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Copyright © 2022 by Pauline G | Divino Acordo Capa: · Ana Araújo - @ anaflaviaraujodesign Diagramação: · April Kroes - @imaginare_d Equipe de assessoria, leitura beta e revisão: · Ana Rebeca Duarte - @beccaeoslivros · Karen Cristina Nunes da Silva - @romancesdakrisca · Wedla Souza - @leiturasdawed Leitura sensível (questões religiosas, raciais e LGBTQIA+): · Elisandra Almeida - @bendita.resenha · Rafael Mascarenhas - @mascarenhasraffa Todos os direitos desta obra são reservados a Pauline G. Nenhuma parte pode ser reproduzida, apropriada ou estocada sem prévia autorização da detentora dos direitos. Trata-se de uma obra de ficção. Nomes, personagens e acontecimentos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com a realidade terá sido coincidência. Texto conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Sumário Sinopse Dedicatória Nota da autora Epígrafe Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Capítulo 27 Capítulo 28 Capítulo 29 Capítulo 30 Capítulo 31 Capítulo 32 Capítulo 33 Capítulo 34 Capítulo 35 Capítulo 36 Capítulo 37 Capítulo 38 Capítulo 39 Capítulo 40 Capítulo 41 Capítulo 42 Epílogo Bônus Agradecimentos A vida tem sido muito generosa com Gustavo. Irresistivelmente bonito, inteligente e sedutor, costuma deparar-se com todas as portas abertas. Só que agora ele está em uma situação delicada. Com o sonho de estudar Música, precisa gravar um vídeo para o processo seletivo. O desafio? Encontrar uma segunda voz para a composição. Catarina, sua colega de sala estudiosa, quase não fala durante as aulas. Contudo, sua voz é muito ouvida no coral da escola. Todos sabem que ela é a melhor. Acontece que a garota também está em uma situação difícil: seus pais religiosos desejam que assuma um namoro santo com o filho do pastor, um sujeito que ela não quer ver nem pintado de ouro. Assim, quando Gustavo aparece com um pedido incomum, Catarina faz a ele uma contraproposta ainda mais inusitada: aceita ajudá-lo com o vídeo musical, desde que assumam um namoro falso para que sua família desista do filho do pastor. Um acordo de namoro entre um bad boy músico e uma menina religiosa. Simples, objetivo, com data de início e fim. Nada pode dar errado. Certo? “Divino Acordo” é um romance contemporâneo jovem adulto. Com linguagem informal e cenas explícitas, destina-se ao público +18. Gatilhos: relacionados a questões religiosas, raciais e LGBTQIA+. Para GG, Cat, Vivi, Lipe, Ju e Helô. As seis vozes da minha cabeça que ganharam vida própria neste livro. Sim, vocês são reais. E para todos os leitores que acreditam nisso e mergulham comigo na loucura. É bom poder contar com a companhia de vocês. Sejam todos bem-vindos! Serei breve nos avisos, eu prometo. Como muitos sabem, "Divino Acordo" nasceu com o intuito de me distrair, pois, desejava arejar a cabeça ao término de trabalhos mais densos. Afinal, a escrita é a minha terapia. Planejado para ser um livro leve e divertido, tomou rumos mais sérios ao abordar questões como adoção, homofobia, racismo e religião, que me demandaram horas e horas de pesquisas e estudos, além de busca por leitura sensível. A propósito, alerto que a obra contém gatilhos relacionados a questões religiosas, raciais e LGBTQIA+. Se forem pessoas sensíveis aos temas, leiam o livro com cuidado. No mais, desejo a todos uma ótima leitura! Que a história de Gustavo e Catarina conquiste o coração de cada um de vocês, tornando-se uma experiência inesquecível. Com carinho, Pauline G. PLAYLIST O nosso amor a gente inventa Pra se distrair Você podia ao menos me contar Uma história romântica ~ Cazuza Estamos sós e nenhum de nós Sabe exatamente onde vai parar Infinita Highway ~ Engenheiros do Hawaii — Até que enfim... — Boquiaberto, encaro o celular. — "Parabéns. Você foi aprovado na primeira fase do processo seletivo..." Você. Foi. Aprovado. As três malditas palavras que por tanto tempo moraram apenas nos meus sonhos estão bem diante de mim. Com as mãos trêmulas, não consigo terminar de ler o e-mail e quase derrubo o telefone. Uma risada nervosa me escapa pelos lábios e mexo na correntinha de prata do pescoço, deslizando o pingente para lá e para cá. Aprovado, caralho! Pulo da cama e ligo o notebook, conectando o bluetooth da impressora. Preciso pegar nesse bendito e-mail com as mãos. Tocar nele para ter certeza de que é real. Com os dedos instáveis, comando o mouse com dificuldade. Depois de duas tentativas, abro a caixa de entrada e clico em imprimir. Nunca dez segundos demoraram tanto. Mudo o peso de um pé para o outro enquanto a sulfite é cuspida pela impressora barulhenta. Agarro a folha e volto a ler as informações, com a ansiedade me corroendo como ácido. Antes de descer os olhos pelos parágrafos, me demoro no cabeçalho, hipnotizado: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP O nome comprido só não é maior do que a satisfação que preenche meu peito. Continuo lendo o texto em voz alta, tentando assimilar as palavras: — "A segunda fase é uma Prova de Aptidão em Música que possui duas etapas, a teórica e a prática, com o envio de um vídeo de caráter eliminatório. Uma única apresentação que..." — Gustavo! Perdeu a hora? Anda logo, menino! — minha mãe grita do andar de baixo. Tiro o olhar da folha, espiando o notebook. 06h34. Minha aula no Veritas começa às 07h10. Merda. Não vai dar para ler tudo agora. — Já vou! Guardo a folha na parte de trás da mochila e fecho o zíper. Apressado, coloco uma roupa qualquer. Nos bolsos, chave da moto, celular e maço de cigarros. Hora de ir. Desço os degraus de dois em dois para não perder mais tempo. Estou com muita fome e preciso comer alguma coisa antes de sair. — Bom dia. Por que demorou tanto para descer, meu amor? — minha mãe quer saber, servindo-se de café ao lado da pia. — Escutei seu despertador tocar faz tempo... Com os gestos tranquilos, solta um cubo de açúcar dentro da xícara branca e mistura a bebida com uma colher minúscula. A calma de Juliana Gurgel chega a ser irritante. Seus dedos de pianista são pálidos, longos e delicados, com o movimento circular prendendo meus olhos por dois segundos. — Bom dia. É que abri os e-mails ao acordar... — começo a falar, me aproximando dela. — Quando vi que veio a resposta da UNESP... — Puta merda! E aí? Aprovado na primeira fase? — minha outra mãe pergunta, afundando as mãos nos cabelos ruivos. Sentada sozinha junto à mesa, com os olhos verdes muito abertos, Heloísa Gurgel não se aguenta em si. Sua reação desesperada me faz rir. Ela é uma figura... Como o velho clichê dos opostos que se atraem, temos Juliana e Heloísa aqui, juntas há quase trinta anos. Uma é calma, delicada, artística. Professora de piano clássico, dá aulas particulares a crianças em um Conservatório. A outra é pilhada, estressada, boca-suja. Economista, trabalha com a Bolsa de Valores em uma grande financeira no Centro. Apesar de não ser filho biológico de nenhuma das duas, me considero uma mistura de ambas. O viés artístico de Juliana corre nas minhas veias, assim como a energia caótica de Heloísa. — Helô! Deixa o menino contar no tempo dele — repreende a loira, ajeitando uma mecha lisa da franja. — Sem pressão, meu amor. E, se não tiver sido aprovado desta vez, tudo bem. Ainda tem dezoito anos, é quase um bebê — diz antes de sentar-se à mesa ao lado da mulher. Ainda em pé, retribuo com um sorriso, me servindo de café preto. — Um bebê que já pode fazer bebês — Heloísa brinca, enchendo o copo com água. — E que tem praticado bastante. O estoque de camisinhas do banheiro dele está em baixa. Eu não vou repor aquilo. Quase cuspo o café com a risada engasgada... É foda ter tanta liberdade com elas. Balanço a cabeça e pego umatorrada na mesa, lambuzando-a de manteiga. — Tá reclamando? Melhor usar camisinha do que transformar vocês em avós antes da hora. — Dou uma mordida na torrada. — Então, como eu ia dizendo antes de mudarem a pauta para a minha vida sexual... — Limpo as migalhas da boca com o dorso da mão, em uma pausa dramática. Corro os olhos de uma a outra, confirmando que as duas me encaram em expectativa. — Sim, fui aprovado na primeira fase do processo seletivo da UNESP. Antes que possa piscar, sou engolido por quatro braços que me apertam, me amassando. Perfumes doces invadem meu nariz e eu quero rir diante do bombardeio de beijos nas bochechas e exclamações de "eu sabia!", "tão inteligente!", "que orgulho!" Cara, eu amo as minhas mães. — Vocês me amarrotaram... — Me solto, ainda rindo, alisando a camiseta preta. Enfio o resto da torrada na boca e pego duas bananas na fruteira para mais tarde. — Valeu, mães. Por tudo. Preciso ir. Estaciono a moto sob uma árvore e prendo o capacete no guidão, espiando ao redor do estacionamento da escola. O asfalto está quente contra a sola dos meus tênis, com o sol mais forte do que o comum para a época do ano. Detalhe, ainda nem saímos do inverno. O terreno espaçoso parece vazio demais, sem os grupinhos de estudantes. O sinal bateu há dez ou quinze minutos, então todos já entraram no prédio. Mais adiante, os raios solares batem em um carro prateado e o reflexo me faz apertar os olhos, me incomodando com a claridade. Ainda ao lado da moto, mexo no meu cabelo com as pontas dos dedos, consertando o estrago nos cachos feito pelo capacete, até que uma voz muito familiar me chama: — Fala, GG! Beleza? Chegou só agora? Felipe surge do nada, dando um tapinha no meu ombro. Meu amigo está sempre atrasado para as aulas e hoje fiz a façanha de chegar depois dele. — Mais do que beleza, Alemão... — Tiro a mochila das costas, apoiando-a no banco da moto. — Como já perdemos a primeira aula, dá uma olhada nisso. Nem acredito. Entrego a ele o papel com o e-mail da UNESP. Sem tirar os olhos castanhos da minha cara, Lipe desdobra a folha. Pelo sorriso esperto que estica os lábios dele, sei que já sacou o que é antes mesmo de começar a ler. O filho da puta me conhece bem demais. Sabe que isso é o que eu mais quero na vida. — Eu sabia, caralho! Tu conseguiu! Parabéns! Passa um braço por trás do meu pescoço, quase me enforcando. — É... Consegui. — Eu me solto dele, rindo. — Valeu. Acendo um cigarro enquanto o meu amigo corre os olhos pela folha, de cabeça baixa, com os cachos loiros caindo por cima das sobrancelhas. — Merecido. Nem sei mais o que falar... — murmura, ainda lendo o e- mail. — Não manjo de discursos emotivos, motivacionais e o caralho. — Nada de discursos, relaxa. Ainda não caiu a ficha, sabe? É a UNESP, brother — comento, soltando a fumaça para o alto. — Tô felizão... Eram mais de mil candidatos, só os cem primeiros passaram para a segunda fase. — Que foda! — Ele sorri, com a argola do piercing labial brilhando sob o sol. — E afunila cada vez mais... Tô lendo aqui, são trinta vagas agora? Ou seja, setenta por cento do povo vai rodar. — Desde que não seja eu... — aponto, apagando o cigarro na borda de uma lixeira de metal. — Vamos entrar? Daqui a pouco bate o sinal da próxima aula. — Espera, tô terminando de ler... Pronto. — Levanta a cabeça e me devolve a folha, ainda sorrindo. — Já sabe quem vai ser a sua segunda voz? O quê?! — Que porra de segunda voz, Alemão? — Tá nas regras, GG... Você precisa gravar um vídeo de música com um instrumento e duas vozes. A parte do instrumento vale 50 pontos. Cada voz, 25, totalizando 100 pontos. Sei que o seu instrumento vai ser o violão, mas e a segunda voz? — Ainda não li tudo — confesso, enfiando de qualquer jeito a folha na mochila. Fecho o zíper e passo as alças pelos braços, com o coração acelerado diante da pergunta para a qual não tenho resposta. — Não sabe de ninguém que possa te ajudar nisso? — Não faço a menor ideia — resmungo, caminhando pela passagem que leva do estacionamento ao pátio da escola. — Ei, não olha para mim! — Felipe dá risada, andando do meu lado. — Não sei nem cantar "Marcha Soldado." — Não fode... Ainda que soubesse — rebato ao passo em que cruzamos o gramado do pátio externo. — Tô pensando aqui... O ideal é que seja uma voz feminina para uma composição mais harmônica, mais bonita. — Tem razão, brother. — Só não sei quem... — Alguma das G5 deve servir... — Ele diminui o tom da voz quando passamos pelas portas do prédio da escola. — A gente já conhece outras habilidades delas, "tocam flauta" muito bem, se bobear também sabem cantar. Ignoro o duplo sentido tosco do "tocam flauta" e penso na sugestão dele. G5 é o grupo das meninas populares, encabeçado por Jamile, a mais gostosa delas. Ao todo, temos Jamile, Karla, Laura, Monique e Nicole. Sim, os nomes delas formam uma maldita sequência alfabética. Eu e Felipe já pegamos as cinco, inclusive ao mesmo tempo. Precisamos marcar uma próxima "festinha" e... Foco. Foco no lance da faculdade. Tenho que correr atrás disso, sem distrações. Nada é mais importante. Estou uma pilha de nervos. Só vou relaxar quando encontrar a bendita segunda voz. — Na real, Alemão? Tô ansioso pra caralho. Não vou sossegar enquanto não resolver isso — desabafo, mexendo no pingente da correntinha de prata. Estamos andando pelo corredor das salas de Ensino Médio, no prédio principal do Veritas. Tomo o cuidado de manter a voz baixa porque todo mundo está em aula do outro lado das portas fechadas. — Vamos traçar um plano, dar uma perguntada pela escola, tentar descobrir as melhores opções — Lipe sugere, caminhando com as mãos enfiadas nos bolsos. — Fica tranquilo, irmão, vai dar tudo certo. A vaga é sua. Esboço um sorriso de canto ao escutar a fala dele. Felipe é brother, parceiraço, ponta firme, cem por cento confiável. Embarca comigo em todas as paradas e vice-versa. Dos lances mais suaves aos mais loucos. Podemos nos dar bem ou nos ferrar, não importa. Um não abandona o outro. — Valeu. Tem razão, preciso de um plano. Acho que o primeiro passo é falar com Jamile... Quando pisamos no corredor dos armários, nos deparamos com a própria. Em carne, osso e roupas apertadas. Com a calça jeans e a regatinha branca marcando as curvas, está gostosa pra cacete. — Quer falar comigo? — Jamile abre o maior sorriso quando me vê chegar, deslizando a ponta da língua pelos lábios carnudos. — Escutei você dizer o meu nome, GG. Ela bate a porta do armário de metal e vem caminhando graciosamente na minha direção, remexendo os quadris para os lados. As milhares de pulseiras prateadas nos seus braços bronzeados batem umas contra as outras, ecoando um som metálico, e a calça justa evidencia as coxas grossas que tenho o privilégio de alisar com certa frequência. — Que coincidência, Mile... Sorrio, puxando-a pela cintura. As pontas dos seus cabelos ondulados acariciam as laterais dos meus dedos. Na ponta dos pés, Jamile leva uma mão ao meu pescoço e beija minha bochecha. Seus lábios macios estão cobertos de brilho labial, melecando meu rosto. Detesto essa porra e me seguro para não me limpar na frente dela. — Cheiroso como sempre — elogia, com as unhas passeando pela minha nuca. As pulseiras roçam pela pele, me arrepiando. — Sobre o que quer falar comigo? Antes que eu possa responder a pergunta dela, o sinal da segunda aula ressoa estridente pelo corredor. — Agiliza, cara! É a aula da professora Thaís, ela adora pegar no nosso pé… — Felipe lembra e me desvencilho de Jamile. — Te explico no intervalo, agora não dá tempo. Ao abrir o meu armário, mexo no material e suspiro fundo, me preparando psicologicamente para a aula de Física. Minutos depois, estamos acomodados no fundão da sala. Sentado do meu lado, Felipe morde a boca para não rir, rabiscando um bilhete. Seus cachos loiros balançam conforme ele se remexe na cadeira, animado como uma criança ao escrever uma carta para o Papai Noel. — Passa para a Monique? — pede em um sussurro, me entregando o papel dobradoem um quadradinho minúsculo. — Só se eu puder ler. — Lê aí... Sou um gênio, admite. Ele aponta para a lousa com o queixo. A professora está de costas para a turma, resolvendo uns problemas de inclinação, gravidade e o caralho. Já disse que detesto Física? Desdobro o bilhete e quase me engasgo com a saliva ao encontrar a pior cantada nerd de todos os tempos: "Uma bola cai em uma ladeira com inclinação de 8 graus, desconsiderando o atrito e a resistência do ar, hoje rola ou não rola?" — Vai se foder, essa é horrível — sussurro alto demais, dobrando o papel e a professora se vira com tudo para mim. É uma mulher de meia-idade que me despreza com todas as fibras do seu corpo magro. Sua voz seca me dá nos nervos: — Gustavo Gurgel. Quieto. Assinto em concordância, oferecendo a ela o meu sorriso falso, o que não mostra os dentes. A megera não fala mais nada e dá as costas novamente, tornando a escrever na lousa. — Anda, entrega para ela... — Lipe indica a menina à minha frente. Monique está com os cabelos crespos presos em um coque, deixando o pescoço esguio à mostra. Quase posso sentir o gosto da sua pele quente na minha língua. É muito gostosa, e só não peguei mais vezes porque me liguei que Felipe tem uma queda a mais por ela. — Ei... — Inclinando-me para a frente, encosto no seu ombro, com a alcinha do sutiã rosa contrastando contra a sua pele negra. — Bilhete do Alemão para você, Ni. Sem virar o corpo para trás, ela pega o papel da minha mão, desdobrando-o depressa. Gira a cabeça, olhando por cima do ombro para o meu amigo e abre o maior sorriso de todos antes de responder um "rola sim" mudo, compreensível apenas por leitura labial. Porra... Não acredito que a cantada nerd deu certo. Com o ressoar do sinal do intervalo, barulhos de cadeiras e mesas sendo empurradas se misturam aos sons de conversas paralelas, todos ansiosos para sair da sala. Pego os fones na mochila, colocando-os no pescoço. Com a outra mão, confiro se o maço de Marlboro está no bolso da calça. Música e cigarro garantem a minha sanidade nos intervalos escolares. — Anda, cara... Empurro de leve Felipe, que está caminhando na minha frente. Ele tenta passar pela muvuca, desviando das mochilas e das pessoas. O ruim de sentar no fundão é isso. A distância até a saída é maior. — Tô andando, relaxa. Por que o mau humor? Se eu ganhasse um real para cada “relaxa” que Felipe me fala, estaria milionário. — Porque cansei dessa maldita escola, e ainda faltam três meses para terminar o ano letivo — resmungo ao passar pela porta. O corredor está ainda mais caótico do que a sala de aula, com todas as turmas tentando deixar o prédio rumo ao pátio externo. — Pelo menos hoje é sexta. Se anima, é quase final de semana... — Felipe para de andar e vira o corpo para o outro lado. — Lembrei de uma coisa, preciso passar na secretaria. Já te encontro lá fora, GG. — Beleza — respondo, posicionando os fones sem fio na cabeça. Dou o play no celular e a voz rouca de Nasi reverbera com suavidade, me fazendo batucar os dedos na barriga: A minha vida Eu preciso mudar todo dia E os meus sonhos Eu procuro acordar e Perseguir meus sonhos Então, quando viro no corredor da saída, paraliso com um pequeno incidente. Algo quente e macio bate com tudo na boca do meu estômago. Mais especificamente, os peitos de uma menina. Amassados contra o meu corpo. Me lembrei que eu esqueci de perguntar o seu nome Sem endereço nem direção, por onde começar? Eu Nunca Disse Adeus ~ Capital Inicial Como a garota mantém o rosto baixo, não enxergo suas feições, somente o topo da cabeça. Cabelos castanhos, lisos, repartidos ao meio. Um perfume adocicado de fruta chega ao meu nariz. Melancia, talvez? — Ai... — um sussurro quase inaudível perde-se entre os acordes da música do Ira, que continua tocando nos fones. Seguro seus ombros com as duas mãos, afastando-a de mim. Seu corpo pequeno, magro, está escondido sob roupas largas demais. Muitos centímetros mais baixa, se não estudasse aqui diria que tem doze ou treze anos. Em câmera lenta, ela levanta o rosto e posso vê-la melhor. Com os lábios apertados, a menina está mortificada, os olhos castanhos arregalados por trás das lentes dos óculos de grau. Empurro os fones para o pescoço, pretendendo falar com ela. Quero desfazer o clima estranho. — Foi mal — digo, analisando seus traços. Os olhos grandes, a boca pequena, a pele muito branca, o nariz e as maçãs do rosto salpicados com sardas. Milhões de sardas como uma constelação impossível de coloração ocre, quase cobre. — Não, a culpa é minha. Peço perdão. Estava andando no contrafluxo, com a cabeça longe — explica e o cheiro de melancia fica mais acentuado. É do chiclete que masca. Ainda com a postura desconfortável, a menina dá um passo para trás, massageando os próprios ombros nos pontos onde toquei. Será que a apertei com força demais? — Te machuquei? Está tudo bem? — pergunto e ela faz que não, ainda me encarando, as mechas lisas balançando com o movimento. Fico sem entender porra nenhuma. Não o quê? Não machuquei ou não está tudo bem? Franzo a testa enquanto ela continua parada na minha frente, em silêncio. Por trás das lentes espessas dos óculos, o par de olhos castanhos me encara fixamente. Como se eu fosse o único cara em todo o maldito corredor. Sem falsa modéstia, estou acostumado a receber olhares todos os dias, mas... Aqui, tem alguma coisa diferente. — O que foi, hein? — disparo. Busco a correntinha do meu pescoço, puxo o cordão para fora da gola e mexo no pingente. — Fala comigo. Quando seu olhar desce para a joia, com o pingente prata brilhando sob a luz branca do corredor, seu queixo cai em espanto. Suas bochechas ficam muito vermelhas, pegando fogo. Do nada? Que menina esquisita... — Eu... Eu sei que pode parecer loucura... — Sua voz é vacilante, e aperto um pouco os olhos para não perder nenhuma palavra. — Mas pedi para... Então, somos repentinamente interrompidos por duas mãos que tampam meus olhos, o som das pulseiras entregando a identidade da pessoa. Jamile. Agora não, cacete... — Não ficou de falar comigo no intervalo, GG? — questiona, com a boca carnuda provocando minha orelha por trás. Um arrepio incômodo me sobe pela coluna. Remexo os ombros, me desvencilhando dela, mas é tarde demais. A menina das sardas está indo embora, a passos lentos de marcha à ré, com uma expressão sem graça no rosto. — Com licença — murmura, desaparecendo ao dobrar o corredor. Com Jamile pendurada no meu braço, fico parado no lugar, mais intrigado impossível, ainda sentindo o aroma de melancia no ar. "Eu sei que pode parecer loucura, mas pedi para...", repenso as palavras, tentando juntar as peças. Loucura? Pediu o quê? Para quem? Penso, penso e... Nada se encaixa com nada. Merda. Sentado na mureta do pátio, observo o vai e vem de alunos ainda em horário de intervalo. Pelos últimos minutos, tentei encontrar a menina das sardas, sem sucesso. O pior é que nem sei o nome dela. A pequena pode ser de qualquer turma. São quatro salas de cada ano do Ensino Médio. Por onde começar? A voz de Lipe ao lado me lembra do lance do processo seletivo: — Então, é isso... Precisamos de uma segunda voz para ontem, meninas. GG tem que conseguir a vaga na UNESP... — ele continua explicando tudo às garotas do G5. Enquanto permaneço quieto na mureta, fumando um cigarro, meu brother fala sem parar, tomando sol preguiçosamente deitado em um banco de concreto. Com as mãos atrás da nuca e as pernas esticadas, parece uma maldita lagartixa. — Alguém aqui sabe cantar? — pergunto, correndo o olhar pelo grupo delas. Estão todas em pé entre mim e Felipe. — Acho que sim — diz Karla. — Lógico que sei! — exclama Jamile. — Não — Laura e Nicole respondem juntas, como se tivessem combinado. As duas amigas são muito parecidas. Com os olhos claros e os cabelos descoloridos com as pontas azuis e rosas, parecem as irmãs mais novas da Arlequina de "Esquadrão Suicida". — Depende da música, mas... — Monique é a última a se manifestar, ajeitando um cachoatrás da orelha. — Melhor não. Tenho vergonha. — Vamos organizar uma seletiva — Felipe anuncia ao se sentar, colocando os óculos escuros no rosto. — Amanhã é sábado, podemos ir todos lá para casa. Uma festinha. Vocês cantam, GG avalia, eu garanto a diversão. Pronto. As meninas se alvoroçam e começam a falar todas ao mesmo tempo sobre maquiagens, roupas e sei lá mais o quê. "Quer se arrumar na minha casa, Ni? Leva aquela sua sombra preta!", "Posso usar aquele seu vestido branco, amiga?", etc. — Não, não. — Balanço a cabeça em negativa, ciente de como são as festinhas na casa do Alemão. Bebida, maconha, putaria, e preciso estar cem por cento sóbrio e concentrado para escolher a segunda voz. — Não vamos misturar as coisas. Responsabilidade de um lado, diversão de outro. — Poxa, GG... — Jamile faz um beicinho e vem em até mim, posicionando-se entre meus joelhos abertos. — Vai mesmo cancelar a festinha? Faz tempo que não fazemos nada... — A festa pode acontecer, sem problemas. Só que, chapado, não vou conseguir escolher direito. Isso é muito importante para mim, gata. Dou mais uma tragada no cigarro e solto a fumaça para o alto. — É? Então, o que sugere? — quer saber, pousando as mãos nas minhas coxas, as unhas arranhando o tecido jeans. — Não sei. Deixa eu pensar aqui. Na casa do Alemão não dá para fazer a seletiva. Preciso de um lugar mais tranquilo, com uma acústica bacana... — A gente pode se encontrar no auditório depois da última aula — Karla opina e eu me viro para ela. Está com os cabelos loiros presos em um rabo alto, as pontas balançando contra o vento. — Se não tiver ninguém lá, podemos cantar para você avaliar. A acústica é legal. Boa ideia. — Fechado. Afinal, quem vai cantar? É só uma música para o vídeo, ok? — disparo e elas voltam a falar ao mesmo tempo, tagarelando sem parar. "Eu! Amo cantar", "Não, amiga, eu morreria de vergonha", "Gravar um vídeo cantando? Nem morta", "Os meus seguidores...", etc. Ao final, Jamile assume a palavra: — GG, eu e Karla vamos cantar uma música da Pitty, você escolhe a que gostar mais. — Aponta para a amiga. — Que vença a melhor! Ok? Sorrindo, elas trocam olhares competitivos. Em resposta, eu apenas suspiro fundo, prevendo treta. A audição de Jamile e Karla é uma bosta. As duas são desafinadas, sem qualquer ritmo ou percepção musical. Até uma criança cantando “Galinha Pintadinha” teria mais noção. Elas podem ter outras habilidades, mas... Cantar? Só se for no banho. De preferência, sem mais ninguém por perto. — Até que enfim... Paz! — Felipe expira quando a bateria do meu celular zera e o aparelho desliga, cortando a música “Na Sua Estante” depois de incontáveis repetições. O auditório fica silencioso e as meninas me encaram em expectativa, aguardando pelo veredicto. Estamos os quatro em cima do palco de madeira. — É... — Coço a nuca, diplomaticamente escolhendo as palavras sob os olhares atentos delas. — Valeu a tentativa, gatas, mas não vai rolar. Nenhuma das duas. — Por quê? Cantei a música de cabo a rabo, sei a letra inteirinha! Olha: Você está saindo da minha viiida e parece que vai demoraaar — Jamile repete um trecho com a voz esganiçada e eu aperto os olhos, agoniado com a falta de afinação. Quando reabro os olhos, percebo que está insatisfeita, à espera de uma explicação melhor. Sem dizer mais nada, ela me encara com a irritação palpável escorrendo dos olhos escuros e eu enrijeço a postura. — É que... — Meus dedos puxam a correntinha para fora da gola, em um gesto que faço sem pensar quando estou nervoso. Não que Jamile me provoque medo ou qualquer porcaria do gênero, mas a real é que detesto me ver sob pressão. Tento me socorrer olhando para Felipe — que tem mais jogo de cintura do que eu —, mas o filho da puta está distraído, digitando no celular. Sorrindo para o aparelho, ele sai andando e se joga em uma das cadeiras acolchoadas da plateia, me largando para trás. — Porque... — repito cuidadosamente, olhando para Jamile. — Não sei explicar. De verdade. Foi mal, mas não é o que tô procurando. Quando termino de falar, faço menção de encostar no rosto dela, mas Mile dá um passo para trás, em uma atitude arisca. Pelo jeito, a mimada não está acostumada a receber "nãos". Quer saber? Foda-se. Não vou ceder à sua vontade e ferrar com a minha chance de estudar na UNESP. — Quer uma dica, GG? — Karla vem até mim, brincando com as pontas dos cabelos entre os dedos. — Dá uma conferida no coral da escola. Meu primo Lucas faz parte, tem vários alunos que cantam bem, mas todos sabem que Catarina é a melhor. — Catarina? Não conheço — comento, ainda mexendo na correntinha, correndo os dedos para lá e para cá. — Então, está na hora de conhecer. O ensaio é daqui a pouco, a partir das treze. — Olha para o relógio dourado no pulso. — Bem, preciso ir. Vamos, Mile? — pergunta à amiga que continua de cara fechada. Jamile faz que sim, mordendo a unha do polegar. Quando estão prestes a ir embora, eu chamo: — Espera, Karlinha! Como vou saber quem é a menina? A tal da Catarina. A loira olha para a amiga, hesitante. A princípio, não entendo o porquê. Será que está “pedindo” autorização para me responder? Provavelmente, sim. É foda como Jamile gosta de mandar e desmandar em todo mundo, até mesmo nos menores detalhes. — Sei quem é de vista, posso ficar e te mostrar... — Lipe oferece e me viro para ele. — Já fui dupla dela uma vez no laboratório de Química. A menina é daquelas nerds que escrevem cada palavra do professor e depois ainda passam o caderno a limpo, tá ligado? — Sei. Puts... — Solto um riso fraco. — Valeu por ficar, Alemão. — "Valeu" é o cacete. Tá me devendo uma. Odeio continuar na escola depois horário — completa, bagunçando os cachos claros. — Como se você tivesse coisa melhor para fazer — rebato. Enquanto costumo passar as tardes ocupado com música, Felipe se divide entre fazer nada na casa dele e fazer nada na pista de skate, porque nem skate ele tem. Só vai até lá porque o local vive cheio de gostosas e "elas curtem skatistas, GG, vai na minha." É uma das mil frases que o Alemão solta sobre o que meninas curtem e não curtem, como se estudasse o assunto em um manual imaginário de pegação cuja fonte seriam as vozes da cabeça dele. Na real? Não sei por que se esforça tanto. Com ou sem manual, nunca faltou menina para nós dois. Minutos depois, eu e ele continuamos no auditório, largados nas poltronas acolchoadas da plateia. Não tem mais ninguém aqui dentro, nem mesmo os inspetores da escola, devem estar na pausa do almoço. Até que o celular do meu amigo vibra e ele fica em pé em um pulo. — Já volto, GG — avisa, com o aparelho na mão. — Fica de olho nas minhas coisas, beleza? — pede, apontando para a mochila dele que está junto com a minha na outra poltrona. Assinto e Felipe sai do auditório. Sozinho, passo a divagar sobre a tal da Catarina. Será que ela sabe quem sou? Se souber, tomara que não tenha nada contra mim e que concorde em me ajudar. Isso é, se a voz dela for realmente boa. Ou, ao menos, compatível com a minha. Só vou pedir o favor à menina depois de assistir ao ensaio dela com o grupo do coral. Vasculho a mente, tentando me lembrar se já peguei alguma aluna com esse nome, mas... Nada. Menos mal. Talvez não fosse uma boa gravar o vídeo com alguém que tivesse histórico comigo. Suspiro fundo e me levanto da poltrona. Perambulando pelo corredor da plateia, aperto a correntinha de prata. Como meu celular está sem bateria, não posso me distrair mexendo nele. Para piorar, acendi o último cigarro no intervalo, fumar agora não é uma opção. Quando escuto a risada de Felipe do lado de fora, decido ir até lá. Saio do auditório e observo que o dia está claro, com o céu limpo, sem nuvens. A claridade me faz apertar os olhos e o som de um riso baixo me leva a virar o corpo para a esquerda. Mais adiante, enxergo Lipe com as costas apoiadas na parede, digitando no celular, sorrindo para o aparelho. — E aí, Alemão? — pergunto ao me aproximar, com as mãos enterradas nos bolsos. Ele murmura um "peraí",sem me olhar. Espio ao redor, na falta do que fazer. Sem celular, sem cigarro, sem companhia... Tô lascado. Como o auditório fica em um local mais elevado, a vista é muito bonita. Daqui consigo enxergar o prédio principal da escola, meio distante, com todo o pátio externo entre as duas construções. O sol reflete por toda a enorme área do Veritas, com prédios, pátios e quadras que ocupam um quarteirão inteiro da Vila Mariana, um bairro nobre de São Paulo. Minhas mães gastam uma puta grana comigo aqui, sou eternamente grato a elas. — Tô falando aqui com Monique, programando umas coisas... — Lipe explica, sem tirar os olhos do iPhone. — Acabamos não conversando depois da aula e ela já foi embora. — Quase todo mundo já foi embora — comento, descendo os olhos do céu. Os degraus à nossa frente estão vazios. Lá embaixo, um ou outro aluno caminha na direção do estacionamento. A escola está praticamente deserta. — É... O final de semana promete. — Ainda animado, guarda o celular no bolso. — Quer fumar? — pergunta e eu abro um sorriso em resposta. Felipe puxa o Marlboro do outro bolso e, encaixando um cigarro entre os lábios, passa o maço para mim. O esmalte preto das suas unhas está descascando e me pergunto como alguém pode achar essa merda estilosa. "Elas curtem caras com unhas pintadas", disse com o vidro do esmalte na mão, dias atrás. Mais um besteirol do seu manual imaginário. — Por falar em final de semana, estou pensando aqui... — murmuro, levando o cigarro à boca. — Hoje é sexta. O ideal é que eu defina o lance da segunda voz até domingo para já começar a ensaiar na semana que vem. Tenho dois meses para enviar o vídeo. Dou uma longa tragada, satisfeito. O torpor da nicotina me relaxa. — Com licença. — Um garoto cabeludo surge do nada, pretendendo entrar no auditório. Com uma careta esquisita, ele balança uma mão na frente do rosto, certamente incomodado com a fumaça dos cigarros. — Vamos fumar mais para lá — sugiro ao meu amigo, me afastando das portas. — Beleza. — Felipe concorda e vem para o meu lado, descendo os degraus até o pátio. Ele volta ao assunto do vídeo: — Dois meses é um prazo tranquilo, GG. — Sim, desde que eu esteja com a segunda voz e com a música definidas. O que não é o caso. — Nem a música você faz ideia? Rock nacional não tem erro. Pega uma clássica. Raul Seixas, Cazuza, Legião... Vai arrepiar até os pelos do saco dos jurados. Quase me engasgo com a fumaça ao escutar o comentário tosco. Porém, antes que eu possa responder qualquer coisa, Lipe balança uma mão no ar, chamando minha atenção. Sem falar nada, ele continua sacudindo o braço, com os lábios apertados em uma linha fina. — Que foi, cacete? — disparo. — Tá passando mal? — Olha lá! Catarina chegou e... Aquela sua vizinha mal-humorada está com ela. Mal-humorada e gostosa. Aqueles peitos me deixam maluco. O nome dela é Viviane, não é? Quando viro a cabeça, a primeira pessoa que enxergo é Viviane, “a vizinha mal-humorada”. Com a pele amarela, os olhos pequenos e a altura irrisória, parece uma fadinha japonesa. Não uma fada do bem. Uma fada do mal, para ser preciso. Criatura mais azeda não existe. E, para a minha "sorte", mora na casa ao lado da minha. — É, sim. — Assinto, soltando a fumaça. — Viviane Yamamoto. Ela é da nossa sala, seu lerdo. — Jura? Acho que preciso prestar mais atenção nas coisas. Bom, pelo jeito, Viviane é amiga da nerd que canta bem. Estão batendo altos papos — completa Felipe. Viviane segue com um pequeno grupo, subindo a escada lateral que leva ao auditório. E, quando foco o olhar na pessoa ao lado dela, eu não acredito. Minha boca se abre e meu coração se acelera quando percebo que é a menina das sardas. A própria. Que bela coincidência... Sorrindo como um trouxa, puxo a correntinha mais uma vez, brincando com o pingente redondo. Te encontrei, Pequena. — E aí? Acha que vai conseguir convencer a baixinha? — Lipe pergunta, me empurrando com o ombro. Pelo canto dos olhos, percebo que ele me observa atentamente enquanto encaro a menina. Ela está parada em frente às portas do auditório, conversando com Viviane. À distância, posso reparar melhor nela, no jeito dela. Os cabelos castanhos soltos, os óculos de armação grossa, a blusa branca larga, a saia preta comprida. Catarina parece uma mistura de hippie com fanática religiosa. Meu sorriso morre. Nada contra o estilo, mas... Estou de saco cheio de fanáticos religiosos. Tinha uma família no final da minha rua que sempre pegava no meu pé porque tenho duas mães. Não deixavam o moleque deles, da minha idade, brincar comigo quando nos conhecemos. Detalhe, a gente tinha cinco ou seis anos na época. Foda. Para piorar, destilavam comentários maldosos de que a minha família "vivia no pecado", "iria para o inferno" e outras merdas do gênero e eu nem entendia o porquê. Mais tarde, ficou bem claro para mim. Tudo se resumia a ignorância, preconceito, homofobia pura e simples sob o disfarce de fé religiosa. Que se explodam... Nem sei se Catarina segue uma religião ou não, posso estar tirando conclusões equivocadas, mas não estou com um bom pressentimento. Com o peito apertado em ansiedade, sinto que não vai ser fácil convencê-la a ser minha segunda voz. Mesmo que não seja religiosa... Meninas certinhas como ela não costumam dar abertura a caras baderneiros como eu. Resumindo a parada, tô fodido. Estranho seria se eu não me apaixonasse por você O sal viria doce para os novos lábios All Star ~ Nando Reis — Será que demora para começar o ensaio? — Felipe quer saber, mexendo no celular. — Quase uma e meia da tarde, tô morto de fome. Estamos sentados na última fileira das cadeiras acolchoadas, no fundão do auditório. — Você sempre tá morto de fome... — rebato e uma movimentação do outro lado atrai meus olhos. Um inspetor da escola. — Ei, não pode usar celular aqui dentro, esqueceu? Quer tomar uma advertência de graça? — alerto em voz baixa, apontando com o queixo para o homem uniformizado. O inspetor desce os degraus da plateia, correndo os olhos pelo ambiente como uma águia, louco para soltar advertências. É proibido entrar com eletrônicos no auditório e todo mundo sabe disso. Tem uma regra que exige que a gente deixe os celulares nos armários, lá no outro prédio, antes de vir para cá. A intenção é não atrapalhar os ensaios e as apresentações. Não que eu me importe em cumprir regras, mas o foda é que os inspetores da escola são pentelhos pra cacete e vivem pegando no meu pé. Ao contrário de mim, Felipe não está nem aí. Como é filho de um advogado fodão, ninguém mexe com ele. Como se quisesse confirmar a ideia, Lipe lança: — Ninguém me tira o celular. Além de morto de fome, estou no tédio aqui. Vamos jogar “Brawl Stars”? Só uma partidinha pra eu te destruir. — Não dá, eu... — Deixou o celular lá no armário? Que aluno exemplar, cumprindo as regras — dispara com deboche, mordendo o piercing labial. — Nada, tá aqui na mochila, mas morreu. Acabou a bateria, lembra? — pergunto e ele faz que sim. — Se anima, vai ser legal o ensaio. São músicas do Nando Reis. Indico a faixa sobre o palco com os dizeres: "O melhor de Nando Reis", em letras garrafais. No mesmo instante, ruídos de microfonia se espalham pelo auditório e um cara sobe no palco, mexendo nos aparelhos de som. Catarina, Viviane e mais uma porção de pessoas vão atrás dele. No minuto seguinte, uma menina assume o violão e um moleque começa a cantar: Desculpe estou um pouco atrasado Mas espero que ainda dê tempo — Ih, pelo jeito nem é Catarina que vai cantar hoje... — Felipe suspira fundo. — Te espero lá fora, GG. — Não precisa me esperar, brother. De verdade. Já fez muito, valeu. Até amanhã — digo, sabendo que ele está ansioso para ir embora. Lipe bate com dois dedos na testa, sinalizando como um soldado. Aceno em resposta e observo meu amigo dirigir-se às portas do auditório. As suas queixas tão justificáveis E a falta que eu fiz nessa semana Coisas que pareceriam óbvias até pra uma criança Continuo sentado na poltrona acolchoada, sozinho.Com os cotovelos fincados nos joelhos, abaixo o rosto e fito o chão, desanimado. Até que... Estremeço quando uma voz feminina repentinamente preenche o ar do auditório, arrepiando todos os malditos pelos dos meus braços. O tom aveludado, suave como carícia, flui liso como seda: Por onde andei enquanto você me procurava Será que eu sei que você é mesmo tudo aquilo que me faltava CA-RA-LHO. Boquiaberto, levanto o rosto e observo Catarina cantar, com as mãos delicadas envolvendo a base do microfone: Amor eu sinto a sua falta E a falta é a morte da esperança Eu estremeço tanto com o timbre que chega a ser mais intenso do que tesão. Cacete... Nunca senti porra nenhuma semelhante a isso. As palavras leves como plumas flutuam das caixas de som até meus ouvidos, reverberando por todas as células, me acendendo, me ligando. Uma sensação líquida, quente, pulsante se espalha pelo meu corpo e se instala no peito, preenchendo cada milímetro de calor. De vida. Não faço ideia de como convencê-la, mas sei que... É ela. Uma eternidade depois, observo Catarina e Viviane despedirem-se do grupo do coral. Deixo minha poltrona enquanto as duas descem com tranquilidade os degraus do palco até a plateia. É incrível como Catarina consegue ser ainda menor que Viviane... Ambas são baixas, mas a primeira é ridiculamente pequena. Chuto que tenha no máximo um metro e meio. Ansioso, me coloco no corredor à frente delas. Cruzo os braços sobre o peito e, com o corpo impedindo a passagem, aguardo que venham até mim. Batendo papo, elas estão com as cabeças baixas, olhando para uma folha de papel que Viviane segura. — Ei! — exclamo ao ver que Catarina está prestes a esbarrar em mim. De novo. Surpresas, elas param de andar e levantam os rostos, me encarando com susto e estranhamento, como se vissem um fantasma. Sem falar nada, Catarina ajeita os óculos no nariz e meu olhar recai para as infinitas sardas espalhadas pela pele. — Sai da frente, Gustavo — Viviane diz com rispidez. Eu a ignoro com prazer. — E aí, Cat? Posso falar contigo? Dois minutinhos. Abro meu melhor sorriso, aquele que é tiro e queda. — Ih... — Viviane empurra a amiga com o ombro, arqueando uma sobrancelha. — Não te falei que Gustavo e Felipe estavam te encarando quando chegamos aqui? — Falou, sim. — Catarina balança a cabeça para cima e para baixo. Seus olhos castanhos por trás das lentes me observam com cautela. — Só não entendo o porquê. Não sou amiga deles. Mais uma vez, um perfume quente de melancia paira no ar, exalando da sua boca que masca chiclete. Ela deve ser viciada nessa porra. — Sorte a sua. Não está perdendo nada, Nina. São dois babacas… — Viviane acrescenta. — Não imagina o que fizeram nas férias de julho, bem do lado da minha casa. Mordo o lábio para não rir, coçando a bochecha. Sei que se refere a uma festinha que rolou na minha casa, mas... Essa menina me odeia de graça. Nunca fiz nada de mal pra ela. — Sério, Vivi? — Catarina indaga com animação. — Conte-me mais a respeito. — Eu continuo aqui, tá? Aceno com uma mão. É estranhamente engraçado ver as duas falando de mim como se eu não estivesse presente. — E aí, Cat? — insisto. — Posso ou não posso falar contigo? A sós. Catarina hesita, mudando o peso de um pé para o outro, me olhando com curiosidade. Ajeitando os cabelos lisos atrás das orelhas, responde: — Pode. Perfeito. Ela não pretende fugir. E, se tudo der certo, vai topar ser a minha segunda voz. — Argh... — Viviane resmunga. — Sem tempo, preciso ir. Depois me liga, amiga. Tchau. Torna a andar depressa, irritada. Desviando-se de mim, espreme-se entre as poltronas acolchoadas ao lado do corredor com o maior cuidado do mundo para não encostar no meu corpo. Lógico que não facilito para ela, permanecendo parado no meio da passagem, com as pernas abertas e os braços cruzados, mais espaçoso impossível. — Já vai tarde — murmuro entredentes, alto o bastante para que me escute, e abro um sorriso gigante, olhando angelicalmente para ela. Os olhos pequenos de Viviane ficam ainda menores, como se lançassem dardos letais em mim. — E o apelido dela não é Cat. É Nina, babaca — dispara antes de me mostrar o dedo do meio. — É... — Catarina diz, chamando a minha atenção, e me viro para ela. — Todo mundo me chama de Nina. — Eu não sou todo mundo — rebato, ampliando o sorriso. — Além disso, Cat combina melhor contigo. — Obrigada? Se foi um elogio. — Foi sim, gata. De nada. Meu nome é Gustavo, mas pode me chamar de GG. Muito prazer. Estendo a mão para cumprimentá-la, mas ela não se move, me deixando no vácuo. Franzo a testa e levo os dedos à correntinha sob a gola, incomodado. Por que a hostilidade da parte dela? Sei que Viviane me detesta, mas Catarina? Pensei que não tivesse nada contra. — Eu sei, Gustavo. Estudo na sua sala desde o começo do ano, e já estamos em setembro. De qualquer forma, quem aqui no Veritas não te conhece? Saquei. Cara, que fora... Eu não fazia ideia de que era da minha sala. Provavelmente, Catarina senta lá na frente e nunca me dignei a falar com ela, nem mesmo dar um "bom dia" por educação. — Ei, onde você vai? — pergunto quando percebo que ela está dando meia-volta. Caminhando rapidamente na direção do palco, distancia-se de mim. — Lembrei que é o meu dia de guardar a aparelhagem de som, mas pode ir falando. O que quer conversar comigo? — Então... — Subo os degraus do palco atrás dela. Olhando para baixo, me admiro ao notar que usa All Star preto de cano alto sob a barra da saia longa. — Prefiro falar quando puder me dar total atenção. Não tenho pressa, posso te esperar guardar as coisas. — Tudo bem — responde, desencaixando o microfone do pedestal. Depois, passa a enrolar o fio com as mãos delicadas, concentrada na tarefa. — Posso ajudar com os aparelhos? — ofereço, mexendo na correntinha de prata. O olhar dela acompanha meus dedos por um milésimo de segundo antes de retornar para o microfone. — Não, obrigada. Você não sabe onde guardar cada coisa. Vou tentar fazer tudo rápido, tá? — Que isso... Pode fazer no seu tempo. — Para que não se sinta pressionada, me acomodo no chão, no fundo do palco, sentado de perna de índio. — Tô de boa aqui. Ela dá um sorriso minúsculo em resposta, sem parar de guardar as coisas. Carrega o violão para algum lugar atrás das cortinas pretas de veludo, solta os fios das caixas de som, etc. Discretamente, fico observando a garota andar para lá e para cá pelo palco, com os passos rápidos balançando de leve o assoalho de madeira sob mim. — Silêncio demais. Canta uma música? — arrisco pedir. Vai que... — Alguma em especial? — rebate, me surpreendendo pra caralho. Não para de andar, passando mais uma vez para a parte de trás das cortinas pretas, carregando dois pandeiros nas mãos. — Engraçado, pensei que fosse tímida... Vou atrás dela, empurrando o tecido pesado com o braço. Catarina é incisiva, firme na resposta: — Eu não sou tímida. — Falou a menina que ficou vermelha como um pimentão quando esbarrou em mim mais cedo. — Naquela hora só fiquei surpresa porque... — Desce os olhos para minha correntinha. — Deixa pra lá. Não era timidez. — Qual é o seu problema com isso? Puxo a peça de prata de dentro da gola. Ela desvia o olhar. — Problema nenhum — retruca rápido, deixando-me desconfiado. — Por que eu teria problema com uma correntinha? A pergunta fica no ar. Naquela área mais escura atrás das cortinas, Catarina continua guardando os objetos, mas posso ver que está meio nervosa, porque derruba três vezes as baquetas de madeira no chão. Eu também estou inquieto e isso não é bom. Sentando-me em um banco, procuro pensar em uma música para relaxar. Então, me lembro da faixa sobre o palco falando de Nando Reis. — Estranho, mas já me sinto como um velho amigo seu... — Encarando os meus pés com os tênis, cantarolo um trechinho da música All Star. De repente, me pegando absurdamente de surpresa, Catarina empurra o meu pé com o seu. Entoando a próxima frase baixinho, sua voz me arrepia inteiro: — Seu All Star azul combina com omeu, preto, de cano alto. — Porra... Encaixou com perfeição. — Olho com espanto para seu rosto, sorrindo como um trouxa. — Se o homem já pisou na Lua, como eu ainda não tenho seu endereço? O tom que eu canto as minhas músicas na sua voz parece exato. — Uau... — Ela sorri, embasbacada. — Sua voz é tão... Isso foi... Não encontra as palavras e prende os cabelos compridos em um coque bagunçado, com as mãos atrapalhadas. Não contenho um sorriso presunçoso, me levantando. Dou dois passos na direção dela e sinto o clima mudar. O ar fica mais vivo, quase pulsante. — Foi incrível, admite. Funcionamos bem juntos. — Mantenho os olhos fixos nos dela. — Aliás, era sobre isso que eu queria falar contigo. Terminou de guardar tudo? — Terminei. Pode falar. — Engole em seco, sustentando meu olhar. — Vou direto ao ponto, ok? É o seguinte... — Prendo o lábio inferior com os dentes de cima. — Queria te pedir um favor. Um puta favor. — Que favor? — murmura, quase sem respirar. — Tenho o sonho de estudar Música na UNESP e preciso gravar um vídeo musical para o processo seletivo. Queria uma segunda voz. Uma segunda voz feminina. Topa? — Eu?! — Ela arregala os olhos. — Hum... Acho que não. — Por que não? Sei que vou tomar o seu tempo, mas não vai ser um lance demorado demais. É coisa rápida. Talvez em quatro ou cinco semanas a gente consiga finalizar tudo. Posso até te pagar. — Não, não. Não posso, sinto muito. Sai de perto de mim rápido, quase correndo, e passa para o outro lado das cortinas. Sem olhar para trás, Catarina desce os degraus do palco até o corredor da plateia. Meu coração está disparado demais dentro do peito e não consigo pensar em mais argumentos para tentar convencê-la. Ela já está no final do corredor, quase nas portas de saída, e acelero o passo para alcançá-la antes que vá embora. — Promete pensar melhor no final de semana? — peço, pegando a minha mochila na poltrona em que estive sentado. — Na segunda a gente volta a se falar. Combinado? — Combinado — responde de qualquer jeito, balançando uma mão no ar, visivelmente tentando me dispensar. — Vamos logo embora? — pergunta, apontando para as portas fechadas do auditório. Apenas assinto em concordância, desanimado. Coloco a mochila nas costas e ando até Catarina. Não faço ideia do que fazer, mas sei que não posso pressioná-la demais. Hoje, não. Preciso pensar melhor em outra abordagem. — Ah, não — resmunga baixinho, com a mão delicada ao redor da maçaneta redonda. — Trancaram as portas. O quê?! — Deixa eu tentar — peço e ela sai da frente. Testo a maçaneta, que não gira de jeito nenhum. As fechaduras realmente estão trancadas. — Consegue forçar? — pergunta com hesitação. Subo o olhar, reparando na estrutura pesada, reforçada, impossível de arrombar. — Não. Já era, Cat, estamos presos aqui — informo e ela faz uma expressão de revolta que é quase cômica. — Não vai se ver livre de mim tão cedo. — Sorrio ao falar a última parte, sem me conter. — Conveniente, não? — Ela cruza os braços, me encarando. — Pagou para o inspetor trancar a gente aqui? — Não. Mas não nego que poderia ter feito isso, se servisse para te convencer com o lance do vídeo — digo com sinceridade, dando de ombros. — Tá. Pior que deixei a minha mochila com o celular no prédio principal... Vai, usa o seu celular para ligar na secretaria. Pede para alguém da escola vir abrir a porta. — Não vai rolar. Estou sem bateria. — Mentira! — Verdade. Tiro o aparelho do bolso e o coloco na mão dela. — Ou seja... — Catarina suspira fundo, mexendo na tela preta do iPhone. — Vamos ficar trancados aqui até as sete da noite, quando chegarem os alunos do período noturno. — Isso mesmo. Só eu e você, Pequena. Preste atenção, o mundo é um moinho Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos Vai reduzir as ilusões a pó O Mundo é um Moinho ~ Cazuza Não é possível. Mais um compartimento com muitas palhetas coloridas misturadas faz com que eu expire o ar pela boca. Uma pontada de frustração me aperta o peito e levo as mãos a elas. Sozinha atrás das cortinas do palco, arrumo minuciosamente as caixas com os pequenos objetos. A vontade que tenho é de largar tudo de qualquer jeito, mas meu cérebro grita ao ver as pecinhas de plástico bagunçadas assim, sem critério, umas por cima das outras. — Saudades, Doutora Teresa — murmuro o nome da psicóloga da escola. Preciso voltar a conversar com ela. Os últimos dias foram estressantes demais. Meses atrás, a Doutora Teresa disse que preciso aprender a administrar melhor a minha mania por controle. Eu me preocupo e perco muito tempo pensando em coisas que estão fora do meu alcance, sofrendo por antecipação, imaginando resultados catastróficos. Ela está certa. Porém, às vezes, o resultado catastrófico é o único imaginável. Relacionar-me com Josué, o filho do pastor, é um exemplo seguro. Sem chance de sair coisa boa disso, ao contrário do que insistem meus pais. Então, como não consigo controlar as principais esferas da minha vida, me dedico à organização de objetos aleatórios. Minhas calcinhas? Separadas por cor. Meus lápis no estojo? Todos com as pontas viradas para o mesmo lado. Suspiro fundo e volto a focar nas palhetas coloridas, separando-as uma a uma. Vermelha aqui. Amarela ali. Azul na caixinha de trás. Prata na... Prata. Paraliso com a pecinha entre os dedos, analisando-a devagar. Prata como... Como o pingente de Gustavo. Droga. Como fui acabar aqui, presa com ele? Todo mundo sabe que o garoto é popular, indisciplinado, mulherengo, esperto. Bem esperto. Inclusive, já percebeu que a correntinha do seu pescoço atraiu minha atenção. Até me perguntou a respeito. Só não sei se conto parte da verdade ou... — Tô me sentindo ofendido aqui. Gustavo surge do nada, afastando a grossa cortina de veludo com um braço. — Por quê? — pergunto e ele vem até mim, com os passos pesados estremecendo o assoalho de madeira sob nossos pés. — Minha companhia deve ser um tédio para você preferir separar as palhetas por cor em vez de ficar lá nas poltronas comigo. Me despreza tanto assim? — dispara, mordendo o lábio para não rir. É um palhaço. — Na verdade... Nada contra, nada a favor. A gente mal se conhece. Capricho no tom de indiferença. Seu ego é gigante por si só, não quero massageá-lo ainda mais, deixando-o pensar que me sinto mexida na presença dele. — Então, por que não mudamos isso? — Aponta para a plateia e a tatuagem do seu antebraço prende meus olhos. São frases em letras pequenas, não consigo ler nenhuma. — Larga isso aí, Cat. Vamos pra lá. — Gosto de organizar as coisas. — Dou de ombros, ainda mexendo nas palhetas. — Assim também me distraio da fome... São quase quatro horas da tarde. — Indico o relógio de parede com o olhar. — Era para eu ter almoçado faz tempo. — Tenho uma coisa na mochila. Pode comer, se quiser. Vamos lá? — pergunta, segurando a cortina para eu passar. Largo as palhetas sem hesitar. Ele acaba de me ganhar pelo estômago. — Que coisa? Vou atrás dele, caminhando depressa pelo palco. Com as pernas compridas, seus passos são muito largos e quase preciso correr para não ficar para trás. — Bananas — responde sem se virar, descendo os degraus que levam à plateia. Sua voz é rouca e me lembra das sensações que experimentei quando o ouvi cantar. Foi tão... Incrível. Mordendo a minha unha do polegar, aproveito que Gustavo está de costas para observá-lo melhor. Seus ombros são largos e fortes, com os músculos perceptíveis sob o tecido fino da camiseta preta. As mangas esticadas ao redor dos bíceps, quase os estrangulando. As veias saltadas que descem serpenteando até os pulsos. Sem me conter, levo o olhar mais para baixo e analiso a bunda marcada sob a calça jeans. Sigo pelas pernas vigorosas, movendo-se a passos confiantes, como se tivesse o mundo a seus pés. Por falar em pés... O par de All Star azul é enorme — chuto que calce 43/44 —, uma lancha ao lado do meu tamanho minúsculo 33/34. O que me faz lembrar das besteiras que Viviane fala. Ela jura que o apelido GG não é apenas por causa dasiniciais. Diz a lenda que todo homem com o pé grande tem "outra coisa" grande, e que no caso dele mediria inacreditáveis 23 centímetros. Acho que isso é meio impossível, porque a média do brasileiro é de 13 centímetros, mas... Sei lá. Vai saber. Muitos diriam que uma menina cristã não deve pensar nesses assuntos, porém não me importo mais com meus "pensamentos impuros e pecaminosos", para usar as palavras do nosso pastor. Antigamente, a culpa me corroía e eu perdia o sono, sofrendo com a consciência pesada por me imaginar em cenas quentes com garotos bonitos. Ai, ai, os meninos da série Elite... Até que a Doutora Tereza me ajudou a enxergar que tudo isso é normal. Que a sexualidade é natural. Sou uma garota saudável e, embora inexperiente, não sou puritana, nem quero ser. — Pode pegar — Gustavo exibe a mochila aberta sobre uma poltrona da plateia. Dentro dela, enxergo um saco transparente com duas bananas. — Hum... — Coço a bochecha, desconfiada. — Estão há quantos dias apodrecendo aí dentro? — Peguei de manhã na fruteira de casa. Não sou tão desleixado quanto pensa. Anda, come. Sei que não é nenhuma iguaria, mas vai enganar a fome. Se o seu estômago for proporcional ao seu tamanho, vai ficar cheio com duas mordidas. — Nada a ver. — Pego o saco com as bananas, abrindo a parte de cima. Fico com uma delas e entrego a outra a ele. — Nunca ouviu falar que as baixinhas são as que têm mais apetite? — É? Curto meninas gulosas. Mas... Se for demais, você cospe ou engole? — completa com um sorriso sacana, deixando bem claro o duplo sentido das palavras. — Não acredito... Você não tem vergonha de falar essas coisas? Ele não tem filtro? Tenho certeza de que tentou me constranger de propósito, mas não foi dessa vez. — Vergonha? Desconheço a palavra. — Dá de ombros, ainda sorrindo. Os dentes da frente são separadinhos e lhe dão um ar de menino, o que compõe um contraste interessante com o olhar lascivo de homem. — E não tenho culpa de pensar em putaria a toda hora. Aos dezoito anos, com os hormônios a mil, minha cabeça vai longe. A de cima. Se bem que a de baixo também não deixa a desejar. — Argh... Seu... Seu... Pervertido. — Descasco a fruta, mas hesito antes de levar a ponta à boca. — Depois disso não vou comer banana na sua frente. — Justo. — Ele sai andando, comendo a outra banana, e vai até a janela. — Parei. Estava brincando, me perdoa se passei dos limites. Vou te deixar comer à vontade. — Está tudo bem. Só não me olha — peço e ele assente em concordância, sem se virar para mim. — Te aviso quando eu acabar. Mordo a fruta devagar, apreciando o sabor doce que preenche a boca. Quase solto uma risada ao perceber que Gustavo terminou a dele em três mordidas. Ele está em pé, meio de perfil para mim, e posso observá-lo sem que perceba. Disfarçadamente sorvo cada detalhe, quase hipnotizada. O sol passa pelo gradeado de metal da janela e reflete na sua pele marrom, deixando-a em um tom caramelo quase dourado. A estrutura óssea perfeita, a mandíbula bem desenhada, os lábios carnudos. Com a luminosidade, os olhos esverdeados ficam ainda mais claros e me vejo muito impactada por sua beleza. Engulo o último pedaço de banana e percebo minha boca salivar ainda mais. Deslizo a ponta da língua pelos lábios, os umedecendo, e noto minha respiração mais forte. E se eu propusesse a ele... Uma troca de favores. Eu o ajudo, ele me ajuda. Não foi por acaso que nos esbarramos de manhã. Não, não. — Acabei, Gustavo — aviso, levando a casca da fruta até o lixo, junto à parede. Me inclino para beber água do bebedouro e enxugo a boca com as costas da mão. — Então, Cat... — Ele se vira para mim, sem se aproximar. Continua parado perto da janela, com o quadril apoiado no parapeito. — Sua família não vai estranhar seu sumiço? — Não. Costumo passar as tardes na escola, estudando ou fazendo trabalhos. Só encontro meus pais no final do dia. — Puxo a caixinha de chiclete de melancia do bolso da saia e coloco um deles na boca. — E a sua família? Não vai se preocupar? — De boa. Sabem que mais cedo ou mais tarde vou aparecer. Não ficam em cima, não pegam no meu pé. É tranquilo. — Que bom... — Sento-me em uma poltrona, com aquela velha tristeza, que me consome de tempos em tempos, ameaçando dar as caras. — Queria eu que meus pais fossem assim, mas eles ficam muito em cima... — Seus pais não são legais contigo? Gustavo vem até mim e se agacha do meu lado, me encarando com o olhar preocupado. Acho fofo. — Até que são, mas... — Paro de falar, olhando dentro dos seus olhos. Sem saber se devo me abrir, aperto meus joelhos, me sentindo aflita. — Mas... — insiste e, em câmera lenta, uma mão enorme cobre a minha. Um calor diferente invade meu corpo e, por impulso, tomo uma decisão. Uma que vai mudar tudo. — Quer mesmo saber? — pergunto e ele faz que sim. — Eles estão me pressionando para assumir um compromisso com Josué, o filho do nosso pastor. Acabei de completar dezoito anos e, para eles, é a idade certa. O problema é que detesto aquele menino com todas as minhas forças... Enfim, eles insistem no assunto, sem parar, dizendo que preciso ao menos tentar. Que, como não estou apaixonada por ninguém, posso acabar desenvolvendo sentimentos pelo infeliz. Mas não quero, de jeito nenhum. — Justo. Porra... Você não é obrigada a nada disso, nem mesmo a tentar — diz com seriedade, sem soltar a minha mão. Esboço um sorriso, feliz com suas palavras. — Eu sei! Mas eles ficam no meu pé! Não aguento mais... — Se eu puder ajudar... Acaricia o dorso da minha mão com o polegar e eu quase me esqueço de respirar. — Acho que pode. Inclusive pensei nisso mais cedo, quando me pediu ajuda com o vídeo, porque... — Mordo a boca, escolhendo as palavras. — Meus pais não são ruins, sabe? Se eu disser que estou apaixonada, e que quero assumir por conta própria um compromisso com um menino bom, acredito que não irão se opor. Vão me apoiar, deixando de lado o filho do pastor. — Ou seja... — Ele fica em pé, com a testa franzida. — Você está me propondo... — Sim, estou te propondo um acordo de namoro falso. — Eu me levanto, com o coração descontrolado, porém firme na minha decisão. — Eu te ajudo com o vídeo, você me ajuda a escapar do compromisso com Josué. Todo mundo sai ganhando. Lembrando que nosso namoro falso tem que ser um namoro santo. — Explica melhor, Pequena — pede, aproximando-se de mim. É estranho sentir meu estômago borbulhar a cada vez que ele me chama assim. "Pequena." — Quer que eu explique o que é um namoro santo? — pergunto e ele faz que sim. — É cristão. Casto. Vamos seguir a regra de nada de toques, tá? Termino de falar levantando o rosto para observar seu semblante. Gustavo é tão alto... Absurdamente alto. Com os olhos fixos nos meus, posso ver todos os tons esverdeados das íris, do fundo esmeralda aos frisos dourados salpicados ao redor das pupilas. — Beleza. Fechou. Já está valendo? — dispara, dando passos lentos na minha direção. Com os batimentos acelerados latejando nos ouvidos, recuo devagar até encostar a bunda na parede fria. Ele não para de andar até espalmar uma mão pesada na parede ao lado da minha cabeça. Sua pele exala calor e um leve cheiro de cigarro. — Pode começar a valer na segunda, Gustavo. Ainda precisamos combinar melhor os detalhes. — Certo. — Sem falar mais nada, ele retira os óculos do meu rosto. Deixa a armação de lado e volta a me olhar, me encarando com um brilho diferente nas íris. — O que você... — Não consigo terminar a frase porque acontece o impensável. Com seu corpo largo pairando sobre mim, Gustavo me prensa contra a parede. Meus joelhos amolecem quando sua mão aperta meu pescoço. Um milésimo de segundo antes da sua boca cobrir a minha. Céus... Seus lábios carnudos pressionam os meus enquanto sua respiração bate no meu rosto. Arrebatada, fecho os olhos e aprecio cada nuance do momento surreal. Gustavo é intenso e enorme — e está por todos os lados —, me envolvendo com seu cheiro de nicotina misturado a outro perfume inebriante, muito masculino. Sem pensar, levo asmãos trêmulas aos seus bíceps, afundando as unhas na pele. Seus braços são fortes, duros, assim como seus dedos firmes que descem pela minha cintura, me apertando mais. Nem cinco segundos depois, tudo termina. Gustavo afasta-se repentinamente e sinto falta do seu calor. Ele vira de costas e pragueja baixo, massageando a própria nuca com as duas mãos. Confusa, toco nos meus lábios que ainda formigam do contato. — Você... Você me deu um beijo! — Relaxa, foi um selinho, nem foi um beijo. Dá de ombros, virando-se de frente para mim. Seu semblante é sério, impassível, quase entediado. O oposto de mim, que pareço guardar uma escola de samba dentro do peito. — Não foi? Se a sua boca estava colada na minha... Não entendi. Bufo e Gustavo esboça um sorriso torto. — Vai entender... Quando eu te beijar de verdade. Seu tom é presunçoso, cheio de si, me enervando. — E por que fez isso?! — exijo saber, dando um passo à frente, sem disfarçar minha irritação. Seu olhar escurece diante da minha postura. Ele estufa o peito e não se intimida, me olhando de cima para baixo. — Esse lance de nada de toques... — Balança uma mão na minha direção. — Não curti. Você não sabe, mas essa cagação de regras me deixa puto. Então, quis te mostrar duas coisas. O que você vai estar perdendo. E que não sou de seguir regras, muito menos as religiosas. Levanta o indicador e o dedo do meio enfaticamente, enumerando sua fala, mantendo os dois em V na altura do meu rosto. Como a imagem não está nítida, me lembro de que estou sem os óculos. — Mas... Se não gostou da regra de nada de toques... O que quer de mim? Um namoro de verdade? — pergunto confusa, alcançando os óculos na poltrona ao lado. — Não, eu não namoro. Porém, já que vamos encenar por um tempo, por que não aproveitar a oportunidade? Imagino que queira se casar virgem e tudo o mais, mas uns beijos na boca e uns amassos não matam ninguém. Só para deixar a brincadeira mais divertida. — Desculpa, mas não consigo. — Encaro meus pés meio encobertos pela barra da saia. — Beijar, fazer outras coisas... Envolver-me assim em uma brincadeira, sem um compromisso sério. Nunca — reforço, subindo o olhar para seu rosto. — Como diria Justin Bieber, "never say never" — rebate com um sorriso de canto extremamente irritante. — Questão de tempo, Pequena. Você ainda vai me implorar um beijo. E, então, posso fazer o esforço de atender sua vontade. Não acredito! Gustavo se acha demais! "Implorar um beijo"? "Fazer o esforço"? — Falou o cara que me beijou contra minha vontade — retruco, cruzando os braços. — Você não me pareceu muito contrariada quando levou as mãos aos meus braços e me apertou, gemendo de olhos fechados. Argh... Ele é insuportável! — Foi só para me firmar! Babaca! Bem que Vivi me avisou que... Não termino a frase porque ele me corta: — Babaca que é sua única opção para escapar do filho do pastor. — Seu semblante se fecha mais uma vez, não sei se pela menção de Vivi ou da palavra "babaca". — Sei que não está soltando fogos com o nosso acordo, se te consola saber eu também não estou. Mas é o que temos para hoje, não é? Você precisa de um namorado, eu preciso de uma segunda voz. Fim. Abro a boca para rebater mas, sem saber o que falar, aperto os lábios fechados. Gustavo esboça um sorriso torto, como se dissesse "ganhei". Que raiva! Meu coração está disparado e minhas mãos tremem, não sei o porquê de tanto descontrole. Um silêncio pesado repercute pelo auditório por quase um minuto inteiro. Sento-me em uma poltrona e passo a cutucar a cutícula do polegar com a unha do dedo do meio. — Sobre o vídeo para a UNESP... — ele fala, ainda em pé. — Podemos começar as reuniões na segunda? Sem olhar para mim, Gustavo anda até sua mochila, abre o zíper e puxa uma garrafinha de metal de dentro dela, levando o gargalo à boca. Seus lábios cheios envolvem o bocal e ele joga a cabeça para trás, dando goles do que imagino que seja água. Sem querer, dou uma leve viajada com a visão da sua boca. Os lábios macios pressionando os meus e... De repente, me dou conta de que ainda não respondi nada. — Sim. Podemos, sim. — Três vezes por semana seria bom. — Com a mochila no colo e a garrafinha na mão, ele ocupa a poltrona ao meu lado. — Segunda, quarta e sexta, das 16h às 18h. Mais tarde não dá para ensaiar... Os vizinhos reclamam do barulho, inclusive a família da sua grande amiga Viviane. — As reuniões vão ser na sua casa? — quero saber, com uma sensação estranha me deixando inquieta. É surreal me ver frequentando a casa do menino mais popular da escola, que estuda na minha sala e que, até hoje, não tinha notado a minha existência. — Isso. Tenho um estúdio na garagem. Você pode ir até lá? — Posso. — Beleza. Vamos trocar telefones para facilitar. — Mexendo na mochila, guarda a garrafinha e puxa um caderno e uma caneta. — Seus pais não achariam ruim? Estaremos sozinhos na minha casa. — Achariam ruim, sim. O jeito é omitir isso deles. Como falei, só me encontro com os dois no final do dia, à noitinha. Gustavo assente antes de rabiscar um número de telefone no caderno. Destacando a folha do espiral de metal, entrega a mim. Eu dobro o papel em um quadrado e guardo no bolso da saia. — Fechado. Me manda uma mensagem mais tarde para eu salvar seu número. Outra coisa, Cat... Papo reto. O que você espera de mim durante a encenação do namoro? A mudança repentina de assunto faz meu coração dar um salto, mas me recomponho rapidamente, sem demonstrar o nervosismo. — Que conheça os meus pais. Que convença-os de que é um bom partido. Que aos domingos vá ao culto com a gente. Gustavo faz uma careta ao ouvir a última parte, como se sentisse dor. — Merda... — resmunga, passando a mão pela testa. — Que horas é o culto? — Às 9h da manhã. Pode ir no domingo agora, depois de amanhã? Já me ajudaria demais... — peço com a voz mais baixa. Josué está me cercando mais a cada semana, preciso cortá-lo com urgência. — Beleza. Mais alguma coisa? — Sim. Queria pedir que... — Mordo a boca, pesando as palavras. — Que não fique se agarrando com outras meninas pela escola. A imagem de Jamile se pendurando nele me incomoda, e nem sei explicar o porquê. — Cacete... Não pode exigir que eu não faça nada com mais ninguém durante a nossa encenação. — Peço apenas que seja discreto nas suas, hum... Práticas. Mais pessoas do Veritas frequentam a minha Igreja, a encenação precisa ser dentro e fora da escola. Todo mundo sabe que um namoro santo deve ser levado a sério, sem puladas de cerca. — Sua sorte é que sua voz é muito foda... O namoro dura até o final da gravação do vídeo — completa depressa. — No máximo, dois meses. Nem um dia a mais. Pegar ou largar. — É o suficiente para mim. Até lá, Josué certamente terá se comprometido com outra menina. Ele é um bom partido para quem não o conhece, logo vai firmar compromisso com alguém. Se tudo der certo, ele não vai mais estar disponível quando a gente terminar. Assim, fico livre para conhecer outros meninos, quem sabe namorar de verdade... Não sendo ele está bom. — Por curiosidade... O que você tem contra o cara? Ele é da sua religião, da sua Igreja, várias coisas em comum. Pelo menos, vocês não são tão diferentes como nós dois. — Balança uma mão entre nossos corpos, enfatizando sua fala. — Somos opostos em tudo. — Outra hora te conto sobre ele. É um assunto que me deixa triste, chega de fortes emoções por hoje. — Caralho... Ele fez alguma coisa contigo? — pergunta com a voz dura, afiando o olhar. De alguma maneira, soa protetor e gosto disso. — Não. Não comigo — respondo e Gustavo relaxa. — Uma última dúvida... — Ele coça a nuca. — Como funciona exatamente um namoro santo? Preciso saber como agir contigo na frente das outras pessoas. — Boa pergunta. Vamos lá... Pela visão da minha Igreja, o namoro é um período de conhecimento mútuo entre um homem e uma mulher. É conhecer a mente, o coração, a alma da outra pessoa. O interior dela, sabe? Não a parte externa, puramente física e superficial. Porque é a parte de dentro que mais importa. Já a regra de nãotocar existe porque carícias abrem portas para a exploração dos corpos e levam às relações sexuais, que são condenáveis quando feitas fora do casamento. Jovens são impulsivos e inconsequentes, mas resistir às práticas é nosso papel em prol de um bem maior — explico com alegria, mas meu sorriso morre ao notar sua expressão inconformada. — “Bem maior”? Que viagem... — balbucia, mexendo na correntinha do pescoço, visivelmente incomodado. — Porra... Você tá tão errada. Isso não é viver, Cat. Vai deixar de aproveitar a melhor fase. Um dia, vai olhar para trás e se arrepender. — Não acredito que agir de forma planejada e responsável vá me trazer arrependimentos — retruco, na defensiva. — O mundo é justo. Posso não aproveitar agora, mas serei recompensada no futuro. Tenho fé. — O mundo é justo? “O mundo é um moinho”. Tritura tudo sem dó, manja? — Estica uma mão e lentamente ajeita uma mecha solta atrás da minha orelha. — A vida é um momento. Temos que aproveitar enquanto há tempo. Sem saber o que dizer, faço que sim com a cabeça, toda arrepiada ao identificar a letra de Cazuza nas suas palavras. Diante do meu silêncio, Gustavo volta a falar: — Resume, Cat... — Ele foge com o olhar, virando o rosto para a janela. O sol está se pondo do lado de fora. — O que pode e o que não pode? Mãos dadas? Beijo na boca? — Mãos dadas, sim. Beijo na boca, depende. Se for um beijo casto, sem provocações, tudo bem. Porque a troca de beijos mais intensos pode levar a outras coisas... De qualquer forma, não precisamos nos beijar durante a nossa encenação de namoro santo. — "Namoro santo" — ele repete a expressão com sarcasmo. — Quem inventou isso, hein? Para quê? Faz bem a quem? — O pastor diz que... — Com todo o respeito, Pequena, tem pastor que diz muita besteira. Em vez de simplesmente pregar o amor, incita ódios e preconceitos que sinto na pele — fala com seriedade, deixando-me curiosa. — Para mim, o que vale é ser uma pessoa boa. Independentemente de pastor ou de Bíblia, fazer o bem é a minha religião, que aprendi com minha família desde pequeno. Ser compreensivo e não julgar os outros. E, da mesma forma, não quero ser julgado. — "Não julgueis, e não sereis julgados.” Lucas 6:37 e Mateus 7:1. Está na Bíblia, Gustavo, e é um preceito que sigo com gosto. Como pode ver, não somos tão diferentes assim. — Está? Não sabia. — Está, sim — confirmo. Encarando-me com um vinco entre as sobrancelhas espessas, Gustavo fica quieto. Por um milagre, não discute mais. Aprecio o sabor de deixá-lo sem fala pela primeira vez. Menos de uma hora depois, as portas do auditório são abertas. Um inspetor nos olha com estranhamento, mas não diz nada quando passamos direto por ele, descendo os degraus que levam ao pátio. Meus olhos sobem para o céu quase escuro, com as primeiras estrelas despontando aqui e ali. Escuto a voz grave de Gustavo nas minhas costas: — Não esquece de me mandar uma mensagem, beleza? Aproveita para me passar o endereço da sua Igreja. Nos vemos lá no domingo. Falou. Eu tô na lanterna dos afogados Eu tô te esperando, vê se não vai demorar Lanterna Dos Afogados ~ Os Paralamas do Sucesso — Por que demorou, querido? — minha mãe pergunta assim que piso em casa. Juliana está sentada no sofá, mexendo no celular. Enquanto tiro a mochila das costas, reparo que ela está mais arrumada do que o normal, com os cabelos loiros amarrados em uma trança bonita. — Acabei preso na escola, tô morto de fome. Quase acrescento "literalmente preso", mas deixo pra lá. Eu me inclino para dar um beijo em sua bochecha. Seu perfume floral invade meus sentidos. É delicado e suave como ela. — Tem visita esperando por você no seu quarto, ela chegou faz quase uma hora. — Acaricia meu braço, sorrindo. Heloísa dá risada enquanto mexe nas garrafas de vinho sobre o aparador. — Tentem não fazer muito barulho, vamos receber amigos para o jantar — diz, lendo o rótulo de uma das garrafas. — Nada contra aquela menina, mas... Podia ser menos escandalosa. Seu comentário me faz ter certeza de que é Jamile lá em cima. As meninas do G5 têm livre acesso à minha casa, conhecem as minhas mães e o caralho. Monique não vem mais, dei um corte nela por causa do Alemão. Karla é bem discreta, geme como uma gatinha, e Laura e Nicole costumam aparecer juntas, em dupla. Ou seja, se é apenas uma menina, e escandalosa, só pode ser Mile. Não sei dizer se fico animado ou não com a ideia. Foi um dia incomum, minha cabeça está cheia... Só queria relaxar e dormir. — Beleza. Eu me aproximo para dar um beijo na bochecha dela também. Quando me afasto, Heloísa comenta: — Milagre, não está fedendo a cigarro. — Meu maço acabou de manhã. Tem alguma coisa pronta para comer? — pergunto, a caminho da cozinha. — Fizemos sanduichinhos para servir às visitas, não coma todos! — Juliana grita enquanto acendo a luz, enxergando uma bandeja prateada sobre o fogão com os sanduíches minúsculos. É um pãozinho redondo recheado com queijo e salame. Chuto que tem vinte ou trinta. Com o estômago roncando, enfio um inteiro na boca e pego uma porção de quatro ou cinco com uma mão, abrindo a geladeira com a outra. Alcanço uma latinha de Coca e apoio as coisas sobre a bancada de mármore. Devoro tudo ali mesmo, rápido, ansioso para tomar um banho. Com a latinha gelada ainda pela metade, deixo a cozinha e subo para o corredor dos quartos. Abro minha porta e me deparo com Jamile deitada na cama, mexendo no celular. Ela está descalça e veste uma saia de couro preta e regatinha da mesma cor. — Que demora, GG! — exclama ao perceber que cheguei. — Tentei te ligar, mas só caiu na caixa postal. Estava preocupada... — Fiquei sem bateria — respondo, tirando o celular do bolso. A primeira coisa que faço é colocá-lo para carregar na mesinha de cabeceira. Será que Catarina já mandou a mensagem com o número dela? Não consigo afastar da cabeça a preocupação com os próximos dias. São tantas coisas, tantos detalhes... A tortura do culto aos domingos. A encenação do maldito namoro santo. As nossas reuniões no estúdio. Qual a chance de dar tudo certo? — Não vai falar nada sobre a minha visita surpresa? — Jamile quer saber, fazendo beicinho. A menina gosta de atenção. — A que devo a honra? — pergunto, puxando a camiseta pela gola. Mile desce os olhos pelo meu tronco nu, lambendo a boca pintada de vermelho. — Quis comemorar, gato... — responde, ajoelhando-se no centro do colchão. — De manhã, me disse que passar naquela faculdade era importante para você... Até escolhi uma lingerie especial. Quer ver? Abro o botão da calça enquanto Jamile despe a regatinha e a saia, ainda em cima da minha cama. A tal da “lingerie especial” é um conjunto minúsculo de duas peças, em renda preta transparente. Em pé no colchão, ela dá uma voltinha devagar, exibindo-se para mim. Gostosa pra caralho. — Aprovada. — Sorrio de canto, observando seu corpo bonito de cima a baixo, cada detalhe, cada curva. Chuto os tênis para longe e me livro da calça. — Preciso de uma ducha. Já volto. Apenas de cueca, empurro a porta do banheiro e abro o box, girando a torneira do chuveiro. Enquanto a água esquenta, escovo os dentes na pia. Nem cinco minutos depois, quando retorno para o quarto, encontro Jamile mexendo no meu celular. Que porra?! — Ah, fez um barulho diferente — ela explica ao notar meu olhar inquisidor, mordendo o lábio. — Acho que foi porque estava desligado, e agora já carregou um pouquinho. Com a toalha enrolada nos quadris, dou três passos até a cama e puxo o aparelho da mão dela. Está 10% carregado. Abro rapidamente as mensagens, encontrando uma porção delas não lidas. Das minhas mães, do Alemão, do grupo do futebol. Nada de novo. — Beleza. Não quero que mexa no meu celular — falo e Mile fica em pé, aproximando-se de mim. Seu perfume doce alcança meu nariz. — Desde quando sabe a minha senha, cacete? — Ui, ele tá irritadinho... — brinca, escorregando as unhas pelo meu abdômen ainda úmido do banho. — Deixa eu te desestressar, futuro calouro da USP. Jamile solta o nó da toalha,
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