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Agradecimentos Agradeço à minha família, pelo apoio e pela credibilidade em meu projeto profissional, especialmente à minha mãe, pelo amor e dedicação com que acompanha minha caminhada. Também agradeço aos professores Sílvia Helena Koller e Christian Haag Kristensen, pelo incentivo e pelas contribuições que qualificaram este trabalho. Finalmente, agradeço às meninas que participaram deste estudo. A convivência com elas provocou mudanças profundas em minha vida. Obrigada pela confiança, por revelarem seus segredos e compartilharem comigo momentos tão delicados de suas vidas. Vocês foram grandes “mestres” na minha formação! Luís a F Habigzang Sumário Apresentação....................................................................................9 Prefácio........................................................................................... 13 Introdução......................................................................................15 Parte I - Conceituando o abuso sexual na INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA Definições e dinâmica do abuso sexual....................................... 19 Dados epidemiológicos...................................................................37 Consequências do abuso sexual para crianças e ADOLESCENTES..................................................................................................... 45 A ÉTICA E A interdisciplinaridade: aspectos fundamentais para a intervenção............................................... 61 Modalidades terapêuticas e questões clínicas..........................69 Terapia cognitivo-comportamental em abuso SEXUAL INFANTIL ................................................................................................ 81 Parte II - Intervindo em abuso sexual na INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA.................................................... 91 Avaliação e intervenção clínica: um relato de EXPERIÊNCIA.......................................................................................................... 93 A intervenção.......................................................................... 93 Avaliação diagnostica individual...................................... 94 Grupoterapia cognitivo-comportamental...........................96 Reavaliação diagnostica individual................................... 98 8 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica Parte HI - Analisando a intervenção em abuso SEXUAL NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA....................99 Resultados da intervenção....................................................... 101 Resultados da avaliação diagnóstica individual................... 101 Grupoterapia......................................................................... 111 Resultados da reavaliação diagnóstica.................................. 140 Discussão dos resultados...........................................................144 Parte IV - Considerações finais............................................. 149 Considerações finais................................................................... 151 Referências bibliográficas.........................................................155 Anexos............................................................................................165 Anexo A.......................................................................... 167 Anexo B...........................................................................169 Anexo C.......................................................................... 173 Apresentação Psicólogos e profissionais que trabalham com crianças, adolescentes e famílias têm se interessado, cada vez mais, pela interação no ambiente doméstico, considerada um dos aspectos mais proeminentes do desenvolvimento humano. A família tem sido, repetidamente, apontada como o contexto mais íntimo de proteção ao ser humano, oferecendo relações constantes e estáveis de reciprocidade, coesão e hierarquia de poder saudável. No entanto, nem sempre esta é a realidade. Alguns ambientes domésticos têm sido palco de marcantes, freqüentes e severas vivências de dor e de exposição ao risco, geradas por inúmeros e variados fatores, que roubam da família a sua condição de ninho de amor e cuidado de seus integrantes. Entre esses fatores aparece o abuso sexual intrafamiliar, que interrompe um processo de desenvolvimento do prazer e da fantasia infantil e lança a criança em uma seqüência de eventos de dor. O prazer da ingênua sexualidade infantil contrapõe- se à dor impetrada pelo abuso. A fantasia dos contos de fadas é jogada brutalmente na realidade de atos sexualizados, os quais a criança não tem condição de compreender. Nesse cenário de violência, a criança e a família são vítimas e testemunhas do evento não natural da violência sexual. Pesquisadores desejam realizar estudos que tenham impacto e relevância social, a fim de provocar a redução das conseqüências negativas do abuso e ampliar os efeitos positivos das relações familiares nesse contexto ecológico. A pesquisa tem caminhado de 10 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica mãos dadas com a ação clínica, influenciando mais do que apenas o microssistema familiar e colaborando com políticas públicas. Tais ações integradas precisam, cada vez mais, nos dias atuais, concei- tualizar e estabelecer seu conhecimento, traduzindo-o em aplicações sociais e programas de intervenção na família e na comunidade. Este livro apresenta um dos mais recentes e importantes produtos da integração entre ação clínica, pesquisa, intervenção e responsa bilidade política, revelando aos leitores a descrição detalhada do processo de aplicação dos preceitos da terapia cognitivo-compor- tamental em casos de abuso sexual infantil. Na primeira parte, os autores apresentam definições e a dinâmica do abuso sexual, enfatizando dados epidemiológicos e as conseqüências do fenômeno no ciclo vital de crianças e adolescentes. Para melhor entendimento dos leitores, descrevem, ainda, modalidades terapêuticas e questões clínicas relacionadas ao problema. Como é esperado de profissionais que trabalham com esse problema de saúde pública, os aspectos éticos e a interdisciplinaridade são enfatizados, considerados fundamentais para a intervenção. A Parte II descreve a intervenção propriamente dita, tendo por base os preceitos conceituais da Parte I e salientando a importância de integrá-los à ação clínica. Os autores apresentam um processo cuidadoso de avaliação e reavaliação dos casos de abuso sexual infantil acompanhados; a intervenção é descrita em detalhes, especialmente com relação à técnica desenvolvida, denominada grupoterapia cognitivo-comportamental. Na Parte III, são analisadas e discutidas a avaliação e a intervenção em abuso sexual realizada por eles, evidenciando ao leitor, além da competente abordagem, a isenção profissional apropriada e a atitude científica. O leitor pode se considerar privilegiado, pois está exposto a um conteúdo provocante, que gera reflexão e a possibilidade de aperfei çoamento de suas práticas. Além disso, o livro permite a leitura de um estudo que elabora e constrói uma intervenção com validade ecológica, baseada na realidade de crianças brasileiras. Estudos como Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 11 este não devem ser meramente “transplantados” para a realidade atual, na qual os protagonistas, o contexto e as relações interpessoais são substituídos por entidades, que fazem parte da experiência diária das famílias brasileiras. O abuso sexual expõe crianças, adolescentes e famílias a uma luta diária por sobrevivência e segurança. O conhecimento profundo dessa realidade, de seus valores e de seu cotidiano deve ser um compromisso do profissional que se dedica a seu estudo. Habigzang e Caminha propiciamum caminho bastante promissor para alcançar tal conhecimento. Profa. Dra. Sílvia Helena Koller Coordenadora do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua CEP-RUA Universidade Federal do Rio Grande do Sul Prefácio O abuso sexual contra crianças e adolescentes é atualmente considerado um grave problema de saúde pública, tanto pela elevada prevalência do fenômeno, quanto pelo seu impacto deletério no indivíduo, nos familiares e na sociedade. Em particular, a vítima de abuso sexual com freqüência desenvolve sintomas em diferentes áreas, incluindo prejuízos cognitivos, emocionais, sociais e acadêmicos. Diante dessa realidade, grande esforço tem sido empregado ao longo das três últimas décadas na prevenção, na avaliação e nas intervenções terapêuticas junto à população. Apresente publicação de Luisa F. Habigzang e Renato M. Caminha pode ser contextualizada dentro desse empreendimento, visto que representa uma contribuição nacional relevante à área. Entre os vários méritos da obra que o leitor agora tem em mãos, dois me parecem de especial destaque. Primeiro, para aquele que se inicia no estudo do abuso sexual, o livro resume e atualiza conceitos, dados epidemiológicos e algumas das principais conseqüências experienciadas pelas vítimas dessa forma particular de maus-tratos. Segundo, sistematiza a abordagem cognitivo-comportamental, com vítimas de abuso sexual, em suas diferentes etapas, incluindo a avaliação individual, a intervenção na forma de grupoterapia e a avaliação da eficácia da intervenção. Nessa sistematização, tanto o psicoterapeuta iniciante como o clínico experiente encontrarão elementos suficientes para estruturar o atendimento psicológico de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. 14 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica Ao longo de mais de uma década, tenho o privilégio de acom panhar de maneira próxima a evolução teórica e o desenvolvimento clínico dos autores - boa parte disso ocorrendo na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Paralelamente, também assisti à produção brasileira em terapia cognitivo-comportamental crescer e atingir autonomia. Hoje, essa abordagem recebe suficiente apoio empírico para ser considerada como a psicoterapia eletiva nos casos de abuso sexual na infância e adolescência. Que Luísa e Renato contribuam para isso pela sistematização de sua experiência com grupoterapia é algo notável. Prof. Ms. Christian Haag Kristensen Laboratório de Neurociências Universidade do Vale do Rio dos Sinos Introdução O abuso sexual contra crianças e adolescentes é compreendido atualmente como um grave problema de saúde pública. Estudos sobre epidemiologia, as conseqüências do abuso para o desenvolvimento e o tratamento têm sido desenvolvidos em diversos países. No Brasil, verifica-se um aumento de pesquisas acerca desse tema nas últimas décadas. No entanto, não se encontram muitos trabalhos, em nosso país, que apresentem a descrição e os resultados de intervenções terapêuticas para essa população clínica. O desenvolvimento de pesquisas na área pode contribuir para qualificar o funcionamento da rede de atendimento a crianças e a adolescentes vítimas de abuso sexual, que, no Brasil, ainda apresenta sérias dificuldades para desempenhar as políticas públicas definidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O presente estudo é resultado da experiência clínica com crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, desenvolvida durante a graduação em Psicologia, tendo como principal objetivo apresentar um modelo de intervenção e os resultados obtidos. O estudo está dividido em quatro partes. Na Parte I são abordadas a dinâmica do abuso sexual, a incidência epidemiológica dessa categoria de maus-tratos e suas conseqüências para o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Também são apresentados aspectos relevantes para a intervenção clínica em vítimas de abuso sexual, como a ética e a interdisciplinaridade, e modalidades 16 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica terapêuticas para esses casos. Além disso, são introduzidos conceitos da terapia cognitivo-comportamental como método de intervenção que fundamenta a pesquisa. Na Parte II é apresentado um relato de experiência clínica, no qual está descrita a metodologia de avaliação e intervenção para meninas vítimas de abuso sexual e os resultados obtidos. Essa metodologia foi desenvolvida e coordenada por Habigzang, sob orientação do Prof. Ms. Renato Caminha, durante o estágio profissio nal em Psicologia no Programa Interdisciplinar de Promoção e Atenção a Saúde (PIPAS). O PIPAS é um programa de extensão vinculado ao Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) que, entre outras atividades, presta atendimento psicológico à comunidade. A Parte III apresenta a avaliação dos resultados da intervenção. E a Parte IV traz as consi derações finais, articulando os aspectos teóricos e práticos abordados nos capítulos anteriores. Conceituando o abuso sexual na INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA Definições e dinâmica do ABUSO SEXUAL A infância e a adolescência são etapas do ciclo vital nas quais o indivíduo desenvolve suas capacidades cognitivas, afetivas e físicas. Também se caracterizam como períodos importantes para a aprendizagem de habilidades sociais. Por essas razões, crianças e adolescentes são considerados sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento, necessitando cuidados especiais que garantam sua proteção e o desenvolvimento de suas potencialidades. Nesse sentido, toda a sociedade e o poder público são responsáveis pela garantia dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes (Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal n° 8.069, 1990). A família desempenha um papel de destaque nesse processo, uma vez que constitui o primeiro sistema no qual o ser humano em desenvolvimento interage. Brito e Koller (1999) salientam que a dinâmica do grupo familiar é muito poderosa no desenvolvimento da criança, sendo sua casa o ambiente em que desenvolverá quase todos os repertórios básicos de seu comportamento. O papel dos pais, além do provimento de bens, sustento dos filhos, educação informal e preparo à educação formal, consiste em transmitir valores culturais de diversas naturezas (religiosos, morais, tradicionais, acadêmicos). No processo de socialização da criança, a família é um impor tante fator. Os pais influenciam o desenvolvimento do senso de cooperação e reciprocidade dos filhos, quando se mostram sensíveis 20 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica e responsivos às suas necessidades. Nessa perspectiva, o sentimento de pertencimento e a percepção de que é amada, fortalece a expectativa da criança de que suas necessidades serão atendidas, facilitando a busca de novos elos e de gratificação no seu ambiente de forma efetiva. Em situações de risco ou ameaça, o apoio recebido dos pais reduz a angústia da criança. As transações com os pais fortalecem o desenvolvimento de seus recursos internos para enfrentar com expectativa de sucesso as situações de risco (Brito & Koller, 1999). Entretanto, nem sempre os pais ou cuidadores comportam-se dessa forma, e as situações de risco experienciadas pela criança ocorrem dentro de suas próprias casas. Isto se confirma pelas pesquisas, segundo as quais 80% das ocorrências de maus tratos contra crianças e adolescentes são perpetradas no ambiente doméstico (Oliveira & Flores, 1999; Pires, 1999). A violência intrafamiliar é um sério problema social, que, devido ao impacto negativo que acarreta ao desenvolvimento infantil, tem sido considerado um grave problema de saúde pública (Gonçalves & Ferreira, 2002; Polanczik,Zavaschi, Benetti, Zenker, Gammerman, 2003; Osofsky, 1995). A compreensão de que os maus tratos contra crianças e adolescentes são um problema médico-social é recente entre os profissionais da saúde. Na década 40, nos Estados Unidos, o radiologista Caffey foi considerado “inadequado” pelos colegas de medicina por falar na Síndrome da Criança Espancada, e, somente nos anos 60, o pediatra Henry Kempe criou o termo Síndrome da Criança Maltratada, abrindo espaço para estudos dos abusos cometidos por adultos (Pires, 1999). Nos últimos 20 anos, o abuso infantil tem se tomado um dos mais emergentes campos de pesquisa no que tange à infância e à adolescência, e em vários países existem programas em desen volvimento para estudo, prevenção e tratamento. No Brasil, verifica- se uma intensificação de pesquisas na área desde a publicação do Estatuto de Criança e do Adolescente em 1990 (Amazarray & Koller, 1998; Zavaschi et al., 1991). Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 21 Os termos abuso ou maus-tratos contra crianças e adolescentes são utilizados para definir negligência, violência psicológica, física e sexual, de maneira repetitiva e intencional, perpetrado por um adulto ou alguém em estágio de desenvolvimento superior (idade, força física, posição social, condição econômica, inteligência, autoridade). O perpetrador utiliza-se do poder, da relação de confiança e/ou força física para colocar a criança e/ou adolescente em situações para as quais não possui condições maturacionais biológicas e psicológicas de enfrentamento (Ferreira & Schramm, 2000; Furniss, 1993; Grinblatt, Martins, Sattler, Caminha, Flores, 1994. O abuso viola aquilo que caracteriza a infância: dependência, vulnerabilidade e inocência. O adulto explora o poder que tem sobre a criança e, ao fazê-lo, usa-a como mero meio para obtenção de seus próprios fins, infligindo o seu direito à autonomia (Ferreira & Schramm, 2000). A violência intrafamiliar origina-se de relações interpessoais hierarquicamente assimétricas, marcadas por desi gualdade e subordinação no contexto familiar (Koller, 1999). De Antoni e Koller (2000) verificaram a assimetria das relações intrafamiliares em um estudo com meninas vítimas de violência intrafamiliar. O trabalho objetivava investigar percepções e expecta tivas das vítimas com relação à família. Participaram doze adoles centes com idade entre doze e dezessete anos, que estavam institu cionalizadas por medidas de proteção, devido a maus tratos sofridos em casa. A coleta de dados foi realizada por meio de grupos focais: a moderadora introduzia temas relacionados à família e as adolescentes eram convidadas a problematizá-los. As histórias de vida familiar relatadas pelas meninas são marcadas pela falta de diálogo, de confiança e pela passividade diante da agressão. Vários fatores de risco foram identificados nessas famílias: instabilidade econômica e afetiva, dificuldade em buscar soluções efetivas para seus problemas e ausência de definição e valorização dos papéis familiares. Além disso, as meninas relataram: sentimento de não-pertencimento e de desvalorização no grupo familiar, baixa qualidade das interações, 22 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica falta de estruturação de um sistema de apoio, regras pouco ou não definidas, apoio emocional precário ou inexistente, e auto-estima baixa. O ambiente familiar dessas garotas, além conter o risco de violência que determinou o afastamento delas de casa, era pouco sadio e propício para a organização e execução de um projeto de vida. A violência em si era atribuída ao autoritarismo dos pais ou responsáveis, que acreditavam ter a posse delas e que elas mereciam ser punidas e culpadas pelos acontecimentos, muito mais do que protegidas. O fenômeno da violência doméstica atinge meninas e meninos de todas as idades, em todos os grupos étnicos e em todos os níveis socioeconômicos (Kaplan & Sadock, 1997). Os fatores de risco identificados no relato das meninas com famílias abusivas estudadas por De Antoni e Koller (2000) aparecem entre as variáveis mapeadas por Gomes, Deslasdes e colaboradores (2002). Através de uma pesquisa bibliográfica, que consultou artigos publicados na década de 90 em revistas nacionais representativas de Pediatria, Gomes, Deslasdes e colaboradores mapearam as principais explicações apontadas pela literatura especializada sobre a questão da violência intrafamiliar. Foram analisados catorze trabalhos que apontaram três principais fatores como desencadeadores e mantenedores desse problema. A primeira explicação, e a mais recorrente, refere-se à reprodução das experiências de violência familiar vividas durante a infância, contribuindo para que se perpetuem os maus-tratos. Nessa lógica, muitas crianças vítimas de maus-tratos se tomam adultos agressores. O fenômeno, chamado de multigeracionalidade, é compreendido como um ciclo de violência que acompanha a família de geração em geração. Uma pesquisa realizada com 8.145 famílias corrobora essa perspectiva (Straus & Smith, 1995, citado por Gomes, Deslasdes e cols., 2002): os pais que sofreram violência quando crianças apresenta vam um índice de agressão contra os filhos duas vezes maior do que os que não foram vítimas de violência. Contudo, Gomes, Deslasdes Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 23 e colaboradores ressaltam que essa questão deve ser entendida como uma probabilidade, uma maior vulnerabilidade, mas não como uma lei inexorável. Uma segunda razão para existência de crianças maltratadas associa-se à idéia da violência como produto de desajustes familiares e psíquicos e do alcoolismo. Um estudo realizado com 103 vítimas apontou os distúrbios de comportamento do agressor (31,06%), a desagregação familiar (21,97%) e o alcoolismo do agressor (17,42%) como os três principais fatores desencadeantes da violência (Cariola, 1995, citado por Gomes, Deslasdes et al., 2002). A terceira explicação encontrada abrange a ordem macroestru- tural, traduzida por aspectos sociais, econômicos e culturais - como a desigualdade, a dominação de gênero e de gerações. O estudo já mencionado de Cariola (1995, citado por Gomes, Deslasdes e cols., 2002) conclui que a agressão é mais evidente na população mais carente (com renda de um a três salários mínimos), correspondendo a 52,27% da amostra (n = 103). Os autores chamam a atenção, nova mente, para o cuidado quanto às generalizações, uma vez que pobreza não está diretamente ligada a maus tratos infantis. Straus e Smith (1995, citado por Gomes, Deslasdes e cols., 2002), ao comparar famílias cujo pai estava desempregado com outras em que o pai estava empregado, observaram que havia uma prevalência de maus-tratos contra a criança 50% maior no primeiro grupo. As explicações para o fenômeno dos maus tratos contra crianças e adolescentes, encontradas nos artigos consultados por Gomes, Deslasdes e colaboradores (2002), correspondem aos fatores de risco para o desencadeamento e a manutenção do problema da violência intrafamiliar. Estes indicam, conforme salientam os autores, uma maior probabilidade, e não uma relação direta de causa e efeito. Dessa forma, eventos estressantes, tais como desemprego e história de abuso na infância, não garantem que esses pais abusarão de seus filhos. Gomes, Deslasdes e colaboradores (2002) concluem que explicar a ocorrência dos maus-tratos contra as crianças é uma 24 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica tarefa complexa, pois envolve a articulação em rede de aspectos socioculturais, psicossociais, psicológicos e até mesmo biológicos, para que seja atingida uma compreensão mais abrangente acerca da problemática em questão. A literatura aponta quatro categorias básicas de maus-tratos contra criançase adolescentes: abuso físico, abuso emocional, negligência e abuso sexual (Braun, 2002; Caminha, 2000; De Antoni & Koller, 2001; Gomes, Junqueira, Silva, Junger, 2002). O abuso físico é compreendido como qualquer ação, única ou repetida, não-acidental (intencional), na qual o adulto usa de sua força física para causar dor e desconforto à criança. A relação de força baseia-se no pretenso poder disciplinador do adulto e na desigualdade adulto-criança. Esse tipo de abuso, assim como os demais, tem tendência de progressão ascendente, podendo evoluir de um puxão de orelha a um tapa, uso de cinto, cabo de vassoura, até atingir quei maduras por cigarros ou ferro elétrico, choques elétricos, água fervente, etc. Os abusos físicos podem deixar marcas, como hema tomas, escoriações, fraturas e queimaduras, e, em alguns casos, chegam a levar a criança à morte. Além de causar lesões físicas, essa forma de abuso é extremamente danosa para a vítima do ponto de vista emocional, pois é acompanhada de abusos emocionais - a criança agredida fisicamente é, na maioria das vezes, depreciada e desres peitada, por meio de agressões verbais (Azevedo & Guerra, 1989; Caminha, 1999, 2000; De Antoni & Koller, 2001; Gomes, Junqueira, Silva, Junger, 2002; Pires, 1999). O abuso emocional ou psicológico abrange rejeição, isolamento, depreciação, desrespeito, discriminação, corrupção, punição ou cobranças exageradas do adulto em relação à criança ou ao adolescente (Azevedo & Guerra, 1989; Benetti, 2002; Gomes, Junqueira, Silva, Junger, 2002). Ele é evidenciado pelo prejuízo à competência emocional da vítima, isto é, à capacidade de amar os outros e de sentir-se bem a respeito de si mesma. São atos de hostilidade e agressividade que podem influenciar a auto-imagem e a auto-estima Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 25 da criança ou do adolescente (De Antoni & Koller, 2001). Dessa forma, compreende situações nas quais o adulto agride verbalmente a criança e não reconhece o seu valor, bem como suas necessidades, afastando-a de experiências sociais esperadas, impedindo-a de ter amigos e brincar, não estimulando seu crescimento emocional e intelectual (Azevedo & Guerra, 1989; Benetti, 2002; Caminha, 2000; Kaplan & Sadock, 1997). A negligência é definida como toda omissão em termos de cuidados básicos por parte do responsável pela criança ou pelo adolescente. Inclui atitudes como privar a criança de afeto, alimentos, medicamentos, proteção contra as inclemências do meio (frio, calor), educação e higiene - todos necessários à sua integridade física, intelectual, moral e social (Azevedo & Guerra, 1989; Caminha, 2000; Kaplan, 1995; Gomes, Junqueira, Silva, Junger, 2002). O abandono é apontado como uma das mais graves formas de negligência, ocorrendo quando os pais biológicos ou adotivos declaram, publicamente, que não têm mais interesse na permanência da criança ou do adolescente em sua residência. Nesses casos, as crianças são, geralmente, encontradas dormindo na rua ou enviadas a instituição para acolhimento público (De Antoni & Koller, 2001). O abuso sexual é definido como todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual, cujo agressor esteja em estágio de desen volvimento psicossexual mais adiantado que a criança ou o adoles cente. Tem por finalidade estimulá-la sexualmente ou utilizá-la para obter estimulação sexual. Essas práticas eróticas e sexuais são impostas às crianças ou aos adolescentes por violência física, ameaça ou indução de sua vontade. Pode variar desde atos em que não existam contatos físicos, mas que evolvem o corpo (assédio, voyeurismo, exibicionismo), a diferentes tipos de atos com contato físico, sem penetração (sexo oral, intercurso interfemural) ou com penetração (digital, com objetos, intercurso genital ou anal). Engloba, ainda, a 26 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica situação de exploração sexual visando ao lucro, como a prostituição e a pornografia (Azevedo & Guerra, 1989; Gomes, Junqueira, Silva, Junger, 2002; Kaplan & Sadock, 1997; Zavaschi e cols., 1991). Os abusos sexuais podem ser classificados como intrafamiliares ou incestuosos e extrafamiliares. Esses tipos de abuso serão mais bem definidos a seguir. Outro tipo de maus-tratos tem sido identificado como Síndrome de Münchausen por procuração. Esta forma de violência, menos comum, é caracterizada pela desordem psiquiátrica de um dos pais, mais comumente da mãe: a criança é levada para cuidados médicos devido a sintoma e/ou sinais inventados ou provocados por seus responsáveis, induzindo exames laboratoriais e hospitalizações com procedimentos desnecessários (Gomes, Junqueira, Silva, Junger, 2002; Pires, 1999). A exploração infantil constitui outra forma de violência. Nesses casos, fica evidente a tentativa do abusador em transformar a vítima em ator da violência. A criança ou adolescente é induzido ou coagido a participar de ações ilícitas, com prejuízo à sua integridade física, psicológica e moral. Destacam-se a exploração sexual infanto-juvenil, o uso e o tráfico de drogas e a exploração no trabalho, que são atividades não condizentes com a idade, expõem a riscos físicos, exigem ampla carga horária de trabalho e, em geral, são trocadas por algum amparo para sobrevivência (casa, comida, etc.), mas não consistem em remuneração (De Antoni & Koller, 2001). Os maus tratos na infância expressam-se de forma dinâmica, não havendo limites rígidos entre as categorias. Muito comumente, o abuso surge de uma negligência primária, incorrendo em um abuso emocional, podendo chegar às demais categorias, que por sua vez, podem estar presentes simultaneamente (co-morbidade). Fluxos entre as categorias são, não só possíveis como também prováveis, conforme o esquema proposto por Caminha (2000) apresentado na Figura 1: Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 27 Figura 1. Dinâmica dos maus tratos (adaptado de Caminha, 2000). De acordo com a Figura 1, as crianças e os adolescentes submetidos a abusos sexuais, são, na maioria dos casos, também vítimas de negligências, abusos emocionais e abusos físicos. Isso se confirma pelos relatos das vítimas que revelam as ameaças e as agressões físicas sofridas durante o abuso sexual, bem como as sentenças depreciativas utilizadas pelo agressor e a falta de amparo e supervisão dos cuidadores. Os profissionais que pretendem trabalhar com crianças e adolescentes vítimas de abusos sexuais precisam, necessariamente, ter conhecimento da dinâmica que sustenta essa forma de violência para que as intervenções sejam efetivas. 28 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica O abuso sexual e a exploração sexual de crianças vêm se tomando um tipo de maus-tratos na infância cada vez mais difundido, com implicações psicossociais, legais e médicas (Fumiss, 1993; Kaplan & Sadock, 1997). Como foi anteriormente definido, o abuso sexual é compreendido como qualquer atividade ou interação, na qual a intenção é estimular e/ou controlar a sexualidade da criança (Watson, 1994). Etimologicamente, “abuso” indica separação, afastamento do uso normal; por si só, a palavra indica, ao mesmo tempo, um uso errado e um uso excessivo. O que não significa, como dizem os que criticam esse termo, que houvesse um uso permitido, pois abusar é precisamente ultrapassar os limites e, portanto, transgredir (Gabei, 1997). Abuso contém ainda a noção de poderio: de poder, de astúcia, de confiança - situações em que a intenção e a premeditação estão presentes (Gabei, 1997; Watson, 1994). Abuso sexual supõe uma disfunção em três níveis: o poder exercido pelo grande sobre o pequeno, a confiança que o pequeno (dependente) tem no grande (protetor) e o uso delinqüente da sexualidade - ou seja, o atentado ao direito que o indivíduotem de propriedade sobre o seu próprio corpo. Alguns autores ainda recomendam que deve haver uma diferença de idade de cinco anos ou mais entre vítima e perpetrador do abuso, quando a criança é menor de doze anos, e uma diferença de dez anos ou mais quando o adolescente tiver entre treze e dezesseis anos (Amazarray & Koller, 1998; Cohen & Mannarino, 2000a; Cloitre, Cohen, Koenen, Han, 2002). Entretanto, o uso de força, ameaça ou exploração da autoridade, independentemente das diferenças de idade, sempre deverá ser considerado um comportamento abusivo e, portanto, cuja responsabilidade deverá ser sempre do adulto (Amazarray & Koller, 1998; Cohen & Mannarino, 2000a; Cloitre, Cohen, Koenen, Han, 2002; Hayde, Bentovim, Monck, 1995; Zavaschi et al., 1991). O abuso sexual também pode ser definido, de acordo com o contexto de ocorrência, em diferentes categorias. Fora do ambiente familiar, pode ocorrer em situações nas quais as crianças são envolvidas Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 29 em pornografia e exploração sexual (Amazarray & Koller, 1998). No entanto, os estudos mostram que a grande maioria dos abusos sexuais cometidos contra crianças e adolescentes ocorre dentro de casa e é perpetrada por pessoas próximas, que desempenham papel de cuidador da vítima (Braun, 2002; Caminha, 2000; Kaplan & Sadock, 1997). As relações sexuais, mesmo sem laços de consanguinidade, envolvendo uma criança e um adulto responsável (tutor, cuidador, membro da família ou conhecido da criança) são relações que se enquadram no atual conceito de incesto (Azevedo, Guerra, Vaiciunas, 1997; Cohen, 1997; Kaplan & Sadock, 1997). Dessa forma, qualquer contato abertamente sexual entre pessoas que tenham grau de parentesco, ou acreditam tê-lo, é considerado incesto. Isto inclui madrastas, padrastos, tutor, meio-irmãos, avós e até namorados ou companheiros que morem junto com o pai ou a mãe, caso eles assumam a função de cuidadores (Forward & Buck, 1989). Amazarray e Koller (1998) citam um estudo sobre incesto em São Paulo, conduzido por Cohen (1993), revelando que o pai era o abusador em 41,6% dos casos, seguido por padrasto (20,6%), tio (13,8%), primo (10,9%) e irmão (3,7%). O incesto também pode ocorrer entre mãe-filha e mãe-filho, entretanto, a freqüência dessa situação é menor, e muitas vezes envolve quadros de psicose. Com relação ao incesto entre irmãos, a diferença de idade deve ser considerada. Quando o irmão abusador é significativamente mais velho do que a vítima, supõe-se que o primeiro esteja em uma posição de autoridade parental, enquanto o segundo se encontra em uma situação de imaturidade e dependência. Em contraste, na relação sexual entre irmãos com idades próximas, pode ser inadequado utilizar as denominações de abusador e vítima, visto que não há uma relação de dependência estrutural entre eles. O que ocorre é uma confusão de relacionamento emocional e de relacionamento sexual, na qual a excitação sexual é substituta do carinho (Fumiss, 1993). A familiaridade entre a criança e o abusador aponta para tendências de fortes laços afetivos entre ambos, tanto positivos quanto 30 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica negativos, o que colabora para que os abusos sexuais incestuosos possuam maior impacto cognitivo-comportamental na criança. O incesto é, então, considerado um fator agravante para as conseqüências decorrentes de experiências sexualmente abusivas conforme afirmam Foward e Buck: O incesto é poderoso. Sua devastação é maior do que a das violências sexuais não incestuosas contra a criança, porque o incesto se insere nas constelações das emoções e dos conflitos familiares. Não há um estranho de que se possa fugir, não há uma casa para onde se possa escapar. A criança não se sente mais segura nem mesmo em sua própria cama. A vítima é obrigada a aprender a conviver com o incesto; ele abala a totalidade do mundo da criança. O agressor está sempre presente e o incesto é quase sempre um horror contínuo para a vítima (1989, p. 13). As famílias incestuosas são severamente disfuncionais. Caracterizam-se pela falta de fronteiras entre seus membros e pela ausência do sentido de individualidade e de respeito à privacidade, não havendo espaço para diferenças e discordâncias (Grinblatt, Martins, Sattler, Caminha, Flores, 1994; Scodelario, 2002). Thomas, Eckenrode e Garbarino (1997) sugerem alguns fatores de risco para relações familiares incestuosas: pai e/ou mãe que sofreram abusos ou foram negligenciados em suas famílias de origem; excesso de álcool e outras drogas; papéis sexuais rígidos; falta de comunicação entre os membros da família; autoritarismo; estresse; desemprego; mãe passiva e/ou ausente; dificuldades conjugais; famílias reestruturadas (presença de padrasto ou madrasta); isola mento social; pais que sofrem de transtornos psiquiátricos; doença, morte ou separação do cônjuge. Em vários casos, o pai e a mãe possuem horários diferentes de trabalho e o pai fica sozinho com as crianças, buscando intimidade e controle sobre a vida dos filhos (Zavaschi et al., 1991). Ocorre, pois, Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 31 uma aliança entre os pais, na qual a mãe não impede a aproximação sexual do cônjuge junto aos seus filhos. Fica clara, muitas vezes, a permissão passiva da mãe, para que um de seus filhos a substitua no papel sexual junto ao companheiro (Grinblatt, Martins, Sattler, Caminha, Flores, 1994). Essa permissividade da mãe é, em alguns casos, resultante do medo que ela tem de enfrentar o parceiro - uma vez que também é vítima de seus abusos físicos - e das dificuldades econômicas que poderão surgir com o afastamento dele de casa (Cohen & Mannarino, 2000b). É importante salientar que, em muitos casos de incesto, as mães assumem uma atitude protetiva e denunciam o abuso sexual aos órgãos de proteção à infância (Thomas, Eckenrode, Garbarino, 1997; Cohen & Mannarino, 2000b). Fumiss (1993) também considera as díades conjugal e parental, mostrando que a criança procura o pai (ou a mãe) em busca de apoio emocional e de carinho, já que é estruturalmente dependente. Em resposta, o pai satisfaz o próprio desejo sexual utilizando-se dela. Os avanços sexuais são confusos para a criança, e, usualmente, o adulto incestuoso a persuade e a amedronta em segredo, constituindo uma forma de abuso emocional. A criança tem a percepção de que a situação é imprópria e, progressivamente, receia a desintegração familiar, teme a rejeição de seus amigos, da escola, e, finalmente, da comunidade (Fumiss, 1993; Zavaschi et al., 1991). Furniss (1993) aponta dois aspectos que se apresentam interligados em casos de abuso sexual infantil, a Síndrome de Segredo - diretamente relacionada com a psicopatologia do agressor (pedofilia) que, por gerar intenso repúdio social, tende a se proteger em uma teia de segredo, mantido às custas de ameaças e barganhas com a vítima - e a Síndrome de Adição - caracterizada pelo comportamento compulsivo do descontrole de impulso diante do estímulo gerado pela criança, ou seja, o abusador, por não se controlar, usa a criança para obter excitação sexual e alívio de tensão, gerando dependência psicológica e negação da dependência. 32 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica O adulto incestuoso, embora exerça poder e força sobre a criança, tende a ser tipicamente tímido e sem autoconfiança em seus contextos sociais. Apresenta baixa auto-estima e dificuldades na identidade masculina. Tenta compensar isso através da imagem de domínio masculino que resulta em controle firme e dominação, tanto sobre a esposa quanto sobre os filhos (Green, 1995). O segredo e o sentimento de impotência estão ligados à vulnerabilidade das crianças. Elas são ensinadas a desconfiar deestranhos, mas, simultaneamente, a ser obedientes e afetuosas com todos os adultos que cuidam delas. O indivíduo que comete o abuso, na maioria dos casos, é alguém conhecido que vai estabelecer uma relação de confiança com sua vítima e certificar-se de que ela não se queixará quando ele avançar os limites da relação (Gabei, 1997). A Síndrome de Acomodação da criança é outra variável importante para a manutenção do silêncio (Gabei, 1997). Verifica-se que ela “cai na armadilha” e se adapta à situação abusiva, uma vez que sua opção é aceitar e sobreviver, ao preço de uma inversão dos valores morais e alterações psíquicas prejudiciais à sua personalidade. Essa síndrome consiste em: segredo; desamparo; aprisionamento e acomodação; revelação retardada, conflitada e não convincente, e retratação (Summit, 1983, citado em Zavaschi e cols., 1991). Segredo. O segredo do abuso faz com que a criança perceba que aquilo que está ocorrendo é algo errado e perigoso. Ao mesmo tempo, a solicitação do abusador para que ela não revele o abuso é fonte de medo e envolve promessas de segurança para ele e para sua família. O segredo toma proporções mágicas, monstruosas para a criança, que se sente isolada, desamparada, estigmatizada, intimidada e culpada. Desamparo. As crianças são integralmente dependentes dos adultos e a eles são subordinadas. A sociedade, porém, espera que a criança resista com força, peça ajuda ou fuja da violência do abuso. Só que as crianças, muito freqüentemente, são incapazes de tomar tais atitudes. A reação normal é “brincar de estátua” (fingir que está Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 33 dormindo, mudar de posição, puxar os cobertores). Elas aprendem a lidar em silêncio com os terrores da noite. Para a sobrevivência emocional da criança, é importante que os adultos e os profissionais de saúde reforcem sua inocência e seu desamparo, em vez de assinalar sua cumplicidade. Sem isto, a vítima tende a se sentir culpada, com ódio de si mesma, pensando que foi ela quem provocou e permitiu o abuso sexual. A compreensão de que a criança é vítima da relação abusiva é fundamental, pois ainda existe em nossa sociedade o estereótipo da “criança sedutora”, que seduz o pai e aprecia o abuso. Mas esse estereótipo tem pouco a ver com a realidade, uma vez que cabe ao pai, em seu papel de cuidador, traçar as fronteiras adequadas. Isso significa que mesmo que uma criança se comportasse de uma maneira abertamente sexual - comportamento que cada vez mais aprendemos a ver como resultado de abuso sexual anterior e não como ponto de partida - e que ela fosse sedutora e tentasse iniciar o abuso, seria sempre responsabilidade do pai estabelecer os limites. Nem mesmo o mais sexualizado ou sedutor comportamento jamais podería tomar a criança responsável pela resposta adulta de abuso sexual, em que a pessoa que comete o abuso satisfaz seu próprio desejo sexual em resposta à necessidade da criança de cuidado emocional (Fumiss, 1993). Aprisionamento e acomodação. Quando a criança não procura ou não recebe intervenção protetora imediata, fica sem opção para interromper o abuso, restando-lhe acomodar-se à situação. O desafio é adaptar-se às crescentes solicitações sexuais, bem como à progressiva conscientização de traição e de estar sendo vista como um objeto por alguém que é habitualmente idealizado como figura parental protetora e amorosa. A criança fica com o poder e a responsabilidade de manter a família unida, assumindo as funções maternas, não resistindo às exigências sexuais do abusador. Busca, assim, mecanismos para garantir a própria sobrevivência psíquica, que acarretam em dificuldades psicológicas cada vez maiores em seu desenvolvimento. 34 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica Revelação retardada, conflitada e não-convincente. A criança tenta revelar o abuso para a mãe, que reage com descrença, nega para proteger o casamento, não acredita ou tenta negociar uma resolução dentro da família. A criança, geralmente, busca compreensão e intervenção no momento em que tem menos chances de encontrá-la. E ao fazer a revelação, pode se sentir culpada, amedrontada e confusa. Muitas vezes, é acompanhada de extrema ansiedade e do relato de dados inconsistentes que, associados à falta de preparo e de sensibilização dos adultos e profissionais da saúde, tomam a revelação não-convincente. Retratação: A criança tende a negar posteriormente o abuso sexual, caso não encontre apoio, retirando a queixa. Isso ocorre devido aos seus sentimentos ambivalentes e à culpa com relação ao pai e à família, e também por causa da possibilidade real de que as ameaças e os medos associados ao abuso sejam verdadeiros. A criança diz que inventou a história do abuso - mentira que recebe maior credibilidade do que a queixa do incesto -, confirmando as expectativas dos adultos de que ela não é confiável, e as dela de que não pode se queixar, restabelecendo-se o “equilíbrio” familiar. A criança é, então, duplamente vítima, dos abusos sexuais e da incredulidade dos adultos. Freqüentemente, a relação abusiva se mantém pelo período de anos, antes que ela consiga falar a uma terceira pessoa, por causa da confusão de papéis na família disfuncional (Fumiss, 1993). Quando o abuso é revelado à Justiça e às agências de proteção à infância, a mãe expressa choque e incredulidade. Em muitos casos, o pai quer ser visto como vítima dos avanços sexuais da criança, apresentando-a como sedutora e precocemente sexuahzada (Zavaschi e cols., 1991). Contata-se que, mesmo diante da Justiça, em muitos casos, ela se retrata, voltando atrás quanto à revelação, diante do risco de catástrofe que esta provoca. O silêncio perante a sociedade pode ocorrer por vários motivos: temor pela reação da própria família; manutenção da aparência de “sagrada família”; conivência entre as pessoas que sabem do fato e não o denunciam; a idéia de que nada Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 35 pode ser feito para resolver o problema; por ser um assunto tabu; por não saber o que fazer (Cohen, 1997). Mesmo que a maioria dos casos de abuso sexual envolvendo crianças raramente seja revelada, devido a culpa, vergonha e tolerância da vítima, há outros fatores que geram essa condição - como, por exemplo, a relutância de alguns médicos em reconhecer o problema e relatá-lo, a insistência de tribunais em regras estritas de evidência e o medo da dissolução da família, se for descoberto o abuso. Possivelmente, uma das principais questões que levam os profissionais de saúde a negar e a subestimar a severidade e a extensão do abuso sexual é o fato de ele significar a violação de tabus sociais - como o incesto -, despertando sentimentos de raiva e desconforto nos próprios agentes de saúde (Fumiss, 1993; Zavaschi e cols., 1991). O abuso sexual contra crianças ou adolescentes é, portanto, um fenômeno que envolve variáveis complexas na caracterização de sua dinâmica. Por esta razão, é considerado um problema multidisciplinar, requerendo uma estreita cooperação de diferentes profissionais. Como questão legal e terapêutica, requer, por parte de todos os profissionais envolvidos, o conhecimento dos aspectos criminais e de proteção da criança, assim como dos psicológicos (Fumiss, 1993). Dados epidemiológicos O abuso sexual contra crianças e adolescentes não é um fenômeno atual. Referências a atividades sexuais entre adultos e crianças podem ser encontradas nos registros históricos de civilizações antigas e modernas. Estes revelam reações sociais extremamente ambivalentes, variando da negação dos contatos sexuais entre adultos e crianças até a sua aceitação dessas relações (Deblinger & Heflin, 1995). No entanto, só recentemente o abuso sexual infantil passou a ser foco de pesquisas que têm documentadoo seu impacto psicossocial no desenvolvimento de crianças e adolescentes, assim como vem recebendo atenção dos meios de comunicação (Amazarray & Koller, 1998). Flores e Caminha (1994) sugerem, inclusive, que a real freqüência de abusos tenha permanecido constante e o que estaria aumentando é a atenção dada atualmente ao problema. A cada ano são relatados, aproximadamente, de 150 a 200 mil novos casos de abuso sexual infantil nos Estados Unidos {National Committee for the Prevention of Child Abuse, 1992, citado por Kaplan & Sadock, 1997). Em diversos países, muitos estudos epidemiológicos têm sido conduzidos com o objetivo de entender como o fenômeno abuso sexual se manifesta. Esses dados revelam parcialmente a dimensão do problema, uma vez que correspondem apenas aos casos denunciados em agências de proteção à criança. As taxas de ocorrência reais são, provavelmente, mais elevadas que essas estimativas, pois muitos casos de abusos sexuais não são reconhecidos tampouco diagnosticados. 38 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica Finkelhor (1994) realizou uma pesquisa nos Estados Unidos, através de contato telefônico, constatando que 27% das mulheres e 16% dos homens consultados sofreram abusos sexuais antes de completarem dezoito anos. Amazarray e Koller (1998) apresentam um estudo, realizado com mulheres adultas em São Francisco (EUA), dirigido por Russell (1984), demonstrando que mesmo após excluir eventos menores (exibicionismo sem contato físico), 16% da amostra reportou abuso sexual intrafamiliar antes dos dezoito anos e 12% antes dos catorze anos. Abuso sexual extrafamiliar, envolvendo sexo genital, antes dos dezoito anos foi referido por 31 % dos entrevistados, 20% reportaram tais atividades antes dos catorze anos. Dos abusos sexuais extrafamiliares antes dos dezoito anos, somente 15% foram perpetrados por estranhos. Raramente as mulheres eram identificadas como perpetradoras. Os profissionais envolvidos em estudos sobre abuso sexual infantil acreditam que, na realidade, uma em cada quatro meninas e um em cada oito meninos, sofrem abuso antes de completar dezoito anos, e que cerca de 80% dos casos são intrafamiliares (Zavaschi e cols., 1991). Outros trabalhos também apontam uma maior incidência de abusos sexuais incestuosos do que extrafamiliares. Um deles, conduzido por Ferracuti (1988, citado por Cohen, 1997) nos Estados Unidos, avaliou que o número de meninas vítimas de incesto está entre 60 e 100 mil, mas somente 20% dos casos são denunciados. As pesquisas mais alarmistas, porém, calculam que ocorram relações incestuosas em 10% das famílias americanas. Um estudo realizado por Barry (1985, citado por Cohen, 1997) estima que uma menina em quatro teria sido vítima de incesto antes dos dezoito anos - ou seja, 25% das mulheres -, sendo que apenas 25% dos casos de incesto fica limitado a um único ato sexual, 70% das relações incestuosas duram mais que um ano e 10% têm duração maior que três anos. Em uma pesquisa realizada com crianças, de idades entre seis e dezesseis anos, que haviam sofrido abusos sexuais, dos 81 casos avaliados, em 78 o abusador era algum membro da família e em três Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 39 eram pessoas de confiança (vizinhos ou babás). Dos 78 casos, 22% tinham o pai biológico ou o padrasto como abusador. Com exceção de uma criança que sofrerá abuso da madrasta, todas as demais foram vítimas de homens. Em 70% dos casos houve penetração anal ou vaginal. A maioria das crianças participantes do estudo tinha sete ou oito anos quando começaram os abusos, que tiveram duração, em média, de dois anos (Horowitz, Putnam, Noll, Trickett, 1997). Outro levantamento, também realizado nos Estados Unidos, com amostra de 105 crianças vítimas de abusos sexuais, com idade entre oito e quinze anos, constatou que 46,7% dos casos eram incestuosos e 44,8% envolviam sexo oral, anal ou penetração vaginal. As idades médias do primeiro e do último episódio de abuso foram, respectivamente, 9,3 e 10,5 anos, e 84,8% eram meninas com idade média de 11,6 anos (Lanktree & Briere, 1995). No Brasil, Cohen (1997) realizou um estudo com a aplicação de um questionário em vítimas de violência sexual que compareceram ao Instituto Médico Legal da cidade de São Paulo, durante um período de seis meses. Foram encontradas 548 pessoas (49,64%) que disseram conhecer o seu agressor e 249 (22,55%) que foram vítimas de algum parente, sendo que 207 (18,75%) moravam na mesma casa do agressor. O grau de parentesco com a vítima foi assim caracterizado por Cohen (1997): pai, 99 casos (41,60%); padrasto, 49 casos (20,59%); tio, 33 casos (13,86%); primo, 26 casos (10,93%); irmão, nove casos (3,78%); cunhado, nove casos (3,78%); companheiro da mãe, cinco casos (2,10%); avô, quatro casos (1,68%); concunhado, um caso (0,42%); sobrinho de padrasto, um caso (0,42%); tio-avô, um caso (0,42%); madrasta, um caso (0,42%). Outra pesquisa visando a verificar a prevalência da exposição à violência sexual entre adolescentes foi desenvolvida com estudantes de escolas estaduais de Porto Alegre. Foram selecionadas 52 instituições com Ensino Fundamental completo por meio de um processo de amostragem aleatória, estratificada de acordo com o tamanho da escola. Foi escolhida, em cada escola, uma turma de 8a 40 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica série, por sorteio aleatório, e foram incluídos todos adolescentes presentes em sala de aula que consentiram participar do estudo. Um instrumento de triagem da exposição à violência na comunidade foi utilizado para identificar jovens que foram vítimas, testemunhas ou conheciam vítimas de atos de violência sexual. Foram incluídos 1.193 adolescentes, representando 10,3% dos alunos de oitava série matriculados na rede estadual de ensino da cidade. Os resultados revelaram que entre os jovens estudados, 27 (2,3%) relataram ter sido vítimas de violência sexual, 54 (4,5%) foram testemunhas de algum tipo de violência sexual e 332 (27,9%) disseram conhecer alguma vítima de abuso sexual (Polanczik, Zavaschi, Benetti, Zenker, Gammerman, 2003). Kristensen, Oliveira e Flores (1999) desenvolveram um trabalho na região metropolitana de Porto Alegre com 1.754 registros de crianças e adolescentes de zero a 14 anos que sofreram algum tipo de violência, entre 1997 e 1998. Foram consultadas 75 institui ções que prestam atendimento a crianças e adolescentes, tais como conselhos tutelares, casas de passagem, hospitais, órgãos do Ministério Público, entre outros. Com relação aos abusos sexuais, os números revelaram que 79,4% das vítimas são meninas e 20,6% são meninos. A idade média das meninas é 11 anos e a dos meninos é 9,5. Também foi investigado o local de ocorrência desses abusos, constatando-se que 65,7% ocorreram na residência da vítima, 22,2% na rua, 9,8% na residência de terceiros e 2,4% em instituições públicas. De Lorenzi, Pontalti e Flech (2001) realizaram um levanta mento de 100 casos de violência contra crianças e adolescentes atendidos no Ambulatório de Maus Tratos do município de Caxias do Sul/RS, no período de 1998 a 1999, e constataram um significa tivo predomínio de abuso sexual (59%) e de vítimas do sexo feminino (77%). A maioria dos abusos ocorreu com crianças entre seis e nove anos de idade (35%), sendo o pai o principal responsável pelas agressões verificadas (33%). Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 41 Outro estudo (Braun, 2002) analisou os boletins de ocorrência policial e os termos de informação das vítimas de abuso sexual familiar, registrados no Departamento Estadual da Criança e do Adolescente da Polícia Civil do RS (DECA). A amostra foi composta por cinqüenta participantes com menos de dezoito anos. A partir dos dados encontrados,foram traçadas a caracterização da vítima, do agressor e do fato. Com relação às vítimas, Braun (2002) verificou que a idade variou entre dois e dezessete anos, sendo que a porcentagem mais significativa foi a da faixa entre dez e catorze anos (56%), seguida das faixa entre cinco e nove anos (29%), entre quinze e dezessete anos (14%) e entre dois e quatro anos (10%). O maior número de vítimas foi do sexo feminino (96%), com acentuada diferença em relação ao masculino (4%). A pesquisa constatou que 26% da amostra rompeu o silêncio em um período menor que um ano, 22% de um a dois anos e 30% de três a seis anos. A idade da vítima, quando ocorreu o fato pela primeira vez também foi mapeada: 44% da amostra tinha entre dez e catorze anos, 42% entre cinco e nove anos, 10% entre dois e quatro anos, 2% entre 15 e 17 anos e 2% não informou. A maioria das vítimas procurou a ajuda da mãe (42%), sendo que as demais recorreram a irmãos (10%), tios (4%), amigos (6%), escola (6%), conselho tutelar (2%), vizinhos (2), instituição (6%) e não procuraram ajuda (22%). As denúncias foram realizadas pelas mães (38%), seguidas de outros familiares (30%), conselho tutelar (16%), instituição (6%), disque-denúncia (6%) e Brigada Militar (4%). Com relação ao agressor, a faixa etária situou-se, em primeiro lugar, entre 35 e 39 anos (26%), depois entre 45 e 49 anos (18%) e entre 40 e 44 anos (16%). Braun constatou que em primeiro lugar apareceu o pai (40%) como perpetrador, seguido por padrasto (28%), tio (16%), avô (4%), pai adotivo (4%), irmão (4%), cunhado (2%) e primo (2%). Em 94% dos casos, os agressores negaram o fato e apenas 6% confirmaram o abuso, afirmando terem sido “seduzidos” pela vítima. O trabalho também invetigou a presença de álcool e/ou drogas: em 42 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica 46% dos casos o agressor se encontrava alcoolizado e/ou drogado, 19% estavam sóbrios e em 38% das fichas não constava a informação. A autora verificou, ainda, a especificação do fato: em 46% dos casos houve estupro, em 42% constatou-se atentado violento ao pudor e em 12% verificaram-se estupro e atentado violento ao pudor. Os locais onde os abusos ocorreram foram a residência da família (86% dos casos), a residência dos avós (2%), local do serviço (6%), matagal (2%) e não foi informado (4%). Resultados semelhantes foram encontrados por Caminha, Habigzang e Bellé (2003) em um levantamento realizado no período de 2000 a 2002, no Programa Interdisciplinar de Promoção e Atenção a Saúde (PIPAS), em São Leopoldo (RS). Mensalmente os estagiários do grupo de pesquisa cognitivo-comportamental foram consultados sobre os casos novos em atendimento. No período acima, o grupo totalizou atendimento a 194 casos, sendo que em 51 destes havia histórico de abusos sexuais na infância e na adolescência (26,29%). Com relação a estes casos, algumas variáveis foram avaliadas: • sexo da vítima: 44 casos (86,27%) eram do sexo feminino, enquanto apenas sete (13,73%) eram do sexo masculino. • idade: a grande maioria eram crianças e adolescentes com idade entre dois e dezesseis anos (84,32%), havendo casos de adultos com revelação tardia (15,68%). • idade de início do abuso: a faixa etária entre cinco e oito anos apareceu em primeiro lugar (49,02%), seguida da faixa entre dois e quatro anos (23,53%), entre nove e doze anos (15,66%), aos 15 anos (3,92%); em 7,83% dos casos não havia informação. • a quem pediu ajuda: a mãe apareceu em primeiro lugar (52,94%), seguida de outro familiar (16,92%), psicoterapia (9,8%), amigos ou vizinhos (13,73%), escola (3,92%) e Juizado da Infância e Juventude (1,96%). Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 43 • intervalo de tempo entre início do abuso e revelação: 37,25% dos casos foram revelados durante o mesmo ano de início do abuso, 7,84% romperam o silêncio no período de um a dois anos, em 27,44% dos casos os abusos duraram entre três e seis anos, 13,72% conseguiram romper o silêncio após sete anos do início dos abusos e 13,73% não souberam informar. • vínculo do abusador com a vítima: o padrasto apareceu em primeiro lugar (37,25%), seguido de tio (15,68%), pai (13,73%), irmão (3,92%), companheiro da avó (1,96%), pessoas amigas da família, que freqüentavam a residência da criança (19,6%), e em 7,84% o abusador era desconhecido. Analisando os dados encontrados nos estudos acima apresen tados, fica aparente a coesão dos resultados. A grande maioria dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes ocorre dentro da casa da vítima e configura-se como abuso sexual incestuoso; o pai biológico e o padrasto aparecem como principais perpetradores. Ocorre, também, uma maior prevalência de meninas nos casos de abuso sexual, principalmente os incestuosos (Caminha, Habigzang, Bellé, 2003). A idade de início dos abusos é bastante precoce: a maioria se concentra entre os cinco e os oito anos de idade. A mãe é a pessoa mais procurada na solicitação de ajuda e a maior parte dos casos é revelada pelo menos um ano depois do início do abuso sexual. Esses dados são importantes porque contribuem para a análise do impacto da experiência para o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Além disso, eles potencializam a eficácia de planos preventivos e terapêuticos de intervenção. Consequências do abuso sexual PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES As pesquisas demonstram que crianças e adolescentes podem ser afetadas pela experiência de abuso sexual de diferentes formas: algumas apresentam efeitos mínimos ou nenhum efeito aparente, enquanto outras desenvolvem severos problemas emocionais, sociais e/ou psiquiátricos (Heflin & Deblinger, 1999; Saywitz, Mannarino, Berliner &s Cohen, 2000). O impacto do abuso sexual está relacionado com fatores intrínsecos à criança, tais como, vulnerabilidade e resiliência (temperamento, resposta ao nível de desenvolvimento neuropsicológico), e com a existência de fatores de risco e proteção extrínsecos (recursos sociais, funcionamento familiar, recursos emocionais dos cuidadores e recursos financeiros, incluindo acesso ao tratamento). Algumas conseqüências negativas são exacerbadas em crianças que não dispõem de uma rede de apoio social e afetiva (Saywitz, Mannarino, Berliner & Cohen, 2000). Brito e Koller (1999) destacam três aspectos de um desenvol vimento adaptado: presença de uma rede de apoio social e afetiva, coesão familiar e ausência de conflito, e características individuais, tais como autonomia e auto-estima. A rede de apoio social é definido como o conjunto de sistemas e de pessoas significativas que compõem os elos de relacionamento existentes e percebidos pelo indivíduo. A esse construto foi, recentemente, agregado o elemento afetivo, em função da importância do afeto para a construção e a manutenção do apoio. Dessa forma, a possibilidade de se desenvolver adaptativamente e de dispor de recursos que incrementem os determinantes acima 46 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica protege a pessoa de doenças e sintomas psicopatológicos, mesmo quando ela está diante de situações adversas. O apoio social e afetivo está relacionado com a percepção que a pessoa tem de seu mundo social e de como se orienta nele, suas estratégias e suas competências para estabelecer vínculos. A rede de apoio social e afetiva exerce influência na emissão de respostas positivas e diminuição de sintomas psicopatológicos, tais como, remissão de sintomas depressivos e de sentimentos de desamparo (Brito & Koller, 1999). Brito e Koller (1999) salientam que as pessoas tomam-se vulneráveis perante situações de risco, demonstrando suscetibilidade individual, por não contarem com uma rede de apoio social e afetivo eficaz e efetiva na prevenção de doenças e de características desadaptativas.Essa vulnerabilidade potencializa os efeitos negativos das situações estressantes. Por outro lado, a pessoa que tem um desenvolvimento saudável é definida como resiliente, ou seja, capaz de buscar alternativas para enfrentar de forma satisfatória os eventos negativos da vida. Crianças vulneráveis carecem dessa capacidade ou da tomada de ação eficaz na superação de eventos negativos, provocando comportamentos desadaptados ou sintomas psicopatológicos (De Antoni & Koller, 2001). Os conceitos de resiliência e vulnerabilidade envolvem fatores de risco e de proteção. Risco está associado às características ou aos eventos que podem levar a resultados ineficazes, enfraquecendo a pessoa diante da situação de estresse. Em contrapartida, fatores de proteção inibem a intensidade desse risco e têm sido identificados principalmente no cuidado estável oferecido pela família - que reforça a identificação com modelos e papéis -, nas características pessoais - como a habilidade para resolver problemas, a capacidade de cativar pessoas, a competência social, as crenças de controle pessoal sobre os eventos de vida e o senso de auto-eficácia - e na possibilidade de contar com o apoio social e emocional de grupos externos à família, diante de eventos estressores (De Antoni & Koller, 2001). Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 47 Crianças com um fraco apoio social e afetivo - em especial o recebido dos pais - são mais propensas a vários riscos emocionais e sociais durante seu desenvolvimento. Assim, a família possui capacidade ótima de ser fator protetivo e preventivo de psicopatologias ou transtornos comportamentais de crianças e adolescentes (Brito & Koller, 1999). Em um estudo realizado com 49 vítimas de abuso sexual (idade entre sete e catorze anos) e seus cuidadores primários não abusivos, foi constatado que o desenvolvimento e a manutenção de sintomas psicológicos em crianças que sofreram abuso são significativamente influenciados pelo sofrimento emocional dos pais com relação ao fato, o apoio deles à criança e as crenças que ela apresenta com relação ao abuso (Cohen & Mannarino, 2000a). Crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual com cognições negativas relacionadas ao evento traumático - como sentir-se diferente dos iguais, auto-acusar-se, pouca credibilidade e confiança interpessoal - apresentam níveis maiores de sintomatologia pós-abuso (Heflin & Deblinger, 1996/1999). Segundo Fumiss (1993), o grau de severidade dos efeitos do abuso sexual varia de acordo com: • a idade da criança no início do abuso sexual (não se sabe em qual idade há maior prejuízo); • duração do abuso (algumas evidências sugerem que maior duração produz conseqüências mais negativas); • o grau de violência (uso de força pelo perpetrador resulta em conseqüências mais negativas, tanto a curto como a longo prazo); • a diferença de idade entre a pessoa que cometeu o abuso e a vítima (quanto maior a diferença, mais graves são as conseqüências); • a importância da relação entre abusador e vítima (quanto maior a proximidade e a intimidade, piores as conseqüências); • a ausência de figuras parentais protetoras e de apoio social (nesses casos, o dano psicológico é agravado); • o grau de segredo e de ameaças contra a criança. 48 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica Outros fatores são acrescentados: saúde emocional prévia (crianças com saúde emocional positiva antes do abuso tendem a sofrer menos efeitos negativos); tipo de atividade sexual (alguns dados sugerem que formas de abuso mais intrusivas, como a penetração, resultam em mais conseqüências negativas); vários tipos de abusos sexuais cometido; reação dos outros (a resposta negativa da família ou dos pares diante da descoberta do abuso acentuam efeitos negativos: família, amigos e juizes atribuindo a responsabilidade à criança); dissolução da família depois da revelação; criança responsabilizando-se pela interação sexual; recompensa recebida pela vítima e negação do perpetrador de que o abuso aconteceu (Amazarray & Koller, 1998; Deblinger&Heflin, 1995;Gabel, 1997; Mattos, 2002; Rouyer, 1997). Os abusos sexuais infantis são um importante fator de risco para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos, apesar da com plexidade e da quantidade de variáveis envolvidas. Estudos revelam que crianças vítimas de abuso sexual exibem mais sintomas psiquiá tricos quando comparadas a outras que não sofreram abuso (Browne & Finkelhor, 1986; Green, 1993; Wind & Silvem, 1994, citados por Saywitz e cols., 2000). Contudo, não há um único quadro sinto- matológico que caracterize a maioria das crianças abusadas sexual mente. Mesmo não tendo sido identificado um único transtorno resultante de experiências sexualmente abusivas, mais de 50% de vítimas de abuso sexual infantil apresentam critérios diagnósticos para transtorno do estresse pós-traumático (Saywitz e cols., 2000). A literatura mostra, ainda, que crianças ou adolescentes vítimas de abuso sexual podem desenvolver quadros de depressão, transtornos de ansiedade, transtornos alimentares, transtorno dissociativo, transtorno de hiperatividade e déficit de atenção e transtorno de personalidade borderline. Entretanto, a psicopatologia decorrente do abuso sexual mais citada é o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) (Cohen, Mannarino, Rogai, 2001; Green, 1995; Heflin & Deblinger, 1999; Kaplan & Sadock, 1997; Zavaschi et al., 1991). Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 49 Em um estudo realizado com adolescentes internados em uma clínica psiquiátrica por motivos diversos, 93% relataram pelo menos um evento traumático em sua história de vida, tais como: ser vítimas ou testemunhas de violência comunitária, testemunhar violência familiar ou ser vítimas de abusos físicos e sexuais. O abuso sexual, neste estudo, foi o evento traumático mais comum, citado por 69% dos pacientes com transtorno do estresse pós-traumático (Lorion & Saltzman, 1993, citado por Polanczik, Zavaschi, Benetti, Zenker, Gammerman, 2003). As manifestações do TEPT são agrupadas em três categorias: 1) experiência contínua do evento traumático (lembranças intrusivas, sonhos traumáticos, jogos repetitivos, comportamento de reconstituição, angústia nas lembranças traumáticas); 2) evitação e entorpecimento (de pensamentos e lembranças do trauma, amnésia psicogênica, desligamento), e 3) excitação aumentada (transtorno do sono, irritabilidade, raiva, dificuldade de concentração, hipervigilância, resposta exagerada de sobressalto e resposta autônoma a lembranças traumáticas) (DSM-IV-TR, 2002). O evento traumático pode ser revivido de várias maneiras, e, algumas vezes, a pessoa experimenta estados dissociativos, ou seja, momentos nos quais há uma ruptura com a realidade, que podem durar de alguns segundos a várias horas (Caminha, 2000). Nesses casos, os componentes do evento são revividos e a pessoa se comporta como se o vivenciasse naquele instante, com intenso sofrimento psico lógico ou reatividade fisiológica. É possível o desenvolvimento de transtornos dissociativos graves decorrentes dos abusos. Após longos períodos de exposição à violência, há dissociações mais freqüentes e patológicas, ou seja, o meio ambiente é tão hostil e a hiper-responsi- vidade é tão constante que toma-se imperativo para o psiquismo um corte com a realidade. Esta é uma tentativa de preservação da integridade psíquica, que, na verdade, acaba se desorganizando, justamente por causa do uso contínuo (não consciente) de mecanismos dissociativos. Nessa mesma perspectiva, Perry e Pollard (1998) 50 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica afirmam que, nos momentos em que a criança está mais exposta ao perigo (alarme), surge a necessidade urgente de atingir a homeostasea fim de garantir a sobrevivência. A dissociação é, então, caracterizada por uma variedade de mecanismos mentais envolvidos no desprendimento do mundo externo, nos quais ocorre distração, evitação, paralisia, fuga, fantasia, despersonalização, etc. Além de quadros psiquiátricos decorrentes de experiências sexualmente abusivas, pode-se observar, nas vítimas, alterações comportamentais, afetivas e cognitivas, tais como, ideações suicidas, abuso de substâncias, condutas hipersexualizadas, fugas do lar, condutas delinqüentes, isolamento social, baixo rendimento escolar, irritabilidade, sentimentos de culpa, raiva e de diferença com relação aos seus iguais (Amazarray & Koller, 1998; Cohen, Mannarino & Rogai, 2001; Flores & Caminha, 1994; Polanczik, Zavaschi, Benetti, Zenker & Gammerman, 2003). Porter, Blick e Sgroi (1982, citados por Knell & Ruma, 1999) indicaram dez questões de impacto comumente encontradas em vítimas de abuso sexual infantil: 1) síndrome dos “bens danificados”; 2) culpa; 3) medo; 4) depressão; 5) baixa auto-estima e habilidades sociais empobrecidas; 6) raiva e hostilidade reprimidas; 7) capacidade para confiar prejudicada; 8) limites não muito claros entre os papéis e confusão de papéis; 9) pseudomaturidade e fracasso na aquisição de áreas do desenvolvimento; 10) problemas de autodomínio e controle. Alguns estudos mostram que as conseqüências do abuso sexual para o desenvolvimento podem ocorrer a curto e a longo prazo. Um desses trabalhos analisou os efeitos do abuso, classificando-os de acordo com a idade pré-escolar (zero a seis anos), escolar (sete a doze anos) e adolescência (treze a dezoito anos). Os sintomas mais comuns em pré-escolares são: ansiedade, pesadelos, transtorno do estresse pós-traumático e comportamento sexual inapropriado. Em crianças com idade escolar, os sintomas mais freqüentes incluem: medo, distúrbios neuróticos, agressão, pesadelos, problemas escolares, Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 51 hiperatividade e comportamento regressivo. Na adolescência, os sintomas mais recorrentes são: depressão, isolamento, comportamento suicida, auto-agressão, queixas somáticas, atos ilegais, fugas, abuso de substâncias e comportamento sexual inadequado. Entre os sintomas comuns às três fases de desenvolvimento estão: pesadelos, depressão, retraimento, distúrbios neuróticos, agressão e comportamento regressivo (Kendall-Tackett, Williams, Finkelhor, 1993, citado por Amazarray & Koller, 1998). Outro estudo investigou as conseqüências negativas para as vítimas a curto prazo (Azevedo, Guerra & Vaiciunas, 1997). Participaram da pesquisa 21 vítimas de incesto pai-filha (pai biológico, adotivo ou padrasto). Elas foram atendidas na Ia Delegacia da Defesa da Mulher de São Paulo, onde havia registrados 76 casos como esses. As meninas responderam a uma entrevista semi-estruturada que envolvia duas partes: uma chamada álbum de família e a outra, minha vida em família. Na primeira, pediu-se às participantes que fizessem um retrato falado de cada uma das pessoas de sua família, incluindo ela própria. Este retrato de família foi feito, pelo desenho de cada menina, associado a uma entrevista complementar. Na segunda parte, foi abordada a vida em família das participantes, a partir dos seguintes temas: biografia pessoal, biografia familiar, incesto, causas, conseqüências e formas de evitação. Analisando o discurso das meninas foi possível identificar as principais modificações que perceberam em suas vidas, logo após a ocorrência do incesto. As conseqüências identificadas foram de dois tipos: orgânicas e psicológicas. Do primeiro tipo, foi mencionada a gravidez que ocorreu com duas adolescentes (uma de treze anos e outra de dezessete anos). Outras conseqüências físicas possíveis são doenças sexualmente transmissíveis e lesões físicas (Amazarray & Koller, 1998; Braun, 2002). Entre as conseqüências psicológicas, Azevedo, Guerra e Vaiciunas (1997) identificaram as seguintes dificuldades: adaptação interpessoal, adaptação sexual, processo de ensino-aprendizagem e adaptação afetiva. 52 Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica As dificuldades de adaptação interpessoal (com pessoas em geral, meninos, amigos, pais das amigas e irmãos) incluem retraimento, dificuldade em confiar nos outros e relacionamentos superficiais, além do risco de se tomarem adultos abusadores. Crianças que sofreram abuso podem apresentar lacunas na emissão de comportamento pró-social: compartilham menos, ajudam menos e se associam menos com outras crianças, quando comparadas com crianças que não foram vítimas de abuso (Flores & Caminha, 1994). As dificuldades de adaptação sexual incluem brinquedo sexualizado com bonecas, introdução de objetos ou dedos no ânus ou na vagina, masturbação excessiva e em público, conhecimento sexual inapropriado para a idade e pedido de estimulação sexual a adultos ou a outros meninos ou meninas (Amazarray & Koller, 1998). Em crianças há um aparecimento precoce da sexualidade genital, enquanto em adolescentes a menarca pode ser vivida como uma reação violenta de vergonha: o sangue pode ser vinculado ao incesto e percebido como castigo. As vítimas sofrem de incapacidade de dizer não, têm dificuldades para se proteger e, numa reprodução do trauma, colocam-se em situações de perigo (Cohen, 1997; Rouyer, 1997). Na idade adulta, essas dificuldades podem se manifestar através do medo de se relacionar sexualmente, problemas de relacionamento sexual com o cônjuge, impotência, compulsão ao sexo, etc. As dificuldades no processo ensino-aprendizagem identificadas no estudo de Azevedo, Guerra e Vaiciunas (1997) se manifestaram sob a forma de repetência ou de interrupção dos estudos, precedida ou não de repetência. Na amostra estudada, nove vítimas (42,8%) interromperam os estudos. As autoras sugerem que esses problemas podem ser resultantes de depressão ou de dificuldades em se concentrar. As dificuldades de adaptação afetiva estão freqüentemente associadas ao sentimento de culpa, a idealizações e/ou a tentativas de suicídio e fixação em idéias de morte. O sentimento de culpa é uma reação típica em vítimas de abuso sexual na infância e adoles Luísa E Habigzang & Renato M. Caminha 53 cência. Segundo Azevedo, Guerra e Vaiciunas (1997), são três as possíveis explicações para esse sentimento: 1) medo das pressões oriundas do “complô de silêncio” que cerca a criança-vítima; 2) auto- condenação por ter experienciado algum prazer físico; 3) vergonha por ter se deixado abusar durante um longo tempo. Azevedo, Guerra e Vaiciunas (1997) ressaltam que a fixação em idéias de morte e o suicídio (idealizado ou efetivamente tentado) têm provavelmente a mesma raiz: podem ser sintomas importantes de depressão, que, por sua vez, pode ser tristeza em decorrência de sentimentos de culpa e de autodesvalorização experimentados pelas vítimas. É importante observar que as idéias de morte surgiram em crianças, enquanto a problemática de suicídio revelou-se em adoles centes. Sentimentos de autodesvalorização e de culpa podem levar a uma série desastrosa de eventos. De um lado, a culpa internalizada pode ser um importante fator na manifestação de tentativas de suicídio, auto-agressão, depressão e anorexia nervosa. Por sua vez, quando extemalizada, pode redundar em delinqüência, pequenos crimes, fugas e comportamento anti-social. Para Gabei (1997), as conseqüências afetivas são as mais graves e difíceis de avaliar. Esses efeitos implicam uma verdadeira ruptura na vida da criança e do adolescente. O termo ruptura justifica-se pelo corte brusco na vida da vítima: interrompe-se o ciclo da sexualidade normal com uma gravidez precoce, a sociabilidade toma-se mais limitada, há suspensão dos estudos, etc. E é por meio desse corte que
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