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Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) Tutoria UC 8 Percepção, Consciência e Emoção – Problema 4 1) Conceituar consciência e suas bases neuroanatomicas e neurofuncionais: SRAA (sistema reticular ativador ascendente); CONTROLE DA ATIVIDADE ELÉTRICA CORTICAL: SONO E VIGÍLIA Uma das descobertas mais importantes e ao mesmo tempo mais surpreendentes da neurobiologia moderna é que a atividade elétrica do córtex cerebral, de que dependem os vários níveis de consciência, é regulada basicamente pela formação reticular do tronco encefálico. Graças aos trabalhos fundamentais de Bremer (1936), Moruzzi e Magoun (1949), descobriu-se que a formação reticular é capaz de ativar o córtex cerebral, a partir do que se criou o conceito de sistema ativador reticular ascendente (SARA), importante na regulação do sono e da vigília, o que será estudado a seguir. O Sistema Ativador Reticular Ascendente (SARA) Antes de relatarmos as principais experiências que permitiram concluir que a formação reticular tem uma ação ativadora sobre o córtex cerebral, é necessário dar algumas noções sobre a atividade elétrica do córtex. Sabe- se que o córtex cerebral tem uma atividade elétrica espontânea, que pode ser detectada colocando-se eletrodos em sua superfície (eletrocorticograma) ou no próprio crânio (eletroencefalograma. EEG). Os traçados elétricos que se obtêm de um indivíduo ou de um animal dormindo (traçados de sono) são muito diferentes dos obtidos de um indivíduo ou animal acordado (traçados de vigília), sendo dessincronizados nestes e sincronizados naqueles. As primeiras experiências que relacionam o tronco encefálico à atividade elétrica cortical de sono ou vigília foram feitas por Bremer em 1936, tomando potenciais corticais cm gatos após secções do neuroeixo. Secções na transição entre o bulbo e a medula ou no mesencéfalo, entre os dois colículos, resultavam nas •preparações' conhecidas, respectivamente, como encéfalo isolado e cérebro isolado. Bremer verificou que um cérebro isolado tem somente um traçado de sono (o animal dorme sempre), enquanto um encéfalo isolado mantém o ritmo diário normal de sono e vigília, ou seja. o animal dorme e acorda. Dessa experiência ele concluiu que o ritmo normal de sono e vigília depende de mecanismos localizados no tronco encefálico. Uma série de pesquisas feitas principalmente por Magoun e Moruzzi mostrou que esses mecanismos envolvem a formação reticular. Assim, verificou-se que um animal sob anestesia ligeira (EEG de sono) acorda quando se estimula eletricamente a formação reticular, e um animal acordado Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) dorme quando se destrói a parte mais cranial da formação reticular. Conclui-se que existe na formação reticular um sistema de libras ascendentes que se projetam no córtex cerebral e sobre ele têm uma ação ativadora. Surgiu assim o conceito de sistema ativador reticular ascendente (SARA). Sabe-se hoje que a ação do SARA sobre o córtex se faz através das conexões da formação reticular com os chamados núcleos inespecíficos do tálamo (veja Capítulo 25). Sabe-se também que, além de seguirem suas vias específicas, os impulsos sensoriais que chegam ao sistema nervoso central pelos nervos espinhais e cranianos passam também à formação reticular e ativam o SARA. Isso se faz não só através de ramos colaterais que se destacam das vias específicas, mas principalmente através de fibras espino-reticulares ou das conexões dos núcleos dos nervos cranianos com a formação reticular. Temos assim a situação em que os impulsos nervosos sensoriais ganham o córtex. seja através de vias relacionadas com modalidades específicas de sensação, seja através do SARA, cm que esses impulsos perdem sua especificidade e se tornam apenas ativadores corticais. Entende-se assim por que os indivíduos acordam quando submetidos a fortes estímulos sensoriais como, por exemplo, um ruído muito alto. Isso se deve não à chegada de impulsos nervosos na área auditiva do córtex. mas à ativação de todo o córtex pelo SARA, o qual, por sua vez. é ativado por fibras que se destacam da própria via auditiva. Assim, se forem lesadas estas vias depois de seu trajeto pela formação reticular, embora não cheguem impulsos na área auditiva do córtex. o animal acorda com o ruído (ele acorda, mas não ouve). Por outro lado, se forem mantidas intactas as vias auditivas e lesada a parte mais cranial da formação reticular, o animal dorme mesmo quando submetido a fortes ruídos, apesar de chegarem impulsos auditivos na área de seu córtex. É fácil entender também que uma redução de estímulos sensoriais facilita o sono. diminuindo a ação ativadora da formação reticular sobre o córtex. Por outro lado. o próprio córtex, através de conexões córtico-reticulares. é capaz de ativar a formação reticular, mantendo assim sua própria ativação. Acredita-se ser este o mecanismo que nos permite até certo ponto inibir 'voluntariamente' o sono normal. Regulação do Sono A descoberta do sistema ativador reticular ascendente veio explicar por que os indivíduos acordam, mas não explicou satisfatoriamente por que eles dormem. Durante algum tempo pensou-se que o sono seria um fenômeno passio. resultante da falta de ativação da formação reticular. Contudo, numerosas pesquisas vieram mostrar que isso não é verdade e que o sono depende da ação de certos núcleos da formação reticular. Verificou-se que, embora os estímulos elétricos da formação reticular resultem quase sempre em ativação cortical, certos estímulos em áreas específicas da formação reticular do bulbo e da ponte Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) produzem efeito contrário, ou seja, sono. Por outro lado, como já foi visto, se a secção do tronco encefálico ao nível dos colículos resulta em uma 'preparação' que dorme sempre, uma 'preparação' seccionada no meio da ponte não dorme nunca. Admite-se que isso se deva à secção das conexões ascendentes dos núcleos da rafe, principais responsáveis pelo sono. Lesões desses núcleos causam insônia permanente. Portanto, a formação reticular contém mecanismos capazes de regular o sono de maneira ativa. Sabe-se que o sono, do ponto de vista eletroencefalográfico, não é homogêneo, comportando vários estágios. Entre estes destaca-se o estágio de sono paradoxal, assim denominado porque, embora o indivíduo se encontre profundamente adormecido, seu traçado eletroencefalográfico é dessincronizado, ou seja, assemelha-se ao do indivíduo acordado. Fato curioso é que durante o sono paradoxal há um grande relaxamento muscular, e os olhos movem-se rapidamente*. Nessa fase do sono ocorre a maioria dos sonhos. Sabe-se hoje que o sono paradoxal é ativamente desencadeado a partir de grupos neuronals situados na formação reticular, entre os quais um dos mais importantes parece ser o locus ceruleus. Convém lembrar que, embora a formação reticular seja a área do sistema nervoso central mais importante para a regulação do sono e da vigília, outras áreas, especialmente o hipotálamo, também estão envolvidas e com ela interagem nessa regulação. 2) Caracterizar as alterações normais e patológicas da consciência e as principais causas de alteração da consciência; As alterações normais da consciência ocorrem no contexto dos chamados ritmos circadianos. Segundo definição do RDoC, os ritmos circadianos são oscilações endógenas autossustentadas do ritmo biológico no período de um dia de 24 horas (que inclui centralmente as oscilações do nível de consciência da vigília e do sono), as quais, nesse intervalo, organizam a temporalidade dos sistemas biológicos do organismo e otimizam a fisiologia, o comportamento e a saúde. Quanto às suas propriedades, os ritmos circadianos, segundo o RDoC: • São sincronizados por pistas ambientais recorrentes (como o nível de luminosidade); • Permitem respostas eficientesperante os desafios e oportunidades no ambiente físico e social; • Modulam a homeostase interna do cérebro, assim como de outros sistemas, como demais órgãos e tecidos; • Se expressam em vários níveis do funcionamento do organismo, desde o molecular, celular, órgãos e circuitos orgânicos até sistemas sociais aos quais o indivíduo pertence. Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) Sono O RDoC define sono e vigília (wakefulness) como estados comportamentais endógenos e recorrentes que expressam mudanças dinâmicas na organização da função cerebral e que otimizam aspectos como fisiologia, comportamento e saúde. Processos circadianos (do período de um dia de 24 horas) homeostáticos regulam a propensão do organismo à vigília e ao sono. O sono se caracteriza por: • Ser um estado reversível, tipicamente expresso pela postura de repouso, comportamento quieto e redução da responsividade; • Ter uma arquitetura neurofisiológica complexa, com estados cíclicos de sono não REM e de sono REM, tendo tais estados substratos neuronais distintos (neurotransmissores, moduladores, circuitos específicos) e propriedades oscilatórias do eletrencefalograma (EEG); • Ter duração e intensidade dos seus vários períodos afetadas por mecanismos de regulação homeostáticos; • Ser afetado por experiências ocorridas durante a vigília; • Ter efeitos restauradores e transformadores que otimizam funções neurocomportamentais da vigília. Pode-se, portanto, descrever o sono como um estado especial da consciência, que ocorre de forma recorrente e cíclica nos organismos superiores (Ayala- Guerrero, 1994). É também, ao mesmo tempo, um estado comportamental e uma fase fisiológica normal e necessária do organismo. Dividem-se as fases do sono em duas: o sono sincronizado, sem movimentos oculares rápidos (sono não REM), e o sono dessincronizado, com movimentos oculares rápidos – rapid eye movements (sono REM) (Aloé; Azevedo; Hasan, 2005). O sono sincronizado não REM caracteriza- se por atividade elétrica cerebral síncrona, com elementos eletrencefalográficos próprios, como os fusos do sono, os complexos K e as ondas lentas de grande amplitude. Há, nesse tipo de sono, diminuição da atividade do sistema nervoso autônomo simpático e aumento relativo do tônus do sistema nervoso autônomo parassimpático, permanecendo vários parâmetros fisiológicos estáveis em um nível de funcionamento mínimo, como as frequências cardíaca e respiratória, a pressão arterial, o débito cardíaco e os movimentos intestinais. Durante o sono não REM, ocorrem quatro estágios (Irwin, 2015): • Estágio 1: mais leve e superficial, com atividade regular do EEG de baixa voltagem, de 4 a 6 ciclos por segundo (2-5% do tempo total de sono). • Estágio 2: um pouco menos superficial, com traçado do EEG revelando aspecto fusiforme de 13 a 15 ciclos por segundo (fusos do Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) sono) e algumas espículas de alta voltagem, denominadas complexos K (45-55% do tempo total de sono). • Estágio 3: sono mais profundo, com traçado do EEG mais lentificado, com ondas delta, atividade de 0,5 a 2,5 ciclos por segundo, ondas de alta voltagem (3-8% do tempo total de sono). • Estágio 4: estágio de sono mais profundo, com predomínio de ondas delta e traçado bem lentificado. É mais difícil de despertar alguém nos estágios 3 e 4, podendo o indivíduo apresentar-se confuso ao ser despertado (10-15% do tempo total de sono). O sono REM, por sua vez, não se encaixa em nenhuma dessas quatro fases. Sua duração total em uma noite perfaz de 20 a 25% do tempo total de sono. É um estágio peculiar, cujo padrão do EEG é semelhante ao do Estágio 1 do não REM. O sono REM não é, entretanto, um sono leve, tampouco profundo, mas um tipo de sono qualitativamente diferente. Caracteriza-se por instabilidade no sistema nervoso autônomo simpático, com variações das frequências cardíaca e respiratória, da pressão arterial, do débito cardíaco e do fluxo sanguíneo cerebral. No sono REM, há um padrão de movimentos oculares rápidos e conjugados (movimentos oculares sacádicos), bem como um relaxamento muscular profundo e generalizado (atonia muscular), interrompido esporadicamente por contrações de pequenos grupos musculares, como os dos olhos. Além de irregularidade das frequências cardíaca e respiratória e da pressão sanguínea, ocorrem ereções penianas totais e parciais. É durante o sono REM que ocorre a maior parte dos sonhos, e, em 60 a 90% das vezes, se o indivíduo for despertado durante a fase REM, relatará que estava sonhando. Durante o sono REM, dá-se a ativação das vias neuronais que ligam o tronco cerebral ao córtex occipital (i.e., a área da visão); são as chamadas ondas pontogenículo-occipitais. Tal ativação cerebral das áreas occipitais se relaciona ao caráter visual dos sonhos, como será visto adiante. Em uma noite normal de sono, as fases não REM e REM se repetem de forma cíclica a cada 70 a 110 minutos, com 4 a 6 ciclos completos por noite. O sono se inicia com o tipo não REM, havendo a sucessão dos Estágios de 1 a 4. O primeiro período REM, que geralmente é bem curto, ocorre cerca de 70 a 120 minutos após o indivíduo adormecer. Ao longo da noite, os períodos REM vão se tornando mais frequentes e prolongados, desaparecendo os Estágios 3 e 4. A maior quantidade de sono REM ocorre no último terço da noite, geralmente de madrugada (das 4 às 7h da manhã), momento em que a maioria das pessoas mais sonha. O Estágio 4, de forma oposta, ocorre predominantemente no primeiro terço da noite (Tavares; Aloé, 1998). Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) Pessoas com depressão grave e narcolepsia podem ter a latência – adormecimento-primeiro sono REM – bastante diminuída, implicando geralmente uma inversão da arquitetura do sono. Sono normal Várias estruturas neuronais têm sido relacionadas com o controle dos estados de vigília e de sonos não REM e REM. De fundamental importância na regulação fisiológica do sono é o núcleo supraquiasmático, localizado no hipotálamo anterior. Além dele, são também fundamentais estruturas como a glândula pineal (que secreta melatonina e funciona como oscilador que controla o ritmo sono- vigília no período de 24 horas), os sistemas reticulares mesencefálicos e bulbares e os geradores de sono REM localizados na ponte. Quimicamente, neurônios aminérgicos, colinérgicos e histaminérgicos estão envolvidos de forma mais estreita nos mecanismos neuronais do sono (Tavares; Aloé, 1998). Sonho O sonho, fenômeno associado ao sono, pode ser considerado uma alteração normal da consciência. É, sem dúvida, uma experiência humana fascinante e enigmática (Hobson, 2002; Domhoff, 2003). Nas mais diversas sociedades, ao longo da história, ele tem exercido grande curiosidade, sendo interpretado das mais diversas formas. No século XIX, tomou-se o sonho como modelo da loucura, pois, para o francês Moreau de Tours (1804-1884), “[...] a loucura é o sonho do homem acordado”, uma espécie de invasão da vigília pela atividade onírica. Também o antropólogo inglês Edward Burnett Tylor (1832-1917) formulou a hipótese de que o sonho, com suas visões arrebatadoras, seria a experiência humana que teria dado origem à crença em seres espirituais e, posteriormente, às religiões. Apesar de essas teorias terem sido abandonadas, o sonho permanece como uma experiência intrigante a ser desvendada. Para o escritor Gérard de Nerval (1808- 1855), o sonho é um modelo fértil para o entendimento da condição humana. Em seu romance Aurélia [1855] (1999, p.17), ele diz: O sonho é uma segunda vida. Não posso passar sem um frêmito por estas portas de marfim ou córneas que nos separam do mundo invisível. Os primeiros instantes do sono são a imagem da morte; um entorpecimento nebuloso toma nosso pensamento, e não podemos determinar o instantepreciso em que o eu, sob outra forma, continuo o trabalho de existir. É um subterrâneo vago que se aclara aos poucos, e onde saem da sombra e da noite as pálidas figuras gravemente imóveis que habitam a morada dos limbos. Os modernos laboratórios de sono, com a polissonografia do sono (EEG, eletroculograma, eletromiograma de superfície da região submentoniana e outros registros fisiológicos), têm demonstrado que, ao contrário do que se Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) pensava no passado, sonhar não é algo raro, infrequente (para uma excelente revisão sobre o sonho e o cérebro, ver Nir; Tononi, 2010). A maioria das pessoas sonha várias vezes durante uma noite, apenas não se lembra da maior parte, pois, se acordarem (ou forem despertadas) após mais de oito minutos de um sono REM (durante o qual sonharam), não se lembrarão mais do conteúdo do sonho (Oliveira; Amaral, 1997). Os sonhos são vivências predominantemente visuais, sendo rara a ocorrência de percepções auditivas, olfativas ou táteis. Isso se relaciona às ondas pontogenículo-occipitais que ativam as áreas corticais visuais do lobo occipital durante sua ocorrência (Nir; Tononi, 2010). Em sonhos eróticos, podem ocorrer sensações de orgasmo. Pessoas cegas de nascença geralmente relatam sonhos com sensações corporais e de movimento, mas obviamente sem o caráter visual das pessoas que enxergam. Os significados dos conteúdos dos sonhos permanecem controvertidos. As diversas culturas tendem a interpretá-los a partir de seus símbolos, crenças religiosas e valores próprios, geralmente tomando-os como mensagens divinas ou demoníacas. No ano de 1900, Freud publicou um de seus mais importantes trabalhos: A interpretação do sonho. Nessa obra, ele busca demonstrar que o sonho não é nem um “produto aleatório e sem sentido de um cérebro em condições alteradas de funcionamento”, nem um “mensageiro de recados do além”. O sonho é um fenômeno psicológico extremamente rico e revelador de desejos e temores, ainda que de forma indireta e disfarçada. Enfim, para ele, o conteúdo do sonho tem um sentido. Ao descrever o que chamou de “trabalho do sonho”, Freud afirma que tal trabalho transforma os conteúdos latentes (inconscientes) do sonho original em conteúdos manifestos (conscientes) do sonho lembrado. Isso se dá por meio da condensação (fusão de duas ou mais representações), do deslocamento (passagem da energia de uma representação a outra representação) e da figurabilidade (desejos transformam-se em imagens visuais). Esses três mecanismos servem para disfarçar o desejo reprimido (inconsciente), possibilitando seu acesso à consciência, ainda que com deformações e restrições, pois existe a censura entre as duas instâncias: inconsciente e consciente/préconsciente. Dessa forma, para Freud, o sonho é uma solução de compromisso, o resultado de uma intensa negociação entre o inconsciente (que visa expulsar, forçar os desejos para a consciência) e o consciente (que visa impedir que tais desejos inconscientes surjam). ALTERAÇÕES PATOLÓGICAS DA CONSCIÊNCIA A consciência pode se alterar tanto por processos fisiológicos, normais, como por Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) processos patológicos. A seguir, são apresentados os quadros patológicos de alteração da consciência. Alterações patológicas quantitativas da consciência: rebaixamento do nível de consciência. Em diversos quadros neurológicos e psicopatológicos, o nível de consciência diminui de forma progressiva, desde o estado normal, vígil, desperto, até o estado de coma profundo, no qual não há qualquer resquício de atividade consciente. Os diversos graus de rebaixamento da consciência (Ramos Jr., 1986) são: 1) obnubilação, 2) torpor, 3) sopor e 4) coma. Examinemo-los com mais detalhes. • 1º grau, obnubilação: turvação da consciência ou sonolência patológica leve. Trata-se do rebaixamento da consciência em grau leve a moderado. À inspeção inicial, o paciente pode já estar claramente sonolento ou parecer desperto, o que pode dificultar o diagnóstico desse estado. De qualquer forma, há sempre diminuição do grau de clareza do sensório, com lentidão da compreensão e dificuldade de concentração. Nota-se que o indivíduo tem dificuldade para integrar as informações sensoriais oriundas do ambiente. Assim, mesmo não se notando a sonolência do paciente de forma evidente, observa-se, nos quadros de obnubilação, que a pessoa se encontra um tanto perplexa, com a compreensão dificultada, podendo o pensamento que expressa revelar confusão mental. No geral, o indivíduo diminui a atenção para as solicitações externas, dirigindo-se para a sonolência. Já se pode observar alguma lentificação do traçado eletrencefalográfico. • 2º grau, torpor: é um grau mais acentuado de rebaixamento da consciência. O paciente está evidentemente sonolento; responde ao ser chamado apenas de forma enérgica e, depois, volta ao estado de sonolência evidente. A resposta aos estímulos externos, quando solicitado energicamente, é mais curta do que nos estados de obnubilação, mas menos frustra que no estado de sopor. Na obnubilação e no torpor, o paciente pode ainda apresentar traços de crítica e pudor, tentando cobrir as partes íntimas de seu corpo com o cobertor, quando em uma enfermaria ou emergência de hospital. No sopor e no coma, tal pudor e crítica da situação não existe mais, estando o indivíduo totalmente indiferente à exposição de partes íntimas (o que deve ser evitado sempre que possível, em respeito à pessoa). Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) • 3º grau, sopor: é um estado de marcante e profunda turvação da consciência, de sonolência intensa, da qual o indivíduo pode ser despertado apenas por um tempo muito curto, por estímulos muito enérgicos, do nível de uma dor intensa. Nesse momento, o paciente pode revelar fácies de dor e ter alguma gesticulação de defesa. Retorna, então, muito rapidamente, em segundos, à quase ausência de atividade consciente. Portanto, aqui, ele sempre se mostra intensamente sonolento, quase em coma. Embora ainda possa apresentar reações de defesa muito esporádicas, é incapaz de qualquer ação espontânea. A psicomotricidade encontra-se mais inibida do que nos estados de obnubilação e de torpor. O traçado eletrencefalográfico acha-se global e marcadamente lentificado, podendo surgir as ondas mais lentas, do tipo delta e teta. • 4º grau, coma: é a perda completa da consciência, o grau mais profundo de rebaixamento de seu nível. No estado de coma, não é possível qualquer atividade voluntária consciente. Além da ausência de qualquer indício de consciência, os seguintes sinais neurológicos podem ser verificados: movimentos oculares errantes com desvios lentos e aleatórios, nistagmo, transtornos do olhar conjugado, anormalidades dos reflexos oculocefálicos (cabeça de boneca) e oculovestibular (calórico) e ausência do reflexo de acomodação. Além disso, dependendo da topografia e da natureza da lesão cerebral, podem ser observadas rigidez de decorticação ou de decerebração, anormalidades difusas ou focais do EEG com lentificações importantes e presença de ondas patológicas. Os graus de intensidade de coma são classificados de I a IV: I, semicoma; II, coma superficial; III, coma profundo; e IV, coma dépassé. Perdas abruptas da consciência Vários fatores e condições médicas e/ou psicopatológicas podem produzir a perda abrupta da consciência. Tal perda pode ser causada por fatores emocionais, neurofuncionais ou orgânicos de diversas naturezas. Podem também ser rapidamente reversíveis ou irreversíveis, indicando quadros orgânicos mais graves. As perdas abruptas e transitórias (duram geralmente segundos a minutos) da consciência recebem várias denominações médicas e populares: lipotimia, síncope, desmaios e perdas da consciência de outra natureza(Ramos Jr., 1986; Bickley; Szilagyi, 2013.). A lipotimia se caracteriza por perda parcial e rápida da consciência (dura apenas Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) segundos), geralmente com visão borrada, palidez da face, suor frio, vertigens e perda parcial e momentânea do tônus muscular dos membros, com ou sem queda do corpo ao chão. A pessoa tem a sensação desagradável de que vai desmaiar. A lipotimia é rápida e completamente reversível. Às vezes, utilizase o termo “lipotimia” para descrever a fase inicial da síncope. A síncope designa um colapso bem súbito, com perda abrupta e completa da consciência, perda total do tônus muscular, com queda completa ao chão. O mecanismo básico é a instalação rápida de irrigação cerebral insuficiente por causas diversas. A síncope pode ou não ser reversível, dependendo dos fatores causais envolvidos. O termo “desmaio” é uma designação não médica, da linguagem comum, que geralmente significa uma perda abrupta da consciência. Corresponde de forma genérica aos termos médicos “síncope” ou “lipotimia”. Síndromes psicopatológicas associadas ao rebaixamento prolongado do nível de consciência Delirium é o termo atual mais adequado para designar a maior parte das síndromes confusionais agudas (o termo “paciente confuso”, muito usado em serviços de emergência e enfermarias médicas, refere-se a tais síndromes confusionais, ou seja, ao delirium). Cabe ressaltar que esses termos (síndrome confusional e paciente confuso) dão ênfase ao aspecto confuso do pensamento e do discurso do paciente (fala incongruente, com conteúdos absurdos e sem articulação lógica), um dos traços do delirium, mas não necessariamente o mais importante ou mais frequente. Daí a opção preferencial de se utilizar o termo delirium em vez de síndrome confusional. O delirium é uma das síndromes mais frequentes na prática clínica diária, principalmente em pacientes com doenças somáticas (emergências e enfermarias médicas e geriátricas) e idade avançada (Trzepacz; Meagher; Wise, 2006). O delirium diz respeito, portanto, aos vários quadros com rebaixamento leve a moderado do nível de consciência, acompanhados de desorientação temporoespacial, dificuldade de concentração, perplexidade, ansiedade em graus variáveis, agitação ou lentificação psicomotora, discurso ilógico e confuso e ilusões e/ou alucinações, quase sempre visuais. Trata-se de um quadro que oscila muito ao longo do dia. Geralmente, o paciente está com o sensório claro pela manhã, e, no início da tarde, o nível de consciência “afunda”, piorando no fim da tarde e à noite. Podem surgir, então, ilusões e alucinações visuais, bem como intensificar-se a desorientação e a confusão do pensamento e do discurso, com a possibilidade de haver também agitação psicomotora e sudorese. Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) Não se deve confundir delirium (quadro sindrômico causado por alteração do nível de consciência, em pacientes com distúrbios cerebrais agudos) com o termo “delírio” (ideia delirante; alteração do juízo de realidade encontrada principalmente em psicóticos esquizofrênicos ou em outras psicoses). Outras síndromes com rebaixamento prolongado do nível de consciência próximas ao delirium Estado onírico ou oniroide (état oniroide, dream-like state, oneiroider Zustand) é o termo da psicopatologia clássica (Mayer- Gross, 1924) para designar uma alteração da consciência na qual, paralelamente à turvação da consciência, o indivíduo entra em um estado semelhante a um sonho muito vívido (Peters, 1984). Em geral, predomina a atividade alucinatória visual intensa com caráter cênico e fantástico. A pessoa vê cenas complexas, ricas em detalhes, às vezes terríficas, com lutas, matanças, fogo, assaltos, sangue, etc. Há carga emocional marcante na experiência onírica, com angústia, terror ou pavor. O doente manifesta esse estado onírico angustioso gritando, movimentandose, debatendo-se na cama e apresentando, às vezes, sudorese profusa. Há geralmente amnésia consecutiva ao período em que o doente permaneceu nesse estado onírico. Tal estado ocorre com mais frequência devido a psicoses tóxicas, síndromes de abstinência de substâncias (com maior frequência no delirium tremens) e quadros febris tóxico-infecciosos. Alguns autores descrevem estados oníricos em pacientes com psicose (esquizofrenia, mania e depressão psicóticas), mas, nessa acepção, o termo não tem sido mais utilizado. Na prática, o estado onírico ou estado tipo-sonho tem sido cada vez mais absorvido pela categoria ampla do delirium. O termo amência era utilizado na psiquiatria clássica (Meynert, 1890) para designar quadros mais ou menos intensos de confusão mental por rebaixamento do nível de consciência, com excitação psicomotora, marcada incoerência do pensamento, perplexidade e sintomas alucinatórios com aspecto de sonho (oniroide) (Peters, 1984). Assim como para o estado onírico, atualmente se tende a designar a amência com o termo delirium. Alterações qualitativas da consciência Além dos diversos estados de redução global do nível de consciência, a observação psicopatológica registra uma série de estados alterados da consciência, nos quais se tem mudança parcial ou focal do campo da consciência. Uma parte do campo da consciência está preservada, normal, e outra, alterada. De modo geral, há quase sempre, nessas alterações qualitativas, algum grau de rebaixamento (mesmo que mínimo) do nível de consciência (Sims, 1995). Trata-se de uma área muito controversa da semiologia psiquiátrica e da psicopatologia. Os neurologistas tendem a denominar tais alterações de distúrbios focais ou do conteúdo da consciência, Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) enquanto os psiquiatras as definem como alterações qualitativas da consciência. Têm-se, então, as seguintes alterações qualitativas da consciência: • Estados crepusculares (état crepusculaire, twilight state, Dämmerzustand). Consistem em um estado patológico transitório no qual uma obnubilação leve da consciência (mais ou menos perceptível) é acompanhada de relativa conservação da atividade motora coordenada (Porot, 1967). Nos estados crepusculares, há, portanto, estreitamento transitório do campo da consciência e afunilamento da consciência (que se restringe a um círculo de ideias, sentimentos ou representações de importância particular para o sujeito acometido), com a conservação de uma atividade psicomotora global mais ou menos coordenada, permitindo a ocorrência dos chamados atos automáticos (Peters, 1984). O estado “crepuscular” caracteriza-se por surgir e desaparecer de forma abrupta e ter duração variável, de poucos minutos ou horas a algumas semanas (Sims, 1995). Durante esse estado, ocorrem, com certa frequência, atos explosivos violentos e episódios de descontrole emocional (podendo haver implicações legais de interesse à psicologia e à psiquiatria forense). Geralmente ocorre amnésia lacunar para o episódio inteiro, podendo o indivíduo se lembrar de alguns fragmentos isolados. Os estados crepusculares foram descritos classicamente como associados à epilepsia (relacionados à turvação da consciência após uma crise ou a alterações préictais ou ictais), mas também podem ocorrer em intoxicações por álcool ou outras substâncias, após traumatismo craniano, em quadros dissociativos histéricos agudos e, eventualmente, após choques emocionais intensos (Peters, 1984). • Estado segundo. Estado patológico transitório semelhante ao estado crepuscular, caracterizado por uma atividade psicomotora coordenada, a qual, entretanto, permanece estranha à personalidade do sujeito acometido e não se integra a ela. Com certa frequência, alguns autores utilizam os termos “estado segundo” e “estado crepuscular” de forma indistinta ou intercambiável. Em geral, atribui-se, ao estado segundo, uma naturezamais psicogenética, sendo produzido por fatores emocionais (choques emocionais intensos). Já ao estado crepuscular, são conferidas causas mais frequentemente orgânicas (confusão pós-ictal, intoxicações, traumatismo craniano, etc.). Os atos Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) cometidos durante o estado segundo são geralmente incongruentes, extravagantes, em contradição com a educação, as opiniões ou a conduta habitual do sujeito acometido, mas quase nunca são realmente graves ou perigosos, como no caso dos estados crepusculares (Porot, 1967). Do ponto de vista do mecanismo produtor da alteração, o estado segundo se aproxima mais da dissociação da consciência do que do estado crepuscular. • Dissociação da consciência. Tal expressão designa a fragmentação ou a divisão do campo da consciência, ocorrendo perda da unidade psíquica comum do ser humano. O termo “dissociação” pode cobrir não apenas a consciência como também a memória, a percepção, a identidade e o controle motor (Krause-Utz et al., 2017). Neste livro, entretanto, optamos por utilizar a noção de dissociação centrando nas alterações da consciência. A dissociação da consciência ocorre com mais frequência nos quadros anteriormente chamados histéricos (crises histéricas de tipo dissociativo). Nessas situações, observa-se dissociação da consciência, um estado semelhante ao sonho (ganhando o caráter de estado onírico), em geral desencadeada por acontecimentos psicologicamente significativos (conscientes ou inconscientes) que produzem grande ansiedade para o paciente. Essas crises duram de minutos a horas, raramente permanecendo por dias. Alguns pacientes têm crises ou estados dissociativos agudos que se iniciam com queda ao chão, abalos musculares e movimentação do corpo semelhante à crise convulsiva (da epilepsia). Nesses casos, designa-se tal crise como crise pseudoepiléptica (em relação à crise epiléptica verdadeira). A dissociação da consciência pode ocorrer também em quadros de ansiedade intensa, independentemente de se tratar de paciente com personalidade histriônica ou traços histéricos, sendo a dissociação, então, vista como uma estratégia defensiva inconsciente (i.e., sem a deliberação voluntária plena) para lidar com a ansiedade muito intensa; o indivíduo desliga da realidade para parar de sofrer. Quadros dissociativos são também frequentes em pessoas com o diagnóstico de transtorno da personalidade borderline. • Transe. Estado de alteração qualitativa da consciência que se assemelha a sonhar acordado, Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) diferindo disso, porém, pela presença em geral de atividade motora automática e estereotipada acompanhada de suspensão parcial dos movimentos voluntários. O estado de transe ocorre sobretudo em contextos religiosos e culturais (espiritismo kardecista, religiões afro-brasileiras e religiões evangélicas pentecostais e neopentecostais). O transe dito extático pode ser induzido por treinamento místico-religioso, ocorrendo geralmente a sensação de fusão do eu com o universo. Não se deve confundir o transe religioso, culturalmente contextualizado e sancionado, com o chamado transe histérico, que é um estado dissociativo da consciência relacionado frequentemente a conflitos interpessoais e alterações psicopatológicas. Os estados de transe e possessão culturalmente contextualizados e sancionados são fenômenos muito difundidos nas várias culturas em todo o mundo, vistos, na atualidade, como um recurso religioso e sociocultural que permite às pessoas, sobretudo às mulheres, lidar com as dificuldades da vida por meio de estratégias religiosas socialmente legitimadas. • Estado hipnótico. É um estado de consciência reduzida e estreitada e de atenção concentrada, que pode ser induzido por outra pessoa (hipnotizador). Trata-se de um estado de consciência semelhante ao transe, no qual a sugestionabilidade do indivíduo está aumentada, e sua atenção, concentrada no hipnotizador. Nesse estado, podem ser lembradas cenas e fatos esquecidos e podem ser induzidos fenômenos como anestesia, paralisias, rigidez muscular, alterações vasomotoras. Não há nada de místico ou paranormal na hipnose. É apenas uma técnica refinada de concentração da atenção e de alteração induzida do estado da consciência. Outras alterações da consciência Perplexidade patológica (perplexidade como experiência psicopatológica) A experiência mental de perplexidade difusa e intensa diante do ambiente, relatada por alguns psicopatólogos (p. ex., Carl Wernicke, Gustav E. Störring, Louis A. Sass, Josef Parnas), é com frequência observada em pacientes com quadros psicopatológicos agudos e graves, sobretudo em fases agudas das psicoses. É discutível se o sintoma perplexidade patológica deve ser apresentada neste capítulo de consciência ou se ficaria melhor nos capítulos de vivências do tempo e do espaço ou no de afetividade (Humpston; Broome, 2016). Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) Perplexidade, no contexto psicopatológico, é definida como a perda de uma sensação de naturalidade na experiência comum e óbvia do dia a dia, perda de uma certa autoevidência do ambiente e seus objetos. Na experiência comum, normal, sento-me no sofá de minha casa, olho a mesa, os quadros, as janelas; tudo é natural, de uma realidade autoevidente. Na perplexidade como experiência psicopatológica, a pessoa sente uma estranheza inquietante, uma sensação de incapacidade de captar o significado comum das coisas, pessoas e acontecimentos. O psicopatólogo alemão Gustav E. Störring (1903-2000), por sua vez, define perplexidade (como experiência psicopatológica) como a consciência opressiva que o indivíduo sente relacionada a sua incapacidade para perceber e compreender sua situação, sua experiência presente, interna e externa (Störring, 1939). Tal consciência de estranhamento é difícil mesmo de ser comunicada pela pessoa acometida. Notamos, ao examinar o paciente com perplexidade patológica, sua atitude de estranhar o ambiente de forma radical. O olhar e a face perplexa, com certa angústia e incerteza, transmitem para nós essa experiência de não captar com naturalidade o ambiente. A perplexidade psicopatológica é experimentada geralmente em quadros psicóticos agudos, sobretudo nos primeiros dias do episódio, podendo ocorrer em quadros psicóticos esquizofrênicos ou em transtornos do humor (depressão ou mania) com sintomas psicóticos. Nas psicoses breves (quadros psicóticos mais reativos e agudos), também se observa com considerável frequência tal experiência de perplexidade como experiência psicopatológica. Experiência de quase-morte (near death experience – NDE) Um estado especial de consciência é verificado em situações críticas de ameaça grave à vida, como parada cardíaca, hipoxia grave, isquemias, acidente automobilístico grave, afogamento, quedas com trauma craniano, entre outras, quando alguns sobreviventes afirmam ter vivenciado as chamadas experiências de quase-morte (EQMs). São experiências muito rápidas (de segundos a minutos) em que um estado de consciência particular é vivenciado e registrado por essas pessoas. O genial geólogo suíço Albert von St. Gallen Heim (1849-1937) teve uma marcante EQM ao sofrer grave queda quando escalava os Alpes suíços, em 1872. Ele passou, então, a coletar relatos de experiências semelhantes e as descreveu no Clube Alpino Suíço, em 1892. Em seu relato, afirmou a sensação de paz e tranquilidade imensa e deslocamento muito rápido ao longo de um túnel escuro que, ao fim, tinha uma luz particularmente brilhante. Disse, ainda, que tal “viagem” se acompanhara da passagem rapidíssima de um “retrospecto da vida” e da sensação da presença de um espírito pleno de amor (Vignat, 1996; Nahm, 2016). Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) Estudos de revisão (Nelson et al., 2006)têm mostrado que as características mais frequentes desses estados (EQM) são as seguintes (em 55 casos revisados a partir da literatura científica internacional): sensação de paz (87%), de estar fora do próprio corpo (80%), de estar rodeado por uma luz intensa (78%), de estar em “outro mundo” (75%), sensações de “união cósmica” (67%), de ter atingido um “ponto de não retorno” (67%), de alegria intensa (64%), de “compreensão imediata” (60%) e de contato com uma “entidade mística” (55%). As EQMs parecem ocorrer em muitas culturas, com variações nos seus conteúdos. Nos Estados Unidos, aparentemente, ocorrem em 6 a 12% das pessoas que sobreviveram a uma parada cardíaca, e, na Europa, 6% de uma amostra de 14 mil pessoas da população em geral relatou já ter experienciado EQM. Em estudo recente, Nelson e colaboradores (2006) buscaram demonstrar que a EQM seria a consequência de uma invasão maciça de atividade cerebral do tipo sono REM nas pessoas enquanto passavam por tais experiências. Entretanto, há também consistentes hipóteses socioculturais e históricas para tal experiência (Kellehear, 1993). 3) Detalhar os sistemas neuro- anatômicos que mantém o ciclo sono- vigília ao longo de uma noite; O sono e os sonhos são misteriosos, considerados até mesmo “místicos” para algumas pessoas e são um dos assuntos favoritos da arte, da literatura, da filosofia e da ciência. O sono é um mestre poderoso. A cada noite, abandonamos nossos companheiros, nosso trabalho e nosso divertimento e entramos no retiro do sono. Temos somente controle limitado sobre a decisão; podemos adiar o sono por algum tempo, mas, eventualmente, ele nos subjuga. Passamos aproximadamente um terço de nossas vidas dormindo e, a quarta parte desse tempo, sonhando ativamente. O sono pode ser universal entre os vertebrados superiores e talvez entre todos os animais. As pesquisas sugerem que mesmo a mosca-das-frutas, a Drosophila, dorme. A privação prolongada do sono é devastadora para um funcionamento adequado do organismo, pelo menos temporariamente, e, em alguns animais (como ratos e baratas, embora provavelmente não ocorra em seres humanos), essa privação pode até mesmo causar a morte. O sono é essencial para nossas vidas, quase tão importante quanto comer e respirar. Contudo, por que nós dormimos? Para qual propósito serve o sono? Apesar de muitos anos de pesquisa, persiste a piada de que a única coisa da qual temos certeza é de que o sono vence a sonolência. Entretanto, uma das coisas maravilhosas sobre a ciência é que a falta de consenso inspira um Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) florescimento de hipóteses, e a pesquisa acerca do sono não é uma exceção. Apesar disso, podemos descrever o que não conseguimos explicar, e o sono tem sido esplendidamente estudado. Iniciamos com uma definição: o sono é um estado facilmente reversível de reduzida responsividade ao, e interação com o, ambiente. (O coma e a anestesia geral não são facilmente reversíveis e não se qualificam como sono.) Nas seções que se seguem, discutiremos a fenomenologia e os mecanismos neurais do sono e dos sonhos. Os Estados Funcionais do Encéfalo Durante um dia normal, você experimenta dois tipos muito diferentes e notáveis de comportamento: a vigília e o sono. Óbvio é que seu sono também tem distintas fases, ou estados. Várias vezes durante uma noite, você entra em um estado chamado de sono de movimento rápido dos olhos, ou sono REM, quando seu EEG se parece mais com o estado acordado do que com o estado adormecido, seu corpo (exceto para os músculos dos olhos e os respiratórios) está imobilizado e você invoca ilusões detalhadas e vívidas, que chamamos de sonhos. O resto do tempo você gasta em um estado chamado de sono não REM, no qual o encéfalo geralmente não gera sonhos complexos. (O sono não REM é também chamado às vezes de sono de ondas lentas, pois o EEG é dominado por ritmos amplos e lentos.) Esses estados comportamentais fundamentais – vigília, sono não REM e sono REM – são produzidos por três estados distintos da função encefálica (Tabela 19.1). Cada estado também está acompanhado por grandes mudanças na função corporal. O sono não REM parece ser um período de repouso. A tensão muscular está reduzida em todo o corpo, e o movimento é mínimo. O corpo é capaz de movimentos durante o sono não REM, mas só o faz raramente, sob o comando encefálico, geralmente para ajustar a posição corporal. A temperatura e o consumo de energia do corpo estão reduzidos. Devido a um aumento na atividade da divisão parassimpática do SNV, as frequências cardíaca e respiratória e a função renal diminuem e os processos digestórios são acelerados. Durante o sono não REM, o encéfalo também parece repousar. A sua taxa de uso de energia e as frequências de disparo de seus neurônios, em geral, estão no nível mais baixo de todo o dia. Os ritmos lentos e de grande amplitude do EEG indicam que os neurônios do córtex estão oscilando em sincronia relativamente alta, e experimentos sugerem que a maioria dos sinais sensoriais aferentes não pode alcançar o córtex. Embora não exista uma maneira de se saber com certeza o que as pessoas estão pensando quando elas estão dormindo, os estudos indicam que os processos mentais também atingem seu nível diário mais baixo durante o estágio Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) não REM. Quando acordadas, as pessoas frequentemente não lembram de nada, ou lembram apenas de pensamentos plausíveis breves, fragmentados, com poucas imagens visuais. Durante o sono não REM, são raros os sonhos detalhados, irracionais e elaborados, embora não estejam completamente ausentes. William Dement, da Universidade Stanford, um pioneiro na pesquisa do sono, caracteriza o sono não REM como um encéfalo indolente em um corpo em movimento. Em contrapartida, Dement chamou o sono REM de um encéfalo ativo e alucinando em um corpo paralisado. O sono REM é o sono em que se sonha. Embora os períodos REM sejam responsáveis somente por uma pequena parte de nosso sono, é a parte acerca da qual muitos pesquisadores são entusiasmados (e esse é o estado que mais excita o encéfalo), provavelmente porque os sonhos são tão intrigantes e enigmáticos. Se você acordar alguém durante o sono REM, como Dement, Eugene Aserinsky e Nathaniel Kleitman fizeram em meados da década de 1950, essa pessoa provavelmente relatará episódios visualmente detalhados, animados, frequentemente com histórias bizarras – o tipo de sonhos acerca dos quais gostamos de falar e que tentamos interpretar. A fisiologia do sono REM também é especial. O EEG parece quase indistinguível daquele de um encéfalo ativo, em vigília, com oscilações rápidas e de baixa voltagem. Essa é a razão pela qual o sono REM é, às vezes, chamado de sono paradoxal. De fato, o consumo de oxigênio pelo encéfalo (uma medida de sua utilização de energia) é mais elevado no sono REM do que quando estamos acordados e concentrados em problemas matemáticos difíceis. A paralisia que ocorre durante o sono REM é causada por uma perda quase total do tônus muscular esquelético, ou atonia. A maior parte do corpo é, na verdade, incapaz de se mover. Os músculos respiratórios continuam a funcionar, mas apenas tenuamente. Os músculos que controlam o movimento dos olhos e os pequenos músculos do ouvido interno são exceções; eles estão nitidamente ativos. Com as pálpebras fechadas, os olhos ocasionalmente se movem com rapidez de um lado para o outro. Estas rajadas de movimentos oculares rápidos são os melhores indicadores de sonhos vívidos, e pelo menos 90% das pessoas que são acordadas durante ou após essa fase relatam sonhos. Os sistemas fisiológicos de controle são dominados pela atividade simpática durante o sono REM. Inexplicavelmente, o sistema de controle da temperatura corporal simplesmente se desliga, e a temperaturainterna começa a ser direcionada para níveis mais baixos. As frequências cardíaca e respiratória aumentam, mas tornam-se irregulares. Em pessoas saudáveis, o clitóris ou o pênis ficam preenchidos por sangue e eretos durante o sono REM, embora isso geralmente não tenha qualquer relação com o conteúdo sexual Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) dos sonhos. De uma maneira geral, durante o sono REM, o encéfalo parece estar fazendo qualquer coisa, exceto repousar. O Ciclo do Sono Mesmo uma boa noite de sono não é uma jornada estável e ininterrupta. Normalmente, ela é iniciada com um período de sono não REM. A Figura 19.15 mostra que um sono típico de uma noite inteira inclui ciclos regulares de movimentos dos olhos, funções fisiológicas e ereções penianas em períodos não REM e REM. É óbvio que o sono leva o encéfalo por uma corrida repetitiva de atividade em uma montanha russa e, às vezes, essa corrida é bastante alucinante (Quadro 19.2). Aproximadamente 75% do tempo total do sono são passados no sono não REM, e 25%, no sono REM, com ciclos periódicos entre esses estágios durante toda a noite. O sono não REM está geralmente dividido em quatro estágios distintos. Durante uma noite normal, passamos ao longo dos estágios do não REM, depois pelo REM e então de volta aos estágios não REM, repetindo o ciclo aproximadamente a cada 90 minutos. Esses ciclos são exemplos de ritmos ultradianos, os quais têm períodos mais rápidos do que os ritmos circadianos. Os ritmos do EEG durante os estágios de sono são mostrados na Figura 19.16. Em média, adultos saudáveis tornam-se sonolentos e adormecem, entrando primeiro no estágio 1 do sono não REM. O estágio 1 é um sono de transição, quando os ritmos alfa do EEG da vigília relaxada se tornam menos regulares e se desvanecem e os olhos fazem movimentos circulares lentos. O estágio 1 é fugaz, geralmente durando apenas uns poucos minutos. É também o estágio de sono mais leve, significando que podemos ser facilmente acordados durante essa fase. O estágio 2 é um pouco mais profundo e pode durar de 5 a 15 minutos. As suas características incluem a oscilação ocasional de 8 a 14 Hz do EEG, chamada de fuso do sono, que é gerada por um marca-passo talâmico (ver Figura 19.12). Além disso, uma onda aguda Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) de alta amplitude, chamada de complexo K é observada algumas vezes. Os movimentos oculares quase cessam. Na sequência, segue o estágio 3, e o EEG inicia ritmos delta lentos, de grande amplitude. Há poucos movimentos oculares e corporais. O estágio 4 é o estágio de sono mais profundo, com ritmos do EEG de grande amplitude, de 2 Hz ou menos. Durante o primeiro ciclo de sono, o estágio 4 pode persistir por 20 a 40 minutos. O sono, então, começa a tornar-se mais leve novamente, ascende através do estágio 3 para o estágio 2 por 10 a 15 minutos e subitamente entra em um breve período de sono REM, com seus rápidos ritmos beta e gama do EEG e movimentos oculares agudos e frequentes. À medida que a noite progride, ocorre uma redução geral na duração do sono não REM, particularmente dos estágios 3 e 4, e um aumento dos períodos REM. Metade do sono REM de uma noite ocorre durante o seu último terço, e os ciclos REM mais longos podem durar de 30 a 50 minutos. Ainda assim, parece haver um período refratário obrigatório, de aproximadamente 30 minutos, entre os períodos de REM; em outras palavras, cada período REM é seguido por, pelo menos, 30 minutos de sono não REM antes que o próximo período de sono REM possa iniciar. O que é uma noite de sono normal? Sua mãe deve ter sempre insistido que você necessita de umas “boas 8 horas” de sono por noite. Pesquisas realizadas sugerem que a necessidade normal de sono pode variar amplamente entre os adultos, de aproximadamente 5 a 10 horas por noite. A duração média é de aproximadamente 7,5 horas, e a duração do sono, em aproximadamente 68% dos adultos jovens, está entre 6,5 e 8,5 horas. Os adolescentes, principalmente, podem achar um desafio conseguir dormir o suficiente. Uma pesquisa realizada por Mary Carskadon, na Universidade Brown, sugere que a necessidade de sono não diminui entre a pré-adolescência e os primeiros anos da adolescência, mas que mudanças nos mecanismos que imprimem o ritmo circadiano podem tornar progressivamente difícil para os adolescentes adormecer cedo quando chega a noite. Esse processo frequentemente coincide com a chegada ao ensino médio e com um início das aulas mais cedo, pela manhã. Como resultado, muitos estudantes estão cronicamente privados de sono, uma condição nada saudável. Muito pouco sono pode reduzir o bem-estar físico e emocional e a cognição. Qual é a duração do tempo de sono que é apropriada para você? A melhor medida de um sono bem-sucedido é a qualidade do seu tempo de vigília. Você precisa de certa quantidade de sono para manter um grau razoável de alerta. Muita sonolência durante o dia pode ser mais do que um aborrecimento; pode ser um perigo, caso interfira no ato de dirigir um automóvel, por exemplo. Devido à ampla Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) variação entre os indivíduos, você mesmo deve decidir quanto sono precisa. 4) Descrever os sistemas neuronais e os neurotransmissores que promovem o sono e a vigília, e as características das fases REM e não REM; Mecanismos Neurais do Sono Até a década de 1940, acreditava-se que o sono era um processo passivo: prive o encéfalo de entradas sensoriais e ele cairá no sono. No entanto, quando as aferências sensoriais para o encéfalo de um animal são bloqueadas, o animal continua a ter ciclos de vigília e de sono. Sabemos agora que o sono é um processo ativo, que requer a participação de uma variedade de regiões encefálicas. Como vimos no Capítulo 15, amplas áreas do córtex são, na verdade, controladas por coleções muito pequenas de neurônios, situadas nas profundezas do encéfalo. Essas células atuam como comutadores ou sintonizadores do prosencéfalo, alterando a excitabilidade cortical e controlando a passagem do fluxo de informação sensorial para ele. Os detalhes desses sistemas de controle são complexos e não totalmente compreendidos. Podemos, porém, resumir alguns princípios básicos. 1. Os neurônios mais críticos para o controle do sono e da vigília fazem parte dos sistemas modulatórios difusos de neurotransmissores (ver Capítulo 15, Figuras 15.12 a 15.15). 2. Os neurônios modulatórios do tronco encefálico que usam noradrenalina e serotonina disparam durante a vigília e acentuam o estado acordado; alguns neurônios que usam acetilcolina acentuam eventos críticos do sono REM, e outros neurônios colinérgicos estão ativos no estado de vigília. 3. Os sistemas modulatórios difusos controlam os comportamentos rítmicos do tálamo, os quais, por sua vez, controlam muitos ritmos do EEG do córtex cerebral; os ritmos lentos do tálamo, relacionados ao sono, aparentemente bloqueiam o fluxo da informação sensorial até o córtex. 4. O sono também envolve atividade em ramos descendentes dos sistemas modulatórios difusos, como a inibição dos neurônios motores durante os sonhos. Existem três tipos básicos de evidências para a localização dos mecanismos do sono no encéfalo. Dados obtidos a partir de lesões revelam alterações na função após uma parte do encéfalo ser removida; resultados de experimentos com estimulação identificam mudanças que se seguem à ativação de uma região Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) encefálica, e registros de atividade neural determinam a relação entre tal atividade e os diferentes estados do encéfalo. A Vigília e o Sistema Ativador Reticular Ascendente. As lesões do tronco encefálico de seres humanos podem causar sono e coma, sugerindo que o tronco encefálicopossui neurônios cuja atividade é essencial para nos manter acordados. Nas décadas de 1940 e 1950, o neurofisiologista italiano Giuseppe Moruzzi e colaboradores começaram a caracterizar a neurobiologia do controle, pelo tronco encefálico, da vigília e do estado de alerta. Eles descobriram que lesões nas estruturas da linha média do tronco encefálico causam um estado similar ao sono não REM, mas lesões no tegmento lateral, as quais interrompem as aferências sensoriais ascendentes, não têm esse efeito. Por sua vez, a estimulação elétrica do tegmento na linha média do mesencéfalo, dentro da formação reticular, alterou os ritmos de EEG lentos de sono não REM no córtex, passando para um estado mais alerta, com o EEG similar ao do estado de vigília. Moruzzi chamou essa região pouco definida de sistema ativador reticular ascendente (o SARA – mencionado no Capítulo 15). Essa área está agora muito mais bem definida anatômica e fisiologicamente, e está claro que a estimulação de Moruzzi estava afetando muitos conjuntos diferentes de sistemas moduladores ascendentes. Vários conjuntos de neurônios aumentam suas taxas de disparo em antecipação ao momento de acordar e durante as várias formas de alerta. Eles incluem células do locus coeruleus que contêm noradrenalina, células dos núcleos da rafe que utilizam serotonina, células que usam acetilcolina, do tronco encefálico e do prosencéfalo basal, neurônios do mesencéfalo que usam histamina como neurotransmissor e neurônios do hipotálamo que usam hipocretina (orexina) como neurotransmissor (Figura 19.18). Coletivamente, esses neurônios estabelecem sinapses diretamente em todo o tálamo, no córtex cerebral e em muitas outras regiões do encéfalo. Os efeitos gerais de seus transmissores são a despolarização de neurônios, um aumento de sua excitabilidade e a supressão das formas rítmicas de disparo. Esses efeitos são observados mais claramente em neurônios de retransmissão do tálamo (Figura 19.19). A hipocretina (também chamada de orexina; ver Capítulo 16) é um pequeno neurotransmissor peptídico expresso principalmente por neurônios cujos corpos celulares se situam no hipotálamo lateral. Os axônios dos neurônios que secretam hipocretina (orexina) se projetam amplamente para todo o encéfalo e excitam fortemente células dos sistemas moduladores colinérgico, noradrenérgico, serotoninérgico, dopaminérgico e histaminérgico. Quando esse peptídeo foi descoberto, os pesquisadores acharam que a hipocretina (orexina) estava envolvida Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) especificamente no comportamento alimentar (ver Capítulo 16), porém ela claramente tem um papel mais geral. Esse peptídeo também promove vigília, inibe o sono REM, facilita a atividade de neurônios que acentuam certos tipos de comportamento motor e está envolvido na regulação dos sistemas neuroendócrinos e neurovegetativos. A perda de neurônios contendo hipocretina (orexina) leva a um distúrbio do sono, chamado de narcolepsia (Quadro 19.4). O Ato de Adormecer e o Estado Não REM. Adormecer envolve uma progressão de mudanças ao longo de vários minutos, culminando no estado não REM. O que inicia o sono não REM ainda não está inteiramente esclarecido, embora certos fatores promotores do sono contribuam (como descreveremos a seguir), e há uma redução geral na frequência de disparos da maioria dos neurônios moduladores, no tronco encefálico (aqueles que usam NA, 5-HT e ACh). Embora a maioria das regiões do prosencéfalo basal pareça promover o alerta e a vigília, um subconjunto de seus neurônios colinérgicos aumenta sua frequência de disparos com o início do sono não REM, ficando silencioso durante a vigília. Os estágios iniciais do sono não REM incluem os fusos de sono do EEG, descritos anteriormente, os quais são gerados em parte pela ritmicidade intrínseca dos neurônios talâmicos (ver Figura 19.11). À medida que o sono não REM progride, os fusos desaparecem e são substituídos por ritmos delta lentos (menores do que 4 Hz). Os ritmos delta também podem ser um produto de células talâmicas, ocorrendo quando os seus potenciais de membrana se tornam ainda mais negativos que durante os ritmos de fuso (e muito mais negativos que durante a vigília). A sincronização da atividade durante os ritmos de fuso ou delta deve- se às interconexões neurais dentro do tálamo e entre o tálamo e o córtex. Devido às fortes conexões excitatórias recíprocas entre o tálamo e o córtex, a atividade rítmica em um deles é frequentemente projetada de maneira intensa e ampla sobre o outro. Mecanismos do Sono REM O sono REM é um estado tão diferente do sono não REM que nós esperaríamos algumas distinções neurais claras. Muitas áreas corticais estão tão ativas no sono REM quanto na vigília. Por exemplo, os neurônios do córtex motor disparam rapidamente e geram padrões motores organizados, que tentam comandar o corpo inteiro, mas têm êxito somente com poucos músculos dos olhos, do ouvido interno e com aqueles essenciais para a respiração. Os sonhos elaborados do sono REM certamente requerem o córtex cerebral, o qual, no entanto, não é necessário para a produção do sono REM. O uso de TEP e IRMf para o imageamento do encéfalo humano no sono e na vigília nos deu vislumbres fascinantes dos padrões de atividade que distinguem a Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) vigília do sono REM e não REM. A Figura 19.20a mostra a diferença na atividade encefálica entre o sono REM e a vigília. Algumas áreas, incluindo o córtex visual primário, apresentavam aproximadamente a mesma atividade nos dois estados. Áreas corticais extraestriatais e porções do sistema límbico, porém, estavam significativamente mais ativas durante o sono REM do que durante a vigília. Por outro lado, as regiões dos lobos frontais estavam visivelmente menos ativas durante o sono REM. A Figura 19.20b mostra um contraste da atividade encefálica nos sonos REM e não REM. O córtex visual primário e diversas outras áreas estão significativamente menos ativos durante o sono REM, porém o córtex extraestriatal está mais ativo no sono REM do que no sono não REM. Esses resultados ilustram de modo intrigante o que ocorre quando dormimos. Durante o sono REM, ocorre uma explosão de atividade extraestriatal, presumivelmente durante os momentos em que sonhamos. Contudo, não ocorre um aumento correspondente de atividade no córtex visual primário, sugerindo que a excitação extraestriatal está sendo gerada internamente. O componente emocional dos sonhos poderia originar-se na acentuada ativação límbica. A baixa atividade no lobo frontal sugere que pode não ocorrer a integração ou a interpretação em nível mais elevado da informação visual extraestriatal, deixando- -nos com uma mescla de imagens visuais não interpretadas. O controle do sono REM, assim como de outros estados funcionais encefálicos, deriva de sistemas modulatórios difusos na porção central do tronco encefálico, principalmente na ponte. As frequências de disparo dos dois principais sistemas do tronco encefálico superior, o locus coeruleus e os núcleos da rafe, diminuem para um nível mínimo antes do início do sono REM (Figura 19.21). Ocorre, contudo, um nítido e concomitante aumento nas frequências de disparos dos neurônios pontinos que contêm ACh, e algumas evidências sugerem que neurônios colinérgicos induzem o sono REM. Provavelmente é a ação da ACh durante o sono REM que determina que o tálamo e o córtex se comportem de modo semelhante ao do estado de vigília. Por que nós não “encenamos” nossos sonhos movendo nossos corpos? Os mesmos sistemas centrais do tronco encefálico que controlam os processos do sono no prosencéfalo também inibem ativamente nossos neurônios motores espinhais, impedindo que a atividade motora descendente se expresse como movimento real. Esse é claramente um mecanismo adaptativo,protegendo-nos de nós próprios. Em casos raros, as pessoas, geralmente homens de idade avançada, parecem encenar os seus sonhos; essas pessoas possuem uma condição um tanto perigosa, conhecida como transtorno de comportamento do sono REM. Essas pessoas sofrem repetidos ferimentos, e até mesmo seus cônjuges têm sido vítimas de seus comportamentos violentos Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) noturnos. Um homem sonhou que estava em um jogo de futebol americano e agarrou a cômoda de seu quarto. Outro imaginou que estava defendendo a sua mulher de um ataque, quando, na verdade, estava atacando-a em sua cama. A base para esse distúrbio do sono REM parece ser uma perturbação nas funções dos sistemas do tronco encefálico que normalmente medeiam a atonia do REM. Lesões experimentais em certas partes da ponte podem causar uma condição similar em gatos. Durante os períodos REM, eles parecem caçar camundongos imaginários ou investigar invasores invisíveis. Distúrbios dos mecanismos de controle do REM, causados por uma deficiência de hipocretina (orexina), também contribuem para os problemas de indivíduos com narcolepsia (ver Quadro 19.4). Fatores Promotores do Sono. Os pesquisadores do sono têm procurado intensamente por um agente químico no sangue ou no líquido cerebrospinal (LCS) que estimule, ou até mesmo cause, o sono. Muitas substâncias promotoras do sono foram identificadas em animais privados de sono. Descreveremos algumas das principais. Uma substância-chave entre elas é a adenosina. A adenosina é utilizada por todas as células para construir algumas das moléculas mais básicas para a vida, incluindo o DNA, o RNA e o trifosfato de adenosina (ATP). A adenosina é também liberada por alguns neurônios e pela glia e atua como um neuromodulador em sinapses em todo o encéfalo. É uma substância que pode ter apelo para os milhões que bebem café, chá e refrigerantes à base de cola. Desde os tempos antigos, antagonistas dos receptores de adenosina, como cafeína e teofilina, têm sido usados para manter as pessoas acordadas. Por outro lado, a administração de adenosina ou de seus agonistas aumenta o sono. Os níveis extracelulares de adenosina que ocorrem naturalmente no encéfalo estão mais altos durante a vigília do que durante o sono. Os níveis aumentam progressivamente durante períodos prolongados de vigília e de privação de sono, e diminuem gradativamente durante o sono. Alterações relacionadas à vigília nos níveis de adenosina não ocorrem em todo o encéfalo, mas apenas em certas regiões relacionadas ao sono. Essas duas propriedades da adenosina – seus efeitos promotores do sono e a relação entre seus níveis e a necessidade de sono – sugerem fortemente que ela seja um importante fator promotor do sono. Como a adenosina poderia promover o sono? A adenosina tem um efeito inibitório sobre os sistemas modulatórios difusos de ACh, NA e 5-HT, os quais tendem a promover a vigília. Isso sugere que o sono pode ser o resultado de uma reação em cadeia de moléculas. A atividade neural no encéfalo acordado aumenta os níveis de adenosina, aumentando, assim, a inibição dos neurônios nos sistemas moduladores associados à vigília. O aumento da supressão dos sistemas que modulam a vigília aumenta a probabilidade de o encéfalo entrar em atividade sincrônica de Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) ondas lentas, característica do sono não REM. Após o sono iniciar, os níveis de adenosina lentamente caem, e a atividade nos sistemas moduladores gradualmente aumenta, até acordarmos e iniciarmos um novo ciclo. Outro importante fator promotor do sono é o óxido nítrico (NO). Lembre- -se que o NO é uma pequena molécula, móvel e gasosa, que pode se difundir facilmente através de membranas e serve como mensageiro retrógrado (da pós- -sinapse para a pré-sinapse) entre certos neurônios (ver Capítulo 6). Os neurônios colinérgicos do tronco encefálico capazes de promover a vigília expressam níveis especialmente altos da enzima que sintetiza NO. Os níveis de NO no encéfalo atingem seu ponto mais alto durante a vigília e aumentam rapidamente com a privação de sono. Como o NO promove o sono? Os estudos têm mostrado que o NO dispara a liberação de adenosina. Como vimos, a adenosina promove o sono não REM, suprimindo a atividade de neurônios que ajudam a manter a vigília. A sonolência é uma das consequências mais comuns de doenças infecciosas, como o resfriado comum e a gripe. Há elos diretos entre a resposta imune à infecção e a regulação do sono. Na década de 1970, o fisiologista John Pappenheimer, da Universidade Harvard, identificou um dipeptídeo muramil no LCS de cabras privadas de sono, que facilitava a manifestação do sono não REM. Peptídeos muramil são geralmente produzidos somente pelas paredes celulares de bactérias, e não por células encefálicas, e eles também podem causar febre e estimular as células imunes do sangue. Não está muito claro como esses peptídeos surgem no LCS, mas podem ter sido sintetizados pelas bactérias nos intestinos. Pesquisas mais recentes têm implicado diversos peptídeos sinalizadores, chamados de citocinas, que estão envolvidos no sistema imune, na regulação do sono. Um deles é a interleucina 1, sintetizada na glia e por macrófagos, células encontradas em todo o corpo que monitoram material estranho ao organismo. Como a adenosina e o NO, os níveis de interleucina 1 aumentam durante a vigília e, em seres humanos, esses níveis atingem seu pico logo antes do início do sono. A interleucina 1 promove o sono não REM, mesmo quando o sistema imune não foi ativado. Quando administrada a seres humanos, ela induz fadiga e sonolência. A interleucina 1 também estimula o sistema imune. Outra substância endógena promotora do sono é a melatonina, um hormônio secretado pelo corpo pineal, uma glândula do tamanho de uma ervilha (ver apêndice do Capítulo 7). A melatonina é um derivado do aminoácido triptofano. Ela foi chamada de o “Drácula dos hormônios”, pois é liberada apenas quando o ambiente escurece – normalmente à noite – e sua liberação é inibida pela luz. Em seres humanos, os níveis de melatonina tendem a aumentar aproximadamente no momento em que nos tornamos Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) sonolentos, no início da noite, apresentando um pico nas primeiras horas da manhã e caindo para os níveis basais quando acordamos. Evidências sugerem que a melatonina ajude a iniciar e manter o sono, mas seu papel preciso nos ciclos naturais de sono-vigília não está bem esclarecido. Nos últimos anos, a melatonina tornou-se popular como uma droga indutora CAPÍTULO 19 Os Ritmos do Encéfalo e o Sono 673 do sono. Embora tenha sido algo promissora para o tratamento dos sintomas do efeito dos voos transmeridianos e da insônia que afeta alguns adultos mais idosos, o efeito geral da melatonina como indutora do sono permanece em debate. Expressão Gênica Durante o Sono e a Vigília Pesquisas sobre a função neural do sono têm se beneficiado de estudos em vários níveis de análise, incluindo o comportamento relacionado ao sono, a fisiologia do encéfalo e a ação dos sistemas modulatórios difusos. Métodos da neurobiologia molecular têm contribuí do para a descoberta de alguns fatos interessantes. Ainda que as peças não se encaixem todas completamente, está claro que os estados comportamentais do sono e da vigília são diferentes mesmo no nível molecular. No macaco do gênero Macaca, por exemplo, a maioria das áreas do córtex cerebral mostra taxas mais elevadas de síntese proteica no sono profundo do que no sono leve. Em ratos, os níveis de monofosfato de adenosina cíclico (AMPc) estão mais baixos em várias áreas encefálicas durante o sono, quando comparados à vigília. Estudos têm demonstrado que o sono e a vigília estão associados a diferenças na expressão de certos genes. Chiara Cirelli e GiulioTononi, trabalhando no Instituto de Neurociências, em San Diego, e na Universidade de Wisconsin, examinaram a expressão de milhares de genes em ratos que estavam acordados ou dormindo. A grande maioria dos genes mostrou o mesmo nível de expressão nos dois estados. Os 0,5% dos genes que mostraram diferentes níveis de expressão podem, entretanto, fornecer sugestões do que ocorre no encéfalo durante o sono. A maioria dos genes com maior expressão no encéfalo desperto se encaixa em um dos três grupos abaixo. Um grupo inclui os chamados genes imediatos precoces, genes que codificam fatores de transcrição, os quais afetam a expressão nos dois estados. Os 0,5% dos genes que mostraram diferentes níveis de expressão podem, entretanto, fornecer sugestões do que ocorre no encéfalo durante o sono. A maioria dos genes com maior expressão no encéfalo desperto se encaixa em um dos três grupos abaixo. Um grupo inclui os chamados genes imediatos precoces, genes que codificam fatores de transcrição, os quais afetam a expressão de outros genes. Alguns desses genes parecem estar relacionados a mudanças na eficiência sináptica. A baixa expressão desses genes durante o sono pode estar associada ao fato de que o aprendizado e a formação da memória Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) estão basicamente ausentes nesse estado. O segundo grupo de genes com maior expressão no encéfalo desperto está relacionado à mitocôndria. É possível que a expressão aumentada desses genes realize a função de satisfazer as demandas metabólicas mais elevadas do encéfalo desperto. O terceiro grupo inclui genes relacionados a respostas ao estresse celular. Um grupo diferente de genes apresentou maior expressão durante o sono, e alguns deles podem contribuir para o aumento na síntese proteica e para os mecanismos de plasticidade sináptica que complementam aqueles mais prevalecentes durante a vigília. Um ponto importante é que as mudanças na expressão gênica relacionadas ao sono foram específicas para o encéfalo, e não houve alterações semelhantes em outros tecidos, como o fígado ou o músculo esquelético. Isso é consistente com a hipótese amplamente mantida de que o sono seja um processo gerado pelo encéfalo, para o benefício do encéfalo. RITMOS CIRCADIANOS Quase todos os animais terrestres coordenam seu comportamento de acordo com ritmos circadianos, os ciclos diários de claridade e escuridão que resultam da rotação da terra. (O termo vem do latim, circa, “aproximadamente”, e dies, “dia.”) Os cronogramas precisos dos ritmos circadianos variam entre as espécies. Alguns animais são ativos durante as horas do dia, outros, somente à noite, e outros principalmente nos períodos de transição do alvorecer e do crepúsculo. A maioria dos processos fisiológicos e bioquímicos do corpo também se eleva e declina com os ritmos diários: temperatura corporal, fluxo sanguíneo, produção de urina, níveis hormonais, crescimento de pelos e taxas metabólicas, todos sofrem flutuações (Figura 19.22). Em seres humanos, existe uma relação aproximadamente inversa entre a propensão para dormir e a temperatura corporal. Quando os ciclos de claro-escuro são removidos do ambiente do animal, os ritmos circadianos mantêm mais ou menos a mesma relação, uma vez que os relógios primários para os ritmos circadianos não são astronômicos (o Sol e a Terra), mas biológicos, ocorrendo no encéfalo. Os relógios do encéfalo, como todos os relógios, são imperfeitos e requerem ajuste ocasional. De vez em quando, você reajusta seu relógio para mantê-lo em sincronia com o resto do mundo (ou ao menos a hora em seu computador é reajustada). Da mesma forma, estímulos externos, como a luz e o escuro, ou alterações diárias de temperatura, auxiliam a ajustar os relógios do encéfalo para mantê-los sincronizados com o início e o final diários da luz do sol. Os ritmos circadianos têm sido bem estudados nos níveis comportamental, celular e molecular. Os relógios do encéfalo são um exemplo interessante do elo entre a atividade de determinados neurônios e o comportamento. Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) 5) Compreender a avaliação dos níveis de consciência (Escala de coma de Glasgow – GCS e RASS); É através dessa escala que é possível mensurar o nível de consciência dos pacientes. E a partir desses dados podemos encaminhar o paciente de maneira mais segura. É preciso marcar “NT” na pontuação caso não seja possível obter resposta do paciente por conta de alguma limitação! Pontuação 5 Passos para utilizar a Escala de Coma de Glasgow corretamente: 1. Verifique: Identifique fatores que podem interferir na capacidade de resposta do paciente. É importante considerar na sua avaliação se ele possui alguma limitação anterior ou devido ao ocorrido que o impede de reagir adequadamente naquele tópico (Ex: paciente surdo não poderá reagir normalmente ao estímulo verbal). 2. Observe: Observe o paciente e fique atento a qualquer comportamento espontâneo dentro dos três componentes da escala. 3. Estimule: Caso o paciente não aja espontaneamente nos tópicos da escala, é preciso estimular uma resposta. Aborde o paciente na ordem abaixo: Estímulo sonoro: Peça (em tom de voz normal ou em voz alta) para que o paciente realize a ação desejada. Estímulo físico: Aplique pressão na extremidade dos dedos, trapézio ou incisura supraorbitária. 4. Pontue e some: Os estímulos que obtiveram a melhor resposta do paciente devem ser marcados em cada um dos três tópicos da escala. Se algum fator impede o paciente de realizar a tarefa, é marcado NT (Não testável). As respostas correspondem a uma pontuação que irá indicar, de forma simples e prática, a situação do paciente (Ex: O4, V2, M1 e P0 significando respectivamente a nota para ocular, verbal, motora e pupilar, com resultado geral igual a 7). 5. Analise a reatividade pupilar (atualização 2018): suspenda cuidadosamente as pálpebras do paciente e direcione um foco de luz para os seus olhos. Registre a nota Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) correspondente à reação ao estímulo. Esse valor será subtraído da nota obtida anteriormente, gerando um resultando final mais preciso. Essas reações devem ser anotadas periodicamente para possibilitar uma visão geral do progresso ou deterioração do estado neurológico do paciente. Escala de Coma de Glasgow (ECG) Provavelmente a mais famosa entre os acadêmicos, porque a aprendemos logo nas primeiras aulas de semiologia. É uma escala focada em déficits: geralmente, partimos da pontuação máxima (15) e retiramos pontos de acordo com os déficits que observamos no paciente. Ao contrário da Richmond Agitation-Sedation Scale, a Escala de Glasgow não mede agitação: um paciente combativo, contido mecanicamente, xingando os funcionários do serviço, e um paciente calmo e colaborativo, ambos terão a pontuação 15 — talvez, dependendo do que o paciente agitado responder às suas perguntas, é possível até que ele perca pontos no quesito “resposta verbal”, o que não quer dizer necessariamente que ele esteja mais perto do coma do que o paciente calmo e colaborativo (pelo menos não antes de lhe ser receitada sua levomepromazina). A Escala de Glasgow é estruturada na avaliação de três comportamentos: abertura ocular, resposta verbal e resposta motora. O paciente recebe uma pontuação em cada um desses quesitos, e a soma deles é o escore final do paciente. Classicamente, a Escala de Glasgow vai de 3 a 15, sendo 3 um paciente completamente irresponsivo (coma profundo) e 15 um paciente com nível de consciência preservado (calmo e colaborativo ou em mania). Como calcular Para calcular o Glasgow do paciente, o primeiro a se fazer é checar se não há nada que possa interferir na sua avaliação. Um paciente intubado não terá nenhuma resposta verbal, mesmo que esteja acordado e alerta,e um paciente com hemiplégico pós-AVC pode não obedecer a certos comandos motores, mesmo sem apresentar redução do nível de consciência. O segundo passo é observar. O paciente entrou no consultório andando e falou “bom dia”, olhando nos seus olhos: Glasgow 15. Você não precisa fazer testes, não precisa pedir para ele levantar o braço ou dizer seu nome: basta observar. O terceiro passo, agora sim, é estimular. O paciente está na maca da sala de emergências cirúrgicas, após um acidente motociclístico: olhos fechados, sem movimentos, calado. Isso não significa que ele esteja em coma (segure seu tubo!). Ele pode estar simplesmente dormindo. Nesse caso, primeiro use a voz: assim ele pode abrir os olhos, responder perguntas e ouvir Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) seus comandos. Se isso não for o suficiente, use o toque (estímulo físico leve). Se ainda assim o paciente não estiver totalmente responsivo, utilize estímulos físicos mais vigorosos. Por fim, avalie: dê pontos para cada comportamento do paciente de acordo com a tabela e some as três pontuações (abertura ocular, resposta verbal e resposta motora) para chegar ao escore final. Utilidade prática Na prática, a Escala de Glasgow é usada para avaliar rapidamente o nível de consciência de qualquer paciente, clínico ou cirúrgico, principalmente no pronto- socorro. Já foi demonstrado que existe uma correlação contínua entre a pontuação na escala e o prognóstico do paciente: quanto mais baixo o escore, maior a mortalidade. Veja a importância dessa ferramenta: em um paciente politraumatizado, o escore de Glasgow pode indicar ou contraindicar sua intubação (politraumatizado com ECG < 8 indica intubação). Em um paciente febril, o escore de Glasgow pode indicar a abertura do protocolo de sepse (ECG < 15 vale um ponto no Quick SOFA). É rápido, objetivo e confiável: dizer que o paciente está em Glasgow 10 ou Glasgow 5 é muito mais útil do que dizer que ele está “sonolento” — que é o que um leigo diria ao ver alguém em Glasgow 10, mas também em Glasgow 5. A nova escala É a mesma velha escala que você já conhece, mas com um item extra: reatividade pupilar. Funciona assim: você calcula o escore da forma tradicional, somando os pontos de abertura ocular, resposta verbal e resposta motora. Depois, você subtrai pontos de acordo com a não reatividade das pupilas à luz: se estiverem fixas bilateralmente, você tira dois pontos; se estiver fixa apenas em um lado, você tira um ponto; se ambas forem fotorreagentes, você não tira nenhum ponto. Assim, a nova escala vai de 1 a 15, e não mais de 3 a 15. A GCS-P parece ser útil para identificar os pacientes mais graves entre os pacientes graves — ou seja, pessoas com GCS-P 1 têm pior prognóstico do que aquelas com GCS-P 3, já que a reatividade pupilar pode refletir lesões neurológicas em áreas nobres do sistema nervoso central. Na vida real, pela minha experiência pessoal, eu diria o seguinte: é importante saber que a nova escala existe, mas o escore tradicional vai entregar as informações que você precisa para abrir um protocolo de sepse ou intubar um politraumatizado. Nos pacientes que realmente precisam de atenção à reatividade pupilar, é importante fazer e descrever esse exame separadamente. Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) Richmond Agitation-Sedation Scale (RASS) A escala de RASS é menos usada no pronto-socorro e mais usada na terapia intensiva, e por isso costuma ser menos conhecida entre os acadêmicos. Ao contrário da ECG, em que a pontuação é dividida entre três avaliações específicas que depois são somadas, o escore da RASS é global: o médico observa o paciente e lhe atribui uma nota de -5 a +4, de acordo com sua observação. Como se poderia imaginar, o RASS 0 é o paciente “normal”: calmo, acordado, respondendo normalmente a estímulos — nem agitado, nem sedado. Pontuações positivas (+1 a +4) são dadas a pacientes superativos, inquietos, combativos, enquanto pontuações negativas (-1 a -5) são reservadas para pacientes sonolentos, sedados ou comatosos. Como calcular Assim como a ECG, existe um algoritimo para o cálculo do escore RASS do nosso paciente. Primeiro, observe. Se o paciente estiver calmo e alerta, o escore é 0. Se o paciente demonstra agitação ou inquietação, dê um escore de +1 a +4, de acordo com a tabela. Se o paciente não estiver alerta, use a voz. Chame o paciente pelo nome com voz alta e firme e peça que ele olhe nos seus olhos. • Se o paciente abre os olhos e mantém contato visual por mais de dez segundos, RASS -1; • Se o paciente abre os olhos e faz contato visual, mas não o mantém por dez segundos, RASS -2; • Se o paciente reage fisicamente ao chamado (abrindo os olhos ou fazendo outro movimento qualquer), mas não faz contato visual, RASS -3. Caso o paciente não tenha nenhuma reação à voz, o passo seguinte é o estímulo físico. Primeiro tente balançar o ombro do paciente e, se não houver resposta, faça estímulo de dor esfregando os nós dos dedos no seu esterno. • Se o paciente apresentar qualquer movimento em resposta ao estímulo, RASS -4; • Se o paciente não apresenta nenhuma resposta a estímulo verbal ou físico, RASS -5. Utilidade prática Apesar de a RASS dar a impressão de ser menos objetiva do que a Escala de Glasgow, porque utiliza uma avaliação global em vez de três avaliações bem definidas, ela é bastante confiável na avaliação de pacientes críticos e prediz mortalidade tão bem quanto a ECG. O uso de escalas de sedação na terapia intensiva tem impactos positivos para o paciente e para o serviço, incluindo menor tempo de ventilação mecânica e menor https://apjmt.mums.ac.ir/article_5080.html https://apjmt.mums.ac.ir/article_5080.html https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4751584/ https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4751584/ https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2391268/ Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) uso de sedativos (já falamos sobre isso aqui). No caso específico da RASS, ela tem a vantagem de incluir a análise da agitação, já que a maioria dos pacientes críticos apresenta agitação em algum momento da internação. Equivalência com a ECG O escore Richmond e o escore de Glasgow cumprem papéis diferentes e utilizam parâmetros diferentes, e por isso nem sempre é possível converter uma pontuação de uma escala para outra de forma completamente fidedigna. Mas é possível comparar os dois escores e encontrar uma equivalência relativa entre eles: • RASS 0 a +5 corresponde a ECG 15; • RASS -1 corresponde a ECG 14 (ou 13); • RASS -2 e -3 correspondem a ECG 9 a 12 (ou 13); • RASS -4 corresponde a ECG menor que 8, exceto 3; • RASS -5 corresponde a ECG 3. Ramsay Sedation Scale (RSS) Outro escore famoso é a Ramsay Sedation Scale (RSS), publicada em 1974 pelo Dr. Michael Ramsay. Há quem diga que é a escala de sedação mais usada na prática dos CTIs, apesar de na minha experiência pessoal eu ter visto muito mais a RASS. A RSS é mais simples, mas menos acurada do que a escala Richmond. A RSS vai de 1 a 6 pontos, e é ainda mais centrada na sedação do que a escala de RASS. Quanto mais alto o escore, mais sedado o paciente: a pontuação 6 corresponde a um paciente desacordado, que não reage a um estímulo sensorial glabelar nem a sons altos, enquanto a pontuação 1 corresponde a um paciente acordado e agitado. Como calcular Como de costume, o primeiro passo para calcular o escore Ramsay do paciente é observar: • se ele estiver acordado e agitado, Ramsay 1; • se ele estiver acordado e cativo, mas calmo, Ramsay 2; • se ele estiver desacordado ou inativo, Ramsay 3 ou maior. O segundo passo é conversar com o paciente: • se ele reage a comandos, Ramsay 3; • se ele está desacordado e não reage a comandos, Ramsay 4 ou maior. Por fim, o observador deve chamar o paciente com voz alta e firme e baterlevemente em sua glabela (entre as sobrancelhas): • se o paciente reage de forma energética, Ramsay 4; • se o paciente reage de forma lenta e letárgica, Ramsay 5; • se o paciente não responde aos estímulos, Ramsay 6. https://blog.jaleko.com.br/manejar-sedacao-e-delirium/ https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10641977/ https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10641977/ https://link.springer.com/article/10.1186/s13054-019-2394-9 https://link.springer.com/article/10.1186/s13054-019-2394-9 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1613102/ https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1613102/ https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-70942017000400347 https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-70942017000400347 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3363744/ https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3363744/ Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) Utilidade prática A escala Ramsay é usada para avaliar o nível de sedação do paciente, principalmente na terapia intensiva. É mais antiga do que a escala Richmond, mas não necessariamente apresenta melhores resultados na avaliação da sedação. Além disso, a RASS tem a vantagem de avaliar de forma mais pormenorizada a agitação, o que também é importante no manejo do paciente crítico. Equivalência com a RASS Apesar de serem escalas diferentes, que não têm necessariamente um algoritmo de conversão entre si, muitas vezes é possível prever o escore RASS de um paciente a partir de sua pontuação na RSS e vice-versa: • Ramsay 1 equivale a RASS positivo (+1 a +4, agitação psicomotora); • Ramsay 2 equivale a RASS 0 (alerta e calmo); A partir daqui, as coisas começam a ficar um pouco mais complexas, mas ainda assim podemos dizer que: • Ramsay 3 e 4 indicam sedação leve, assim como RASS -1, -2 e -3. • Ramsay 5 e 6 indicam sedação profunda, assim como RASS -4 e -5. Escalas pediátricas Você chega no consultório para avaliar seu paciente e, como bom médico, usa a Escala de Coma de Glasgow para medir seu nível de consciência. O problema: o paciente tem 12 meses de idade. Abertura ocular: 4. Resposta verbal: 2. Resposta motora: 5. ECG 11. Mau sinal? Não necessariamente, é claro. Não se espera que uma criança pequena tenha resposta verbal orientada nem que obedeça a comandos. Avaliar agitação, sedação, analgesia e nível de consciência em adultos é diferente de fazê-lo na população pediátrica. Por isso, temos instrumentos específicos para avaliar nossos pequeninos (apesar de as escalas Ramsay e RASS serem bastante usadas pelos pediatras brasileiros). Escala de Coma de Glasgow Pediátrica Assim como o escore para adultos, a ECG Pediátrica avalia o nível de consciência do paciente em uma escala de 3 (completamente irresponsivo) a 15 (completamente alerta). Ela também é dividida em três avaliações: abertura ocular (1 a 4 pontos), resposta verbal (1 a 5 pontos) e resposta motora (1 a 6 pontos). O que muda em relação à ECG Adulta é a forma de avaliar cada resposta. A Escala de Coma de Glasgow Pediátrica foi validada em 2005 para crianças com dois anos ou menos de idade vítimas de traumatismo craniano. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3363744/ https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3363744/ https://www.scielo.br/pdf/rbti/v20n4/en_v20n4a05.pdf http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-45082020000100230 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-45082020000100230 https://www.uptodate.com/contents/image/print?imageKey=PEDS%2F59662&topicKey=EM%2F6559&source=see_link https://www.uptodate.com/contents/image/print?imageKey=PEDS%2F59662&topicKey=EM%2F6559&source=see_link https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16141014/ https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16141014/ Emylle Pereira – Medicina UNDB (M2) COMFORT A escala COMFORT foi criada em 1992 para avaliar a resposta da população pediátrica a medidas de conforto (sedação, analgesia etc.), e foi demonstrado que sua aplicação diminui o tempo de ventilação mecânica e o uso de sedativos e analgésicos em pacientes pediátricos. Este escore é um pouco mais complexo do que as escalas abordadas anteriormente. São nove parâmetros, cada um avaliado com uma nota de 1 a 5, que somando gera um score que vai de 9 a 45 (sendo 9 um paciente profundamente sedado e 45, um paciente bem desconfortável e agitado). Os parâmetros incluem observação comportamental (nível de alerta, tensão facial, choro) e também sinais vitais (pressão arterial e frequência cardíaca). Uma variante dessa escala é a COMFORT- B (B de behavior, ou seja, comportamento), um escore mais simples, que exclui os sinais vitais da avaliação, focando mais nos parâmetros comportamentais. São sete itens que valem de 1 a 5 pontos, totalizando um escore que vai de 7 a 35 pontos. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/1545324/ https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S235264671500109X https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S235264671500109X https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17728512/ https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17728512/ https://www.comfortassessment.nl/web/files/7615/2334/1571/COMFORT_behavior_Escala_-_Portugese_-_2018_01_10.pdf https://www.comfortassessment.nl/web/files/7615/2334/1571/COMFORT_behavior_Escala_-_Portugese_-_2018_01_10.pdf