diz muita besteira.
Em vez de simplesmente pregar o amor, incita ódios e preconceitos que
sinto na pele — fala com seriedade, deixando-me curiosa. — Para mim, o
que vale é ser uma pessoa boa. Independentemente de pastor ou de Bíblia,
fazer o bem é a minha religião, que aprendi com minha família desde
pequeno. Ser compreensivo e não julgar os outros. E, da mesma forma, não
quero ser julgado.
— "Não julgueis, e não sereis julgados.” Lucas 6:37 e Mateus 7:1.
Está na Bíblia, Gustavo, e é um preceito que sigo com gosto. Como pode
ver, não somos tão diferentes assim.
— Está? Não sabia.
— Está, sim — confirmo.
Encarando-me com um vinco entre as sobrancelhas espessas, Gustavo
fica quieto. Por um milagre, não discute mais. Aprecio o sabor de deixá-lo
sem fala pela primeira vez.
Menos de uma hora depois, as portas do auditório são abertas. Um
inspetor nos olha com estranhamento, mas não diz nada quando passamos
direto por ele, descendo os degraus que levam ao pátio.
Meus olhos sobem para o céu quase escuro, com as primeiras estrelas
despontando aqui e ali.
Escuto a voz grave de Gustavo nas minhas costas:
— Não esquece de me mandar uma mensagem, beleza? Aproveita para
me passar o endereço da sua Igreja. Nos vemos lá no domingo. Falou.
 
Eu tô na lanterna dos afogados
Eu tô te esperando, vê se não vai demorar
Lanterna Dos Afogados ~ Os Paralamas do Sucesso
 
 
— Por que demorou, querido? — minha mãe pergunta assim que piso
em casa. Juliana está sentada no sofá, mexendo no celular. 
Enquanto tiro a mochila das costas, reparo que ela está mais arrumada
do que o normal, com os cabelos loiros amarrados em uma trança bonita. 
— Acabei preso na escola, tô morto de fome.
Quase acrescento "literalmente preso", mas deixo pra lá.
Eu me inclino para dar um beijo em sua bochecha. Seu perfume floral
invade meus sentidos. É delicado e suave como ela.
— Tem visita esperando por você no seu quarto, ela chegou faz quase
uma hora. — Acaricia meu braço, sorrindo.
Heloísa dá risada enquanto mexe nas garrafas de vinho sobre o
aparador. 
— Tentem não fazer muito barulho, vamos receber amigos para o
jantar — diz, lendo o rótulo de uma das garrafas. — Nada contra aquela
menina, mas... Podia ser menos escandalosa.
Seu comentário me faz ter certeza de que é Jamile lá em cima. 
As meninas do G5 têm livre acesso à minha casa, conhecem as minhas
mães e o caralho. Monique não vem mais, dei um corte nela por causa do
Alemão. Karla é bem discreta, geme como uma gatinha, e Laura e Nicole
costumam aparecer juntas, em dupla. Ou seja, se é apenas uma menina, e
escandalosa, só pode ser Mile.
Não sei dizer se fico animado ou não com a ideia. Foi um dia
incomum, minha cabeça está cheia... Só queria relaxar e dormir.
— Beleza.
Eu me aproximo para dar um beijo na bochecha dela também.
Quando me afasto, Heloísa comenta:
— Milagre, não está fedendo a cigarro. 
— Meu maço acabou de manhã. Tem alguma coisa pronta para comer?
— pergunto, a caminho da cozinha.
— Fizemos sanduichinhos para servir às visitas, não coma todos! —
Juliana grita enquanto acendo a luz, enxergando uma bandeja prateada
sobre o fogão com os sanduíches minúsculos. É um pãozinho redondo
recheado com queijo e salame. Chuto que tem vinte ou trinta.
Com o estômago roncando, enfio um inteiro na boca e pego uma
porção de quatro ou cinco com uma mão, abrindo a geladeira com a outra.
Alcanço uma latinha de Coca e apoio as coisas sobre a bancada de
mármore. Devoro tudo ali mesmo, rápido, ansioso para tomar um banho. 
Com a latinha gelada ainda pela metade, deixo a cozinha e subo para o
corredor dos quartos. Abro minha porta e me deparo com Jamile deitada na
cama, mexendo no celular. Ela está descalça e veste uma saia de couro preta
e regatinha da mesma cor.
— Que demora, GG! — exclama ao perceber que cheguei. — Tentei te
ligar, mas só caiu na caixa postal. Estava preocupada...
— Fiquei sem bateria — respondo, tirando o celular do bolso.
A primeira coisa que faço é colocá-lo para carregar na mesinha de
cabeceira. 
Será que Catarina já mandou a mensagem com o número dela? Não
consigo afastar da cabeça a preocupação com os próximos dias. São tantas
coisas, tantos detalhes... 
A tortura do culto aos domingos. A encenação do maldito namoro
santo. As nossas reuniões no estúdio. Qual a chance de dar tudo certo?
— Não vai falar nada sobre a minha visita surpresa? — Jamile quer
saber, fazendo beicinho. A menina gosta de atenção.
— A que devo a honra? — pergunto, puxando a camiseta pela gola.
Mile desce os olhos pelo meu tronco nu, lambendo a boca pintada de
vermelho.
— Quis comemorar, gato... — responde, ajoelhando-se no centro do
colchão. — De manhã, me disse que passar naquela faculdade era
importante para você... Até escolhi uma lingerie especial. Quer ver?
Abro o botão da calça enquanto Jamile despe a regatinha e a saia,
ainda em cima da minha cama. A tal da “lingerie especial” é um conjunto
minúsculo de duas peças, em renda preta transparente. 
Em pé no colchão, ela dá uma voltinha devagar, exibindo-se para mim.
Gostosa pra caralho.
— Aprovada. — Sorrio de canto, observando seu corpo bonito de cima
a baixo, cada detalhe, cada curva. Chuto os tênis para longe e me livro da
calça. — Preciso de uma ducha. Já volto. 
Apenas de cueca, empurro a porta do banheiro e abro o box, girando a
torneira do chuveiro. Enquanto a água esquenta, escovo os dentes na pia. 
Nem cinco minutos depois, quando retorno para o quarto, encontro
Jamile mexendo no meu celular. 
Que porra?!
— Ah, fez um barulho diferente — ela explica ao notar meu olhar
inquisidor, mordendo o lábio. — Acho que foi porque estava desligado, e
agora já carregou um pouquinho.
Com a toalha enrolada nos quadris, dou três passos até a cama e puxo
o aparelho da mão dela. Está 10% carregado. 
Abro rapidamente as mensagens, encontrando uma porção delas não
lidas. Das minhas mães, do Alemão, do grupo do futebol. Nada de novo.
— Beleza. Não quero que mexa no meu celular — falo e Mile fica em
pé, aproximando-se de mim. Seu perfume doce alcança meu nariz. —
Desde quando sabe a minha senha, cacete?
— Ui, ele tá irritadinho... — brinca, escorregando as unhas pelo meu
abdômen ainda úmido do banho. — Deixa eu te desestressar, futuro calouro
da USP.
Jamile solta o nó da toalha,

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